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Efeitos do Uso da Cannabis no Comportamento Humano, Incluindo
Cognição, Motivação e Psicose: uma Revisão da Literatura
Nora D. Volkow, MD; James M. Swanson, PhD; A. Eden Evins, MD; Lynn E. DeLisi, MD;
Madeline H. Meier, PhD; Raul Gonzalez, PhD; Michael A. P. Bloomfield, MRCPsych; H. Valerie
Curran, PhD; Ruben Baler, PhD
Tradução de Luís Guilherme Vieira Allegro
Tendo como pano de fundo o debate político sobre os riscos e benefícios potenciais do
uso da cannabis, a onda da legalização e liberalização continua a se expandir. Quatro
estados norte-americanos (Colorado, Washington, Oregon e Alaska) e o Distrito de
Columbia promulgaram leis que legalizam a cannabis para o uso recreativo de adultos,
e vinte e três outros estados, além do Distrito de Columbia, atualmente regulamentam
o uso da cannabis para propósitos medicinais. Tais mudanças políticas podem implicar
um amplo escopo de consequências imprevistas, com efeitos profundos e duradouros
sobre os sistemas sociais e de saúde dos EUA. O uso da cannabis passa a constituir um
dentre vários fatores em interação recíproca que pode afetar o desenvolvimento
cerebral e as funções mentais. Com o objetivo de auxiliar o discurso político a partir de
evidências científicas, a literatura sobre o assunto foi revista para que se identificasse o
que se sabe e o que ainda é desconhecido acerca dos efeitos do uso da cannabis no
comportamento humano, incluindo a cognição, a motivação e questões relativas à
psicose. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2015.3278 Publicado online em
3/2/2016.
Já é bastante conhecido que o uso da cannabis causa um comprometimento agudo da
habilidade cerebral em reter informações (capacidade cognitiva). Assim, ocorrem déficits
temporários na aprendizagem e na memória, na atenção e na memória operacional (ou de
trabalho).
O USO DA CANNABIS AFETA A CAPACIDADE COGNITIVA?
O uso da cannabis causa um comprometimento agudo do aprendizado e da memória,
da atenção e da memória operacional (1-3), mas não é tão evidente que o uso da cannabis
esteja associado a comprometimentos neuropsicológicos duradouros. Estudos de casocontrole comparando usuários abusivos da substância que não estejam sob seu efeito e nãousuários revelou de modo bastante consistente que o usuário abusivo apresenta pior
desempenho em testes neuropsicológicos. Por exemplo, os resultados de duas meta-análises
separadas (4,5) revelou que, quando comparados com não-usuários, os usuários de cannabis
que não estejam sob seu efeito apresentam pior desempenho em medidas da função
neuropsicológica global, com tamanhos do efeito em domínios neuropsicológicos específicos
(funções executivas, atenção, aprendizado e memória, habilidades motoras e habilidades
verbais) de aproximadamente um terço do desvio padrão, ou menos. Quando análises na
segunda meta-análise (5) foram limitadas para 13 estudos de usuários da cannabis com pelo
menos 1 mês de abstinência, não houve diferença perceptível entre os usuários de cannabis e
os não-usuários no que se refere ao desempenho em testes neuropsicológicos, o que sugere
que as funções neuropsicológicas podem se recuperar com a abstinência prolongada. As
evidências sugerem que a magnitude do comprometimento neuropsicológico e sua extensão
após a abstinência podem depender da frequência e da duração do uso da cannabis, da
extensão da abstinência, e da idade do indivíduo no início do uso. (6)
Vêm surgindo evidências que sugerem que os adolescentes podem ser
particularmente vulneráveis aos efeitos adversos do uso da cannabis. A adolescência
representa um período crítico do neurodesenvolvimento, caracterizado por uma pronunciada
poda sináptica e pelo aumento da mielinização (7). Além disso, o sistema endocanabinóide
parece estar envolvido na regulação de processos neurodesenvolvimentais cruciais (7), o que
sugere que a introdução de canabinóides exógenos durante a adolescência pode comprometer
o desenvolvimento cerebral normal. Pesquisas realizadas em animais corroboram a
possibilidade de que a adolescência represente um período de vulnerabilidade aumentada à
exposição à cannabis. (7). Por exemplo, ratos púberes tratados com um agonista canabinóide
apresentaram déficits persistentes em tarefas de reconhecimento de objeto, ao passo que isso
não ocorreu em ratos adultos. (8,9). Evidências crescentes em relação aos humanos apontam
na mesma direção que as descobertas referentes aos animais. Por exemplo, alguns estudos
mostraram que quanto mais precoce é a idade em que se inicia o uso da cannabis, maiores são
as associações com o comprometimento neuropsicológico (10, 11). Um estudo longitudinal
representativo da população, de 2012, (12) mostrou que usuários frequentes que iniciaram o
uso de cannabis durante a adolescência (mas não os que se iniciaram na idade adulta)
apresentaram declínio neuropsicológico entre as idades de 13 e 38 anos.
