Viagem das coisas e das ideias - PPHIST
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Viagem das coisas e das ideias - PPHIST
Universidade Federal do Pará Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia Mábia Aline Freitas Sales Viagem das coisas e das ideias: O movimento das embarcações e produtos estrangeiros nos meados da Belém oitocentista. Belém 2012 Mábia Aline Freitas Sales Viagem das coisas e das ideias: O movimento das embarcações e produtos estrangeiros nos meados da Belém Oitocentista. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Social da Amazônia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará para obtenção do grau de mestre em História Social da Amazônia. Linha de Pesquisa: Trabalho, Cultura e Etnicidade. Orientador: Prof. Dr. William Gaia Farias Co-orientadora: Prof. Dra. Leila Mourão Banca Examinadora _______________________________ William Gaia Farias - Orientador Universidade Federal do Pará (UFPA) _______________________________ Leila Mourão - Co-orientadora Universidade Federal do Pará (UFPA) _______________________________ Cristina Donza Cancela - Membro Universidade Federal do Pará (UFPA) _______________________________ Carlos Gabriel Guimarães - Membro Universidade Federal Fluminense (UFF) Belém 2012 2 Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) (Biblioteca de Pós-Graduação do IFCH/UFPA, Belém-PA) Sales, Mábia Aline Freitas Viagem das coisas e das ideias: o movimento das embarcações e produtos estrangeiros nos meados da Belém Oitocentista / Mábia Aline Freitas Sales - 2012. Orientador: William Gaia Farias / Co-orientadora: Leila Mourão Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2012. 1. Pará - História, 1840-1870. 2. Importação. 3. Bens de consumo. 4. Pará Comércio - Europa. 5. Pará - Comércio - Estados Unidos. I. Título. CDD - 22. ed. 981.15 3 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus pais Antonio e Fátima Freitas e ao Reginaldo Sales, meu marido. 4 AGRADECIMETOS A pesquisa acadêmica exige esforço, determinação, mas também depende de subsídios fundamentais, apoio técnico, financeiro e, sobretudo emocional. Para a realização desta pesquisa e elaboração da dissertação tive a minha disposição sujeitos que passaram a compor a minha história. Alguns mais, outros menos, mas todos essenciais. Na trajetória de construção deste trabalho conheci pessoas que marcaram minha trajetória estudantil e profissional e outras que entraram para o rol de amigos achegados. Em todos os arquivos que visitei, contei com a disponibilidade de vários servidores. No Grêmio Literário Português contei com o incansável auxílio da Dona Nazaré, funcionária incansável na contribuição com esta pesquisa, na busca de localização de documentos novos aos meus olhos ansiosos por novos horizontes. No Arquivo Público do Estado do Pará sou grata a todos os funcionários que auxiliam na procura dos documentos dos quais precisei cotidianamente. Também gostaria de enfatizar a ajuda de Leonardo Torii, historiador do arquivo, que algumas vezes deixou suas funções nos bastidores da instituição para me orientar sobre alguns detalhes importantes acerca de fontes necessárias. Aos bolsistas do Centro de Memória da Amazônia, que não tenho nem palavras para descrever o tamanho da boa vontade de cada um deles. Em todas as manhãs e tardes em que estive lá, fui muito bem auxiliada por todos que tem como maior característica o profissionalismo que já os perseguem desde a graduação. Como geralmente as boas qualidades decorrem da influência de um grande mestre, agradeço ainda que indiretamente ao professor do Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia e diretor do Centro de Memória, Antonio Otaviano Vieira Junior que ao que parece orienta devidamente os bolsistas daquele centro de pesquisa. A Lílian Lopes, secretária do Programa de Pós graduação que sempre me recebeu atenciosamente, apta a resolver questões referentes ao curso, sempre com uma educação apreciável. Ao professor Maurício Costa que em sua disciplina me fez perceber que o caminho da pesquisa que eu estava percorrendo poderia ser interessante. As professoras Mágda Ricci e Nazaré Sarges que me fizeram pensar em questões importantes tanto teóricas, quanto práticas para o desenvolvimento da pesquisa. Ao professor Didier Lahon pelas indagações constantes e pertinentes. A professora Cristina Donza Cancela pelas indicações bibliográficas, contribuições e sugestões durante o exame de qualificação, sobretudo para a construção do terceiro capítulo 5 que ainda estava por ser construído, o que me fez transformar uma ideia em algo mais concreto. A professora Leila Mourão, que me orientou em meu trabalho de conclusão durante a graduação, com quem tenho mais do que uma relação entre professor e aluna, por quem tenho verdadeira afeição, por seu profissionalismo e sua dedicação durante a construção dessa pesquisa. Se pudesse devolveria toda atenção realizando suas maiores aspirações. Como penso que um de seus maiores desejos é ver emergir novas pesquisas sobre história da Amazônia, pretendi dar minha acanhada coparticipação. Ao professor William Gaia Farias, com quem tive meus primeiros contatos também durante a graduação. Tivemos uma experiência compartilhada desde o início da pesquisa e foi dos melhores incentivadores, embora soubesse que estava desafiando campos novos de investigação. Diria que é um bom parceiro de trabalho, de quem recebi constantes incentivos e contribuições fundamentais e com quem pude afunilar relações de trabalho e de aprendizado constantes. A Wânia Alexandrino Viana, minha amiga de graduação, a quem tive o prazer de recebê-la em casa para almoços embalados por um bom açaí e o que mais tivesse, enquanto conversávamos sobre velhos e novos tempos de nossa vida acadêmica. Minha gratidão não se deve apenas a excelente companhia, mas também ao fato de ter me ensinado a usar Microsoft Access, o que muito me ajudou na construção de bancos de dados e na organização das informações da pesquisa. Ao Walter Pinto, amigo que fiz durante o mestrado, que com sua experiência me fez boas indicações de leitura para a minha pesquisa. Além disso, a sua enorme gentileza de me emprestar seus livros, entre eles muito clássicos que não era tão fácil adquiri-los, me motivou a continuar este trabalho. Ao meu colega de mestrado Helder Bruno, com quem tive boa proximidade e frutíferas conversas sobre o trabalho com inventários. Nunca vou esquecer sua disponibilidade em me acompanhar ao arquivo a fim de me dá boas dicas de pesquisa. O minicurso que ministramos juntos também me fez pensar em questões proeminentes para a construção de ideias. Ao Daniel Barroso pelas muitos toques que se originaram da sua experiência com a demografia histórica, e que me auxiliaram na construção dos elementos estatísticos da pesquisa. Nossa conversas nos intervalos das disciplinas, na fila da xerox no bloco A, no encontro em eventos me ajudaram a organizar dados e perceber a importância das tabelas para 6 a apresentação dos dados e melhoria para o entendimento do texto. Nunca lhe falei isso, mas quero que saiba que aprendi algumas coisas em nossos diálogos. A Helaine Martins, outra amiga de graduação, que mesmo tendo optado por lecionar e fazer uma boa poupança, a fazer o mestrado, sempre me incentivou a continuar estudando, processo de incentivo este que começou desde a inscrição na seleção do mestrado até a conclusão deste trabalho. Amiga, nunca vou esquecer-me de seu auxílio técnico quando me encontrava em situação difícil. Por último, mas não menos importante, agradeço profundamente a minha família, que sempre confiaram em meus talentos estudantis e sonharam que eu poderia ir além. Espero agora está completando mais uma fase desse desejo coletivo. Em especial a meus pais Antonio e Fátima, que desde a minha meninice desejaram que eu pudesse realizar sonhos que suas parcas condições materiais não lhes permitiram realizar. Foi esse sonho, que os fizeram suportar ficarem longe de mim desde os nove anos de idade para que eu pudesse ter acesso a uma escola de ensino fundamental maior. Optei por honrar e continuar sempre nessas veredas da boa vontade e de grandes esforços. Hoje, decidi ir mais longe do que presumiram, já não moro mais em minha terra natal por causa desse sonho. Caso seja necessário posso ir mais longe ainda, pois aprendi com meus pais que os nossos limites podem ser perfeitamente transponíveis quando a vontade é maior que os obstáculos. A minha irmã Marcia Alessandra, meu cunhado Alain John e minha única e amada sobrinha Alessa Julie, que são inspirações de vida, de amor e símbolo do amor em família. Obrigada pela admiração, pelo carinho, por tudo. Ao meu primo Dirley que me proporcionou uma boa morada enquanto eu me adaptava em Belém. As mudanças nas nossas vidas nos deixam frágeis e você me ajudou a superar os meus medos. Sempre vou lembrar-me das nossas conversas noturnas e de que tens um dos maiores corações que conheço, capaz de somar para a realização dos sonhos dos outros. A minha quase filha, Iany Freitas pelo apoio perseverante durante essa jornada de anseios, duvidas e tensão. Por ter me ouvido em assuntos que não são de sua alçada acadêmica ligada ao estudo da medicina, uma vez que prefere cuidar dos vivos e não dos mortos, por isso o século XIX não o interessaria. Ainda assim, me ouviu várias vezes com um amor que espero receber um igual de meu filho ou filha, daqui há algum tempo. Ao meu esposo Reginaldo Sales, químico de formação, e historiador por excelência por todo o apoio emocional, financeiro e companhia de todas as horas, inclusive nas madrugadas. Agradeço sua contribuição na feitura das tabelas, gráficos e, principalmente, por 7 ter ouvido tantas vezes as minhas dúvidas, minhas consternações. Meu agradecimento a você será eterno, assim como o nosso amor. 8 EPÍGRAFE "Desde a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, em 1808, que os portugueses passaram a sofrer séria concorrência dos produtos estrangeiros. É evidente que a liberalização do comércio foi fundamental para que um volume nunca antes visto de mercadorias importadas entrasse no Brasil (...) A importação de mercadorias pelo Brasil oitocentista não foi pois, somente material, mas sobretudo cultural." (Ronaldo Vainfas) 9 SUMÁRIO Lista de Quadros ........................................................................................................ 10 Lista de Tabelas .......................................................................................................... 11 Lista de Gráficos ........................................................................................................ 12 Lista de Figuras .......................................................................................................... 13 Resumo/Abstract ........................................................................................................ 14 Introdução ................................................................................................................... 15 Capítulo I: Porto: Ancoradouro de ideias e produtos............................................. 30 I. I. A civilização entrou pelo Porto ............................................................................. 30 I. II. O Porto de Belém e os produtos ........................................................................ 38 I. III. Movimento das embarcações estrangeiras .......................................................... 44 Capítulo II: Entre mares, coisas e significados ....................................................... 61 II. I. Do mundo da Civilização ao da Representação .................................................. 61 II. II. Atlântico: diálogos e intercâmbios ..................................................................... 72 Capítulo III: Ideias e produtos no cotidiano da cidade .......................................... 104 III. I. Dos muitos usos dos produtos importados ........................................................ 104 III. II. O consumo na elite belenense......... .................................................................. 122 III. III. Os não abastados também consumiam...... ...................................................... 151 Considerações Finais .................................................................................................. 167 Fontes .......................................................................................................................... 