ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96
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96 HUNGRIA COM SOTAQUE BRASILEIRO A didática da música popular brasileira nos livros de Harmonia do educador Ian Guest e sua influência nos músicos do país. Afonso Felipe Galdino Leite Romagna1 RESUMO Este artigo trata da análise didática utilizada pelo autor Ian Guest em seus livros de Harmonia I e II, tendo como referência principal a música brasileira. Foram considerados o aumento dos estudos acadêmicos relacionados à música popular no país, visando também a comparação com bibliografias específicas neste assunto. Neste sentido, propõe-se uma atividade baseada na pedagogia de Ian Guest e também uma análise da sua influência nos músicos deste gênero musical no país. Palavras-chave: Harmonia; Música Popular Brasileira; Ian Guest. HUNGARY BRAZILIAN ACCENT The teaching of Brazilian popular music in the books of the Harmony educator Ian Guest and his influence on musicians of the country. ABSTRACT This article deals with the didactic analysis used by author Ian Guest in their books of 1 Afonso Felipe Galdino Leite Romagna é Mestrando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi. Músico Profissional desde 2001, possui Especialização em Educação Musical pela Faculdade Paulista de Artes - SP (2014). ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 97 Harmonia I and Harmonia II, having as a main reference to Brazilian music, whereas the increase in academic studies related to popular music in the country, aiming also to comparison with bibliographies specific to this subject. In this sense, it is proposed that an activity based on the pedagogy of Ian Guest and an analysis of their influence on musicians of this musical genre in the country. Keywords: Harmony; Brazilian Popular Music; Ian Guest. INTRODUÇÃO O contexto contemporâneo faz com que a sociedade se conforme às várias transformações existentes no dia a dia, quer sejam nas áreas da tecnologia, da economia, da política, das artes, da saúde, cultura, da educação, do social, bem como das relações interpessoais. Assim, não é forçoso afirmar que a humanidade está sempre se adaptando às experiências do cotidiano. Neste caleidoscópio de informações onde se localiza a sociedade atual, cuja lógica do efêmero é que organiza a sua sobrevivência, indaga-se: A abordagem dos livros de Harmonia do compositor Ian Guest possui realmente um foco na música popular brasileira se distanciando do sistema educacional do Jazz Americano? Para tanto, partiu-se do pressuposto que com a forte influência cultural dos Estados Unidos da América em diversos países, e não sendo o autor Ian Guest um brasileiro nato, há uma tendência para que um dos livros de Harmonia mais utilizados no estudo de música popular no Brasil não dê o enfoque necessário no sentido de valorizar a raiz da música brasileira. Nesta perspectiva, para elucidar os questionamentos elencados, este artigo baseou-se na análise da importância do contexto folclórico e cultural de alunos no ensino em geral. O recorte deu-se através da análise metodológica realizada pelo autor para a composição dos livros, e se a metodologia aplicada é mais voltada para os princípios musicais baseados na cultura brasileira ou segue os padrões da música dos Estados Unidos da América. O método de pesquisa foi bibliográfico e buscou a comparação entre produções do mesmo gênero e assunto. Livros de harmonia da escola Berklee e do escritor Mário de ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 98 Andrade foram utilizados como base na análise da relação entre as metodologias utilizadas. As produções acadêmicas sobre as metodologias de música brasileira que fazem referência ao autor Ian Guest se mostraram objetivas para uma melhor compreensão da personalidade didática do autor em questão. Foi realizado também um estudo prático e uma proposta de aula com base na metodologia dos livros do Ian Guest. 1 IAN GUEST E SUAS INFLUÊNCIAS Ian Guest, natural da Hungria, vive no Brasil desde 1957. Tornou-se bacharel em composição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e bacharel Magna Cum Laude pela Berklee College of Music em Boston, USA. É membro da Associação Kodály do Brasil, sendo da primeira geração criada através deste método de musicalização no conservatório Béla Bartók em Budapeste, sendo essa uma das suas maiores referências pedagógicas para o ensino da música. 