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XANGAI J‡ÊpensouÊno jantarÊdeÊhoje? AÊInalca-AngolaÊj‡! AÊInalca-AngolaÊtemÊaÊpreocupaç‹o deÊlevarÊatŽÊsiÊprodutosÊseleccionadosÊ daÊmaisÊaltaÊqualidade,Êseguindo rigorososÊprocessosÊdeÊinspecç‹o, conservaç‹oÊeÊarmazenamento. peixe macarr‹o molhoÊdeÊtomate INALCAÊSpA ViaÊSpilamberto,Ê30/cÊ-Ê41014ÊCastelvetroÊ(MO)ÊItaly Tel.Ê+390Ê597Ê55221Ê|ÊFaxÊ+390Ê597Ê55519 www.inalca.itÊ|Ê[email protected] INALCAÊAngola RuaÊDomÊManuelÊNunesÊGabrielÊS/N LuandaÊ-ÊAngola Tel.Ê+244Ê222Ê260601 [email protected] carne pratosÊprontos sucosÊeÊlicores MARCASÊCOMERCIALIZADASÊPORÊTODAÊçFRICA: SUMÁRIO Angola, a crise e o crescimento Diversas instituições internacionais fazem prognósticos pessimistas sobre o desempenho da economia angolana. A maioria dos economistas locais desconfia. E o Governo afirma que o país vai ter um crescimento de seis por cento, embora muitos digam que é exagerado. João Melo, Alberto Sampaio, Pedro Kamaka e Emanuel Alvarenga 17 A Cidade Velha é património mundial A Cidade Velha entrou para a lista dos sítios considerados património mundial. As dúvidas sobre a classificação permaneceram até ao último minuto. Mas Cabo Verde acabou por colocar o nome na lista daUNESCO. Agora fica o muito que há por fazer no país para valorizar a sua riqueza natural. Gláucia Nogueira 38 O desafio da eficiência A eficiência energética e alimentar ainda não é uma realidade nos países em desenvolvimento. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, só no continente africano vivem 24 milhões de pessoas em situação de subnutrição. João Carlos 58 O Gabão depois de Omar Bango 66 África21 Revista de Informação, Economia e Análise Portal www.africa21digital.com Newsletter [email protected] Propriedade Nova Movimento, Lda Sociedade de Marketing, Comunicação e Cultura Rua Frederico Welvitch, n.º 82 Bairro do Maculusso – Luanda, Angola [email protected] Editada por Movipress Uma divisão da Nova Movimento, Lda Director Geral João Melo [email protected] [email protected] Director Executivo Carlos Pinto Santos [email protected] [email protected] Directora Comercial Fernanda Osório [email protected] [email protected] Secretária Administrativa Luzia Miguel Delegação em Lisboa Triangulação, Lda Rua Bento Jesus Caraça, 16 – 2º Dto 1495-686 Cruz Quebrada Apartado em Lisboa: 19059 1990-999 LISBOA 4 julho 2009 – África21 O Presidente do Gabão faleceu a 10 de Junho, depois de 42 anos no poder. Muitos gaboneses choraram a sua morte, até porque nunca conheceram outro chefe de Estado. Como vai o país lidar sem o seu fundador? Nicole Guardiola Directora administrativa Marina Melo [email protected] [email protected] Secretário administrativo Francisco Porto [email protected] Redacção de Luanda Adebayo Vunge , Alberto Sampaio, Carlos Severino, João Belisário, José Chimuco, Luís Ramiro, Luísa Rogério, Manuel Muanza, Pedro Dombele, Pedro Kamaka e Ruben Kamaxilu Redacção de Lisboa António Melo, João Carlos, João Escadinha, Miguel Correia, Nicole Guardiola e Teresa Souto Colaboradores permanentes Alfredo Prado (Brasília), Augusta Conchiglia (Paris), Beatriz Bissio (Rio de Janeiro), César Lopes (Lisboa), Cristiana Pereira (Maputo), Gláucia Nogueira (Praia), Itamar Souza (Nova Iorque), Jonuel Gonçalves (Rio de Janeiro), Juvenal Rodrigues (São Tomé), Leonardo Júnior (Maputo), Manuel Muanza (Luanda), Maria Monteiro (Bissau) e Rodrigues Vaz (Lisboa) Colunistas Alves da Rocha, Conceição Lima, Corsino Tolentino, Fernando Pacheco, Germano Almeida, Inocência Mata, José Carlos de Vasconcelos José Octávio Van-Dúnem, Luís Cardoso, Luis Ruffato, Mário Murteira, Mário Pinto de Andrade, Mia Couto, Odete Costa Semedo, Pepetela e Urbano Tavares Rodrigues Fotografia Agência Angop, Agência Lusa, Arquivo África21, Arquivo Digiscript, Fernanda Osório, Jornal de Angola e Ruth Matchabe Publicidade em Angola Movimídia Gestão e Comercialização de Meios Rua Frederico Welvitch, n.º 82 Bairro do Maculusso — Luanda, Angola [email protected] Paula Miranda [email protected] Distribuição e assinaturas em Angola Movipress Rua Frederico Welvitch, n.º 82 Bairro do Maculusso – Luanda, Angola Tel: 244 917 830 014 / 244 917 830 537 [email protected] Publicidade e assinaturas no Brasil CCA – Consultores de Comunicação Associados [email protected] Distribuição em Portugal Logista Edifício Logista – Expansão da Área Industrial do Passil Lote 1-A Palhavã 2890 Alcochete Publicidade Triangulação [email protected] [email protected] Assinaturas em Portugal e no resto do mundo (excepto Angola e Brasil) [email protected] [email protected] Projecto gráfico, paginação e pré-impressão Digiscript [email protected] Impressão Offsetmais Rua Latino Coelho, 6 Venda Nova 2700-616 Amadora Tiragem: 10.000 exemplares Os artigos assinados reflectem a opinião dos autores e não necessariamente da revista. Toda a transcrição ou reprodução, parcial ou total, é autorizada, desde que citada a fonte. A correspondência deve ser dirigida à Movipress Rua Frederico Welvitch, n.º 82 Bairro do Maculusso – Luanda, Angola. Tel.: 244 917 830 014 / 244 917 830 537 Fax: 244 222 334 867 AOS LEITORES O estado da economia angolana 10 ANTENA 21 É um facto insofismável. Muitas e repetidas vezes as previsões económicofinanceiras dos governos não coincidem com as instâncias internacionais, mesmo aquelas de estatuto altamente conceituado, como sejam, entre outras, o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial (BM), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD). Isto, claro, quando as análises destas organizações revêem em baixa os indicadores avançados pelos governos. É o que acontece com a taxa de crescimento de Angola para 2009. A discrepância entre o Governo angolano e a OCDE e o BAD é profunda. O Executivo angolano perspectiva seis por cento de crescimento positivo, contra um crescimento negativo de quatro por cento prognosticado por estas duas últimas instituições. Qual dos cálculos é mais fiável? A estimativa negativa da OCDE e do BAD? O optimismo do ministro angolano das Finanças? Uma coisa é certa. Em Angola, muitos economistas não acreditam nos seis por cento garantidos por Severim de Morais, mas desconfiam do pessimismo das previsões das instituições internacionais, que consideram superficiais. «Compramos» o estudo da Universidade Católica em Luanda (como é referido nesta edição) que dá um crescimento (positivo) de um a três por cento e a «ver, vamos»? No dossiê alargado desta edição procuramos dar uma visão do estado da economia angolana e expomos diferentes análises e opiniões, por vezes adversas entre si. As polémicas sobre as novas políticas monetárias angolanas decorrem depois da discussão do Orçamento Geral do Estado agora revisto pela obrigatoriedade do decréscimo de 6,6% da produção do petróleo, o principal gerador de receitas do país. Mas sejam quais forem os reais índices no curto prazo, Angola continua a suscitar um corrupio de governantes e homens de negócios das grandes potências económicas. Apenas no mês de Junho visitaram-na representantes de quase todos os membros do G8. 31 A CRÓNICA DE PEPETELA Governo africano? 32 BRASIL, Alfredo Prado Os encantos da Petrobras 35 A CRÓNICA DE LUÍZ RUFFATO Uma silenciosa revolução na floresta 36 CABO VERDE, Natacha Mosso Habitação para todos é objectivo 43 A CRÓNICA DE GERMANO ALMEIDA Fidalgo de braguilha 44 GUINÉ-BISSAU, Luntam Cuiaté Bacai Sanhá e Kumba Yalá na segunda volta das eleições 47 A CRÓNICA DE ODETE COSTA SEMEDO Assim senti Ombela? Uluai, chuva e palavra 48 SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE, Juvenal Rodrigues O balanço de um ano de governação 51 A CRÓNICA DE CONCEIÇÃO LIMA Alda Espírito Santo 52 AMÉRICA LATINA, Manrique S. Gaudin Cuba, OEA e a criação de um novo organismo 55 ECONOMIA, Jonuel Gonçalves Da crise aos riscos de «tudo como dantes» 62 ELEIÇÕES EUROPEIAS, António Melo A humilhação da esquerda, a vitória dos conservadores 71 ÁGUAS CORRENTES, Corsino Tolentino O voto da decência 73 ENSAIO, Alves da Rocha O «Fundo Soberano» da Finlândia 77 CRÓNICA DA TERRA, Fernando Pacheco O futuro da agricultura angolana e o conhecimento científico 80 INSUMOS 84 LIVRO DO MÊS, Rodrigues Vaz Uma biografia exemplar de Óscar Ribas 86 CULTS 90 LIVROS, CD E VÍDEO, Miguel Correia 94 MEMÓRIA, António Melo Ricardo Rangel (1924-2009) 96 ÚLTIMA PÁGINA, João Melo A construção da democracia ILUSTRAÇÃO DA CAPA, Cristina Sampaio [email protected] 06 ENTREVISTA CATARINA FURTADO, Guiomar Belo Marques Embaixadora da Boa Vontade pede urgência na ajuda Carlos Pinto Santos África21– julho 2009 5 ENTREVISTA Isto é mesmo uma urgência! Catarina Furtado, embaixadora da Boa Vontade Há dez anos, foi convidada por Kofi Annan, então secretário-geral da ONU, para assumir uma tarefa: ser embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA). Desde então, não mais descansou. Tem feito uma interpretação à letra das funções que então assumiu, na consciência profunda de que cada vida possui um valor primordial. Guiomar Belo Marques África21. O trabalho de embaixadora tem sido desenvolvido, fundamentalmente, em países de expressão portuguesa. Foi uma opção própria? CATARINA FURTADO. Tem sido uma opção minha. Os embaixadores da Boa Vontade das Nações Unidas existem por serem pessoas supostamente envolvidas, conhecidas do público e para servirem de porta-vozes nos países em desenvolvimento. Eu sou a única embaixadora de língua portuguesa da UNFPA. Quando me convidaram, disse que gostava muito de trabalhar junto daqueles com os quais temos afinidades históricas e linguísticas. Além do mais, parte dos meus programas passa na RTP-África e, por isso, quem tem o poder conhece-me, o que facilita muito o meu trabalho. De quem partiu a iniciativa de angariação de fundos para a UNFPA, numa Gala da RTP? A RTP sempre teve a noção de que a estação pública tem de fazer este tipo de 6 julho 2009 – África21 acções, de movimentar a sociedade civil no sentido de se envolver na ajuda às inúmeras carências existentes. Na altura, a Gala já estava programada e desafiei o Nuno Santos, então director da RTP, a alargar ao exterior, sobretudo aos países lusófonos, o que era inédito, e consegui convencê-lo. Para mim havia dois motivos muito importantes: dar a conhecer o trabalho da UNFPA, pouco divulgado, apesar de ser a maior Agência, e explicar o que é a mortalidade materna e neonatal, o planeamento familiar, a gravidez adolescente, a sida. Atingiu os objectivos pretendidos? Apresentei pequeninos filmes onde mostrava o trabalho da UNFPA e convidámos as pessoas a darem um donativo financeiro. Metade do dinheiro foi para o Serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. Conseguimos um valor recorde. Foi mesmo muito bom. Deu para termos 250 mil euros (352 mil USD) só para o A embaixadora da Boa Vontade em Gabú ATÉ AO FIM DO MUNDO UNFPA. Depois, consegui sensibilizar o IPAD e o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, João Gomes Cravinho, a dar outro tanto para a cooperação portuguesa, e ficámos com 500 mil euros (704 mil USD). Às vezes perguntam-me porque não me dedico a Portugal, onde há tantos problemas. Não digo que não, mas os embaixadores existem para estes países. Aqui, uma pessoa que não tenha nada pode ir a um Centro de Saúde, a um hospital, onde tem tudo, porque é público. Lá não há! Na Guiné, por exemplo, não há transfusões de sangue por não existir um banco de sangue. Portanto, tenho urgência em mostrar para as pessoas perceberem. Temos de ser muito mais solidários do que aquilo que pensamos. Como foi esse dinheiro encaminhado para a Guiné? A UNFPA decidiu que deveria ir para a Guiné, por ser o país do mundo com uma das mais elevadas taxas de mortalidade materno-neonatal, exactamente pela falta de infra-estruturas, quer físicas, quer de pessoas formadas, quer culturalmente, porque não há um trabalho, já existente noutros países, nos quais há uma sensibilização e onde as mulheres, quando estão grávidas, recorrem aos serviços de saúde, mesmo que precários. Na Guiné ainda está tudo no século passado. Portanto, há um ano foi lançada a primeira pedra do bloco operatório e em Junho último foi inaugurado. Fui inaugurar. Já está construído o bloco operatório, em Gabú! Como correu? Foi super-comovente, porque o carinho com que todas as pessoas da terra estavam a olhar para o bloco operatório fez- me ganhar mais dez, vinte anos de vida. Foi muito bonito. Agora estou a ver se consigo mais. Em Mansoa, o hospital foi construído e ajudado pela cooperação francesa; tem muito bom aspecto, mas não tinha técnicos a trabalhar. Portanto, os 500 mil euros deram não só para a infra-estrutura, mas também para lá pôr material, ambulâncias, contribuir para a formação. É um projecto para ter continuidade. No documentário Dar Vida sem Morrer, que foi transmitido no início do ano, divulgava-se o projecto, mas haverá mais três. Serão quatro, ao todo. O Antes foi o primeiro. Este próximo mostrará alguns resultados, porque houve coisas que já melhoraram, o que tem a ver com apoios que foram lá postos como, por exemplo, um gerador que está a funcionar há seis meses, o que significa que já houve mulheres que não morreram por terem podido ser operadas, ainda que em condições completamente arcaicas. Fizeram-se cesarianas ali, salvaram-se pessoas ali, por causa do gerador. A segunda série de Príncipes do Nada terá a mesma linha da primeira? Claro. No fundo, pretendo homenagear as pessoas que trabalham nas ONG, muitas delas voluntárias, outras quase voluntárias. Mas esta terá por subtítulo Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Quero dá-los a conhecer melhor, porque as pessoas ainda não perceberam muito bem o que é isto que os Estados assinaram e é suposto atingirmos até 2015. Suposto? Sim, porque estamos mesmo muito aquém. Em Moçambique, por exemplo, África21– julho 2009 7 MANUEL DE ALMEIDA/LUSA a coisa mais chocante e mais visível é a sida, que está a ser catastrófica. E não é por falta de apoios financeiros, porque há imensos apoios nesta área. Os retrovirais estão a ser administrados porque há esse dinheiro. O que tem falhado é a prevenção. E neste momento são milhões as crianças órfãs. Milhões! E os jovens que vingam, a partir dos 20 morrem. São necessárias infra-estruturas para acolher todas aquelas crianças. Durante a viagem que fiz agora a Moçambique fui à Namaacha e acompanhei os Médicos do Mundo, com quem assisti ao tratamento de uma família composta por um pai, mãe e duas filhotas. O pai de 32 anos com sida, a mãe de 22 anos com sida, a criança de cinco anos com sida e ainda faltava fazer o teste à criança de nove meses. No meio de uma tabancazinha e uma hortinha, que era o que lhes valia, uma machambazita que tinha alfaces, uma capoeira com três ou quatro galinhas, e estavam a assar um rato do campo para o almoço. Quando cheguei, a primeira coisa que vi e assinalei aos Médicos do Mundo foi a mãe a dar de mamar ao bebé. Perguntei: «mas como é que é isto?». Foram fazer o tratamento de retrovirais a cada um, mas não há esclarecimento às mães para não da- 8 “ rem de mamar, porque os homens dizem logo que não. Entrevistei o pai e ele disse-me que não tinham comida, que não tinha para ele nem para a outra filha, e disse-me mesmo: «eu prefiro que ela morra mais tarde do que morra agora». É constrangedor! operadas Adquire-se um novo olhar sobre o Mundo? Totalmente. Às vezes, só consigo partilhar o que vejo com as duas pessoas com quem vou: o Ricardo Freitas, produtor do programa, e o Hugo, que é repórter de imagem. Muitas vezes, as imagens que selecciono e o texto que escrevo não reflectem tudo o que vi, que vivi, que senti. É tudo tão intenso, que não consigo. Muito menos consigo contar, quando chego. Não é por bondade, não é para as pessoas dizerem que somos bonzinhos, não! Isto é mesmo uma urgência. Custa-me muito, nem consigo explicar quanto, que tudo isto seja um contraste tão grande no Mundo. Em Moçambique, nos arredores de Maputo, há uma ONG chamada Reencontro cujo trabalho é sobretudo dirigido para crianças e jovens órfãos da sida e na qual trabalha uma enfermeira reformada chamada Olinda que tenta reintegrálos. Dá-lhes famílias substitutas, promove- ‑lhes a educação, a saúde, enfim, é um trabalho excepcional. São sete mil jovens que usufruem disto que ela lhes dá com poucas condições. E uma das coisas que ela faz, de vez em quando, é construir umas casinhas para as crianças que podem viver com os irmãos mais velhos. Ela mostrou-me uma dessas casas: a irmã mais velha estava na escola, a tal que chefia a casa com 16 anos, mas falei com a de 12 e com um miúdo de nove. Ainda havia uma bebé. Perguntei se ela sabia ler e disse: «já». «Já sabes ler, Zé?», «Tou quase»… Continuei a conversar e ele começou a querer pedir-me qualquer coisa, baixinho: «Sabes o que é que eu queria? Que me ajudasses para as explicações». Ele não me pediu comida. É comovente, também, como a fome de aprender pode superar a fome da comida. Outra dificuldade vai ser explicar aos meus filhos isto tudo. O gerador em Gabú já funciona e assim houve mulheres que não morreram porque foram ” SER SOLIDÁRIA Prestes a completar 37 anos, Catarina Furtado é muito mais do que «a namoradinha de Portugal», como ficou conhecida depois de ter apresentado o programa Chuva de Estrelas, da SIC. Filha do jornalista Joaquim Furtado e da professora de Artes Visuais Helena Furtado, conjuga na perfeição a paixão do pai pela denúncia criteriosa com o voluntarismo de uma mãe que durante anos a fio optou pelo Ensino Especial. Formada em Dança pelo Conservatório Nacional de Lisboa, decidiu, quando o seu rosto e simpatia eram já largamente famosos, frequentar, durante dois anos (1995-97), a London International School of Acting. Apresentadora e actriz, tem demonstrado, através da sua profissão, mas também enquanto embaixadora da Boa Vontade, a inteligência, profundidade e nobreza de carácter de que é detentora e que estão muito para lá da sua inquestionável beleza física. Um verdadeiro caso raro. julho 2009 – África21 ACORDO UE-ÁFRICA OCIDENTAL ASSINADO EM OUTUBRO A União Europeia e a região da África Ocidental decidiram avançar com negociações para a conclusão do Acordo de Parceria Económica regional. Em Outubro deste ano, os dois blocos assinam os instrumentos que vão corporizar o acordo, abrangendo áreas como o comércio de mercadorias e a cooperação para o desenvolvimento. A Comissária do Comércio, Catherine Ashton, e o Comissário do Desenvolvimento, Louis Michel, encontraram-se com os presidentes das organizações regionais CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) e UEMOA (União Económica e Monetária da África Ocidental), bem como com vários ministros de países da região, tendo ambas as partes reafirmado o seu empenho em avançar no processo de construção de uma parceria duradoura entre a UE e a África Ocidental. 10 julho 2009 – África21 VIOLÊNCIA CONTRA MULHER MOBILIZA POPULAÇÃO NA PRAIA Ao contrário do pouco público que habitualmente se reúne por alguma causa cívica ou social, desta vez a população da Praia aderiu em grande número ao apelo para se manifestar contra a violência e clamar por justiça, na sequência das mortes de duas irmãs, uma de 25 anos e outra de 13, assassinadas à facada, quando se encontravam em casa a dormir. O autor dos crimes, o ex-namorado da mais velha, foi detido pouco tempo depois. Um grupo de amigos das jovens organizou a marcha, silenciosa, a partir da casa das vítimas, no bairro da Achadinha, passando pelo centro histórico da cidade, e dirigindo-se ao Palácio do Governo, onde terminou a concentração. Abundavam faixas e cartazes pedindo justiça e apelando contra a violência. «Entre marido e mulher, temos de meter a colher», lia-se numa das faixas empunhadas por manifestantes – homens e mulheres. A iniciativa recebeu o incentivo do Instituto Cabo-Verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG). Este organismo governamental, segundo a sua presidente, a socióloga Cláudia Rodrigues, presente na marcha, pretende ver alterada, até 2011, a legislação actual sobre a violência baseada no género, de forma a torná-la um crime público. Ao ver passarem os manifestantes, numa roda de engraxadores na praça central da cidade, alguém dizia: «Não prenderam o assassino? Então já estão tomadas todas as providências, para quê marcha?». Foi também contra esse tipo de indiferença que se desfilou na Praia. LULA CONVIDADO DE HONRA NA CIMEIRA DA UA O Presidente brasileiro, Lula da Silva, foi o convidado de honra da 13.ª cimeira da União Africana (UA), que se realizou em Sirte, Líbia, nos três primeiros dias deste mês e à qual África21 dará eco na sua próxima edição. O convite, enfatizou o secretariado da UA, com sede em Addis Abeba, capital da Nigéria, é «uma homenagem à atenção especial que o presidente Lula dedicou à África e às relações entre África e América do Sul». O secretariado da UA quantificou este interesse mútuo, sublinhando que com Lula da Silva na presidência brasileira, o comércio com os vários países africanos com quem o Brasil tem relações comerciais aumentou 415% desde 2002. Salientou ainda um outro aspecto que aproxima o paíscontinente sul-americano do continente africano: o Brasil «é o país onde vivem mais descendentes de africanos fora da África». DR GLÁUCIA NOGUEIRA A ntena 21 África21– julho 2009 11 ZENAWI ANUNCIA A RETIRADA No poder desde 1991, o primeiro-ministro etíope, Meles Zenawi, anunciou a intenção de renunciar ao cargo e abandonar a política activa antes das próximas eleições legislativas, previstas para 2010, e apelou aos líderes africanos da sua geração a seguir o seu exemplo, para deixar o lugar aos mais novos. Zenawi invoca razões de saúde e um grande cansaço como motivos da retirada, mas a oposição etíope considera que a verdadeira razão é o desejo de evitar uma derrota política humilhante. As eleições de 1995 foram caóticas e deram lugar a violentas manifestações que causaram dezenas de mortos, obrigando o partido no poder a rectificar os resultados e a confirmar a eleição de 176 deputados da oposição, em vez dos 12 inicialmente anunciados. Mesmo assim, a Coligação para a Unidade e a Democracia (que conquistou todos os mandatos da província de Addis Abeba) acusou o Governo de lhe ter roubado a vitória. Segundo a Constituição, o primeiro-ministro é quem exerce o poder. O Presidente, eleito pelo Parlamento, tem um papel meramente protocolar. As milícias de Al Shabab, suspeitas de pertencer à nebulosa da Al-Qaida, estão à beira de tomar o controlo de Mogadíscio, onde os combates fizeram mais de 250 mortos em Junho e provocaram o êxodo de mais de 150 mil civis. O Presidente Sheik Sharif Ahmed lançou a 20 de Junho um dramático apelo aos países africanos para que enviem de emergência reforços para a força de paz da União Africana, que dispõe apenas de 4700 homens em vez dos 8000 prometidos. Reunidos em conclave extraordinário em Sirte, à margem da cimeira da União Africana, os países vizinhos prometeram aumentar as ajudas à Somália, mas até agora o único apoio efectivo veio dos Estados Unidos que forneceram mais de 40 toneladas de armas e munições às forças governamentais. LUSA DAVID T. JAFFE/LUSA Meles Zenawi está cansado do poder MOGADÍSCIO CERCADO POR ISLAMISTAS RADICAIS A capital da Somália está em ruínas LUSOFONIA EM COIMBRA As literaturas de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe e as suas relações com a história, política, conhecimento e poder, foram tema de um colóquio internacional realizado em meados de Junho último em Coimbra. Organizado pelo Centro de Estudos Sociais (CES), o evento reuniu numa mesa redonda alguns dos escritores daqueles países, entre os quais os cabo-verdianos Dina Salústio e Joaquim Arena, a guineense Odete 12 julho 2009 – África21 Semedo e a são-tomense Conceição Lima. Estas duas últimas poetas, cronistas da África21 desde a primeira edição. Para a organizadora, Margarida Calafate Ribeiro, a iniciativa permitiu revisitar os grandes momentos das literaturas de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, reflectir sobre a importância da ficção e da poesia como espaço de conhecimento; das relações da literatura com a história e a política; e das relações da literatura com o conhecimento e o poder. Foi igualmente ocasião para colocar em diálogo os actores principais da produção estética e crítica destas literaturas: escritores, críticos nacionais, críticos portugueses e críticos estrangeiros que trabalham sobre estas literaturas. Em 2007, o CES realizou o I Ciclo de Colóquios-Curso Internacionais dedicado ao estudo das Literaturas de Angola e Moçambique. NÚMEROS SAÚDE PÚBLICA EM CABO VERDE É TEMA DE LIVRO Políticas de Saúde em Cabo Verde na década de 19801990 -Experiência de Construção de um Sistema Nacional de Saúde descreve e analisa a construção do sistema de saúde pública cabo-verdiano no pós-independência. O sistema criado naquela altura – caracterizado pela gratuidade e prioridade à saúde materno-infantil – teve grande impacto na redução da mortalidade precoce e na elevação da esperança de vida ao nascer, colocando Cabo Verde entre os países pobres com melhor desempenho na melhoria das condições de saúde da população. A obra, partindo das características locais e dos aspectos estruturais e económicos que contextualizam o período analisado, avalia o desempenho de indicadores como cobertura vacinal, nutrição, atendimento à gestante, entre outros, no sentido de apreciar as políticas de saúde adoptadas. Editado pela Universidade de Cabo Verde, o livro resulta da tese de mestrado – defendida na Fundação Oswaldo Cruz, Brasil – do médico especialista em saúde pública António Pedro da Costa Delgado. Para além do seu país natal, que elegeu como tema, para além de ter sido um actor da construção do sistema que descreve, Delgado desempenhou funções, na Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe, como funcionário da Organização Mundial de Saúde. Colocado no Gabão, no âmbito desta organização, é actualmente responsável pelo apoio ao desenvolvimento dos sistemas de saúde dos 11 países da África Central. ACORDO PARA PATRULHA CONJUNTA DO ESPAÇO MARÍTIMO DR Cabo Verde e Grã-Bretanha vão fazer fiscalização conjunta do espaço marítimo do ar quipélago. Um acordo nesse sentido foi assinado em Junho pela ministra cabo-verdiana da Defesa, Cristina Fontes, e pelo embaixador da Grã-Bretanha em Dacar, Christopher Trott, o que vai permitir a realização de operações de vigilância e patrulhas conjuntas de luta contra o narcotráfico nas águas territoriais cabo-verdianas e na zona circundante do Oceano Atlântico. O memorando prevê ainda o embarque de agentes da Guarda Costeira e da Polícia Judiciária cabo-verdianas para operações em navios da Royal Navy e da Royal Fleet Auxiliary, os dois ramos da marinha de guerra do Reino Unido. O acordo vai regular as missões conjuntas de fiscalização, de modo a garantir a estabilidade na região, através de um reforço da fiscalização, vigilância e reacção a ilícitos. «Este memorando inscreve-se nesta ideia de parceria estratégica para combater os tráficos de todo o tipo e o narcotráfico em especial», afirmou Cristina Fortes, acrescentando que o memorando com a Grã-‑Bretanha se inscreve no quadro da parceria especial, na construção do pilar Segurança e Estabilidade. O arquipélago já assinou acordos semelhantes com outros países europeus, nomeadamente a Espanha e Portugal. De igual modo, está em preparação um acordo do Navio patrulha da Royal Navy género com os EUA. 1813 mil dólares é quanto a norte-americana Jammie Thomas-Rasset terá de pagar à indústria discográfica por ter partilhado ilegalmente 24 músicas na internet 950 milhões de dólares é a linha de crédito chinesa disponibilizada ao Zimbabwe, anunciou o primeiro-ministro Morgan Tsvangirai 73 milhões de dólares é o auxílio de emergência ao Zimbabwe prometidos pela Administração Obama 20 milhões de minas terrestres existem no Iraque segundo a Unicef, que alerta para o milhão de crianças em perigo 110 mil casas começarão a ser construídas em Agosto numa parceria público/privada em Angola, anunciou o ministro do Urbanismo e Ambiente, José Ferreira 40 mil pessoas morreram no continente africano em 2007 devido à poluição do ar 50 dos 229 estrangeiros detidos na base naval de Guantanamo serão julgados nos EUA 25% diminuiu em 2008 o conjunto dos super-milionários, aqueles que têm pelo menos 30, 9 milhões de dólares disponíveis para investir, noticia o Financial Times 1,2 dólares contribui cada habitante britânico para as despesas da família real África21– julho 2009 13 PAULO CUNHA/LUSA INTERNET DAS COISAS A Europa prepara-se para uma nova revolução da internet. A evolução tem sido super-rápida. Se há 25 anos ligava pouco mais de um milhar de utilizadores, hoje, cerca de 1,5 milhões de pessoas em todo o mundo estão ligadas entre si graças às novas tecnologias. O europeu comum possui actualmente, pelo menos, um objecto ligado à internet, seja um computador ou um telemóvel. Mas o número de dispositivos ligados praticamente invisíveis, mais complexos e mais móveis, multiplicar-se-á cem ou mesmo mil vezes nos próximos cinco a quinze anos. A Comissão Europeia anunciou um conjunto de 14 acções destinadas a garantir que a Europa assuma um papel proeminente na configuração dessas novas redes de objectos interligados, que incluem desde livros a automóveis, de aparelhos eléctricos a alimentos: Em suma, a nova «internet das coisas». O plano de acção da União Europeia tem como objectivo que os europeus beneficiem desta evolução e, ao mesmo tempo, vai procurar responder aos desafios decorrentes desta nova realidade e que têm a ver com o respeito da vida privada, a segurança e a protecção dos dados pessoais. Mariano Gago espreita no telescópio por controlo remoto EUREKA ABERTA A PAÍSES NÃO-EUROPEUS As novas tecnologias criam pontes entre milhares de milhões de pessoas 14 julho 2009 – África21 TANDJA QUER FICAR NO PODER A TODO O CUSTO O Presidente do Níger Mamadou Tandja, cujo segundo e último mandato termina em Dezembro próximo, dissolveu o Tribunal Constitucional que, por três vezes, se opôs à sua vontade de convocar um referendo para alterar a Constituição de forma a poder concorrer às próximas eleições. Anteriormente e pela mesma razão, Tanja dissolveu o Parlamento. Alegando que a unidade e a soberania do Níger estava em perigo, o Presidente outorgou-se poderes excepcionais, o que equivale à proclamação do Estado de Emergência. A Comunidade dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) ameaçou tomar sanções contra o Níger se a normalidade institucional não for restabelecida. ISSOUF SANOGO/LUSA RENS VAN MIERLO/LUSA A rede de cooperação europeia em investigação científica Eureka vai alargar-se a países não-europeus, segundo o ministro português da Ciência, Mariano Gago, no fim de um ano de presidência portuguesa em que foram aprovados 278 novos projectos, um aumento de 11% em relação ao ano anterior, envolvendo um investimento público e privado de 38 milhões de euros (52,7 milhões de USD). Portugal, que passou a pasta da presidência à Alemanha, anunciou que a Coreia do Sul – uma das economias mais importantes da Ásia – vai passar a ser membro da rede Eureka, tendo o ministro referido que outros países como o