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AO RITMO DO ABSOLUTO Colecção «CAMINHOS DO ESPÍRITO» 1. Caminhar no Espírito – 1º vol.: O Deus que Se revela Dário Pedroso, S.J. 2. O Regresso do Filho Pródigo Meditações perante um quadro de Rembrandt (2ª ed.) Henri J. M. Nouwen 3. Este combate não é teu... Paulette Boudet 4. Alegria de Crer e de Viver François Varillon, S.J. 5. Agenda da Igreja Domingos Terra, S.J. 6. Amar com Actos – Intervenções sobre a justiça cristã Domingos Monteiro da Costa, S.J. 7. A Graça de Ser Mulher Georgette Blaquière 8. Ser Cristão à Luz do Vaticano II Manuel Morujão, S.J. 9. Caminhar no Espírito – 2.º vol.: O homem à busca de Deus Dário Pedroso, S.J. 10. Espiritualidade da Vida Cristã segundo o P. Varillon Paul Meunier 11. A Alegria da Conversão Ignacio Iglesias, S.J. 12. Ao Ritmo do Absoluto – Viver em Oração André Louf André Louf AO RITMO DO ABSOLUTO Viver em Oração EDITORIAL A. O. – BRAGA Título: Au gré de sa grâce © Lannoo Kaasteelstraat, 97 8700 TIELT – BÉLGICA Tradução: Miriam Godinho Pode imprimir-se: José Carlos Belchior, S.J. Provincial Imprima-se: † Eurico Dias Nogueira Arcebispo Primaz Dep. Legal nº 137380/99 ISBN 972-39-0509-4 © SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO L. das Teresinhas, 5 – 4714-504 BRAGA – Tel.: 053-20 12 20; Fax: 053-20 12 21 EM ESTADO DE CONVERSÃO 5 Não existe nada que humilhe e enalteça tanto como a graça Abade de Saint-Cyran 6 AO RITMO DO ABSOLUTO EM ESTADO DE CONVERSÃO 7 1 EM ESTADO DE CONVERSÃO Entre a ira e a graça Chamamos conversão ao momento em que a graça invade alguém pela primeira vez. Dizemos que a pessoa está convertida ou em vias de conversão. Em linguagem corrente, este é um acontecimento muito importante, se bem que transitório, que pode ainda vir a dar-se ou ter-se dado já há muito tempo. Mas parece que ninguém julga necessária a conversão, a não ser em caso de apostasia. E assim, a palavra derivada, convertido, não se costuma aplicar senão a uma categoria muito determinada de crentes: os que receberam a fé numa idade já avançada. Daí resulta que à criança baptizada, que recebeu a fé em tenra idade – o que, entre nós, acontece na maioria dos casos – nunca lhe chamarão «convertida». É como se nunca tivesse nada a ver com a conversão. Parece que só aqueles que vivem à margem da fé ou que não vivem de acordo com a sua fé, mas no pecado, teriam de se preocupar com a conversão, não a pessoa que foi sempre crente, sobretudo o crente praticante. No entanto, é preciso notar que a Bíblia fala com frequência, e muito explicitamente, de conversão, e da conversão de cada um. A primeira Boa Nova que ouvimos dos lábios de João Baptista, resume-se efectivamente neste vigoroso apelo: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos céus» (Mt 3, 1). É esta proximidade que torna a conversão tão necessária. Porque, 8 AO RITMO DO ABSOLUTO como diz João aos Fariseus e Saduceus que vêm a ele para serem baptizados, a ira e a vingança de Deus estão próximas: «Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar? Fazei coisas que provem que vos convertestes… O machado já está posto à raiz das árvores. E toda a árvore que não der bom fruto será cortada e lançada no fogo. Eu baptizo-vos com água para a conversão. Mas Aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu… Ele vos baptizará no Espírito Santo e no fogo. Ele terá na mão uma pá: vai limpar a sua eira e recolher o seu trigo no celeiro; mas a palha, Ele vai queimá-la no fogo que não se apaga» (Mt 3, 1-12). João Baptista relaciona a conversão com a presença de Jesus, e também com o Juízo futuro e o fogo repentinamente inflamado da ira de Deus, do qual devemos livrar-nos. Ira e vingança, atribuídas a Deus, não são noções muito fáceis. E ainda menos a imagem do machado que já estaria posto à raiz da árvore. Consciente ou inconscientemente, tínhamo-las relegado para o Antigo Testamento, como se pudessem desaparecer do horizonte e tivessem perdido a sua razão de ser com a vinda de Jesus. Mas eis que, no limiar do Novo Testamento, a vinda de Jesus é precisamente anunciada por essa antiga imagem: na presença de Jesus, Deus pegou na pá e dispôs-Se a limpar a sua eira. Tal