O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e
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O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e
José Evaldo de Mello Doin O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e Violência The Buccanism at the First Republic Operaning: Speculation and Violence José Evaldo de Mello Doin1 Resumo O artigo apresenta algumas questões que desenvolvi em minha tese de livre docência, intitulada O capitalismo bucaneiro: dívida externa, materialidade e cultura na saga do café. A República verá acentuar-se alguns dos mais marcantes vincos definidores da fisionomia do bucaneirismo. Os soldados da fortuna empenhavam tudo no risco das ações, jogava-se o jogo do enriquecimento quase imediato, da conquista e da busca da aventura, ao invés do lucro torpe. O Encilhamento é um momento privilegiado para se observar essa anima flibusteira e sua derrocada colocou o País numa crise financeira sem precedentes. Entretanto, se o descalabro das finanças amancebava-se com o período mais agudo da queda dos preços do café, não se pode olvidar que esse estrangulamento era apenas uma pequena convulsão frente à expansão ocorrida nos últimos 50 anos do século XIX, em que o setor mais dinâmico da economia quintuplicou. Palavras-chave: Encilhamento; Capitalismo Bucaneiro; Violência Privada; Funding Scheme; Especulação; Racionalismo. Abstract This papper presents some comments I developed in my free docentship entitled “The capitalism buccaneer: foreign debt, materialidade and culture in coffee saga. The republic reinforced some of the most noticeable marks which defined the features of buccaneirism. The fortune soldiers pawned everything under the risk of their actions.It was played the game of an almost immediate enrichment, of the conquest and adventure searching,instead of the vile profit. The “Encilhamento” is a special moment to observe the encourages of flibustery; its decayin put the ctry in a fanancial crisis without precedence. However, with financial scandals living side by side with the sharpest period of coffe prices fall, nobody can deny that this choking was only a little convulsion before the expansion occurred in the last 50 years of century, in which the most dynamic sector of economy quintupled. Keywords: “Encilhamento”; Capitalism Pirate; Deprived violence; Funding Scheme; Speculation; Racionalism. 1 Introdução: do Encilhamento ao 1º Funding Loan capitalismo, faz uma síntese feliz que corrobora estas minhas formulações: A República verá acentuar-se alguns dos mais marcantes vincos definidores da fisionomia do bucaneirismo. Sua estrutura social indefinida, que atinge até a composição da classe dominante, seu caráter híbrido, sua estrutura política difusa e incompleta encontram vazão natural na dinâmica acelerada das transformações, advindas da expansão ou das crises de seu produto símbolo: o café. Sérgio Paulo Rouanet, comentando Roberto Schwarz, quando da publicação de Um mestre na periferia do “...Conseqüentemente, passaram a coexistir estruturas sociais ‘atrasadas’, baseadas no trabalho escravo e no clientelismo, com formas ideológicas e institucionais ‘modernas’, de cunho iluminista e liberal (parlamentarismo e direitos humanos). Essas formas contradiziam aquelas estruturas, mas eram indispensáveis para a organização do novo Estado e para a legitimação das classes dominantes. Estas se viam e queriam ser vistas como modernas, por mais que derivassem sua existência de relações sociais arcaicas. Essa pretensão era portanto risível, mas de certo ângulo justificável, porque o ‘atraso’ brasileiro inseria o país numa divisão capitalista do trabalho, de recorte perfeitamente moderno. Desse modo, 1 Professor Doutor, Livre Docente, Professor Departamento de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Franca, São Paulo, Brasil. Mailto: [email protected]. 120 Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e Violência as idéias ‘adiantadas’, e em primeira instância o liberalismo, eram ao mesmo tempo irrelevantes e necessárias, idéias fora do lugar e idéias que em seu deslocamento mesmo passaram a funcionar segundo uma gravitação que correspondia às exigências do patriciado local”...”as elites locais conviviam perfeitamente com a contradição”...”fruindo igualmente das aparências modernas e das infrações à modernidade burguesa...” (ROUANET, 1993:305-6). Essa posição leviana ilumina esse perene ângelus em que se abriga o comportamento bicéfalo da elite patriarcal-burguesa, que se nutre nesse eterno retorno, posto como um despacho na encruzilhada entre o arcaico e o moderno. Sua esfera pública é claudicante, sua inventividade é travada, seu aparato institucional é tênue. Sertões inexplorados, favores impagáveis, desmedidas ambições, bandidagem campeando solta, crédito abusado e a mancheias, grupos clânico-parentais insaciáveis, (VIANNA, 1974:131ss.) piratarias deslavadas mantinhanos estrangeiros na própria terra, frutos da neblina densa da razão/desrazão, deltas da confluência entre civilização e barbárie, éramos ilhas que quase se desconheciam. O Homem Cordial, essa percepção genial da socialidade proxêmica dos nossos avós, feita pelo jovem Sérgio, (HOLANDA, 1963, passim) a tudo solvia, a tudo impregnava. As relações pessoa a pessoa, a ética da conquista, o compadrio e o mandonismo simbolizados nos sabe-com-quem-está-falando, nos é-a-mando-do-coronel-fulano, nos sou-gente-docoronel-sicrano, nas cartas de apresentação carregadas pelos isaias-caminhas repartições afora, remontam às primitivas sesmarias e aos Senados das Câmaras Municipais, desprovidos das éticas derivadas do capitalismo. Aventureiros, conquistadores, heróis de má catadura, mais para bucaneiros que para empreendedores (FERNANDES, 1981:22-23), legaram uma sociedade e uma cultura movediças e ambíguas, um sistema insensível e injusto, fruto de uma brutal exclusão social que oblitera quaisquer possibilidades de conquista e universalização da cidadania, mas que, apesar dessas cruentas chagas, sempre foi dotado de uma plasticidade vivaz, de uma capacidade ímpar de improvisação que lhe permitiram a criação e o desenvolvimento de