Brasil, Argentina, Egipto, Singapura e África do Sul também pediram para ser associados da iniciativa lançada em 1985. Apesar da expansão, Mariano Gago rejeitou que a rede possa perder o seu carácter europeu, assegurando que nunca haverá projectos Eureka sem parceiros europeus. A Europa, na sua perspectiva, não é entendida como uma fortaleza fechada. ZUELÓDROMO SHELL ADMITE RESPONSABILIDADES NA MORTE DE SARO-WIWA STEFAN ROUSSEAU/LUSA Principal companhia exploradora de petróleo na Nigéria e oitavo exportador mundial, a Shell atravessa uma fase crítica no país. Depois de 13 anos de litigância, com o caso à beira de julgamento num tribunal norte-americano, a Shell aceitou um acordo extrajudicial com os familiares dos oito mártires do povo ogoni, entre eles o escritor Ken Saro-Wiwa. A Shell concordou pagar-lhes 15,5 milhões de dólares. O conflito data do início da década de 1990, quando a etnia ogoni, composta por meio milhão de pessoas, radicada à beira da foz do rio Níger, protestou contra o modo como a Shell punha e dispunha na região, em detrimento dos seus interesses seculares. A contestação incidiu sobre os atentados ambientais que a exploração petrolífera estava a produzir e que na opinião dos líderes representava um crime de lesa-natureza. O escritor nigeriano Saro-Wiwa tornou-se na face mais visível deste movimento de protesto, que ganhou o apoio da esmagadora dos ogonis e suscitou a simpatia das organizações ambientais. Em 1994 chegaram os confrontos, com os ogonis a reclamarem serem consultados sobre as regalias concedidas à Shell e a reclamar direito de indemnização pelos danos causados. No decorrer de um desses confrontos um dos representantes do Governo central foi morto, em circunstâncias nunca apuradas. Em todo ocaso, para Sani Abacha, o general que mandava no país, a culpa ficou estabelecida. Tratava-se de um acto dos líderes ambientalistas ogonis. Foram presos e enforcados em 1995 (ver África21 de Junho). O pagamento da indemnização, disse a Shell em comunicado, constituiu um «gesto humanitário» da sua parte e faz parte de um «processo de reconciliação» com as populações locais. “Angola vai ser um dos grandes actores políticos e económicos do continente africano” THIERRY TANOH, vice-presidente da International Finance Corporation “É necessário dar ao Zimbabwe uma oportunidade para a paz e o desenvolvimento. Queremos apelar aos líderes mundiais para que ponham fim às sanções” NKOANA-MASHABANE, ministra sul-africana das Relações Exteriores “Queremos progressos claros em certos pontos de fricção no âmbito do acordo político [com o Zimbabwe], por exemplo no domínio dos média e direitos do homem” LOUIS MICHEL, comissário europeu da Ajuda ao Desenvolvimento “O VIH constitui um problema nacional. Neste momento, a tendência mostra que a pandemia está a subir cada vez mais” ISAÚ MENESES, presidente da comissão parlamentar moçambicana de combate à sida “Mesmo que se coloquem os bancos em camisas de força, não se irá impedir que os mercados se lancem até valores absurdos” EDMUND PHELPS, norte-americano, Prémio Nobel da Economia em 2006 “O que Portugal deixou no mundo de mais fecundo, de mais singular, foi a língua” ANTÓNIO PINTO RIBEIRO, ministro português da Cultura A viúva Maria Saro-Wiwa (à direita) numa acção de protesto diante do Centro Shell, em Londres TIMOR-LESTE PEDE MAIS PROFESSORES Timor-Leste quer o aumento do número de professores de português no território. O pedido foi formulado em Braga, por Kirsty Sword Gusmão, presidente da Fundação Alola, no âmbito da visita que efectuou a Portugal em Junho. A mulher do primeiro-ministro timorense manifestou-se esperançada num possível reforço do contingente de docentes no país. «O nosso primeiro-ministro e o ministro da Educação têm pedido o aumento do número de professores que estão no terreno mas não sei se vai ser possível, por razões orçamentais», afirmou, certa de que serão encontradas outras soluções para dar resposta ao pedido das autoridades timorenses. É que ainda há poucas pessoas a falarem português, e, segundo Kirsty Gusmão, é necessário formar professores, mas também a juventude, funcionários púbicos, jornalistas e mesmo os líderes políticos. “O Ministério [português] da Cultura tem uma verba ridícula para fazer o que quer que seja” JOSÉ SARAMAGO, Prémio Nobel da Literatura “Se não encontrármos rapidamente a maneira de travar e inverter a subida dos preços dos alimentos haverá [em África] um importante aumento da fome e da mortalidade infantil” KOFI ANNAN, Ex-secretário-geral da ONU “Para o Brasil, África é o mercado do futuro” MIGUEL JORGE, ministro brasileiro do Desenvolvimento e do Comércio Externo África21– julho 2009 15 16 julho 2009 – África21 LUSA ANGOLA Crescimento, dúvidas e «namoros» N o ano 2000, a inflação angolana estava em 268 por cento. Em oito anos, baixou para 13 por cento. Ao mesmo tempo, Angola tornou-se um dos países de maior crescimento do mundo. As políticas adoptadas pelo Governo para lograr a estabilidade macroeconómica e o impressionante crescimento registado nos últimos anos mereceram elogios de toda a parte. O que poucos recordam, hoje, é que essas políticas foram estabelecidas e executadas contra os conselhos das principais instituições económicas internacionais, como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial. A propósito, um dos quadros mais reputados do país, Aguinaldo Jaime, observou que, qualquer dia, será necessário escrever a história das complexas e difíceis relações de Angola com as organizações de Breton Woods. Presentemente, essas e outras instituições voltam a fazer prognósticos pessimistas sobre o futuro da economia angolana, no contexto da actual crise global, de que nenhum país do mundo está a salvo. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), por exemplo, juram que em 2009 Angola terá um crescimento negativo de seis a sete por cento (mais tarde corrigido para menos quatro por cento). A maioria dos economistas locais desconfia dessas previsões, consideradas superficiais e limitadas, uma vez que as mesmas assentam exclusivamente no comportamento dos preços do petróleo – principal produto de exportação do país – no mercado internacional. O Governo vai mais longe e assegura que, este ano, Angola registará um crescimento positivo de seis por cento. «Os funcionários dessas organizações precisam de vir a Angola», disparou o ministro das Finanças, Severim de Morais. De notar que um estudo da Universidade Católica confirma que o país vai crescer positivamente este ano, mas, de acordo com a referida entidade, apenas de um a três por cento. Nas páginas seguintes, África21 disseca as perspectivas de evolução da economia em Angola no curto prazo. Em artigos assinados pelo nosso director e pelos nossos colaboradores nossos colaboradores Alberto Sampaio, Pedro Kamaka e Emanuel Alvarenga, reportamos a revisão do Orçamento Geral do Estado actualmente em debate na Assembleia Nacional, as recentes e polémicas medidas monetárias tomadas pelas autoridades (já noticiadas na nossa edição do mês passado) e a autêntica peregrinação internacional a Luanda de dirigentes e empresários de todos os cantos do mundo, em busca de parcerias e negócios – o que, por si só, é um sinal de que as visões pessimistas talvez não tenham muita razão de ser. África21– juLHo 2009 17 Orçamento revisto mantém crescimento No dia 28 de Julho a Assembleia Nacional de Angola vai votar o Orçamento Geral (OGE) de 2009 revisto. Apesar de um corte de 17,5% em relação à versão aprovada pelos parlamentares no final do ano passado, o OGE mantém uma perspectiva de crescimento de 6,1% (contra os 11,8 % anteriores). O sector petrolífero registará um crescimento negativo de 6,6%, mas a boa notícia é que o sector não-petrolífero deverá crescer 14,6%. João Melo O total de Receitas e Despesas previstas pelo Governo em 2009, de acordo com a versão revista do OGE, é de 3986,7 mil milhões de kwanzas, o que equivale a 50 mil milhões de dólares. A primeira versão previa um total de receitas e despesas de 5235,2 mil milhões de kwanzas, ou seja, 65 mil milhões de dólares. A revisão em baixa do orçamento deve-se, segundo avançou o primeiro-ministro, Paulo Kassoma, na apresentação do documento aos parlamentares, a 25 de Junho, aos seguintes quatro factores: redução do valor dos activos angolanos no estrangeiro; quebra das receitas petrolíferas e diamantíferas; redução dos fluxos financeiros do exterior; e pressão sobre as reservas cambiais do país. Em relação aos activos angolanos no estrangeiro, e talvez contraditoriamente, o ministro das Finanças, Severim de Morais, garantiu que Angola não fez aplicações em produtos de risco. «Logo após o início da crise financeira, o Governo analisou os activos do Estado no exterior e chegou à conclusão de que não foi afectado nenhum», disse ele. Devido a essas aparentes contradições, alguns observadores acham necessário que as autoridades expliquem convincentemente o que significa a 18 julho 2009 – África21 «redução do valor dos activos angolanos no exterior» invocada como uma das razões para a revisão do Orçamento Geral do Estado. Para muita gente, os investimentos externos do Estado angolano, incluindo o das empresas públicas, como a Sonangol, estão envoltos em demasiado mistério. A redução dos fluxos financeiros do exterior deve-se ao facto de, como observou recentemente o Banco Mundial, o mercado de crédito internacional estar «praticamente parado», o que afecta todos os países. A única hipótese de contornar a situação é o recurso às linhas de crédito bilaterais, o que as autoridades angolanas têm sido bastante competentes em conseguir. A pressão sobre as reservas cambiais do país é comprovada pelos números: de 31 de Dezembro de 2008 a 15 de Maio de 2009, as reservas baixaram quase 5,5 mil milhões de dólares, passando de 18,5 mil milhões para 13 mil milhões de dólares. Isso parece ter gerado o pânico entre as autoridades políticas e económicas, provocando uma série de consequências, que ainda não terminaram. A demissão do governador do Banco Nacional de Angola, Amadeu Maurício, e as políticas monetárias restritivas adoptadas pela nova equipa económica no segundo trimestre deste ano são as conse- LUSA DR quências mais visíveis dessa pressão. Mais perversos e susceptíveis de agravar a desconfiança do mercado são os boatos e intrigas, as informações desencontradas e as decisões erráticas do Governo, diante das críticas suscitadas pelas suas medidas restritivas. Como se isso não bastasse, parece que as autoridades se preparam para cometer aquilo que numerosos economistas consideram «um revés»: retirar a autonomia do Banco Nacional de Angola. De qualquer forma, e acima de tudo isso, a principal razão para a necessidade de rever o orçamento foi a diminuição dramática das receitas petrolíferas e diamantíferas. No primeiro caso, o impacto é duplo: além da queda do preço, o país também teve de baixar a sua produção, por causa do seu engajamento na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que preside actualmente. Assim, em seis meses, as receitas petrolíferas baixaram de 1,2 mil milhões por mês para apenas 400 milhões de dólares. Por esse motivo, o OGE revisto foi calculado à base de 37 dólares o preço do barril de petróleo, contra os 55 dólares aprovados em Novembro do ano passado (e muito longe dos 140 dólares alcançados em Julho de 2008). Petróleo, défice e transparência As autoridades reconhecem que a fixação do preço do barril de petróleo nos 37 dólares, para efeitos de elaboração do orçamento, corresponde a uma estratégia conservadora. «Isso permite-nos uma maior margem de gestão interna, pois o preço do petróleo é gerido no mercado internacional, o que o Governo não controla», afirmou a ministra do Planeamento, Ana Dias Lourenço. No momento em que este artigo é escrito, o petróleo está a ser comercializado a perto de 70 dólares, prevendo alguns analistas que o seu preço médio, no final do ano, se venha a situar entre os 50 e os 60 dólares. Isso está ligado à questão do défice fiscal, que o OGE revisto prevê seja de 14,7 por cento do Produto Interno Bruto (PIB). É um número elevado, ao contrário dos últimos anos, quando o mesmo esteve sempre perto do zero. Conforme disse à África21 um antigo ministro das Finanças, um preço do petróleo menos conservador permitiria diminuir o défice previsto. África21– julho 2009 19 OS NÚMEROS DO ORÇAMENTO “ A educação e a saúde continuam a levar a maior fatia do OGE revisto ” VERSÃO INICIAL VERSÃO REVISTA Taxa de inflação anual 10% 12,5% Produção petrolífera anual 739,7 milhões de barris 653,4 milhões de barris Preço de referência do petróleo 55 USD/barril 37 USD/barril Valor nominal do PIB 5.796 mil milhões de kwanzas 5.144,7 mil milhões de kwanzas Taxa de crescimento do PIB 11,8% 6,1% Taxa de crescimento do sector petrolífero 5,9% - 6,6% Taxa de crescimento do sector não-petrolífero 16,3% 14,6% Receitas 2393,2 mil milhões de kwanzas 1615,2 mil milhões de kwanzas As autoridades dizem que a cobertura do défice será feita mediante financiamentos internos e externos, amortização de empréstimos concedidos, venda de activos e reservas do Tesouro. Mas aquela fonte notou que, por exemplo, existe uma diferença de timing entre a provisão do orçamento por parte de receitas próprias e por intermédio de linhas de crédito, pois há sempre um hiato entre a contratação destas últimas e a sua efectiva disponibilização. Quer dizer: a primeira é sempre imediata e a segunda é diferida no tempo. Outra questão que se prende com este ponto é o que será feito do provável diferencial entre os 37 dólares adoptados como a base fixada pelas autoridades para a elaboração do OGE revisto e o preço médio real do petróleo no final do ano. Isso tem uma vertente económica e outra política. O economista José Cerqueira, por exemplo, interroga-se se o Governo «continuará a gastar centenas de milhões de dólares por semana para defender a taxa de câmbios». A sua dúvida coincide com o ponto de vista de outros economistas, segundo os quais não faz muito sentido, economicamente, tentar proteger a moeda nacional utilizando massivamente as reservas nacionais. Para eles, a fragilidade do kwanza resulta da inexistência de uma produção interna significativa. Quanto ao aspecto político da questão, a oposição, sobretudo, tem tentado levantar suspeições sistemáticas em relação à maneira como o Governo utilizará as eventuais receitas adicionais resultantes da exploração petrolífera. O ministro das Finanças, Severim de Morais, esclareceu que essas receitas 20 julho 2009 – África21 serão canalizadas para o Tesouro Nacional, a fim de serem utilizadas quando forem necessárias. África21 soube que o Governo criará para isso um Fundo de Reserva do Tesouro Nacional. De notar que o primeiro-ministro, Paulo Kassoma, assumiu perante os deputados um compromisso geral com a transparência e o rigor na execução do Orçamento Geral do Estado. Desde logo, disse, o Governo pretende «melhorar a programação física e financeira dos investimentos públicos, de forma a tornar o processo mais racional e eficiente». Kassoma comprometeu-se em particular a «cumprir rigorosamente a lei no que diz respeito à contratação, realização, controlo, acompanhamento e fiscalização das obras públicas». Na verdade, muitos observadores locais consideram que as obras públicas são um dos escoadouros dos recursos nacionais. Além das suspeitas de sobrefacturação e das obras mal fiscalizadas, chegam a ser noticiados casos de obras que são pagas antecipadamente e de forma integral e jamais chegam a ser executadas. Alguns responsáveis, em especial nas províncias, têm-se queixado disso à imprensa. Contudo, não há notícia de nenhum suspeito que tenha sido levado a tribunal. Outro canal por onde, alegadamente, se têm esvaído os recursos do país são as remunerações ao funcionalismo público, aos órgãos de defesa e segurança e aos pensionistas civis e militares. Por isso, sabe-se também que o Governo vai recadastrar os funcionários públicos (incluindo professores e enfermeiros), agentes policiais e militares e todos os beneficiários de pensões e assistidos pelo “ Governo está comprometido em aumentar a transparência e a boa governação ” jornal de angola Instituto Nacional de Segurança Social, Serviços de Antigos Combatentes e Veteranos de Guerra e Caixa de Segurança Social das Forças Armadas. No quadro dos esforços para aumentar a transparência governativa, as autoridades aprovaram, em meados do mês passado, um projecto electrónico designado Rede Privativa do Estado, que visa melhorar a eficácia da prestação de serviços da administração pública e a redução das respectivas despesas. Esse projecto faz parte do Programa de Governação Electrónica de Angola. Desde 2002, está igualmente em execução um Programa de Modernização da Gestão das Finanças Públicas, no âmbito do qual foi implementado o Sistema Contabilístico do Estado. Um dos componentes deste último é o Sistema Integrado de Gestão Financeira, totalmente informatizado. A oposição tem exigido ainda a apresentação da Conta Geral do Estado por parte das autoridades. O ministro das Finanças adiantou que o Governo está a fazer esforços para apresentá-la ao Tribunal de Contas no fim deste ano. Será a primeira vez que acontecerá em toda a história de Angola. “ As previsões internacionais de uma recessão em Angola são consideradas superficiais e limitadas ” lusa Severim de Morais, ministro das Finanças servação da estabilidade continua a ser a preocupação crucial das autoridades. A melhoria da regulação económica e da concorrência é outro objectivo nesse plano. Além da redução da expectativa de crescimento do PIB de 11,8 por cento para 6,1 por cento e do défice fiscal de 14,7, a estimativa de inflação sofreu um pequeno aumento, de 10 por cento na versão inicial do OGE para 12,5 por cento na versão revista. A possibilidade de preservação do actual valor do kwanza é uma das incógnitas macroeconómicas que os próximos tempos deverão esclarecer. Alguns economistas consideram que será praticamente impossível evitar a sua desvalorização. África21 apurou que o Governo pretende estabilizar as reservas nacionais em torno dos 22 mil milhões de dólares (no início de Junho estavam à volta dos 17,5 mil milhões), o que poderá levar ao abandono da política de usá-las para segurar a moeda nacional. A verdade é que, de Janeiro a Maio deste ano, a taxa de câmbio já se tinha depreciado 3,5% no mercado formal e 8,5% no mercado informal. No domínio das políticas sectoriais e do desenvolvimento do território, o objectivo principal do Governo é a melhoria da qualidade de vida das populações. Por isso, o sector social (educação e saúde) continua a ser aquele ao qual foi atribuída a fatia maior do orçamento: 33,3%, o que representa uma diminuição de exíguos 1,3% em relação ao orçamento anterior. O Governo decidiu também actualizar periodicamente os salários da função Prioridades e ajustamentos A revisão em baixa do orçamento não alterou grandemente as prioridades do Governo para o ano em curso. No plano macroeconómico, a preÁfrica21– julho 2009 21 “ Medidas monetárias restritivas podem frustrar intenções do Governo jornal de angola ” pública, para protegê-los da inflação. As despesas da administração pública foram mantidas em 28,9%. Os encargos financeiros aumentaram 2,7%, passando para 11%. O sector da defesa, segurança e ordem interna – por causa dos incrementos salariais do pessoal – subiu cerca de três por cento, passando para 17,58 por cento. O sector económico foi o mais atingido pelos cortes, diminuindo de 14,7% para 9,3%. Isso deve-se principalmente aos reajustamentos efectuados pelo Governo no domínio dos investimentos públicos, mantendo aqueles que já têm financiamentos assegurados, mas alargando os prazos de execução dos demais, para que o respectivo pagamento caia no exercício dos próximos anos. Quanto a novos empreendimentos, serão priorizadas as áreas da energia e águas. Economistas que falaram à África21 fizeram notar, entretanto, que a fatia atribuída no OGE revisto para os projectos públicos corresponde mais ou menos ao grau de realização efectiva dos referidos projectos nos anos anteriores. Segundo Novos projectos só nas águas e energias 22 julho 2009 – África21 eles, o grau de execução física dos empreendimentos públicos tem sido sempre inferior à sua estimativa orçamental. É por não levar isso em conta que organizações como o Banco Mundial fazem previsões acerca do crescimento negativo da economia angolana em 2009, observou, por exemplo, Alves da Rocha (essas estimativas levam ao pé da letra a diminuição dos investimentos públicos no país). O exercício orçamental que o Governo pretende realizar este ano foi resumido assim pelo primeiro-ministro Paulo Kassoma: «Precisamos de gerir com rigor o que existe, com prioridade para o pagamento das despesas que não podem ser adiadas, mas mantendo a estabilidade macroeconómica, assim como o funcionamento normal da administração pública e a execução dos programas executivos fundamentais». Kassoma garantiu ainda que «a crise vai levarnos a desenvolver outras iniciativas, sobretudo económicas e políticas, no sentido de garantirmos a nossa independência económica, no quadro da diversificação das nossas fontes de rendimento». Tudo indica, por conseguinte, que não existem fundamentos económicos que justifiquem a hipótese de, em 2009, haver uma recessão em Angola. Além disso, a drenagem das reservas ocorrida nos primeiros meses do ano parece ter parado e o preço do petróleo voltou a subir no mercado internacional. O país aparenta ter condições, de facto, para ser um dos únicos a registar um índice de crescimento tão elevado em todo o mundo. Contudo, as recentes medidas monetárias tomadas pelas autoridades, agravadas pelas suas habituais dificuldades de comunicação, continuam a deixar o mercado perplexo e temeroso. O risco de se criar um problema de confiança é inquestionável. Os mais pessimistas receiam que se repita em Angola o que aconteceu na Argentina, onde a última grande crise foi motivada exclusiva e unicamente pela falta de confiança. A dificuldade de acesso às divisas que passou a acontecer desde o início do segundo trimestre e a tendência de atraso nos pagamentos de projectos contratados pelo Estado são sinais perturbadores, que podem fazer frustrar as boas intenções do Governo angolano. jornal de angola Aperto temporário ou regresso do «controlismo»? A continuidade do crescimento da economia angolana no ano em curso pode ser inviabilizada pelas recentes medidas monetárias do Governo, consideradas restritivas por muitos economistas e operadores económicos. O objectivo das medidas, segundo as autoridades, é estabilizar as reservas nacionais, mas os críticos acham difícil manter por muito tempo essa política de contenção. Ritmo de construção não abranda N o princípio do segundo trimestre deste ano, o Governo descobriu que 5,5 mil milhões de dólares tinham sumido das reservas nacionais de Outubro de 2008 a Março de 2009. Daí a expressão «ataque especulativo» introduzida no léxico polí tico-económico angolano (ver África21 de Junho de 2008). À falta de esclarecimentos oficiais, a especulação corre solta. Fontes próximas do partido no poder dizem que a maioria desse dinheiro foi transferida de forma indevida para o exterior em nome de grandes grupos empresariais, dos quais alguns accionistas, curiosamente, são figuras ligadas ao próprio regime. Nos bastidores, fala-se em malas de divisas levadas para o estrangeiro, para financiar operações de alguns desses grupos. É possível que essas alegações não passem de intriga para justificar certas mexidas registadas na equipa económica do Governo. Mas, eventuais fantasias Alberto Sampaio à parte, a verdade é que, naquele período, as reservas do país baixaram de cerca de 18,5 mil milhões para 13 mil milhões de dólares. Outro facto é que alguns bancos, durante os últimos anos, realizavam operações em divisas, como empréstimos e transferências para o exterior, sem justificativos, sob o olhar complacente da supervisão bancária. Pelo menos um deles «inventou» um novo rácio (?) de produtividade interna: o volume de divisas compradas ao Banco Nacional de Angola. A crise impediu que estes factos continuassem a passar despercebidos. Soou, então, o alerta. O governador do BNA, Amadeu Maurício, foi convidado a demitir-se e, em sua substituição, foi nomeado um antigo vice-ministro da Indústria, Abraão Gourgel, sem nenhuma experiência bancária, mas considerado próximo do conselheiro económico presiNação Arco-Íris, uma invenção dencial, o economista do Arcebispo DesmondArcher Tutu? Mangueira. África21– julho 2009 23 Ao mesmo tempo, as autoridades, entre outras medidas, aumentaram as reservas obrigatórias dos bancos comerciais de 15 para 30 por cento e apertaram o controlo sobre a aquisição de divisas pelos indivíduos e empresas. O BNA chegou mesmo a cancelar leilões de divisas. Coincidentemente, começaram a atrasar-se os pagamentos aos fornecedores do Estado. Generalizações e discordâncias Um alto funcionário bancário local, que preferiu o anonimato, confirmou à África21 que certos bancos realizavam operações cambiais à margem da lei, mas, segundo disse, a supervisão bancária sempre fechou os olhos a essas práticas. Ele mostrou-se especialmente agastado com o comportamento de certos administradores bancários oriundos ou provenientes de Portugal, «que desrespeitam a lei angolana». Segundo a referida fonte, alguns desses administradores deveriam ser punidos e impedidos de exercer funções de administração em qualquer instituição financeira, «como acontece até no Portugal dos brandos costumes». Note-se, entretanto, que todos os bancos que operam no país, inclusive os de origem portuguesa, têm importantes sócios angolanos. Para a fonte, o BNA cometeu um erro «muito sério» quando deixou de vender divisas ao mercado, pois transmitiu imediatamente um sinal de descon fiança. Conforme avaliou, as autoridades terão entrado em pânico por causa da súbita diminuição das reservas líquidas do país, tomando uma série de medidas generalizadas e claramente restritivas, que retrairam o mercado. A maior parte das reacções públicas às medidas monetárias do Governo, quer dos operadores económicos quer dos analistas, foi negativa. Entre elas, 24 julho 2009 – África21 avulta a da Associação dos Bancos Angolanos (ABANC), que se insurgiu contra o facto de as mesmas atingirem todas as instituições bancárias da mesma maneira, as que desrespeitavam as regras e as que as cumpriam. Outras vozes, porém, defenderam o aperto monetário introduzido pelo Governo. Uma delas foi a do presidente da influente Associação Industrial de Angola, José Severino, para quem «havia necessidade de um tratamento de choque, o crescimento do país estava orientado para sectores como a especulação na área imobiliária e o comércio». Depois de insinuar que saíram divisas do país sem entrarem mercadorias, rematou: «o Governo tem de criar mecanismos de controlo». A economista Fátima Roque, antiga dirigente da UNITA, actualmente radicada em Portugal, também defendeu as medidas governamentais. «Perante a situação de aperto financeiro em que a esmagadora maioria dos países está, Angola também não tinha outra solução», afirmou. Ela reconheceu que as referidas medidas terão reflexos negativos em relação aos investimentos, mas, acrescentou, «no curto e médio prazo, provavelmente Angola não tem mesmo outra alternativa; e terá que saber muito bem qual a altura de começar a aliviar esse aperto». “ Em seis meses, as reservas angolanas perderam 5,5 mil milhões de dólares ” Efeitos e receios A África21 falou com uma fonte próxima do Governo, que garantiu que este aperto é temporário. Contudo, muitos continuam cépticos e temerosos. Os especialistas relacionam isso com a estimativa de crescimento anunciada pelas autoridades, apesar da crise internacional. É que, ensina a teoria económica, numa fase menos boa, a política deverá ser estimular a economia e a actividade produtiva privada (a chamada «política de contraciclo»), enquanto, na fase contrária, é necessário evitar o sobreaquecimento económico. «Se o Governo angolano acha que o país vai crescer seis por cento, então a sua política económica não será de contraciclo», receia o economista Justino Pinto de Andrade. O facto, segundo diz o economista Alves da Rocha, é que os efeitos mais Para Alves da Rocha, a manter-se o clima de negócios criado pelas referidas medidas, isso poderá fomentar o reaparecimento do tráfico de influências e de práticas ilegais de obtenção dos meios necessários para o exercício da actividade económica. Entretanto, o maior receio dos operadores económicos é o re- jornal de angola imediatos das últimas medidas monetárias do Governo «têm sido desincentivar a iniciativa privada e os investimentos privados». A ABANC, note-se, já havia alertado para a limitação da capacidade de crédito dos bancos comerciais, devido ao aumento das reservas obrigatórias exigido pelo BNA. gresso da tendência de conduzir a economia de maneira administrativa. O «controlismo» é uma tentação a que os dirigentes angolanos, de um modo geral, parecem ter dificuldade em resistir, sobretudo em tempo de crise. Como que a corroborá-lo, o Presidente da República, José Eduardo dos “ As medidas monetárias do Governo têm desincentivado a iniciativa e os investimentos privados ” Segundo aquela associação, isso poderá contrariar a elogiada decisão do Governo de diversificar a economia nacional. Esta opinião foi secundada por um economista contactado pela África21, que frisou que as medidas de contenção adoptadas pelas autoridades «só afectam a economia não-petrolífera, pois o sector petrolífero, em Angola, possui um regime separado». “ BNA parece em vias de perder a autonomia ” Santos, criou, a 8 de Junho, uma comissão inter-sectorial para alterar a Lei Orgânica do Banco Nacional de Angola. O despacho que cria a referida comissão diz claramente que a medida visa «uma gestão mais adequada das reservas cambiais do país». A leitura que os operadores económicos têm feito é que o BNA está em vias de perder a sua autonomia, tornando-se uma espécie de repartição pública. Parecendo claro que as actuais medidas monetárias do Governo são restritivas, alguns analistas interrogam-se se, «no frigir dos ovos», a diminuição do investimento e da actividade económica será compensada por um aumento das reservas internacionais, as quais, explicam eles, existem para apoiar o crescimento económico. Indiferente a estas angústias, o ministro das Finanças, Severim de Morais, disse nos últimos dias do mês passado, em Lisboa, que, além de continuar a crescer este ano, Angola vai voltar a fazêlo a dois dígitos, já em 2010. África21– julho 2009 25 A nova Meca dos investimentos Apesar da crise mundial, Angola continua a ser procurada por responsáveis e homens de negócios provenientes de todos os cantos do mundo. No mês passado, norte-americanos, russos, franceses, canadenses, ingleses, italianos e brasileiros estiveram no país, em visitas de prospecção e de estabelecimento de relações de cooperação. O ministro das Finanças garante que o país não tem dificuldades de acesso ao crédito internacional. Pedro Kamaka A té o chefe de estado russo, Dmitri Medvedev, esteve em Luanda, a 26 de Junho, para tratar acima de tudo de negócios. Foi a primeira visita de um líder russo a Angola, apesar das históricas relações entre o maior país africano de língua portuguesa e a Rússia (anteriormente, União Soviética). Embora se tenha tratado de uma visita oficial de menos de 24 horas (Medvedev, não dormiu na capital angolana), os seus resultados parecem promissores. Foram assinados entre as duas delegações acordos em três áreas fundamentais para o desenvolvimento de Angola: educação (ensino superior), telecomunicações e geologia e minas. No quadro desses acordos, a Rússia apoiará a formação universitária de jovens angolanos (o que já acontecia no passado), construirá duas hidroeléctricas sobre o rio Kwanza e fabricará e colocará no espaço, dentro de três anos, o primeiro satélite angolano. Aquele país manifestou também interesse em participar nos projectos de gás desenvolvidos em Angola. A cooperação técnico-militar, outra área «tradicional» das relações entre os dois países, poderá voltar a ganhar um impulso importante. A curta visita do chefe de Estado russo a Angola serviu também para a concertação de posições no campo político-diplomático. O terrorismo, o tráfico de drogas, a imigração ilegal, a criminalidade internacional e a segurança energética estiveram no centro das conversas entre Medvedev e José Eduardo dos Santos. 