é o baptismo instituído por Jesus: um baptismo em ordem à conversão, mas igualmente um baptismo no fogo e no Espírito Santo. O que acabamos de dizer parece indicar que temos ainda, de certo modo, de nos enfrentar com a ira de Deus. E que isso não pode dar-se senão em Jesus. Alguma vez, na minha vida, me enfrentei com a ira de Deus? Se não, terei ainda necessidade da graça? Pois não diz esta respeito a essa ira da qual me liberta a cada instante? Em Jesus, não estou constantemente exposto à ira e à graça, como entre a espada e a parede, precisamente no ponto em que poderia situar-se a minha conversão? EM ESTADO DE CONVERSÃO 9 Muito tempo depois de Jesus ter morrido e ressuscitado, Paulo escreve aos Romanos, no começo da sua grande síntese teológica sobre a graça: «A ira de Deus manifesta-se…» (Rm 1, 18). Por outro lado, não há dúvida de que Paulo anuncia que a glória de Deus também deve manifestar-se (Rm 8, 18), mas esta glória é sempre precedida pela ira. «Como os outros – dirá ainda Paulo – éramos, por natureza, merecedores da ira de Deus» (Ef 2, 3). O amor e a graça são excepções em relação à ira, e supõem que fomos escolhidos de modo especial para ficar livres dela. O estado de graça é excepção em relação ao estado de ira que é, na realidade, o nosso primeiro estado: excepção repleta de amor, por causa de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Em várias passagens do Novo Testamento aprendemos mais alguma coisa sobre esta ira de Deus, principalmente que ela não se situa no passado, mas que ainda há-de vir. Espera-nos no futuro. Paulo emprega frequentemente a expressão: «A ira de Deus vem» (Ef 5, 6; Cl 3, 6), enquanto João prefere falar da ira que já veio, mas que permanece sobre nós (Jo 3, 36). O Apocalipse fala do «grande dia da ira», o dia em que Deus «dará o cálice do vinho do furor da sua ira» (Ap 16, 19). A imagem do cálice da ira que Deus nos dá a beber está muito próxima de um outro cálice de que fala a Escritura: o cálice da paixão de Jesus. Nas mãos de Jesus, o cálice da ira converte-se em cálice de salvação. A bebida mortal da ira transforma-se em bebida de amor. Tal como Jesus, nós recebemos este cálice das mãos de Deus para o bebermos. E para nós, também, esse cálice é ou um cálice de vingança ou um cálice de ternura. Estamos embriagados, quer da ira de Deus quer do amor de Deus. Mas a passagem de uma ao outro não se pode fazer senão com Jesus e graças a Ele. Por isso, o nosso cálice de sofrimento não será diferente do de Jesus. Porque só Ele, que o bebeu até ao fim, nos pode livrar da ira de Deus. Só Ele pode fazer de modo a que o cálice da ira se converta para nós também em cálice de salvação. 10 AO RITMO DO ABSOLUTO Ainda falta muito antes que isso se cumpra. E nada está garantido, mesmo que Paulo nos anime a olhar com confiança para a ira futura: «Mas Deus demonstra o seu amor para connosco porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. Assim, tornados justos pelo sangue de Cristo, com maior razão seremos salvos da ira por meio d’Ele. Se quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais agora, já reconciliados, seremos salvos pela sua vida» (Rm 5, 8-10). Noutro lugar, Paulo diz ainda que é Jesus «quem nos liberta da ira futura» (1 Tes 1, 10). Fomos salvos, portanto, da ira, pela primeira vez, quando os nossos pecados foram apagados pelo Baptismo, mas eis-nos de novo confrontados com essa mesma ira de Deus que ainda permanece diante de nós. Isto mostra bem como o momento presente é importante. É o kairós, o tempo de salvação em que vivemos e em que nos é dado fazer a opção decisiva, no poder da morte e da ressurreição de Jesus. Assim, o que virá amanhã já acontece hoje, embora em esperança, uma esperança que cresce cada vez mais até ao coroamento do fim dos tempos. Esta escolha decisiva entre a ira e a graça, que é a opção de amanhã mas também de hoje, e opção de hoje para amanhã, é precisamente o que nós chamamos a conversão. Este termo é a tradução da palavra neotestamentária metanoein, que procura substituir o vocábulo hebreu shûb. Esta última raiz semítica significa muito simplesmente voltar-se, tornar sobre os seus passos e, só por derivação, converter-se. O