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São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 DIMENSÃO ESTÉTICA DA PUBLICIDADE Valeria Brandini1 Resumo Reflexão acerca das relações de consumo pautadas nas referências culturais que, por sua vez, decorrem do compartilhamento de valores entre quem produz/anuncia e quem assiste/consome qualquer coisa. Ao reproduzir códigos de valores vivenciados no cotidiano da cultura, a publicidade estimula consumo, adesão a marcas e modos de ser, reincorporando em forma codificada os signos do Ethos sobre o qual se alicerçam comportamentos, ideologias, gostos e modos de vida. Palavras-chave Publicidade, antropologia, consumo, ethos, ética, estética. Durante o estágio sanduíche realizado parte em Londres, parte em Roma, quando concluía o doutorado, observei que uma das formas mais eficazes de imergir na cultura destes países ‘Outros’ consistia em simplesmente assistir às peças de campanhas publicitárias veiculadas na televisão. Os mais determinantes elementos constituidores do Ethos2 daquelas culturas estavam presentes nos comerciais subsidiando os discursos publicitários com aquilo que formava o ‘gancho’, o ‘link’, a ‘amálgama’ com o interlocutor: os valores essenciais e tendências sociais contemporâneas daquelas culturas trabalhados no discurso midiático para produzir o vinculo emocional com o consumidor e orientar o desejo de consumo. Desde o humor pantomímico no caso das propagandas de pizza em Roma, até o humor ácido e irônico das propagandas de cerveja em Londres, a publicidade carrega em si, cada vez mais, o Ethos social codificado em mensagens que tocam o interlocutor pelo compartilhamento de valores sociais. Esses valores são a base que constrói a cognição humana, dado que ela é socialmente condicionada e codificada em processos de comunicação para muito além da linguagem falada - a cognição reflete estruturas da ordem social internalizados pela cultura e processos de classificação da realidade observada, conforme a antropóloga Mary Douglas em Como as instituições pensam (1986). 1 2 Antropóloga. Doutora em ciências da comunicação. Diretora de científica da empresa Núcleo Xamã, São Paulo. Ethos: reunião de traços psicossociais que definem a identidade de uma determinada cultura; personalidade de base. 1 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 A publicidade só é eficaz, despertando o desejo de consumo e adesão à marca, quando reproduz no corpo de seu texto simbólico os códigos de valores do interlocutor de acordo com os elementos essenciais vivenciados no cotidiano social de sua cultura, seu ethos. Isso fica muito claro quando observamos as propagandas de outros países, que remetem a humor, desejo, afetos ou elementos do convívio social de seus cidadãos que nos provocam estranhamento, justamente porque dizem respeito a um código de valores que é familiar essencialmente para aqueles que partilham daquela cultura, como vemos em Laraia em Cultura, um conceito antropológico: “O repetitivo pastelão americano não encontra entre nós a mesma receptividade da comédia erótica italiana, porque em nossa cultura a piada deve ser temperada com uma boa dose de sexo e não melada pelo arremesso de tortas e bolos na face do adversário.” (LARAIA, 1986, 58) Ao incorporar de forma codificada os signos do Ethos de uma cultura, a publicidade reproduz em sua forma e conteúdo a ética partilhada pelos consumidores, o conjunto de comportamentos, valores e ideologias pertencentes a uma dada cultura que, tal como um habitus3, promove a repetição orquestrada de comportamentos “internalizados” e modos de vida por parte das gerações posteriores que fazem parte de um determinado grupo. Tomando-se o conceito de ética sob o ponto de vista da forma de ser e viver de um dado grupo ou sociedade, podemos pensar a sociedade contemporânea, influenciada e rearticulada em seus modos de vida pelo advento das novas tecnologias de comunicação, novas mídias e novas (ou em desenvolvimento constante) estruturas de mercado, como uma sociedade onde se desenvolve uma nova ética sob o signo da mídia e o corolário do consumo. Conforme Muniz Sodré, vivemos a era da midiatização, uma ordem de mediações socialmente realizadas, com interações qualificadas como tecnomediações, caracterizadas por uma espécie de prótese tecnológica e mercadológica da realidade sensível denominada médium, que representa um dispositivo cultural historicamente emergente no momento em que o processo de comunicação é técnica e mercadologicamente redefinido pela informação, isto é, por um produto a serviço da lei estrutural do valor, também conhecida como capital. (SODRÉ, 2006:21) 3 De acordo com Pierre Bourdieu: sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador, ou estruturas das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto de obediência a regras objetivamente adaptadas a seu fim, sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los, quando coletivamente orquestradas e não necessariamente organizadas por um regente. 