paulo scott
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paulo scott Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System habitante irreal Este livro contou com o Programa Petrobras Cultural Habitante_Irreal.indd 3 28/09/2011 11:33:24 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System a primavera do habitante irreal Habitante_Irreal.indd 147 28/09/2011 11:33:28 Habitante_Irreal.indd 148 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System Donato Uma criança de cinco anos com os pés descalços na areia, diante do mar pela primeira vez, e logo sob a luz a pino de um dia de verão escaldante como este, precisa de um bom tempo pra compreender o que seus olhos, sem acuidade pra distâncias, conseguem captar. Por isso, enquanto Henrique pega jacarés nas ondas da praia do Siriú, Donato permanece estarrecido ante a vastidão do horizonte turquesa prevalecendo sobre qualquer outra imagem ou objeto que se anteponha, subtraindo a imagem ou a figura que for pra dentro de sua enormidade, como subtrai Henrique, nesta primeira vez em que saem de São Paulo. A babá veio a seu lado no banco traseiro da Ipanema cinco portas, improvisando histórias enquanto Henrique dirigia cauteloso sozinho na frente. Donato fez de tudo pra ser adorável durante as risadas e também quando a acompanhou na hora de colorirem as folhas de papel com caneta hidrocor, fabricando nelas os aviões a jato da Força Aérea Brasileira, os que neste minuto abarrotam a sacola de vime junto ao balde azul e ao ancinho verde sobre a Habitante_Irreal.indd 149 149 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System estranha solidez da areia. Acompanhá-la nas brincadeiras foi o modo que encontrou pra não ser inoportuno, foi sua maneira de cooperar com Henrique, ser cooperativo, e aceitar a possibilidade de se eximir das lembranças que continuam sem discernimento tomadas por interregnos que em breve não existirão, de buscar harmonia praquela convivência e admiti-la como contraponto a algo que é a parte palpável da solidão (de uma solidão que já foi sua vida também), sim, mil vezes sim, cooperar, ser cooperativo, inventar nisso uma ordem sucinta, uma recriação que servirá em todos os futuros, próximos ou não, nutrindo o desejo de que um dia, num desses futuros, possa negligenciá-la, pois, como qualquer outra criança, Donato quer mesmo é a normalidade pura e a normalidade do medo presentes no esfacelar, irrealizável, das imagens televisivas em sua cabeça (o irrisório por meio do qual ele reconhece um código infalível pra chegar à alegria, todos os dias, e de novo à alegria), monstros de bolso que viram monstros maiores, esferas das quais depende todo o futuro da raça humana e do universo, golpes, fugacidade em roupas indescritíveis, estímulos oscilando entre o amarelo iniciante e o mais trágico vermelho, e, então, de súbito, alguém, que ele não consegue reconhecer, lhe segura pelas axilas e o ergue mais de metro acima, e ele já não está olhando o mar (há apenas a impenetrabilidade do céu) e vai sendo atravessado por uma eletricidade avessa absurdamente lenta como se a gravidade estivesse se propagando dentro de outra pessoa, plantada, arrancada e replantada em outra pessoa, e não combina, ou encaixa, com a situação vertiginosamente rápida e descomunal, que na verdade é um peso esvaziando pra dentro de seu peito, um desenho animado exato na parte em que o avião do mocinho está caindo sem combustível, sob o realce apelativo duma sonoplastia nipônica; agora, a culminância do céu dá impressão de estar congelado em azul à frente 150 Habitante_Irreal.indd 150 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System de seus olhos, é aflição, incompletude carregando o susto que ele não conseguiu presumir e que (de uma eletricidade pior) se renova quando, ainda na mesma ação, seus pés passam da altura da própria cabeça, e ele tenta gritar, mas sua voz não sai (e se saísse, com certeza, seria a da outra pessoa, a pessoa que ele precisaria ser e cuja fala é determinada, é o comando de monstros de bolso virando monstros maiores), está presa no estômago e cercada de maneiras de admitir, e já não há como ir mais alto e por isso agora seu corpo se ocupa de um modo diferente, e na trajetória entre todos esses tempos, ainda com dificuldade, ele, Donato, compreende a queda. “Mas você está um chumbo, Nato...”, escuta duma voz feminina e, sem chegar a supor que seus pés estavam pra tocar o chão, se dá conta de que sobe novamente, sobe como se estivesse preso a molas, e prossegue num lance, numa decolagem acrobática, como as personagens da tevê, livre, perguntando-se se assim é a vida, se esses serão os seus poderes e essa a sua iniciação heroica, rosqueando em cento e oitenta graus até voltar às mãos firmes que o apanham antes dele despencar e o mantêm à altura do rosto da mulher, o tipo de mulher de televisão, mas que ele não identifica, como não identificou a voz. “Pesado e enorme, indiozinho...”, a mulher o encara, “não está reconhecendo a Luisa”, ela diz e finalmente o conduz ao chão. “Trouxe um presente pra você”, e pega do bornal atravessado no peito uma coruja entalhada em madeira, medindo uns quinze centímetros de altura. Donato não diz nada, mas reconhece o objeto que já foi seu brinquedo. Ele estende os bracinhos, quase salta sobre ela, segurando-a firme, com uma agressividade que não é sua (como se tudo ao redor diminuísse de importância), e se volta na direção das dunas e fica assim, estanque, embriagado pelo odor da madeira, da tintura à base de cipó, da terra e da gordura que ainda estão ali incrustadas, e lhe vem a ânsia envolvida numa certeza tele- Habitante_Irreal.indd 151 151 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System visiva de habitar o volume da coruja, voar no seu interior como voam as animações a que ele assiste todos os dias pela manhã na tevê da sala da casa do seu pai, quer voar, driblar as fibras do cinamomo entalhado. A mulher passa uma das mãos sobre sua cabeça, com a outra acena pra Henrique, que já a percebeu, e pergunta: “Henrique está te dando muito trabalho, Juruninha?” A criança segue atônita, tenta lembrar à sua maneira como era a voz da coruja, a voz feminina que havia dentro da coruja (ou que a circundava), mas a coruja está muda e a cada segundo mais diminuída de familiaridade. “Tu não te lembra mais da Luisa, não é?... Pena. Catorze meses são um século, eu sei... Mas, não esqueceu da coruja. Isso é bom...” A mulher volta a olhar Henrique, ele agora está saindo do mar. “Vida nova...”, toca a ponta do nariz de Donato e, sem dizer mais nada, caminha até a margem. Donato olha pra coruja, depois pras pessoas que estão próximas (não há muitas, a maioria sentada sob seus guarda-sóis), detém-se na babá, ela está de óculos escuros a uns cinco metros, não é possível saber pra onde ela olha, se ela o percebe ou não. E trava, não consegue manipular os detalhes ou induzi-los, não consegue sequer retê-los. Em algum lugar não muito longe daquela beira de praia, muito provavelmente em Garopaba, há tevês ligadas (Donato não sabe) e nelas uma pediatra está dando entrevista ao jornal do meio-dia. Solícita, explica que a ação motora da criança, seja pelo movimento ou pelo toque, é o que reforça sua atenção visual, é o que permite que ela explore e provoque o ambiente. Donato não manipula o ambiente, não provoca o ambiente. Donato apenas cogita estar na altura fabulosa daquelas dunas mais adiante à sua direita, iguais desenhos, gigantes arenosas, monstros oferecendo suas couraças, onde talvez esteja a demasia das lembranças que ele não está encontrando na coruja de madeira. Henrique e a mulher se entretêm a pouco mais de vinte metros de 152 Habitante_Irreal.indd 152 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System onde Donato está. Falam a seu respeito, embora ele não perceba, porque está de costas (e também porque não passa de uma criança) articulando o pensamento como nunca articulou, gastando