acento recai, portanto, na volta que se dá. A palavra grega metanoein explica esta volta. Há nela duas raízes: a primeira, tal como no hebreu, sublinha a inversão, experimentada de alto a baixo. A segunda raiz dá-nos a conhecer o que se inverte com essa volta: o noûs, isto é, o fundo espiritual, o mais profundo do nosso coração. Trata-se, portanto, de uma revolução no interior de nós próprios. Em português, metanoein traduz-se algumas vezes por penitência, contrição, termos menos felizes do que conversão. No entanto, mesmo a EM ESTADO DE CONVERSÃO 11 palavra conversão, tão gasta pelo uso corrente, parece ainda demasiado fraca. Numa passagem da Bíblia, fala-se, num contexto idêntico, de metanoein kai epistrephein (Act 3, 19): deixar-se inverter por completo, revolucionar, a fim de se voltar para qualquer coisa ou alguém. Trata-se de um voltar-se radical, pelo qual uma pessoa torna sobre os seus passos, a fim de se empenhar numa nova direcção. Sempre em vias de se converter Aqui surge de novo a questão colocada no princípio deste capítulo: em que sentido temos nós, ainda hoje, necessidade de conversão? Não a recebemos nós no Baptismo, de uma vez por todas? A conversão seria coisa já feita e nós, agora, encontrar-nos-íamos a caminho, com altos e baixos certamente, caindo e levantando-nos, rumo à perfeição e à santidade. É esta, de facto, a imagem que temos do caminho por onde avançam todos os cristãos. Substancialmente, tal caminho estaria dividido em três etapas. Primeiro, a ausência de fé e o pecado; depois, o passo decisivo da conversão; por fim, a procura da perfeição. Nós situamo-nos, então, espontaneamente – e não sem uma certa ingenuidade – em qualquer momento da terceira etapa, num estado mais ou menos avançado. A realidade nem é assim tão simples nem tão complicada, porque a graça é a própria simplicidade. A dificuldade reside antes no facto de que a vida no Espírito Santo não é fácil de discernir. Cruzam-se constantemente diferentes linhas de força, se bem que a confusão – e também a ilusão – sejam possíveis: nem sempre é fácil distinguir essas linhas umas das outras. De facto, o pecado, a conversão e a graça não são simplesmente três etapas sucessivas. Na vida quotidiana, são por vezes inextricáveis. Crescem juntas, em interdependência: nunca estou totalmente 12 AO RITMO DO ABSOLUTO numa ou noutra; estou constantemente nas três ao mesmo tempo. O pecado, a conversão e a graça são o meu pão e a minha herança de cada dia. Mesmo no Reino dos Céus, na medida em que o vivemos neste mundo, não acontece de outra maneira, é o próprio Jesus quem o diz. Também nele não estão ausentes os pecadores. Pelo contrário: publicanos e prostitutas são os primeiros a entrar, precedendo nele todos os outros (Mt 21, 28-32). Estas três etapas não representam três graus duma escala de valores. Não vamos passando de um ao outro, como se subíssemos os degraus duma escada. Não são três galões que possamos coser na manga, um após outro. Não. Antes de morrermos, não podemos dizer nunca um adeus definitivo a qualquer dos três. Continuamos sempre a ser pecadores, estamos sempre em processo de conversão e, nesta conversão, somos continuamente santificados pelo Espírito de Deus. Porque não podemos, nunca, pertencer a essa categoria de pessoas de quem Jesus afirma «que não têm necessidade de conversão» (Lc 15, 2) porque se crêem justas. Nesse caso, não precisaríamos de Jesus. Talvez nos mantivéssemos ainda a caminho rumo a Deus, mas sozinhos, no sentido mais solitário da palavra, irremediavelmente sós, recaindo constantemente sobre nós próprios, sob a aparência duma santidade que em vão tentaríamos realizar. Cada vez nos sentiríamos mais profundamente frustrados, porque nunca encontraríamos o verdadeiro amor. É sempre uma ilusão julgar-se convertido uma vez por todas. Não, nós não passamos nunca de pecadores, mas pecadores perdoados, pecadores-em-perdão, pecadores-em-conversão. Neste mundo, não pode haver outra santidade, porque a graça não pode actuar de outra maneira. Converter-se é sempre recomeçar essa mudança interior pela qual a nossa pobreza humana – o que Paulo chama a carne – se volta para a graça de Deus. Da lei