Investigações por neuroimagem de usuários adolescentes e adultos produziram
resultados algo inconsistentes. Análises recentes demonstraram que há evidências bastante
claras de alterações estruturais em regiões temporais mediais (amídala e hipocampo), frontais
e cerebelares associadas à exposição à cannabis (13, 14). Contudo, outro estudo recente (15),
que cuidadosamente comparou os participantes no que se refere ao consumo de álcool, não
apresentou evidências de alterações morfológicas cerebrais entre os usuários adolescentes ou
adultos, o que sugere a possibilidade de que o uso comórbido de álcool possa explicar algumas
das alterações morfológicas observadas na pesquisa anterior. Existem, além disso, evidências
de que os usuários da cannabis apresentem comprometimento da conectividade neural. Por
exemplo, um estudo (16) de adultos com um longo histórico de uso abusivo de cannabis
apresenta evidências de conectividade diminuída na fímbria direita do hipocampo (fórnix) e do
esplênio do corpo caloso, e nas fibras comissurais. Finalmente, investigações realizadas por
meio de imagens de ressonância magnética funcional sugerem que os usuários de cannabis
apresentam atividade neural alterada tanto em estado de repouso quanto durante testes
cognitivos (14). Por exemplo, usuários adolescentes masculinos apresentaram, nas imagens de
ressonância magnética funcional, um aumento de atividade dependente do nível do oxigênio
no sangue ocorrendo no córtex pré-frontal durante uma nova tarefa de memória operacional,
o que foi interpretado como refletindo processamento ineficaz (17). Essa observação se
coaduna com estudos medindo a conectividade funcional em repouso em usuários
adolescentes da cannabis que apresentaram padrões alterados de conectividade afetando
tanto o trânsito inter-hemisférico (18) como a rede fronto-temporal (19,20). Algumas
evidências sugerem que o canabidiol, outro canabinóide encontrado na planta da cannabis
(embora normalmente em concentrações muito baixas), pode oferecer proteção a alguns dos
efeitos nocivos do tetrahidrocanabinol (THC) sobre a cognição (21,22).
Essas são áreas que necessitam de pesquisas complementares. Em primeiro lugar,
diferenças observadas no desempenho de testes neuropsicológicos, bem como na estrutura e
função cerebrais, podem refletir diferenças individuais pré-existentes ao uso da cannabis. O
progresso das pesquisas vem sendo limitado pela recorrência de investigações transversais
comparando os usuário da cannabis e os não-usuários. Dois estudos longitudinais (12,23), em
que foram realizados testes neuropsicológicos anteriores e posteriores, apresentaram
evidências que permitem associar o uso da cannabis e o declínio da função neuropsicológica
no âmbito individual. Esses resultados não puderam ser explicados a partir de fatores como:
uso de álcool ou outras drogas, transtornos psiquiátricos, baixo status sócio-econômico, ou
toda uma gama de outros fatores complicadores. Entretanto, o número de usuários de
cannabis nessas coortes foi pequeno, e o imageamento cerebral não foi realizado. Contudo,
resultados de neuroimagem levantam a possibilidade de que volumes cerebrais regionais
menores entre usuários da cannabis possam ser parcialmente explicados pela presença de
diferenças pré-existentes. Por exemplo, um estudo longitudinal prospectivo (24) revelou que
volumes do córtex orbitofrontal menores aumentavam o risco de que adolescentes se
iniciassem no uso da cannabis, ao passo que um estudo (25) de gêmeos e irmãos revelou que
volumes reduzidos da amídala entre usuários da cannabis poderiam ser explicados por fatores
familiares. Considerados em conjunto, esses resultados ressaltam a necessidade de estudos
longitudinais que acompanhem adolescentes do período anterior ao período posterior ao
início do uso da cannabis e combinem testes neuropsicológicos e neuroimagens. O Estudo do
Desenvolvimento Cognitivo do Cérebro do Adolescente (Adolescent Brain Cognitive
Development Study) (26), uma ampla investigação prospectiva financiada pelos National
Institutes of Health, de crianças entre 9 e 10 anos que serão acompanhadas por pelo menos 10
anos, está sendo iniciada para atender, em parte, a essa necessidade.