1.1 Kodály x Ian Guest Falar de Kodály requer uma contextualização da importância que este educador exerceu para educação musical do seu país. Nascido em 1882, foi extremamente nacionalista e trouxe para si a responsabilidade de resgate da cultura musical húngara. As verdadeiras fontes folclóricas da Hungria estavam preservadas no interior, intactas a influências da música que se fazia no período, e foi este resgate que Kodály e sua equipe fizeram para desenvolver novamente a identidade cultural do país (FONTERRADA, 2008, p. 151). Folclore, segundo o dicionário Aurélio, é apreendido como “[...]um conjunto das tradições, lendas, canções, costumes populares de um país e são transmitidas de geração para geração de forma oral” (FERREIRA, 1988). Através dessa definição pode-se compreender o folclore como sendo um tipo de conhecimento que vem do povo, pois não foi imposto e assim trata-se de uma ação que ocorre de maneira espontânea numa ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 99 determinada comunidade. Outra definição pertinente e mais contextualizada foi feita por Benjamin em um artigo para a Unicamp em 2008: O folclore é universal e tradicional em seus temas e motivos, que devem ser considerados invariantes. É regional e atualizado na ocorrência das variantes, que são o resultado da criatividade do portador do folclore e de sua comunidade [...] (BENJAMIN, 2008). Dentro desse contexto de valorização do folclore, Ian Guest se tornou um dos educadores mais conhecidos com suas publicações principalmente relacionadas ao ensino da Harmonia Popular. Não é por acaso que valorize esse tipo de teoria educacional, sendo um dos introdutores do método Kodály de musicalização no Brasil, tornando-se um precursor do ensino da música popular no país. Para melhor compreensão do assunto, o termo Harmonia pode ser entendido segundo Collura como “[...] a área musical que estuda encadeamento dos acordes e suas funções dentro da tonalidade” (COLLURA, 2006), sendo que Harmonia Popular é este respectivo estudo aplicado a música popular. Não parece um objetivo de Ian Guest ser nacionalista ao extremo como foi Zoltán Kodály. Esse famoso educador teve uma tarefa importante na reconstrução da cultura musical húngara, que havia sido abandonada e escondida durante muitos séculos pela influência dos sucessivos invasores. Segundo Fonterrada: O meio encontrado por Kodály para colocar em prática a tarefa de reconstrução de identidade baseou-se em dois princípios: desenvolver a musicalidade individual de todo o povo e manter a cultura musical “natural”, isto é, as fontes de tradição oral. A abordagem de ensino de música conhecido, posteriormente, como “Método Kodály” de implantação da música nas escolas, utiliza-se prioritariamente de canções folclóricas e nacionalistas [...] (FONTERRADA, 2008, p. 155). Fazendo uma breve análise da metodologia utilizada por Ian Guest nos livros de Harmonia I e II, verifica-se estrutura semelhante da proposta por Kodály, pois ambos utilizam um grande número de canções do repertório da música popular. Porém, essas amostras são de uma vertente musical, na maioria das vezes, mais contemporânea da música popular, que já possui influências de outros estilos e de pedagogias musicais. ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 100 1.2 O nacionalismo musical brasileiro A preocupação em se criar uma identidade nacional e definir o Brasil culturalmente tem início com a semana de arte moderna em 1922, na música seu principal defensor era Mário de Andrade. É neste momento que surgem os principais conceitos sobre música popular brasileira, que geraram discussões polêmicas, resultando em dois principais conceitos abordados através da pesquisa de Andrade: As músicas definidas como populares e urbanas, tocadas nos discos e nas rádios somente explicitaram as limitações da tentativa de definir uma determinada manifestação musical como popular. Enquanto o popular se situava no âmbito das idealizações de um meio rural e isolado, os modernistas não enfrentavam dificuldades para defini-lo. (ANDRADE, 2003, p. 55). Verificam-se então duas vertentes sobre a definição de música popular brasileira em que uma seria a música produzida no meio rural sem a influência urbana, e a outra, o resultado