da letra, passa à lei do Espírito e da liberdade; da ira à graça. Esta mudança nunca está terminada, está sempre a começar. Antão, o Grande, Patriarca e Pai de todos os monges, dizia-o de EM ESTADO DE CONVERSÃO 13 uma maneira lapidar: «Todas as manhãs digo a mim mesmo: hoje começo». E Abba Poimen, o segundo entre os Padres do deserto, o mais ilustre depois de Antão, a quem felicitavam, no leito de morte, de ter vivido uma vida feliz e virtuosa, e de poder confiadamente apresentar-se perante Deus, respondeu: «Tenho ainda de começar, apenas comecei a converter-me». E chorava com pena. De facto, a conversão é sempre uma coisa que leva tempo. O homem precisa de tempo, e Deus também quer precisar de tempo connosco. Partiríamos de uma imagem de homem absolutamente errada se pensássemos que as coisas importantes da vida humana podem realizar-se imediatamente e de uma vez para sempre. O homem está feito de tal maneira que precisa de tempo para crescer, amadurecer e pôr em acção todas as suas capacidades. Deus sabe-o melhor do que nós. E, por isso, espera, não desiste. É indulgente, longânime. Espera-nos como um pescador paciente, como escrevia um poeta. To chrèston tou Theou eis metanoian se agei (Rm 2, 4), escreve Paulo: «A bondade de Deus convida-te à conversão». Não a ira, mas antes to chrèston, o seu afecto, bondade, paciência. No prólogo da sua Regra, S. Bento comenta-o de modo impressionante: Deus vai todos os dias à procura do seu operário, diz ele, e o tempo que nos dá é ad inducias, uma trégua, um dom, um tempo de graça que nos é concedido gratuitamente. Um tempo de que podemos servir-nos para encontrar Deus uma vez mais, e encontrá-l’O sempre mais na sua admirável misericórdia. Não é senão mais tarde, após a morte, que vamos poder viver fora do tempo e para sempre. Hoje, o tempo é-nos dado para conhecer a Deus cada vez melhor. É sempre tempo de conversão e de graça, dom da sua misericórdia. 14 AO RITMO DO ABSOLUTO Mesmo o pecador endurecido É assim que Deus Se ocupa de nós cada dia. Chama-nos à conversão: «Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração» (Sl 94). Deus fala-nos de muitas maneiras: pela sua Palavra, através dos homens com quem vivemos e por meio de toda a espécie de circunstâncias, agradáveis ou difíceis. São sobretudo estas últimas as que mais tememos. Sabemos de sobra que Deus tem qualquer coisa a dizer-nos através da provação, da doença, da morte, da contradição. Se este temor habita ainda no nosso coração é porque só temos presente a ira de Deus. Não estamos ainda em condições de discernir, detrás desse sinal aparente da ira, o amor infinito de Deus. Vimo-lo anteriormente: em Jesus, a ira de Deus transformou-se em amor; por outras palavras: tornou-se evidente que a sua ira não é senão uma tentativa provisória de nos fazer compreender o seu amor. Se ainda temos medo das intervenções de Deus, se as interpretamos espontaneamente como uma expressão da sua ira, isso significa que, de uma maneira ou de outra, ainda estamos agarrados ao provisório. Ainda não experimentamos o amor de Deus, a sua ternura desconcertante. Dir-se-á, talvez, que esse temor é precisamente o sinal de que somos culpados, a prova das censuras que nos faz a nossa consciência e do castigo de Deus que nós merecemos. Só os pecadores deveriam temer a ira de Deus, e aquele que a teme demonstra com isso que é pecador. Um tal raciocínio não é tão evidente quanto parece, mesmo que reflicta bastante bem a reacção comum do crente mediano actual. De facto, para quem percorre o Evangelho, não é evidente que o pecador tenha de temer Jesus. Pelo contrário: não dizia Jesus, a cada passo, que tinha vindo, não para os justos, mas precisamente para os pecadores? (Mt 9, 13). Além disso, não está absolutamente provado que só os pecadores temem a Deus. Na realidade, encontram-se muitos EM ESTADO DE CONVERSÃO 15 crentes e muitos justos – para empregar um termo bíblico – que vêem com a mesma incerteza e temor o seu eventual encontro com Deus. Fazem tudo quanto podem para se verem livres desse mal-estar, à força de generosidade e de virtude. Quanto mais o conseguem – e uma conquista dessas é sempre relativa – mais possibilidades