Uma segunda área propícia para investigações adicionais diz respeito à necessidade de
reconciliação dos resultados de neuroimagem com o desempenho em testes
neuropsicológicos. As evidências de neuroimagem atuais são inconsistentes, e alterações na
estrutura e função cerebrais tendem a não se correlacionar com diminuições no desempenho
em testes neuropsicológicos (27). São necessárias maiores amostras para o imageamento,
juntamente com considerações cuidadosas acerca das características dos participantes, tais
como o uso comóbido de álcool e outras drogas e a extensão da abstinência da cannabis.
Em terceiro lugar, são necessárias mais pesquisas para que se possa responder à
questão “quando é que podemos falar em uso excessivo de cannabis?”. Uma vez que muitas
amostras de estudo incluem uma grande parcela de indivíduos apresentando dependência da
cannabis (conforme definido pelo DSM-IV), não está claro se os efeitos podem ser
generalizados para indivíduos com transtornos ligados ao uso da cannabis menos severos e
para usuários de caráter mais recreacional.
Em quarto lugar, devido ao efeito potencial de canabinóides exógenos sobre o
desenvolvimento cerebral, mais pesquisas são necessárias para que se possa responder à
pergunta “em qual idade a cannabis causa maior malefício?”. Além de estudar os efeitos do
uso da cannabis em adolescentes, também são necessárias pesquisas que lancem luz sobre a
suscetibilidade de adultos mais velhos para o comprometimento neuropsicológico associado à
cannabis. Essa parcela da população experimenta mudanças na plasticidade cerebral e declínio
cognitivo relacionados à faixa etária que podem torná-la mais vulnerável aos efeitos do uso da
cannabis.
Em quinto lugar, evidências recentes sugerem diferenças relacionadas ao gênero em
déficits neuropsicológicos associados ao uso da cannabis (1, 28). Assim, pesquisas futuras
devem esclarecer os mecanismos na base dessas potenciais diferenças relativas ao gênero.
Em sexto lugar, fatores genéticos, tais como polimorfismos nos genes COMT (OMIM
116790) e AKT1 (OMIM 164730) podem também aumentar a suscetibilidade ao
comprometimento neuropsicológico ligado a uso da cannabis (29). Outros exemplos incluem
um estudo recente (30) que revelou que o THC causa o comprometimento agudo da memória
operacional para portadores de COMTVal/Val (mas não para portadores de Met), além de um
outro estudo (31) de três coortes de população que revelou que o uso da cannabis estava
associado com a espessura cortical diminuída entre indivíduos masculinos com alto (mas não
com baixo) risco genético de esquizofrenia conforme indexado por uma pontuação de risco
poligênica. A possibilidade que diferenças individuais entre usuários da cannabis possam ter
efeitos significativos e possam servir para prever a extensão de consequências adversas sugere
que esforços recentes para incrementar informações genéticas com vistas a criar pontuações
de risco poligênicas possam ser úteis no desenvolvimento dos estudos sobre uso de cannabis e
funções neuropsicológicas.
O USO DA CANNABIS DIMINUI A MOTIVAÇÃO?