os minutos como nunca gastou, antes de caminhar atrás da vulnerabilidade daquela paisagem inédita, antes de manter o olhar fixo nas dunas, ensaiar uns passos, olhar a babá indiferente, deixar a coruja cair na areia, e correr, correr de verdade. Meses se passaram desde aquela vez na praia, a mulher tem nome, mas seu nome não é dito com frequência por ele (é um nome que ainda não cabe no apartamento onde mora com Henrique e a nova babá, um nome que ele ainda não quer). Ela, a mulher, está em dúvida se virá morar com eles em São Paulo, pediu um tempo pra pensar, decidir se largará mesmo o Rio de Janeiro, a qualidade de vida que só existe lá. Donato sabe escutá-la, aprende muito escutando ela falar, ela é rápida e imprevisível, Henrique não é tão imprevisível. Por isso é Cássia, secretária pessoal contratada por Henrique quando alugaram o apartamento no Sumaré, quem o acompanha neste primeiro dia da pré-escola. Mandá-lo pra uma instituição bilíngue talvez fosse melhor e mais barato, mas ao inscrevê-lo nesta, onde o inglês é a língua preponderante e setenta por cento das vagas se destinam a filhos de estrangeiros residindo no Brasil, Henrique imagina estar assegurando que o menino sofra menos. Donato aprenderá o inglês e melhorará seu português ao mesmo tempo, terá de se virar junto com outras crianças que também precisam se adaptar. Henrique, o seu pai, não está certo dessa decisão, mas quer a melhor das sortes pro filho que escolheu. Não foi simples conseguir a carta de matrícula, um dia Donato saberá disso. Se não estivesse assessorando este grupo de indústrias norte-americanas Habitante_Irreal.indd 153 153 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System interessadas no aprimoramento da lei de patentes no Brasil, grupo cujo porta-voz é vice-presidente da associação de pais e mestres da escola, dificilmente a diretora geral abriria a exceção. Claro, há exigências, uma quantidade de exigências nada simples. Como salientou o coordenador responsável pelas matrículas, o receio maior da direção é que Donato acabe prejudicando o aproveitamento dos demais. Por isso, acertaram que receberá orientação extraclasse intensiva pra compensar suas deficiências em relação à língua e, no final de maio, será submetido a uma avaliação. A palavra mudança é uma das que Donato melhor entende. Quase sem levar em conta a pouca idade (como faria, por exemplo, um treinador de ginástica olímpica com seus fedelhos ou o professor de um prodígio recém-saído das fraldas à procura de um possível gênio da música), Henrique lhe disse que uma vida completa exige grandes mudanças, disse que tudo está pronto, mas que a mudança exigirá o empenho de ambos. Donato sente o seu amor e se esforça de verdade pra acompanhá-lo. E quando o táxi para em frente à escola Cássia pede ao motorista que a aguarde, pagará depois, sabe que estão atrasados, caminha com Donato até o guichê de recepção, onde há uma jovem que fala com eles em inglês, o cumprimento de boas-vindas constrange Cássia (que é bastante atilada, competente, mas não tem um inglês tão bom assim) e a faz apenas informar, sem ter certeza sobre seu português ser entendido, que Donato é aluno novo. A jovem imediatamente passa a falar um português com sotaque estrangeiro bem carregado, justifica-se dizendo que as crianças ali, em geral, têm boa noção de inglês e que foi só por força do hábito que deixou de recebê-los em português. Cássia envolve com as duas mãos as bochechas de Donato e lhe deseja boa sorte. Donato lhe devolve um sorriso curto. A moça da escola o segura pelo ombro e o leva 154 Habitante_Irreal.indd 154 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System em direção à sala de aula. Passam por corredores. Param diante da sala onde está acontecendo a aula, sua anfitriã bate na porta. Não demora muito até o vão se abrir, e ele enxergar seus futuros colegas sentados em grupos a volta de mesas hexagonais. A professora o encara e sorri. A menina da recepção entra com ele, a professora já está informada sobre as peculiaridades do novo aluno e, ao menos desta vez, se dirige a ele falando em português. Após anunciar seu nome aos demais, mostra onde ele sentará. Na mesa indicada estão mais três crianças (é a única mesa incompleta da sala), ele não chega a olhar seus rostos, a que está ao seu lado, uma garota de pele negra, toca no seu braço e diz com sotaque afrancesado se chamar Rener, mas que seu apelido é Açúcar Mascavo, ele olha na direção dela sorrindo, e, em guarani, fala que é bom estar naquele lugar, a menina sorri também e fala que o cabelo dele tem uma cor bonita. A professora passa distribuindo folhas brancas e giz de cera, ele ganha um cinza-escuro. É a primeira tarefa, e ele a realiza com facilidade porque basta acompanhar os outros três sentados à mesa. Os minutos voam. A metade da manhã passou e veio o intervalo e todas as crianças foram a um pátio cercado, onde havia brinquedos que exigiam duplas, trios, grupo contra grupos. A maioria delas agia como se aquilo fosse seu, sua propriedade, como se houvessem ensaiado na véspera ou usassem alguma espécie de telepatia, porque eram tão precisos e coerentes ao combinar ações nas gangorras, no escorregador, na escada horizontal, na prancha-vaivém, nos balanços, na gaiola-labirinto e no foguetinho aramado, os mesmos brinquedos que aparecem ao fundo na foto tirada com a turma inteira no final daquela mesma manhã depois que a professora lhes passou pequenos quebra-cabeças pra serem montados e colocados em uma folha de cartolina como tema de casa (na foto, Rener apareceu olhando direto pra ele, bela, es- Habitante_Irreal.indd 155 155 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System guia, sem o menor constrangimento; ela garante que foi nesse dia que o apelidou de Curumim, mas não é verdade). Aquela manhã foi o mais perto que pôde chegar do verbo enturmar-se durante todo o ano de mil novecentos e noventa e cinco. Somente no outro dia, quando a professora lhes passou atividades mais complexas, foi entender que não adiantaria ficar assistindo as coisas acontecerem e copiá-las. Com o passar das semanas, a linguagem rapidamente deixou de ser ferramenta insólita. E na data da avaliação, sobrecarregado de palavras desconhecidas, de lacunas sem aproximação tátil, Donato compreendeu que precisava ser exatamente como seu pai queria. Fim do ano. Lada Niva é a marca e modelo que ele mais gosta de dizer, depois vêm Fiat Uno, Scania Saab, Toyota Bandeirantes e uma lista variada e extensa de outras nomenclaturas quase todas compostas ligadas ao inesgotável mundo automobilístico. Fora disso, gosta de palavras como bombeiro, aviador, salva-vidas, esta, por sinal, impressa em amarelo nas costas da camiseta vermelha que está usando neste momento quando ele e Henrique se dirigem ao aeroporto de Guarulhos pra encontrar com a mulher. Estão na Marginal Tietê, um dos raros lugares que o fazem achar as coisas mostradas na televisão menos impressionantes, é quase o seu lugar preferido em São Paulo. Veículos incontáveis em diferenças sem trégua que o fazem cobrar de Henrique os devidos nomes e as devidas atualizações de modelos (há coisa de cinco minutos foi o Maserati, visto pela primeira vez), tudo assimilado tão rápido quanto o bate-pronto das respostas dadas em função das perguntas que ele próprio se encarrega de fazer. Essa é a maior prova de que se integrou perfeitamente à vida nova. Confortável que está na versão menino classe média alta paulistana dedicado de corpo e alma à sua co156 Habitante_Irreal.indd 156 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System leção de miniaturas Matchbox e Hot Wheels. Hoje é o primeiro dia das suas férias de verão, sente-se orgulhoso, porque Henrique, simulando uma conversa entre adultos, lhe contou no café da manhã que todas as expectativas quanto a seu desempenho escolar foram atingidas e, por isso, ano que vem, ele continuará no mesmo colégio. Isso é bom, porque