têm, pensam eles, de evitar a ira de Deus e merecer o seu amor. Existem, efectivamente, duas categorias de pessoas que devem, para já, temer a ira de Deus. São, por um lado, os pecadores endurecidos; por outro, os justos endurecidos. O pecador endurecido, isto é, aquele que não quer de maneira nenhuma ouvir falar de mudança, vai ter de enfrentar, um dia, a ira de Deus, mesmo que tenha conseguido eludi-la habilmente na vida de cada dia. Mas é lícito pensar que existem, de facto, muito poucos pecadores endurecidos. Pelo contrário, há, sem dúvida, muitos mais justos endurecidos – se assim podemos exprimir-nos –, pessoas que não conhecem a misericórdia de Deus e que tratam de agir cada vez melhor, simplesmente porque têm medo da ira de Deus. Libertar-se-ão mais ou menos deste medo na medida em que conseguirem realizar o seu ideal na vida diária. Com o tempo, isso pode até tornar-se suportável, se bem que vivam, no fim de contas, com escassa compensação. Por isso é que raramente são convincentes e menos ainda contagiosas. Porque ainda não conhecem o amor, e o pouco que vive nelas procede antes de um certo contentamento de si mesmas, com o qual correm o risco de se isolarem ainda mais dos outros. Já receberam a sua recompensa (Mt 6, 2). E porque nunca ouviram falar da graça, nada mais esperam. A sua vida seria sem perspectiva e sem saída se o termo «endurecido», atribuído igualmente a pecadores e a justos, aludisse a um estatuto definitivo. Muito pelo contrário. Tudo é provisório na vida de qualquer homem, e ligado ao tempo. Nesse sentido, tanto os pecadores como os justos vivem no tempo, um tempo que é dom de Deus 16 AO RITMO DO ABSOLUTO para eles, um tempo de graça e, portanto, um tempo aberto à conversão. Nem o pecador endurecido nem o justo endurecido serão tais para sempre. Todos estão chamados a ser «pecadores em conversão». É isso o que vamos desenvolver ao longo de todo este livro. Não vai ser logo evidente, é verdade. E também não vai ser fácil explicá-lo. Não se pode fixar numa definição, mas somente tratar de descrevê-lo, a partir de uma experiência pessoal, forçosamente limitada, e a partir da experiência daqueles com quem pude estar em contacto. Afinal, é mais fácil dizer aquilo que não é, porque é muito mais fácil viver como pecador endurecido ou como justo endurecido do que como pecador em conversão. No entanto, é a esta mudança interior que a graça nos impele dia após dia. Deus toca-nos, de muitíssimas maneiras, a fim de nos cativar para este estado de conversão. E nós não podemos senão preparar-nos para sermos tocados assim por Deus. Sim, muitas coisas terão de acontecer, e totalmente fora da nossa boa vontade ou da nossa generosidade natural. Esta mudança não requer unicamente que sejamos interiormente feridos, mas sobretudo que sejamos abalados até às nossas raízes. É possível que haja cacos e destroços. Que alguma coisa em nós tenha de se desmoronar. Como um edifício de betão em que tivéssemos trabalhado anos a fio com um cuidado excepcional, e que, num dado momento, passasse a funcionar como um escudo contra o nosso eu mais profundo e contra os outros, correndo o risco de nos proteger contra a própria graça de Deus. Este desmoronamento não é senão um começo, mas já pleno de esperança. É preciso é não tentar reconstruir o que a graça demoliu. É também uma coisa que devemos aprender, porque há sempre a grande tentação de levantar um andaime qualquer diante da fachada oscilante e retomar o trabalho. Temos de aprender a ficar junto das nossas ruínas, a sentar-nos nos escombros, sem amargura, sem nos censurarmos e sem acusar Deus. Será preciso que nos apoiemos nesses muros em ruína, cheios de esperança e de abandono, com a confiança de uma EM ESTADO DE CONVERSÃO 17 criança que sonha que o seu pai vai remediar tudo. Porque Ele, sim, sabe como tudo pode ser reconstruído de outra maneira, muito melhor do que antes. Exactamente como o filho pródigo, para quem muitas coisas ficaram em farrapos: o dinheiro, a honra, o coração; ele, que tinha perdido tudo quanto ainda podia esperar das criaturas e que, no entanto, cheio de confiança, tomou a resolução de regressar à casa paterna. Sentia instintivamente