172 Referências .................................................................................................................. 177 Apêndices .................................................................................................................... 186 Anexo ........................................................................................................................... 198 10 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Gêneros entrados no Porto de Belém-Pará, 1789-1827 .............................. 39 Quadro 2 - Agrupamento dos produtos em categorias e subcategorias ........................ 75 11 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Embarcações e tonelagens dos produtos entrados no Porto de Belém, 1836-1840 ..................................................................................................................... 33 Tabela 2 - Importação e exportação entre Pará e Portugal, 1800-1818 ........................ 40 Tabela 3 - Importação Estrangeira total, para os seis maiores portos do Brasil Imperial durante a década de 1841-1850 (valores em réis) .......................................... 46 Tabela 4 - Importações de Portos Estrangeiros e Nacionais para o Pará, 1836-1870 .. 49 Tabela 5 - Procedência das Embarcações entradas no Porto de Belém, 1840-1867 (em números absolutos) ................................................................................................ 53 Tabela 6 - Procedência das embarcações entradas no porto de Belém, 1840-1857 ..... 57 Tabela 7 - Importados de maior frequência oriundos de Portugal ................................ 77 Tabela 8 - Importações portuguesas para o Porto de Belém, durante a década de 1841-50 ......................................................................................................................... 80 Tabela 9 - Importados de maior frequência oriundos dos Estados Unidos ................... 84 Tabela 10 - Importações norte americanas para o Porto de Belém, durante a década de 1841-50 .................................................................................................................... 86 Tabela 11 - Importados de maior frequência oriundos da Inglaterra ............................ 92 Tabela 12 - Importações inglesas para o Porto de Belém, durante a década de 184150 ................................................................................................................................... 94 Tabela 13 - Importados de maior frequência oriundos da França ................................ 96 Tabela 14 - Importações francesas para o Porto de Belém, durante a década de 184150 ................................................................................................................................... 98 Tabela 15 - Autos de Inventário/Arrolamento .............................................................. 106 Tabela 16 - Classificação da riqueza Inventariada por Faixas de Fortunas, em réis e libras esterlinas .............................................................................................................. 107 Tabela 17 - Diversidade média por inventário dos bens importados entre as faixas de fortuna ...................................................................................................................... 152 12 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Embarcações Nacionais e Estrangeiras entradas na Província do Pará, 1836-1869 ..................................................................................................................... 47 Gráfico 2 - Renda Interna da Província do Pará, 1800-1872 ........................................ 51 Gráfico 3 - Participação na importação da Província do Pará, 1840-1850 ................... 55 Gráfico 4 - Variedade dos Produtos Importados, 1840-1850 ....................................... 76 Gráfico 5 - Importados de maior relevância para cada país .......................................... 102 Gráfico 6 - Faixas de fortuna com base em inventários post mortem 1840-1870 em libras .............................................................................................................................. 111 Gráfico 7 - Categorias socioeconômicas, 1840-70 (% da categoria na faixa de fortuna) .......................................................................................................................... 117 13 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Portos de exportação de produtos para Belém ........................................... 58 Figura 2 - Anúncio de uma padaria equipada com máquina a vapor ............................ 90 Figura 3 - Carruagens no Centro de Belém, cerca de 1870 .......................................... 91 Figura 4 - Anúncio de leilões no Jornal Gazeta Official .............................................. 115 Figura 5 - Anúncio de venda de acessório para piano .................................................. 131 Figura 6 - Estabelecimento de um sapateiro em Belém, 1862 ...................................... 136 Figura 7 - Anúncio de vendas de tecidos ...................................................................... 141 Figura 8 - Anúncio do Bazar Paraense ......................................................................... 144 Figura 9 - Vestuário Masculino no ano de 1850 ........................................................... 145 Figura 10 - Vestuário Feminino no ano de 1850 .......................................................... 146 Figura 11 - Anúncio de venda de calçados ................................................................... 147 Figura 12 - Divulgação de venda de joias ..................................................................... 149 Figura 13 - Anúncio de venda de relógio de parede ..................................................... 156 14 RESUMO Este trabalho propõe uma análise dos produtos importados da Europa (Portugal, Inglaterra e França) e Estados Unidos para a Província do Pará entre o período de 1840 a 1870. Toma-se como referência que neste período tanto a importação de produtos de primeira necessidade – alimentos, utensílios de trabalho – quanto de bens considerados supérfluos – vestimentas e outros usos – já estavam em alta. O objetivo é discutir o aumento da entrada dos produtos importados através da intensificação das navegações estrangeiras para a Província do Pará a partir de 1840. Partindo desse pressuposto, é possível relacionar o incremento do comércio em âmbito local aos interesses e processos históricos dos países em questão, a fim de em seguida localizar os possíveis consumidores das mercadorias importadas nessa Província do Norte. O enfoque que se pretende atribuir é cultural, reconhecendo os aspectos figurados que permearam a divulgação desses novos bens culturais que adentraram a Província. As noções relacionadas as ideias de civilização e modernidade são inerentes a discussão proposta, sendo esta última um discurso do próprio império brasileiro e que no Pará só encontrou maior recepção no período posterior a 1840, isto é, no pós-cabanagem, quanto mais se deu a ampliação paulatina das navegações de longo curso. Palavras chave: Importação, Pará, navegações, consumo. ABSTRACT This paper poses an analysis of imported products from Europe (Portugal, England and France) and United States to the Province of Pará (Amazon region) between 1840 and 1870. Two types of products were analyzed: day-living necessity – foods, working tools – and goods considered superfluous – clothes and fabrics – were already on the spot. The aim is discuss the raising of imported products, which took place in 1840, established due to the intensive flux of foreign navigations to the Province of Pará. Thus, it is possible associate the regional economic development with the historic interests and processes which came up from these countries, in order to, in a post time, find the potential consumers in this Northern Province. The focus proposed here is cultural, recognizing the figured aspects permeated in the propagation of these new cultural goods in the Province. The notions related to the ideas of civilization and modernity are inherent to the discussion proposed, being this last one, a Brazilian Emperor’s discourse itself, which was in Pará better received after 1840, say, in the post-Cabanagem Revolution period, when the progressive effort on the navigation for long trips became more intense. Key-words: Importation, Pará, navigation, consumption. 15 INTRODUÇÃO Esta dissertação surgiu a partir de uma insatisfação por uma ideia recorrente na historiografia de que a entrada e o consumo de importados estrangeiros teriam ocorrido de forma notável apenas depois de 1870 com a dinamização da exploração econômica do látex. Diante desse pressuposto, esta pesquisa tem como foco analisar os produtos importados da Inglaterra, França, Portugal e Estados Unidos para a capital paraense, entre os anos de 1840 e 1870, tendo em vista que desses quatro países provinham o maior número de embarcações entradas no porto da capital no período abordado pela pesquisa. O objetivo é identificar a intensidade desse fluxo antes de 1870, paralelamente ao aumento do fluxo das navegações a partir de 1840. Toma-se como ponto de referência os momentos históricos vividos pelos países em foco e pela Província para compreender o movimento das coisas e das ideias1 que interligou o Pará aos grandes centros exportadores via comércio transatlântico. Nesse sentido, a pesquisa se justifica a partir da necessidade de entender a intensificação da importação em várias partes do Brasil, que expressam um cenário de modernidade ascendente. As especificidades desses processos podem ser entendidas com base na dinâmica local das sociedades. O interesse pelo tema importação não surgiu por uma proposta de análise meramente econômica ou comercial, mas muito mais por seus significados simbólicos em meio a uma relação internacional que já se desenvolvia intensamente antes do boom da borracha. Em um cenário de crescimento e transformação da cidade nos meados do oitocentos, as coisas e as ideias encontram lugar propício para disseminação frente a uma sociedade que se pretende ser moderna ou civilizada. No cenário dinâmico da capital da Província, destaca-se a busca de superação dos resultados calamitosos da Cabanagem, o progressivo aumento da exportação da goma elástica, o processo emigratório estrangeiro para a Província, e o desenvolvimento nas técnicas dos meios de transporte com destaque para os navios a vapor. Do outro lado do Atlântico, a Revolução Industrial na Inglaterra, o desenvolvimento do conceito de civilização na França, e o anseio de Portugal em continuar mantendo relações com a antiga colônia dão o tom da relação estabelecida entre Belém e grandes centros econômicos e culturais. Já uma economia com um perfil eminentemente agrário no sul e o domínio de algumas técnicas voltadas para a indústria têxtil no norte dos Estados Unidos explicitam os tipos de produtos vindos daquele 1 Esta pesquisa considera que as coisas e as ideias são indissociáveis. Logo ao se importar os produtos também se estão importando valores e ideias, sobretudo as relacionadas à civilização. 