uma instigante e multifacetada experiência histórica, marcada pela repulsa à ética do trabalho. (HOLANDA, 1963:1112) Essa ética era um dos aspectos da ascese calvinista que ultrapassa, na clássica interpretação de Max Weber, as fronteiras do estritamente religioso, para se articular com outros aspectos importantes, para ele, na constituição da gênese do capitalismo, como a Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 contabilidade e os dados estatísticos, que garantiriam a fidedignidade necessária para o estabelecimento de rotinas racionais essenciais ao sistema. (WEBER, 1968, passim). Com a República, a necessidade de se estabelecer um diferencial favorável à nova situação, que justificasse e legitimasse o 15 de novembro, o desprezo secular pelo número, pela tabela, pelo gráfico, cria situações dramáticas e risíveis, como o enfrentamento do Encilhamento pelas autoridades fazendárias, tanto do antigo, como do novo regime. Gilberto Freyre apresenta a seguinte perspectiva: “a mania especulativa, que, através do chamado encilhamento, se tornara contagiosa e epidêmica, poderia ter sido contida pelos governos durante os quais ela principiara a tornar-se mórbida: o último do Império e o provisório da República”...”Um conselho dava Wileman aos novos dirigentes do Brasil: o de cuidarem melhor das estatísticas. Era, a seu ver, uma anomalia e um mal, a ausência quase completa de estatísticas num país importante como o Brasil”. (FREYRE, 1990:388.) Tal como o mundo colonial e nordestino do açúcar ou as tenebrosas e escuras entranhas-veios de ouro de Minas, a rubiácea é fruto do destemor e da aventura, produto da vontade resoluta de capitães destemidos que singram essa onda verde, na imagem feliz de Lobato, pela busca incerta da fortuna: “Atrai o homem aventureiro não mais o ouro dissimulado em pepitas no seio da terra, mas o ouro anual das bagas vermelhas que se derriçam em balaios. A região era todo um mastaréu virgem de majestosa beleza. Rasgara-o a facão o bandeirante antigo, por meio de picadas; o bandeirante moderno, machado ao ombro e facho incendiário na mão, vinha agora, não penetrá-lo, mas destruí-lo (...) Sua ambição feroz preferia a beleza da desordem natural à beleza alinhada da árvore que dá ouro. Só esta forma de beleza tem amavios capazes de enlevar a alma fria do paulista. Para ver estadeada ante os olhos a sua beleza (...) derrubou, roçou e queimou a maravilhosa vestimenta verde do oásis (...) Confessemos:um espetáculo vale o outro”. (LOBATO, 1946:3-4). Filho de seu tempo, Lobato explicita a utensilhagem mental em que foi formado. Crente convicto desse discurso antiecológico, formado num mundo decadente de cidades mortas, extasia-se com a oceânica extensão dos cafezais em terras paulistas. “... milhões e milhões de pés que ondulam por morro e vale até se perderem no horizonte confundidos com o céu.. Um cafezal só, que não acaba mais, sem outras soluções de continuidade além do casario das fazendas e dos pastos circunjacentes (...)Mas a árvore do ouro só o produz á custa do sangue da terra.(...) Nada o sacia. Já comeu as zonas ubérrimas de Ribeirão Preto, Jaú, São Manuel, Araraquara, os pedaços de ouro de São Paulo, e agora afunda os dentes na carne virgem, tressuante de seiva, do Paraná e de Mato Grosso”. 121 José Evaldo de Mello Doin “Nada lhe detêm a ofensiva irresistível. Não a paralisam geadas monstruosas como a de 1918”...”nem as taxas e sobretaxas excessivas (...) nem a jogatina de Santos; nem a mentalidade altista, loucamente esbanjadora, do fazendeiro.” (LOBATO,1946:3-4). numa das tentativas de prefácio ao seu Macunaíma, ultrapassa as dimensões acanhadas da noção de caráter e fórmula, de forma instigante, essa nossa característica mais evidente: Terrível essa saga! É estarrecedora essa expansão de uma riqueza em que até o produto age como um bandoleiro implacável, impiedoso com suas vítimas, insensível e mal agradecido para com o húmus vermelho da terra que o gestou e o nutre, da qual ele, avaro, esgota todo sumo, abandonando-a exangue à busca de nova vítima a exaurir! Homens forjados nesse universo predatório não poderiam mesmo criar um corpo social solidário ou edificar instituições suportadas pelo talante da lei, da justiça e da cidadania. “...o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os iorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo eminente, ou consciência de séculos tenha auxiliado o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro (não)...Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral. Daí nossa gatunagem sem esperteza (a honradez elástica a elasticidade da nossa honradez) o desapreço à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso ético nas famílias”. (ANDRADE, 1972:289). “Faz-se por bem ou por mal - quase sempre por mal. O primeiro passo é a criação da propriedade de titulo liquido. Sem esta base não pode surgir a fazenda, que é uma empresa de vulto, exigidora de capitais. A propriedade cria-se hoje, como outrora, pela conquista do mais forte, pela espoliação levada a cabo pelo mais audacioso, pelo mais despido de escrúpulos. (...) Num sertão modorrento, quando a presença de um advogado ou agrimessor esperta os velhos moradores, á uma voz eles murmuram – e se não murmuram sentem-no lá dentro das tripas: “– Nosso tempo acabou... E acaba, de feito. Acaba o marasmo da terra porque o grileiro é o precursor da Onda Verde (...) O peregrino espírito de Assis Chateaubriand já explanou em traços gerais, mas incisivos, esta função social e civilizadora do grilo (...) E’ a vitória da gazua do mais forte.” “– Mas é uma gazua! Abre as portas do sertão mas é uma chave falsa!... diz a moral.” “Responde o Café: – Minha fome está acima da moral, e eu só conheço as leis do meu apetite”. (LOBATO, 1946:4). A irresistível preferência pelo ganho fácil, de um só golpe, numa cartada, fazia dessa elite uma vítima de si mesma. Sua opulência tinha a consistência e o parentesco de um temporal tropical, tão fácil chegava a cavaleiro do risco, do jogo, do panamá, dos conhecimentos e intimidades de alcovas ou de vetustas e solenes ante-salas oficiais, mais rápido e diáfana se esvaía, ingrata