lá tem essa menina, Rener, que é entre os colegas quem mais o inspira na hora de ter certeza do que dizer, como falar. Por causa do seu mérito, do seu mérito exclusivo (foi essa a expressão que Henrique usou), passaram o final da manhã na livraria aquela da Paulista pra que ele pudesse escolher dois livros. Henrique não foi explícito quanto ao idioma, mas Donato sabia o que o pai esperava dele. Escolheu um em português e o outro em inglês. Donato compreende a enorme dedicação de Henrique, de Henrique seu pai, pra serem os dois uma família. Na escola, as professoras mais velhas falam bastante em família e em Deus (a palavra Deus o perturba menos do que a palavra família). Nas ilustrações que faz, ficam apenas ele e Henrique. Donato gostaria de desenhar alguém segurando sua mão esquerda. A partir de hoje sabe que poderá desenhar a mulher, ela é quem segurará sua mão esquerda. Donato espera poder desenhá-la muitas vezes, desenhá-la pra sempre, espera que ela se esforce (tanto quanto os dois) pra tirar muito bom e ótimo, como ele conseguiu tirar em quase todos os trabalhos da escola. Donato compreende a enorme dedicação de Henrique. Donato compreende Henrique e, na maior parte do tempo, procura se antecipar às ações dele pra não decepcioná-lo. Na primeira e única vez em que reagiu agressivamente contra um colega, foi levado à sala da diretora, que lhe disse “você tem sorte de ser acolhido por uma pessoa tão boa quanto o senhor Henrique”, disse que atitudes indisciplinadas como aquela só o decepcionariam. Decepção é uma palavra que Donato não gosta, Habitante_Irreal.indd 157 157 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System mas que apesar disso o ajuda a compreender o mundo, mais até do que outras palavras boas de dizer. Decepção justifica palavras do tipo cuidado, que pra ele assemelha-se a Guarulhos (nome que vem das Tribos Guaianases, isso foi o que Henrique lhe explicou antes de embarcarem no carro hoje depois da livraria). Guarulhos é palavra que Donato gosta, mas acha um pouco estranha, pesada na boca, como achou estranha outro dia, embora não tão pesada, a palavra anafilático que tentou dizer e não conseguiu. Isso levou Henrique a insistir pra que tentasse mais uma vez. Ele tentou e não teve sucesso, e Henrique a pronunciou pausadamente. Tentou de novo e não conseguiu. Não foi a primeira vez que o estimulou a acertar, a se corrigir e dizer uma palavra que fora interrompida ou que nem sequer foi iniciada. A sensação que Donato tem nessas situações é a de estar jogando Pega Varetas da Estrela sozinho, uma partida na qual não tem permissão pra ser derrotado e, no entanto, jamais lhe será permitido vencer. Durante o verão, quando estiverem passando mais tempo juntos (e porque desta vez a mulher será espectadora, uma espectadora com quem se possa contar pra ser espectadora), Henrique lhe cobrará com certo rigor a pronúncia correta das palavras, em português e inglês, e daí, quando março vier, falar com fluência e exatidão pra Donato será dever absoluto, chega de criancice, dirá pra si mesmo de uma maneira sua, e anos depois será malabarismo. Em Guarulhos encontram fácil uma vaga no estacionamento. Quando chegam à área de desembarque descobrem que a chegada do voo atrasará em meia hora. Donato pega a mão do seu pai, Henrique é seu pai, e aperta forte. E quando recebe atenção, mesmo que abreviada, (como se explodissem em sua boca) diz as palavras que não conseguiu pronunciar durante a viagem, pronuncia em carreira, uma, duas, três vezes, vencendo um opositor que jamais estará no conflito imaginário do seu Pega Varetas 158 Habitante_Irreal.indd 158 28/09/2011 11:33:28 da Estrela, dando sua resposta à dedicação de Henrique pra serem uma família, como a família que as professoras mais velhas ensinam na escola. A mulher e o seu pai não se entendem. Donato não consegue ajudá-los. Henrique não sairá de São Paulo, e parece que ela conseguiu trabalho numa universidade do Rio de Janeiro. Donato acha que será bom quando inverterem os hábitos de visitação e ele e seu pai passarem um tempo com ela no Rio. Donato deixa na sua escrivaninha a coruja e de vez em quando faz guerra entre ela e outro brinquedo, a coruja sempre vence. A foto dele com Rener (que ele retira da gaveta só nessas situações) é o juiz. Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System Anos depois. Luisa e Henrique finalmente se acertam. Ela se muda pra São Paulo. O tênis Rainha é do tipo preto futebol de salão básico. Pra vários dos seus colegas Donato é um esnobe, pra outros uma vítima da mais eficiente lavagem cerebral dum padrasto nazista (ao adjetivá-lo, obviamente, não entram no mérito de que um nazista, um branco tipo nazista, jamais adotaria um índio). Aos dez anos é provavelmente o único do seu nível escolar imune aos apelos consumistas típicos da sua faixa etária. Henrique tomou todas as precauções pra esclarecê-lo dos significados da palavra capitalismo, do modo de funcionamento e organização, psicológica inclusive, que está por trás desse termo, e sobre a razão das riquezas serem escassas e as necessidades humanas ilimitadas, e de isso ser uma regra acima das outras, mesmo que charlatões prometam que não. Os seus professores falam muito em liberdade Habitante_Irreal.indd 159 159 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System e fraternidade, sempre que podem tentam ilustrar as repercussões econômicas dessas duas escolhas, o professor Lavirmes é um dos que fazem questão de não esconder o fato de que os alunos da escola são candidatos em potencial a futuros dirigentes dos seus países, enfatizando que não adianta estudar sem saber as implicações sociais do que se estuda. No geral, esse tipo de lição não faz muito sentido pra maioria dos alunos. Pra Donato os conceitos e explicações fazem mais sentido quando coincidem com os de seu pai: quando não há o suficiente pra todos é preciso critérios realistas pra se dividir o que existe, o que se tem ou o que se consegue. Preço. Donato gosta dessa palavra curta, direta e confiável, porque ela é prática e integra seu vocabulário desde sempre, ele entende o que ela representa, seja no supermercado, na papelaria, no lanche no parque, no campo de futebol, na roupa, nas viagens que faz com Henrique pelo Brasil, nos carros que tanto o fascinavam e agora não fascinam mais, nas compras que faz com Luisa; há semanas em que a única coisa que Luisa faz é comprar. Donato sabe muitas coisas, mas não sabe muito bem o que é o futuro, o futuro ainda é uma escolha de Henrique. Donato sabe que é preciso aprender a pensar, sabe que é preciso estudo e é preciso disciplina, sabe que inteligência não vale nada sem disciplina. Donato não se sente mal e nem concorre e nem firma alianças com seus colegas, passa ao largo dos tradicionais jogos de hierarquia, do magnetismo mundano dos três ou quatro mais seguros de si, os capitães inevitáveis, os rangers que num momento levam à perfeita harmonia do grupo, a um companheirismo de concisão muscular, a uma rispidez quase marcial, e noutro à pior das cizânias, às disputas, aos degraus, aos afastamentos infalíveis, às revanches e, sem desconsiderar o que é puramente estatístico, à via de fato, briga, mata-cobra, rasteira, pedalada, gancho, cabeçada, sangue. Donato é um zero. Território neutro. Suí160 Habitante_Irreal.indd 160 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System ça. Acostumou-se a ser a curiosidade não alardeada dos outros dentro e fora da escola. Nas festas de aniversário dos colegas sofria um pouco com as outras crianças que não o conheciam e não tinham noção exata do que fazer ao se deparar com um índio. Às vezes era bom e hilário, noutras não era tanto assim. A pequena Rener aprendeu a lucrar socialmente com isso. Negros franceses levam vantagem sobre índios brasileiros. Donato é a atração dos seus aniversários, a cada ano ela refaz a história da origem do amigo, de como se conheceram, de ele ser um tipo de pajé