16 país, que algumas vezes diferenciam a importação dessa rota comercial específica, mas que por outras os equipara a dos países europeus. Com base nesses processos diversos e na dinâmica das transformações ocorridas na capital depois de 1840, podemos compreender o destaque das exportações desses países para Belém como um aspecto fundamental das alterações na vida social, política, econômica e cultural a partir da intensificação do comércio Atlântico. A partir dessa questão, outras perguntas foram formuladas no sentido de entender em que medida as mudanças ocorridas entre 1840 e 1870 dialogam com o desenvolvimento da prática comercial internacional e com a recepção de produtos importados. Percebemos ao longo da pesquisa que uma história das importações não poderia estar desvinculada de uma análise do incremento das navegações para a capital e muito menos de uma compreensão da importância do porto local. Se no século XIX, o porto é imprescindível em outras partes do Brasil,2 no Pará as águas foram a via que proporcionou um relacionamento contínuo entre a capital e os países analisados. Por isso, entendemos que Belém é um lócus privilegiado para a análise desses processos, pois embora as narrativas de viajantes, literatos, deem conta de que os produtos se espraiavam para o interior com certa celeridade, a capital é a primeira a recebê-las para poder disseminá-los, portanto o fluxo de entrada é muito maior. O estudo dos importados também possibilita a análise dos produtos enquanto disseminadores de padrões sociais muito relacionados a conceitos civilizacionais. Estes conceitos estavam embutidos nas mercadorias como um todo, independente de umas serem mais e outras menos refinadas. No entanto, elas eram destinadas a públicos diferenciados e por isso os níveis civilizacionais3 também poderiam ser distintos. Por outro lado, o consumo dos importados estrangeiros não estava relacionado unicamente à civilização, pois a maioria dos consumidores não tinha acesso a determinados produtos que eram destinados a alguns grupos específicos da elite paraense. Mas, os não abastados tinham acesso a outros que eram de considerável necessidade como, por exemplo, o sal. Daí o desafio de classificar os produtos segundo os seus fins ou suas possibilidades de uso, visando identificar os produtos específicos de cada país emissor e localizar quem possivelmente poderia consumi-los. 2 O Porto do Pará nos meados do oitocentos estava entre os seis portos mais movimentados do Império. Entende-se que as mercadorias que tinham um maior nível civilizacional eram as que estavam relacionadas ao requinte e ao luxo, o que, geralmente, demandava para sua aquisição um elevado poder econômico por parte do consumidor. 3 17 Dessa forma, esta pesquisa também busca identificar os padrões regulares de consumo referentes a vários segmentos sociais, considerando a necessidade de relacionar os produtos importados a realidade social tanto da elite local quanto dos segmentos populares. Ao mesmo tempo, esses padrões regulares nem sempre são rígidos, uma vez que muitos produtos eram consumidos pela população em geral. Logo, o consumo está permeado pela ideia de circularidade cultural.4 Por outro lado, também os padrões não são maleáveis, pois dependendo do nível civilizacional do produto, apenas segmentos restritos poderiam ter acesso a eles. De maneira geral, mesmo reconhecendo esses desníveis sociais, o consumo será entendido não apenas enquanto um resultado do sistema capitalista, mas como fomentador de relações sociais e sistemas simbólicos5 e, portanto, há um interesse pelas dimensões culturais e simbólicas do ato de consumir os artigos importados. Considerando o aumento do número de navios envolvidos com as navegações de longo curso, a distribuição e o consumo dos produtos importados nesse contexto dinâmico pelo qual passou a Província, alguns apontamentos já foram feitos. Uma parte da historiografia regional já apontou a década de 1850 como o período do início das mudanças ocorridas na cidade como decorrente de uma maior interligação com centros comerciais no circuito da mundialização da cultura. Penso que é necessário retroceder pelo menos uma década para entender mais essas relações, pois anos já posteriores a Cabanagem apontam para um crescimento contínuo e ininterrupto do comércio na Província. Tal comércio significa para esta pesquisa a introdução de novos produtos que também estavam se expandindo em outras partes do Brasil, com ênfase na capital do Império, e faziam parte de uma série de inserções das quais o recém país independente passa a experimentar, pelo menos com mais frequência. Essas mudanças acontecem com as indumentárias, com os bens da casa, entre outras. Parte-se do pressuposto de que esses elementos modernos além de se estabelecerem materialmente, passam a ser uma categoria mental, da qual muitos se apropriam cotidianamente, enquanto um elemento de distinção social. O desafio maior dessa pesquisa é mapear a imensa variedade de produtos importados com os mais distintos usos e para as mais diferentes pessoas. Porém, acredita-se que os importados, em sua vastidão de acepções, podem ser unificados pelos seus valores 4 Para saber mais sobre o conceito de circularidade cultural ver BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2008; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das letras, 1987. 5 DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: Para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. 18 civilizacionais que dão a eles um sentido simbólico construído desse lado do Atlântico. Além dessa classificação geral, optou-se por organizar os produtos em sete categorias e quarenta e sete subcategorias. As categorias foram elaboradas com o objetivo de sintetizar a multiplicidade dos produtos importados e foram divididas em alimentos e bebidas, coisas de uso privado e/ou público, equipamentos, indumentárias, trabalho e negócios, tratamentos medicinais e outros usos e diversos. Já as subcategorias foram decompostas a fim de, na medida do possível, detalhar os produtos de acordo com a sua as suas finalidades. Independente da categoria enquadrada, aos importados poderia ser atribuída a classificação de "mais ou menos civilizados". Para efeito de exemplificação, utilizando as categorias alimentos e indumentárias, podemos afirmar que de um lado está alguns alimentos mais comuns como o sal, a farinha de trigo, de outro o azeite doce e os queijos. Todos são alimentos, mas possivelmente destinados a consumidores diferenciados. Muitos usavam chapéus, mas uns usavam chapéu de palha, outros de seda. São esses dois extremos para exemplificar tantos outros, que distinguem os produtos, embora ambos fossem importados e parecessem ser civilizados. Civilizados no sentido de terem sido exportados de países que se julgavam em um nível de desenvolvimento mais elevado que o do mercado importador. Destarte, não se importava apenas coisas ou mercadorias, mas bens dotados de um valor simbólico.6 Nesse sentido, essa pesquisa dá ênfase a elementos comuns defendidos pela história cultural. A história cultural vem se afirmando desde a década de 1970 reunindo historiadores como Emmanuel Le Roy Ladurie, Daniel Roche na França, Natalie Davis e Lynn Hunt nos Estados Unidos e Carlo Ginzburg na Itália. Em que pese às diferenciações nas correntes e abordagens, um terreno comum entre esses historiadores e outros dessa vertente da História é “a preocupação com o simbólico e suas interpretações”.7 Dentro das muitas abordagens possíveis, a partir das mudanças epistemológicas dentro da história cultural, destaca-se o conceito de representação, que tem como principal divulgador o francês Roger Chartier. A proposta da História Cultural seria, pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressam a si próprios e o mundo.8 6 O conceito de civilização permeia o cenário de modernidade ao qual a Província busca conhecer e usufruir. O conceito de civilização está bastante desenvolvido em várias partes das Europa, sobretudo na França. Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 1994. A civilização estava seria propulsora de distinção social. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difusão Editorial LTDA, 1989. 7 BURKE, Peter. O que é história cultural? 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 8 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 19 Ainda dentro das propostas da História Cultural, tem grande importância o conceito de cultura material compreendida como um conjunto de objetos, adornos, tecidos, ferramentas, armas, utensílios, meios de transporte, etc., que formam o espaço palpável da sociedade. Consideremos, então, um preceito básico enfatizado por Marcelo Rede de que "a questão da cultura não pode ser dissociada daquela da materialidade". Portanto, esse espaço palpável que é a matéria possui uma matriz cultural e a cultura, por sua vez, possui uma dimensão material.9 Esta dimensão material já havia sido percebida por Braudel em Civilização Material, Economia e capitalismo publicado em 1979, onde ele apresenta aspectos da vida cotidiana envolvendo de 80% a 90% de toda a população do globo.10 São destacadas questões da vida material como habitação, alimentação, vestuário, moda, moeda, técnicas, que seriam marcados por uma zona de opacidade, espessa, rente ao chão, arrastados pela força da inércia, marcadas pelas mudanças em um tempo de longa duração,11 diferentemente da economia de mercado que se efetuava em um tempo de lenta duração e dos modos de ação do capitalismo que promovem mudanças de curta duração.12 Braudel mesmo teorizando que o tempo da vida material era mais lento, não se preocupou em apenas descrever as estruturas do cotidiano, mas se preocupou em destacar que essas estruturas mudam, reconhecendo que no século XIX houve ruptura, inovação na linha que separava o possível do impossível. Portanto, "tanto a vida material pode afetar o capitalismo, como a expansão do capitalismo pode agir sobre a vida material.13 Para esse autor, o capitalismo não é um modo de produção, ele se baseia na circulação por excelência. Com uma análise de cunho econômico, Braudel foi um dos pioneiros no campo da História a dá atenção a vida material. Depois dele surgiram outros trabalhos que agregam valores simbólicos a esses aspectos econômicos da vida material. Sob essa perspectiva, podemos destacar o livro História das coisas banais de Daniel Roche que trata das formas modernas de consumo a partir do século XVII. Ao mobilizar o universo da cultura material, Roche adita uma enorme contribuição a história econômica e social de Braudel, acrescentando 9 REDE, Marcelo. História a partir das Coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material. In: Anais do Museu Paulista. Nova série, v. 4, jan./dez., 1996, p. 274. O mesmo autor em outro texto faz uma abordagem acerca de diferentes trajetórias no estudo da cultura material, envolvendo diferentes disciplinas. Cf. REDE, Marcelo. Estudos de cultura material: uma vertente francesa. In. Anais do Museu Paulista. São Paulo: Nova Série. v. 8/9. (2001-2002), p. 281-291. 10 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV- XVIII. vol 1. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 11 Idem. Volume 2 da obra acima. 12 Idem. Volume 3 da mesma obra. 13 ROCHA, Antonio Penalves. F. Braudel: Tempo histórico e civilização material: Um ensaio Biográgico. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo: Nova Série, v. 3, jan./dez., 1995, p. 239-249, p. 246. 20 elementos da história cultural. Mas ao estudar a relação entre a produção e o consumo dos objetos, afirma ser necessário "questionar a clássica oposição entre as infra-estruturas e as superestruturas.” Segundo ele, Os objetos, as relações físicas ou humanas que eles criam não podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos de comunicação ou de distinção social. Eles não pertencem apenas ao porão e ao sótão, ou então simultaneamente os dois, e devemos colocá-los em redes de abstração e sensibilidade essenciais à compreensão dos fatos sociais. Sem dúvida, na história a vida material estabelece 'os limites do possível e do impossível' como desejava Braudel, mas ela o faz na imbricação de contextos sociais de informações e de comunicações que organizam a significação das coisas e dos bens, e não na sucessão e na separação nítida de temporalidades propícias a comportamentos típicos.14 Considerando a inserção de elementos culturais para análise dos objetos, o intuito é analisar a relação entre o objeto e o seu sentido para a Província, pois as coisas em si mesmo não possuem sentido algum, e não têm valor histórico. Assim, “os objetos são historicamente selecionados e mobilizados pelas sociedades e grupos nas operações de produção, circulação e consumo de sentido.”15 Por outro lado, é necessário destacar que nem todos os produtos abrangidos pela pesquisa se enquadram na discussão de cultura material, mas passam por um esforço de serem compreendidos enquanto mediadores de relações culturais, sociais e econômicas. É fundamental aliar o estudo dos objetos materiais ao desenvolvimento do consumo consolidado no século XIX. O consumo é um problema crucial para a história social, por isso mesmo, há uma preocupação em identificar quem consumia os produtos importados e o que isso simbolizava na sociedade estudada. Nesse sentido, três referenciais facilitadores para entender o consumo serão observados: A relação entre a produção, distribuição e consumo, a afirmação de que o consumo só se torna realidade econômica dinâmica com o início da Revolução industrial, o fato de que ao falar de uma “revolução” do consumo (ou de consumismo, ou de materialismo moderno) aceitamos implicitamente a visão de uma sociedade integrada.16 14 ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 13. 