e leviana a abandonar o tíbio, o pródigo, já a braços com outro mais intrépido, sagaz e ousado vencedor. Pai rico, filho nobre, neto pobre, esse sábio epíteto popular era o retrato dessa metamorfose vertiginosa da riqueza. Os soldados da fortuna empenhavam tudo no risco das ações, jogava-se o jogo do enriquecimento quase imediato, a conquista e a busca da aventura no lugar da operosa e metódica acumulação, a alma do despojo, ao invés do lucro torpe. Mário de Andrade, 122 Pelas mãos pouco hábeis do primeiro Ministro da Fazenda do Governo Provisório, o tão festejado Rui, a jogatina de bolsa desenfreia-se de vez. Como tudo nesta terra abençoada por Deus e bonita por natureza, o Encilhamento teve sua face cruel, expondo a ganância insaciável e sem limites dos homens bons da pátria amada, mas também contribuiu com a criação de um sem número de oportunidades e de empreendimentos que conseguiram ampliar as possibilidades de crescimento e diversificação de nossa economia. No prefácio à segunda edição da novela do Visconde de Taunay, O Encilhamento, seu filho, o historiador Afonso de E. Taunay, remete o leitor aos dias de 1890 a 1892: “...a novela vivaz, interessante, variada referta de documentos humanos, a historiar uma série de episódios pitorescos e curiosos, aspectos característicos do facies social da vergonhosa época de ‘curée’, de ‘carniça’, como essa que, no Rio de Janeiro, determinara a inflação papelista, exagerada, de 1890.” “De perto observou o romancista estas cenas deprimentes de pilhagem e desvairamento, a que veio pôr cobro a reação florianista, após o 23 de novembro.” “Foi das inúmeras vítimas do tremendo craque de 189192 que arrasou as grandes e velhas instituições financeiras fluminenses, essas cujos títulos desde muito eram para o público valores de inteira confiança quase tão reputados pela solidez quanto os papéis de Estado, como o antigo Banco do Brasil, por exemplo. Daí o conhecimento de causa com que descreve os cambalachos, negociatas e tranquibérnias dos grandes e insaciáveis piratas bolsistas e sua seqüela de devoradores da economia pública e particular.” (TAUNAY, 1933:5-6). Não ocorreu outra metáfora ao filho historiador, senão à de grandes e insaciáveis piratas de bolsa, ao comentar a temática da novela do pai escritor. Familiarizado com as mazelas desse universo brumoso e estreito, não somente não titubeou em definir a ação frenética dos ousados aventureiros da encruzilhada das ruas da Alfândega e Candelária, como também Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e Violência sentenciou a sua seqüela de devoradores da economia pública e particular. A hegemonia financeira britânica, alcançada através das aceptances houses e dos bancos de depósitos; da exclusão das massas trabalhadoras da ação política; do aumento da concorrência entre a Inglaterra, a Europa continental e os EUA, através dos trustes e grandes corporações, gerou uma periferia funcional, produtora de alimentos e matérias primas, que se torna fronteira de expansão do sistema de crédito dos países centrais. Esse sistema tinha um viés perverso para as jovens nações como a brasileira. Se por um lado o crédito farto servia para o país queimar etapas e avançar na ampliação do volume de seu produtomundo, funcionava também, devido às regras da conversibilidade das moedas em ouro, como amortecedor das crises de contração das economias cêntricas, sofrendo, inclusive, com a manutenção de seu câmbio ao par legal. O crédito como um todo e as emissões criam condições otimizadas para novos empreendimentos e para a especulação desenfreada, que começa ainda no Império, sendo seu período culminante o de agosto a outubro de 1889. O papelismo gerado pela multiplicação dos agentes emissores e a brusca guinada financeira promovida por Rui Barbosa, à frente do Ministério da Fazenda do Governo Provisório, (BELLO, 1983:62) conjugados, permitiram a desenfreada jogatina com títulos públicos e privados, e tornam crível a feliz imagem utilizada por Gilberto Freyre, a de que a “República no Brasil nasceu penetrada pela Monarquia” (FREYRE, 1990:388). Amparadas no facilitário dos recursos da Viúva, em um nunca acabar de derrame do dinheiro público, agiotado pelos praticantes da advocacia administrativa, eufemismo para o lobbysmo deslavado e punguista, pipocam novas companhias e empreendimentos: “Contratos de imigração a dar com o pau, localização de milhares e milhares de famílias européias em todas as terras revolutas imagináveis, um nunca acabar, metade da Europa puxada a reboque para aqui, sem estorvo, nem dificuldade, que não fossem superados.”...”Requerimentos rabiscados sobre a perna”...”entre duas fumaças de perfumado havana nos gabinetes ministeriais, sem indicação dos lugares, tudo no ar, às cegas, às cabeçadas, e logo transferido por bom dinheiro, centenas, senão milhares de contos de réis a companhias que, da noite para o dia, surgiam como irisados e radiantes cogumelos após chuvas e enxurradas...” (Visconde de TAUNAY, 1933:19-20). Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 O velho hábito de servir-se do erário era aprofundado nessa época nervosa e impaciente, auxiliado pela ingenuidade ou pela cupidez da própria autoridade, tornando a espoliação do bem público uma fonte significativa para a obtenção dos recursos lançados na fogueira do jogo especulativo. “...brincava-se com o crédito, o nome e o porvir da nação.