Já em fins do século XIX, a Indian Hemp Drugs Commission [Comissão de Drogas de
Maconha] (32) relatava que o uso abusivo de cannabis estava associado à apatia, definida
como motivação reduzida para comportamentos direcionados a um objetivo (33). Todavia, foi
apenas após o pronunciado aumento no uso da cannabis durante os anos 60 que os efeitos
motivacionais do uso crônico da cannabis foram ligados a comprometimentos no aprendizado
e na atenção sustentada. O termo síndrome amotivacional da cannabis (cannabis
amotivational syndrome) foi proposto por McGlothlin e West (34), que o definiram como
apatia e capacidade reduzida para concentração, para a adoção de rotinas ou para a aquisição
de novos conhecimentos. Embora sempre tenha havido alguma polêmica em relação à
necessidade de se definir um fenótipo tão preciso, existem evidências que o uso abusivo de
cannabis a longo prazo esteja associado a dificuldades no desempenho escolar e ao
comprometimento da motivação, os quais, conforme se sugeriu, podem ser entendidos como
mediadores potenciais de resultados funcionais piores (35).
Existem evidências pré-clínicas e clínicas que estão de acordo com a ideia de que o uso
da cannabis esteja associado a estados amotivacionais. Entre os macacos resos, a utilização ou
a administração crônica e abusiva de cannabis resultou na queda da motivação, conforme
mensurado em testes operantes de relação progressiva e de resposta a posição condicionada
(36). Existem evidências laboratoriais preliminares apontando uma relação entre usuários de
cannabis e motivação reduzida para comportamentos relativos a recompensa, quando
comparados com indivíduos-controle. (37). Como tais resultados parecem estar relacionados a
doses repetidas de THC, é provável que a motivação reduzida possa ser um dos caminhos que
conduzem ao comprometimento da aprendizagem, pois o THC pode obstaculizar o
aprendizado baseado em recompensas (38). Coadunando-se a essa teoria, os usuários da
cannabis apresentam capacidade reduzida de síntese da dopamina estriatal (39), com
relacionamento inverso com a amotivação. Na medida em que a sinalização dopaminérgica
apoia a motivação (40), o comprometimento da síntese de dopamina poderia estar na base do
estado amotivacional entre os usuários da cannabis. Da mesma maneira, investigações por
imagem apontaram uma reatividade diminuída ao estímulo de dopamina em usuários de
cannabis, o que foi associado a emotividade negativa, e que também poderia contribuir para
reduzir o empenho em atividades que não estejam relacionadas à droga (41).
A amotivação em usuários crônicos abusivos pode também refletir o fato de que a
própria cannabis tenha se tornado um motivador principal, de modo que outras atividades
(como, por exemplo, as tarefas escolares) se tornam diminuídas na hierarquia de recompensas
do indivíduo. De fato, a dependência da droga ocorre em cerca de 9% dos usuários (42) que
parecem mais vulneráveis do que outros em função de uma multiplicidade de variáveis,
incluindo a idade no início do uso, o nível de uso e fatores ambientais e genéticos.
O que ainda precisa ser verificado é se mudanças na concentração dos ingredientes
ativos da cannabis podem afetar o risco da amotivação ou de adição. A planta da cannabis
contém aproximadamente 100 ingredientes canabinóides exclusivos, sendo que os mais
pesquisados são o THC e o canabidiol. Ao longo dos últimos 30 anos, o nível de THC presente
na cannabis de rua aumentou (43). Entre esses dois compostos, apenas o THC determina o
nível do “barato” subjetivo. Juntamente com um sistema de dopamina com eficácia reduzida
(blunted) (41), o uso crônico abusivo da cannabis é associado a mudanças no sistema
endocanabinóide, incluindo níveis reduzidos de anandamida (um ligante endógeno dos
repectores canabinóides) no fluído cérebro-espinhal humano (44) e níveis diminuídos de
receptores canabinóides 1 (45). De fato, toda uma literatura pré-clínica crescente tem
apontado o envolvimento dos receptores canabinóides 1 e seus ligantes endógenos com os
efeitos motivacionais decorrentes do uso da cannabis (46). Assim como ocorre com a
associação do uso da cannabis ao comprometimento cognitivo, é possível estabelecer, de
modo inequívoco, se o uso da cannabis é causa, consequência ou correlato da motivação
alterada. Pesquisas adicionais são necessárias para que se determine se os efeitos
amotivacionais potenciais se relacionam com os transtornos do uso da cannabis em vez de
estarem ligados ao uso da cannabis per se.