15 MENESES. Ulpiano T. Bezerra. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público apud GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. As casas & as coisas: Um estudo sobre a Vida Material e Domesticidade nas moradias de Belém – 1800-1850. 2006. 195 p. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia). Belém: Universidade Federal do Pará, 2006, p. 23. 16 LEVI, Giovanni. Comportamentos, recursos, processos: antes da “revolução” do consumo. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 206. 21 Mesmo considerando que a Revolução Industrial foi um marco importante para uma “revolução do consumo”, é necessário estudá-lo em uma perspectiva de longa duração. Caso contrário, atribuir-se-á o consumo apenas ao progresso econômico e tecnológico e as forças produtivas não foram as únicas que evoluíram, as formas culturais17 também se desenvolveram concomitantemente ao consumo e às representações dos recursos.18 Essas formas culturais se sobrepõem a imagem da estratificação social. Com isso, não estamos dizendo que a estratificação social não seja importante para entender a questão do consumo, pois é preciso entendê-la em sua pluralidade complexa respeitando, de certa forma, a distância entre os grupos sociais. A expansão do consumo na Província do Pará não pode estar desassociada das navegações, por isso o porto é imprescindível. A partir de uma análise da importância do porto para as cidades durante boa parte do século XIX, é possível visualizar a dimensão das relações internacionais, e os impactos sobre grupos sociais diferenciados, levando em consideração o processo de “transição, globalização, intimidade”19, em seus sentidos civilizadores. Colocadas essas questões, podemos afirmar que a questão norteadora consiste em entender: Qual a intensidade do fluxo de embarcações e produtos antes de 1870? Partindo dessa movimentação no porto da capital paraense, busca-se analisar o impacto desse processo na alimentação, na indumentária, nos objetos de trabalho20, nos medicamentos, no interior das casas e nos ambientes públicos. Acredita-se que analisar os importados e as relações que a partir deles emanavam é fundamental para entender as nuances da modernidade nesta parte do Brasil. O porto do Pará não era apenas o ancoradouro de produtos no sentido estrito do termo, mas de ideias, de símbolos, de valores. Por isso mesmo não se pode dizer que se estabeleceu entre o Pará e os grandes centros econômicos uma relação passiva, mais proativa bem antes da década de 1870. O que houve depois desse período foi uma culminância exacerbada possibilitada, em grande medida, pelo expansionismo da exportação da goma elástica. Por isso, uma abordagem de cunho unicamente econômico não é eficaz para a 17 As formas culturais construídas, obviamente não eram as mesmas para todas as pessoas, principalmente porque quando falamos nos meados do oitocentos na Província do Pará, a sociedade era extremamente eclética e dinâmica, se considerarmos o constante processo de migração para a região, sobretudo em função da economia da borracha. 18 LEVI, Giovanni. Op. Cit., p. 210. 19 COSTA, Suely Gomes. Transição, globalização e intimidade. Rio de Janeiro, século XIX. Revista Historia y espacio. n. 29, jun/dez, 2007, p. 59-82. 20 Os objetos de trabalho eram muito variados devido às diversas profissões que se desenvolviam na região, entre elas a de ferreiro, ourives, marceneiro, tanoeiro, etc. 22 visualização das profundas transformações no seio da sociedade, pois estas não passam somente pelo aumento da concentração de renda em alguns setores, mas por uma ampla inserção no que se entendia à época por modernidade. Em suma, a pesquisa analisará as relações do Pará com portos estrangeiros e os reflexos desse processo para a construção de um cenário de novos gostos, consumos, visões, e intercâmbios na Província ou simplesmente para a provisão de necessidades básicas. Visando compreender alguns desses meandros, a dissertação estará estruturada em três capítulos. No primeiro, a discussão perpassa por várias noções básicas que permearão o trabalho, tais como civilização, porto, navegação. O objetivo é analisar o porto de Belém enquanto um importante receptor de embarcações, produtos e ideias de civilização a partir de 1840, compreendendo as razões desse movimento no quadro do cenário imperial. No tópico A civilização entrou pelo Porto traça-se o movimento das navegações desde o século XVIII no Estado do Grão-Pará até a década de 1840.21 A finalidade é observar o significativo aumento das navegações, demarcando momentos decisivos como a abertura dos portos em 1808 e o fim do movimento cabano em 1836. Procura-se também desassociar o aumento da entrada de embarcações e produtos estrangeiros unicamente aos problemas de abastecimento, ao aumento da exportação da borracha ou a um francesismo exacerbado.22 Para além de considerar estes parâmetros fundamentais, busca-se apontar para os significados simbólicos e civilizacionais, segundo a mentalidade da época, da navegação internacional, a partir de um diversificado comércio de longo curso. No segundo tópico, O porto de Belém e os produtos, busca-se identificar na historiografia apontamentos sobre as importações na Província em diferentes momentos históricos.23 Fez-se isso desde o início do século demonstrando, dados, valores, comparações 21 Para entender esse cenário de mudanças na capital do império a partir do afluxo de importados, ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Vida privada e ordem privada no Império”. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (org). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 22 Neste primeiro tópico foram apontados alguns caminhos para outras leituras da realidade que se distanciem um pouco desses padrões de análise já consagrados. 23 Sobre o tema importação tratado em diferentes obras. Cf. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da província do Pará. 2ª ed. Belém: UFPA, 1969, p. 166-168; BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Belém: Editora Universitária: UFPA, 1973, p. 323; BATISTA, Luciana Marinho. Muito Além dos Seringais: Elites, Fortunas e Hierarquias no Grão-Pará, c. 1850-1870. 2004. 283 p. Dissertação (Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004, p. 116-117; COELHO, Geraldo Mártires. Anteato da Belle Époque: Imagens e Imaginação de Paris na Amazônia de 1850. Revista Cultura do Pará. v. 16, n. 2, jul/dez, 2005, p. 199-215; CORDEIRO, Luiz. O Estado do Pará, seu comércio e indústrias de 1717 a 1920. Belém: Tavares Cardoso & Cia.,1920; CRUZ, Ernesto. História da Associação Comercial do Pará. 2ª Ed. Belém: Editora Universitária. UFPA, 1996; GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. As casas & as coisas: Um estudo sobre a vida material e domesticidade nas moradias de Belém – 1800-1850. Belém, 2006. 195 p. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) Universidade Federal do Pará, p. 103; MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira. Daquilo que se come: Uma história do 23 entre importação e exportação, no sentido de entender como autores em diferentes períodos históricos interpretaram o tema importação, seja do ponto de vista da balança comercial, dos usos e dos costumes, da alimentação ou da visualização das coisas da casa. Essas e outras interpretações foram buscadas na historiografia desde o século XIX para se captar os diversos olhares sobre o tema, mostrando assim a sua relevância. No terceiro tópico, Movimento das embarcações estrangeiras, o objetivo é mostrar o aumento da movimentação no porto. Traçou-se uma comparação desde 1808, abrangendo todo o período joanino,24 pois ainda que este período não seja o da pesquisa é importante para verificar se as mudanças ocorridas depois de 1840 foram significativas. Para os anos posteriores a 1840, confrontou-se o número de embarcações estrangeiras com as nacionais e a partir daí, levantou-se o número de embarcações entradas de cada país estudado e seus respectivos portos, de onde saíam as mercadorias com destino ao Pará. No segundo capítulo, o grande mote é a relação entre as coisas e os processos que estavam se desenvolvendo na Inglaterra, França, Portugal e Estados Unidos. O objetivo é reconhecer o país através dos produtos importados, pois ainda que muitos produtos fossem comuns a todos os países, alguns eram muito específicos na medida em que demarcavam e eram a própria representação material da sua origem e do seu processo histórico. Através da análise da variedade e da frequência com que essas mercadorias eram importadas é possível verificar quais produtos se destacavam para cada centro exportador. Não é por acaso que estes são os países que mais exportam seus produtos para a Província, a partir de contextos específicos de mudanças em suas conjunturas. É possível visualizá-las quando se analisa os produtos procedentes de cada um desses centros ou de vários lugares desses centros, haja vista que cada um deles possuía vários portos de distribuição de mercadorias, que aqui eram recebidas, consumidas e observadas sob o olhar atento dos viajantes. Este capítulo, então, tende a relacionar as coisas aos países de origem identificados. A ideia é identificar o país pelo importado e pela frequência de determinados produtos ou tipo de produtos de acordo com processos históricos gerais, tais como a Revolução Industrial. Farse-á uma discussão das coisas com o país que ela representa a partir de contextos históricos abastecimento e da alimentação em Belém (1500-1900). Belém, 2009. 227 p. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) Universidade Federal do Pará, 2009; SALLES, Vicente. A Música e o tempo no Grão-Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1980; WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: Expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Edusp, 1993. 24 O período joanino compreende o intervalo entre 1808 a 1821. Cf. VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano; BARROSO, Daniel Souza. História de “movimentos”: embarcações e população portuguesas na Amazônia Joanina. R. Bras. Est. Pop. v. 27, n. 1, jan./jun., 2010, p. 193-210. 24 particulares. No primeiro tópico, Do mundo da Civilização ao da Representação, se fará uma discussão da História Cultural a partir do conceito de representação de Chartier, associando-o a divulgação dos produtos importados nos periódicos que circulavam na cidade. Nestes, faziase sempre referência a cidade de onde o produto teria vindo como um símbolo que representava a legitimidade da mercadoria. A representação seria um conceito chave para compreender a divulgação de variados produtos importados, fossem de primeira necessidade ou de luxo, a partir da qual os produtos seriam apreendidos enquanto bens culturais.25 No segundo tópico, Atlântico: Diálogos e intercâmbios, classificar-se-á os produtos oriundos de cada país em categorias e subcategorias, de modo a permitir a identificação, a qualificação dos mesmos e os seus significados para a população da Província. As categorias alimentos e bebidas, coisas de uso público e/ou privado, equipamentos, indumentárias, trabalho e negócios, tratamentos medicinais e outros usos e diversos servem para identificar os tipos de produtos mais comuns para cada centro exportador analisado. Relacionou-se neste item o processo histórico vivido pelos Estados Unidos, Portugal, França e Inglaterra26 que tiveram reflexos na Província do Pará a partir do incremento das conexões mercantis e da difusão de objetos materiais, cujo sentido e significado explicam muitas mudanças ocorridas na capital belenense. 25 A discussão do conceito de representação dos bens culturais relacionado à História Cultural foi feita com base nos seguintes textos. CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990; CHARTIER, Roger. “O mundo econômico ao contrário”. In: Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro. Bertrand do Brasil, 2005, p. 253-260. Para entender mais sobre história cultural Cf. BURKE, Peter. O que é história cultural? 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008; PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. RIOUX, Jean Pierre; SIRINELLE, Jean-François (orgs). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. 26 Foram vários os processos que ajudam entender o contexto no qual estavam imersos os países com quem o Pará comerciava. Cf. ALVES, Jorge Fernandes. Os Brasileiros, Emigração e Retorno no Porto Oitocentista. 