26 julho 2009 – África21 Dmitri Medvedev à chegada a Luanda, a 26 de Junho, Os dois Presidentes fizeram questão de enfatizar que as relações entre Angola e a Rússia estão longe das possibilidades existentes. A questão, segundo notou o embaixador russo acreditado em Luanda, Serguey Nenachev, é que a estrutura económica dos dois países é convergente, pois ambos são grandes produtores de petróleo. O desafio, portanto, é identificar e explorar outras áreas de cooperação. Oportunidades para todos os gostos Em Junho esteve também em Angola uma comitiva do Departa mento de Comércio dos Estados Unidos, chefiada por Hea ther Ranck, cuja finalidade foi localizar oportunidades de negócios no domínio da agricultura. Executivos de duas grandes empresas norte-americanas de fornecimento de máquinas agrícolas, a Brandt e a AGCO, acompanharam Ranck. Segundo ela, há neste momento 28 empresas dos EUA interessadas em investir em Angola no sector agrícola, do fornecimento de tractores à protecção de madeiras, passando pelo armazenamento, irrigação, limpeza e protecção de sementes e lubrificantes. Justificando este interesse no momento em que a economia mundial está em dificuldades, Heather Ranck considerou que o sector agrícola é dos menos afectados pela crise. Quanto aos problemas burocráticos e outros, para se fazerem negócios em Angola, disse que «são constrangimentos, mas não difíceis de ultrapassar». MIKHAIL KLIMENTYEV/LUSA com Paulo Kassoma (à dir.) e Assunção dos Anjos (à esq.) “ Constrangimentos para fazer negócios em Angola não são difíceis de superar ” Enquanto isto, o Canadá anunciou uma nova metodologia para a utilização da linha de crédito de mil milhões de dólares que concedeu em Outubro do ano passado a Angola. Durante um seminário com empresários canadenses organizado em Luanda pela KPMG Angola e designado «Doing Business in Angola», foi revelado que serão constituídas parcerias entre empresas dos dois países a fim de utilizar a referida linha de crédito. Na ocasião, a delegação do Canadá manifestou igualmente interesse nas obras de infra-estruturas em curso em Angola, no fornecimento de energia eléctrica a Luanda e na gestão, em regime de concessão, dos caminhos-de-ferro. Uma das maiores ferrovias do mundo – a Canadian Pacific Railway – é canadense. Presentemente, as trocas comerciais Angola-Canadá superam os 2,5 mil milhões de dólares (em 2004, eram apenas de 25 milhões de dólares), sendo a balança de transacções favorável à parte angolana, graças às exportações de petróleo. «Temos de continuar a prosseguir agressivamente essa relação já robusta, especialmente em tempos de dificuldades económicas», afirmou a embaixadora do Canadá, Barbara Richardson. De igual modo, esteve na capital angolana o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros e Commonwealth, Lord Mark Brown, para conversar com as autoridades sobre as possibilidades de reforço das relações bilaterais entre Angola e o Reino Unido. De momento, essas relações abrangem os domínios do petróleo, transportes aéreos e alfândegas. Dois mil milhões de dólares, é o volume dos investimentos britânicos em Angola. Por seu turno, esteve em Angola, também no mês passado, a secretária de Estado francesa para o Comércio Externo, Anne-Marie Idrac, acompanhada por setenta empresários, para participar num Fórum de Negócios França-Angola. Sem precisar valores, a governante francesa revelou que, no próximo ano, a França vai realizar investimentos em Angola em projectos público-privados nas áreas da agricultura, construção civil, água, electricidade, portos e aeroportos. Outra visita realizada em Junho a Luanda foi a de Luca Ricardi, representante pessoal do primeiro-ministro italiano, Sílvio Berlusconi. Além do convite ao Presidente José Eduardo dos Santos para assistir, de 8 a 10 deste mês, na cimeira do G8, Ricardi anunciou a vinda a Angola, em Setembro, do vice-ministro italiano do Comércio, acompanhado por um grupo de empresários, que vêm prospectar o mercado local. Por fim, o presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Reginaldo Arcuri, esteve igualmente em Angola, para explorar com o presidente da Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP), Aguinaldo Jaime, possibilidades de cooperação entre os dois órgãos. A ABDI é uma agência que apoia o processo de internacionalização das pequenas e médias empresas brasileiras. Embora o empresariado angolano, salvo poucas excepções, ainda não tenha atingido o estágio da internacionalização, a ANIP está particularmente interessada, segundo Aguinaldo Jaime, em colher a experiência brasileira de apoio ao desenvolvimento industrial. Como resultado deste grande interesse internacional em Angola, o investimento estrangeiro directo no sector não-petrolífero deverá superar, este ano, os 1,3 mil milhões de dólares alcançados no biénio 2006/2007. A construção civil, agricultura, alimentação, turismo, pescas e imobiliário são os sectores que mais têm atraído os investidores internacionais. África21– julho 2009 27 OPINIÃO Quo vadis economia angolana? As kinguilas voltaram às ruas relembrando velhos tempos que antecederam a liberalização dos mercados monetário e cambial ocorrida em 1989 Emanuel Alvarenga A ngola está a viver um filme já visto, há sensivelmente dez anos. Recomeçaram os salários em atraso e a demora nos pagamentos aos empreiteiros de obras públicas do Estado, tendo sido reintroduzidas, por outro lado, restrições no acesso às divisas, mesmo para as operações de invisíveis correntes de pequeno valor (viagens, bolsas de estudo, mesadas para familiares). Mais grave é que as restrições se estendem até às divisas próprias, o que representa um retrocesso enorme. Os bancos reagiram negativamente às medidas monetárias tomadas pela nova equipa económica, anunciando que não estariam em condições de continuar a conceder crédito à economia e às famílias. Por outro lado, a inflação anual acumulada subiu para 13,9% (até Abril); no mercado de câmbios, o spread entre os mercados de referência (oficial) e informal (paralelo) está a aumentar e, em consequência, ressurgiram nas ruas de Luanda as kinguilas (cambistas informais), a acenar com maços de kwanzas aos transeuntes. Apesar da crise económica e financeira mundial, o discurso oficial sobre o futuro da economia de Angola, era, no geral, até recentemente, bem aceite: Angola iria continuar a crescer, embora a um ritmo menor, que se situaria acima da taxa de crescimento da população (3% anual). O sistema bancário angolano continuaria a gozar de boa saúde, graças: i) a uma supervisão e regulamentação eficazes; ii) ao facto de não ter sido contaminado por produtos financeiros de elevado risco; iii) à não liberalização total das operações de capital, já que estas estão sujeitas a licenciamento prévio, por parte do BNA; iv) ao facto de o sector petrolífero permanecer, largamente, offshore, em termos económicos e financeiros, não se financiando em Angola e, por isso mesmo, não propagando a sua crise aos bancos que operam no país. 28 julho 2009 – África21 A partir de Abril, o quadro de optimismo moderado sobre Angola conheceu um grande arrefecimento, face a alguns sintomas, já acima apontados, a que os agentes económicos, que operam em Angola e as famílias já se haviam desabituado. Segundo se diz, na base de tudo está uma brutal quebra das receitas de exportação, situação que tornaria insustentável a actual magnitude da despesa pública, mesmo a corrente. A queda é provocada pela queda do preço do petróleo e dos diamantes, assim como pela redução do volume de produção de petróleo decretada pela OPEP, a que Angola preside. Face a este quadro, alguns empresários aventam a possibilidade de despedir força de trabalho, para fazer face a esta abrupta diminuição das suas receitas. Para tornar o quadro mais incerto, ninguém da equipa económica ousa dar a cara, vindo a terreiro explicitar as medidas que o Governo está a tomar e traçar o quadro de evolução da situação económica. Claramente, está a perder-se o capital de confiança dos agentes económicos e das famílias no futuro da economia angolana e do sistema financeiro, que levou muitos anos a acumular. Há quem receie que, em consequência das restrições impostas à movimentação das divisas, haja uma migração das poupanças para fora do sistema bancário. Críticas Não tardou muito até aparecerem as primeiras críticas à nova política da equipa económica. As principais críticas vão para as medidas de política monetária, tomadas pelo Banco Nacional de Angola (BNA). Em Março, o BNA aumentou o coeficiente das reservas obrigatórias dos bancos de segunda linha (comerciais e de investimento) junto do BNA de 15% para 20%. As reservas obrigatórias incidem sobre a totalidade dos depósitos à ordem e a prazo capta- “ Há quem sustente que a política monetária não tem o amparo nem a solidariedade Banco Nacional de Angola da política fiscal, claramente expansionista ” dos pelos bancos e não são remuneradas. Este instrumento, que muitos consideram extremo, é usado para a secagem da liquidez no sistema bancário. Já com o novo Governador do BNA, Abraão Gourgel, o coeficiente das reservas obrigatórias voltou a subir, desta feita para 30%, com efeitos a partir de Maio, e com a agravante de esta obrigação não poder ser cumprida com títulos do tesouro, que os bancos possam ter no seu portfólio. Por outro lado, a taxa de redesconto (taxa de financiamento do BNA aos bancos de segunda linha) subiu de 19,59% para 25%. A estas medidas acresce a dramática redução na quantidade de dólares vendidos pelo BNA ao mercado (em Angola os impostos das companhias petrolíferas e diamantíferas são pagos em conta do Tesouro aberta no BNA), a preço fixo, e não mais em leilões, como acontecia no passado. Os efeitos destas medidas estão à vista: para além da forte reacção dos bancos, que chegou até ao chefe do Governo, passou a haver uma procura reprimida por divisas (de recordar que a economia angolana está ainda muito dependente de importações) que, não sendo satisfeita no mercado oficial, começa a deslocar-se para o mercado informal, alargando o spread entre o mercado oficial e o informal. Sem surpresa, as kinguilas voltaram às ruas, relembrando velhos tempos, que antecederam a liberalização dos mercados monetário e cambial, ocorrida em 1989. Se, como se afirma, o objectivo é «desdolarizar» a economia, o resultado está a ser, precisamente, o oposto: a subida da inflação e a depreciação do kwanza tendem a tornar o dólar cada vez mais a moeda de refúgio, como acontecia há dez anos atrás, quando o sistema financeiro estava reprimido. Quase todos os analistas concordam que adoptar uma política monetária contraccionista, em tempo de crise, só pode ter como efeito aumentar os efeitos da crise, o que é contraditório com os objectivos, anunciados pelo Governo, de continuar a ter um crescimento económico robusto e de diversificar a economia. Por outro lado, grande parte dos analistas também refere que a equipa económica está a tentar alcançar objectivos contraditórios: querer acumular reservas (criando, assim, uma maior escassez de divisas, no mercado, e aumentando, em consequência, o seu valor) e, ao mesmo tempo, valorizar o kwanza, no mercado de câmbios; vender uma quantidade limitada de dólares, a preço fixo, quando o regime que vigora é o de câmbio flutuante; pretender valorizar a moeda nacional, o kwanza, mas gerar uma procura reprimida por dólares, que há-de virar-se para o negócio cambial de rua, de que resultará uma maior depreciação do kwanza. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Há, também, quem sustente que a política monetária não tem o amparo nem a solidariedade da política fiscal, claramente expansionista, que tem de acomodar um ambicioso programa de investimentos públicos estruturantes, uma política de subsídio generalizado aos preços dos derivados do petróleo, cujo custo, segundo algumas estimativas, ultrapassa dois mil milhões de dólares, uma política de rendimentos que, segundo se alega, abandonou a moderação salarial, no OGE de 2009, e hábitos de desperdício e esbanjamento, nos sectores administrativo e empresarial do Estado. Demais a mais, a estrutura governativa alargou-se, após as eleições de Setembro, o que criou uma pressão maior sobre a despesa corrente. Optimismo moderado Apesar deste manancial de problemas, a euforia continua a ser grande, em Angola. A maioria das pessoas mantém um optimismo moderado sobre o futuro da economia angolana, reforçado com a aparente recuperação do preço do petróleo no mercado. Diz-se, para justificar este estado de alma, que Angola já conheceu fases piores, «em que o preço do petróleo no mercado internacional chegou a nove dólares, e ainda por cima em situação de guerra». Para um bancário, que solicitou o anonimato, «a nova equipa económica vai ser forçada, com o tempo, a ajustar estas medidas. Elas afectam transversalmente a sociedade, incluindo milhares de militantes do MPLA, que não estão e não vão ficar quietos. Aliás, em consequência das críticas, a equipa económica já recuou, ao permitir, agora, que as reservas obrigatórias possam ser parcialmente cumpridas com títulos do tesouro e não apenas com cash, o que representa a correcção do tiro inicial e devolve alguma liquidez ao sistema bancário. Não nos podemos dar ao luxo de, em tempo de crise, minar a confiança no sistema financeiro, que é o motor do crescimento económico. O MPLA precisa que Angola continue a crescer, para poder cumprir o programa com que se apresentou ao eleitorado». África21– julho 2009 29 30 julho 2009 – África21 A CRÓNICA DE pepetela Governo africano? O líder da Líbia, coronel Kadafi, gosta de casamentos. Esse gosto não é de agora. Era eu jovem e já ele tinha casado a Líbia com o Egipto e a Síria. Aliança que depressa se desmanchou com um divórcio sem direito a restituição do dote. Depois casou com o Iraque e talvez o Líbano. A seguir a este divórcio, tentou um matrimónio a sério com os seus vizinhos da Tunísia, Argélia e, se não estou em erro, Marrocos. Perco-me um pouco com tantas bodas. Não foi anunciado o divórcio, mas o casamento norte-africano não se consumou. Fiquei sem saber qual dos nubentes não respeitou os compromissos da noite de núpcias. O certo é que foi matrimónio falhado. Frustrado com tão pouca vontade dos seus pares árabes, virou os olhos para sul à procura de mais excitantes parceiros. E resolveu casar, não com dois ou três ao mesmo tempo, mas com quase cinquenta. Isto sim, era uma boda real. Mandou emissários por todo o lado, uns com ouro nas bolsas, outros com belas palavras, outros com ameaças, e convenceu-os a acabarem com a Organização da Unidade Africana. Numa coisa tinha razão, a OUA acabava de cumprir o seu desígnio histórico. Ajudou a terminar com os restos de colonialismo externo no continente e com o apartheid na África do Sul. Houve problemas, divergências, makas e outras quezílias (do kimbundu kijila, para quem não sabe), mas a OUA cumpriu o mandato. Até poderia continuar com o mesmo nome, não viria daí mal ao mundo. Mas o coronel queria coisa mais moderna, original. E foi criada a União Africana (UA), em nome da originalidade. Os princípios reitores da OUA pouco mudaram, mas não é a mesma sigla e o coronel ficou satisfeito. Por isso os outros cinquenta chefes africanos fingiram aceitar. Para manter o coronel quieto. E ficaram todos reconfortados, vendo o tempo passar e o vento vergando o capim nas anharas. Mas o irrequieto líbio não ficou afinal satisfeito. Queria mesmo mudanças radicais no seu estado civil. Lançou então a estocada final. Chegou o momento, declara ele, de se unir o continente numa só entidade, criando um governo africano. Começou a revoada. Silenciosa, mas revoada. Com jeitinho, para não ofender sua excelência, os outros chefes puseram os celulares a funcionar, então entramos nessa?, já?, eu nem as minhas fronteiras controlo, quanto mais… e eu que tenho uma oposição armada a tirarme o sono, bem, diferentes opiniões zumbiram pelos claustros opulentos dos palácios e haréns, conforme os interesses de momento. O coronel, impaciente, sabia das dúvidas e hesitações, sacou da cimitarra. Convocou uma nova reunião no seu deserto, alojou todo o mundo em tendas desconfortáveis, para forçar uma decisão. E os outros estavam verdadeiramente abuamados, indecisos. Ceder aos “ Até que o coronel vá ter com as setenta virgens no paraíso, vamos inventando degraus, uns de mármore, outros de madeira ” ditames do petróleo líbio era demais, seriam a risada universal, mas não dá para ofender o homem, ele tem iras quase divinas e umas guarda-costas bem treinadas. Houve um vivaço, exímio praticante nos seus tempos de juventude, que propôs uma táctica de futebol, atirar para canto. Os outros aplaudiram, aliviados. Ficou claro, é ainda muito cedo para um governo africano, se nem sequer os países têm governo a sério. Há mesmo quem não tenha nenhum, a sério ou não. Apareceu a teoria de um pensador africano, denominada de processo gradual, isto é, degrau a degrau. Até que o coronel vá ter com as setenta virgens no paraíso, vamos inventando degraus, uns de mármore, outros de madeira, atrasando a marcha para um governo continental. Como disse o tio Maninho, céptico incorrigível, casamento apressado leva África21– julho 2009 31 brasil Petrobras, a jóia cobiçada Com mais de meio século de existência, a Petrobras está posicionada entre as maiores empresas de petróleo do mundo. A descoberta de gigantescas jazidas no pré-sal faz dela uma jóia cobiçada. Mas nem tudo é fácil. Além da crise internacional, a estatal tem de enfrentar agora as investigações de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Alfredo Prado BRASÍLIA D urante várias décadas, o monopólio Petrobras deu corpo ao slogan «o petróleo é nosso», lançado e ampliado, nos anos 40 e 50 do século passado, pelos Presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Monopólio que se manteve até 1997, quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso, na onda das grandes privatizações que agitaram o país, abriu o sector petrolífero ao investimento privado. A mudança, no entanto, não impediu a estatal de continuar a ser uma referência e um gigante. A jóia do Brasil está agora sob investigação de uma comissão parlamentar, numa altura em que os técnicos do Governo preparam um novo marco regulatório e um projecto de lei a enviar ao Congresso Nacional (Senado e Câmara de Deputados). As mudanças, que têm como referência o modelo norueguês, visam definir as regras que orientarão a realização de leilões para a exploração das novas jazidas descobertas no chamado pré-sal, no litoral do país. Regras que deverão, também, garantir ao Estado brasileiro papel-chave na arrecadação dos lucros, possibilitando ainda a participação da Petrobras no pré-sal, 32 julho 2009 – África21 mesmo que, eventualmente, não venha a ser a vencedora dos leilões. A apresentação e discussão do novo marco regulatório, que enche as páginas dos jornais brasileiros, com noticiário e artigos de opinião, é apenas um dos focos lançados sobre a estatal. O outro é a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aberta no Senado por proposta de senadores da oposição ao Governo do Presidente Lula da Silva, e que o Palácio do Planalto procurou inviabilizar durante semanas. As suspeitas, levantadas por senadores da oposição ao Governo, são alegadas irregularidades contratuais e uso da empresa para fins ilegais, com eventual favorecimento dos partidos que integram a coligação governamental. Os números da operação desencadeada pela Petrobras, comandada pelo Governo, para fazer frente à CPI, retratam a importância política e o tamanho das preocupações que assolam o Executivo e os partidos aliados. Além das dezenas de jornalistas que integram os serviços de comunicação da empresa, a Petrobras contratou uma empresa de assessoria de imprensa por cerca de 90 mil dólares mensais (180 mil reais), segundo o jornal Estado de São Paulo, para apoiar a empresa enquanto durar a CPI. Governo preocupado O Palácio do Planalto sustenta que a CPI vai causar desgaste ao prejudicar a imagem internacional e os negócios da Petrobras. A oposição, já a fazer mira nas eleições de 2010, diz que o Governo quer esconder a utilização da estatal para fins que não seriam confessáveis. O que é certo é que a Petrobras é um gigante, e não apenas brasileiro, no mundo do petróleo e dos combustíveis. E que, desde a sua criação, vem sendo usada como bastião político por quem está no poder. O dinheiro arrecadado pela empresa é fundamental para a máquina pública e o clientelismo gerado pela estatal, que opera, actualmente, cerca de 240 mil contratos com as RICARDO STUCKERT/PR Lula da Silva e o presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, num bloco de pré-sal do estado do Espírito Santo mais diversas empresas e sectores de actividade, é disputado pelos grandes partidos. A criação da CPI surge assim como um lance político da oposição que pretende desgastar e manietar o Governo Lula. Mas não são apenas os partidos da oposição que apoiam a CPI. Dentro da própria coligação governamental há disputa pelo controlo da Petrobras, cuja administração é historicamente objecto de partilhas, de acordo com as forças políticas que estão no poder. A disputa intensificou-se nos últimos meses, não apenas em função da aproximação das eleições legislativas e presidenciais, a realizar em 2010, mas, sobretudo, das importantes descobertas de jazidas de petróleo de boa qualidade no chamado pré‑sal. A camada do pré-sal é uma faixa que se estende ao longo de 800 quilómetros entre os estados do Espírito Santo e Santa Catarina, no sudeste brasileiro, abaixo do leito do mar, e integra as bacias sedimentares do Espírito Santo, Campos e Santos. O petróleo é explorado a profundidades superiores a sete mil metros, abaixo de uma camada de sal que, de acordo com os especialistas, conserva a qualidade do petróleo Actualmente, sete blocos no pré-sal, equivalentes a 38% dos 112 mil quilómetros quadrados de toda a área descoberta, já foram leiloados. Em seis deles, a Petrobras é a operadora. Entre os campos já descobertos estão o Tupi, o maior, o Guará, Bem-teVi, Carioca, Júpiter e Iara. A portuguesa Galp e a britânica BG Group integram o consórcio com a Petrobras em Tupi. Até ao momento ainda não há um número preciso sobre as reservas do pré-sal. Recentemente, o Presidente do Brasil falou em 90 bilhões (90 mil milhões) de barris de petróleo de boa qualidade. Só em Tupi, a BG Group e a Galp confirmaram estima- “ Desde a sua criação na década de quarenta que a Petrobras é um bastião político para quem está no poder ” ALGUNS NÚMEROS (DADOS 2008) • A empresa está presente em 27 países; • Em 2008, o lucro líquido foi de 32.988.000 reais (cerca de 16 milhões de dólares) • A exploração é feita por 109 sondas de perfuração; • Poços produtores: 13.174 • Plataformas de produção: 112, sendo 78 fixas e 34 flutuantes; • Refinarias: 16 • Oleodutos: 25.197 quilómetros • Frota de navios: 189, sendo 54 propriedade da estatal África21– julho 2009 33 ANTONIO CRUZ/ABR Manifestação de sindicalistas (3 de Junho último) diante do Palácio do Planalto, em defesa da Petrobras e de uma nova lei do petróleo “ As reservas do pré-sal podem atingir 90 mil milhões de barris de petróleo de boa qualidade tivas que variam de 12 a 30 bilhões (12 a 30 mil milhões) de barris. Até 2013, a empresa prevê investir 174 bilhões de dólares (174 mil milhões), o que incluirá dezenas de plataformas, 49 petroleiros e 124 embarcações de apoio. De acordo com analistas, em 2020, haverá défice mundial entre 55 milhões e 65 milhões de barris diários. Estimativas indicam que a produção brasileira, que neste ano será de 2,7 milhões de barris, deverá atingir em 2020 cerca de 5,7 milhões de barris, com 1,8 milhões provenientes da exploração do présal. Estes números ajudam a perceber a importância da estatal para o Brasil. Em recentes declarações aos jornalistas, o Presidente Lula reafirmou a importância estratégica para o país da Petrobras e da manutenção do seu prestígio. O presidente da empresa, Sérgio Gabrielli, próximo do Palácio do Planalto, 34 julho 2009 – África21 ” tem, por seu lado, alertado para as consequências negativas que poderão advir das investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito, tendo antecipado a possibilidade da existência de irregularidades, dado o elevado número de contratos de serviços com que a Petrobras trabalha. Esta disputa política, em torno da instalação da CPI, tem o seu epicentro no potencial das jazidas do pré-sal que darão importantes lucros aos cofres públicos, mas também às companhias internacionais que venham a vencer os leilões para a sua exploração. Modelo made in Noruega É neste cenário que os técnicos do Governo prepararam as bases para uma nova lei do petróleo que criará uma outra empresa pública para gerir as riquezas do pré-sal, mas também o conjunto de normas que visam proteger a Petrobras, assegurando a sua presença efectiva nas ricas jazidas do pré-sal, mesmo que, eventualmente, viesse a perder os leilões que serão lançados internacionalmente. O assunto começará a ser discutido no Congresso Nacional em Agosto. Além do modelo de partilha de produção nas áreas ainda não licitadas, será mantido o sistema de concessão nas já leiloadas, sendo que, neste modelo, o petróleo é da empresa vencedora do leilão. Deste modo, a Petrobras tanto poderá explorar os poços que venha a ganhar em leilão, como poderá ser escolhida como operadora preferencial por decisão da futura estatal, sem leilão. Por outro lado, a nova lei poderá também criar um Fundo de Responsabilidade Social, que será desenvolvido com as receitas da futura estatal, originadas pela exploração do pré-sal. O Fundo seria aplicado, no Brasil e no exterior, em títulos, acções e infra-estrutura. Os seus rendimentos seriam destinados a projectos em saúde, educação e combate à pobreza, em geral. A CRÓNICA DE LUIZ RUFFATO Uma silenciosa revolução na floresta O que me espera numa cidade situada a 3,5 mil quilômetros de São Paulo, em plena Amazônia? Esta a pergunta que me fazia, sentado no saguão de embarque de Congonhas, enquanto aguardava o vôo que me levaria a Brasília e de lá a Rio Branco, no Acre, um estado do extremo oeste do Brasil, para participar da I Bienal da Floresta do Livro e da Leitura. Após uma longa e cansativa viagem, finalmente desci no pequeno aeroporto, alta madrugada, e o carro que me levou ao hotel deslizou suave pela estrada deserta, como se temesse incomodar os moradores. E a manhã seguinte se me abriu em surpresas. Caminhei por uma cidade, de 300 mil habitantes, de ruas limpas e tráfego organizado, de calçadas despidas de mendigos ou meninos pedintes, nem camelôs, nem prostitutas – triste espetáculo que, infelizmente, se tornou paisagem comum nas grandes metrópoles brasileiras. O sol iluminava a Praça da Revolução, onde vários quiosques exibiam livros, avidamente manuseados por jovens. Numa esquina, imponente, erguese a Biblioteca Pública do Acre, um edifício moderno que se integra perfeitamente ao conjunto de bem conservados prédios surgidos nas primeiras décadas do Século XX. Inaugurada em dezembro do ano passado, a biblioteca conta com um auditório para 120 pessoas, uma filmoteca, computadores com acesso livre à internet e um acervo de 42 mil títulos – sendo que, este ano, foi desti- nado R$ um milhão (USD 507,1 milhares) para a compra de novos livros. Se a facilitação do acesso à cultura se limitasse a essa biblioteca, já poderíamos talvez nos dar por satisfeitos. Mas não: existem ainda mais de 100 pontos de leitura espalhados por todo o estado, pequenas bibliotecas que se tornam centros de convivência cotidiana (é bom lembrar que, embora possua pouco mais de 152 mil quilômetros quadrados, o Acre tem uma população pequena, cerca de 700 mil habitantes distribuídos em 22 municípios). Além disso, há em Rio Branco uma outra biblioteca, dedicada exclusivamente a questões ligadas ao meio-ambiente – tema, aliás, no qual o estado vem se destacando, ao defender a exploração da floresta com equilíbrio e harmonia. No quesito educação, irmão gêmeo e indissociável da cultura, também a surpresa. O Acre tem hoje o maior salário inicial para um professor de todo o país, R$ 1,6 mil (USD 811) para um regime de trabalho de 30 horas semanais, sendo 16 dedicadas à sala de aula. Só para se ter uma idéia, o mesmo valor em São Paulo, o estado mais rico da federação, é 40% menor... E as instalações físicas das escolas são bastante adequadas – ambientes limpos, organizados, confortáveis, o que, como qualquer educador sabe, é essencial para o bom desempenho dos alunos. Raras vezes me deparei no Brasil com um Poder Público realmente empenhado em disponibilizar aos cidadãos o acesso di- “ No meio da floresta estamos assistindo a uma verdadeira revolução, mas uma revolução silenciosa ” reto e concreto à cultura e à educação de qualidades. Talvez somente tenha observado algo semelhante na parceria entre a universidade e a prefeitura de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, onde há mais de 25 anos ocorre uma já tradicionalíssima Jornada Literária. No caso do Acre, a mudança adveio após o martírio do líder seringueiro Chico Mendes e da atuação heróica e visionária de Marina Silva. Os novos administradores apostaram na mudança de sentido na condução da coisa pública, e, após quase um século de dominação de uma elite totalmente desvinculada dos anseios da população, promoveram uma radical opção pela educação, a cultura e o lazer. Com isso, no meio da floresta, estamos assistindo a uma verdadeira revolução, mas uma revolução silenciosa, bem diferente daquela bufonaria de certos líderes latino-americanos, que parecem saídos das páginas dos escritores que traçaram a caricatura dos ditadores das repúblicas bananeiras, mais afeitos aos discursos vazios e às atitudes ridículas, mas midiáticas, que a efetivas mudanças. A lição que fica: quando queremos, podemos mudar o mundo que nos cerca. África21– julho 2009 35 CABO VERDE Governo quer Casa para todos O programa Casa Para Todos vai possibilitar a construção de mais de oito mil novas moradias e intervir em 20 mil habitações. É a resposta do Governo cabo-verdiano a um dos maiores problemas sociais que o país enfrenta: o défice de acesso à habitação. Natacha Mosso PRAIA O primeiro-ministro cabo-verdiano reconheceu, no acto de lançamento do programa Casa Para Todos, que existe no arquipélago um número considerável de pessoas que não possuem uma habitação digna, mas garantiu que o Governo está empenhado em melhorar a qualidade de vida das pessoas, em combater a pobreza, as desigualdades e a exclusão social e fazer da habitação uma questão central e prioritária do seu governo. «Casa Para Todos é um programa para habitar Cabo Verde com dignidade», enfatizou José Maria Neves, considerando que o programa faz parte da nova geração de políticas para os novos desafios que se impõem a Cabo Verde e que pretende acelerar o processo de transformação do país, dando a possibilidade a todos os cabo-verdianos de terem acesso a uma habitação, concretizando-se, deste modo, um dos direitos constitucionalmente garantidos, o de habitação condigna para todos. Dado aos elevados recursos financeiros que o programa requer, o primeiro-ministro instou os parceiros para uma grande mobilização nacional para que seja solucionado o problema. «O Governo, os municípios, as empresas de construção civil, bancos e outras instituições financeiras, ONG, associações para o desenvolvimento comunitário, têm de criar uma nova dinâmica de construção de casas em Cabo Verde, para que num futuro próximo todos, mas todos, tenham acesso a uma habitação condigna. Para que os mais pobres, aqueles que vivem em barracas, que vivem em bairros e casas degradadas, os jovens, os quadros, as famílias emergentes, possam ter acesso a uma casa condigna para morar», exortou José Maria Neves. 