2 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 A midiatização, agora orquestrada pela cyber tecnologia opera como um dos instrumentos de internalização dos valores culturais mencionados por meio da propaganda, produzindo um ciclo onde por um lado esta condiciona nossa visão de mundo por nos inundar com mensagens codificadas com valores do ethos social e por outro é influenciada por estes valores, devendo operar por meio do uso destes como constituidor do vinculo emocional que cativa o consumidor. A propaganda serve como uma forma de consumo, não apenas dos valores sociais essenciais de uma dada cultura, como também dos movimentos socioculturais que se sucedem na forma de tendências adotadas, ela serve como um ‘agenda setting’, que segundo Clovis de Barros, constitui uma ‘pauta’ de conteúdos simbólicos compartilhados que permite que o consumidor fuja do isolamento numa espécie de conluio na adoção dos comportamentos, informações e desejos compartilhados. Nesta forma de consumo dos valores sociais, a propaganda funciona como uma condicionante da experiência vivida, nos orientando sobre como olhar, compreender e consumir o real em termos materiais e simbólicos, como observa Silverstone em sua fala sobre a mídia, que aqui pode ser transcendida também à comunicação publicitária com vias ao consumo: “A mídia, ao constituir parte da textura geral da experiência — expressão que toca a natureza estabelecida da vida no mundo, conforme Silverstone, filtra e molda realidades cotidianas por meio de suas representações singulares e múltiplas, fornecendo critérios, referências para a condução da vida diária, para a produção e manutenção do senso comum.” (SILVERSTONE, 2002: 20) A maior ou menor aderência ao discurso publicitário por parte do consumidor dar-se-`a a partir da capacidade de reprodução dos polêmicas, paixões, ridicularizações dos valores culturais vivenciados em conluio social e trabalhados como ‘pontos de fricção’, isto é, gerando provocações em várias instâncias de forma a tocar e gerar afetos, sob este ponto de vista, tudo o que provoca elementos do familiar, endógeno, compartilhado socialmente, tem maior chance de cair no gosto do consumidor. Segundo Mary Douglas, em O mundo dos bens, o ser racional não consegue se comportar racionalmente em meio ao social, a menos que haja alguma consistência e confiabilidade no mundo que o cerca. Essa confiabilidade é constituída por meio dos valores compartilhados que conferem o senso de realidade e pertencimento do individuo ao grupo e, para pensar a realidade o indivíduo necessita de um universo inteligível e essa inteligibilidade precisa ter algumas marcas 3 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 visíveis, tais marcas, por sua vez, são os elementos materiais e simbólicos codificados com valores sociais adquiridos por meio do consumo — que toma como elemento de construção dos referenciais cognitivos dos objetos consumidos, o universo de imagens e significados determina pela publicidade. Para Douglas, conceitos abstratos são sempre difíceis de lembrar, a menos que assumam alguma aparência física, os bens de consumo, codificados com valores sociais se tornam marcadores mais ou menos transitórios de categorias racionais. Eles “marcam” o consumidor, lhe atribuindo um lugar, uma condição dentro do mosaico social pois o discurso da marca e do produto em si fazem afirmações físicas e visíveis sobre a hierarquia de valores de quem escolheu. Para a autora, os bens são utilizados para constituir um universo inteligível, eles fazem parte de um sistema vivo de informações. Estas informações derivam da construção simbólica operada pelos meios de comunicação. Podemos dizer que a “agenda fixada” pela publicidade fornece o universo de significações socialmente estruturadas necessárias ao objeto material tornado produto de consumo simbólico. A publicidade “constrói” o universo inteligível definido por Mary Douglas como necessário para estruturação da ordem e identidade social de um grupo, pois ela age por hibridizações com estruturas já presentes e instituições sociais existentes rearticulando significados pelas mediações tecnológicas. Mas o poder da mídia que só se consolida pelo consumo da “materialidade” ritualmente, no caso, no consumo dos bens simbólicos atribuídos de significação pela publicidade. Nos últimos dez anos o grande mercado tem buscado no conhecimento antropológico os valores essenciais que determinam cognição e formação do desejo junto ao consumidor para construir o arcabouço simbólico