1993. 451 p. Tese (Doutoramento em História). Porto: Faculdade de letras da Universidade do Porto, 1993, p. 66; BITTENCOURT, Agnello. Navegação do Amazonas & Portos da Amazônia. Manaus: Typ. Palácio Real, 1925; FRAGOSO. João Luís R. O arcaísmo como projeto: Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro c. 1790-c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 99-100; FRAGOSO. João Luís R.; FLORENTINO Manolo. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; GREGÓRIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: A navegação do rio Amazonas e a formação do Estado brasileiro (1838-1867). 2008. 338 p. Dissertação (Mestrado em História Social). São Paulo: USP, 2008; HOBSBAWM, Eric J. A Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; LUZ, Nicia Vilela. A Amazônia para os negros americanos: As origens de uma controvérsia internacional. Rio de janeiro: Editora Saga, 1968; MEDEIROS, Fernando Sabóia. A liberdade de navegação do Amazonas: relações entre o Império e os Estados Unidos da América. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938; PALM, Paulo Roberto. A Abertura do Rio Amazonas à Navegação Internacional e o Parlamento Brasileiro. Dissertação (Mestrado). 2009. 97 p. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009; REIS, Artur César Ferreira. A Amazônia e a cobiça internacional. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1972; RICCI, Magda. Entre portos, comércio, e troca culturais: os portugueses e as lutas sociais na Amazônia – 18081835. In: MATOS, Maria Izilda; SOUZA, Fernando de; HECKER, Alexandre. Deslocamentos e Histórias. São Paulo: Edusc, 2008, p. 191-194. 25 Finalmente, o terceiro capítulo tem como epicentro relacionar os produtos à sociedade belenense, na medida em que possibilita percorrer os caminhos do consumo dos importados. A partir de uma maciça divulgação dos produtos oriundos das navegações de longo curso em periódicos locais, do aumento paulatino das casas de vendas de secos e molhados e de toda sorte de materiais, quem adquiria esses produtos? Visando responder essa questão, neste capítulo delineamos uma organização dos inventários post mortem em faixas de fortuna, a fim de identificar o consumo entre diferentes camadas sociais, apontando possíveis diferenciações. Procuraremos relacionar os produtos importados aos diversos usos que se fazia na Província, seja por indivíduos da elite paraense, instituições e outros setores sociais. No primeiro tópico Dos muitos usos dos produtos importados, procurou-se mapear os inúmeros consumidores desses importados, considerando diversos grupos consumidores organizados de acordo com a sua fortuna, os seus bens móveis e as suas dívidas ativas. Perscrutar os sujeitos consumidores dos importados e analisar suas possibilidades de uso e apropriação possibilita concluir uma análise da tríade levantada nessa proposta de pesquisa, isto é, produção,27 circulação e consumo. No segundo tópico O consumo na elite belenense tem como foco principal analisar o consumo entre os sujeitos com fortuna igual ou maior a 1.000 libras (10$000), indivíduos estes que analiticamente foram denominados de os abastados e os mais abastados. Nesses grupos encontramos comerciante, indivíduos detentores de diversas patentes militares, médico fazendeiro, pessoas mais ou menos influentes. Será que estes indivíduos detinham tipos de importados específicos? Em que eles se diferenciavam ou se igualavam às camadas sociais com menores posses? Apontaremos através da análise dos inventários post mortem alguns nomes que estavam ligados ao consumo das coisas consideradas de luxo. Alguns deles são de comerciantes, por se caracterizarem como os principais envolvidos na disseminação dos produtos, e por serem possíveis consumidores. Por fim, o último item intitulado Os não abastados também consumiam analisará o consumo entre indivíduos com menos de 1000 libras (10$000), que foram divididos em os mais pobres, pobres estabilizados e os remediados. Esse tópico apontará ainda outras possibilidades de uso dos produtos. Serão observados os usos em instituições e sujeitos como as meninas do Colégio Nossa Senhora do Amparo, pelos aprendizes do Arsenal de Marinha e outros. Isso é possível visualizar nos jornais, nos ofícios expedidos por essas instituições para 27 Embora o foco não tenha sido estudar a produção dos inúmeros objetos importados, buscou-se mapear os locais dessa produção e algumas de suas características históricas. 26 os presidentes de Província, relatórios e prestações de contas enviadas ao Tesouro Público Provincial. A finalidade é desmistificar a ideia de que os produtos importados eram restritos a elite paraense. Considera-se o fato de que nem todos os produtos eram considerados de luxo. Porém, muito deles compunham o cotidiano de pessoas e grupos não beneficiados pelos progressos econômicos da capital da Província. Metodologicamente, optamos pelo cruzamento de diversas documentações na busca de apreender a realidade estudada. São elas, os Periódicos, os Relatórios da Presidência da Província, Relatos dos viajantes, documentos referentes à Alfândega e mesas de consulado, ao Arsenal de Marinha, a Capitania dos Portos, ao Ministério do Estrangeiro e Justiça e ao Tesouro Público Provincial. Utilizamos também Almanaques, Manifestos de Importação e os Inventários post mortem. Os periódicos são fundamentais para este trabalho, uma vez que fornecem possíveis caminhos de pesquisa. Eles indicam os produtos aportados por meio de divulgação de vendas, leilões de produtos, anúncios das casas comerciais. Alguns deles como é o caso do Treze de Maio e do Gram-Pará noticiam o movimento do porto, mencionando as embarcações entradas e as suas respectivas cargas. Esses são elementos chaves para se ter noção da frequência com que os produtos entravam na Província. Além desses, outros jornais foram importantes para a composição de um dinâmico cenário comercial, na qual os importados tinham um lugar reservado.28 Com base nos periódicos foi possível analisar a entrada das embarcações e seus carregamentos descritos minuciosamente no jornal, dados estes que foram minutados através do Microsoft Office Access. Dessa maneira, foi elaborado para cada país campos para registrar os produtos chegados para cada viagem dos Estados Unidos, Portugal, Inglaterra e França, o que tornou possível constatar os produtos que entravam mais constantemente no Porto de Belém de cada porto estrangeiro. Através do Access também foi possível comparar as entradas de embarcações nacionais com as estrangeiras, dando um panorama dos principais portos com os quais o Pará comerciava. Os relatórios dos presidentes da Província são importantes para a pesquisa na medida em que apresentam sempre os resumos das importações concernentes a um conjunto de anos, embora essas descrições não sejam consecutivas. Ao lado dos dados quantitativos da importação estão os da exportação, o que permite traçar um quadro comparativo entre ambas 28 Foram utilizadas informações dos periódicos Gazeta Oficial (1858-1860), O Doutrinário (1848), Correio dos Pobres (1851-1853), O Monarchista Paraense (1852), O Planeta (1849-1850), O Publicador Paraense (18521853), Voz do Guajará (1851-1852). 27 a fim de perceber a situação da importação no período estudado. Dos relatórios serão utilizados aqueles que, geralmente, têm como título navegação e comércio, tendo em vista que tão relevante quanto os valores das importações são as informações acerca da navegação que interligou o Pará aos portos e países abordados. Os relatos dos viajantes ajudam na compreensão do cenário analisado, pois dão pistas importantíssimas, sobretudo em se tratando da presença efetiva de determinados produtos e o uso que se fazia deles. Essas narrativas apontam para o cenário de transformação pela qual passou a Província, no qual os produtos importados têm lugar específico. É o das ruas que estão se modernizando, o das louças em que são servidas as comidas ou mesmo a utilização da manteiga inglesa em residências modestas, por exemplo. Os relatos dos viajantes analisam a Província e sua capital a partir de parâmetros europeus de seus países de origem e por isso identificam e fazem comparações civilizacionais, que apesar de imbuídas de preconceitos diante do novo, descrevem situações pontuais ou contextuais sobre a sociedade em foco. Não se pode negar o sentido de testemunho presente na literatura dos viajantes, sendo que "a literatura de viagem, como um todo, raramente perdeu o seu caráter de testemunho de uma experiência vivida - condição essencial das fontes primárias."29 No Arquivo Público do Pará foram encontrados documentos de natureza e conteúdos diversos, que perpassam pela notificação da entrada de embarcações estrangeiras, menções a casas de comércio e comerciantes, acidentes ocorridos em viagens, despachos de cargas, despesas e descrição de produtos enviados para o colégio Nossa Senhora do Amparo e outros. Essas fontes permitem compreender o cenário e a dinâmica tanto das embarcações quanto dos produtos. Uma das fontes imprescindíveis foi o Mapa Estatístico do Comércio e Navegação do Império do Brasil, onde constam dados valiosos da Alfândega do Pará disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Infelizmente, somente foi possível ter acesso aos valores das importações na década de 1840, mas procuramos suprir as lacunas por meio daqueles dados contidos nos Relatórios já mencionados. Essa fonte traz informações de todos os produtos que eram importados de acordo com cada país, bem como os valores que eram investidos nesses produtos. Os manifestos de importação, que são espécies de mapas em que constam a nacionalidade, nome e tipo da embarcação, listagem dos produtos por viagem, além do 29 LEITE, Miriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX – antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo/Brasília: Hucitec/Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória, 1984, p. 20. 28 consignado responsável pela carga, infelizmente não estão disponíveis para todos os países. A documentação de Portugal é a única disponível no Grêmio Literário Português para os anos de 1857 a 1870. Pelo que consta, este tipo de documentação está sob a tutela da Companhia Docas do Pará e não está aberta para consulta. Diante disso, a solução é utilizar documentações de tipos diversos e o trato com a documentação existente demonstrou que isso é possível. Considerando que os inventários são representativos de várias camadas sociais, essa pesquisa visa superar os limites das famílias mais endinheiradas, no sentido de pensar os novos símbolos e produtos culturais como tendo um consumo um tanto alargado. Os menos abastados também fazem parte do processo de incremento do comércio, de alguma forma sendo por ele influenciados. Os inventários permitem entrever os objetos de trabalho, as indumentárias e joias, mas, sobretudo são documentos escritos insubstituíveis para os estudos relacionados à mobília,30 e aos bens da casa em geral. Essa fonte documental pode indicar os níveis de riqueza e os padrões de consumo das populações,31sendo crível associar os produtos arrolados com o nível da riqueza dos inventariados. A partir disso, podem-se associar produtos considerados de luxo com certos nomes da elite paraense, sobretudo a ligada ao comércio. A amostra foi selecionada a partir de um total de 252 inventários pertencentes aos cartórios Odon e Fabiliano, disponíveis no Centro de Memória da Amazônia, sendo os únicos que contemplavam a temporalidade orientadora da pesquisa. O levantamento foi amostral, considerando um número de inventários para as décadas de 1840, 1850 e 1860, que desse conta de localizar a presença de objetos importados que compunham o rol de bens de indivíduos com diferentes níveis de riqueza. A análise desses inventários constatou que os bens importados estavam presentes em menor ou maior grau em todas as faixas de fortuna levantadas. A amostra levantada correspondeu a 52 inventários,32 inerentes as três décadas estudadas. Esse período permitiu-nos analisar os objetos materiais importados no período em 30 PESEZ, Jean-Marie. História da Cultura Material. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 198. 31 ABRAHÃO, Eliane Morelli. Morar e viver na cidade: Mobiliários e utensílios domésticos. Campinas (1850-1900). São Paulo: Alameda, 2010, p. 18. 