que vingará seu povo, que só está entre os brancos pra aprender como dominá-los, quase um buda (a mãe dela é budista e ela sabe tudo sobre a religião), um buda vingador. Donato morre de vergonha, mas cooperando como pode com a necessidade patológica de extrapolar que Rener tem, a cada vez, ele aparece vestido da forma mais exótica possível. Desta, combinaram, ele escolheu terno escuro, camisa branca, gravata vermelha e um bóton onde está escrito “pergunte-me como”, Rener estava de vestido rosado, alguém comentou que só faltava grinalda e outro disse que aquilo não era aniversário, era casamento. Nem Henrique nem os pais de Rener desconfiam do teatrinho que seus filhos aprontam todos os anos, mas Luisa percebeu o acerto e manteve a cumplicidade. Foi ela inclusive quem alugou o terno quando Donato pediu. Ela sabe que ele é de economizar as palavras, sabe que ao pronunciá-las o faz da maneira mais correta e enfática possível, empostando-se desvirtuado do papel de criança (embromando-se entre lapsos pra esconder seu insucesso reptiliano em decolar). Condenado a uma seleção absoluta, de vírgulas até, à calibragem do ar dentro dos pulmões, aos estreitamentos, tão precocemente habituado à pressa dum vocabulário extenso, porque as raridades estão à mão bem mais do que o palavrório abundante do dia a dia. E isso é uma sacanagem da natureza. Quando começou a Habitante_Irreal.indd 161 161 28/09/2011 11:33:28 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System gaguejar (quase ao mesmo tempo em que assumiu o empenho de não fazê-lo) se deu conta de que o corriqueiro era seu pior inimigo, seu corpo todo parecia resistir ao que deveria ser elementar, mera decorrência, pra domá-lo era preciso surpreendê-lo, usar caminhos que produzissem o choque, a surpresa, e torcer pra que essa surpresa fosse mais rápida e dinâmica do que o embotamento da língua e do cérebro, do diafragma e das mãos. As mãos. Um dia escutou num programa de tevê: só os inseguros e os poucos convincentes precisam das mãos pra se expressar, pra chegar aonde querem. Donato precisa das mãos, mas não admitirá atalho, tem certeza de que Henrique não admitiria. Donato se dedica às palavras difíceis e ao que é difícil em geral, nisso estão suas alavancas, quase nunca as encontrou na infância. Nas festas de Rener, ele quase não conversa (sua tartamudez não chega a se revelar), deixa a amiga falar pelos dois. Os que já o conhecem, e já na dinâmica das brincadeiras, apenas ajudam aqui e ali, dando atenção necessária pra tornar a história inventada pela famosa Açúcar Mascavo um pouco mais verossímil. No final da festa, vestidos de noivos, como os outros disseram, os dois riem de sua própria miscelânea, ela o abraça e promete que um dia serão donos de um grupo de espetáculos, e ele promete apenas que preparará algo ainda mais impactante pro ano que vem. Tudo está por vir. Quites. Desquites. Os três à mesa do apartamento em São Paulo. Luisa e Henrique acirram os argumentos como nunca. Donato acha que Luisa procura sempre competir com Henrique (e ele acha isso justo), mas ele não sabe tão bem assim o que se passa entre os dois. E a discussão está prestes a virar briga. Luisa está tentando convencer Henrique a não colocar tudo o que eles têm nesse projeto que ele inventou e que está se arrastando, em termos de 162 Habitante_Irreal.indd 162 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System retorno financeiro, desde noventa e seis, quando a internet ainda engatinhava no mundo e mais ainda no Brasil, quando a rede mundial de computadores era uma curiosidade orbitada por chutes no escuro (fazia pouco tempo que os acessos haviam sido disponibilizados em escala comercial, fazia pouco que os fundos de tela verdes-preto haviam sido abandonados e as possibilidades gráficas de interação pelo monitor se expandiram); sua ideia foi criar um “núcleo de distribuição de informação especializada por assinatura a corporações, grupos sociais, novos investidores, agentes políticos”, informações baseadas em pesquisa e levantamentos dirigidos aos que buscassem “novas estratégias, alternativas de desenvolvimento econômico e interação social”, foi o que Donato leu num dos prospectos que ficam espalhados pelo gabinete de Henrique. Era preciso aproveitar a nova ferramenta pra democratizar os discursos, as análises, e ganhar dinheiro. Seu pai imaginou que, se houvesse um número suficiente de assinantes no Brasil e no exterior, conseguiria deixar a empresa autossustentável em dois anos. Isso não aconteceu. Suas ambições, entretanto, continuaram crescendo e o forçando a aportes de dinheiro cada vez maiores. Como parou de prestar consultoria não havia outra fonte de renda. No segundo ano do projeto, Luisa entrou de sócia, meio a meio, com o dinheiro da antecipação de legítima do patrimônio de seus pais. Uma saída que se tornou traumática quando seus pais descobriram onde ela pretendia aplicar a herança e, depois, com o péssimo desempenho do projeto, quase um motivo pra rompimento das relações familiares. Henrique falou em devolver o dinheiro, mas Luisa ficou possessa com a ingerência de seus pais, mas isso foi há quase ano, hoje ela está possessa é com Henrique, por ele não ter percebido que chegou a hora de parar. Ele diz que continuará com as visitas atrás de assinantes e novos sócios, viajará o Brasil inteiro se for preciso, tentará novos Habitante_Irreal.indd 163 163 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System contatos na Europa, alguma fundação, as universidades, algum visionário, algum filantropo. Um visionário como você, Luisa provoca, como os milhares que ainda vão perder muito dinheiro tentando adivinhar qual é o futuro da internet. Este é o momento em que Donato pede licença, levanta e vai pro seu quarto. Na parede ao lado da sua cama está o desenho que ele fez anos atrás, a ilustração ficou bem-feita, nela aparecem os três, bem-vestidos, sorrindo, mas não de mãos dadas. Treze anos de idade. Costuma sentar-se bem à direita, na quarta mesa da frente pro fundo. Gasta os vinte e cinco minutos do intervalo quase sempre da mesma maneira. O destino final é a biblioteca. O roteiro é simples, a campainha toca, ele aguarda um minuto até a maioria da turma sair, tira da mochila o CD player que Henrique lhe deu, sempre traz uma pérola da coleção de mais de mil disquinhos que ficam na sala do seu apartamento (hoje pegou o Surfer Rosa, duns caras chamados Pixies, uma banda semiantiga que inspirou o Nirvana, lordes supremos do universo). Em seguida, dá a tradicional volta pelo pátio onde ficam os caramanchões, eventualmente perde um minuto ou dois com os grupos de meninos, sempre grupos pequenos, com quem tem afinidade, um desses grupos é formado pelo Américo, o Ramon e o Julián, este último um boliviano, pálido e desmilinguido, de olhos azuis cinzentos, candidato potencial a seu melhor amigo. Não perde mais do que cinco minutos neste tour, segue pro momento pequena dose de obsessão diária: caçar Rener esteja ela onde estiver, nem que seja apenas pra uma olhada e um aceno a distância. Desde o ano passado estudam em turmas diferentes, é uma estratégia da escola, alterar as turmas pra aumentar a sociabilidade dos alunos. Desta vez não precisou procurá-la. Ela vem correndo em sua direção 164 Habitante_Irreal.indd 164 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System com um CD pra lhe entregar, é o Love on the Beat, do Serge Gainsbourg, diz que ele tem de perder tempo é com esse cara e não com os Nine inch nails da vida (ele nem gosta de Nine inch nails). Donato olha pra ela agradecido, coloca o CD no bolso do casaco, pergunta se não quer ir com ele até a biblioteca, ela ri e diz que se alguma vez trocar o intervalo de um dia ensolarado pela biblioteca que a internem num manicômio, beija-o no rosto e volta pra sua roda de amigas. Donato, então, caminha até o início do corredor que leva à saída do colégio, dobra à esquerda e segue até a biblioteca. Ali