(...) Pelo empenho dos corrilhos, pelas manobras da advocacia administrativa desbragada e impudente, viam-se atendidas as mais escandalosas reclamações, mil vezes indeferidas e enterradas nos escaninhos escuros dos arquivos; e indenizações que bradavam aos céus, abriam nos flancos do tesouro público verdadeiras brechas, que sangrias, a cada momento aventadas pelos caprichos do ditador...” (Visconde de TAUNAY, 1933:1920). O excesso de papéis em circulação, vertendo num nunca acabar, levaram o mercado de títulos ao delírio, companhias de todos os tipos e feitios tinham suas apólices lançadas e, logo, logo, estavam nas nuvens, como se a bolsa fosse uma variante do popular jogo do bicho. (PESAVENTO, 1999, passim). Mas no país da ambigüidade, o outro lado, ou, a outra face do encilhamento, revelava-se na expansão e diversificação inegáveis do sistema produtivo, diretamente beneficiário do crédito fácil e do barateamento do capital fixo, devido à manutenção do câmbio elevado, o que tornava acessíveis as importações de máquinas e equipamentos. Por mais desabrida que fosse a especulação, um residual nada desprezível de empreendimentos bem sucedidos, capazes de gerar novas riquezas, ou de otimizar a exploração do que já estava implantado, caso das ferrovias e dos portos em relação ao café, (CANO, 1977:119-23) foram fatores benéficos dessas ousadias de flibusteiros. “Tomava todos os visos de honesto labor o trabalho que se operava naquele atrito de interesses e ambições”...”e, pela imprensa, já haviam vozes autorizadas reclamado do honrado presidente da intendência a formal proibição do trânsito de carroças, caminhões e outros veículos por aqueles quarteirões. Deviam ficar, sem reserva, destinados à atividade e à faina, tão úteis ao incremento do país, dos cidadãos entregues às múltiplas especulações da bolsa, às exigências da fecunda jogatina e às contínuas incorporações de bancos, empresas e companhias...”. (Visconde de TAUNAY, 1933:23). Durante o auge da sanha especulativa, formase uma nova elite urbana, frívola e argentária, enriquecida com a alta das ações, preocupada em ostentar o status recém-adquirido, com roupas caras, carruagens e cavalos importados da Argentina: “No meio de toda a azáfama do encilhamento, que fervia cada vez mais, mancebos bem parecidos e trajados com 123 José Evaldo de Mello Doin apuro conversavam animadamente, a-pesar-de contínuos encontrões, à sombra, encostados à alta parede do London and Brazilian Ban.” “– Não posso mais, dizia um tirando o chapéu de palha fina para enxugar os cabelos empastados de suor, isto é demais; preciso descansar um bocadinho, tomar fôlego; do contrário caio de cama!...” “– Mas ganha-se dinheiro a valer, hein? Observou o outro com o olhar irresoluto, entre tímido e cobiçoso.” “Ah! Boa dúvida! No fim deste mês boto na rua vitória bem chic, novazinha em folha; por ora um cavalo só, mas bicho de encher o olho...” “– Vai indo para a ponta, como hoje se diz.” “– Olé; preciso como tantos outros gozar a vida, Menezes, fazer figura, luxar, aproveitar pelo menos enquanto o Braz é tesoureiro. Estou com os meus 28 anos feitos...” “E quanto tempo podia aquilo durar ainda? Perguntava meio hesitante quem fora chamado Menezes.” “O outro não sabia. Talvez não acabasse nunca. O país parecia ter, afinal, achado o governo de que tanto precisava. Era o que seu pai, o papai, pregava com muita discursaria. Ah! O velho entendia de finanças e levava horas e horas a ler tudo quanto escrevia o Rui Barbosa, sem saltar uma linha. Quanto a ele, só tratava de fazer dinheiro. O incontestável é que se nadava num mar de ouro; todos ganhavam, ninguém perdia; um céu aberto, coisa nunca vista!” “E como Menezes contestasse a existência do ouro, querendo substituí-lo por papel, replicava muito gárrulo e até meio zangado, que se deixasse disso – ouro era o que o ouro valia. Com o tal papel sujo, roto, esfarrapado ou muito novinho e catita, comprava ou não tudo de que carecia?” “Não pagava jóias, cavalos, carros, contas de alfaiate e beijocas de bonitas francesas?” (Visconde de TAUNAY, 1933:23-24).” A roda da fortuna girava a velocidades inimagináveis e o progresso, vislumbrado no auge da especulação em bolsa, mesmo tendo sido em boa parte tão consistente como a espuma de um brut (como se dizia afetadamente nos arredores da bolsa), não deixou de exercer forte influência nos comportamentos, costumes e mesmo no refinamento das falcatruas. Nesse sentido, novos templos são erigidos como lugares sacros pela elite brotada como cogumelo naquela chuva de papéis pintados. É, por exemplo, o caso dos restaurantes dos hotéis de luxo e, dentre eles, o do Hotel Globo: “Célebre pela sua cozinha e pelo seu salão de banquetes, quem comia no Globo ‘enchia a boca a alardear tal distinção’; e quanto ao salão, servia não só para banquetes como ‘para reuniões de membros do Parlamento [. ...].’ Mas tanto quanto os políticos, ou ainda mais do que eles, reuniam-se no Globo os homens de negócios; e quando do chamado ‘Encilhamento’, que foi, como se sabe, uma ‘febre bolsista’ classificada, como já vimos, por Wileman de ‘epidêmica’, houve nesse hotel aristocrático 124 ‘sardanapalescos jantares’, regados ‘de custosos vinhos e do espumante Champagne Clicquot’. Aos homens de negócios brasileiros juntavam-se os estrangeiros - os mais finos dentre eles, quer comerciantes, quer industriais; e a estes e aos brasileiros de regresso da Europa se deve, em grande parte, terem se tornado bebidas elegantes no Brasil da época o vermouth, o cocktail, o gin fizz, o whisky, o Pick me up, o Sherry-Cobbler, sem que o Porto e o champagne perdessem seu prestígio nessas e noutras rodas esnobes. Havia já o chope; mas saboreado menos por príncipes do poder econômico ou do político que pelos boêmios das confeitarias, dos cafés, das terrasses; por literatos; por jornalistas; pelos jovens; pelos caixeiros; por estrangeiros que, destemidos em seu modo de vestir pois foram eles que no Brasil voltaram, no reinado de Pedro II, à tradição portuguesa de vestir-se o europeu ou o seu descendente nos trópicos, de branco ou de roupas leves, semi-indianas, semi-orientais - estendiam seu arrojo às suas preferências pelo chope ou pela cerveja leve e gelada. Cortejando-os, o Hotel Globo publicava seus anúncios em francês, salientando: ‘Ce magnitique restaurant offre aux étrangers arrivant à Rio. toutes les commodités pour Lunch. Dîners. Etc’. Inclusive: ‘cabinets particuliers pour familles, splendide buvette au rez-dechaussée, boissons glacés.’ Uma das novidades da época, nos cafés elegantes, foi a representada pelos sifões ‘Prana Sparklets’, dos quais se dizia que com eles era possível obter águas gasosas minerais iguais em ação terapêutica à de Vichy, de Carlsbad ou de Seltz. Os concessionários dessa suposta maravilha foram, no Rio de Janeiro, Louis Hermanny & Cia Não haverá, talvez, exagero em dizer-se que as gasosas e águas minerais concorreram para que entre a burguesia da época diminuísse o número de vítimas de águas sujas. isto é, de disenterias e febres tifóides.” “Os grandes espelhos foram talvez a nota mais característica de decoração rococó que do interior dos hotéis - dos seus salões nobres, montados por estrangeiros -se comunicou às residências, numa fase que se assinalou, no Brasil, não só no fim do Império como principalmente no começo da República, pela emergência de barões improvisados; de novos-ricos; de novos-poderosos; de novos-cultos; de art nouveau. Todos, um tanto desorientados quanto ao que fazer com seu dinheiro ganho de repente...” (FREYRE, 1990:418-19). Esse cinismo argentário sempre esteve entranhado em nossa tradição histórica. Um utilitarismo desmesurado governa o cotidiano das elites e não há peias que as cerceiem, nem mesmo as da religião, que, dadas suas características peculiares, adquiridas cá na terra, como que favorece o referido utilitarismo: “Pensamos, sobretudo, de um lado, no valor do trabalho como fim em si mesmo, do respeito pelo próprio corpo, da família fundada no companheirismo e na educação dos fIlhos, da moral sexual rigorista; e, de outro, no valor da autonomia, dos direitos do cidadão, da igualdade real, da educação republicana, do desenvolvimento espiritual, da criatividade e da autenticidade. Historicamente, a modernidade resulta e avança por meio da tensão permanente entre o conjunto de valores mercantis, utilitários, propriamente capitalistas, e o outro conjunto de valores, fundamentados seja religiosa, seja secularmente. Mais ainda: são os valores modernos não Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e Violência mercantis, não capitalistas que, corporificados em instituições (a democracia de massas, a escola republicana, as igrejas, a família cristã etc.), põem freios ao funcionamento desregulado e socialmente destrutivo do capitalismo.” “É esta conjunção marcada por tensões que, como dissemos, não se configura no Brasil. Isto tem, evidentemente, profundas raízes históricas, antes de mais nada no caráter do nosso catolicismo. Como Gilberto Freyre descreveu em páginas famosas, estamos diante de um cristianismo inteiramente esvaziado de conteúdo ético. É essa uma religião utilitária, em que Deus, a Virgem e os santos vão socorrendo a cada momento, milagrosamente, a inação dos homens”. (MELLO e NOVAIS, 1998). A situação provocada pelo crash da bolsa; pelo fracasso das medidas adotadas pelo sucessor de Rui Barbosa no 2° ministério do Marechal Deodoro, pela instabilidade política e militar, que enfrentava rebeliões e revoltas, como a de 1893, no Rio Grande do Sul, a Revolta da Armada, o início da Guerra de Canudos, tudo isso, somado à crise agrícola, obriga o governo a contrair o primeiro empréstimo da República. A circulação de notas das emissões bancárias, juntamente com as do Tesouro, fabricadas pelas mais diversas companhias, muitas delas sem nenhuma tradição ou especialização na produção de dinheiro, favoreciam a fraude e dificultavam a fiscalização e disso se aproveitavam os finórios de sempre.2 “Pululavam os bancos de emissão e quase diariamente se viam na circulação monetária notas de todos os tipos, algumas novinhas, faceiras, artísticas, com figuras de bonitas mulheres e símbolos elegantes, outras sarapintadas às pressas, emplastradas de largos e nojentos borrões”. (Visconde de TAUNAY, 1933:19) Premido pelo esgotamento de quaisquer possibilidades de conseguir recursos da receita ordinária, tendo de enfrentar a revolução federalista no Rio Grande do Sul, o Governo usa de um artifício para contornar a falta de autorização do Congresso para abertura de crédito no exterior: determina que o Tesouro Nacional assuma, como sua obrigação principal, uma dívida contraída entre a praça financeira de Londres e a Companhia Estrada de Ferro Oeste de Minas, no valor de ≤ 3.710.000. 2 O empréstimo de 1893, entretanto, não resolveu a situação crítica do país, pelo contrário, os conflitos regionais adquiriam cada vez maior fôlego, e, quando um se solucionava aqui, explodia outro acolá, como é o caso da rebelião do Belo Monte. Andavam de par com essa violência privada, que relativizava o tal de monopólio da força, a legitimação da violência e o caráter especulativo que formava o espírito e a letra dos da formação histórica brasileira. Cotidiano marcado por roubalheiras e marginalização social, bruto, seco, cruel, que edifica esse capitalismo sem modos que tematiza as melhores penas dos gênios da raça: “A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se ahi somnos deleitosos. Casos há em que se podem roubar milhares de contos de réis...e acordar com elles na mão”. (ASSIS, 1938:184-185.) O mercado internacional estava atento a tudo que dizia respeito às coisas do Brasil. Quaisquer fatos relevantes, fossem de ordem econômica ou de ordem política, como foi o episódio de Canudos ao qual já me referi acima, provocavam solavancos na cotação dos títulos brasileiros nos principais mercados. Em uma de suas crônicas sobre o Conselheiro, na Gazeta de Notícias, Machado de Assis refere-se ao fato: “... Esta é a celebridade. Outra prova é o eco de Nova York e de Londres onde o nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O efeito é triste, mas vê se tu, leitor sem fanatismo, vê se és capaz de fazer baixar o menor de nossos títulos...” (ASSIS, 1938:424). Noutra crônica machadiana, o cronista revela em frias lancetadas as virulências deste paraíso tropical em que as ações de pirataria em tudo se entranham, a vida pendurada em um capricho, valendo qualquer coisa, quando vale. Manhuassu se reproduz em Lençóis, Canudos, Caldeirão, na Anselmada de Franca, na envergonhada Linchaquara, no Contestado, na Revolução de 93, nas degolas, nos sangramentos, nas sevícias, humilhações, estupros, às vezes privados, em outras oficiais. Mas convido o leitor a continuar acompanhando o bisturi de Machado: “Há, pois, alem de outros partidos deste mundo, um partido Serafim e um partido Costa Mattos”... “A causa do “Pelo Sr. Dr. Salvador Moniz, juiz do tribunal civil e criminal, foram hontem pronunciados, como incursos nos arts. 239 e 241 do codigo penal, Antonio Alves de Oliveira e Henrique Rodrigues da Silva, e sómente no art. 241, do mesmo codigo, Maria Joaquina da Silva, por haverem, como empregados da lithographia Laemmert & C.