32 O levantamento foi amostral, considerando um número de inventários para as décadas de 1840, 1850 e 1860, que desse conta de demonstrar a presença de importados que circulavam na cidade. Esse critério está de acordo com o número percentual de inventários disponíveis para cada década. 29 que Belém já vivia um processo que iria culminar em uma fase intensamente cosmopolita, possibilitada pelas riquezas que produziram a Belle Époque.33 Para a seleção dos inventários que visou levantar uma amostra para cada década houve uma preocupação em selecionar inventários de indivíduos com fortunas diferenciadas para a verificação dos importados em diferentes estratos sociais. A coleta de dados foi realizada a partir de uma ficha para cada inventariado, antecipadamente elaborada, em que procuramos registrar os bens imóveis, as dívidas ativas e passivas e os bens móveis que foram organizados de acordo com as categorias já citadas criadas para facilitar a análise, haja vista estarmos tratando de muitos bens importados. Nos inventários também foram encontrados relações de credores, notas fiscais de estabelecimentos comerciais, entre os quais os produtos importados eram a pauta principal. Sempre que possível, buscamos cruzar os nomes dos inventariados com os almanaques administrativos, mercantil e noticioso de 1868,1869 e 1870. Procuramos também localizar esses nomes nos jornais a fim de identificar a profissão, relação com o comércio, com instituições públicas. A partir dessas fontes, esperamos fazer uma discussão acerca do aumento das navegações e dos produtos importados divulgados e consumidos na Província do Pará, que definiram um lento, mas definido progresso material,34 nos meados do oitocentos. 33 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). 2ª Ed. Belém: PakaTatu, 2002. 34 FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. 4ª ed. São Paulo: Global, 2008, p. 59. 30 CAPÍTULO I: ANCORADOURO DE IDEIAS E PRODUTOS I. I. A civilização entrou pelo Porto. Para nós, e os outros povos que na mesma época recebiam, em grandes doses, essas lições de cultura e civilização, povos ainda voltados para o modelo reitor de sua formação histórica, nada disso é superficial, fútil ou mundano (...). Recebíamos evidentemente, já prontos para o consumo os pacotes da cultura europeia.35 Uma leitura menos atenta da história da Amazônia poderia inferir que a descrição acima se refere ao que se convencionou chamar de Belle Époque, período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX,36 em que o fausto do apogeu da economia da borracha se apresentou na sua forma mais ostentatória. No entanto, Vicente Salles se referia ao ano de 1853, quando nas páginas dos jornais, já naquele ano, eram frequentes os anúncios retratando aspectos da vida social e cultural da Província do Pará muito atrelados a sua relação com o exterior. Os efeitos dessa relação eram sentidos e propalados como essenciais para a Província, que a partir de 1840, quando do restabelecimento do caos decorrente da Cabanagem, pode desfrutar de um relativo contexto de “reflorescimento” econômico.37 Para tanto, um elemento colocou-se como fundamental: o aumento do fluxo das navegações. Estas ligavam a Província do Pará com a Europa e com a América do Norte. No entanto, destaca-se pela sua maior frequência Portugal, Inglaterra, França e Estados Unidos, através dos portos de Lisboa, Porto, Liverpool, Londres, Havre, Nantes, Marselha, Sète, Salem, Boston e New York.38 Os laços com os portos estrangeiros – costumeiramente restritos ao âmbito econômico ou colocados apenas como uma solução para o problema do abastecimento, do qual os presidentes da Província tanto se queixavam – são uma via para pensar as navegações como propiciadora de trocas não somente comerciais, mas culturais a partir das novas práticas e releituras da realidade, para qual a Província dava seus primeiros passos. O transporte marítimo sempre teve crucial importância para o Grão-Pará, tendo crescido a sua necessidade nos meados do século XVIII. Ainda que a emergência do chamado 35 SALLES, Vicente. A Música e o tempo no Grão-Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1980, p. 273. SARGES, Maria de Nazaré. Op. Cit.. 37 LOPES, Siméia de Nazaré. “Casas de Negócios, Tabernas e Quintais: O controle social sobre os agentes do comércio no pós-Cabanagem”. In: Revista Estudos Amazônicos. v. 1, n. 1, Julho/Dezembro, 2006, p. 39. 38 Esses portos eram os mais frequentes, embora existam outros que ainda serão apresentados. 36 31 “ciclo agrícola” (produção de cacau, café, algodão, cana-de-açúcar, etc.)39 não tenha conseguido alavancar a presença desse transporte, com o aumento da exportação do cacau a sua regularidade tornou-se inevitável. Durante o período do “ciclo,” a capitania permaneceu sem muito contato com o mercado externo e “um ou dois navios por ano tocavam o porto de Belém no princípio do século XVIII.”40 Antônio Baena, ao comparar as navegações da capitania do Pará com a Bahia em 1695 informa que “desta arte não é de maravilhar que quando dos portos do meio-dia do Brasil se soltavam as frotas, como a da Bahia em 1695 composta de 40 navios grandes (...), houvessem apenas três navios ocupados em igual tráfego de Lisboa para o Pará”. Porém, afirma que é certo que a partir de 1733 havia carga para sete navios e “desse ano em diante o dito número foi tendo paulatino incremento”.41 No decurso das décadas de 1780-1800, ainda recordava Baena, a quantidade de navios dedicados a levar os produtos do Pará para o exterior, havia aumentado de 12 ou 13 para 25.42 Com a “separação do Maranhão em 1772 e até pelo menos 1817, a capitania do Grão-Pará cresceu em número populacional e em comércio”.43 Comércio este que só tenderia a alargar-se com a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que possibilitou aos portugueses americanos e as outras nações a “comunicação mercantil,” sendo na visão de Baena a “fonte mais caudal da riqueza e prosperidade, constituindo fácil e pérvio o comércio de seu riquíssimo torrão a todos os povos civilizados.”44 A abertura dos portos possibilitou a relação do Pará com outros mercados, agora não mais presos as restrições do exclusivismo e “começam a vir os ingleses e mercadejar, e a estabelecer-se no Pará.”45 39 A classificação “ciclo agrícola” utilizado por Roberto Santos tem sofrido uma série de críticas na atualidade por considerar que os processos econômicos são estanques e não dinâmicos. Cf. SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980, p. 16. 40 ALDEN, Dauril. O significado da produção de cacau na região da Amazônia no fim do período colonial: um ensaio da história econômica comparada. Belém: UFPA/NAEA, 1974, p. 28. 41 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 171. 42 BAENA apud RICCI, Magda. “O Fim do Grão-Pará e o Nascimento do Brasil: Movimentos sociais, Levantes e Deserções no Alvorecer do Novo Império (1808-1840)”. In: PRIORE, Mary Del; GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Os Senhores dos Rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 169. 43 Ibidem. Até o final do século XVIII o movimento das embarcações que atravessavam o Atlântico com destino a capitania do Grão-Pará ainda era incipiente e estava restrito a Portugal, além dos navios ligados ao tráfico de escravos. A partir de 1755 com a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, destinada a incrementar o tráfico, houve um considerável aumento na introdução de escravos e consequentemente na entrada de embarcações. Cf. SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. 3ª Ed. Belém: IAP; Programa Raízes, 2005, p. 55. 44 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das Eras da Província do Pará. 2ª ed. Belém: UFPA, 1969, p. 273. 45 Ibidem. 32 É possível que a atração de vários comerciantes ingleses que se estabeleceram em Belém e passaram a operar com a Europa depois de 1810 – tendo sido mais tarde ampliado a área de comércio para abranger os Estados Unidos e as Antilhas – “tenham comunicado aos contemporâneos uma impressão de boas perspectivas econômicas”.46 Todavia, tal otimismo não iria durar muito, pois De 1806 a 1819 passou o Pará por uma grande crise contínua e ininterrupta; mas, em 1820 sete galeras e 53 embarcações de diversas tonelagens trouxeram a esta Província mercadorias francesas, inglesas, portuguesas e africanas, que teriam constituído o início de uma era nova e mais próspera, se as comoções internas e as agitações políticas não tivessem quase extinguido completamente as relações e o movimento comercial (...). A navegação de longo curso se mantém estacionária até 1840-41 com 78 a 100 navios.47 Durante o período revolucionário cabano, houve sérios problemas concernentes à produção e comércio, dificultados ainda mais pelas condições de saúde pública, como um agravante para o desenvolvimento do comércio na Província. Não foi à toa a preocupação expressa em 1838 pelo presidente da província Soares de Andréa, o qual traçava “um quadro sombrio da economia paraense agravado pela destruição dos ativos (...), o desaparecimento de escravos e, devem-se acrescentar os surtos epidêmicos e a piora das condições sanitárias.”48 O aumento da frequência das navegações deu-se concomitantemente ao desenvolvimento do comércio ainda no período colonial, proporcionando um avanço paulatino, embora com algumas interrupções. Há “necessidade de pensar os processos de civilização ou as transformações sociais, recorrendo aos tempos longos, mesmo que descontínuos”.49 Passou o Pará por um período de significativa estagnação entre 1821 e 1836, só tendo voltado a uma relativa normalidade com o fim da Cabanagem. Desde os tempos coloniais havia um ir e vir de ideias, homens, mercadorias e tradições que interligavam a Amazônia a Portugal. No entanto, na sequência dos anos de 1820 os ânimos dos povos exacerbaram-se, acentuando mágoas e rancores que contrastavam com os antigos laços familiares e de solidariedade. As mudanças políticas e sociais em curso entre as décadas de 1820 e 1840, em geral buscavam delimitar os tênues fios de um patriotismo em um Império repleto de heterogeneidades.50 46 SANTOS, Roberto., Op. Cit., p. 27. CORDEIRO, Luiz. O Estado do Pará, seu commercio e indústrias (1719-1920). Belém: Tavares Cardoso & Cia, 1920, p. 19; 20; 24. 48 CRUZ (1963) apud SANTOS, Roberto., Op.Cit., p. 35. 49 CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 10-11. 50 RICCI, Magda. Op. Cit, p. 166. 47 33 Consoante a Ernesto Cruz, “vem exatamente do ano de 1840 a restauração da paz, do comércio e da indústria, proporcionando a todos os habitantes da capital e do interior perspectivas mais acalentadoras”,51 ou nas palavras de Siméia Lopes “após a pacificação da população abalada pelas agitações políticas” o Grão-Pará experimentava um “reflorescimento econômico”.52 Ainda em 1835 “o comércio esteve em ponto morto,” e “os navios não se aventuravam a entrar num porto dominado pelos rebeldes.” Mas, de 1836 a 1837 entraram 66 embarcações de procedência estrangeira ao passo em que no mesmo período entraram apenas 34 de portos nacionais.53 Os navios de origem estrangeira que chegavam ao porto do Pará eram muito superiores em quantidade em relação ao de origem nacional. Nesse diferencial, o que interessa aqui são as importações. Os valores em moeda corrente demonstram que de 1838 a 1839 importou-se dos portos estrangeiros 852:657$625 réis e 485:587$044 réis de portos nacionais. Entre os anos de 1839 e 1840 dos portos nacionais foram importados 659:761$488 réis e dos portos estrangeiros 899:577$233 réis. Apresentados alguns dados comparativos referentes ao número das embarcações e alguns valores das importações estrangeiras, observe na tabela 1 uma comparação das importações estrangeiras e de cabotagem considerando o número de embarcações e o fator tonelagem. Tabela 1 – Embarcações e tonelagens dos produtos entrados no Porto de Belém, 1836-1840 Período Portos estrangeiros Cabotagem Nº embarcações Tonelagem Nº embarcações Tonelagem 1836-1837 66 9.309 34 4.534 1837-1838 54 9.269 24 4.912 1838-1839 61 9.336 22 2.679 1839-1840 65 9.639 16 1.613 mo Fonte: PARÁ, Governo da Província do. Discurso recitado pelo Ex Snr. doutor João Antonio de Miranda, Presidente da Província do Pará na abertura da Assembleia Legislativa Provincial no dia 15 de agosto de 1840. Pará, Typ. de Santos & menor, 1840, p. 77. Comparando o número de embarcações entradas no porto da capital e o peso, em toneladas, de 1836 a 1837 as 66 embarcações estrangeiras trouxeram 9.309 tonelagens e as 34 de cabotagem transportaram menos da metade, apenas 4.534 toneladas. De 1837 a 1838 vieram dos portos estrangeiros 54 embarcações com 9.269 toneladas e de cabotagem 24 51 CRUZ, Ernesto. História da Associação Comercial do Pará. 2ª Ed. Belém: Editora Universitária. UFPA, 1996, p. 115. 