é o seu refúgio. Dizer bom-dia às duas atendentes do balcão e à bibliotecária geral é refúgio, atrapalhar-se com os nomes nas lombadas dos livros é refúgio, achar que entende a poesia dos autores brasileiros é refúgio, que entende Walt Whitman e Camões, quando mal são tratados em sala de aula, é refúgio. Refúgio. Ali tem a sensação de não estar perdendo tempo e (espremido nos corredores junto aos outros alunos, os interessados e os que muito provavelmente apenas adotaram uma estratégia de invisibilidade como a sua) também a sensação de possuir alguma autoridade autobiográfica. Ali não precisa se submeter a testes de força, carisma, liderança, atilamento, humor, popularidade, ali não precisa descobrir o quanto se parece com seus colegas futuros líderes de seus países, ali na impessoalidade das estantes de ferro e do silêncio impregnado ao resto da mobília passa os únicos minutos em que admite pra si a oportunidade de se acovardar. Luisa disse que seria pura perda de tempo conhecer o Pão de Açúcar num dia nublado como este. Donato sabe que ela está abusando do direito de readequar a programação traçada de comum acordo pelos três. A desculpa esfarrapada dela é a enxaqueca de sempre, disse ter acordado às cinco da manhã e não dormido mais. O Habitante_Irreal.indd 165 165 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System motivo, olhando o contexto com objetividade, é única e exclusivamente o fato de Henrique ter sido chamado de última hora pra substituir um analista mexicano em um think tank em Teresópolis, um encontro privado pra formular sugestões de políticas públicas organizado por um grupo de jovens empresários mineiros e cariocas (cachê bom, na crise financeira pela qual ele está passando, não havia como recusar) e, à conta disso, estar impedido de voltar antes da quinta-feira, ou seja, daqui a três dias. O roteiro, agora, depende dela. Donato não quer pensar muito nisso, tem um mapa, sabe os ônibus que precisa tomar. Nunca entra em rota de colisão com Luisa, apenas dribla, flexiona, deixa bilhetinhos. Apesar dos constrangimentos circunstanciais causados pela gagueira, julga-se em grande vantagem em relação ao resto do universo social: é mais bem-informado do que a maioria dos adultos que o cercam e absolutamente confiante quanto a ser incapaz de cometer erros motivados por distração, excesso de orgulho, ressentimento ou vaidade. Deixa um recado na recepção do hotel, pega o ônibus circular no Leblon na direção Gávea, Jardim Botânico, Humaitá, Botafogo. Desce na Voluntários da Pátria, que é a principal avenida de Botafogo, caminha até a rua das Palmeiras, até o casarão cinquenta e cinco. Entra. Circula pelo pátio, há uma oca estilizada armada quase na entrada à esquerda do prédio principal, avista a turma de alunos na faixa de nove anos que está iniciando uma dessas prováveis visitações guiadas e se junta ao grupo. A professora, uma ruivinha bem jovem, olha pra Donato, não diz nada. Entram numa sala que abriga a exposição de objetos em cerâmica que representam a arte Asurani feita pelo povo do mesmo nome que mora no Médio Xingu a aproximadamente cem quilômetros da cidade de Altamira no Pará. As tiradas cômicas do guia compensavam sua apresentação, fraca, pouco convincente 166 Habitante_Irreal.indd 166 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System e sem informações relevantes mesmo pra um bando de alunos duma escola pública municipal qualquer. Tudo transcorre bem até que a professora enfatiza que o maior erro do homem branco é tirar o índio do seu habitat e por isso “todos nós deveríamos lutar pros índios voltarem ao seu estado natural, vivendo em harmonia com a natureza...”. Antes dela terminar, Donato levanta a mão. Isso a desconcentra, segue-se um segundo de dúvida (é possível perceber em seus olhos), e ela lhe passa a palavra. Ele diz que ela está enganada, o melhor seria pegar até o último selvagem que se pudesse encontrar dentro da floresta e civilizá-lo, dar-lhe condições reais de “garantir sua dignidade no mundo atual sem precisar do favor de ninguém, antes que se complete a dizimação”. Termina dizendo que o passado não volta. A professora fica atônita, dois alunos perguntaram ao mesmo tempo, “o que é dizimação, professora?”, e, por sorte, o guia largou uma de suas tiradas humorísticas, e Donato foi conhecer outras partes do Museu do Índio menos propícias a seu entusiasmo. Outro ano letivo se passou. Ambos estão com catorze (Rener é apenas três meses mais velha) e este encontro na escadaria, que é caminho ao estacionamento dos professores, não foi premeditado. Donato está com o rosto voltado na direção do recanto emoldurado por pedras quartzo bem claras onde numa das extremidades há uma estátua de Nossa Senhora de Lourdes e ainda atordoado com a notícia de que Rener deixará o Brasil dali a dezoito dias e, junto com seus pais, voltará a viver na França. Deixa de ser Jeca, Curumim. Você vai aprender a se virar sozinho, ela diz. Ele volta o rosto pra ela. Sei me virar, Rener... É que eu... tipo... vou sentir sua falta, vou sentir muito a sua falta mesmo. Ela retri- Habitante_Irreal.indd 167 167 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System bui com um sorriso tristonho. Todo esse tempo nós nos equilibramos um no outro, não é? Ele balança a cabeça. Você me ajudando a não me transformar no freak-show ambulante do colégio. Ela faz cara de agradecida. E você pegando no meu pé pra eu não virar a Naomi Campbell da quebrada, com os lábios trêmulos. Pois é, ele diz. Os olhos de Rener se enchem d’água. Não se preocupa, vou ficar bem... Faltam só dois anos. Os dois sabem que dois anos é tempo demais. Mas se liga, Donato, secando as lágrimas que escorreram, tá na hora de você aprender a jogar melhor o jogo. Ele franze a testa. Mais do que eu jogo?, Açúcar Mascavo, sou o mister do passinho certo. Ela dá um encontrão de leve no ombro dele. Não tô falando disso. Ser desse jeito só vai te abrir portas no futuro, diz. Do que você tá falando, então? Ela baixa a cabeça. Da sua cegueira com as coisas que estão ao redor... da sua ingenuidade, da sua passividade, da sua..., apoiando o cotovelo nos joelhos e juntando as mãos à frente. Sair desse colégio, ficar longe de você, vai ser um alívio. Desculpa falar..., quase sussurrando. Como assim..., ele tenta interrompê-la. Ela não deixa. Desculpa eu falar desse jeito. Na real, eu só estou triste e descontando pra cima de você..., com a mesma voz baixa. Rener, Rener, Rener... Levanta a cabeça e o encara. Olha, Curumim... Desde o primeiro dia de aula na pré-escola, eu gosto de você... E esse carinho já teve tantas formas, tantas maneiras que às vezes eu fico com dúvida se ele realmente existe. Até as minhas amigas... eu juro de pés juntos que nunca disse nada pra ninguém... até elas sabem que eu sempre gostei de você... e sabem que eu sempre protegi você... Ou você acha que escapou ileso de se tornar um dos sacos de pancada do colégio por causa dos seus belos olhos? Humpf. Quem se metesse contigo ia ter que se meter comigo... Você mesmo me chamou de Mônica durante uma época, lembra?, 168 Habitante_Irreal.indd 168 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System diz. Eu ficava puta, não ficava? Ele concorda. E ela lhe dá outro encontrão de leve. Quantas vezes obriguei o Douglas Chave Inglesa a te convidar pra jogar futebol com eles na hora do recreio... ainda exigia que você jogasse na frente, nunca no gol. Donato pensa em falar das poesias que escreveu pra ela, mas ao invés diz: você sempre foi a queridinha dos caras mais velhos. Há pelo menos vinte poemas Veja o que se ganha em ser a estrela da patinação da escola... Ele decorou um em que a chama de Dino Sempre desconfiei disso, Rener. Quero dizer, você mexendo os pauzinhos. Tudo camuflado. Poesias não pertencem ao mundo de Rener Mulheres sabem fazer esse tipo de coisa, admito que era muito divertido, os debiloides do nosso nível me respeitavam não só porque eu