36 julho 2009 – África21 Aldeia no interior da ilha de Santiago Ainda durante a apresentação do Casa para Todos, Neves anunciou que o Executivo pretende democratizar o acesso a solos por parte de empresas e dos cidadãos, através de um processo que garanta maior rigor e transparência. O chefe do Executivo afirmou que se estão a dar passos para a regulação do mercado de arrendamentos, para criar um quadro fiscal de incentivos na aquisição de casa própria, de mecanismos de crédito e para aplicar programas arrojados de construção de casas a nível nacional, através de investimentos directos do Estado e parcerias público-privadas. Habitar Cabo Verde Sylvine Schmitt Com doze subprogramas – Programa Terra, Habitar CV, Programa de reforma fiscal, Programa de incentivo ao arrendamento, entre outros – o Casa para Todos tem como meta contribuir significativamente para a redução do grande défice de habitações próprias e condignas no país a preços mais acessíveis por parte dos economicamente mais desfavorecidos. Democratizar o acesso à terra urbanizada, alargar o acesso à habitação aos extractos mais débeis, do sector, na utilização de tecnologias, técnicas e materiais de construção mais económicos e mais eficientes e de baixo impacto ambiental e que incidam na redução dos preços das habitações. E inventariar novas formas de financiamento, de incentivos fiscais e democratização do crédito, bem como sistemas de garantia para as famílias mais vulneráveis. Existe em Cabo Verde um défice habitacional nacional de mais de 80 mil alojamentos, podendo esse número chegar aos 85 mil em 2011. Mas o “ Cabo Verde tem um défice habitacional de 80 mil alojamentos capitalizar recursos institucionais, reduzir o défice habitacional, criar o Fundo Nacional de Habitação para programas de habitação de interesse social, criar um quadro legal com foco na redução do défice habitacional, favorecer o acesso à habitação condigna a custos controlados e promover o arrendamento são os eixos em que assenta o Casa para Todos. Mas a ambição do Governo vai mais longe. Quer que o programa sirva para introduzir uma nova abordagem do problema da habitação, centrada na requalificação dos agentes e operadores défice não se distribui equitativamente pelas ilhas. É maior nos centros urbanos com tendência a acentuar-se nas ilhas de maior dinâmica. Santiago, a maior ilha do arquipélago, concentra 56% do défice global ou nacional e o concelho da Praia apresenta um défice de 25% do todo nacional. Por outro lado, a ministra da Descentralização, Habitação e Ordenamento do Território, Sara Lopes, anunciou que o Governo vai, a partir de Outubro, organizar a primeira feira de tecnologias de construção e atribuir prémios para promover a investigação no sector da habitação. ” África21– julho 2009 37 património cultural A riqueza que Cabo Verde tem… OMAR CAMILO/LUSA e não sabe A Ruínas da Sé Catedral Cidade Velha é Património da Humanidade, mas Cabo Verde ainda tem muito por fazer para valorizar e tomar partido da sua riqueza cultural Gláucia Nogueira PRAIA 38 julho 2009 – África21 Cidade Velha, primeiro burgo português fundado na África e rebaptizada há alguns anos com o seu antigo nome, o de Ribeira Grande de Santiago, entrou, a 26 de Junho, para a lista dos sítios considerados património mundial, segundo a classificação da UNESCO. Até ao último minuto houve dúvidas, já que o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), entidade que propõe os bens que recebem aquele título, aconselhou a suspensão da candidatura até ao próximo ano, por alegadas irregularidades. Contudo, este senão acabou por ser ultrapassado e Cabo Verde passou a ter um sítio naquela lista. Para a população, Câmara Municipal e comité de gestão que tem a tarefa de manter o sítio em condições que satisfaçam as exigências da UNESCO, o verdadeiro desafio começa agora. Até porque o estatuto não é para sempre. Mas começa, também, o tempo das oportunidades, dada a visibilidade que o sítio ganha, o turismo que aumenta e a valorização dos imóveis que já é uma realidade nos últimos anos. A candidatura da Cidade Velha tem colocado a questão do património cultural e a sua conservação na ordem do dia. Isto é, no discurso oficial e na comunicação social, pois não se pode dizer que a noção de património, com tudo o que implica de memória colectiva, história, cultura e tradição faça parte das preocupações dos cabo-verdianos. Aliás, o próprio conceito de que as coisas da história e da cultura são um património é ainda bastante frágil em Cabo Verde. OMAR CAMILO/LUSA Muralha da Cidade Velha OS MONUMENTOS DA CIDADE VELHA Na própria Cidade Velha, desde os anos 80 envolta em projectos e acções de cooperação que agora culminam na entrada para a lista da Unesco e que há 19 anos foi classificada como património cultural nacional, só em Março deste ano – portanto, com a candidatura à UNESCO já entregue – é que foram publicadas no Boletim Oficial resoluções que delimitam a sua zona histórica (onde não se pode edificar nada) e zona tampão (de transição para as áreas circundantes, sem restrições) e ainda um conjunto de monumentos religiosos, civis e militares que, num total de 21 itens, constituem tudo o que a Cidade Velha tem a oferecer. O que significa que até então não estavam protegidos. São eles: RELIGIOSOS: Igreja da N. S. do Rosário (séc. XV)* Ruínas da Sé Catedral (séc. XVI / séc. XVIII)* Ruínas do edifício da Sede do Bispado (séc. XVI) Ruínas da Igreja /Hospital da Misericórdia (séc. XVI) Capela S. Roque (séc. XVI) Convento S. Francisco e sua área envolvente (séc. XVII)* Ruínas do Colégio dos Jesuítas (séc. XVII) Ruínas da Igreja da N. S. da Conceição (séc. XV / XVI) Ruínas da Ermida do Monte Alverne (séc. XVI / XVII) Ruínas da Igreja de Sta. Luzia (séc. XVI / XVII) MILITARES: Fortaleza Real de São Filipe e a sua área envolvente (séc. XVI)* Ruínas do Forte do Presídio (séc. XV-XVI) Ruínas do Forte S. Veríssimo (séc. XVIII) Ruínas do Forte S. Brás (séc. XVII) Ruínas do Forte S. António (séc. XVIII) Ruínas do Forte de S. João dos Cavaleiros (séc. XVIII) Ruínas do Forte de S. Lourenço (séc. XVIII) Ruínas da Torre de Vigia (séc. XVII) As Muralhas de protecção da Cidade (provavelmente séc. XVI) MONUMENTOS CIVIS E ESPAÇOS PÚBLICOS: Pelourinho e o seu largo* Muralha antiga, muro da protecção da Cidade e a Torre de Vigia *Já receberam trabalhos de conservação e restauro e encontram-se no circuito habitualmente visitável. Exemplo flagrante disso mesmo é o incómodo que causaram a muitos moradores determinadas mudanças e restrições impostas na zona histórica da Cidade Velha, em relação a construções, estética das casas, etc. Um recente documentário sobre o tema mostra alguém a dizer algo como: «Vão construir o património para outro lado, levem para lá os turistas e deixem-nos aqui em paz». A reportagem do jornal A Semanaonline sobre o primeiro dia da Cidade Velha como património mundial traz o pároco – logo, um formador de opinião – daquela freguesia a comentar: «Agora, para pôr um prego numa porta vamos ter que pedir o prego à UNESCO». Situação preocupante Independente dos lóbis que tenham funcionado na reunião da UNESCO, em Sevilha, e das diligências da diplomacia caboverdiana para obter o apoio de países amigos, quem realmente precisa ser convencido do valor – não só cultural mas, em consequência deste, económico – das velhas casas, igrejas, ruínas, fortes, faróis e outros elementos seja do património construído ou do imaterial, é a população de um modo geral. Estudantes universitários que não entendem ser cultura o ex-libris da culinária cabo-verdiana, a cachupa; autarcas que decidem «modernizar» um centro histórico com ares do século XIX ainda bastante conservado, outros que simplesmente aprovam demolições de prédios simbólicos para dar lugar a edifícios novos e insípidos; vizinhos da Sé Catedral a secarem camisas e bermudas sobre as suas pedras de 500 anos; este é o dia-‑a-dia no que se refere ao património. Ao longo dos anos assistiu-se a situações preocupantes nesta matéria. Por exemplo, os contratos duvidosos com empresas de arqueologia submarina, que deram muito que falar, já que levaram à venda, para financiar as operações de África21– julho 2009 39 GLÁUCIA NOGUEIRA “ O conceito de que as coisas da história e da cultura são um património é bastante frágil em Cabo Verde ” Largo do Pelourinho mergulho, de peças únicas em leilões na Europa; a casa onde viveu Amílcar Cabral, há anos a aguardar alguma decisão que a dignifique. Ou o desbarato de peças do primeiro núcleo museológico cabo-verdiano 40 julho 2009 – África21 criado no pós-independência, o Centro Nacional de Artesanato, em S. Vicente – este em situação mais risonha, já que foi recentemente recuperado e transformado no Museu das Artes Tradicionais. Do ponto de vista do poder central, representado nesta área pelo Instituto de Investigação e do Património Culturais (IIPC), órgão do Ministério da Cultura, embora tenha sido feita há alguns anos uma «lista indicativa» para eventual classificação de um conjunto de sítios e monumentos espalhados pelo país, a prioridade dada à Cidade Velha tem inviabilizado, praticamente, qualquer outra iniciativa que tenda a pôr em marcha a protecção e valorização de outros exemplos de património cultural. Talvez agora, cumprida esta etapa, outros casos venham a receber mais atenção. E não são poucos: os centros históricos de S. Filipe (Fogo) e Ribeira Brava (S. Nicolau); fortificações, faróis e igrejas espalhados um pouco por todo o arquipélago; o fundo marinho rico em despojos de navios, as salinas de Pedra de Lume (ilha do Sal); o célebre campo de concentração do Tarrafal (ver África21 de Maio 09), entre outros sítios, fazem parte de uma lista que, se não é toda para o património mundial, terá certamente itens merecedores do estatuto de património nacional ou municipal. Segundo a lei cabo-verdiana que rege esta área, um bem patrimonial para estar legalmente protegido tem de estar classificado como tal, o que ocorre por portaria do Ministério da tutela, no caso de acordo do proprietário, ou por decreto do Governo, na ausência de acordo. Ou seja, o Estado tem poderes para de- terminar a protecção do bem e mesmo obrigar à sua manutenção, proibindo alterações, etc. O único senão é que não se tem classificado nada. Não estando sob protecção legal, qualquer coisa pode acontecer, impunemente, ao bem patrimonial desprotegido. Vantagens a tirar partido Nesta 33.ª reunião do Comité do Património Mundial foram julgadas 27 novas candidaturas e apreciadas situações de conservação de sítios que já constavam da lista da UNESCO – por exemplo, o vale do Elba, em Dresden, Alemanha, perdeu o estatuto. Por sua vez, a cidade fortificada de Bakou, no Azerbaijão, saiu da lista dos monumentos em perigo, face aos trabalhos realizados. Esteve presente na reunião a preocupação de melhorar a distribuição geográ- fica dos membros da lista, critério que poderá ter ajudado países que não tinham ainda nenhum sítio incluído, como Cabo Verde e o Burkina Faso, que também teve sucesso na sua candidatura, com as ruínas da milenar fortaleza de Loropéni, próximas da fronteira com o Togo e o Gana. Outra preocupação foi tentar diminuir a diferença numérica entre elementos do património cultural e natural, este último com menor representação na lista. Para os próximos anos, é algo de que Cabo Verde pode tirar partido, já que possui vários exemplos importantes nesta área, em particular as suas zonas litorâneas e subaquáticas, e poderá pensar em candidatar alguns deles no futuro. Para não falar do Parque Natural da Ilha do Fogo, que engloba o vulcão e zona adjacente, este já classificado segundo a lei que rege o património natural. África21– julho 2009 41 42 julho 2009 – África21 A CRÓNICA DE GERMANO ALMEIDA Fidalgo de braguilha N inguém da família sabe em que data o Diche conheceu e se tornou frequentador da rua da Mati- jim e das suas tascas de moreia frita, grogue matchona e vinho tinto carrascão, noutros tempos importado em barris de 50 e 100 litros. Quando em casa se começou a tomar fé das suas cada vez mais prolongadas ausências, ele já se tinha tornado não apenas num inveterado apreciador e consumidor, mas mais precisamente num viciado no vinho tinto, cujo primeiro copo bebia cerca das nove da manhã, prosseguindo pelo dia fora até à razão de mais ou menos um copo cada duas/três horas. Nessa altura ele já tinha conhecido a Natália, sua primeira namorada, e começado a fabricar filhos que, aliás, continuaram os dois a produzir mesmo depois que ela descobriu que ele tinha engravidado a Helena e também a Mercedes e a Rosa e a Maria Augusta... Seu tio Silvestre, emigrante muito viajado e bastante culto das imensas leituras nas muitas horas vagas sentado no convés dos navios de alto mar, costumava dizer-lhe que era uma verdadeira pena o seu nascimento ter acontecido não só em lugar errado como também com três séculos de atraso no tempo. Porque, asseverava-lhe, tivesses nascido na Espanha do séc. XVII e certamente que serias elevado à dignidade de fidalgo de braguilha! Era verdade! E, curiosamente, não graças à legítima esposa, neste caso a Na- tália que fingiu não ter tomado conhecimento da gravidez da Helena, mas exigiu casamento de papel passado logo que soube do nascimento do filho da Mercedes, e sim graças a uma das várias mulheres de casa posta, neste caso a Rosa, com quem foi tendo um filho varão em cada ano até perfazer sete. Seria muito honroso para a nossa família e até para Cabo Verde em geral, dizia tio Silvestre, um caboverdiano das ilhas elevado à dignidade de fidalgo de braguilha. E terias certamente direito a uma tença pelos serviços prestados à pátria, provavelmente paga em grandes barricas de bom tintol da Rioja. Mas acrescentava a seguir: ainda que seja verdade que no caso de Cabo Verde é um bocado inútil, não temos com quem guerrear, e filhos, sejam machos ou fêmeas, são apenas bocas a alimentar. Mas na mesma Diche gostava desse título de «fidalgo de braguilha», sentiase orgulhoso por tudo que essa competência pessoal encerrava de mérito próprio, tanto mais que, como lhe lembrava o tio Silvestre, seu próprio pai tinha sido homem de uma única namorada e uma única mulher. E assim, não raras vezes, quando chegava ao quarto ou quinto copo do dia e ficava sem mais dinheiro do que tinha conseguido surripiar dos negócios da Natália, não hesitava em invocar a sua condição de nobreza para pedir fiado, jurando pela sua honra de fidalgo, que provava colocando a mão direita sobre a braguilha, tudo pagar no dia seguinte. “ Não hesitava em invocar a sua condição de nobreza para pedir fiado, jurando pela sua honra de fidalgo, que provava colocando a mão direita sobre a braguilha, tudo pagar no dia seguinte ” Mas morreu a dever a última fusca! Um fidalgo não devia assim encharcarse, afogar-se em vinho, lembrava-lhe o tio Silvestre repreensivo, vendo-o quase inconsciente a ser carregado para casa, isso seria mais digno de D. Quixote. E quem é esse, perguntava Diche, também produziu sete machos seguidos? A Natália já estava habituada a vê-lo chegar a casa transportado por quatro homens. Deitem-no naquele sofá até lhe passar a fuscaria, dizia. Mas um dia não acordou. A autópsia revelou que tinha morrido em coma diabético. África21– julho 2009 43 guiné-bissau A hora de Malam Bacai Dois homens para uma cadeira ensanguentada; Presidenciais sob o pano de fundo da violência; Presidenciais para pôr termo à instabilidade e à violência; Presidenciais num cemitério; Campanha sangrenta, escrutino calmo. Luntam Cuiaté BISSAU O sufrágios, cujos resultados foram divulgados quatro dias depois, sem as tensões do passado. A abstenção, que atingiu uma inédita taxa de 40%, foi a única surpresa desagradável da corrida presidencial. «Foi o único vencedor da primeira volta das presidenciais», segundo o mandatário de um dos candidatos independentes. A redução do nível de participação eleitoral talvez seja uma das explicações para o facto do candidato mais votado, o ex-Presidente interino Malam Bacai Sanhá, não ter ganho logo à primeira volta. Sanhá, um dos veteranos da política guineense, com a sua barba branca e estatura acima da média, recolheu 39,59% dos votos dos mais de 500 mil eleitores, e vai disputar a segunda volta, em 26 de Julho, com o antigo chefe de Estado Kumba Yalá, que MANUEL DE ALMEIDA/LUSA pessimismo, para não dizer a visão apocalíptica, foi a nota dominante dos títulos da imprensa africana na véspera das primeiras eleições presidenciais antecipadas da Guiné-Bissau. O duplo assassínio do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e do Presidente da República, no início de Março, e a liquidação física, três meses depois, de um deputado e de um dos candidatos à corrida presidencial, justificam tal cepticismo. Contudo, os receios não se confirmaram. A campanha eleitoral, exceptuando alguns excessos verbais de Kumba Yalá, foi morna e sem incidentes, tal como a votação, a 28 de Junho, que decorreu sem incidentes. Pela primeira vez na história das eleições pluralistas do país, ninguém contestou os Malam Bacai Sanhá, o candidato do PAIGC 44 julho 2009 – África21 As eleições têm decorrido de forma pacífica obteve 29,42%. Repete-se assim, cerca de dez anos depois, um duelo entre os mesmos protagonistas, ganho na altura por Yalá. Desde então, o cenário político mudou radicalmente. O PAIGC, partido que apoia a candidatura de Malam Bacai, está solidamente instalado no poder e sufocou as suas guerras internas para poder levar um dos seus dirigentes mais credenciados ao poder. O trágico desaparecimento de Nino Vieira, seu rival nas eleições de 2005, tornou-lhe a tarefa menos complexa, assim como a morte do major Baciro Dabó, o antigo assessor de Segurança de Nino, cuja candidatura às presidenciais arriscava-se a baralhar as contas a Malam Bacai. Não obstante, esses ajustes de conta sangrentos repercutiram-se negativamente na imagem do partido governamental, e durante a campanha serviram de arma de arremesso para os seus adversários mais radicais. Outro trunfo de Malam Bacai são os apoios externos de que dispõe. Recebido nas mais altas esferas do poder em França, Portugal e na Nigéria, contou ainda com os petrodólares de Muammar Kadafi e das ajudas finan- MANUEL DE ALMEIDA/LUSA barrete encarnado, nem dos nove meses de salários que então ficaram por pagar. As relações de Kumba com a actual chefia castrense andam atribuladas, depois do candidato ter ameaçado substitui-la em caso de vitória. No mês passado os militares desarmaram as dezenas de homens da sua guarda pessoal. Todavia, o seu carisma e o pendor populista e demagógico podem fazer estragos. O árbitro Henrique Rosa No entanto, o principal responsável por uma segunda volta nas presidenciais guineenses foi incontestavelmen- MANUEL DE ALMEIDA/LUSA “ Os votos obtidos por Henrique Rosa serão determinantes no pesar da balança de 26 de Julho ” ceiras e materiais do influente Presidente Blaise Compaoré, do Burkina Faso. Os recursos exibidos pela sua candidatura provocaram sérias críticas de esbanjamento de dinheiro e de compra de consciência. Por seu lado, o PRS, a formação de Kumba Yalá, agora na oposição, debate-se com dificuldades financeiras e com a dissidência de um punhado de dignitários, que contestam o líder do partido, situação impensável há alguns anos atrás. Os eleitores guineenses também não se esqueceram ainda dos desmandos do regime do homem do presidiu aos destinos da Guiné-Bissau. Reconheceu a derrota no próprio dia em que os resultados oficiais foram proclamados e anunciou que não ia dar ao seu eleitorado, de mais de 81 mil votantes, indicações de voto a favor de nenhum dos finalistas. A atitude dos seus apoiantes será determinante para o desfecho do pleito presidencial, que entretanto já estão a ser cortejados por ambas as candidaturas. Os oito outros postulantes não mereceram a consideração dos guineenses, mas mesmo assim, os pouco mais de seis por cento obtidos no seu conjunto, apesar de insignificantes, poderão pesar bastante na contagem final. A sociedade está traumatizada pelos su- Se for eleito, Kumba Yalá ameaça destituir a chefia militar te o candidato independente Henrique Rosa, que com os seus 24,19% adiou a luta pela cadeira presidencial para a última semana de Julho. Este empresário, sem grande carisma, mas com enorme poder de atracção, devido ao seu perfil pacífico e de seriedade, drenou simpatias a partir de várias famílias políticas, mas não teve nem tempo nem recursos para se implantar profundamente nas regiões do país profundo, onde mesmo assim conseguiu bons resultados. Rosa deixou uma óptima impressão nos dois anos (2003-2005) em que cessivos episódios de violência, cujos autores nunca são responsabilizados, e pela constante instabilidade política. Os salários atrasados, a omnipresença do poder militar e o narcotráfico são outros problemas que quer ver solucionados, e espera que seja o chefe de Estado a resolvê-los, embora dependam da governação. Entre os dois candidatos, ganha aquele que convencer o país de que é um homem de diálogo e paz, capaz de pôr os militares na linha, restabelecer a autoridade do Estado e garantir a estabilidade. África21– julho 2009 45 46 julho 2009 – África21 A CRÓNICA DE ODETE COSTA SEMEDO Assim senti ‘Ombela’... Uluai, chuva e palavra H á poemas, contos, romances, enfim… obras que, ao termos contacto com elas, nos deixam a sen- sação de já as havermos encontrado, lido, visto ou sentido em algum lugar de aqui ou do além, quiçá de lá! Essa sensação é, por vezes, tão agradável, tão saudável que leva a pensar: como não fui eu a escrever isto! Como não pude parir essas palavras, como não agarrei o tempo ou a chuva de concebê-las dentro de mim, para depois da gestação a colocar no rio da vida? E vimos todo o caminho percorrido e por percorrer. Do amor feito… Do momento da fecundação... Da gestação ao parto e até à criação; criação, essa, de ajudar a crescer e a alimentar a consciência, o sentido. E parece que o segredo está na palavra. A palavra que fala de si mesma, a que ampara quem a enuncia; palavras que calam a dor, palavras que gritam e sacodem, que alertam. Foi assim com Ombela1, a chuva: amor feito! Não porque na minha terra o tempo se conta por chuvas. Lá o que para outros é um ano, para nós é uma chuva, como se o tempo fosse mulher, como se fosse líquido, corrido, algo que pode cair tanto em gotas finas, ieri-ierindo2, quanto em gotas grossas como se o céu, de onde ela cai, fosse desabar sobre a cabeça dos homens. Chuva tempo, chuva líquida e lenta, chuva raiva acompanhada de raios e de relâmpagos que mesmo de dia deixam a terra alumiada. Mas não foi por isso que senti ombela, foi por ela ser também terra fecunda, por isso toada e palavra. Assim foi com ombela, criação criada e criadora. Ombela que se fez corpo, igualmente feminino, que se entrega do beijo ao orgasmo, portanto, som também. Do som à palavra, ao mel e ao seio bom de que se seguiram os ritos de iniciação e através dos quais «conhecem-se os olhos», isto é, conhece-se a linguagem sem fala e cujos sinais pertencem apenas aos indícios transmitidos pela liquidez dos olhos, como se fossem eles rios que falassem, que fizessem navegar dentro de si as palavras. Ombela é também esse falar na liquidez dos olhos, esse proferir através da chuva, cantar e louvar a vida, como os mais velhos nos ensinaram. E foi o que nos deixaram como herança… Tanto a vida, quanto a natureza que nos testemunha a força vital. A palavra e a força da fala. A palavra superior à pólvora. A que pode ser fina e suave como uma gota de chuva. Sentença que pode ter a força de uma torrente, forte como um elefante, caçadora, felina como uma onça. A palavra assentada – sintanda kombersa – com todo o seu poder conciliador em favor da vida e da harmonia; essa palavra é também a cabaça de água capaz de adormecer a sede, é a cabaça que pede a mão da noiva, é ombela é chuva é ulual!3 É um legado dos nossos ancestrais. Por isso, onde não há palavra assentada o lugar se torna seco, a vida uma incógnita. Quando à palavra é dado um lugar, até a vida ela sustenta. Foi o poder da palavra que emprestou mil e uma e mais noites de vida à Scherazade, diante de um Sultão ferido no seu orgulho de macho traído. A pa- “ Nós que ainda não conseguimos porfiar a pólvora e dar de beber àquele que nos é adverso na fala e no gesto ” lavra pacificou a cólera do Sultão, tal como a chuva farta a terra árida e a torna fértil. Foi assim quando senti Ombela. Depois de se constituir apengu 4, ombela transbordou – palavra fecunda – e virou nossa. Nossa e de todos os que ainda não descobriram que a chuva, também ombela, é mulher fêmea e assim marida do céu. Nós que procuramos conhecer o dom da palavra que obriga homens e mulheres a assentar a conversa na tabanka e na prasa5; que procuramos o segredo na mensagem trazida pela chuva… Nós que ainda não conseguimos porfiar a pólvora e dar de beber àquele que nos é adverso na fala e no gesto…. Nós, ainda cegos diante do óbvio: pólvora e palavra são distantes, e tão distintas entre si, na sua essência e em tudo o resto! Nós, que ainda não descobrimos que o segredo da diferença mora na palavra, por isso só a palavra pode conciliar, harmonizar. Referência à Ombela (poemas). Obra poética de: MONTEIRO, Manuel Rui. Luanda: ed. Nzila, 2006 Ombela – chuva em umbundu; 2 Borrifando em crioulo guineense. 3 Chuva na língua manjaca. 4 Chuva em abundância, em umbundu. 5 Cidade em crioulo guineense. 1 África21– julho 2009 47 JOAO RELVAS/LUSA são tomé e príncipe O ano produtivo de Rafael Branco Segurança alimentar, energia, turismo, reformas financeiras e questões sociais foram temas abordados pelo primeiro-ministro são-tomense ao fazer o balanço do primeiro ano de governação. «Tenho razões para não estar muito satisfeito, mas no meio de tantas dificuldades, o Governo fez muito e estamos prontos a sermos comparados com qualquer outro Governo que esteve em funções», diz Joaquim Rafael Branco à África21. ARQUIVO África 21 Juvenal Rodrigues SÃO TOMÉ Rafael Branco está satisfeito O XIII Governo Constitucional foi empossado a 21 de Junho de 2008. O então líder do único partido da oposição aceitou chefiar um Governo de coligação com a participação do MDFM/PCD como solução para se contornar a crise política que se instalou com a queda do Executivo liderado por Patrice Trovoada, que só esteve 90 dias no poder. «Eu estava à espera que este Governo fizesse mais e melhor», comenta, por sua vez, o líder da Acção Democrática Independente (ADI), que dá nota negativa ao desempenho da equipa de Rafael Branco. O primeiro-ministro recorda o contexto em que surgiu o seu Executivo há cerca de um ano e que, na sua opinião, já foi esquecido por muitas pessoas, nomeadamente o mandato que não vai além de dezoito meses e «quando mesmo na coligação que ganhou as eleições há divergências manifestas». «As pessoas esqueceram-se que este Governo é chefiado por um partido que não ganhou as eleições e há dois partidos que ganharam e fazem parte dele. Em São Tomé e Príncipe não se tem ideia de que existe uma crise que afecta várias economias mundiais e o nosso país não está fora dessa crise e os reflexos sentem-se aqui», diz. Em contrapartida, Rafael Branco considera que, colectivamente, o Executivo acertou nas prioridades que elegeu: segurança alimentar, infra-estruturas, energia e turismo. Segurança alimentar Os stocks de bens alimentares de primeira necessidade estão assegurados 48 julho 2009 – África21 O primeiro-ministro destaca o que qualifica de «Nova Agricultura» que está a ser desenvolvida, “ Para Rafael Branco o Executivo acertou nas prioridades da segurança alimentar, infra‑estruturas, energia e turismo ” na medida em que a produção agrícola baseada em grandes empresas de cacau acabou. «Não há condições para existir. O cacau já não rende e não temos gente para trabalhar como antigamente nas grandes empresas». Por outro lado, as novas gerações querem trabalhar numa «agricultura que lhes dê rendimentos e algum prestígio social. Isso só é possível com uma agricultura destinada a satisfazer as necessidades alimentares, que implique novas técnicas, novas tecnologias e inclusive a transformação dos produtos». A agricultura é o sector que no plano orçamental tem uma parte importante do bolo, cerca de 20 milhões de dólares, mas «infelizmente algumas instituições estão atrasadas no desbloqueamento dos fundos em relação a este programa, nomeadamente a União Europeia e o Banco Africano de Desenvolvimento». Entretanto, o chefe do Governo está convencido que «este ano vamos ter produção de banana, milho, feijão, cebola e batata inglesa como nunca tínhamos tido». Foram igualmente tomadas medidas para evitar a rotura de stocks de bens alimentares de primeira necessidade. Energia ANDRE KOSTERS/LUSA No sector estratégico da Energia, a previsão é que a produção comece a melhorar no próximo ano. Porém, há que se fazer investimentos na rede de distribuição. Até ao primeiro semestre de Patrice Trovoada esperava mais e melhor “ Para Patrice Trovoada o Governo falhou na concertação social, execução orçamental, política externa e justiça ” 2010, a Central de St.