ª, na rua dos Invalidos, desta capital, fabricado, os dous primeiros em duplicata as cedulas que servem para a emissão do Banco União de S. Paulo, de cujo preparo se encarregara o mencionado estabelecimento lithographico, e falsificando a assignatura do chefe da emissão, introduziram-as na circulação, como si verdadeiras fossem, por intermedio de Maria Joaquina da Silva, que era mãi de Henrique Rodrigues da Silva, a qual, ora com estas notas falsas fazia compras em diversas casas de commercio, recebendo o troco em boa especie, ora trocava-as sómente ou descontava-as, restituindo os lucros auferidos em dinheiro corrente a Antonio Alves de Oliveira, afim de fazer-se a divisão entre elles interessados neste negocio”...”No meio de tanta variedade de estampas e de fabrico não admira que as emissões bancarias encontrem repugnância na população e no commercio, que não póde verificar a veracidade dessa multidão de bilhetes...” BRASIL – MINISTÉRIO DA FAZENDA – Relatório apresentado ao Vice-Presidente da República pelo Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda Francisco de Paula Rodrigues Alves no anno de 1892, 4° da Republica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1892. p. 6266. Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 125 José Evaldo de Mello Doin conflicto parece pequena, vista aqui da rua do Ouvidor, entre trez e cinco da tarde; mas ponha-se o leitor em Manhuassú, penetre na alma de Serafim, encha-se da alma de Mattos, e acabará reconhecendo que as causas valem muito ou pouco, segundo a zona e as pessoas. O que não daria aqui mais de uma troca de mofinas, dá carabina e dynamite em outras paragens.” “Mas não é só em Manhuassú que se morre de ferro e fogo. A cidade de Lençóes passou por igual ou maior desolação. Soube-se aqui, desde o dia 18, que um bando de clavinoteiros marchava ao assalto da cidade, não só para tomal-a, como para matar o coronel Felisberto Augusto de Sá, senador estadoal, e o Dr. Francisco Caribé. O governo da Bahia mandou duzentas praças em soccorro da cidade. Tarde haverá chegado o soccorro, se chegou; o assalto deu-se a 17, entrando pela cidade os clavinoteiros capitaneados por José Montalvão. Escaparam Felisberto e Caribé, no meio de grande carnificina...” (ASSIS,1938186-187). Fincada no caráter autárcico e particular dos domínios fazendeiros, essa formação quadrilheira e desassombrada de nossa elite se espraia pelo urbano, gerando essa sarabanda de maltas armadas até os dentes, prontas para os entreveros clânico-parentais ou para garantir as chicanas, falsificações e grilagens, ou para o assalto à bolsa alheia. (VIANNA,1974:1079 e 170-174). O estro machadiano não dispensa a fina ironia para sorrir de nossa pequenez e selvageria, além de perceber a tessitura entre barbárie e apropriação pecuniária: “Tempo virá em que Manhuassú e Lençóes vejam as suas notas de 100$ e 200$ andarem de Herodes para Pilatos”...”Ouvirão dizer que por serem falsas, - ou (resto de naturalismo) falças e até farsas. Terão os seus inqueritos, os seus bilhetes de camarote de theatro, a perpétua escuridão do negócio, que é o peor”...”As notas falsas de Lençóes e Manhuassú não sairão do puro mysterio”...”Creio que disse mysterio, em vez de ocultismo, que define melhor este genero de recreação”. Conturbada pela ressaca do Encilhamento, pelas crises institucionais e rebeliões sem conta, a frágil estrutura financeira da Nação não tinha como se escorar já que o café sofria com as pressões baixistas que anunciavam problemas de superprodução, refletindo-se no descenso do câmbio e na carestia provocada pelo ambiente inflacionário. 2 O Primeiro Funding Loan Scheme Avizinha-se Com uma série de compromissos a serem solvidos no exterior e um passivo que não podia ser coberto pelas parcas receitas então obtidas, tornou-se imperativo o recurso aos empréstimos no exterior para 126 cobrir o déficit orçamentário. Foi contratado, portanto, o empréstimo externo. Com esse empréstimo, o montante da dívida externa brasileira subiu a ≤ 35.706.700, em 31 de dezembro de 1895. Embora o Ministro Bernardino de Campos, em seu relatório de 1898, se mostrasse indignado com a utilização do boato como forma de se especular com os títulos da dívida externa, após referir-se à situação precária das finanças nacionais, a situação do país realmente era para inquietar seus credores: “A especulação, não contente com os golpes infligidos ao credito nacional no exterior, inventou mais a arma – o boato falso da imminencia de suspensão do pagamento da divida externa...” (BRASIL, 1946:16.). A burguesia bucaneira, quando da crise que atingiu o complexo cafeeiro em 1896 (SAES,1981:243258), deu uma prova da extrema agilidade e capacidade de ocultamento do andamento dos seus negócios, principalmente em momentos de crise, fazendo com que sua versão dos fatos chegasse rapidamente nos mercados internacionais, como fica claro nesta notícia de 3 de novembro de 1896, veiculada pelo jornal O Estado de São Paulo: “No dia immediato o Times publicou o seguinte telegramma da Associação Commercial do Rio de Janeiro:” “‘O comitê da Associação Commercial do Rio de Janeiro, representando officialmente a classe dos commerciantes, tendo sciencia que vos telegrapharam que uma moratoria fora proposta aqui em seu proveito, deseja dar-vos a garantia de que é inteiramente extranha a essa proposta”...”O comitê deseja tambem dar-vos a garantia que a situação commercial, embóra difficil, não justifica as noticias exaggeradas transmittidas á Europa. Esta mensagem vos é dirigida com approvação unanime da assembléa que acaba de realizar-se’” (O ESTADO DE SÃO PAULO. 