O USO DA CANNABIS AUMENTA O RISCO DE PSICOSE?
Uma das maiores controvérsias relacionadas ao uso da cannabis diz respeito ao seu
efeito sobre o risco de transtornos psiquiátricos, em especial transtornos psicóticos e a
esquizofrenia plenamente desenvolvida. Investigações longitudinais revelam uma sólida
associação entre o uso de cannabis por adolescentes e a psicose. O uso da cannabis é
considerado um fator de risco evitável para a psicose (47). A ligação entre o uso da cannabis e
a esquizofrenia pode derivar de uma causalidade direta, de interações genético-ambientais, de
etiologias compartilhadas ou da auto-medicação para sintomas pré-morbidos, embora alguns
pesquisadores tenham sugerido que apenas as três primeiras hipóteses permaneçam questões
em aberto (48-50). A emergência esporádica de dados conflitantes não deve surpreender,
tendo-se em vista a natureza desse problema biológico específico. Por exemplo, os efeitos da
exposição à cannabis podem ser modestos na população total e dependentes da presença de
múltiplas variáveis genéticas e ambientais. Por outro lado, persiste uma polêmica duradora e
legítima em relação a que proporção do risco de psicose pode ser atribuída ao uso da cannabis
e, também, em relação a até que ponto indivíduos sem predisposição genética podem
desenvolver a doença.
Apesar dessa ambiguidade, existem fortes evidências fisiológicas e epidemiológicas
sugerindo uma ligação mecânica entre o uso da cannabis e a esquizofrenia. O
tetrahidrocanabinol (principalmente em altas doses) pode causar psicose aguda, transitória e
dependente da dose (sintomas positivos e negativos similares aos esquizofrênicos) (51). Além
disso, estudos epidemiológicos, longitudinais e prospectivos apontam uma associação
recorrente entre o uso da cannabis e a esquizofrenia, em que o uso da cannabis antecede a
psicose (52) independentemente do consumo de álcool (53) e mesmo após a remoção (52, 54)
ou o controle (55, 56) daqueles indivíduos que utilizaram outras drogas. Embora o período
prodrômico anterior à doença plenamente instalada crie dificuldades para que se determine se
o uso da cannabis precede os sintomas, ou se reflete uma tentativa de tratá-los, o uso da
cannabis precedeu a psicose nesses estudos (52, 54, 57). Além disso, o uso persistente da
cannabis após o primeiro episódio está associado com piores prognósticos (58) mesmo após o
controle de outros usos de substâncias (59).
Embora o uso da cannabis possa ter sido interrompido muito tempo antes do
surgimento da psicose, a idade em que se dá o início do uso da cannabis parece se relacionar
com a idade em que eclode a psicose, o que sugere uma relação causal em relação ao início da
psicose que independe do uso de fato (49, 60, 61). A associação entre o uso da cannabis e a
psicose crônica (incluindo um diagnóstico de esquizofrenia) é maior naqueles indivíduos que
fizeram uso abusivo ou frequente da cannabis durante a adolescência (53, 54, 60, 62, 63) ou
em períodos anteriores (52), ou que utilizaram cannabis com THC de alta potência (60, 62). A
partir desses estudos, estima-se que o uso constante da cannabis aumente em
aproximadamente duas vezes o risco de esquizofrenia, o que explica de 8% a 14% dos casos
(55), enquanto o uso frequente ou o uso de cannabis com THC altamente potente aumentam
o risco de esquizofrenia em seis vezes (53). Coadunando-se a essa ideia, a maior
disponibilidade do receptor canabinóide tipo 1 que teria sido encontrada em alguns pacientes
com esquizofrenia (64, 65), e que se correlaciona com sintomas negativos (66), pode também
contribuir para uma sensibilidade aumentada aos efeitos psicotogênicos do uso da cannabis.