que, mais do que o criado que ele desejava ser, podia ainda continuar a ser filho. Quem foi filho uma vez, sê-lo-á para sempre. No próprio momento em que o filho perdido se reconcilia com os seus destroços, já está na sua casa, junto de seu pai. Pelo contrário, aquele que luta contra os seus próprios destroços, luta também contra o seu Pai e seu Deus; continua ainda e sempre exposto à ira: ainda não é capaz de reconhecer o amor. Mas aquele que se abandona, ao ponto de se alegrar e de estar contente com a sua miséria, esse já se entregou ao amor libertador. «Permanecer na conversão» só nos é possível graças a Jesus, postos a caminho e fortalecidos pelo Espírito de Deus. Realiza-se em nós o que aconteceu a Jesus no mistério da sua morte e Ressurreição. A confiança e o abandono de Jesus ao Pai, através da morte, tornaram ineficaz para sempre a ira de Deus. Tornam-nos capazes de reconhecer, com Ele, o amor do Pai para além de cada morte e de cada renúncia, e isso até na nossa fraqueza mais profunda. Porque estar em conversão é passar continuamente ao mistério do pecado e da graça. Atenção: não é passar do pecado à graça, mas sim passar ao mistério do pecado e da graça. Isto significa o abandono de toda a justificação de si mesmo, de toda a justiça pessoal, e o reconhecimento do nosso pecado – para nos abrirmos à graça de Deus. É isto a maravilha do pecador-em-vias-de-conversão, que o próprio Jesus reconhece como a maior alegria do Pai nos Céus. «Em verdade vos digo, haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de se arrepender» (Lc 15, 7). Esse maravilhoso ho- 18 AO RITMO DO ABSOLUTO mem-pascal que morre continuamente em Jesus e ressuscita com Ele torna-se a alegria e o orgulho do Pai. É um prodígio que se renova cada dia e nunca terminado. De facto, enquanto estamos na vida presente, Deus está continuamente operante. Porque o tempo e a duração da nossa vida representam também um aspecto da graça que se encarnou: o Amor de Deus ilimitado e indefectível. Poderemos, assim, cada dia, firmar-nos na conversão, com o coração repleto de acção de graças. Um passo fora deste estado de conversão significaria um passo fora de Deus e do seu amor. Isto, mesmo que continuemos a pensar em Deus, a falar d’Ele e a anunciá-l’O. Até a oração dirigida a Deus se tornaria impossível, porque não há verdadeira oração fora de uma contínua conversão. Fora da conversão, estamos fora do Amor. Nesse caso, não restam ao homem senão duas possibilidades: ou a satisfação de si mesmo e a sua justiça pessoal; ou uma profunda insatisfação e o desespero. Fora da conversão, não podemos manter-nos na presença do Deus verdadeiro, porque não estaríamos junto de Deus, mas junto de um dos nossos inumeráveis ídolos. Além disso, sem Deus, não podemos permanecer na conversão. Porque esta nunca é o fruto de bons propósitos ou de qualquer esforço continuado. Ela é o primeiro passo do amor, do Amor de Deus, muito mais que do nosso. Converter-se é ceder à conquista insistente de Deus, é abandonar-se ao primeiro sinal de amor que percebemos vindo d’Ele. Abandono, portanto, no sentido forte de rendição. Se nos rendermos perante Deus, entregamo-nos a Ele. Porque, nesse momento, todas as nossas resistências desaparecem diante do fogo devorador da sua Palavra e perante o seu olhar, e não nos resta senão a oração do profeta Jeremias: «Converte-nos (literalmente: faz-nos voltar), Senhor, e nos converteremos» (literalmente: voltaremos) (Lm 5, 21; cf. Jr 31, 18). ÍNDICE 171 ÍNDICE 1. Em estado de conversão .................................................................... Entre a ira e a graça ............................................................................. Sempre em vias de se converter........................................................... Mesmo o pecador endurecido .............................................................. 7 7 11 14 2. Os nossos ídolos e Deus ..................................................................... A esposa infiel ..................................................................................... E os falsos deuses de hoje? .................................................................. Amaldiçoar a Deus .............................................................................. As oportunidades de Deus ................................................................... O Deus de quem ouvimos falar ........................................................... 