º Amaro estará operacional e no final do próximo ano uma outra central térmica estará pronta para fornecer cerca de 30 MW de energia. A manutenção da opção pelas energias térmicas, segundo o primeiro-ministro, é a mais viável a curto prazo. As outras soluções são caras à partida. «No quadro da manifestação de interesse, houve propostas de energia solar. Não ia satisfazer todas as nossas necessidades, mas os proponentes precisavam de 120 hectares de terra para que esse projecto fosse implantado. Há empresas que dizem que temos potencial para a energia hídrica. Veja o tempo que está a levar a construção da central de Bombaim. As soluções alternativas levam tempo e nós estamos num tempo de urgência. Paulatinamente, serão agregadas outras fontes de energia». Sabe-se que a EMAE, Empresa de Água e Electricidade, está falida. O seu futuro está em análise, depois de adoptados os grandes princípios que vão orientar a política energética do país. Um deles é a ideia do produtor independente. «O Estado não tem condições para investir, os interessados vêm, constroem as centrais e vendem a energia aos clientes. Um cliente poderá ser a EMAE, mas eu duvido que ela tenha condições de continuar como empresa pública, com a estrutura accionista que tem hoje. Temos pensado em formas de privatização da EMAE através da cedência de uma parte de capital e, eventualmente, na privatização total do capital», sublinha Rafael Branco, acrescentando que deve ser aprovado um pacote legislativo que regulamente a actividade desses produtores. Paralelamente, os contratos que foram assinados com algumas empresas no domínio energético com cláusulas lesivas aos interesses do país vão ser revistos. «O Governo está a construir a sua posição sobre os mesmos e na altura devida todas as entidades envolvidas serão chamadas para se sentarem a uma mesa e realisticamente definir-se um destino a dar a esses contratos», adianta. Nas infra-estruturas há atrasos consideráveis. Os montantes disponíveis ainda não começaram África21– julho 2009 49 a ser utilizados porque há que respeitar os dispositivos legais: «Para as obras tem que se fazer concurso, respeitar uma série de procedimentos que não permitem que elas sejam executadas desde o início do ano. No nosso caso, o orçamento ficou aprovado em Dezembro». Para o desenvolvimento do turismo, o Governo já dispõe de documentos orientadores e com a ajuda da cooperação brasileira o país vai ter uma marca são-tomense no artesanato. Reforma financeira A bancarização da economia iniciada há poucos meses, ou seja, desde o pagamento de salários até os serviços prestados pelas empresas ao Estado, tem um conjunto de vantagens. Uma delas é fechar o caminho à corrupção e garantir maior transparência. Outro benefício é a diminuição da fuga ao fisco. A Direcção das Finanças passa a ter a possibilidade de conhecer o valor aproximado da facturação das empresas que prestam serviço ao Estado. Por outro lado, o Governo fez ajustes salariais num momento de crise, sobretudo para os quadros médios e superiores que nos últimos anos não beneficiaram de aumentos «quando em todo o mundo se está a desempregar pessoas e a reduzir salários. Ainda é pouco, mas foi um aumento significativo. Se associarmos isso à inflação que está a baixar, vemos que há um ganho real no rendimento disponível das pessoas», refere o chefe do Executivo. 50 julho 2009 – África21 Reacção da ADI A Acção Democrática Independente, o principal partido da oposição, tem outra percepção. Patrice Trovoada critica a actuação do Governo em aspec tos como a concertação social, execução orçamental, política externa e justiça. Considera que o Executivo «deveria apresentar um orçamento rectificativo e dar a mão à palmatória». Isto tudo é motivo de desânimo e decepção para qualquer são-tomense», sublinha o líder do ADI, que também é de opinião que no plano da política externa «não há visibilidade nenhuma». «Basta dizer que fala-se de integração regional, que São Tomé e Príncipe tem que ser uma plataforma de serviços, mas serviços para quem? Para o Golfo da Guiné? O primeiro-ministro, para além de uma visita esporádica a Angola, não visitou nenhum país vizinho, tal como o ministro dos Negócios Estrangeiros», comenta Patrice Trovoada. O líder da oposição manifesta ainda a esperança que a alternância dê possibilidade um dia ao seu partido de governar e não gostaria de encontrar o país numa situação pior. Entretanto, Rafael Branco defende que «estamos a fazer o que tínhamos que fazer. Temos a consciência que devíamos fazer muito mais do que já fizemos, mas se olharmos para o contexto em que o Governo surgiu, as condições em que o Governo está a trabalhar, acho que foi um ano produtivo». A CRÓNICA DE CONCEIÇÃO LIMA Alda Espírito Santo A lda Espírito Santo tem 83 anos. É uma idade bonita, uma idade pejada de frutos. O Ministério da Educação, do qual foi a primeira titular, rendeu-lhe uma homenagem. O ministro Jorge Bom Jesus disse coisas bonitas e merecidas. É que vida inteira nos habituamos à suave robustez da sua presença, ao tamanho da sua sombra. Habituamo-nos à espessura e ao timbre da sua voz. Nem trincos nem trancas: Alda Espírito Santo é igual à transparência da casa que a habita, a casa que nos habita. Pelos nomes próprios nos distingue e nos chama. Conhece-nos desde sempre e aos nossos tiques, nossas fraquezas, aos nossos talentos e forças. Conhece as escarificações na fundação do nosso rosto; revelou-as. Conhece o aroma do louro no nosso prato e o cheiro do manjerico no nosso vaso. E nós, nós conhecemo-la. Desde quando, para afugentar o frio, entrelaçou, mornas, as mãos, ao redor do nosso corpo. Desde quando pôs, fresca, a palma da mão na nossa testa. Quando nos embalou e nos exortou e nos instigou. Quando nos ergueu alto e sussurrou ao nosso ouvido palavras que só podiam ser sussurradas, as palavras que nos nomeiam. Para seu juízo escrevemos redacções e hesitamos nas contas de dividir. Incen- tivou-nos e corrigiu-nos, admoestounos e aplaudiu-nos. Brincámos, descalços, na orla das praias por ela sonhadas, navegámos a largueza do poema. Moldámos concretas utopias, no âmago da praça plantámos a raiz do verso. Alda Espírito Santo tem 83 anos, uma idade bonita. Mora ainda na velha e austera casa da Chácara, rodeada de livros e memórias e passos dos amigos. No quintal entrecruzam-se os ramos das goiabeiras e todas as madrugadas desabrocham ali flores e trepadeiras. A casa da Chácara é uma casa de portas e janelas abertas. Na antiga casa da Marginal, sede da União Nacional dos Escritores e Artistas, da qual é presidente, continua a receber jovens e menos jovens, a todos entregando a justa porção de palavra. A sede da UNEAS é uma porta sempre escancarada. Por vezes, Alda Espírito Santo fala com enérgica suavidade de certos amigos, certos nomes: Amílcar. Agostinho. Mário. Marcelino. Salustino. Luís Espírito Santo. Bia. Francisco José Tenreiro. Sara Maldoror. São nomes que convocam uma longa jornada aquém e alémmar, nomes de um tempo decisivo e fracturado, um tempo entrefeito de lealdades e solidariedades. Desdobra recordações, folheia livros, oferece-nos páginas escritas com tinta indelével, apura as cores e o preto e o branco dos retratos. Sublinha as vitórias, cri- Um mural contra a sida cujo vírus afecta quase seis milhões de sul-africanos “ Nós conhecemo-la desde quando, para afugentar o frio, entrelaçou, mornas, as mãos, ao redor do nosso corpo ” tica os desacertos do presente, interroga o amanhã fincando os pés no hoje. Alda Espírito Santo pode ser homenageada como poetisa. Alda Espírito Santo pode ser homenageada como combatente da liberdade, distinção que já recebeu do Estado Cabo-verdiano. Alda Espírito Santo foi homenageada pelo Estado São-tomense. Alda Espírito Santo foi homenageada como combatente da liberdade pelo Estado Cabo-verdiano. Foi homenageada, nos 80 anos, por um grande grupo liderado por Inocência Mata. Mas ela detesta homenagens. Desconfia de homenagens. Acha que as homenagens são uma armadilha aos que não baixam nunca os braços. Por isso, nós que já penteamos cabelos brancos e embalamos os primeiros netos, dizemos-lhe, à Alda Espírito Santo, porventura a mais proeminente mulher da geração de Cabral, que amamos o frondoso baobá, o benfazejo tronco do micondó. Dizemos-lhe que amamos na sua voz a constante canção dos nossos rios. África21– julho 2009 51 GUSTAVO AMADOR/LUSA américa latina Foto de família em San Pedro Sula: 37 dos 38 países da OEA têm relações diplomáticas com Cuba. Ao viabilizarem o regresso de Cuba à Organização dos Estados Americanos, da qual fora expulsa em 1962, os Governos da América Latina lançaram as bases para a criação de um novo organismo. A diplomacia latino‑americana criou um precedente que pode influenciar o futuro da região. Como na natureza, marcou um território próprio. Manrique S. Gaudin BUENOS AIRES 52 julho 2009 – África21 Uma ilha, um continente H á 47 anos, num verão particularmente tórrido, houve um dia na sofisticada estância balneária de Punta del Este, no Uruguai, em que a temperatura política subiu até rebentarem os termómetros. Nesse dia, 31 de Janeiro de 1962, a Organização dos Estados Americanos (OEA) decidiu sancionar – isolar – a República de Cuba por «incompatibilidade com o sistema interamericano». A decisão originou uma reacção imediata dirigida, mais do que à OEA, aos EUA, país que ditava as decisões da organização. «Yanquis go home» tornou-se no best-seller dos grafitti sul-americanos. Greves operárias e estudantis, declarações de condenação da mais variada origem e grandes manifestações de repúdio ocorreram nos dias seguintes nas ruas das principais cidades da região. O «sistema interamericano» não era outra coisa do que a OEA, um organismo que contava com uma chamada Carta De- mocrática em que se estabelecia – e se estabelece – que nas fundações de todas as democracias deve estar sempre presente o multipartidarismo. A «incompatibilidade» decorria de uma afirmação de apenas três palavras com que, meses antes, Fidel Castro tinha apontado ao coração da sensibilidade democrática continental: «sou marxista-leninista». A frase do dirigente máximo da Revolução Cubana continuava: «(…) e sê-lo-ei até ao último dia da minha vida». Mas ninguém reflectiu sobre isso. Mais: ninguém analisou o que significava o conceito de «sancionar». O sentido da resolução era o da expulsão, mas isso não ficou escrito, como se uma dúvida semântica, ou talvez uma indefinição política, tivesse eriçado a pele daqueles 21 dignitários a quem a decisão consumiu nove dias de sessões e constituiu a mais extensa e angustiosa Assembleia Geral na história da OEA. O passar do tempo foi mostrando que não se tratava de uma expulsão nem de Um primeiro passo Actualmente são 38 os países da OEA, e 37 já mantêm relações diplomáticas e comerciais regulares com Cuba. Apenas os Estados Unidos não dispõem de uma embaixada em Havana. De qualquer forma, “ todas as delegações, incluindo o Departamento de Estado norte-americano, qualificaram a resolução como «histórica». Para o brasileiro Celso Amorim, no entanto, «este é apenas um primeiro passo» que deve prosseguir até ao fim do bloqueio comercial que os EUA impuseram a Cuba em 1962 e que ainda se mantém vigente. O argentino Jorge Taiana resumiu a opinião de todos: «pusemos fim a um anacronismo e a uma injustiça». Desde aquele longínquo 1962, em que o Governo democrata de John Kennedy apressou a decisão da OEA, Cuba foi um assunto de interesse particular dos Estados Unidos. Os países latino-americanos votaram a suspensão e continuaram, por necessidade ou conveniência, as políticas emanadas da Casa Branca, mas Cuba nunca foi uma prioridade para eles, por mais que tenham insultado a sua revolução e se submetido ao bloqueio económico imposto por Kennedy em 1962, a 7 de Fevereiro, quase como se se tratasse de um segundo acto da Assembleia de Punta del Este. Antes disto, o mesmo Kennedy fracassara uma invasão armada, em Abril de 1961. Depois, em 1996, outro Governo democrata, o de Bill Clinton, aprofundou o bloqueio através da Emenda Helms-Burton, “ Cuba anunciou que não tem qualquer interesse em regressar ao organismo ” que proibiu as empresas americanas de fazerem comércio com Cuba através das suas filiais radicadas em países terceiros. Dependendo do ponto de vista, esta resolução da OEA pode ser encarada como uma derrota dos EUA ou como um triunfo de Cuba, que é o mesmo mas dito ao contrário. Há um pouco de cada um por detrás do «convite» feito a Havana. Mas sobre o que não há dúvidas é de que na região existe um novo cenário que tornou possível este acordo alcançado por unanimidade. Existe uma mudança nos EUA e, sobretudo, uma mudança na região que através de uma rede de dispositivos – Mercado Comum do Sul, União das Nações Sul-americanas, Grupo do Rio, entre outros – rompeu com as políticas hegemónicas ditadas desde sempre pelos Estados Unidos e exige agora uma igualdade formal na abordagem dos grandes temas. Em Abril, durante a cimeira hemisférica de Trinidad e Tobago, o Presidente Barack Obama escutou a voz da REYNALDO CARRANZA/LUSA uma marginalização. Optou-se por chamar-se-lhe suspensão. E como suspensão não é expulsão nem exclusão, no majestoso edifício-sede da OEA, em Washington, a bandeira cubana manteve-se hasteada junto à dos Estados Unidos e às dos restantes países latino-americanos. Ai permanece, embora Cuba já tenha anunciado que não tem qualquer interesse em regressar ao organismo. A 2 de Junho último, 47 anos mais tarde, na cidade hondurenha de San Pedro Sula, outros representantes de outros governos dos mesmos países celebraram a XXXIX Assembleia. Desta vez, em menos de dois dias, concordaram em comunicar a Cuba que a sua exclusão do sistema interamericano ficava sem efeito (primeiro ponto da resolução) e que o seu regresso ao seio da OEA só estava condicionado a um pedido do Governo de Havana (segundo e último ponto). Dos 38 países da OEA, apenas os Estados Unidos não dispõem de uma embaixada em Havana ” Protestos contra o bloqueio norte-americano, durante a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos África21– julho 2009 53 América Latina quando cada um dos Presidentes exigiu, pública e oficialmente, o fim do bloqueio a Cuba. Não o esperava. Sentiu-se isolado. De regresso à Casa Branca flexibilizou as condições relativas ao envio de remessas de imigrantes e à proibição de viagens à ilha. Uma região em mudança Nas Honduras, a delegação norte-americana corria o risco de ficar irremediavelmente isolada. Em San Pedro Sula a OEA demorou, tal como os EUA demoraram a aceitar que a realidade já não é a que desejam em Washington, como disse um analista mexicano. Peter Hakim, director de Diálogo Interamericano, uma organização que promove as boas relações dos Estados Unidos com a América Latina, considera que Obama não pretendia este desfecho: «Este é um tema muito delicado para os EUA, que nas Honduras ficaram visivel- 54 julho 2009 – África21 mente sós. Por isso, devemos dizer que o facto verdadeiramente histórico ali ocorrido é que a América Latina transformou a OEA num organismo multilateral no qual, pela primeira vez desde a sua criação, os Estados Unidos não podem impor as suas condições». Não se pode esquecer, além disso, que a realidade interna é outra. Depois de meio século em Miami, o fanático lóbi anti-cubano dos primeiros dias da Revolução – um grande contribuinte para as campanhas financeiras dos candidatos, que votava conservador, estabelecia condições e fornecia assessores e ministros aos Presidentes – perdeu peso. Ali, apesar das ideias de abertura, que o transformavam num dirigente perigoso para o ultra-conservadorismo, Obama obteve a maioria em Novembro do ano passado, quando foi eleito. Pouco a pouco, Cuba está a regressar ao «sistema interamericano», mas fá-lo sem condicionantes e sem renunciar aos seus princípios. Em 2008, em Zacatecas (México), o Grupo do Rio convocou Cuba para convencê-la a integrar este bloco, diplomaticamente o mais importante da região e o único que nos últimos anos ajudou a resolver as mais críticas situações vividas por Governos democráticos, como os da Bolívia, Equador e Paraguai. Com o Brasil à cabeça, a América Latina procura munir-se de novos instrumentos de integração, não apenas no plano económico, e considera que a OEA chegou à sua fase final. A América Latina pensa num novo organismo, talvez tomando como base o Grupo do Rio, no qual, sem o dizer, acaba por ir exactamente ao encontro do que Fidel Castro propunha há quase quatro décadas, a 1 de Maio de 1973: «uma organização regional que não tenha a sua sede em Washington, mas numa capital latinoamericana, que lute pelo bem-estar dos povos latino-americanos e caribenhos de língua inglesa e na qual os EUA não tenham razão para estar». economia Da crise aos riscos de «tudo como dantes» Todos os instrumentos económicos têm falhas e a ciência manda que sejam articulados para que sejam reduzidas ou corrigidas em tempo útil B Barack Obama disse em entrevista à Bloomberg que «Wall Street tem memória curta», referência sem dúvida à persistência de posições próximas da noção de «mercado puro», mitigado por apelos de socorro quando surgem os prejuízos. Mas basta os prejuízos darem sinais de transformação em novos lucros e começam os apelos anti-regulação. Dias depois, no Congresso, foi a vez do secretário do Tesouro, T. Geithner, enfrentar acentuadas objeções da bancada republicana contra o plano regulacionista da administração federal, o maior desde 1930. O argumento base era de que medidas reguladoras no passado histórico recente tinham dado maus resultados. Em contraposição, pode dizer-se que, tanto no passado histórico como no presente, a desregulação tem dado péssimos resultados. Está bem visível no momento em todo o mundo. Mas esta troca de acusações sobre instrumentos que falham não tem sentido. Todos os instrumentos económicos têm falhas e a ciência manda que sejam articulados para que sejam reduzidas ou corrigidas em tempo útil. A verdade é que uma forte tendência se desenha para a «memória curta» ou seja, considerar a crise decorrente do subprime como mero incidente menor. Menor para quem nos Estados Unidos não faz parte dos 9,5% de desempregados (recorde de décadas) ou para quem não está na situação da Jonuel Gonçalves África, que necessita de 500 mil milhões de dólares para não ter seu já fraco crescimento afetado. Esta tendência é reforçada em conferências como um Fórum Económico sobre África, que decorreu recentemente na Cidade do Cabo (África do Sul), onde se fizeram discursos milhares de vezes ouvidos e de onde saíram conclusões que qualquer aluno de primeiro ano pode fazer nos seus apontamentos, sem gastar as enormes verbas desses conclaves. O reforço da memória curta decorre aqui da falta de ideias, tradutora novamente de «crise económica e do pensamento económico», como falava Joan Robinson nos anos setenta ou, como escreveu o New York Review of Books, em Maio último, «falha da economia & dos economistas». A opinião pública norte-americana, bem informada, apresenta pontos de vista radicais raramente vistos. Por exemplo, uma sondagem de Junho creditou Obama com 62% de apoio, mas sobre os estímulos às empresas em dificuldade, mais de 50% preferiam que os rios de dinheiro gastos pelo Governo fossem para reduzir o alarmante défice fiscal. Alarmante em África (entre muitas outras coisas) é o estado da informação sobre economia e seus efeitos. Por vezes é simples desinformação e criação de euforias, seja como resultado de intenções tipo NEPAD, assinatura de acordos comerciais ou de súbitas subidas de preços de matéÁfrica21– julho 2009 55 rias-primas, como sucedeu com o urânio, diamantes, platina e mais frequentemente o petróleo. A partir dessas subidas havia mesmo quem afirmasse, em alguns Estados do continente, que estávamos prestes a sermos grandes potências. Para quem tem memória curta é bom sublinhar que a NEPAD não atingiu nenhum de seus grandes objetivos e vai caindo no esquecimento, e que as entidades africanas de integração regional são fóruns de articulação de poderes políticos, que não dotaram suas economias de capacidade transformadora, nem de programas sociais estimulantes para o nível de vida e a produtividade. Grandes emergentes A dependência de eventuais subidas de preços de matérias-primas, não só não promove potência sustentável de ninguém, como nem sequer revela economias emergentes. Índia, China e Brasil chegaram a tal nível com o desenvolvimento da educação, da produção transformada e com acumular de medidas que, ao fazerem subir o nível de vida, alargaram o mercado interno e capacidade competitiva externa. Em economia há varias relações diretas a respeitar. Uma é entre Estado e mercado; a outra é entre condições de vida e performance. A regulação é uma forma de harmonizar iniciativa pública e privada, enquanto a pobreza generalizada nunca gerou produtividade ou poupança consideráveis. Alguns sinais apontam para a redução da intensidade da crise talvez antes do fim do ano em curso e, desde já, começa o movimento para o regresso ao que estava antes. As perguntas da direita a Geithner em Washington fazem parte desse projeto, ao mesmo tempo que na América Latina dirigentes se felicitam porque suas recessões «são brandas» (após terem dito que não havia recessão) e em África as preocupações continuam a ser as cotações das commodities com destaque para o algodão, o cacau e o petróleo. A FAO aponta para subidas de preços dos bens alimentares entre 10% e 20% acima da média 1997-2006, até 2018. Ficamos aqui com dois avisos: as subidas que ocorram na mineração ou 56 julho 2009 – África21 na agricultura de exportação serão anuladas pelas importações de alimentos; as subidas no valor dos alimentos abrem perspectivas de mercado lucrativo para os produtores. Outro aspecto importante para os diversos países africanos envolvidos em programas de construção civil, sejam habitacionais, sejam de infra-estruturas, é que a queda de preços no mercado mundial de produtos como aço, alumínio ou cimento vai inverter-se quando o setor imobiliário norte-americano recuperar. Os indicadores começam a revelá-lo e grande parte do estímulo federal EUA está direcionado nesse sentido. Ou “ Alarmante em África é o estado da informação sobre economia e seus efeitos ” “ Para quem tem memória curta é bom sublinhar que a NEPAD não atingiu nenhum de seus grandes objetivos e vai caindo no esquecimento Ilustração: Cristina Sampaio ” seja, quem não produzir uma gama alargada de materiais, sofrerá fortes pressões de preços em alta na importação. São dois setores em que os primeiros passos de integração regional podiam incidir: produção, diversificação e transformação de bens alimentares e de construção, incluindo investimento em empresas de todas as dimensões e em programas comunitários. Qual dessas entidades realmente o faz? Em relação às grandes instituições, a memória curta reaparece. Por exemplo, onde estão as grandes concessões para desbloquear o dramático dossiê agrícola na Organização Mundial do Comércio, sem o que as previsões da FAO terão efeitos ainda mais graves? Após terem manifestado grande interesse no protagonismo do G20 (grupo de países desenvolvidos e dos maiores emergentes), algumas chancelarias centrais vão sem dúvida acentuar a centralidade do G8. Vamos ter uma primeira indicação de atitude na reunião do G8 este mês na Itália, mas parece que outra euforia foi exagerada – a de alguns emergentes que se julgavam já com cadeira cativa no centro do sistema mundial. Constatando essa realidade, relançam o BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), conjunto de economias hoje absolutamente indispensáveis ao mercado mundial, tanto pelo que colocam nele como pelo que nele compram. Esse é um dado novo que não foi produzido pela crise nem apenas pelo tamanho de cada uma, mas sim pelas alterações produtivas e de concorrência que introduziram. Portanto, na perspectiva de após crise vamos assistir, de um lado, à contra-ofensiva da desregulação e do centro do sistema como clube o mais fechado possível; do outro lado, às iniciativas dos grandes emergentes para abrir esse clube e à incógnita de como vão conduzir-se os demais. África21– julho 2009 57 Por uma melhor eficiência alimentar e energética PAULO NOVAIS/LUSA subnutrição Os países africanos de língua portuguesa oferecem boas potencialidades na área das energias renováveis A segurança alimentar constitui uma componente chave para o cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio traçados pelas Nações Unidas, designadamente o Objectivo Um, a «Erradicação da Fome e da Pobreza Absoluta» João Carlos 58 julho 2009 – África21 A eficiência energética e alimentar ainda está longe de ser uma realidade efectiva nos países em desenvolvimento, nomeadamente em África, um continente rico em potencialidades. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), só em África vivem 24 milhões de pessoas em situação de subnutrição. Tomando apenas um exemplo, Moçambique tem populações que vivem em estado de fome crónica, o que, segundo dados do Ministério da Agricultura, terá provocado entre Março de 2008 e o mês homólogo deste ano a morte de mais de 100 pessoas. O Secretariado Técnico de Segurança Alimentar e Nutricional (SETSAN) indica que 450 mil pessoas passam actualmente por uma situação de carência alimentar no país. Aquelas pessoas sobrevivem graças ao apoio alimentar coordenado pelo Instituto Nacional de Gestão de Calamidades e pelo Ministério da Agricultura moçambicano. A situação é mais crítica nas províncias de Tete e Zambézia (Centro), em Nampula (Norte), e ainda em Gaza e Maputo (Sul). Uma das razões – além da subida a nível mundial do preço dos bens alimentares – prende-se com a falta de reservas alimentares, devido à seca prolongada e às cheias cíclicas que atingem Moçambique. Embora a produção mundial de alimentos tenha vindo continuamente a superar a procura ao longo dos últimos 50 anos, a insegurança alimentar persiste nos países em desenvolvimento. E quando o preço dos cerais subiu significativamente em 2007 e 2008, aumentou o número de pessoas malnutridas no mundo, também com impacto na saúde pública. Entre as causas então anunciadas que contribuíram para a crise alimentar, são de assinalar o aumento dos factores de produção e a seca nos países produtores de cereais como consequência das alterações climáticas que afectou, por exemplo, o arroz na Austrália. Outra das causas teve a ver com a redução de cereais armazenados em todo o mundo. Necessidade de maior investimento Na intervenção que fez na conferência, realizada em meados de Junho último, em Lisboa, sobre «Cooperação num quadro internacional de desafio energético e alimentar», Ana Ribeiro, do Instituto de Investigação Científica Tropical, deu a conhecer as actividades que as instituições do ECART, da qual faz parte o IICT, têm vindo a desenvolver, nomeadamente nas áreas da biotecnologia e das tecnologias pós-colheitas. A apresentação, entre outras questões consideradas pertinentes, focou as contribuições do ECART (Consórcio Europeu para a Investigação Agrícola Tropical, em português) e do IICT na área da biossegurança e da produção, transformação e conservação de produtos agrícolas. Maria Otília Carvalho, da mesma instituição, indicou as estratégias de protecção integrada no arroz para consumo. Outras intervenções enalteceram contribuições para a segurança energética e alimentar, como a que foi feita por Cyrille Arnoud (do Fundo para a Eficiência Energética Global e as Ener- SOFID APOIA PROJECTOS VIÁVEIS A SOFID (Sociedade para o Financiamento do Desenvolvimento) está disposta a financiar empresas portuguesas interessadas em actuar fora do espaço da OCDE, preferencialmente nos países lusófonos de África e no Brasil. A instituição de crédito maioritariamente estatal, com um capital de 12,5 milhões de euros (17,3 milhões de USD), foi apresentada aos conferencistas pelo presidente da sua comissão executiva, Hélder de Oliveira. «Viemos aqui apresentar esta instituição e os instrumentos que ela tem para apoiar investimentos», disse à África21, referindo que os empresários portugueses podem contar com a SOFID, mas também com a cooperação de outras congéneres europeias no sentido de estudar os projectos, «desde que estes sejam económica e financeiramente viáveis, mas também sustentáveis do ponto de vista ambiental». São já cerca de uma centena de empresas portuguesas que têm contactos com esta estrutura. Em conjunto com uma parceira europeia, uma missão da SOFID teve a oportunidade de visitar os mercados mais conhecidos, designadamente Angola, Moçambique e Cabo Verde, e discutir localmente com instituições financeiras e empresas os mecanismos mais adequados de apoio. As empresas devem ter a preocupação de dar resposta às estratégias de desenvolvimento dos países onde pretendem instalar os projectos. Os projectos elegíveis devem ser investimentos de raiz, ampliações, reabilitações, modernização ou aquisição de activos, pelo que a intervenção da SOFID não deverá ascender os 2,5 milhões de euros (3,5 milhões de USD). A SOFID (que integra a Associação das EDFI – European Developement Finance Institutions e cujo modelo existe em 16 países) foi criada em 2007 para apoiar o investimento bilateral entre os países europeus e os países fora da OCDE, em África, Ásia e América Latina. Além dos PALOP e do Brasil, outros mercados-alvo são a África subsariana e árabe, a Índia e a China. A instituição, integrada por quatro bancos privados portugueses, conta com os contributos financeiros portugueses e da União Europeia, bem como de institucionais de cooperação multilateral, como o Banco Africano de Desenvolvimento e da Sociedade Financeira Internacional. «São um conjunto de estruturas que estão disponíveis para apoiar projectos que sejam efectivamente viáveis», afirmou Hélder de Oliveira. Uma oportunidade, concluiu, que os pequenos empresários devem aproveitar para investir naqueles mercados. gias Renováveis, ligado ao Grupo Banco Europeu de Investimento). Ou ainda a comunicação de Jorge Ferro Ribeiro (da Geocapital), a propósito dos bio‑ ‑combustíveis e a sua sustentabilidade social, económica e ambiental. Entre as intervenções foram realçados o contributo da ciência para o desenvolvimento e o seu impacto na actual crise, bem como a importância das parcerias nestes dois domínios. É de sublinhar a cooperação entre o IICT e a Geocapital, que se pretende alargada a outras entidades do espaço da geoeconomia lusófona, também no âmbito da criação do Centro Internacional de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico dedicado a biocombustíveis. Trata-se de um exemplo de parceria público-privada entre o Estado de Cabo Verde e a Geocapital. “ Sem o apoio dos governos lusófonos será difícil implementar qualquer dessas propostas, diz Braima Camará ” África21– julho 2009 59 NUNO VEIGA/LUSA Os períodos de seca prolongada em alguns países e as cheias cíclicas, como em Moçambique, são factores inibidores de uma maior produção agrícola Outro exemplo em si é esta conjugação de vontades entre o IICT, a Associação para o Desenvolvimento Económico e Cooperação (ELO) e o Conselho Empresarial da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CE-CPLP), que permitiu na conferência realizada no Centro de Congressos de Lisboa, reflectir sobre o papel da cooperação face à necessidade de se alcançar a eficiência energética e alimentar, com maior incidência nos países lusófonos. Hélder Vaz, director-geral da CPLP, destacou no encerramento do encontro a cooperação com a FAO para o desenvolvimento rural, no âmbito de um programa de combate à desertificação, sublinhando a necessidade de um maior investimento nas áreas da eficiência energética e segurança alimentar. «Estamos conscientes que muito ainda resta fazer para que estes desafios possam assegurar melhores condições de vida às nossas populações», reconheceu. Estratégias concertadas As várias instituições lusófonas manifestaram interesse em delinear e desenvolver estratégias concertadas, de forma a fazer face às crises actuais, quer energética e ambiental quer no domínio alimentar. Os países lusófonos, na sua maioria, são potencialmente agrícolas e, na perspectiva de Braima Camará (presidente do CE-CPLP) vai ser possível, com as ideias e propostas apresentadas, minimizar os efeitos negativos da actual crise. Mas para as pôr em prática, considera fundamentais as parcerias público-privadas. «Sem o apoio dos respectivos governos será difícil implementar qualquer das propostas», alertou Camará, acolhendo com agrado a postura da CPLP que assumiu tomar uma decisão em relação a estas matérias na cimeira dos ministros dos Negócios Estrangeiros, a ter lugar na Cidade da Praia, em Cabo Verde. 