Nesse contexto, é importante ressaltar que a maioria dos indivíduos que usam cannabis não
desenvolve esquizofrenia. Portanto, embora o uso de cannabis não seja necessário nem
suficiente para o desenvolvimento da esquizofrenia, evidências disponíveis sugerem que o uso
da cannabis pode dar início ao surgimento de doenças psicóticas duradouras em algumas
pessoas (mais provavelmente indivíduos com vulnerabilidade genética) (67), e esse resultado
nos convida a sérias reflexões do ponto de vista das políticas públicas de saúde.
Tem se tornado cada vez mais claro que a psicose aguda, os transtornos
esquizofreniformes e a esquizofrenia são o resultado da interação de múltiplos fatores
diversos operando em vários níveis. Por exemplo, a presença de um membro familiar próximo
que seja portador de esquizofrenia é o mais poderoso fator de risco para a esquizofrenia;
contudo, poucos investigadores associando o uso da cannabis e a esquizofrenia controlaram
especificamente o risco de esquizofrenia familiar. Os resultados de um estudo (68) sugerem
que o uso da cannabis pode levar à esquizofrenia em indivíduos com um histórico familiar da
doença, quando comparados com indivíduos sem esse histórico. Todavia, o controle do risco
familiar em um grande estudo epidemiológico (69) atenuou consideravelmente, embora não
tenha completamente eliminado, a associação do uso da cannabis e a esquizofrenia, com
razão de chances de 3,3 e 1,6 com atrasos temporais de 3 e 7 anos respectivamente.
Possíveis interações de três vias entre genótipo, uso da cannabis e psicose também
foram analisadas. O genótipo DRD2 (OMIM 126450) influenciou na probabilidade de
transtorno psicótico em indivíduos que usavam cannabis (70). Entre usuários ocasionais e
usuários diários de cannabis, portadores do DRD2, rs 1076560, alelo T tiveram 3 vezes e 5
vezes maiores probabilidades de transtorno psicótico, respectivamente (70). Relatou-se,
também, que o polimorfismo funcional COMTVal-158 modera o efeito do uso de cannabis
durante a adolescência sobre a psicose adulta, de modo que era mais provável que os
portadores desse alelo desenvolvessem transtornos esquizofreniformes se eles usassem
cannabis do que os indivíduos não-portadores desse alelo (67). Em um estudo experimental
sobre o THC (71), portadores do COMTVal apresentaram maior comprometimento cognitivo
após exposição ao THC, e maior número de sintomas psicóticos, do que portadores do COMT
Met/Met. Também foi relatado um genótipo AKT1 por interação com o uso da cannabis, sendo
que aqueles indíviduos que apresentavam genótipos C/C rs 2494732 e que também utilizavam
cannabis apresentaram o dobro das chances de apresentar um transtorno psicótico (72). Em
outro estudo (73), os participantes portadores do genótipo AKT1C/C que faziam uso constante
ou uso diário da cannabis apresentaram, respectivamente, probabilidades duas e sete vezes
maiores de desenvolver transtorno psicótico quando comparados com usuários e usuários
diários que fossem portadores T/T.
Os resultados que apoiam a hipótese que algumas variantes genéticas influenciam na
probabilidade do desenvolvimento da esquizofrenia, mediante a exposição a certos aspectos
ambientais (por exemplo, o uso de cannabis), refletem tentativas, ainda iniciais e hesitantes,
de encontrar resultados dentro de um pequeno número de indivíduos, e que necessitam ser
repetidas. (74). Uma explicação alternativa seria a de que indivíduos com alto risco genético
de esquizofrenia tenham maior propensão a usar a cannabis através de um risco genético
compartilhado de esquizofrenia e de transtornos do uso de cannabis. De fato, o relatório
recente de um estudo de associação genômica ampla (75) de uma associação entre alelos de
riscos de esquizofrenia e uso da cannabis sugere que uma parte da associação entre a
esquizofrenia e o uso da cannabis pode se dever a uma etiologia genética compartilhada.
Contudo, em um estudo (63), o uso de cannabis com THC de alta potência foi fortemente
associado ao desenvolvimento posterior de esquizofrenia, ao passo que a recentemente
apresentada pontuação de risco poligênica de esquizofrenia (76) não foi relacionada ao uso de
cannabis ou à potência da cannabis utilizada (77).