do discurso publicitário. Desde os anos 1950 a psicologia tem sido de grande auxilio para o marketing ao ser apropriada por este para o uso em pesquisas junto ao público consumidor. Os focus group e questionários serviram durante muito tempo para pesquisar padrões de comportamento e intenções de compra. Na sociedade hiper-complexa, os códigos culturais são também dotados de maior complexidade, são signos que representam as diferentes formas de ser e viver, num leque cada vez maior de possibilidades que tornam o comportamento do consumidor algo caleidoscópico, ao invés de estratos sociais definidos que podem ser ‘lidos’ em seus desejos e comportamentos por metodologias de pesquisa de mercado tradicionais, os consumidores se constituem cada vez mais 4 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 em clusters fluidos que se formam e se dissolvem ao sabor de movimentações na dinâmica social dos grupos, adoção de novas práticas cotidianas, de diferentes ritos e comportamentos sociais que conferem novas configurações cada vez que olhamos de perto a estrutura dos mesmos. A antropologia, enquanto ciência que por excelência estuda o Outro, as relações de alteridade que definem identidades e diferenças entre grupos consegue dar conta de mapear as estruturas de valores e significados nestes grupos, clusters cada vez mais híbridos e complexos que não conseguem ser apreendidos e determinados por pesquisas de mercado com metodologias tradicionais, dado que a própria determinação somente por bases demográfica já não é capaz de delimitar de forma eficaz a amostragem correta para as pesquisas de comportamento do consumidor. A definição faixa etária/renda/localização geográfica não é mais suficiente para determinar estratos de consumo para pesquisa pois, a começar da definição etária a experiência empírica de pesquisa nos mostra que um produto voltado ao publico “jovem” como jeans Premium, é usado tanto pela filha de vinte anos, quanto pela mãe de cinquenta, sendo a mãe muitas vezes uma consumidora mais fiel ao produto que a filha, enquanto produtos outrora voltados a “senhoras” como tailleurs Chanel são hoje consumidos por boa parte de adolescentes milionárias mundo afora que utilizam os casacos curtos de botões dourados para compor o visual high-low com jeans rasgados. A antropologia permite que se apreenda o ethos das culturas de consumo na sociedade hiper-complexa, culturas estas que se constituem de forma randômica a partir da adesão a determinados valores que consolidam comportamentos de compra e uso de produtos e serviços. Vemos em Kroeber que a cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores (1967), as culturas de consumo são estruturas instáveis, mutantes, fundamentadas num arcabouço de padrões anteriores de comportamento e estilo de vida codificados em produtos que evoluem conforme mudanças sociais que redefinem valores compartilhados por diferentes clusters de consumo (subculturas de consumo delimitadas a partir de valores compartilhados codificados em produtos e serviços que ao serem consumidos “marcam socialmente”, codificam, por sua vez, o consumidor). Esses clusters, ou subculturas de consumo não são facilmente diagnosticados em pesquisas de mercado comuns, pois os elementos que as delimitam são da natureza da cultura e não da natureza do indivíduo (psicologia) ou do mercado. A antropologia do consumo aplicada ao mercado tem sido uma essencial ferramenta para 5 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 mapear as subculturas de consumo, pois o que os métodos tradicionais das pesquisas de mercado apreendem o que denominamos em antropologia ‘descrição superficial’, ou seja, a observação leiga que apreende dados, como por exemplo, quais os formatos de salgadinhos os jovens preferem e em que tipo de embalagem. Na antropologia trabalhamos com o que Geertz (1986) denomina ‘descrição densa’, isto é, a descrição etnográfica característica da antropologia e que uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos às quais a formação do desejo, o processo de escolha e o uso dos bens está submetida, uma descrição dos comportamentos de consumo baseada na análise semiótico-antropológica dos valores que constroem a cognição do cluster e a percepção e julgamento de valor minimamente consensual do grupo. Conforme Geertz “O que devemos indagar (sobre o comportamento analisado em antropologia) é qual é a sua importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência, através da sua agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche ou orgulho.” (GEERTZ, 1986: 7) A antropologia trata, na interpretação dos códigos das subculturas de consumo, de aferir o que está sendo transmitido, tal qual um valor moral passado de geração em geração por meio de uma parábola entre