60 julho 2009 – África21 Para Murteira Nabo, da direcção do Conselho Empresarial, este debate em Lisboa foi uma oportunidade para dar a conhecer a existência do CE-CPLP, cuja função é promover as relações económicas e projectar a integração dos países lusófonos. Neste sentido, disse que é preciso que o CE dê um salto, de modo a produzir os resultados desejados. Daí a proposta de criação de uma Confederação Empresarial do Espaço da CPLP. «Achamos que é preciso uma estrutura mais profissional e com mais instrumentos, focada em objectivos bem claros», explicou à África21, «por forma a que os empresários possam ter condições de competitividade nesses mercados semelhantes às que têm os investidores dos outros países». Murteira Nabo quer que a CPLP não tenha apenas uma abordagem virada para a promoção da Língua comum, mas focada sobretudo na componente económica. Porque «em relação a outros países, Portugal tem vantagens comparativas naquilo a que eu chamo Atlântico Sul, com capacidade para poder desenvolver esses mercados». No sector energético, com ênfase para as energias renováveis, África apresenta soluções que passam por projectos locais, autonomizados, cujo aproveitamento pode ser explorado com vantagens comparativas em termos de complementaridade das economias, numa base multilateral e de igualdade. O economista cinge-se em concreto às potencialidades existentes em todos os países de língua portuguesa, onde são abundantes o sol, o vento, as ondas e outras fontes de energias novas. «Temos condições para vir a ser um dos produtores de vanguarda na área das energias renováveis», admite Murteira Nabo. Mas falta espírito empresarial e investimentos, de modo a se promover uma actividade industrial que suporte uma estratégia global. Em conclusão, propõe uma atitude muito mais ambiciosa para a longa trajectória de integração económica do espaço da lusofonia. “ É preciso na CPLP uma estrutura mais profissional e com mais instrumentos, focada em objectivos bem claros, considera Murteira Nabo ” lis ss a siona erciais, a m da su e m sico, imag e co á a b d oria cípio vossa ultad mo prin à co emos a nova a c s re re fe p m O u . o io ã rviitár e se stituiç prior ou in epção d ecção a s e c r on a s mp laica c noss dinâm tados. A são ente s s e e r r p totalm imp ços pré- processos ue a produ-é de q m o ão m c e press bora dos, atiza as de im puter to m to m u p a o ha (co ençã de c or CTP ção p interv isão, c utada qualquer c re e p x e é qualtado ) sem plate a. O resu vidade e seu r n o uti co rin a rm a d .. m ro l. u p de p h os e o um mo p s info , fina ade, Ofere ogia sos técnic presa co instituiçã a secção atizados ado o s fiabilid no result m u s m s ã e o o e to o d n s u n a a a s s CTP ua id os A r s e c re e te . o d a p r n s a p a p p lente ca áqu agem d ssa em restado totalme cutada ltado lid lho. im m m à vo erviços p rocessos ão é exe resu traba uma exce rias a. O s m cemos p al... s m vá o press o human m com o de do fin aim o co overso em ne ã a a ce r ã lt ç e o ç u p ã d b s u e ç c s e d c la n la r tr a o n e p e r p te o o v r o t p r a n n c le te se de de offse im ressã ão de ch exce overso uer in alida 5 core mato tr duç qualq ade e qu mos uma Posump o re r nas a rande for m e p e s id Poce to res ea late) dutiv io e g amen amentos m qu Ofere as a 5 co ntopod r to p ade, pro e a d d sa o b a te in u u b is ã o m u a p comp s como u ra a área id q s m lis da sm com ão, fiabil resm várias má no. acaboaderno, que e. -no do a rofissiona imagem ossa , pa cis . imp d v namo alificados onjungan p la é pre ria da emos à balho dução co m o set p ersátil e m e qualida C o a s qu o . d tr o c a s e iç lt o u z to off v ro iç ad municação s a consu rio. Oferec ão de serv om o se d de p de forma mentos apide i r l e d a m a o a o n c Qu s e de co , assumim , e prioritá a concepç labora c as acab pacid dio e gra ução r de é a prod o ic ão o de chap er s mátic omerciais io básic em m um secto r tipo de s dinâm e e c ã r íp s e u a o u cos e mo princ uma nov suim rar qualq -imp a produteç) sem qualqvida co ão rna . Po anh e pré em que pla duti omp cado el e mode s, presa u instituiç ecção d , r ro c s to e a p o r , m o d s s o ã cada no o credív alificado ute de za presa . A nossa automati TP (comp , fiabilida press opçã viços qu ca com mverifi os rC nte isão uma o. im m várias er áfi lh estad s totalme utada po o é prec a b omo o a de s c c ão gr ngando tr d c la o a e o p s o u lt x ã s t ã e ç s su se nicaç uç ée roce l... o Conju formáprod rmato off ersá presta da comu . O re a ssão . e a n re n fi d p a e o v e fo rea ade ias in profisde im ção hum resultad cidad entos rand aaá capa en no ualid cnolog abam com rapr io e g interv alidade da Q nçadas te o com o e coo elente em méd tor de ac a ã c v ç x e u u e q ã d o c a va nicaç técnicos ia da de e m se s um overs de pro ais a comu cemo res e retr suimos u uer tipo as m or os lq Ofere e de os noss consultad cípi P s a d tic rin a p o s o o m m lis sumim sa co os à vos siona is, as a empre m ia e i c rc me fere a su aed em d ioritário. O uma nov tad imag r s o p re ã sp o, e tuiç e básic a ou insti e serviço d s impr empre oncepção e pré- totalm d s c o o a s mic ces ecçã duç m pro ssa s a pro A no labora co que uta c m e e x o sã matizados, ressão é e em q s p auto e im to plate) d as d sulta chap omputer . O re e (c mana dutividad u h CTP o , pro ençã seu interv fiabilidade final... o , do cemo cisão o resulta Ofere n dade essão e de pro dad mpr i O nosso compromisso é oferecer uma solução eficaz e completa em Artes Gráficas Rua Latino Coelho, 6 – Venda Nova 2700-516 Amadora T. 21 499 87 00 www.offsetmais.pt F. 21 499 87 17 [email protected] África21– julho 2009 61 eleições EUROPEIAS A esquerda? Anda por aí, humilhada… As eleições europeias de 7 de Junho provocaram um forte abalo nos partidos socialistas. Nos 27 países da União Europeia apenas na Dinamarca e na Grécia saíram vencedores. Ganharam os conservadores e, sobretudo, as faixas radicais, tanto à esquerda como à direita. Os eurocépticos também cresceram. António Melo O abalo surgiu por causa da crise financeira que desde Outubro de 2008 levou à falência bancos e empresas e ao desemprego milhões de trabalhadores? Ou trata-se de uma crise interna à social-democracia, que ainda há dez anos era dominante na União Europeia (UE)? Ou, mais banalmente, resume-se a um efeito de pêndulo, ao fenómeno de alternância, característico das sociedades democráticas de mercado? O diário espanhol Público fez uma vasta consulta entre os intelectuais da esquerda e expôs as suas ideias na edição de 13/6/09. O mais contundente foi o Nobel português, José Saramago (86 anos), que sintetizou assim a sua posição: «Perguntam-me com frequência por onde anda a esquerda. Já tenho a resposta: anda por aí, humilhada». Com uma ironia ácida felicita os que defendiam «a genialidade táctica, de uma modernidade imparável» de uma rota para o centro. Para concluir, cáustico: «Não é possível votar à esquerda se a esquerda deixou de existir». As opiniões dos 14 intelectuais auscultados pelo jornal madrileno vão da esquerda libertária e alterno-mundista, como é o caso do humorista francês Siné (83 anos) e da filósofa Susan George (75 anos), ao moralismo dos enciclopedistas do século XVIII, ilustrado pelo pensador espanhol Vidal-Beneyto (82 anos). 62 julho 2009 – África21 264 80 53 EPP ALDE GREENS/EFA 161 PES 32 GUE/NGL Não se pense, primeiro aviso, que se trata de uma assembleia de anciãos, com um olhar nostálgico sobre as suas utopias de juventude. Há uma ra zoável repartição de idades entre os 40 e os 80 anos. Nem todos fazem o diagnóstico céptico de Saramago, mas é nos escalões superiores que o sarcasmo mais se faz sentir. O espanhol de origem basca Carlos París (84) diz que «a esquerda padece do síndroma de Estocolmo», ou seja a pessoa refém fica afectivamente dominada pelo sequestrador. Siné, admitindo a sua constante infidelidade em termos partidários, desabafa deste modo: «Eu sempre votei à esquerda (…) dei muitas reviravoltas, desde votar em partidos ultra-minoritários até ao voto em François Mitterrand [mas] agora sinto-me deprimido por completo. Quando se vê o Novo Partido Anti-capitalista [saído da matriz trotskista] recusar uma frente comum de esquerda… Só podes ficar desanimado!» O tom crítico é geral, mas não a tónica pessimista. Philip Pettit, um irlandês de 64 anos que o jornal aponta como uma das referências ideológicas de Zapatero, primeiro-ministro espanhol, afasta a hipótese da revisão radical e propõe uma desideologização terminológica, a começar pela denominação social‑democrata. Devido à carga ideológica os partidos de centro-direita acabam muitas vezes por fazer alianças com a extrema-direita, o mesmo se passando GRUPOS PARLAMENTARES GUE/NGL: Extrema-esquerda PES: Socialistas GREENS/EFA: Verdes ALDE: Liberais EPP: Democratas-cristãos e Sociais-democratas UEN: Eurocépticos IND/DEM: Extrema-direita “ O antigo debate político foi substituído pelo linguajar económico ” 736 LUGARES UEN 18 digiscript 35 IND/DEM 93 Outros O novo Parlamento Europeu “ A história volta a oscilar em torno do humanismo renascentista ” digiscript Número de lugares por grupo parlamentar larga reputação nos meios académicos, coincide com Pettit, mas apenas num ponto – desapareceu a «visão coerente». Considera que desde a queda do muro de Berlim, em 1989, já passou tempo suficiente para a esquerda deixar de estar na defensiva, permitindo à direita a iniciativa: «A esquerda política esteve na defensiva devido ao descrédito da grande narrativa socialista de um século. A iniciativa política foi deixada à direita (…) e aos economistas, porque o antigo debate político foi substituído pelo linguajar económico». Neste debate académico das grandes ideias a nota dissonante vem da directora do L’Unitá, outrora o jornal oficial do Partido Comunista Italiano, Concita de Gregorio (46 anos), que remete o assunto para a realidade da pressão imigrante: «Neste momento histórico, a direita na Europa está a ter muito digiscript com o centro-esquerda e a extrema-esquerda. O paradigma norte-americano, na versão Obama, tem a sua simpatia e nessa linha avança com o conceito de «republicanismo cívico», que «equivale ao socialismo constitucional», mas por vias conceptuais muito próprias. O ponto de partida é a exaltação do livre direito de escolha: «a liberdade é o principal valor em política». A conjugação deste princípio com o do Estado leva a que este, enquanto administração, garante que todos os cidadãos possam assumir «sem ser dominados por outros as decisões básicas da sua vida». Tony Judt, o historiador inglês de 61 anos e O mapa dos países dirigidos por governos de esquerda mudou radicalmente no último decénio FRANÇA ITÁLIA África21– julho 2009 63 benoit doppagne/LUSA êxito principalmente devido ao medo da imigração e da pobreza». O segundo triunfo de Cohn-Bendit A visão alternativa a Philip Pettit irrompeu dos Verdes, em França, conduzidos desta vez pelo sempre-em-pé Daniel Cohn-Bendit, a figura mítica do Maio de 1968. Além de conseguir federar o movimento ecologista francês, Cohn-Bendit pô-lo à beira de ser a segunda força política do país, a uma unha negra do PS (16,5% contra 16,3%) e relegando para trás o centro de François Bayrou (8,5%). Em França, convém dizê‑lo, continua a liderar a frente gaulista, mesmo se agora sob as vestes pós-modernas de Sarkozy (27,9%). O triunfo de Cohn-Bendit mereceu-lhe a capa do semanário Le Nouvel Observateur (11/6/09), que titulou A pedrada Cohn-Bendit (Le Pavé). As razões para celebrar esta vitória são três. Primeiro, os Verdes da Alemanha e da França estão agora na mesma plataforma, ou seja, são partidos de Governo. Segundo, obtiveram essa posição conquistando-a maioritariamente aos partidos socialistas, mas, sobretudo nas camadas jovens, também aos partidos tradicionais 64 julho 2009 – África21 O SENHOR QUE SE SEGUE? DURÃO BARROSO O actual presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso (n. 1956), é, previsivelmente, o seu próprio sucessor. O Conselho Europeu, instância máxima da UE, que se reuniu a 17/18 de Junho para analisar os resultados das eleições e pôs na agenda a designação do presidente da Comissão, pronunciou-se por unanimidade pela continuidade de Barroso. A decisão final deve surgir a 15 de Julho, em votação no Parlamento Europeu, mas também pode ser adiada para Outubro, após o referendo irlandês ao Tratado de Lisboa. Para entender este puzzle é preciso conhecer as regras institucionais da UE, sem esquecer que as decisões que se tomam dentro destas instituições são políticas e não meramente administrativas. Por ordem, temos o Conselho Europeu, que agrupa os chefes de Estado e os de Governo e é o órgão máximo de decisão política. A par, há o Parlamento Europeu, que acaba de ser eleito, com os seus 736 deputados. Encontra-se numa situação de alta tensão. Se em Outubro os irlandeses votarem sim ao Tratado de Lisboa assume de imediato poderes de proposta de nomeação de candidatos para presidente da Comissão Europeia, função que o Tratado de Nice, ainda em vigor, apenas concede ao Conselho Europeu. Em conclusão, se a eleição for já em 15 de Julho, só há um candidato – José Manuel Barroso. Mas se o Parlamento decidir proceder à votação apenas depois do referendo irlandês e se o resultado deste for sim, então, como proclama Cohn-Bendit, já podem surgir outros candidatos, dado que os grupos parlamentares têm a possibilidade de avançar com nomes alternativos. Os poderes do presidente da Comissão Europeia são significativos. Cabe-lhe escolher os restantes membros, depois de auscultação da Comissão Europeia e dos grupos parlamentares e é, por enquanto, o representante da UE em todas as reuniões internacionais. da direita. Terceiro, têm uma base programática de explicação fácil e franca adesão social. Têm, sobretudo, pensadores em vez de publicitários, o que lhes permite ter uma visão histórica. No Nouvel Obs, atrás citado, dizia-se, preto no branco, que com Conh‑Bendit o movimento ecologista seguia a teoria gramsciana da homogeneidade cultural. Quer dizer que o equivalente à força social do movimento operário do virar do século XX é, na nossa actualidade, o movimento ecologista. Conseguiu tornar-se o modo deste nosso tempo e, segundo Gramsci, a formação política que souber incorporar os valores difusos mas dominantes da sua época definirá qual o sentido do tempo social desse século. Uma achega oportuna a este debate foi dada pelo reputado historiador Eric Hobsbawm (n. 1917), precisamente no número anterior deste hebdomadário francês (4/6/09). Ele recolocou a oportunidade do pensamento de Karl Marx (1818-1883) – de que Gramsci (1891-1937) é um inspirado seguidor – no tempo actual e, sobretudo, chamou a atenção para que «foram, paradoxalmente, certos homens de negócios quem, no fim do passado século e aquando da crise económica asiática e russa dos anos 1997-98» (…) «redescobriram a pertinência de Marx». Em síntese: «Marx compreendeu algo que os economistas convencionais negligenciaram: o capitalismo é um sistema que evolui de uma maneira instável, através de crises. No decorrer dessas crises, processa-se, de tempos em tempos, uma reestruturação do sistema». Em conclusão, a análise da história volta a oscilar em torno do humanismo renascentista e do seu corolário mercantilista: progresso social ou capitalista. Uma crónica de Mónica Ameixeiras, jornalista de El Periodico de Catalunya e retomada pelo Diário de Notícias (20/6/09) diz que os resultados das eleições europeias de 7 de Junho cabem numa frase: «Diversos politólogos e intelectuais europeus concordam que o fracasso da social-democracia europeia se deve ao facto de ser uma cópia da direita e, em última análise, os eleitores preferirem o original» Para sustentar esta conclusão, cita uma recente mega sondagem junto dos cidadãos da UE que revela que «72% considera que as desigualdades sociais são demasiado profundas; 78% acredita que a riqueza dos mais ricos é excessiva; 62% defende a expansão dos direitos laborais e sociais, universalizando-os». África21– julho 2009 65 gabão Requiem para um dinossauro A morte do Presidente Omar Bongo abre uma crise de sucessão difícil no Gabão e na África Central e Ocidental, onde o decano dos chefes de Estado ocupava um lugar de destaque, sem relação com as dimensões e o peso económico do país Nicole Guardiola M muitos gaboneses choraram sinceramente o desaparecimento do seu «yaya» (papá) Bongo» falecido oficialmente a 10 de Junho numa clínica de Barcelona, aos 73 anos. A esmagadora maioria nunca conheceu outro chefe de Estado, e todos estavam de tal forma habituados à sua tutelar omnipresença que o sentimento de orfandade não está isento de apreensão em relação ao futuro. Como sobreviverá o Gabão à morte do seu fundador? A pergunta estava também nas cabeças dos quinze chefes de Estado e das delegações estrangeiras que se deslocaram a Libreville para as exéquias do «velho sábio». A França, antiga potência colonizadora, esteve representada pelo Presidente Nicolas Sarkozy e pelo ex-Presidente Jacques Chirac, e o exemplo foi seguido por muitos dos chefes de Estado dos países africanos vizinhos, que se fizeram acompanhar pelos seus antecessores na última homenagem a um velho amigo, com o qual todos tinham uma dívida de gratidão. O Presidente Laurent Gbagbo fez votos para que os gaboneses encontrem a maneira de preservar a unidade e a estabilidade de que gozaram du- 66 julho 2009 – África21 Omar Bongo e esposa Edith durante a campanha eleitoral de 1998 rante cerca de meio século, poupando ao Gabão as rivalidades políticas que dilaceraram a Costa de Marfim após a morte de Félix Houphouet‑Boigny, em 1993, e que levaram à guerra civil e à ruína económica. Mas enquanto a oposição no exílio e organizações da sociedade civil exigem o fim imediato da «democratura» os analistas mais pessimistas – ou mais realistas – estimam que o Gabão dificilmente escapará a uma crise parecida com a que conheceu o Togo após a morte de Ngassingbe Eyadema em 1993, ou a Guiné Conacri após o desaparecimento de Lansana Conté, em Dezembro 2008. No Togo, o filho do falecido, Faure Gnassingbé, acabou por conquistar nas urnas o lugar que o pai tinha ocupado durante 26 anos, mas a violência pós-eleitoral fez pelo menos 500 mortos. Na Guiné Conacri, um golpe de Estado levado a cabo por oficiais subalternos impediu a cúpula do regime Conté de se apoderar do poder, colocando no seu lugar uma Junta militar presidida pelo capitão Moussa Dadis Camara. Em todo o caso, os dirigentes de Libreville parecem determinados a evitar a repetição dos erros cometidos pelos herdeiros putativos de “ Nenhum outro líder africano levou tão longe o açambarcamento dos meios de controlo sobre a sociedade ” JEAN-PHILIPPE KSIAZEK/AFP Eyadema e Conté e a respeitar escrupulosamente a Constituição. Rose Francine Rogombé, presidente do Senado, tomou posse como Presidente interina e reconduziu nos cargos respectivos o vice-presidente Didjob Divungi di Ndingi e o primeiroministro Jean Eyegue Ndong, que lhe apresentaram a sua demissão, como manda a Constituição. As primeiras divergências surgiram a propósito da marcação da data das eleições presidenciais. Consultadas por Rose Rogombé, todas as forças políticas reconheceram que o prazo constitucional de 45 dias era demasiado curto, mas enquanto o Partido Democrático Gabonês, no poder, quer que o escrutínio se realize o mais rapidamente possível, os principais partidos da oposição defendem que as eleições não poderão ser transparentes e credíveis sem um novo recenseamento eleitoral e a distribuição de cartões de eleitores biométricos, operações que podem obrigar a um adiamento de cinco a seis meses. Mais ameaçadoras para a estabilidade do regime são as vozes que começaram a levantar-se, no seu seio, para defender a necessidade de «virar a página» e colocar um ponto final na «era Bongo». O diário governamental L´Union foi o primeiro a introduzir uma nota discordante no coro dos elogios fúnebres com um artigo apelando ao rompimento «com um modo de gestão que prejudicou demasiado tempo a sociedade gabonesa no seu conjunto». Para o politólogo francês Jean-François Obiang o Gabão «já entrou na era pós-Bongo e começou a sair do sistema de amplo consenso criado pelo Presidente à volta da sua pessoa». Alguns analistas estimam que as divisões começaram muito antes da morte do patriarca e afectam a família mais chegada, com o filho primogénito Ali como cabeça de lista dos «reformadores» e a filha predilecta, Pascaline, no papel de guardiã da ortodoxia e tesoureira-mor do clã. Com efeito, para os Bongo o poder é um negócio de família e Omar Bongo colocou membros da sua numerosa progenitura (teve cerca de setenta filhos, de dezenas de mulheres) em todos os postos-chaves do Estado e da economia. Nenhum outro líder africano levou tão longe o açambarcamento de todos os meios de controlo sobre a sociedade e a asfixia de toda a forma de oposição. O segredo da longevidade política de Omar Bongo foi sem dúvida a sua capacidade para levar os seus adversários e inimigos a colaborar com ele. Só esteve seriamente ameaçado em duas ocasiões: em 1989, quando enfrentou duas tentativas de golpes de Estado, seguidas de violentas greves e manifestações que o obrigaram a pôr fim ao regime de partido único e aceitar reformas democráticas; e depois das eleições presidenciais de Dezembro de 1993, quando a oposição se recusou a aceitar os resultados, acusando o regime de fraude. Por cálculo e feitio, Bongo sempre preferiu o dinheiro à kalashnikov para vergar os seus adversários e recorreu sem limites à receita petrolífera para recompensar amigos e leais servidores. É acusado (sem provas) de ter sido o inventor do sistema das retro-comissões, que permitia a ELF e outras grandes empresas francesas de recuperar uma parte das «comissões» supostamente GABÃO: BI República do Gabão Capital: Libreville População: 1 383 000 PIB per capita: 7858 USD Esperança de vida: 69 anos Alfabetização: 95% Acesso à água potável: 86% Principais produções: Petróleo: 14,8 milhóes de barris Manganésio: 3,5 milhões de toneladas Madeira: 2,6 milhões de m3 Principais parceiros comerciais: EUA, França, China Fonte: BAD, 2007 África21– julho 2009 67 DESIREY MINKOH/AFP Manifestação contra o regime na Universidade de Liberville, em Dezembro de 2003 pagas ao Presidente gabonês para alimentar um enorme «saco azul» escondido em paraísos fiscais, que todos os Governos da V República francesa, tanto de esquerda como de direita, utilizaram para corromper dirigentes de países terceiros e conquistar mercados. Mas era frequentemente o próprio Bongo que assinava os cheques ou enviava malas cheias de notas para financiar as campanhas eleitorais dos seus «amigos» franceses ou africanos. A oposição gabonesa acusa-o de ter sido um «agente dos interesses franceses» e de ter dilapidado riquezas que pertenciam aos gaboneses para satisfazer os apetites da antiga potência colonial e amealhar uma imensa fortuna pessoal, acusações retomadas e ampliadas pela imprensa e ONG ocidentais. Três destas ONG – as associações Survie e Sherpa e a Federação dos Congoleses da Diáspora – conseguiram recentemente de um tribunal francês a abertura de uma investigação judiciária contra os Presidentes do Gabão, do Congo e da Guiné Equatorial, acusados de desvios de fundos públicos e enriquecimento ilícito. 68 julho 2009 – África21 Para muitos analistas, a morte de Bongo marca o fim de uma era na África Ocidental e Central e significa um golpe severo na influência francesa em ambas as regiões. Um a um, os Estados que faziam parte do «Pré Carré» (quintal) francês em África afrouxam os laços com a antiga metrópole e estreitam as relações com os Estados Unidos, China e Índia. Por isso, Paris acompanha com alguma ansiedade a transição gabonesa. Até ao fim de Junho, o único candidato declarado era Daniel Mengara, residente nos Estados Unidos e líder de um movimento da diáspora com um nome apelativo: BDP-GN (Bongo Deve Partir-Gabão Novo) Os «pesos pesados» ainda contavam as espingardas, aparentemente convencidos de que o menor erro táctico podia arruinar as suas hipóteses e já Ali Ben Bongo (50 anos), actual ministro da Defesa e vice-presidente do PDG, era dado como favorito. Mas outros membros do clã podem atravessar-se no seu caminho, a começar pela sua irmã Pascaline. Se os gaboneses não estão ainda preparados em eleger uma mulher para a chefia do Estado, Pascaline pode usar da sua enorme “ Era frequente o próprio Bongo assinar cheques ou enviar malas cheias de notas para financiar as campanhas eleitorais dos seus amigos franceses ou africanos ” OLIVER WEIKEN/LUSA digiscript influência para favorecer a candidatura do seu actual marido, Paul Toungui, ministro dos Negócios Estrangeiros, ou do anterior Jean Ping, presidente da Comissão da União Africana, conhecido em Libreville como «O senhor ex-genro». O primeiro-ministro Eyeghe Ndong e o ministro de Estado, das Minas e do Petróleo, Casimir Oyé Mba, não são ainda cartas fora do baralho. A confusão é ainda maior para os lados da oposição, desmoralizada e dividida. Pierre Mamboundou, líder da União do Povo Gabonês (UPG), segundo candidato mais votado nas anteriores eleições presidenciais, com 13,6 % dos votos, considera que tem as melhores possibilidades de levar a oposição à vitória e que o PDG já começou a implodir. O seu grande rival é Zacharie Myboto, um ex-primeiro-ministro que abandonou o PDG em 2005 para criar o seu próprio partido, a União para a Democracia e o Desenvolvimento (UPDD) e se candidatar à Presidência, mas é ainda visto como um homem do sistema, que abandonou o barco com os bolsos cheios. O Padre Paul Mba Albessol, opositor histórico que ganhou a Câmara de Libreville para a Oposição na década de 90, poderia ter agora uma segunda oportunidade se não se tivesse entretanto reconciliado com Omar Bongo e aceite o lugar de viceprimeiro-ministro que ocupa actualmente. Seja qual for o eleito, a tarefa do próximo presidente gabonês será ciclópica, porque a crise mundial golpeou duramente a economia gabonesa, agravando as desigualdades sociais e os efeitos negativos de 40 anos de políticas exclusivamente baseadas nas exportações de petróleo e madeira e no abandono da agricultura e das pescas. O outrora brilhante emirado do Golfo da Guiné, com apenas 1,3 milhões de habitantes para um território equivalente ao da Itália, é ainda um dos países africanos com o mais alto PIB per capita, mas mais de metade dos seus habitantes vivem na miséria, e as infra-estruturas e os serviços públicos estão em ruínas. GABÃO Omar Bongo numa das suas frequentes visitas a França, em Novembro de 2006 África21– julho 2009 69 ÁGUAS CORRENTES CORSINO TOLENTINO O voto da decência N a véspera do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, o Presidente Cavaco Silva quis dar um exemplo de decência vetando o décimo diploma desde o início das suas funções, em Março de 2006. O PR devolveu a nova Lei do financiamento dos partidos políticos ao Parlamento com um grande número de argumentos de natureza política, económica e ética, dos quais sublinho: (i) o diploma aumenta os limites do financiamento privado, sem diminuir os montantes do financiamento público; (ii) adopta um regime de financiamento tendencialmente público, do qual resultam especiais encargos para o orçamento do Estado e, por conseguinte, para os contribuintes; (iii) não estabelece os mecanismos de controlo para assegurar a transparência do financiamento privado; (iv) é inoportuno na presente crise económica, financeira e social. Quem está atento aos processos de caça ao voto como a via mais legítima de conquistar e conservar o poder percebe facilmente as razões do PR português e, se for sensível às questões económicas e sociais, tenderá a manifestar-lhe solidariedade. Estamos a falar de uma Lei aprovada com os votos favoráveis de todos os deputados de todos os partidos representados na Assembleia da República, com a excepção de José António Seguro, do Partido Socialista, o qual, certamente sem conhecer os desígnios do PR, teve a suprema coragem de se levantar sozinho no hemiciclo de São Bento para dizer NÃO. Por exemplo em Cabo Verde, onde a democracia e a liberdade andam menos‑mal, sempre me impressionou o contraste entre, por um lado, a enorme dificuldade que os representantes do povo encontram na construção de consensos sobre políticas públicas, tais como os programas de investimento, as infra-estruturas vitais, o Serviço Nacional de Saúde, a educação e o financiamento da previdência social e, por outro lado, a frequente unanimidade na aprovação do estatuto dos deputados ou do orçamento da Assembleia Nacional. A pergunta é até que ponto o sistema democrático impede a confusão dos interesses dos representantes com os interesses dos representados? Esta interrogação é ao mesmo tempo um convite para revisitar os princípios fundamentais da democracia e os seus principais ingredientes. O controlo popular dos processos de decisão colectiva e a igualdade de direitos no exercício deste poder de controlo são as duas pedras angulares da definição e, quando da nação se trata, a junção sempre imperfeita destes princípios só é possível nos sistemas representativos capazes de integrar no dia-a-dia quatro componentes indissociáveis: o respeito escrupuloso dos direitos humanos e das liberdades fundamentais; as eleições previsíveis, livres e justas; o governo responsável, firme e transparente; a sociedade civil informada e atenta. Não se pode afirmar com justeza que em Portugal estes princípios não são respeitados ou estes ingredientes não existem. “ O governo democrático é aquele que maior probabilidade tem de tratar os cidadãos por igual ” Então, qual é o problema? Já no século XVIII Jean-Jacques Rousseau justificava a sua desconfiança em relação ao sistema representativo enquanto sucedâneo da democracia directa com a afirmação de que, uma vez eleitos, os legisladores tendem a criar uma classe especial de privilegiados com valores e interesses diferentes dos valores e interesses dos seus eleitores. Nesta perspectiva radical, mas perto da realidade de vários países, os cidadãos seriam livres um dia de quando em vez, precisamente quando elegem os seus representantes. O certo é que, apesar de todas as imperfeições, o governo democrático é hoje em dia aquele que maior probabilidade tem de tratar os cidadãos por igual, satisfazer as necessidades fundamentais de todos, resolver os conflitos através do diálogo e do compromisso e, enfim, proteger os direitos humanos e as liberdades. O veto do PR situa-se entre o ideal da democracia directa e a razão pragmática da democracia representativa. Ou seja, entre a legitimidade do parlamento e a possibilidade de a decisão da maioria não ser democrática, prevaleça o saudável princípio do check and balance. Foi um belo exemplo de decência presidencial. África21– julho 2009 71 GABÃO Órfão de Omar Bango CABO VERDE A riqueza do um património desconhecido SUBNUTRIÇÃO Para uma melhor eficiência alimentar e energética INFORMAÇÃO, ECONOMIA E ANÁLISE Nº 31 - juLhO 2009 – 350 Kz / 4 uSD / 3,5 € ANGOLA Contra a crise crescer crescer, Contrariando as previsões das organizações económicas internacionais, o Governo diz que o país vai crescer 6% em 2009. Mas é preciso esperar para ver. Seja assinante da revista África 21 A Nova Movimento – empresa angolana proprietária de África21 – montou um sistema de recolha de assinaturas regionalizado, a fim de poder atender melhor, com mais rapidez e de maneira mais vantajosa, os diferentes assinantes da revista. Assim, as assinaturas serão recolhidas, conforme os casos, em três centros: Luanda, Lisboa e Brasília. Com excepção dos assinantes angolanos, todos os demais receberão o seu exemplar a partir de Lisboa – onde África21 é impressa – pelo correio. Como os custos de envio também são variáveis, conforme as regiões, o preço das assinaturas é igualmente regionalizado. Eis, a seguir, um quadro explicativo, com a tabela de preços das assinaturas e com os detalhes acerca dos centros onde os pagamentos deverão ser feitos, conforme os endereços dos assinantes. TABELA DE ASSINATURAS REGIÃO SEMESTRAL ANUAL BANCO SWIFT BRDKAOLU 809026 Angola KZ 3.500 KZ 6.000 Keve Brasil R$ 120 R$ 200 Banco do Brasil Portugal € 20 € 35 União Europeia € 30 € 55 Resto do mundo USD 60 Millennium BCP CONTA 32 390-X IBAN / AGÊNCIA AGENTE AO 06004700000080902615124 Movimento Agência 3603 - x (UnB) CCA BCOMPTPL 45371872997 PT 50003300004537187299705 Triangulação USD 100 Para começar a receber as revistas, basta enviar a ficha de assinatura, juntamente com o cheque ou o comprovativo do pagamento bancário, para os endereços abaixo indicados. Se preferir, pode escanear a ficha e o comprovativo do pagamento e enviá-los para os endereços electrónicos indicados para cada local. Assinantes de Angola Movimento, Lda Rua Frederico Welwitschia, n.