3/11/1896:1). Nesta mesma fonte, pode-se detectar o nível de sofisticação alcançado pelo “lobby” internacional ligado aos interesses dos cafeicultores. O Estado transcreve uma notícia publicada num jornal belga que evidencia, por si mesma, ter sido “plantada” pelos prepostos dos grupos que se articulavam em torno dos negócios financeiros e na exportação do café: “Julgavamos que o periodo das noticias falsas tinham passado, e que os malevolos, diante da actividade commercial e dos progressos de todos os dias tinham entregado armas. Nada disso, e a noticia do correspondente do Times, publicada por esse jornal, no intuito de lançar o descredito nos valores brasileiros nos principaes mercados europeus”...”telegrammas officiaes e particulares chegaram sem demora a todas as praças e a todas as bolsas da Europa, desmentindo categoricamente Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e Violência essa noticia”...”do Brasil”...”Cinco casas em tudo e por tudo suspenderam os seus pagamentos e entraram em arranjos com seus credores. O passivo dessas cinco casas reunidas attinge apenas á somma de 1.600 contos, isto é, cerca de 1.000.000 francos de nossa moéda, somma relativamente bem insignificante diante das immensas transacções, que se fazem diariamente na praça do Rio de Janeiro. Vê-se, pois, que estamos bem longe das 300 fallencias annunciadas!” (O ESTADO DE SÃO PAULO. 3/11/1896:1) No afã de justificar-se perante o mercado financeiro internacional, o “lobby” ressalta um detalhe do complexo empresarial, que reeditava elementos essenciais do trato dos viventes no período anterior, engordava as algibeiras no negócio de vender gente, agora voltado para a introdução da mão-de-obra imigrante no interior do Brasil e o conúbio entre os interesses particulares e os recursos do Estado, cujos limites se assentavam apenas na necessidade de equilibrar as despesas públicas, para ampliar as garantias face ao passivo externo e à clientela dos títulos nacionais nos principais mercados estrangeiros: “Nunca se tractou, pois, de moratoria; o governo que desenvolve incansavel vigilancia e quer vir em auxilio de seus administrados, esforça-se em melhorar dia a dia a situação financeira e economica do paiz”...”Entre as ultimas medidas que tomou, devemos citar em primeiro logar a nova regulamentação do serviço de immigração. Como se sabe, o governo da União tinha assignado um contracto com a Companhia Metropolitana para a introducção de um milhão de immigrantes. Esse contracto custava ao governo do Brasil sommas enormes”...”150.000 immigrantes já tinham sido introduzidos por essa companhia; faltavam ainda 850.000"...”a União rescindiu o seu contracto com a Metropolitana”...”A União realisa, pois, com esse facto consideravel economia”...”contando-se 167 francos 50 centimos por cabeça de immigrante, somma que se comprometeu a fazer á Metropolitana só para as passagens, ella exonerada de uma somma de 125.625.000 francos!” (O ESTADO DE SÃO PAULO,3/11/1896:1). Para se ter uma compreensão desse gigantesco esforço do Governo Federal de garantia de recursos para o trato de imigrantes, basta observar-se que, no final desta primeira década republicana, houve uma transformação no destino dessas levas que por cá desembarcavam. São Paulo, na esteira das exigências do coffee business por contingentes cada vez maiores de trabalhadores, assume a dianteira, com a italianada formando uma massa esmagadoramente predominante. (BELLO, 1983:192; CANO, 1977:115; DELFIN NETTO,1981:48ss.). A crise batia forte em todos os setores. Prudente não teve outra saída a não ser negociar o “funding scheme” para aliviar a situação crítica das finanças Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 ou numa leitura mais sutil, como o café não estava respondendo à manutenção do câmbio, devido à queda de suas cotações, o país não tinha como honrar seus compromissos. Entretanto, se o descalabro das finanças dos Estados e da União amancebavam-se com o período mais agudo da queda dos preços internacionais do café, numa economia fragilizada pela ressaca provocada pela queda da bolsa e transformação em pesadelos, dos rutilantes sonhos do encilhamento, crise esta agravada pelas lutas fratricidas que se estendiam do Morro da Favela, no sertão Baiano, às pradarias do fronteiriço Rio Grande, não se pode olvidar que esse estrangulamento, que tornou o país inadimplente, era apenas uma pequena convulsão frente à expansão ocorrida nos últimos 50 anos do século XIX, em que o setor mais dinâmico da economia quintuplicou. (FURTADO, 1998, passim) No rastro dessa expansão, multiplicaram-se os negócios e as negociatas. Homens encarregados de pôr ordem na casa, por missão conferida e dever de função, são os primeiros a locupletarem-se nas benesses e facilidades do cargo. A proximidade da bancarrota torna-se cada vez mais real e o estado verga sob os compromissos e os avais dados a tudo quanto era tipo de negócio, notadamente o ferroviário. O Ministro da Fazenda Bernardino de Campos concerta, com os credores, um acordo financeiro que será formalizado e cumprido no governo seguinte de Campos Salles, conforme recorda o noticiário do jornal O Estado de São Paulo de 19 de janeiro de 1915: “...tomou o dr. Bernardino diversas providencias, como sejam: a) tractou de demonstrar a necessidade da organização economica do paiz em suas verdadeiras bases; b) promoveu medidas para o equilibrio orçamentario”...”Para pô-las em execussão o dr. Bernardino effectuou o accordo financeiro (funding loan) de 15 de Junho de 1898..”(O ESTADO DE SÃO PAULO, 19/01/1915:1). A bancarrota financeira e a desorganização do complexo exportador cafeeiro tornam-se evidentes no biênio 1897/98. Campos Sales será emparedado por esses dois complicadores e pela necessidade de cumprir a agenda firmada com o funding scheme, tendo sido quase que intimado pelos Rothschilds, quando de sua viagem à Europa, a cumprir uma severa agenda de restrições nos gastos governamentais que levaria a 127 José Evaldo de Mello Doin economia brasileira a sofrer um agudo processo recessivo.3 testemunhos e vestígios do passado que se quer, mais do que esquecido, reinventado e idealizado. Campos Sales embarcara para a Europa com o firme propósito de ceifar, com mais veemência até que a de seus sequiosos credores, os gastos e reduzir radicalmente o déficit do Tesouro e o meio circulante. Imbuído desse desiderato, não se pejou de responder afirmativamente aos reclamos dos seus agentes londrinos,4 tranqüilizando-os e facilitando assim o processo de renegociação do passivo do país. Dessa sanha não escapa nem as cidadezinhas do nosso Oeste, barbaramente conquistado pelos rudes machados do exército de paulistas e as primeiras ruas que nele surgem – as dos cafeeiros – geométrica e racionalmente plantados, assim como, à guisa de bulevares, os seus carreadores, por onde passam os primeiros tratores, os primeiros omnibus, os primeiros Fords e Packards. O café traz consigo a fantasmagoria do progresso e seus beneficiários estão gulosos dos símbolos da modernidade. 