era, digamos, irresistível, mas também porque os caras das turmas de cima fariam tudo o que eu mandasse, inclusive intimidar, na base da marreta, os menorzinhos desobedientes. Ah, meu sangue parisiense... Não tenho culpa de ser assim. E hoje, o que você sente? Com relação aos debiloides? Uma dinossauro dentro de uma poesia Por favor, Açúcar, não começa... Quase nada mudou... Tudo mudou... Você sabe... Já namorei o Mark, o Gabriel, dei uns amassos noutros dois caras... Eu nunca beijei ninguém, ele revela. Ah é?... Que novidade... E ele avança (três casas de uma só vez). Gosto de você, Rener, e gosto de verdade. Esse ano foi difícil, um monte de coisas com as quais eu não precisava lidar passaram a ser importantes e eu descobri que não tinha a menor ideia de como levá-las. Você vive pros estudos, ela diz. Não é pra isso que a gente tá aqui? Até hoje não sei direito... Agora, volto pra França e vou ter que recomeçar do zero... Sei que não vou me adaptar... E ele a surpreende: eu te amo, Açúcar Mascavo... Há quanto tempo? Donato não responde, não consegue ser tão desembaraçado quanto ela. Três ou quatro minutos se passam Habitante_Irreal.indd 169 169 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System sem que nenhum dos dois diga uma palavra sequer. Um grupo de colegas vem na sua direção, aproxima-se sem cerimônias, afinal Rener e Donato são como se fossem pão e manteiga, Rener se dá conta e levanta pra encontrá-los. Donato fica onde está, sabe que Rener levará o bando pra longe, porque essa é sua forma de defendê-lo e, neste momento, de atormentá-lo pela iniciativa também. Sabe que terá de rearranjar os motivos que o levam a estar naquela escola. Devia tê-la beijado. Devia tê-la impedido de se levantar. Com a história rascunhada nas mesas da biblioteca, Donato vence o concurso de dramaturgia do colégio. Por isso ganhará o dinheiro pra montar e encenar o seu texto Crucial Dois Um na festa de final de ano letivo. Tem pouco mais de três meses pra escolher os atores, ensaiar, preparar cenário. Não imaginou que conseguiria, foi a primeira vez que concorreu. Se Rener estivesse no Brasil a chamaria pra representar a protagonista da história que se passa num futuro e num lugar indeterminados, onde o governo, um governo indeterminado, desenvolveu um método de ressuscitação com o propósito de garantir uma sobrevida de vinte e uma horas, o serviço é prestado sob o regime de monopólio e se revelou uma das formas mais eficazes de obtenção de dinheiro pros cofres públicos, só os ricos podem contratá-lo, pois o preço é alto, a principal condição imposta pelo governo aos eventuais contratantes é que, nas primeiras sete horas da sobrevida, resolvam suas obrigações com o fisco, com o tesouro público, tendo de se submeter a um interrogatório, sob o efeito de uma droga que, durante essas sete horas, os impedirá de mentir, e também todos os litígios que existam com as empresas privadas parceiras do programa; o contratante que, por sua própria conta, não tenha condições de arcar 170 Habitante_Irreal.indd 170 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System com o preço total do serviço poderá ser patrocinado por outras pessoas, ficando, no entanto, à disposição desses patrocinadores durante metade das catorze horas restantes, essa modalidade costuma ser contratada por grandes empresas pra obterem dos seus executivos as informações e segredos que antes deles morrerem não tenham sido revelados. Pega uma carona com a mãe de Julián e desce na avenida Paulista, disse que tomaria o metrô, mas decide ir a pé, gosta de caminhar sem pressa pela Doutor Arnaldo quando se sente tranquilo. Luisa adorará a notícia, foi ela que o levou à sua primeira peça infantil. Faz sinal pro vigia abrir o portão da vila. Pega a chave de dentro da mochila, abre a porta. Hoje é dia de faxina, por isso estranha o silêncio (sexta-feira é quando Luisa faz questão de ficar em casa e organizar seus trabalhos). Abre as janelas da cozinha, a luz do final de tarde invade a peça, o tipo de luz que deixa a cidade melhor, mostra a louça na pia, a caixa de flocos de cereal e a tigela de cerâmica suja, da mesma forma que a deixou pela manhã. Pega o celular, liga pra Luisa. “Oi, pode falar?”, pergunta. “Posso”, a resposta é seca. “A dona Leila não veio”, avisa. “Eu sei...”, abalada (mas ele ainda não notou). “Tenho uma notícia boa. Ganhei o concurso de dramaturgia...”, comunica. “Ã?”, ela parece não estar ouvindo direito. “Aquele da escola... Você e o Henrique me...”, eufórico. “Que bom...”, ela o interrompe. “Você está em casa, não está?”, Luisa diz. “Sim...”, já sem a euforia. “Então encontro você aí”, desliga sem ao menos lhe dar tchau. Ele sabe que terá de arrumar a cozinha, então não perde tempo, tira o lixo do cestinho, põe pra fora. Quando entra de novo, liga o rádio e a televisão (é um hábito recente), não chegam a passar dez minutos quando escuta no rádio o boletim atualizando as infor- Habitante_Irreal.indd 171 171 28/09/2011 11:33:29 mações sobre o turboélice transportando vários empresários que desapareceu dos radares aéreos por volta das onze da manhã durante o trajeto de Teresina a Brasília. É o suficiente pra que aperte o pano da cozinha entre as mãos sem secá-las direito e, tentando controlar a respiração, pegue o celular pra falar com Luisa. Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System O corpo foi um dos últimos a serem encontrados pela equipe de resgate. Depois de atendidos trâmites burocráticos de toda ordem, foi enviado a São Paulo. O caixão permaneceu fechado durante as duas horas do velório. Luisa disse que não avisaria ninguém, muito menos pagaria nota de falecimento em jornal. “Isso não combina com o Henrique.” Isso não combinaria com ela. Donato não pediu pra ver o que sobrara do padrasto, nem acompanhou enquanto o sepultavam, ficou sentado em frente à lanchonete do Gethsêmani imaginando a confusão que seria se tivessem de enterrá-lo em Porto Alegre. Um número impressionante de amigos apareceu. Ele se perguntou o que faz alguém largar seus compromissos e ir a um velório em plena três da tarde, se ele, que é o filho, o filho adotado de um filho único de um casal, já falecido, não conseguia sentir nada além da vontade enorme de não estar ali. Luisa vem tomando remédios há mais de uma semana e provavelmente seria prudente se abster de atividades que exigem reflexo, como dirigir o Honda Civic de Henrique, onde os dois estão neste momento enquanto trafegam a mais de cento e vinte quilômetros por hora pela Anhanguera. Ela segura o volante e dirige como se o carro fosse seu. Ele a observa: seus gestos e o seu tom de voz a fazem parecer uma pessoa desconhecida, uma estranha com quem ele não saberá lidar. Ela 172 Habitante_Irreal.indd 172 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System diz que não aceitará acordo, diz que é preciso confiar no Judiciário brasileiro. “Se alguém errou, sem dúvida, irá pagar...” Donato olha a paisagem instantânea e veloz do acostamento, tenta evitar a afinidade da sua presença com a de Luisa, como intuitivamente evitou o seu parentesco informal por todos esses anos, tenta evitar antes que, além de estranha, ela se torne despiciente (por se conciliarem de forma tão abrupta e siamesa). “Os amigos gaúchos de seu pai vão querer a minha cabeça...”, ela diz. Donato não responde, mas volta a encará-la (deixando que seu silêncio aparente ser alguma maneira pouco à vontade de acatar). Por isso, ela prossegue: “Nem todos leem jornal, nem todos eles prestam atenção nas tragédias, nem todos trabalham com a hipótese de que eu possa achar que eles saíram de vez das nossas vidas...” Ela abaixa todo o vidro do seu lado, coloca a cabeça pra fora. Isso dura uns poucos segundos. Quando volta à posição normal, solta um suspiro, foi suspiro de satisfação. “Preciso colocar gasolina”, dirige mais alguns quilômetros, dá sinal à direita, sai da pista, entra no posto Texaco. “Não tenho certeza