de uma exploração com influência da fusão de culturas das pessoas que começavam a ocupar os grandes centros, juntamente com os meios midiáticos que iniciam um modelo de música comercial. De certa forma, com a necessidade de definição da cultura brasileira, Mário de Andrade conclui que “[...] Música Brasileira deve de significar toda música nacional como criação quer tenha quer não tenha caráter étnico” (ANDRADE, 1972, p. 3). Esta concepção pode ter várias problemáticas no que se refere à música brasileira, tendo em vista a imensa diversidade e influência que foi exercida na construção da sociedade do país, ou no caso, até mesmo da música popular atual, considerando a abertura em relação à cultura local, sofrendo sempre interferências e alterações relacionadas à cultura de outros povos, ou seja, a global. Sobre essa questão Stuart Hall, discorre que: “[...]. A homogeneização [...] é o grito angustiado daqueles/as que estão convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as identidades e a “unidade” das culturas nacionais” (HALL, 2006, p. 77). A globalização torna-se sempre um assunto que pode gerar discussões a respeito dos seus conceitos e influências, pois depende sobremodo da interferência e influência de vários aspectos, culturas e pessoas. A importância da ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 101 preservação da identidade cultural fica evidente quando se verifica que a partir dela é possível a comunicação com outras culturas, sendo a mesma uma propriedade preliminar para a interação cultural. 2 ESTUDAR MÚSICA BRASILEIRA? 2.1 Os trabalhos acadêmicos como fonte principal de pesquisa Diante da dificuldade de acesso a livros específicos que tratem sobre o assunto da música popular, os trabalhos acadêmicos, artigos, dissertações de mestrado e teses de doutorado tornaram-se o principal meio de pesquisa para os interessados em se aprofundar teoricamente sobre os movimentos mais característicos da cultura brasileira. Carvalho, por exemplo, revela em sua tese de doutorado um relato sobre a sua experiência como professor de contrabaixo na música popular. A abordagem é voltada para o elemento rítmico, e como as influências auditivas podem influenciar no processo performático do músico. Apesar dos livros de Harmonia do Ian Guest não possuírem o foco principal na variável rítmica, o objetivo deste artigo é mostrar a importância da inclusão de elementos que caracterizem a música popular no processo de aprendizagem do músico. Nesta tese de doutorado, que serve aqui de exemplo, os aspectos pedagógicos abordados são de extrema valia tanto pela ótica de pessoas interessadas em desenvolver estudos mais científicos como para profissionais que estejam em busca de elementos que possibilitem sua evolução como músico ou professor. Carvalho constantemente revela a importância da prática auditiva e da diferenciação de estilos e ritmos no entendimento e execução de peças musicais, citando fundamentos estruturais da música e do instrumento, sendo estes comuns para qualquer gênero de música. [...] símbolos de notação gráfica, cifras e teoria da formação de acordes podem ser utilizados para muitos tipos de música e, até certo ponto, não implicam em definições estéticas. [...] Me explico: para um estudante de baixo (ou qualquer outro instrumento) não existe diferença entre um 3/4 ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 102 no jazz ou na música brasileira, e tão pouco em um acorde maior com sétima menor. Como disse anteriormente são conteúdos gerais, ou estruturantes. No entanto, quando abordamos a elaboração e a execução de uma linha de acompanhamento de um trecho em 3/4, para o qual temos o acorde citado, temos que saber o estilo que estaremos tocando, e aí o mesmo compasso e a mesma harmonia podem soar de maneiras bem distintas. Essa diferenciação ocorre na superestrutura através das articulações, acentos, aberturas e timbres que definem o estilo, sendo por tanto definidora. (CARVALHO, 2011, p. 130). Nos livros de harmonia do Ian Guest, verifica-se a prática constante do uso de repertório nacional para exemplificação de teorias harmônicas. Em um primeiro momento pode parecer desnecessário o uso desses elementos para o aprendizado de um assunto que é muito comum a vários gêneros de música, principalmente a popular, mas verifica-se a diferença de