3 As Transformações Urbanas e a Cultura Bucaneira Várias vezes reincidente no hábito de desfocar as idéias de seu lugar, a sociedade brasileira recria, a cada passo, seus próprios caminhos, frutos de sua original e perversa trajetória de crescimento, onde o novo sofre envelhecimento precoce, sem mesmo ter disponível o tempo necessário para tornar-se tradição. Embora não perdendo suas características essenciais de predadores, muitas vezes sanguinários, os novos membros das elites citadinas civilizam-se, tornam-se exigentes, não medem esforços nem recursos pecuniários (que sacam, não de seus nutridos alforges, mas da cornucópia dos Tesouros da União, dos Estados e até das Municipalidades) para rasgar avenidas, iluminar logradouros, construir praças, derribar habitações precárias, edificar afrancesados palácios e vivendas na estética eclética que prima pela ausência de estilos. A Manaus da borracha se engalana toda com seu belo teatro, com os calçamentos desenhados de suas praças, assim como Belém, Fortaleza, Recife, Porto Alegre, Florianópolis, a Capital Federal, todas envoltas na névoa das poeiras levantadas pelas derribadas dos velhos casarões em ruínas, pelos Uma busca desenfreada para afastar as imagens do atraso recrudesce o afrancesamento da elite, tanto daquela dos grandes centros, como a que vicejava na constelação urbana nascida no rastro da rubiácea. Tanto o sonho do carioca de ver o Rio ser transformado na Paris-sur-mer (PESAVENTO, 1999:172.) movia pás e picaretas, como o derrame do dinheiro público fazia o regalo dos empreiteiros e especuladores. Enfim, o poder manter-se-á restrito aos de sempre e a fabricação de excluídos amplia-se e se sofistica cruelmente. Uma perversa multiplicação de opressões desencadeia-se, o oprimido reinventa a opressão, alargando ainda mais, aprofundando ainda mais o gigantesco fosso da miséria e do apartheid econômico. A república dos apaniguados se entroniza, como o irado tribuno Sílvio Romero revela, forçando a mão e as tintas: “Por toda a parte campeiam o filhotismo, a denegação da justiça, o desconhecimento de direito aos adversários, a opressão das oposições, a impunidade dos amigos e correligionários, as malversações de toda a casta, os desfalques nas rendas pública”...” Tudo isto escorado em duas fortes alavancas: uma delas, empréstimos e mais empréstimos do estrangeiro, sob todas as formas e com todas as humilhações, inclusive a de hipoteca das rendas das alfândegas, e, em vários casos, a presença de “Londres, 2 de junho de 1898. A S. Ex. o Sr. Dr Campos Salles”. “Um projecto proveniente de um grupo de bancos commerciaes no Rio foi approvado pelo governo brasileiro e consiste, como bem sabe V. Ex., em consolidar os coupons dos differentes emprestimos do Estado e das estradas de ferro garantidas, em um fundo garantido por hypotheca sobre as rendas da alfândega do Rio e de outros portos do Brasil. Ainda que lastimemos vivamente uma suspensão dos pagamentos em espécies, julgamos util recommendar este projecto aos portadores de titulos brasileiros, e esperamos que elles o acceitarão”...”Ousamos, pois esperar que V. Ex. dignar-se-há de dar-nos por carta a segurança de que approva inteiramente este plano, e que tambem usará de toda a sua influencia e de toda a sua autoridade para que o accordo seja posto em execução em todos os seus detalhes, o que é não só necessario para o estabelecimento do credito do Brasil, mas é preciso saber desde já tomar providencias energicas e reduzir em todas as secções governamentaes as despezas que até o presente têm sido accumuladas em uma escala muito além dos recursos e meios do paiz.”...”N.M. ROTHSCHILD AND SONS. Apud BRASIL - PRESIDENCIA DA REPUBLICA. Manifestos e Mensagens do Excelentissimo Snr. Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil, Dr. Manoel Ferraz de Campos Salles. Rio de Janeiro: Imprensa Official, 1902. P.273 4 “Londres, 6 de junho de 1898. Srs. Rothschild & Filhos”… “A cominação proposta por diversos banqueiros, á qual fazeis allusão, e que tem por objecto consolidar os coupons dos differentes empréstimos da União e garantias de juros das estradas de ferro, será, além da realisação dos seus intuitos, o inicio de uma ação administrativa, que seguramente produzirá resultados satisfatórios sob o ponto de vista financeiro. Minha própria responsabilidade está ligada a este accordo, como haveis testemunhado, e eu vos posso assegurar que durante o próximo período presidencial o governo brasileiro terá o mais particular empenho em dar-lhe inteira e plena execução. Estou convencido de que, uma vez firmado o accordo, seguindose-lhe as medidas complementares que serão tomadas pela administração, entre as quaes figurará em primeiro logar um plano de severa economia, a solução financeira estará encaminhada...”. Apud BRASIL - PRESIDENCIA DA REPUBLICA. Manifestos e Mensagens do Excelentissimo Snr. Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil, Dr. Manoel Ferraz de Campos Salles.Op. Cit. P. 274-75. 3 128 Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 17, n. 2, p. 120-129, ago./dez. 2002 O Bucaneirismo no Início da 1ª República: Especulação e Violência funcionários estranhos, como sentinelas à vista!... nas repartições a fiscais (sensação).” A outra, grupos de bandidos organizados, como forças aliadas dos oligarcas, obedientes às suas ordens, mantendo o terror onde este se faz mister”...”Percorre-se o país inteiro. Nada se encontra nele de novo, além da negrura e da desfaçatez das oligarquias...” (ROMERO, 1979:200-202). Referências ASSIS, M. de. A Semana. 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