19 19 23 26 30 33 3. O poder da fé ...................................................................................... Como falar da fé? ................................................................................ Jesus surpreendido ............................................................................... Assentimento e abandono .................................................................... A fé que realiza maravilhas ................................................................. 36 36 38 42 43 4. Crescer através da tentação .............................................................. A fraqueza da carne ............................................................................. Na fraqueza, a força de Deus ............................................................... Reconciliar-se com a própria fraqueza ................................................ 47 47 52 54 5. Entre a fraqueza e a graça ................................................................ Uma virtude evangélica? ..................................................................... Fariseu ou publicano? .......................................................................... A Boa Nova ......................................................................................... 58 58 63 66 6. A compunção ou o coração contrito ................................................. Culpabilidade e arrependimento .......................................................... O monge e o publicano ........................................................................ E quanto à ascese? ............................................................................... 70 72 75 78 172 AO RITMO DO ABSOLUTO A ascese de fraqueza............................................................................ O homem restaurado ............................................................................ 82 88 7. O acompanhamento espiritual.......................................................... Detectar a vida ..................................................................................... Manifestar os seus desejos ................................................................... A censura interior ................................................................................ O Deus-espelho ................................................................................... O Deus verdadeiro para o homem livre ............................................... Os momentos importantes do acompanhamento ................................. 92 94 102 106 112 115 118 8. A propósito de alguns frutos do Espírito Santo .............................. A alegria .............................................................................................. Recolhimento e silêncio....................................................................... Crescer para dentro .............................................................................. O amor humilde ................................................................................... 125 125 135 138 141 9. Orar: respirar ao ritmo da graça ..................................................... A propósito da oração .......................................................................... Orar na indigência ............................................................................... A oração: um grito ............................................................................... Unificar-se desde dentro ...................................................................... Liberdade no Espírito .......................................................................... 147 147 151 157 162 164 Epílogo ...................................................................................................... 167 Índice ....................................................................................................... 171