º 82 Bairro do Maculusso Luanda Angola [email protected] Assinantes do Brasil CCA, Lda SHCGN - CL - Quadra 707 Sala 108 - Asa Norte Bloco D - Entrada 13 CEP: 70.750.734 - Brasília - DF Brasil [email protected] Assinantes de Portugal, União Europeia e resto do mundo Triangulação, Lda Apartado 19059 1990-999 Lisboa Portugal [email protected] [email protected] q Desejo assinar a revista África21 por 6 meses q Desejo assinar a revista África21 por um ano Nome:____________________________________________________________________________________________ Morada:__________________________________________________________________________________________ E-mail:_ __________________________________________________________________________________________ Número de assinaturas:______ Início da(s) assinatura(s) (mês)__________________________________________ Vou efectuar o pagamento através de: q Cheque n.º _____________________ do Banco________________________ em nome de q Movimento, Lda______________ q CCA, Lda q Triangulação, Lda q Transferência Bancária para q Movimento, Lda______________ q CCA, Lda q Triangulação, Lda No valor de_______________________ (por extenso: __________________________________________________ ) Assinatura _____________________________________________________________ Data ___/___/___________ 72 julho 2009 – África21 ENSAIO O «Fundo Soberano» da Finlândia [email protected] A Noruega tem petróleo e administra-o, sabiamente, em nome das gerações futuras, através do State Petroleum Fund. É a experiência mais bem sucedida com fundos petrolíferos. A Finlândia não tem Fundo Soberano constituído na base de recursos naturais não renováveis. O que este país tem é um tremendo Fundo Soberano de Recursos Humanos. D efinitivamente, quanto mais leio sobre a economia e sociedade dos países escandinavos, mais rendido fico aos seus modelos e às suas práticas de cidadania. A cidadania está para além da democracia e tem como valor supremo o respeito pela dignidade humana. Quando a reprovação moral da comunidade exerce efeitos muito mais dissuasores do que a sanção jurídica, então essa sociedade atingiu um patamar elevado de organização social. As pessoas têm de se sentir bem, o que é determinante para o desenvolvimento económico, pela simples razão de que os incrementos de produtividade surgem naturais e intrínsecos ao próprio modo de se trabalhar. Dir-me-ão não ser nada do outro mundo quando os países são ricos e desenvolvidos. Seguramente. Mas este equilíbrio na distribuição de cidadania só acontece porque, também, na mesma proporção, se realiza o equilíbrio na distribuição do rendimento. Que tem como base determinante o trabalho, a competência e o mérito com que é realizado e não outras formas de acesso a bens e dinheiro. Dois casos exemplares A Noruega e a Finlândia são os países mais equilibrados do mundo, onde o Índice de Gini é o mais baixo. São, talvez por isso mesmo, os mais desenvolvidos, com os mais elevados Índices de Desenvolvimento Humano. Alves da Rocha A Noruega só há cerca de 100 anos se tornou independente da Suécia e, neste ínterim, alcandorou-se ao primeiro lugar do desenvolvimento humano. A Noruega tem petróleo e administra-o, sabiamente, em nome das gerações futuras, através do State Petroleum Fund, de onde o Orçamento retira, tão-somente, 5%, para cobrir as suas tremendas despesas sociais. É a experiência mais bem sucedida com fundos petrolíferos, por causa da cidadania, que não existe sem transparência, boa governação e ausência de corrupção. A gestão deste Fundo é feita duma forma completamente autónoma da política orçamental e da política monetária. O que se pretende é capitalizá-lo, ao máximo, para que as gerações futuras tenham condições de vida comparáveis às das gerações presentes. Não se exerce a gestão do Fundo Soberano com a intenção de compartilhar poder ou exercê-lo por vias indirectas. Tudo porque a cidadania assim o determina. A Finlândia não tem Fundo Soberano constituído na base de recursos naturais não renováveis. Daí o ter intercalado com aspas o título da minha reflexão. O que este país tem – de resto, à semelhança de todos os escandinavos – é um tremendo Fundo Soberano de Recursos Humanos. O sistema de educação da Finlândia é fantástico, tendo possibilitado que, em menos de 40 anos, o país diversificasse a estrutura produtiva interna, tornasse mais competitiva a componente exportadora da sua economia e qualificasse os seus recursos humanos. Com efeito, em meados da década de sessenta do século passado, 55% do Produto Interno Bruto do país era constituído pela exÁfrica21– julho 2009 73 leit-motiv foi a cidadania ” ploração das florestas, sob a forma de pasta de papel, de papel e derivados. No final de 2008, este sector de actividade diversificou-se e a área de serviços passou a assumir o fundamental da estrutura económica da Finlândia. No sector terciário destacam-se as tecnologias de informação e comunicação e as actividades de pesquisa e inovação relacionadas, sobretudo, com o aproveitamento, sustentável, das florestas finlandesas, um dos seus principais recursos naturais. A Nokia simboliza a força e a profundidade destas transformações: de simples empresa que fabricava papel e botas de borracha, passou a líder na produção mundial de celulares, com 40% do mercado global. Educação, a chave O sistema de educação esteve na base deste admirável desenvolvimento. O ensino fundamental absorve praticamente 6% do PIB e encontra-se organizado duma forma extraordinariamente eficiente. Os professores, para sê-lo, têm de ter o grau de mestre em ciências da educação e devem dividir o seu tempo profissional em actividades de ensino, reciclagem e formação permanente, envolvimento comunitário e pesquisa. Cada professor tem a seu cargo turmas de 16 alunos, a quem ensinam as disciplinas curriculares – cujos programas são discutidos com os pais, os representantes do Ministério da Educação e os representantes da comunidade e dos estudantes – música, artes, cultura, ecologia e recreação. O domínio do conhecimento mais curioso leccionado às crianças é economia doméstica, compreendendo-se que a gestão destes importantes assuntos dum país começa a aprender-se tendo como referência a célula familiar. O tempo diário dedicado a estas actividades, por alunos e professores, é de cerca de sete horas, sen- 74 julho 2009 – DR “ Não foi pelo salário que se construiu o fantástico Sistema Nacional de Educação finlandês, o verdadeiro África21 do, provavelmente, devido a esta dedicação que as taxas de repetência quase não existem. Os professores estão «proibidos» pelos valores de cidadania a deixar à sua sorte os alunos menos talentosos. Sessões especiais de atendimento desta franja da população estudantil são programadas sempre que se revelarem necessárias. O salário líquido médio anual de cada professor é de cerca de 32 mil dólares, qualquer coisa como 2700 dólares mensais. Portanto, não foi pelo salário que se construiu o fantástico Sistema Nacional de Educação finlandês. O verdadeiro leit-motiv foi a cidadania, o respeito pelo semelhante, o reconhecimento social do mérito e os valores morais e éticos da comunidade. A educação de qualidade foi essencial para esta viragem, realizada em menos de 50 anos. A mão-de-obra qualificada permitiu que a electrónica substituísse a madeira e o papel como principais produtos de exportação. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento colocam a Finlândia em terceiro lugar no ranking mundial. Muitos anos, muitíssimos mesmo, vão ser necessários para se encontrarem, em África, países como a Noruega e a Finlândia. Algumas das mais «velhas» independências da África subsariana comemoraram, em 2007, 50 anos de idade, sem que, por isso, tenham conseguido resolver problemas básicos e essenciais. Por exemplo, a habitação continua a ser um dos problemas sociais mais graves de África e uma das fontes das dramáticas injustiças e desigualdades pessoais. A África do Sul, a economia mais poderosa do continente, não conseguiu, entre 1994 e 2008, construir senão 1970 mil casas, apresentando as suas maiores cidades défices permanentes de habitação condigna. Apesar da África do Sul ser o único país africano onde o direito à habitação está consagrado constitucionalmente, enormes dificuldades se têm colocado à mitigação deste flagelo social. África21– julho 2009 75 PorÊumaÊcidadeÊlimpa O Processo de crescimento das cidades, ocasionou o aumento da população e fatalmente aumentou os problemas relacionados com a limpeza urbana, como tal, é necessário a tomada de medidas visando dar destino correcto e seguro aos resíduos sólidos gerados nas cidades. Temos como objectivo oferecer à municipalidade, serviços especializados em recolha e transporte de resíduos sólidos domiciliares. Em 2002 surge uma divisão da empresa Rangol, Sociedade de Investimento de Angola, Lda., empresa fundada em 1990 pelo Sr. Carlos Vasco Montez, inicialmente Rua Eugénio de Castro, 43 - Vila Alice • Luanda - Angola Tel +24476 222 323 786 2009 • Fax +244 222 323 julho – África 21686 • [email protected] angol Sociedade de Investimento de Angola, Lda. voltada para as seguintes áreas: comercialização de veículos, rent-a-car e prestações de serviços. Com base numa política de diversificação das suas actividades a Rangol, expandiu os seus serviços, incluindo a recolha domiciliar, a limpeza manual e mecanizada de vias e logradouros públicos, e a limpeza de valas e fossas sépticas. crónica DA TERRA fernando pacheco O futuro da agricultura angolana e o conhecimento científico A ciência e a investigação têm sido tratadas como parentes pobres desde a nossa independência. As políticas públicas e as opções do desenvolvimento são traçadas com enorme desprezo pelo conhecimento científico. O mesmo acontece com a agricultura, essa estranhamente desconhecida. Lamentavelmente, é forçoso dizê-lo, os economistas angolanos – salvo uma ou outra excepção – contribuem muito para esse esquecimento. O Centro De Estudos E Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola, a mais dinâmica instituição angolana de pesquisa da actualidade, apresentou recentemente o seu Relatório Económico relativo ao ano de 2008. Os amantes do conhecimento reconhecem desde há muito a qualidade do trabalho produzido pelo Centro, traduzido em rigor e independência, como fica bem a qualquer instituição científica. Hoje, o Relatório Económico é uma referência incontornável para quem procure conhecer ou analisar a economia do nosso país e constitui um orgulho para a comunidade científica angolana. Colaboro desde há três anos na elaboração do Relatório na parte que se refere à agricultura. Faço-o pelo prazer que me dá o trabalho com uma equipa de excelente qualidade, para contribuir, na medida das minhas possibilidades, para a melhoria do conhecimento sobre a agricultura angolana, e para procurar influenciar as políticas públicas num domínio tão esquecido. Procuro também, desse modo, facilitar ligações entre o mundo rural com as suas dinâmicas comunitárias e o mundo da ciência, um dos nós que estrangulam o conhecimento. Por razões que a razão bem conhece, pois o petróleo, de modo aparente, resolve «tudo», a ciência e a investigação têm sido tratadas como parentes pobres desde a nossa indepen dência. As políticas públicas e as opções do desenvolvimento são traçadas com enorme desprezo pelo conhecimento científico. Uma análise comparativa dos recursos atribuídos, incluindo o tempo dos mais altos dirigentes, a eventos desportivos e culturais – muitos deles de qualidade duvidosa – e à pesquisa e ao ensino universitário, traduz-se numa copiosa derrota para estes últimos. O mesmo acontece com a agricultura, essa estranhamente desconhecida. Lamentavelmente, é forçoso dizê-lo, os economistas angolanos – salvo uma ou outra excepção – contribuem muito para esse esquecimento. Daí as penosas dificuldades porque passam quantos pretendem analisar de modo mais profundo as relações da agricultura com os restantes sectores da economia nacional na perspectiva de um modelo de desenvolvimento sustentável para o país. Debate ignorado Quando acontece mais um aniversário da partida do economista moçambicano José Negrão, que dedicou o seu notável saber, como nenhum outro africano de língua portuguesa, a tais relações, sinto que uma forma de homenagear a sua memória será publicitar o seu fértil pensamento. Por isso socorrime da análise de Negrão para, nos últimos relatórios económicos, tentar elevar o nível de análise e de debate sobre a agricultura angolana. Angola mantém-se à margem do conhecimento e do debate internacional sobre o dualismo da agricultura, um mal herdado do colonialismo e que raros países africanos ousaram enfrentar. No final do século XX começou a verificar-se uma ruptura epistemológica no domínio da produção teórica sobre o desenvolvimento. África21– julho 2009 77 De acordo com Negrão, os velhos paradigmas (modernização, pobreza, dependência, mercado), a que corresponderam diferentes modelos (dualismo, produtivismo, proteccionismo, neoliberalismo), deixaram desde há muito de dar resposta aos problemas que vão ocorrendo e a aplicação sucessiva dos modelos que a nós, africanos, vão sendo impostos tem consequências que tornam o desenvolvimento cada vez mais dependente de factores externos e com menos probabilidades de se tornar duradouro como seria desejável. Essa ruptura criou um vazio teórico que conduziu as agências internacionais, os doadores e os governos a um empirismo exacerbado nas suas actuações. O nosso mundo académico não está capaz de contrariar tal corrente, nem de fundamentar alternativas a esse empirismo, que permite aos políticos as decisões mais descabidas. Ainda segundo José Negrão, quando a produção teórica é inexistente ou entra em ruptura, como é o nosso caso, o caminho mais indicado poderá ser o retorno à evidência empírica, tanto para o enriquecimento de pressupostos como para a constituição de um novo quadro teórico. Isto não tem acontecido em Angola pela debilidade do seu mundo académico e de investigação. Apesar disso, algumas iniciativas individuais ou de grupo têm tentado encontrar alternativas viáveis e duráveis que permitam um desenvolvimento sustentável. Um exemplo tem sido a tentativa de contrariar o conceito de economia de subsistência e, em seu lugar, propor o de economia familiar. Com efeito, não só não é verdade que os camponeses angolanos pratiquem uma economia de subsistência, visto que a maioria, ou pelo menos uma parte muito significativa das famílias rurais se encontra integrada no mercado, como também o conceito tem pouco de operacional por dar ênfase à função produção em detrimento das funções de consumo e distribuição. Assim sendo, na economia familiar a imputação dos factores de produção tem por objectivos a maximização da segurança e o reforço das redes sociais que minimizam os riscos e, também, a multiplicação da produtividade marginal de cada factor. Por outro lado, a evidência empírica trouxe dois acrescentos ao pressuposto de que o conceito de camponês está ligado à terra e ao mercado: (i) a agricultura é uma importante, mas não exclusiva, fonte de rendimentos e (ii) a especificidade do comportamento de cada unidade singular é parte de um todo onde reside a garantia de segurança e de reprodução social. 78 julho 2009 – África21 “ Não é verdade que os camponeses angolanos pratiquem uma economia de subsistência ” Foi então adoptado o conceito de família rural camponesa como sendo a mais pequena unidade de produção, consumo e distribuição das sociedades rurais africanas. Paradigmas ultrapassados Simon Kuzents, citado por Negrão, no seu estudo sobre história do desenvolvimento económico moderno, concluiu que o pro- Hollis Chemery argumentou que este padrão de desenvolvimento dos países ocidentais não teria que ser inevitável, como não era inevitável o desenvolvimento fora do sector agrícola. Outras escolas que foram mais tarde esmagadas pelas correntes neoliberais, com destaque para a liderada pelo brasileiro Celso Furtado, defenderam que a agricultura e, consequentemente, o campesinato, têm um papel cada vez mais relevante no desempenho económico de países subdesenvolvidos. Alguns milagres económicos que tanto entusiasmam os nossos dirigentes assentaram em modelos que ignoraram estas formulações sem terem em conta que eles produziram cruas realidades sociais com milhões de famintos e excluídos que alimentam a criminalidade. É neste quadro que deve ser analisada a actual posição do Governo angolano sobre o agronegócio. A inevitável extinção do campesinato através de uma modernização agrícola que implique a sua transformação em trabalhador rural é ilusória pois a taxa de crescimento demográfico tende a manter-se elevada sem que a oferta de emprego nos sectores da indústria e dos serviços e mesmo das empresas agrícolas aumente em correspondência; os camponeses não são ignorantes, como demonstram vários exemplos em que os saberes locais permitem rendimentos tão ou mais elevados de que as empresas e conseguem mitigar a insegurança e os riscos; as formas de organização tradicional são mais duradouras; a fonte de informação sobre o mercado está a ser vencida graças ao telemóvel. Por outro lado, os custos em recursos humanos, financeiros, energéticos e fundiários e as consequências sociais e ambientais que uma opção pela acelerada modernização da agricultura exige e provoca são incomportáveis para o País. O importante é analisar as razões que dificultam o progresso da agricultura no seu conjunto, ter em conta a estrutura agrária realmente existente, apostar na capacitação dos recursos humanos e das instituições de suporte à produção (incluindo a investigação, a assistência técnica e, no topo das prioridades, o crédito e a rede de comercialização e transportes). Neste sentido, é crucial o estabelecimento e consolidação de relações entre as comunidades e grupos locais e as instituições de pesquisa e outras que contribuam para a definição argumentada de políticas públicas. Fernanda osório cesso de desenvolvimento tem como uma das suas principais características uma elevada taxa de transformação estrutural e sectorial da economia, o que conduz à ideia de que o desenvolvimento assentaria na acelerada reorientação da economia desde a agricultura (considerada sector primário) para a indústria (sector secundário) e para os serviços (sector terciário). “ A inevitável extinção do campesinato através de uma modernização agrícola que implique a sua transformação em trabalhador rural é ilusória ” África21– julho 2009 79 insumos DR BIC Portugal em expansão Exportações portuguesas para Angola crescem 21,6% A Agência e o Centro de Empresas do Banco BIC Portugal abriram em Leiria e Braga. Mira Amaral, presidente da Comissão Executiva da instituição, salientou o interesse do BIC em trabalhar directamente com os empresários da região, enquanto que é desejo do vice-presidente da Câmara Municipal de Leiria, Vítor Lourenço, que o banco seja muito bem acolhido e que «contribua para alavancar a economia da comunidade leiriense». Relativamente a Braga, referiu que esta região conta com excelentes empresas nas áreas das tecnologias, construção, calçado, metalomecânica e turismo capazes de investirem em Angola. O Banco BIC Portugal tem como principal objectivo prestar apoio às empresas portuguesas na estratégia de internacionalização para Angola e está a assumir um papel fundamental no fortalecimento das relações económicas entre os dois países. De referir que a CCIPA dá apoio a 400 empresas portuguesas, defendendo o aumento das relações Portugal/Angola, através da promoção e do desenvolvimento de estudos macroeconómicos sobre Angola e da divulgação de informação sobre os dois países. A instituição já conta com Agências e Centros de Empresas em Aveiro, Braga, Leiria, Lisboa, Porto e Viseu, as regiões empresariais do país com maior ligação económica a Angola. 80 julho 2009 – África21 arquivo áfrica 21 «No final de Abril, as exportações portuguesas para Angola ultrapassaram mil milhões de dólares, o que representa uma subida de 21,6%», revelou o presidente da Câmara do Comércio e Indústria Portugal Angola (CCIPA), Carlos Bayan Ferreira, durante um colóquio sobre as relações económicas entre os dois países. «Em quatro meses continua a haver uma dinâmica importante de interesse dos produtos portugueses em Angola», salientou. O presidente da CCIPA referiu também a importância do papel de Angola como quarto destino das exportações portuguesas e o primeiro fora dos países da União Europeia. Segundo dados divulgados pela Câmara, entre 2007 e 2008 o volume de exportações portuguesas para Angola registou uma subida de 35%, tendo atingido um valor superior a 3,1 mil milhões dólares. Missão empresarial portuguesa visita Angola Luanda, Benguela e Lobito receberam uma missão empresarial organizada pela Associação Comercial de Lisboa. A missão da ACL, integrada por empresários de diversos sectores de actividade – construção, transportes e logística, tecnologias de informação, produtos farmacêuticos e químicos, produtos alimentares, máquinas agrícolas e mobiliário urbano – foi a Angola com o objectivo de ajudar as empresas a estabelecerem contactos de negócio com vista à dinamização do comércio bilateral e do investimento no país. A Nicon Seguros STP, inaugurada a 10 de Junho, depois de oito meses de actividade, veio para ficar e ajudar a desenvolver a economia sãotomense. A garantia foi dada pelo director-geral da mais nova companhia de seguros implantada em São Tomé e Príncipe. Pius Agboola, em declarações à África21, acrescentou que um empresário antes de ter lucros, tem que investir: «Ele não pode colher antes de plantar. O que estamos a fazer agora é semear, dar mais do que estamos a receber». «Criatividade, compromisso e integridade» é a divisa da empresa que também pratica preços bastante razoáveis. Embora seja um país pequeno e com uma economia ainda embrionária, os responsáveis da empresa acreditam que São Tomé e Príncipe tem vantagens para que o negócio de seguros se afirme no arquipélago, nomeadamente por ser um ramo de negócios onde não há muita concorrência. A Nicon Seguros STP tem um capital social de 1,3 milhões de dólares, provenientes da contribuição de vários accionistas nacionais. É uma subsidiária da Nicon Seguros PLC da Nigéria que existe há 40 anos, com um capital social de 60 milhões de dólares e um activo de 423 milhões. A Cidade do Cabo, na África do Sul, acolheu entre 14 e 17 de Junho, o Fórum 2009 da AgroBusiness, no qual tomou parte José Briosa e Gala, conselheiro e representante para África do presidente da Comissão Europeia. O evento constitui uma plataforma de promoção do sector privado como factor de aumento da produtividade e crescimento em África. Os mais de 350 delegados internacionais, provenientes de vários quadrantes, debateram a actual conjuntura económica mundial e o seu impacto no sector agrícola no continente africano. Avaliaram as tendências globais como condutoras de oportunidades na cadeia agro-alimentar, identificando novas áreas de negócio para o sector privado; o acesso a novos mercados e incentivos ao comércio; e a necessidade de aumentar e manter os níveis de competitividade. Foi ocasião para discutir projectos com potenciais financiadores e parceiros de negócio, conhecer investidores internacionais e representantes do sector industrial, cooperativas, PME, multinacionais e financiadores, bem como representantes governamentais, ONG, universidades, centros de pesquisa, organizações internacionais e doadores bilaterais de mais de 50 países em todo o mundo. Sede da Nicon Seguros PLC na Nigéria DR Fórum AgroBusiness promove o sector privado DR Nicon Seguros STP Dzowo, o computador moçambicano Em Moçambique montam-se já 50 computadores por dia com a designação Dzowo, em homenagem a Eduardo Mondlane, primeiro presidente da Frelimo, assassinado em 1969. Os computadores são montados pela multinacional Sahara que, em parceria com as autoridades moçambicanas, montou o primeiro Centro de Desenvolvimento Tecnológico do país com capacidade inicial para produção e montagem de 11.520 computadores portáteis e de mesa, por ano. A partir do próximo ano, a transnacional prevê montar anualmente 19.200 computadores no país, uma produção em larga escala visando facilitar o acesso dos aparelhos aos moçambicanos. As máquinas da marca Dzowo são vendidas ao preço médio de 10 mil meticais (520 USD). Especializada no fabrico e montagem de computado res, a Sahara, sedeada na cidade de Joanesburgo, detém escritórios, centros de investigação e desenvolvimento na Grã-Bretanha, China, Emiratos Árabes Unidos, Índia, Botswana, Namíbia e Quénia. O lançamento do computador de fabrico moçambicano marca um dos pontos altos da passagem dos 40 anos da morte de Eduardo Mondlane África21– julho 2009 81 Quase 700 expositores aguardados na FIL Um total de 680 expositores de vinte e oito países deverá estar presente na edição deste ano da Feira Internacional de Luanda (FIL), marcada para os dias 14, 15 e 16 deste mês. «Os desafios do agronegócio em Angola» foi o tema escolhido para o evento. No final de Junho, o presidente do Conselho de Administração da FIL, Matos Cardoso, anunciou a intenção da entidade de criar um Centro Internacional de Negócios, para viabilizar e potenciar os contactos realizados entre os empresários estrangeiros e nacionais durante a realização da feira. A iniciativa teve a imediata adesão da Agência Nacional de Investimento Privado (ANIP). Como revelou o presidente da ANIP, Aguinaldo Jaime, está em curso um estudo para o estabelecimento de uma pareciia entre as duas entidades. «A Feira Internacional de Luanda pretende criar uma unidade que se ocupe da logística de apoio e assistência ao investidor. A Agência Nacional de Investimento Privado está interessada que essa actuação seja bem sucedida», afirmou Jaime. A FIL vai estabelecer parcerias como feiras internacionais de sucesso, como a portuguesa Exponor e as feiras de Madrid e Barcelona. Matos Cardoso revelou ainda que será construído um novo parque de feiras na capital angolana. A FIL vai aproveitar também a sua 26.ª edição para lançar o seu novo logotipo. 82 Cabo Verde desenvolve projecto em Angola Cinco milhões de escudos cabo-verdianos (600 mil dólares) é o capital inicial de uma sociedade agrícola cabo-verdiana para desenvolver um projecto na província angolana do Kuanza Sul. O terreno disponibilizado por Angola, diz a agência pan-africana de informação, PANA, «caracteriza‑se pelo solo arável e fértil, pluviosidade anual significativa, cursos de água permanentes, condições topográficas para tecnologias modernas a baixo custo, fácil acesso e disponibilidade de mão-de-obra local». A empresa criada pelo Estado cabo-verdiano terá competência para executar os planos estratégicos e de gestão necessários ao desenvolvimento agropecuário do terreno. Av. 4 de Fevereiro, 95, 3º, 34 – Luanda – Telefones: + 244 222 331 778 / 222 337 419 Telefax: + 244 222 339 698 – E-mail: [email protected] julho 2009 – África21 livro do mês Óscar Ribas. A Memória com a Escrita de Gabriel Baguet Jr. Uma biografia exemplar de Óscar Ribas Foi uma das figuras mais brilhantes da intelectualidade angolana do século XX. A fotobiografia de Gabriel Baguet Jr. faz-lhe devidamente jus pela documentação exaustiva sobre a sua vida e obra, mas sobretudo pelo enquadramento na sociedade angolana das décadas de 30 a 60. Rodrigues Vaz O Scar Ribas. a memoria com a escrita, assim se intitula o livro agora saído a lume, que conta com uma excelente apresentação gráfica de Pedro Simões, igualmente o autor da sugestiva capa, faz reviver a memória do autor de Ecos da minha terra, um dos seus livros mais emblemáticos, de uma forma saudosa mas, ao mesmo tempo, muito objectiva, deixando a impressão de que, realmente, Óscar Ribas (1909-2004) continua entre nós, pelo que não deve ser chorado, mas sim cada vez mais lembrado. Ainda bem, portanto, que no próximo mês de Agosto, dia 17, por ocasião dos cem anos do seu nascimento, vai ser reaberta a Casa-Museu Óscar Ribas, em Luanda, com uma exposição do acervo do escritor, conforme foi anunciado pela directora da instituição, Maria Fernanda de Almeida. A exposição tem como propósito fundamental divulgar e manter viva a figura de Óscar Ribas, bem como o seu acervo cultural e pessoal doado à instituição. Nascido em Luanda, Óscar Bento Ribas era filho de Arnaldo Gonçalves Ribas, natural da Guarda (Portugal), e de Maria da Conceição Bento Faria, natural de Luanda. Fez os estudos primários e secundários em Luanda, tendo passado pelo Seminário-Liceu de Luanda. Poucos anos depois da criação do Liceu Salvador Correia de Luanda, viria em dois anos a concluir aí o 5.