se vou conseguir continuar aqui nesta cidade...”, para ao lado de uma das bombas de combustíveis. Há um frentista lhe fazendo sinal pra que mova o carro até a bomba mais à frente. “Vou precisar descer”, Donato avisa. “Espera. Quero te propor uma coisa...”, diz, antes de engatar a marcha e arrancar devagar. “Você se forma na escola”, e freia parando o carro um pouco antes da bomba, “e em janeiro nós...” Donato solta a trava da porta. “O que vai ser, madame?”, o frentista pergunta. “Preciso ir ao banheiro...”, Donato diz e abre a porta. “Só um instante.” Ela se atrapalha. “Você me desculpe, Luisa...”, Donato diz e sai do carro. “Vou esperar você aqui”, ela diz. Ele caminha na direção da loja de conveniência e some do olhar dela. “Gasolina aditivada... Pode completar”, diz Habitante_Irreal.indd 173 173 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System ao frentista. Ele enche o tanque, verifica o óleo. O rapaz está demorando. Luisa paga com o cartão de crédito e quando já pensa em se dirigir até a loja, pra saber se está tudo bem com ele, é surpreendida pela menina usando uniforme da Texaco. “Senhora, desculpe importuná-la, mas o moço que chegou com a senhora pediu pra eu dizer que ele foi de táxi pra casa e que vai encontrar com a senhora lá”, a menina fica olhando na direção da loja de conveniência. “Você pode me dizer se ele... deixa pra lá.” O frentista pergunta se ela quer limpar o para-brisa, mas ela quase não escuta. Vai dirigir até a alameda Lorena, chamar alguma amiga (mas qual?), tomar um café no Suplicy, depois um drinque, dois, três e procurar um hotel pra que Donato fique sozinho e entenda o mais rápido possível o que é se virar por conta, mas esse é o cenário que ela está montando em sua cabeça pra tornar menos doído não o fato de ter perdido o homem com quem conviveu por mais de quinze anos e amou incondicionalmente, mas por ter sido abandonada pela única pessoa que poderia estar ali com ela suportando com alguma decência o transtorno de não conseguir imaginar como acordará amanhã e de onde arrancará forças pra admitir que dali pra frente a ausência, a nova ausência, será um bloco sólido e sem a menor chance de caber na realidade. Donato optou por aguardar setenta e duas horas antes de recorrer à ajuda da polícia ou procurar eventuais conhecidos, perdeu a conta de quantas vezes ligou pro celular dela. Agarrou-se a esse remorso e dentro dele a uma leitura rancorosa de tudo que lhe aconteceu até aqui. Não sabe o que fazer, não tem forças, não tem sequer espontaneidade. Já está esperando há mais de minuto. A voz do outro lado da linha disse ser da Clí174 Habitante_Irreal.indd 174 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System nica São Patrício e informou que um tal doutor Nelson falaria com ele em instantes. Na gravação de espera, voz dizendo que a instituição oferece ambiente hospitalar aconchegante, métodos e pessoal apropriados ao tratamento de pessoas que se encontrem acometidas por inconveniências emocionais, assegurando-lhes as melhores condições clínicas pra que se recuperem da forma mais rápida possível. O médico atende, explica que Luisa os procurou pra uma autointernação, foi medicada e passa bem, desculpa-se por não ter ligado antes, mas quando deu entrada ela só fornecera o contato da mãe no Rio de Janeiro e somente minutos atrás lhes pediu pra avisá-lo. Donato pergunta se pode falar com ela, o médico diz que uma enfermeira ligará pra ele dali a vinte minutos no máximo e lhe transferirá a paciente, observa que só poderão conversar por cinco minutos, é o jeito de evitar que ela não se canse demais. Por fim o médico diz que ele poderá visitá-la amanhã na parte da tarde, só por quarenta minutos, e que “se tudo correr nos conformes” ela sairá em quinze dias. Os minutos passam e o tempo de espera chega a uma hora e pouco. O telefone toca, a voz lhe diz oi e pergunta como vão as coisas. Ele diz que está pronto pra deixar a cidade, que pode terminar de cursar o terceiro ano em outro lugar e que nunca mais precisarão colocar os pés em São Paulo. Ela suspira e diz que ele está maluco de cogitar se transferir duma escola tão boa assim, terá de se formar. Enquanto escuta, ele pensa que terá de pegar caixas de papelão vazias do supermercado pra guardar livros, roupas, quadros, filmes, CDs de Henrique, enfim, fazer com que o fantasma do pai se dissipe antes dela retornar. Então ele volta a acompanhar o que ela está dizendo e pede desculpas, diz aos atropelos que a visitará amanhã sem falta (e é cruelmente tomado pela noção de possuir a lucidez ne- Habitante_Irreal.indd 175 175 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System cessitada pela outra pessoa, e isso é algo novo, um novo poder, injustificadamente gratuito, injustificadamente adulto). A adoção decidida por Luisa renovou a cumplicidade entre os dois. A série de comparecimentos diante do juiz, do Ministério Público, do Conselho de Supervisão da Infância e da Juventude fez com que atuassem sem falhas pra demonstrar a estrutura da nova família. Avaliações constrangem, instigam os que estão sendo avaliados a não levá-las a sério. Estão, agora, diante do cartório de registro civil. Vieram ao Centro exclusivamente pra pegar a certidão na qual, daqui por diante, estão os nomes Luisa Vasconcelos Lange e Donato Henrique Lange Becker (seu nome agora com quatro nomes). Ela demora apenas uns minutos, porque é fim de expediente e já não há filas nos guichês. Daqui a minutos sentará com ela à mesa de um restaurante bastante concorrido em Higienópolis e pedirão uma garrafa de Pol Roger Brut Reserve. A extravagância, no entanto, começará quando ela pedir outra garrafa do mesmo champanhe e desafiá-lo a acompanhá-la, afinal ele está prestes a se formar com láurea, muito possivelmente com o coeficiente mais alto entre todos os alunos, estrear a peça, como dramaturgo e diretor, e se mudar com ela pra longe de São Paulo. Ele não vacila, permite que o garçom encha sua taça. O maître passa de mesa em mesa oferecendo um saco no qual há fichas redondas numeradas, do tipo imitação de madrepérola, pra que cada cliente retire uma, justificando a intromissão em face das festividades da semana do vigésimo sexto aniversário do estabelecimento. São dois sorteios por noite valendo uma diária em apartamento luxo no Paulista Plaza da Alameda Santos. Depois de estar certo de tê-las entregado a todos, o atendente sorteia justamente o número que está na mão 176 Habitante_Irreal.indd 176 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System de Luisa. Ela pede a Donato que se manifeste, grite algo, afinal agora ele é o homem da casa. O maître se aproxima e lhes entrega um envelope comunicando que a diária poderá ser usufruída a qualquer tempo e inclui um consumo de até cem reais em pedidos à copa. Ela pergunta se inclusive esta noite. Ele se apruma e imediatamente garante que sim. Ela lhe pede que complete as taças e propõe um brinde, outro. Terminaram de comer a lagosta ao molho de pitanga e ela pediu de sobremesa um tiramisu acompanhado de duas taças de Kir Royale, e então ele propôs de irem dali direto ao Paulista Plaza. Ela sorriu com os lábios retesados e largou um por que não?. Enquanto passavam pela avenida Paulista, olhando os prédios do assento de trás do táxi, ela disse que os dois nunca mais voltariam ali, que depois de umas semanas nunca mais haveria São Paulo. No hotel, ganharam um apartamento no penúltimo andar. Não havia malas, o que não impediu o ajudante de acompanhá-los até o quarto com duas camas de solteiro, conforme pediram, e lhes mostrar o funcionamento dos equipamentos. O funcionário do hotel se retira. Os dois ficam sentados no sofá, com as luzes apagadas, compartilhando a exaustão. A claridade dos prédios se adensa no ar poluído e é suficiente pra iluminá-los deixando dúvidas sobre onde estão os limites. Vem o acidente. A aproximação. Donato movimenta contra a boca de Luisa o seu primeiro beijo. Ela