52 LOPES, Siméia. Op. Cit., p. 39. 53 CRUZ, Ernesto. Op. Cit., p. 113. 34 embarcações contendo 4.912 toneladas, o número é reduzido a menos da metade. Já entre 1838 e 1839 entram na Província do Pará 61 embarcações trazendo 9.336 toneladas, oriundas de portos estrangeiros e de cabotagem 22 embarcações com 2.679 toneladas, ou seja, a diferença é ainda maior. Aprofundando-se consideravelmente nos anos posteriores, pois de 1839 a 1840 a navegação de cabotagem conta com apenas 16 embarcações e 1.613 toneladas, enquanto que a estrangeira conta com 65 embarcações com 9.639 toneladas.54 O que isso explica? A Província do Pará estabeleceu relações com o exterior, através das navegações que se intensificou no pós-cabanagem e ainda mais depois de 1840, que vai além de uma simples permuta de produtos ou uma comum troca comercial. Leituras recorrentes e já bem consagradas têm tratado as navegações como um aporte necessário para o incremento das ligações comerciais internacionais. Entretanto, é importante pensá-las enquanto um elemento fundante, a partir de onde emanam as possibilidades de invenção de variadas práticas sociais e culturais, quais sejam, as proporcionadas pela distribuição de coisas materiais, mas também de ideias, notícias e modismos. As navegações permitem que circulem de um lugar para o outro os modos de sentir, de vestir, de conhecer, de pensar e até de se alimentar. Ou seja, o que está em questão, então, não é apenas o que o governo provincial teria que arrecadar ou não com a entrada de embarcações, mas o que o contato frequente pela diminuição das distâncias, sobretudo a partir da navegação a vapor, pode significar para uma Província que principia a sentir o gosto da civilização, no sentido imperial do termo.55 Partindo da delimitação temporal compreendida entre 1840 e 1870, faz sentido analisar os efeitos das navegações, sob o prisma das importações estrangeiras a partir de 1840, quando já se pode pensar a Província mais incluída ao Império, haja vista a sua inserção tardia, unida a todos os problemas da identidade nacional. É nos rastros dos produtos materiais e não materiais trazidos do além-mar, que se pode encontrar um conjunto de práticas imbuídas numa rede de representações que circundaram o imaginário social dos meados dos oitocentos, o que questiona uma prática historiográfica de relacionar o consumo dos pacotes da cultura europeia, para lembrar Vicente Salles, tão somente ao período posterior a 1870. A navegação, principalmente a navegação a vapor,56 promoveu uma revolução cultural e paulatinamente encaminhou a Província para a 54 Ibidem, p. 114. Considera-se que o século XIX e o período imperial foi um período de grandes mudanças na ciência, nas técnicas, nos hábitos que foram entendidas enquanto desenvolvimento de um processo civilizador. 56 A navegação a vapor teve início nos Estados Unidos, que foi o primeiro a usar esse tipo de embarcação em viagens transatlânticas. A primeira delas ocorreu em 1819 em uma viagem de Nova Iorque a Liverpool num 55 35 superação do provincianismo anteriormente ao boom da borracha. O que diferenciou a belle époque foi realmente o cosmopolitismo que adentrou a cidade, mas o discurso da civilizacional é anterior. Essa abordagem ainda servirá para repensar o lugar do Pará como uma importante experiência no conjunto da modernidade nacional, que viveu as trocas materiais e simbólicas propiciadas pelo comércio marítimo de longo curso. No entanto, para fazê-la é preciso considerar especificidades. A primeira é a viagem que liga os mercados europeus e norte americanos à Província que, por serem mais acessíveis, pode levá-la a obter vantagens em relação à capital do império. Um dos fatores que colaborou fortemente para a circulação intensa de embarcações entre a Província do Pará e a Europa foram às monções,57 muito mais favoráveis as viagens transatlânticas que nacionais, particularmente as oriundas do Rio de Janeiro. Os ventos e as correntes marítimas contribuíram para que o extremo norte estivesse muito mais ligado a Lisboa que ao Sul do continente americano. A questão geográfica era fundamental porque “o mar era a via de comunicação (...) da época.”58 Antes dos meados do século XIX, raras embarcações nacionais conseguiam chegar a Província do Pará. Somente “as sumacas – barcaças pequenas de dois mastros – conseguiam sair da Bahia, de Pernambuco, ou mais do Sul, e bordejar na torna-viagem do Pará e do Maranhão”.59 Até 1850, “os ventos e as correntes marítimas tornavam quase impossível a viagem do Sul para o extremo-norte do Reino do Brasil antes do advento do barco a vapor”.60 Ainda assim, em 1855, momento em que os vapores já eram comuns, o jornal Treze de Maio registrou apenas uma embarcação vinda do Rio de Janeiro para esta Província, enquanto barco denominado Savannah. Para saber mais sobre navegação a vapor, ver: SAMPAIO, Marcos Guedes Vaz. Uma contribuição à história dos transportes: A Companhia bahiana de navegação a vapor (1839-1894). Tese (História Econômica). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. Em nível local a implantação regular de linhas a vapor ocorreu em 1853, após intensos esforços do governo provincial. Para saber mais sobre a navegação a vapor no Amazonas ver: GREGÓRIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: A navegação do rio Amazonas e a formação do Estado brasileiro (1838-1867). Dissertação (Mestrado em História Social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 57 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. Para entender mais sobre o fenômeno das monções que permitia que o Pará desenvolvesse um intenso comércio ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 59; GADELHA, Maria Regina A. Fonseca. Conquista e Ocupação da Amazônia: A fronteira norte do Brasil. Estudos Avançados. v. 16, nº 45, mai/ago, 2002, p. 74; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1990; MACHADO, José Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: A crise política do Antigo Regime Português da Província do Grão Pará (1821-25). Dissertação (Mestrado em História Social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, p. 83. 58 MACHADO, José Roberto de Arruda. Op. Cit., p. 84. 59 ALENCASTRO, Luiz Felipe (2000). Op. Cit., 58. 60 MACHADO, José Roberto de Arruda. Op. Cit., p. 83. 36 entraram 50 embarcações vindas da Europa, sem considerar as embarcações italianas, belgas, holandesas e espanholas que aqui não são objeto em análise. Quando se pensa capital do Império, nesse mesmo período, há uma sobrepujação da corte em relação às demais regiões do país. De acordo com Suely Gomes, o Rio de Janeiro era o principal porto brasileiro de acomodação e distribuição de mercadorias, onde havia circuito de trocas locais, regionais e internacionais que impactaram práticas costumeiras, alterando “tradicionais regulações de tempo, direta e indiretamente, nas diferentes regiões do país e exterior.”61 Nessa perspectiva, o Rio seria um grande centro distribuidor de economias de tempo, gerando o que Gilberto Freyre chamou de uma alargamento da vida social.62 Segundo Alencastro, “forjou-se no Rio de Janeiro – capital, política, econômica e cultural do país – um padrão de comportamento que molda o país pelo século XIX e o século XX adentro.” Para ele, com a influência estrangeira ininterruptamente manifestada depois da abertura dos portos, o Rio de Janeiro funciona como uma “grande eclusa,” e “o porto fluminense – numa época em que o comércio internacional fazia-se apenas por via marítima – apresentava-se como escala quase obrigatória dos navios que singrassem o Atlântico Norte para os portos americanos do pacífico”.63 Quiçá o “quase” dê margens para perceber o Pará como um caso diferenciado, uma vez que desde a colonização no extremo Norte, o Estado do Grão-Pará ficou conhecido muito mais por sua relação direta com a Europa. Essa conexão geográfica entre os portos do Pará e do Rio de Janeiro praticamente inexistia, não acontecendo o mesmo entre o Pará e o Maranhão, onde as embarcações com destino a capital belenense tinham escalas quase que obrigatórias. A segunda especificidade consiste em uma particularidade para entender o fluxo dos importados, sua recepção e usos desses novos produtos culturais. Se no Rio de Janeiro, cessado o tráfico negreiro, o que antes era investido na compra de africanos passou a ser redimensionado para o consumo de importados – como bens semiduráveis, duráveis, supérfluos, joias e outros64 –, no Pará o aumento da exportação da borracha, no começo da década de 1850 “está na raiz da disponibilidade financeira de segmentos elitizados da sociedade de Belém para o consumo de produtos e de bens culturais franceses.”65 61 COSTA, Suely Gomes. Transição, globalização e intimidade. Rio de Janeiro, século XIX. Revista Historia y espacio. n. 29, jun/dez, 2007, p. 65-66. 62 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. 63 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Vida privada e ordem privada no Império”. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 23-24. 64 Ibidem, p. 37. 65 COELHO, Geraldo Mártires. Anteato da Belle Époque: Imagens e Imaginação de Paris na Amazônia de 1850. In: Revista Cultura do Pará. v. 16, n. 2, julho/dezembro, (2005a), p. 201. 37 Sobre essa última afirmativa devem-se alguns acréscimos para que se avance na proposta de trilhar outros caminhos. Embora a borracha tenha aferido inigualáveis possibilidades para o consumo de produtos europeus, começa haver um considerável crescimento da oferta desses produtos anteriormente a 1850. O movimento do porto já era bastante intenso a partir de 1840 quando a Província, saindo dos efeitos do movimento cabano, pode pensar na reestruturação do comércio. Relacionar o aumento das navegações e consequentemente do comércio somente ao aumento da exportação da borracha é impossibilitar uma análise mais ampla, como também incorrer no perigo da “sobrecontextualização”.66 A sobre-contextualização acontece “quando um texto está tão imerso no seu tempo e lugar que impede uma compreensão sensível,” ou seja, a borracha como contexto é fundamental, mas não pode sobrepujar outras leituras possíveis. Um acréscimo ainda cabível para uma análise das importações é larguear a leitura para abranger as outras relações com as quais a Província do Pará estreitava seus laços comerciais para ir além do francesismo. Por ser a França um ícone da civilização no mundo ocidental, ela aparece com primazia nas abordagens. Observada a nacionalidade dos navios empregados na navegação nas décadas de 1840, 1850 e 1860 entre o porto do Pará e os portos estrangeiros, constata-se que os franceses ocupavam o último lugar em quantidades de embarcações, produtos importados e valores reais de importação. No final da década de 1840, segundo dados levantados por Ernesto Cruz a importação francesa contava com 14 navios e apenas 2.099 toneladas de produtos. Os americanos ocupavam o primeiro lugar com 27 navios contendo 4.693 toneladas, o segundo era dos portugueses disponibilizando uma frota de 20 navios e 4.006 toneladas e, em terceiro lugar, os ingleses com 2.585 toneladas transportadas em 10 navios. Ainda que o número de embarcações francesas fosse maior que as inglesas, elas transportaram menos toneladas de mercadorias. Posteriormente, nas décadas de 1850 e 1860, a diferença entre ingleses e franceses tende a aumentar, deixando as importações francesas cada vez mais em desvantagem. Além desses, outros comerciavam com o Pará como é o caso Hamburgueses, Dinamarqueses e Belgas, porém com menor frequência.67 Os Estados Unidos, Portugal, França e Inglaterra eram os países que mais comerciavam com o Pará. Na década de 1840 a soma das importações vindas desses quatro países variou entre 91,84%, para o ano de 1842-43 e 99,90% no ano de 1847-48, do total de 66 LACAPRA, Dominick. “História e Romance.” In: Revista de História. Campinas: Unicamp. v. 2, n. 3, setembro, 1991, p. 122. 67 CRUZ, Ernesto (1996). Op. cit., 118. 