º ano. Após uma estada em Portugal onde estudou aritmética comercial, regressa a Angola indo empregar-se na Direcção dos Serviços de Fazenda e Contabilidade. Residiu sucessivamente nas cidades de Novo Redondo, actual Sumbe, e Benguela, Ndalatando e Bié. Foi em Benguela que, aos 22 anos de idade, se começaram a manifestar os primeiros sinais da doença que, 14 anos depois, o levaria à cegueira definitiva, aos 36 anos de idade. 84 julho 2009 – África21 Considerado como o fundador da ficção literária moderna angolana, após António de Assis Júnior, Óscar Ribas iniciou a sua actividade literária nos tempos de estudante do Liceu. A sua primeira fase de publicações começa com duas novelas: Nuvens que passam, em 1927, e Resgate de uma falta, em 1929. Segue-se a segunda fase com Flores e espinhos (1948), Uanga (1950) e Ecos da minha terra (1952). Segundo o ensaísta e crítico literário Mário António, «nesta última fase se inicia a prospecção da africanidade na obra de Óscar Ribas» para a qual contribuiu decisivamente «sua Mãe, D. Maria Bento Faria, protótipo das senhoras africanas do outro tempo, mantendo vivas as fontes originais da sua própria sabedoria». Em toda a produção literária posterior, segundo Luís Kandjimbo, Óscar Ribas demonstra na verdade uma propensão pouco comum entre os escritores da sua geração e mesmo em gerações posteriores. Revela-se profundamente preocupado com os temas da literatura oral, filologia, religião tradicional e filosofia dos povos de língua kimbundu. Destas preocupações resultam a sua bibliografia dos anos 60, nomeadamente Ilundo–Espíritos e Ritos Angolanos (1958,1975); Missosso 3 volumes (1961,1962,1964); Alimentação regional angolana (1965); Izomba – Associativismo e recreio (1965); Sunguilando – Contos tradicionais angolanos (1967, 1989) Kilandukilu – Contos e instantâneos (1973); Tudo isto aconteceu – Romance autobiográfico (1975); Cultuando as musas – poesia (1992); Dicionário de Regionalismos angolanos. Conforme assinala no prefácio José Carlos Venâncio, «Óscar Ribas é dos poucos escritores angolanos a ver a sua obra reconheci- da pelas instâncias coloniais, sem que da mesma se possa inferir, directa ou indirectamente, qualquer comprometimento político do seu autor». Escritor e etnógrafo O seu mundo era a literatura e a pesquisa etnográfica celebrando a palavra e a fala, mas indiscutivelmente a Cultura Angolana acentua, por sua vez, Gabriel Baguet na introdução. «O escritor e o etnógrafo cruzavam-se num único homem, cuja preocupação central era preservar a memória da identidade para o futuro, mas também a memória de um povo através da vital importância que é a Cultura». Felizmente que Óscar Ribas cedo intuiu que «o conto angolano, ao invés do que muita gente supõe, não constitui uma produção morta, sem beleza imaginativa. Não. O conto angolano – fábula ou fantasia – representa uma bela concepção de engenho». Por isso, ele explorará até à exaustão a literatura oral angolana – que agora se costuma classificar como oratura – legando-nos todo um acervo etnográfico de grande riqueza informativa, indispensável para a memória futura. Não será para admirar, portanto, que Joaquim Pinto de Andrade, grande intelectual e líder angolano, quando de uma homenagem feita na Liga Nacional Africana em 3 de Julho de 1954, tenha dito: «A mensagem de Óscar Ribas é, sem dúvida, uma mensagem de coragem e optimismo em face da vida, de esforço aturado, de probidade no trabalho. Mas eu depreendo da sua obra alguma coisa mais, algo de mais profundo, que projecta para além do indivíduo. A mensagem de Óscar Ribas é para mim essencialmente uma mensagem de africanismo, ou para me exprimir mais concretamente com Jean-Paul Sartre, uma mensagem de negritude.» É interessante notar que isto se passou sete anos antes de os ango- “ Obra com um vasto e valioso espólio onde é possível ver os costumes de Luanda da primeira metade do século XX ” lanos terem começado a combater pela sua independência. E disse-se porque um homem cego e sábio, de laço e cara triste, já combatia há muito pelo seu país, através da palavra: «Que a nossa voz se faça ouvir e a nossa acção se faça sentir». Nitidamente, Pinto de Andrade tinha presente a publicação, dois anos antes, do livro Ecos da minha terra, colectânea de dramas angolanos, onde o investigador arquivou, de maneira tão eficaz como erudita, algumas lendas de Angola ainda por contar. E lembrar-se-ia, porventura, além de Uanga, de Ilundo–Divindades e ritos angolanos, onde de novo os méritos anteriores ressaltaram nos desafios da linguagem, na penetração e no mesmo conhecimento activo dos costumes e tradições, ainda no filão do folclore em que era Mestre naquela altura, em Angola. O livro é enriquecido com um vasto espólio fotográfico de grande valor arqueológico, onde é possível detectar sinais e tendências dos costumes de Luanda da primeira metade do século XX e integra numerosa correspondência com intelectuais de todo o mundo, nomeadamente Brasil, França e Estados Unidos, além de familiares. É realmente de louvar o trabalho do autor, pela teimosia e perseverança que demonstrou na recolha de tão vasto material e pela forma como o organizou, contribuindo de maneira indelével para a consolidação e o engrandecimento da cultura angolana. Óscar Ribas. A Memória com a Escrita Gabriel Baguet Jr. Edição de autor, 2009 JORNALISTA E ENSAISTA Nascido em Angola, Gabriel Baguet Júnior, 44 anos, trabalhou no Primeiro de Janeiro e Jornal de Notícias, com uma passagem pela RTP Porto: Tem uma pós-graduação em Jornalismo pelo ISCTE e pela ESCL, é autor de vários ensaios, com destaque para Um Olhar e Uma Voz, dedicado à cantora cabo-verdiana Cesária Évora, e publicado em 1999 na Revista de Letras e Cultura Lusófonas do Instituto Camões e de Percursos e Trajectórias de uma História: a Música em Macau na Transição de Poderes, também publicada em 1999, sendo actualmente quadro da RTP. Foi bolseiro da Fundação Luso-Americana no curso de Jornalismo Televisivo realizado pela Columbia University sob a orientação do Professor David KatelI. Foi co-autor com o jornalista angolano António Silva Santos de vários programas radiofónicos, entre os quais Músicas de África que Não Fala Português e sobre as independências de alguns Estados africanos. África21– julho 2009 85 CULTS Ray Lema em homenagem a Ali Farka Touré É Sociedade de autores lusófonos em formação N o I Encontro das Sociedades de Autores Lusófonas, a realizar em Lisboa em 10 de Novembro, se saberá se as negociações chegaram a bom porto. Por iniciativa da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), que a apresentou aos outros países da CPLP presentes em Washington, na cimeira mundial dos direitos de autor, que ali decorreu, vai decidir-se sobre a oportunidade de se institucionalizarem as relações entre as sociedades de autores dos diferentes países, através da criação de um comité lusófono no seio da Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (CISAC). 86 julho 2009 – África21 DR DR um dos expoentes da música africana. O pianista congolês, Ray Lema, exibiu o seu talento num espectáculo realizado a 25 de Junho no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. O momento, considerado ímpar, traduziu-se num claro «Tributo a Ali Farka Touré», homenagem a um «amigo e irmão mais velho». Os dois músicos africanos conheceram-se em São Paulo, no Brasil, quando foram convidados por Jorge Benjor para o Festival Heineken de 1998, contou à agência Lusa em Maio o congolês. Ray Lema descreveu Ali Farka Touré como um «homem magnífico, simples e humilde». Ele «dizia sempre que era agricultor mas era um grande artista». No concerto do CCB, o pianista tocou a solo composições próprias e interpretou dois temas do Ali Farka Touré, «Diaraby» e «Soukora». Ambos os temas são de Talking Timbuktu, o álbum que o maliano gravou com Ry Cooder e que conquistou em 1995 um Grammy na categoria de Música do Mundo. Ray Lema nasceu em 1946, em Lufutoto, «numa estação de comboio perdida no meio do nada». Aos 30 anos o músico partiu para os Estados Unidos, mas não gostou. «Fiquei muito isolado, estava no meio de norte-americanos e fazia-me falta tocar com músicos africanos. Não conseguia obter dos músicos americanos o que eu queria. Precisei de vir para a Europa.» Instalou-se em Paris, onde encontrou um grande vaivém de africanos. Ray Lema continua a viver na capital francesa e nunca mais voltou ao Congo. Diz que está previsto ir lá para uma série de concertos em breve. Kimalanga, C novo livro de FBaião om a devida circunstância e alguma pompa, foi lançada na Casa de Angola, em Lisboa, a última obra do escritor angolano FBaião, Kimalanga, respigos da história recente de Angola, «destes trinta e três/trinta e quatro anos de independência, naquilo que esses anos têm de mais sério, de mais profundo, (…) mais “estruturante” do que somos /ou não somos/ ou fomos/ ou nunca fomos e das diversas etapas que percorremos até hoje», como diz no prefácio Carlos Ferreira (Cassé). O prefaciador vai mais longe e afirma mesmo peremptoriamente: «O Fernando Teixeira, o Baião, dá-nos um retrato literariamente implacável de um quadrante social claro da nossa Angola de hoje. Porém de uma forma tão encantada, tão sui generis, tão simples e tão desconcertante, que o lemos de uma só penada, de um só jorro». Utilizando um estilo coloquial que vai enriquecendo com um crescendo de informações e apartes, sem abandonar uma linha narrativa que encontra na linearidade o seu encanto, FBaião agarra realmente o leitor através da utilização de uma estrutura de texto onde o diálogo é substituído eficazmente por uma narração directa, tão dúctil como fluente, enriquecida por um fino humor que tem tanto de cáustico Festival de Cinema no Maputo estreia MANUEL MOURA/LUSA A Um Povo Nunca Morre referência do filme é Eduardo Mondlane (aqui ao lado representado num mural do Maputo) e a sua estreia fez-se na abertura da 1.ª Mostra de Cinema da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), no passado 14 de Junho. Foram exibidos 60 filmes, um terço de origem moçambicana, diz a Lusa, que salienta o intercâmbio entre os 33 criadores cinematográficos, entre actores a realizadores, que estiveram presentes na capital do país durante a semana em que decorreu o certame. Esta 1.ª Mostra, que teve por tema «Uma comunidade, diferentes olhares», deve abrir caminho a outras, a decorrer anualmente em cada um dos oito países da CPLP. A estreia do filme Um Povo Nunca Morre assinalou, ainda, o 40.º aniversário do assassinato de Eduardo Mondlane, fundador e primeiro líder da Frelimo, que a seguir será projectado em Nwadjahane, terra onde Mondlane nasceu, situada no distrito de Manjacaze, província de Gaza, sul de Moçambique. África21– julho 2009 87 RUTH MATCHABE Mia Couto homenageado no Rio de Janeiro O escritor moçambicano Mia Couto foi homenageado na segunda edição do Festival de Teatro da Língua Portuguesa (FESTLIP), no Rio de Janeiro. «Estamos a consolidar uma parte da cultura de língua portuguesa. Mia Couto é homenageado pelo que representa e pelo incentivo que dá aos grupos de teatro. É uma pessoa de que o teatro de língua portuguesa se tem alimentado», afirmou na abertura do festival a responsável pelo evento, a actriz e produtora Tânia Pires. O festival, que decorre até dia 12 de Julho, apresenta um conjunto de onze espectáculos de grupos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Portugal. Mia Couto encontra-se no Brasil a promover o seu mais recente livro, Jesusalém, publicado simultaneamente em Portugal, Brasil e Moçambique. Portugal apoia Angola na protecção do património cultural m projecto comum para a protecção do património cultural angolano poderá ser desenvolvido entre Angola e Portugal. O interesse das autoridades portuguesas nesse sentido foi manifestado em Luanda pelo ministro da Cultura de Portugal, José António Pinto Ribeiro, que esteve na capital angolana por ocasião das comemmorações do Dia de Portugal, 10 de Junho. O projecto visa, fundamentalmente, restaurar e preservar sítios, edifícios e monumentos construídos durante a colonização portuguesa e que são considerados hoje património histórico de Angola. Por causa dos anos de guerra, essa herança não foi cuidada devidamente pelas autoridasdes angolanas. Mais recentemente, a febre imobiliária que tomou conta do país, em especial Luanda, levou à destruição de vários edifícios emblemáticos, apesar do clamor da sociedade civil. O Governo angolano parece preocupado, agora, em salvar o que resta desse património urbanístico. «Portugal quer muito ajudar o país no trabalho de recuperação da memória e da sua identidade cultural», disse Pinto Ribeiro à imprensa local. A formação de especialistas angolanos em técnicas de restauro e preservação será uma das vertentes da parceria proposta pelo ministro português. 88 julho 2009 – África21 JOÃO ABREU/LUSA U José Pinto Ribeiro (à esq.) com José Carlos Vasconcelos, cronista da África 21, nas Correntes D`Escritas, Póvoa de Varzim, em Fevereiro de 2009 CONQUISTE O SEU LUGAR NO MUNDO. POUPANDO COM O BPA O FUTURO É SEU. Saber poupar é essencial para criar uma base sólida para o futuro. Uma base que lhe permita viver com tranquilidade e maior segurança. Mas não só. A poupança é também o primeiro passo para um dia poder investir e passar a olhar o mundo de forma mais ambiciosa. Por isso, acredite nos seus sonhos e venha ao BPA conhecer a importância da Poupança e do Investimento. Verá que o mundo está ao seu alcance. Nós, vamos ajudá-lo a partir à conquista. África21– julho 2009 89 livroS Do encontro entre um estudante angolano e uma jovem mongol, nos anos 60, em Moscovo, nasce um amor proibido. Baseada em factos verídicos, ficcionados pelo autor, esta história põe em evidência a vacuidade de discursos ideológicos e palavras de ordem, que se revelam sem relação com a prática. Política internacional, guerra, solidariedade e amor, numa rota que liga um ponto perdido de África a outro da Ásia, passando pela Europa e até por Cuba. Uma viagem no tempo e no espaço, o de uma geração cansada de guerra num mundo cada vez mais pequeno. Mais um romance de Pepetela que se lê num fôlego. Com uma belíssima capa. O Planalto e a Estepe Pepetela Dom Quixote, Lisboa 2009 Escrito por dois economistas, um dos quais Prémio Nobel da Economia em 2002, e com prefácio à edição portuguesa de Fernando Nobre, este Comércio justo para todos revela-nos de uma forma acessível e simples como podem os países mais pobres enveredar pelo caminho do desenvolvimento, num cenário de comércio realmente livre. A base da tese apresentada é a abertura dos mercados no interesse de todos, e não apenas de algumas economias mais poderosas. Diz Fernando Nobre, no final do seu prefácio: «Desejo sinceramente que o conjunto de ferramentas económicas e políticas que Stiglitz desenvolve e propõe seja adoptado por quem de direito: Nós». Comércio justo para todos Joseph Stiglitz & Andrew Charlton Texto Editores, Lisboa 2009 90 julho 2009 – África21 Quando Raposo Tavares atacou a Missão jesuíta de Jesus Maria, o seu objectivo era conquistar a região do Tape em nome da Coroa portuguesa e destruir o sonho do Superior Diego de Trujillo, seu inimigo de longos anos. Estava longe de imaginar que começava ali uma corrida de vida e morte à maior bandeira de sempre em terras do Brasil… O jornalista Pedro Pinto estreia-se na escrita com um romance empolgante, que o leva ao Brasil do século XVII. Aventura, exotismo, paixão, traição e ambição são alguns dos ingredientes desta história. O último bandeirante Pedro Pinto A esfera dos livros, Lisboa, 2009 «A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: Jesusalém. Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes.» Assim começa o romance de Mia Couto lançado em Junho, obra considerada a mais madura e mais conseguida do autor, que alia uma narrativa a um tempo complexa e aliciante ao seu estilo poético tão pessoal. Jesusalém Mia Couto Caminho, Lisboa 2009 Escreve o autor em notas finais do livro que deve o título ao poeta moçambicano Virgílio de Lemos «que há anos vem classificando alguma da nova ficção africana em língua portuguesa como barroca tropical». O romance Barroco Tropical viaja até 2020 e decorre nas ruas de Luanda, uma cidade em convulsão. Numa escrita humorada, em forma de thriller político, José Eduardo Agualusa traça um retrato impiedoso da sociedade actual angolana através das desventuras por que passa Bartolomeu Falcato, o protagonista. Barroco Tropical José Eduardo Agualusa Dom Quixote, Lisboa 2009 músicas STÓRIA, STÓRIA MAYRA ANDRADE MANY THINGS SEUN KUTI Mayra Andrade vive actualmente em Paris, nasceu em Cuba e cresceu com passagens por Angola, Senegal, Alemanha e, claro, Cabo Verde. E viajou. Muito. Stória, Stória revela isso mesmo; alguém que transporta consigo, na sua criação, sons e imagens de todo o mundo. Este segundo álbum confirma, e reforça a sensação já deixada por Navega, editado em 2006, e que recebeu múltiplos prémios. Está lá tudo, incluindo as sonoridades cubanas e brasileiras. E uma voz que surpeende, mesmo para quem com ela convive musicalmente há dois ou três anos, principalmente pela sua clareza e forma como envolve as notas que os seus músicos lhe deixam. Um orgulho para os cabo-verdianos, certamente, mas também para todos os amantes da boa música. Stória, Stória foi gravado em França, Brasil e Cuba, foi produzido pelo experiente Alê Siqueira, e conta com a participação de diversos compositores de Cabo Verde. Se Navega foi uma explosão musical que encantou meio mundo (Mayra foi convidada para colaborar com músicos consagrados, como Chico Buarque ou Charles Aznavour), este segundo álbum, com uma história ainda curta no mercado musical, prepara-se para se apresentar aos olhos dos criticos e dos seus admiradores embrulhado na expressão «confirmação». Uma confirmação que chega cedo, com Mayra na casa dos vinte anos. Cedo de mais, poderão dizer alguns. Poucos, seguramente, já que a postura da cantora teima em mostrar, todos os dias, espectáculo após espectáculo, entrevista após entrevista, e nos registos musicais que vai deixando em estúdio, que a maturidade também se pode alcançar antes de uma década de carreira. A época da revelação já lá vai. Fiquemos agora com esta força e alegria que transborda de Stória, Stória e, para os privilegiados, com os seus próximos espectáculos. É o disco de estreia. Era um conjunto de músicas aguardadas. Tinha a responsabilidade adicional de ser o primeiro disco de um dos filhos de Fela, o principal criador e divulgador do afrobeat. E como nota de risco, alguns dos músicos que participaram no álbum já tinham tocado com o seu pai. Entretanto, Many Things foi lançado, já vende pelo mundo inteiro, e temos músico. E com personalidade própria. Fela está lá. A MÃE RODRIGO LEÃO & CINEMA ENSEMBLE E pronto, já cá está. Numa embalagem muito feliz, com design de Pedro Cláudio, temos um conteúdo desejado por muitos, e que se escuta de uma vez. Produzido em memória da mãe, apresenta uma sonoridade que atravessa parte significativa da sua carreira, bebendo aqui e ali as notas de uma vida há muito dedicada há música. Recorde-se que Rodrigo Leão já traz consigo 25 anos de carreira. Foi fundador dos Sétima Legião, na década de 80, e foi parte activa de um dos mais importantes e marcantes projectos musicais da década de 90, os Madredeus. Depois, prosseguiu a solo, com múltiplos álbuns, onde foi trabalhando uma sonoridade muito própria, e envolvendo sempre bons executantes. A Mãe, borilado em diversas partes do mundo, incluindo Goa, conta com a voz de Ana Vieira e com a colaboração da Sinfonietta de Lisboa. É um disco melancólico, como afirma o próprio Rodrigo Leão. Mas alegra-nos. Normal. Mas na inspiração, apenas. Seun Kuti parte por um caminho próprio; para uma sonoridade sua. De forma simples, talvez os seus sons sejam mais aveludados, mais ocidentalizados do que os de seu pai. Mas está lá a força toda que se poderia esperar, está lá a mensagem de uma África à procura do seu espaço, e de uma Nigéria fervilhante em termos sociais, sonoros; está lá Lagos, a gigantesca capital de um país que não pára, e onde todos vão cabendo. Uns bem, outros nem tanto. Como cabe Many Things, e o seu ritmo. E bem. E aquele saxofone, que aqui e ali sobressai. Definitivamente, os Kuti têm mais um herdeiro musical. África21– julho 2009 91 filmes Numa época em que são produzidos centenas de documentários por ano sobre natureza e o ambiente, num período em que diversos canais temáticos de televisão nos apresentam dezenas de documentários por dia, não deixa de ser curioso o impacto que Home o mundo é a nossa terra e A 11ª hora estão a ter em diversos países. Em comum têm a qualidade colocada na sua produção, e a actualidade do tema que abordam: a terra e a sua vulnerabilidade. KUDURO, FOGO NO MUSEKE A 11ª HORA Kuduro, fogo no Museke é um documentário, a segunda parte de uma trilogia que o autor dedicou à música de Angolana, iniciada em 2005 com Angola – Histórias da música popular. Para quem anda distraído, ou está menos atento a estas realidades da música, o Kuduro é uma expressão artística; é música e dança urbana; embora para outros, como o escritor José Luís Mendonça, seja simplesmente um mito criado pelos média e pelos empresários da área musical, como afirma no próprio documentário. Mas para muitos, o Kuduro é essencialmente um retrato social e cultural de uma geração angolana, de uma nova geração angolana. Ou uma forma de revolta. Ou de afirmação. De forma escorreita, simples, socorrendo-se dos próprios intérpretes, Jorge António apresenta-nos diversas visões e perspectivas sobre uma corrente artística que Angola, lentamente, tem exportado para o mundo, e a que poucos ficam indiferentes. Produzido e narrado por Leonardo DiCaprio, A 11º Hora tinha, logo à partida, o factor marketing a seu favor, havendo até quem com ironia alegasse que pouco mais teria. Puro engano. É verdade que o actor/produtor traz um valor acrescentado em termos promocionais. Mas o impacto que o documentário está a revelar a nível mundial (e não só nos Estados Unidos) deve-se, essencialmente, a uma narrativa muito objectiva, clara e muito opinativa. E a uma produção cuidada. Socorrendo-se de imagens por vezes impressionantes de cheias, incêndios ou furacões, e de depoimentos de diversos pensadores e cientistas (e é aqui que se percebe a origem norteamericana da coisa…), A 11ª Hora faz-nos realmente reflectir sobre o futuro que queremos para a humanidade, neste planeta. Um dado curioso, e que sintetiza um pouco a mensagem que se pretende passar: uma criança da União Europeia ou dos Estados Unidos consegue distinguir mais logótipos de empresas do que identificar animais ou plantas. Realização: Leila Conners Peterson e Nadia Conners Apresentação: Leonardo DiCaprio Duração: 89 minutos Distribuição: Warner Bros Pictures Realização: Jorge António Duração: 52 minutos 2007 HOME O MUNDO É A NOSSA TERRA De Yann Arthus-Bertrand, Home o mundo é a nossa terra apresenta-se como uma viagem e um hino ao planeta, à sua diversidade, à sua complexidade, mas também à sua fragilidade. Ao seu equilíbrio instável, e altamente dependente da forma como os humanos lidam com as suas especificidades, com o seu próprio equilíbrio. Na terra, cada espécie tem o seu lugar. Mas só o Homem parece querer sair do seu. Sem moralismos, Yann Arthus-Bertrand, que já nos tinha surpreendido com o livro A Terra Vista do Céu, consegue maravilhar-nos com as suas imagens, com um texto cuidado, mas simultaneamente, e principalmente após a primeira meia hora – com a introdução do homo sapiens na narrativa – a inquietar-nos, a deixar que levantemos as nossas próprias interrogações. À medida que vamos entendendo como fomos moldando a terra, segundo as nossas necessidades, inicialmente agrícolas, mas depois para satisfazer outras exigências, as interrogações aumentam. Um documentário em que cada um é livre de retirar as suas próprias conclusões. Realização: Yann Arthus-Bertrand Duração: 113 minutos Distribuição: ZON Lusomundo 92 julho 2009 – África21 África21– julho 2009 93 memória Ricardo Rangel (1924–2009) Para além da objectiva D esapareceu Ricardo Rangel, um dos pioneiros do fotojornalismo. Morreu no passado 11 de Junho, no Maputo, cidade que o viu nascer em 1924. Tinha 85 anos e uma história feita de momentos mágicos e ao mesmo tempo trágicos. Como o daquela fotografia tirada em 1972 em Changalane, que nunca saiu em jornal. Apareceu anos depois, já Moçambique era independente, em anexo num álbum sobre um tema que era a sua imagem de marca – a fauna humana da Rua Araújo, na década de 1970, na então Lourenço Marques. O Pão Nosso de Cada Noite, editado em 2005, reúne as fotos desse período decadente da colonização branca tardia e define a personalidade do seu autor. Ele não pertencia àquele meio, onde se cruzavam prostitutas, marinheiros e outros noctívagos, entre eles os pides, agentes da polícia política salazarista, sempre de olho vigilante e comportamento boçal. Ele era filho de pai grego e, se bem que tivesse ascendentes chineses, era, para todos os efeitos, um branco da cidade. «As pessoas diziam-me: ‘Tu não és preto, porque é que andas a tirar fotografias a pretos?’ Comecei a tomar cons- Marca de gado em jovem pastor. Aconteceu como punição por ter perdido uma rês. Changalane, Moçambique, 1972 94 julho 2009 – África21 “ As pessoas diziam-me: Tu não és preto, porque é que andas a tirar fotografias a pretos? ” ciência [política] quando as queria publicar e a censura cortava. Nada de mendigo, o gajo todo roto a pedir, o polícia a algemar o indígena. Tirei muitas fotos que sabia que nunca seriam publicadas». O desabafo é de Ricardo Rangel, no decurso de uma entrevista que deu ao escritor moçambicano Luís Carlos Patraquim e que este publicou num diário português, Público, em 1991. A Rua Araújo era «impublicável», diziam-lhe os chefes nas redacções e confirmava-o o lápis azul da Comissão de Censura, sempre que havia alguma ousadia. Como também foi proibida a já citada foto de Changalana, de 1962, retratando um jovem que o patrão marcou na testa como se fosse gado, por ter deixado extraviar uma rês. Por isso, Rangel passou a guardar os negativos em casa e com eles se pode fazer mais tarde a outra imagem do país, a dos explorados. O funeral de Ricardo Rangel foi, sobretudo, um momento de expressão do reconhecimento dos moçambicanos pelo seu retratista e, honrando a sua vontade, fez-se ao som da música de Charlie Parker. António Melo África21– julho 2009 95 ÚLTIMA PÁGINA JOÃO MELO T A construção da democracia enho afirmado muitas vezes, em diferentes ocasiões, que a cultura autoritária é ainda muita forte em Angola, por razões históricas e objectivas. O caldo autoritário nacional provém de três raízes: a cultura autocrática «tradicional» (ou seja, rural), o colonial-fascismo e o modelo marxista-leninista adoptado nos primeiros 16 anos de independência. Esse problema não tem partidos: atravessa horizontalmente toda a sociedade; em rigor, começa no interior dos lares. A construção da democracia angolana tem de ser entendida, pois, como um processo. Afinal, e parafraseando o mais do que manjado aforismo, Roma e Pavia não se fizeram num dia. Uma corrida de obstáculos – eis a imagem que me ocorre para representar esse processo. Esclareço: uma corrida de fundo. A seguir, procurarei abordar, de maneira aleatória e resumida, seis obstáculos que, na minha opinião, é preciso superar para a edificação de uma genuína e responsável cultura democrática em Angola. O primeiro é a tendência para a pessoalização. Isso tem dois aspectos: por um lado, toda e qualquer crítica é considerada pelos visados como um ataque pessoal; por outro lado, muitas críticas possuem, realmente, uma motivação pessoal, que roça muitas vezes o preconceito boçal. O segundo é a teoria da conspiração. Há ainda muita gente que vive no clima pré-anos 90 do século passado e vê «inimigos» em todo o lado. 96 julho 2009 – África21 O facciosismo é o terceiro obstáculo. De facto, ainda é excessivamente frequente ajuizar e valorizar as opiniões conforme a «cor», em especial partidária, mas não só (também de grupo, por exemplo), dos seus autores. A opinião dos «nossos» é considerada sempre válida, enquanto a dos «outros» é desqualificada à partida. Uma variante do facciosismo é o corporativismo. Esse é o quarto obstáculo a ultrapassar para a construção de uma verdadeira cultura democrática entre nós. Os «coleguinhas» que me desculpem, mas essa classe – a que me orgulho de pertencer e que tem um papel crucial na edificação da democracia em qualquer sociedade – é uma das mais afectadas pelo espírito corporativista. O quinto obstáculo é a dependência dos cidadãos, individualmente ou organizados, das macroestruturas sociais (Estado, partidos, etc.). Isso merece um estudo sociológico aprofundado, que, como é óbvio, não cabe aqui. Mencionarei apenas, entre as várias causas dessa dependência, a estrutura salarial predominante quer no Estado quer em muitas empresas (salário de base reduzido, compensado com subsídios e regalias), assim como a relação clientelar entre a maioria das empresas e o Estado. Esses dois factores – sem esquecer, claro, as cumplicidades e jogos de interesses, que, como em qualquer outra sociedade, também existem entre nós – limitam a autonomia e a capacidade crítica dos cidadãos, incluindo a desse importante [email protected] “ A democratização é uma espécie de corrida de obstáculos ” segmento da sociedade civil, que são os empresários. Por isso, a reacção de alguns deles às recentes medidas económicas do Governo pode ser vista como um sinal de que, contrariando os mais cép ticos, a construção da democracia em Angola está a avançar. Enfim, o sexto obstáculo que não posso deixar de referir é o recurso ao anonimato para proferir e defender opiniões. Na maioria dos casos, isso serve apenas para acobertar ataques soezes e mesquinhos, intrigas, insultos, calúnias e difamações, ou seja, verdadeiras agressões que, em nome da democracia, a pervertem completamente ou mesmo impossibilitam. O principal exemplo dessa tendência são os blogs que pululam por aí. Ao qual se pode também acrescentar o abuso de pseudónimos a que se assiste no jornalismo angolano. É claro que o uso de pseudónimos é uma prática universal e antiga. Mas eu penso que, nesta fase, e tratando-se sobretudo de opiniões políticas ou afins, a estratégia mais construtiva e pedagógica para ajudar a criar uma cultura democrática responsável entre nós é escrever e assinar em baixo (ou, como neste caso, em cima).