as culturas que não possuíam escrita, qual o seu sentido e que valores sociais carregam os comportamentos de consumo para que este denominador comum possa ser utilizado como base na criação de estratégias de marketing e desenvolvimento da comunicação junto ao consumidor, criando ressonância no discurso publicitário por dialogar com esse na ‘língua’ e código de valores compartilhados do cluster analisado. Ao invés de investigar qual o formato de salgadinho preferido pelo consumidor jovem, a antropologia do consumo aplicada vai analisar quais as estruturas que compreendem os códigos alimentares juvenis, as lógicas sociais implícitas nesses códigos, os processos rituais envolvidos, os mitos e crenças que condicionam percepção, julgamento de valor e escolha e as relações entre esses códigos com estruturas mais abrangentes, como a influência familiar, socioeconômica, de nível educacional e as associações entre códigos alimentares, de entretenimento e de rituais juvenis. O resultado será um arcabouço conceitual construído com elementos semióticos e culturais daquele cluster que codificará no formato do salgadinho os valores da subcultura de consumo em questão. Numa pesquisa de antropologia do consumo aplicada desenvolvida para uma multinacional de salgadinhos pela minha empresa, Núcleo Xamã, investigamos quem eram os 6 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 Millenials brasileiros, isto é, os jovens da dita geração Y, nascidos entre 1980 e 2000, marcados pela vivência no mundo virtual. O objetivo era iconizar uma das marcas de salgadinhos da multinacional entre os millenials, gerando maior adesão à marca e consequentemente maior consumo entre o target. Foi realizada uma pesquisa antropológica, operacionalizada por antropólogos da USP e UNICAMP nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do País, por meio de observação participante, etnografia digital, descrição densa das práticas de consumo e entrevistas em profundidade. A pesquisa foi alicerçada por estudos teóricos já realizados durante meu mestrado e doutorado sobre antropologia da juventude e em meu pós doutorado em antropologia do consumo. A base teórica permitiu contextualizar a realidade observada dentro do conhecimento antropológico para que este pudesse conduzir os processos de interpretação dos dados apreendidos em campo. Diferentemente das pesquisas de mercado convencionais, a análise dos dados aqui não vai apenas apresentar “o que”, como uma fotografia do comportamento de consumo do cluster, mas vai funcionar como uma radiografia diagnóstica, trazendo os ‘porquês’ de acordo com os códigos intrínsecos daquela cultura, entendendo que cada preferência, cada ação de compra ou ritual de uso compreende uma estrutura de significações que orientam o processo de escolha e que foi decifrada e interpretada em profundidade neste estudo. Como resultado, elencamos “drivers” (determinantes fundamentais de valores que orientam o consumo) de consumo dos millenials que, trabalhados como os ditos “insights” da publicidade, operam como unidades conceituais que estruturaram a campanha seguinte, aplicada ao produto e o branding deste, posicionando-o como um “totem” a condensar em seu discurso estético os valores compartilhados pelos millenials brasileiros e trabalhados junto ao consumidor por intermédio da publicidade. O mundo do consumo é a seara da sociedade hipercomplexa que melhor representa seus códigos culturais contemporâneos na heterogeneidade dos grupos fluidos que nela se formam de maneira desordenada. A antropologia do consumo aplicada ao mercado atua de forma a desconstruir os mitos do senso comum que envolvem estes códigos decifrando-os de acordo com os valores culturais do grupo que os compartilha. Desta forma promove tanto um entendimento aprofundado e assertivo da cosmologia do comportamento do consumidor, quanto permite codificar produtos e marcas por meio do branding trabalhado junto à publicidade. 7 São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014 Referências BARROS, Clovis de. A ética na comunicação. São Paulo. Editora Summus. 2006. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp. Porto Alegre, Zouk. 2007. DOUGLAS, Mary. Como as Instituições Pensam / Mary Douglas; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. ______ e ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens. para uma Antropologia do Consumo. Rio Janeiro: Editora UFRJ, 2004. GEERTZ,Clifford. A interpretação das culturas / Clifford Geertz. - l.ed., IS.reimpr. - Rio de Janeiro : LTC, 2008. KROEBER, Alfred Louis. Anthropology: Race, Language, Culture, Psychology, Prehistory. Oxford & IBH Publishing, London. 1967 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14 ed. 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