utilização, mesmo em um contexto harmônico, do uso de determinados padrões musicais que são influenciados por melodias e ritmos que são característicos da música brasileira, levando em consideração também as formas musicais fixas de alguns estilos como, por exemplo, o Choro. Outro exemplo de um estudo aprofundado sobre aplicações práticas dentro de um contexto científico é a dissertação de Batista, na qual aborda o assunto de tétrades e harmonia aplicadas à Guitarra Elétrica, justificando exatamente a escassez de material didático que abordem elementos específicos para este instrumento. No decorrer das páginas de sua dissertação há vários elementos práticos e teóricos com muitas exemplificações em partituras e desenhos no braço da guitarra. Batista conclui a sua dissertação demonstrando justamente uma ideia de concepção pedagógica que passe a incluir um estudo mais aprofundado da harmonia e da música popular no Brasil. O empenho em organizar e sistematizar procedimentos harmônicos inerentes à Guitarra Elétrica dentro da Música Popular, exposto na forma desta dissertação, traz resultados no âmbito pedagógico e performático do estudo deste instrumento. Pedagógico, ao motivar, ao longo do desenvolvimento do trabalho, a discussão sobre algumas divergências na maneira de se entender como as relações harmônicas se processam em determinados contextos musicais. Neste momento, propõe uma organização deste material de forma a facilitar ao estudante a compreensão do assunto e diminuir a distância entre o texto e a prática do instrumento. Ainda, sobre este mesmo ponto de vista, sistematiza o uso destes acordes na prática musical e mostra que as características técnicas do instrumento, como sua eletrificação e recursos idiomáticos, sugerem um estudo específico de harmonia. E, finalmente, fornece um material de ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 103 pesquisa que pode contribuir para a organização de uma metodologia para o ensino da Guitarra Elétrica no Brasil, além de proporcionar subsídios para que novas pesquisas sobre Harmonia, aplicadas ou não ao instrumento, possam ser desenvolvidas. (BATISTA, 2006, p. 133). Esta tendência de pesquisas a materiais científicos foi beneficiada pela acessibilidade criada com conteúdos digitais organizados pelas instituições de ensino do país. Estas iniciativas fazem desses trabalhos produções que podem influenciar de uma maneira muito mais significativa os estudantes de maneira geral, sendo acadêmicos ou não, valorizando estes materiais que antes eram possíveis somente a estudantes frequentadores deste meio. 2.2 Como fugir do padrão Berklee Neste momento o objetivo será fazer uma análise comparativa entre os métodos utilizados pelo livro Harmony 1 (NETTLES, 1987) da escola americana Berklee 2 e o livro Harmonia vol. 1 do educador Ian Guest (2006). Em ambos os livros as páginas iniciais dão ênfase principalmente para questões básicas de teoria musical e conceitos estruturais da harmonia. Nos dois livros encontramos imagens do piano para exemplificar melhor os intervalos e os conceitos de enarmonia. O livro da Berklee tem foco um pouco mais concentrado em escalas modais, que também é abordado por Ian Guest de maneira prática e também com um texto localizado na página 36 em que o autor tem a preocupação de esclarecer a diferença entre Música Tonal e Música Modal. Já é possível abordar uma diferença metodológica neste ponto, pois o livro de Nettles não possui uma preocupação clara de contextualizar o leitor a respeito dessa diferença entre esses tipos de estrutura musical, talvez pelo motivo de se pressupor que o livro tenha o foco voltado para leitores que já possuam um conhecimento teórico e musical de nível avançado, pois se trata de um livro utilizado para o curso superior desta universidade. Na didática de Ian Guest percebe-se uma clara preocupação com músicos 2 Universidade dos EUA com polos nas cidades de Boston e New York, especializada no ensino de música em especial no curso de Jazz, conhecida e procurada por estudantes de várias partes do mundo. ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 104 que não possuem entendimento teórico e também a importância de esclarecer um conceito estético sobre este assunto, valorizando a informação para que a mesma não seja apenas do ponto de vista técnico. A partir do momento em que os livros iniciam uma abordagem mais específica sobre harmonia fica evidente a distância de enfoque pedagógico entre eles. No livro da Berklee, toda a exemplificação feita sobre este assunto é baseada em padrões melódicos. Essa maneira de tratar os vocabulários harmônicos é bem específica da pedagogia desta universidade, como pode-se verificar neste exercício de progressões triádicas presentes na página 72 do livro: 18) Complete this triadic chord progression by adding the remaining chord tones beneath the melody pitches. (NETTLES, 1987, p. 72) A preocupação de Ian Guest em trabalhar o repertório popular torna-se evidente em um exercício presente na página 43, de assunto semelhante ao do citado acima. O autor utiliza uma música do folclore nacional chamada Peixe Vivo para exemplo e prática deste assunto: ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 105 Exercício 33 Cante a melodia e toque a harmonia de Peixe Vivo (folclore). Faça análise harmônica por cima de cifragem. O primeiro passo é achar o tom: consulte a armadura ou o último acorde (que, nesta música, se encontra no 8º compasso). (GUEST, 2006, p. 43) Desta maneira, os livros de Guest conseguem abordar uma didática muito mais próxima do universo de aprendizagem dos músicos no país, além de aproveitar a importância do universo musical dos leitores, sendo esse um dos fatores de maior relevância na prática do ensino de música popular, como verifica-se no texto de Swanwick: [...] observar o que ela traz de sua realidade, as coisas com que também pode contribuir [...]. Aprendi que o desenvolvimento musical de cada indivíduo se dá numa sequência, dependendo das oportunidades de interação com os elementos da música, do ambiente musical que o cerca e de sua Educação. (SWANWICK, 2010). 3 COMO ESTUDAR HARMONIA? 3.1 Samba de Orly e Triste Como já foi visto, a temática dos livros de Harmonia de Ian Guest é voltada para a música popular brasileira, criando uma identificação imediata do aluno com o conteúdo. Neste capítulo será realizada uma análise dessa metodologia utilizada no livro com base em duas canções muito conhecidas do repertório popular: Triste, de Tom Jobim (página 106); e Samba de Orly, de Toquinho e Vinícius de Moraes (página 98). ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 106 O conteúdo é demonstrado primeiramente de maneira teórica, abordando todos os elementos de maneira tradicional e também com exemplos para facilitar a rapidez de raciocínio do músico a respeito do conteúdo. Antes do exercício na música Samba de Orly há um capítulo que tem início na página 91 sobre as escalas correspondentes dos acordes já abordados no livro. Como o foco do livro é para o músico popular é importante ressaltar que a linguagem da improvisação é muito presente, e muitos estudantes de instrumento despertam o interesse neste gênero com o fim de se tornarem exímios improvisadores. Sendo assim, Ian Guest começa a demonstrar como associar escalas a cada acorde ressaltando as notas características de cada um, colocadas entre parênteses, para que o músico comece a compreender e assimilar a sonoridade e aplicação de cada escala, como podemos ver neste exemplo a seguir sobre escalas diminutas: Após a abordagem sobre quais são as escalas a serem utilizadas, segue a música Samba de Orly para aplicação prática. Dessa maneira o exercício já se torna muito mais interessante do que simplesmente se colocar cadências específicas para que o leitor pratique essa relação escala-acorde, mesmo que existam conteúdos que ainda não foram abordados no livro, neste caso, o autor faz uma ressalva para que estes assuntos sejam dispensados da análise. ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 107 No exemplo acima relacionam-se os dois acordes diminutos assinalados em vermelho, com base na explicação anterior. Sendo assim, no compasso 12, usa-se a escala menor natural meio-tom acima, e no compasso 24 a escala diminuta simétrica, tendo em vista a progressão harmônica. Através da canção conhecida, tendo o músico uma afinidade auditiva com o que está lendo, torna-se muito mais orgânico o processo de assimilação do conteúdo teórico e prático. Na música Triste o objetivo é fazer uma análise harmônica com a simbologia tradicional. O Foco principal do autor é demonstrar uma modulação no compasso 13, em que o tom da música modula para Sí, retornando para Sol novamente no compasso 16. Esse exemplo, assim como a maioria do livro, acompanha o áudio em CD para que o leitor a todo momento relacione de maneira auditiva o que está sendo estudado teoricamente. ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 108 Verifica-se novamente que o autor não hesita em colocar músicas do repertório popular mesmo havendo conteúdos que ainda não foram abordados. De uma maneira objetiva e afetiva ele constrói a sua metodologia voltada para o assunto de harmonia usando elementos que são do universo do músico brasileiro facilitando a assimilação do conteúdo e ao mesmo tempo valorizando a cultura musical local. 3.2 A rítmica brasileira no ensino de harmonia Vários aspectos podem ser levados em conta na forma de abordagem musical de um estilo para outro. Tem-se, por exemplo, na harmonia brasileira, o uso frequente de cifras com inversão no baixo, enquanto na metodologia jazzística americana há um uso muito maior da notação do acorde pela nota do baixo. Um exemplo bem prático é a cifra F/C, que nos EUA seria usualmente cifrada Csus. Características na maneira de escrever e de pensar sobre assuntos que sonoramente possuem o mesmo resultado. Outro exemplo prático é no ritmo. É comum no Brasil a escrita de compassos pares em binários, enquanto nos EUA a maioria são em quaternários, mesmo quando a música e o estilo são os mesmos. Mas como podem esses fatores rítmicos influenciarem a harmonia de uma música? Na música brasileira temos a presença constante da síncope e de frases rítmicas ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 109 com antecipações, além de claves compostas com sobreposições em diferentes tipos de compasso. A maneira como um baixista irá escolher as notas, por exemplo, para acompanhar ou fazer a base de determinada música terá uma relação íntima com a base rítmica. Nos acompanhamentos de música popular no Brasil como o samba, a bossa nova e o choro há um foco muito maior no suingue da música com poucas notas, diferente do Jazz, por exemplo, em que a linha de baixo passa por várias notas da harmonia durante toda a música. Com base nos dados elencados acima, verifica-se a necessidade de uma continuidade da metodologia dos livros de Harmonia do Ian Guest para um contexto mais amplo da música brasileira. Juntamente com o repertório popular indicado no livro com exemplos para explicar o vocabulário harmônico, poderia haver uma metodologia que indicasse maneiras de se construírem as “levadas”, como se diz no vocabulário musical, enriquecendo ainda mais a performance dos músicos e estudantes deste material. Uma proposta deste trabalho para o aprendizado de música e harmonia é integrar ao máximo todos os elementos musicais possíveis. Ian Guest é extremamente eficaz com a sua metodologia fazendo com que o leitor seja inserido de maneira completa dentro do assunto, aproveitando todas as suas experiências musicais e também preparando a teoria com a parte sonora. O exemplo a seguir revela uma levada básica de baixo usada para samba ou bossa nova, com objetivo de demonstrar como poderia ser aproveitada a didática dos livros estudados neste artigo adicionando o estudo de elementos rítmicos para um acompanhamento completo. O trecho usado foi da música Diz que fui por aí de Zé Kéti. ARTEREVISTA, n. 4, ago./dez. 2014, p. 96-111 110 A linha de baixo acima é uma sugestão, porém o exercício poderia ser realizado com uma base de guitarra ou de piano, podendo ser estudado também as diversas formas de acompanhamento típicas de estilos musicais brasileiros analisando diversos músicos que ajudaram na construção da linguagem musical do país. Dentro da construção dessa linguagem moderna da música brasileira há vários elementos que se tornam essenciais para uma execução satisfatória destes estilos. Aproveitar o universo musical do músico e dos alunos de música com elementos que já estão presentes no seu cotidiano, e até mesmo na sua prática profissional, não só facilita o aprendizado como também valoriza e preserva a identidade da cultura nacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Adriano de Carvalho. Tétrades: Um Estudo de Harmonia Aplicado à Guitarra Elétrica (Dissertação de Mestrado). IA, UNICAMP. Campinas, 2006. BENJAMIN, Roberto. O Conceito de Folclore. 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