assiste a sua falta de jeito, sua determinação investigativa, e permanece sem palavras, confusa, aflita. É terrível quando você se descobre meticuloso e metódico ao extremo e descobre também, tardiamente, que a pessoa que ocupa o topo da sua lista de melhores talentos cênicos da escola sofre de uma insegurança desmedida com relação à própria capacidade de subir no palco, fazer valer, Habitante_Irreal.indd 177 177 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System tocar o terror, mandar tudo à merda e atuar como faz tão bem nos ensaios. Primeiro foi o resfriado que o deixou afônico, depois descobriu que era gripe, depois evoluiu pra sinusite leve e depois sinusite grave, depois refluxo gástrico, depois as tais palpitações no lado esquerdo do peito, sem fundamento, já que ele, Vicente Fino, é obviamente magro, saudável e não tem nenhum retrospecto de infarto ou coisa parecida na família. Você aposta, arrisca, porque afinal ele, o protagonista masculino da peça, Vicente Fininho, repita-se, é uma bichinha judia e nervosa, carismática, com uma puta cara de jumento assustado capaz de se reacomodar em qualquer expressão, tão representante das minorias quanto você, Donato adotado atolado, que é um índio, igual aos índios mais índios, com uma baita cara de índio mesmo, que se possa encontrar nos documentários daqueles irmãos Vilas-Boas, e que teve a maldita sorte de ser educado por um branco, um branco branquelo defunto, cheio de ideais que no final das contas, tragicamente, não chegaram a se concretizar, como esta peça que gerou tantas expectativas e neste momento está prestes a não acontecer. Você que não gaguejava tanto há meses, porque tudo tem acontecido sem que você ocupe o centro das atenções, está há mais de quinze dias no centro da tempestade, é o legítimo Próspero com a tempestade enterrada no cu e está gaguejando feito um louco. Agora são cinco e vinte da tarde, as portas do anfiteatro abrem às sete e, supostamente, a peça deveria começar às sete e meia da noite em ponto, porque depois do espetáculo é festa e bebedeira. O problema é que Vicente Finíssimo está no otorrinolaringologista, afônico e, segundo sua mãe (que nestas horas, como era de se esperar, o acompanha), com febre de trinta e nove graus. Prognóstico (você acaba de desligar o celular): Vicente não atuará. E não há santa alma que saiba suas falas, só você sabe todas as falas, ninguém será trouxa de se expor 178 Habitante_Irreal.indd 178 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System e virar o bode expiatório se tudo der errado. Pior é saber que a maioria da plateia estará ali por causa do Vicente. São os amigos dele, inclusive uns de fora da escola, os que de fato apreciam as loucuras dramatúrgicas. Substituí-lo, você? Não, você gaguejará, não terá fluência, atrasará o ritmo dos diálogos que são o trunfo da peça. E Kika entra na sala sem bater. “Desculpe entrar desse jeito, mas preciso te dizer uma coisa... Posso?” Kika fica com o rosto bem perto do seu. O hálito que sai da sua boca é o melhor que alguém poderia produzir. Puta merda, Kika sabe como chegar. “Deve.” Kika tem uns olhos lindos. “Sei que você é o diretor.” Kika tem uns peitos. “E você a iluminadora e sonoplasta.” Kika tem uma franja tipo Regina Duarte quando Regina Duarte era jovem e gostosa e era chamada de namoradinha do Brasil. “Então, você terá de fazer o papel do Vicentinho”, Kika diz. Concentre-se, Donato, não é hora pra isso. “Não sou ator”, rebate. “Mas é o único jeito... Usa uma máscara... Não vai fazer diferença. O mais importante são os diálogos”, Kika movimenta os lábios tão bem. “Você tá esquecendo da forma”, ele tenta. Kika podia dar pra ele um dia. “Que forma?”, Kika diz levantando os braços tesudos de Kika. “Como serão dadas as falas... Vou estragar tudo” (e, Senhoras e Senhores, acaba de falar o Diretor, Donato Adotado, que ainda tem o desplante de fantasiar com Kika chupando seu pau num momento desses). “Esquece a forma”, diz Kika. “O que eu tinha de inventar essa maldita peça?”, diz o diretor. “Podemos fazer uma leitura dramática”, diz Kika. “Kika, deixa eu pensar dois minutos, aqui, sozinho.” Kika abre a porta. Dá pra acreditar no que é esta bunda empinada da Kika? “O elenco tá todo lá fora...” Vira mais, Kika. “Que embaraço do cão...” Vira duma vez, Kika. “Você não tem dois minutos, você tem que atuar... Usa uma máscara, vai funcionar, eu peço pra Alessandra catar uma que cubra do lábio superior pra cima.” Tipo: pra ele, o lábio, aju- Habitante_Irreal.indd 179 179 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System dar a te chupar, Kika? “Que diferença fará?”, o diretor pergunta. “Sei lá, é um recurso... Você monta uma persona...” Kika, Kika, Kika. “Não me venha falar de persona”, o diretor se irrita. “Jung...”, Kika provoca. “Ah, me faça o favor, Kika... Não é hora de Jung.” “Então, você?”, e abre um sorriso, a pior das armas de Kika. “Manda buscar a máscara.” Donato cede. Donato não tarava com Kika assim, mas Kika está demais hoje. Kika sai, Donato senta à mesa onde estão espalhadas as páginas com os diálogos, as cenas, os atos, as intervenções técnicas, as ênfases da peça, abre a pasta de elástico, põe toda aquela papelada dentro, guarda na sua bolsa. Sai pra conversar com o grupo de atores, gagueja quase o tempo todo, mas suas palavras encadeiam uma preleção firme sobre o texto que ele escreveu e sobre a contribuição decisiva de todos ali pra que o resultado ficasse bem melhor do que ele imaginava. Aos poucos vai percebendo que está conseguindo tranquilizar a todos, garantir um sentimento mínimo de unidade. Alessandra surge com duas máscaras feitas por um amigo seu chamado Guilherme Pilla, são máscaras plásticas que deixam os lábios e o maxilar bem expostos, a mesma coisa com os olhos. Donato prova a primeira e se sente tão confortável que nem experimenta a segunda. Agora, dentro do palco e dentro da máscara, no importante papel de protagonista masculino, Donato imagina ser Henrique, e isso não o assusta como deveria assustar. No show dos Stones em Copacabana, Luisa abraçou Donato e disse com a boca encostada em seu ouvido: “Você faz ideia de como será em Recife?” Ele virou o rosto pra ela, aproveitando o barulho ensurdecedor, e, sob o efeito 180 Habitante_Irreal.indd 180 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System das cinco latas de Itaipava que bebera, riu presunçoso, do modo que supôs teria rido pra Rener se Rener obviamente estivesse ali, se não a tivesse convencido de que nunca mais escreveria cartas ou enviaria mensagens e tentaria esquecê-la pra sempre. Pés na areia (e distante como até então nunca se sentira da francesa; já pensou que existia apenas pra francesa), puxa Luisa pra si e, cercado pelo maciço de um milhão e trezentas mil pessoas eufóricas, leva sua boca contra a dela e a morde nos lábios, suas mãos escorregam pela sua cintura e param firmes sobre sua bunda, ela põe suas mãos sobre as dele e as induz a apertá-la com a força que se espera de um homem que conheça as mulheres. Donato jamais imaginara como seria esse desligamento de todos os outros olhares. Assim que Keith Richards terminou de cantar This place is empty, Luisa o convidou pra saírem dali e caminharem até o apartamento na Joaquim Nabuco, onde estavam parando. Ele queria esperar pelo menos até You can’t always get what you want, mas os Stones e todo o memorabilia cultural que pôde acumular em treze anos não se comparam ao que está sentindo agora; toda informação neste momento é inútil. Luisa e seu corpo musculoso e seu humor ácido capazes de causar inveja a muita mulher de vinte anos, convicta, puxando-o pela mão através do labirinto de gente alucinada que se transformou a avenida Atlântica, não deixa dúvida, é a última coisa do padrasto que lhe faltava tomar. Habitante_Irreal.indd 181 181 28/09/2011 11:33:29 Habitante_Irreal.indd 182 28/09/2011 11:33:29 Habitante Irreal (Objetiva) • 5ª Prova: 26.09.11 • Abreu’s System