Finalmente, assim como ocorre com usuários crônicos ou abusivos de cannabis (78),
pacientes com esquizofrenia também apresentam volumes reduzidos da amídala e do
hipocampo (79). Essa observação pode contribuir para explicar os piores resultados clínicos em
indivíduos esquizofrênicos que usam cannabis, pois é provável que essas mudanças
morfológicas estejam na base da exacerbação dos sintomas esquizofrênicos associada à
cannabis, ou contribuam para tal exacerbação (80).
CONCLUSÃO
Décadas de legislações mal-informadas ou condescendentes em relação às drogas
legais e ilegais impuseram à nossa sociedade um terrível preço a ser pago em termos de saúde.
Está claro que o efeito cumulativo da exposição à nicotina e do uso de álcool sobre a
morbidade e a mortalidade é enorme. Além disso, é preciso considerarmos os efeitos
altamente nocivos da “guerra contra as drogas”, realizada pela justiça criminal, sobre as
populações minoritárias e desfavorecidas. Os esforços atuais visando a legalização do uso da
cannabis têm sido orientados sobretudo por uma combinação de ativismo popular,
engenhosidade farmacológica e busca privada de altos lucros, com uma preocupante
desconsideração das evidências científicas, das lacunas em nosso conhecimento, ou da
possibilidade de consequências imprevistas. Tendo-se em vista o papel crucial e de amplo
escopo do sistema endocanabinóide no cérebro (81-83), a utilização crescente da cannabis e o
aumento dos transtornos relativos a esse uso ao longo das últimas décadas, assim como o
aumento da concentração de THC na planta da cannabis, é preciso esclarecer quais aspectos
da exposição à cannabis (por exemplo, a idade no início do uso, a quantidade usada, a
frequência do uso, a duração do uso, e a potência da cannabis utilizada) apresentam maiores
riscos no que diz respeito ao desenvolvimento de transtornos do uso da cannabis e à eclosão
de outras consequências adversas (por exemplo, déficits cognitivos, falta de motivação, ou
psicose). Além disso, existem muitas questão que ainda não obtiveram resposta, e que se
relacionam mais diretamente com a qualidade de políticas rapidamente implementadas. Por
exemplo, a propaganda será permitida? Quais padrões de uso e efeitos tóxicos associados
surgirão se os cigarros elétricos de maconha se tornarem difundidos ou até mesmo um hábito
cotidiano entre os adolescentes? Como o aumento de usuários de cannabis gestantes pode
afetar o desenvolvimento dos fetos expostos a essa prática? Finalmente, quais são as
consequências do fumo passivo da cannabis?
Se nos deixarmos levar pela tendência atual, é provável que sejam descobertos efeitos
que eram raros no passado unicamente pelo fato de que o uso não era então tão disseminado
quanto o das drogas legais. As populações vulneráveis, tais como crianças, adolescentes,
idosos ou indivíduos com outros transtornos, podem experimentar efeitos tóxicos inéditos
(assim como potenciais benefícios). A transformação do cenário em que se dá o uso da
cannabis (por exemplo, os problemas decorrentes de THC mais potente, novos meios de
administração da droga [como inalação do vapor da maconha e maconha comestível] e novas
combinações da droga) e o surgimento, em nossa cultura, de novas normas e percepções
levantam a possibilidade de que nosso conhecimento atual, sempre limitado, possa se aplicar
apenas aos modos pelos quais a droga foi utilizada no passado.
As áreas exploradas nesse artigo, que refletem apenas um subconjunto dos múltiplos
efeitos do uso da cannabis sobre o cérebro e sobre o corpo, não fazem jus à onipresença do
sistema de sinalização canabinóide. Portanto, além de expandir nossas pesquisas básicas,
devemos aprender o máximo e mais rápido que pudermos com as mudanças em curso nas
políticas locais, para que assim possamos minimizar os danos e maximizar os potenciais
benefícios.
INFORMAÇÕES SOBRE O ARTIGO
Apresentado para publicação em 9/10/2015. Revisão final recebida em 8/12/1015. Aceito em
10/12/2015.
Publicação online em 3/2/2016. doi: 10.1001/jamapsychiatry.2015.3278.
Afiliações dos autores: National Institute on Drug Abuse, National Institutes of Health,
Bethesda, Maryland (Volkow, Baler); Child Development Center, University of California, Irvine
(Swanson); Center for Addiction Medicine, Department of Psychiatry, Massachusetts General
Hospital, Boston (Evins); Harvard Medical School, Boston, Massachusetts (Evins); Veterans
Affairs Boston Healthcare System, Harvard Medical School, Brockton, Massachusetts (DeLisi);
Department of Psychology, Arizona State University, Tempe (Meier); Center for Children and
Families, Department of Psychology, Florida International University, Miami (Gonzalez);
Division of Psychiatry, University College London, Londres, Inglaterra (Bloomfield); Psychiatric
Imaging Group, Medical Research Council Clinical Sciences Centre, Hammersmith Hospital,
Londres, Inglaterra (Bloomfield); Clinical Psychopharmacology Unit, Clinical Health Psychology,
University College London, Londres, Inglaterra (Curran).
Contribuição dos autores: O Dr Volkow teve pleno acesso a todos os dados no estudo e
assume responsabilidade pela integridade dos dados e pela correção da análise dos dados.
Concepção do estudo de todos os autores. Aquisição, análise e interpretação dos dados:
Volkow, Swanson, Evins, DeLisi, Meier, Gonzalez, Bloomfield, Curran. Produção do manuscrito
realizada por todos os autores. Revisão crítica do manuscrito: todos os autores. Análise
estatística: Swanson, Evins, DeLisi, Meier, Gonzalez, Bloomfield, Curran. Financiamento obtido
por Volkow, Swanson, Evins, DeLisi, Meier, Gonzalez, Bloomfield, Curran. Apoio administrativo,
técnico ou material: Volkow, Baler.
Exposição de conflitos de interesse: O Dr. Swanson declara ter recebido apoio de Alza,
Richwood, Shire, Celgene, Novartis, Celltech, Gliatech, Cephalon, Watson, CIBA, Janssen, e de
McNeil; declara ter prestado serviços como consultor nos conselhos da Alza, Richwood, Shire,
Celgene, Novartis, Celltech, UCB, Gliatech, Cephalon, McNeil, e Eli Lilly; declara ter prestado
serviços nos grupos de discussão da Alza, Shire, Novartis, Celltech, UCB, Cephalon, CIBA,
Janssen, e McNeil; e declara ser consultor da Alza, Richwood, Shire, Celgene, Novartis,
Celltech, UCB, Gliatech, Cephalon, Watson, CIBA, Jansen, McNeil, e Eli Lilly. O Dr Evins declara
prestar serviços como consultor e como analista de financiamentos para o Pfizer Global
Research Awards for Nicotine Dependence (GRAND) Grants Program [Programa de Bolsas para
Pesquisas sobre Dependência de Nicotina da Pfizer Global]. Nenhum outro conflito de
interesses foi relatado.
Financiamento/apoio: este trabalho foi parcialmente financiado pelas seguintes instituições:
Forum Pharmaceuticals, que apoiou financiamento R01 DA030992 do National Institute of
Drug Abuse, e Pfizer, que apoiou financiamento R01 DA021245 do National Institute of Drug
Abuse (Dr Evins); National Institutes of Health Intramural Research Program (National Institute
on Alcohol Abuse and Alcoholism) usando, sob contrato, a infra-estrutura do Brookhaven
National Laboratory DE-AC02-98CH10886 (Dr Volkow); financiamento R01 DA021576 do
National Institute of Drug Abuse (Dr DeLisi); United Kingdom Medical Research Council,
National Institute of Health Research, e British Medical Association (Dr Bloomfield); e um
financiamento concedido pelo United Kingdom National Institute of Health Research
Biomedical Research Council to King’s College London, além de um financiamento da United
Kingdom Medical Research Council (Dr Curran).
Papel do financiador/patrocinador: as agências de financiamento não participaram da
concepção e da condução do estudo; da coleta, análise e interpretação dos dados; da
preparação, revisão ou aprovação do manuscrito.
REFERÊNCIAS
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tempo verbal semelhante ao passado em português; a palavra “pot” também é uma gíria para
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