38 importações que chegaram ao porto do Pará.68 A média geral para a década foi de 96,37%, ou seja, apenas 3,63% dos produtos importados vieram de outros portos estrangeiros. Essa tendência, também se observa nas décadas seguintes. Desses países, emanavam “os vinhos, o sal, as fazendas e tapeçarias de toda a espécie, quinquilharias e muitas outras diversas manufaturas e objetos de comodidade ou de luxo”.69 Contudo, essas não eram as únicas bagagens, as viagens transportavam novas ideias e fixavam “modernos” tempos sociais, pois se depreende que os objetos somente adquirem sentido a partir do valor que lhes é dado pelas sociedades em diferentes espaços, situações e contextos. Nesse sentido, somente as trocas comerciais não expressam esses outros significados. Afinal, capital e capital simbólico, tratando-se de relações capitalistas, como as processadas entre a Europa e o Brasil (...) são como o Deus Jano: duas cabeças e um só corpo! O capital simbólico circula pelas mesmas vias por onde circula o corpo físico do capitalismo, ou seja, a mercadoria, sendo que ambos encarnam uma mesma e complexa realidade, a da ideologia e das visões de mundo dos sujeitos hegemônicos da burguesia oitocentista.70 Posto nestes termos, é pertinente o significado da navegação internacional para a assimilação de novas práticas, valores, usos e ideias na Província do Pará, haja vista que ela tinha uma posição privilegiada para o acesso a essas mudanças, demonstrando-as em um processo de representação da vida social ou pelo menos daquilo que se almejava vir a ser como implicação dos efeitos da “mundialização da cultura”,71 manifestada no século XIX e que na Amazônia não se apresenta tão tardiamente. I. II. O Porto de Belém e os produtos. A historiografia já identificou o movimento das coisas e das ideias há bastante tempo. Alguns perceberam no calor do momento, ainda no século XIX, outros ao longo do XX e ainda outros no XXI. Antonio Baena, ainda na década de 1830, em um trabalho de sistematização de informações sobre a Província do Pará mostrava os quadros de importação entre os anos de 1789 e 1827. Embora não estivesse tratando especificamente de importação 68 Ibidem. Idem., p. 119. 70 COELHO, Geraldo Mártires (2005a)., Op. cit., p. 200. 71 Ibidem. 69 39 estrangeiras, mas também de importações nacionais, os produtos estrangeiros aparecem com predomínio. Em primeira instância, boa parte dessas obras possibilitam apenas uma demonstração de produtos importados de modo bem geral, algumas cifras correspondentes aos valores de importação, menções acerca do aumento na entrada de embarcações, descrição de objetos importados que começaram a ter algum impacto na sociedade e a concorrência entre produtos importados e gêneros locais. Dentro da historiografia mais atual, as obras já são mais específicas. Uma dá conta das coisas do lar, outra da alimentação, pesquisas estas que dão suporte a uma análise da importação estrangeira antes e depois do período estudado. Antonio Baena fez importantes referências aos importados, veja no quadro abaixo: Quadro 1 – Gêneros entrados no Porto de Belém-Pará, 1789-1827 Aguardente Azeite Alhos Alcatrão Aço Azeitona Açúcar Alfazema Aduelas Arco de ferro Água de colônia Bacalhau Bolacha Brochas de pintor Breu Bonetes Bolachinhas Carnes de porco ensacadas e presuntos Chá Chapéus Cera em pão Cera em velas Cebolas Condeças Charutos Cabos de linho Chumbo Calçados Crivos Celins e arreios Ciminhos Cobre Chumbo em grão Cachimbos Cerveja Doces Drogas de botica Drogas Espelhos Espadas Espermacete Erva doce Fazendas de lã, de seda, de algodão e de linho Fateixas Farinha de trigo Figo Ferradura Ferragem de toda a qualidade Ferro em barra Folhas de cobre Ferro coado em obras Genebra Guitarras Girofe Graxa Louça Legumes Licores Lambiques Massas Manteiga Móveis de casa Molhos de conserva Marmelada Óleo de Linhaça Obras de ouro e prata Obras de cobre Pomada Pedra de amolar Pimenta Queijos Quinquilharias Relógios Rapé Sal Sementes de flores Sebo Sardinhas Sabão Tintas Terebentina Terçados Tabaco em pó Taboado de pinho Orchata Toucinho Oratórios Pedra de cal Passas Papel Tintas preparadas Vinho Vinagre Viola Pederneiras Vidros Palitos Pesos de bronze Vergalhão - Fonte: BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da província do Pará. 2ª ed. Belém: UFPA, 1969, p. 166-168. 40 Os produtos que aparecem neste quadro são os mesmos que estão com frequência estampados nas páginas dos jornais a partir de 1840, com destaque para o Treze de Maio, Diário do Gram-Pará e Gazeta Official. O que não dá para visualizar no quadro de Baena é a quantidade ou a frequência com que esses produtos entravam. Todavia, certamente houve acréscimos depois de 1840, principalmente se comparado com a década de 1820, em que aos conflitos pré e pós independência, que resultaram na Cabanagem, se espraiaram na capital e no interior e, consequentemente, a entrada de embarcações esteve reduzida. Em 1915 Manoel Barata, ao escrever sobre a antiga produção e exportação do Pará, produziu um quadro comparativo entre os anos de 1773 e 1818, demonstrando os principais produtos exportados e seus valores. Relacionou ainda a exportação e a importação entre a Província do Pará e Portugal, e constatou que no decurso desse período saiam mais produtos do que entravam no porto da capital paraense. Tabela 2 – Importação e exportação entre Pará e Portugal, 1800-1818 Período (Anos) 1800 1801 1805 1810 1811 1812 1813 1814 1815 1816 1817 1818 Exportação 628: 494$650 294: 725$183 646: 907$222 338: 675$791 336: 899$300 360: 305$600 503: 545$593 512: 788$270 234: 378$050 559: 274$285 640: 707$459 615: 272$713 Importação 418: 379$989 194: 394$695 625: 614$527 156: 300$280 153: 724$230 222: 511$ 760 553: 431$450 379: 933$470 146: 554$060 496: 058$365 444: 012$170 615: 114$990 Saldo (Pará) 210: 144$661 100: 330$488 21: 292$695 182: 375$280 183: 175$070 137: 793$840 50: 114$143 132: 854$000 87: 813$390 63: 215$920 196: 583$289 157$723 Fonte: BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Belém: Editora Universitária: UFPA, 1973, p. 301-307. A tabela indica que os valores de importação oscilaram entre 1800 e 1818, porém, não se registra uma tendência constante de crescimento ou decrescimento,72 indicando que a abertura dos portos não prejudicou drasticamente as importações portuguesas na Província paraense. Por outro lado, ela permitiu principalmente a partir de 1810, as importações crescentes de outros países. Apesar dos valores de importação nesses anos exprimirem a relevância da importação de coisas estrangeiras, já nas duas primeiras décadas do século XIX, o que Manoel Barata objetivava mostrar, com uma dose de saudosismo, eram as grandes 72 Apenas no ano de 1813, a balança comercial do Pará apresentou déficit. 41 cifras da exportação ao destacar que a exportação era sempre maior que a importação e que o Pará nesses anos esteve sempre com um saldo positivo por escoar em grande escala. Lembrava o autor de “A Antiga produção e exportação do Pará”, usando uma fala do inspetor da Alfândega do Pará, Ribeiro Behring, que depois de 1850 em função da falta de braços para a lavoura até o “arroz, o milho e o feijão são-nos importados do estrangeiro”.73 Essa tese de que a produção da borracha levou a derrocada da agricultura já foi refutada por Luciana Marinho,74 pois embora uma parte dos produtos importados estivesse relacionada ao suprimento de necessidades básicas, voltadas à alimentação, a maioria deles estava voltada para uma modernização crescente da cidade e das formas de viver. Luiz Cordeiro, discorrendo sobre o comércio e a indústria como os dois motes de desenvolvimento da Província, relata alguns dados do comércio de longo curso e realça que de 1840-41 entrara de 78 a 100 navios com a carga variando entre 11.252 e 14.181 toneladas. De 1850-51 o número era de 84 navios com tonelagem de 14.700 e em 1861 fora de 116 embarcações com 72.400 toneladas.75 Portanto, ao fazer referências aos navios e suas respectivas tonelagens, também faz referência a importação. Ernesto Cruz, na ocasião do centenário da Associação Comercial do Pará na década de 1960, também dedicou uma parte de seu livro “História da Associação Comercial do Pará” à importação de mercadorias estrangeiras traçando um paralelo entre a entrada dessas embarcações com as nacionais, bem como os valores destinados a cada uma delas. No que diz respeito as embarcações Ernesto Cruz mostrou que entre 1836-38 no porto de Belém havia um predomínio de importações nacionais, enquanto que nos dois anos seguintes, a importação de cabotagem definhou tanto que acabou sendo superada pelo comércio internacional. O mesmo autor se referiu as nacionalidades dos navios, aos tipos de embarcações, tonelagens e mercadorias importadas. Ainda neste traçado dos principais autores que em algum momento histórico tocaram, mesmo que pontualmente, no tema relacionado à importação de mercadorias, que atravessavam o Atlântico com destino ao Pará, destaca-se Roberto Santos. Ele acentua em um estudo publicado em 1980 que a partir de 1820 embarcações de diferentes nacionalidades trouxeram muitas mercadorias, mas que este processo de importação sofreu um rompimento em função das agitações pelas quais passara a Província. 73 BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Belém: Editora Universitária: UFPA, 1973, p. 323. BATISTA, Luciana Marinho. Muito Além dos Seringais: Elites, Fortunas e Hierarquias no Grão-Pará, c. 1850-1870. 2004. 283 p. Dissertação (Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004. 75 CORDEIRO, Luiz. Op. Cit., p. 20. 74 42 Provavelmente, a quantidade de embarcações, apontadas por este autor, que chegaram ao Pará em 1820 seja condizente com a realidade, pois de acordo com estudos recentes “somando as naus francesas, inglesas e portuguesas, depois de 1815, tem-se um total de 252 visitas”.76 Assim, a entrada de 53 embarcações mais 7 galeras no penúltimo ano do período joanino pode ter demarcado o fim de um período próspero, que veio a ser restaurado paulatinamente depois de 1840.77 Vicente Salles, entre tantos objetos abordados, não deixou de mencionar as grandes mudanças pelas quais passou a Província antes do cosmopolitismo que marcou a Belle Époque. Para ele, operou uma revolução nos usos e costumes dentro da vintena de 1850 e 1870, vinda nos vapores do comércio internacional. Ressaltou que o Pará estava entre os povos que “na mesma época recebiam, em grandes doses, essas lições de cultura e civilização, povos ainda voltados para o modelo reitor de sua formação histórica, nada disso é superficial, fútil ou mundano (...). Recebíamos evidentemente, já prontos para o consumo os pacotes da cultura europeia”.78 Dentro dos pacotes da cultura europeia estavam porcas, mazurcas, contradanças próprias para festas particulares, música impressa e instrumentos modernos. “A navegação a vapor, já estava estabelecida, colocava no mercado consumidor produtos oriundos de Lisboa e Paris”.79 O alvorecer de novos hábitos, segundo Salles, ocorreu simultaneamente a reativação do Theatro Providência no final da década de 1840, a mais tradicional casa de espetáculos de Belém até a inauguração do Theatro da Paz. O relato de alguns aspectos ocorridos antes da expansão da economia gomífera por Barbara Weinstein, em uma obra publicada em 1993, ratifica a presença frequente dos importados antes do boom da borracha. Lembra que “embora os aviadores distribuíssem alguns produtos locais, o grosso de suas mercadorias vinha de Belém, onde os artigos paraenses tinham de concorrer com as importações da Europa”.80 Estudos mais recentes da primeira década do século XXI fizeram apontamentos importantes envolvendo a circulação e o consumo de importados. O “Anteato da Belle Époque” foi um termo empregado por Geraldo Mártires Coelho para designar o período de 1850 a 1870. Para ele, “avançados os anos de 1850, um sem-número de bens de consumo que 76 VIEIRA JUNIOR, Otaviano; BARROSO, Daniel. Op. Cit., p. 198. Possivelmente, as embarcações que intercambiavam o comércio de mercadorias, podem ser algumas das que faziam parte também do tráfico de escravos, ao mesmo tempo em que integravam o comércio clássico de mercadorias nas décadas de 1830 e 1840. 78 SALLES (1980), Vicente. Op. cit., p. 188. 79 Ibidem, p. 188; 191. 80 WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: Expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Edusp, 1993. 77 43 saíam das fábricas europeias (...) passaram a constar da oferta de lojas estabelecidas em Belém”.81 Nesse sentido, esse seria o princípio de um processo que seria alavancado com a abertura do rio Amazonas ao comércio internacional em 1867. De acordo com Coelho, a década de 1850 pode ser considerada como o “tempo instaurador das relações entre segmentos elitizados da sociedade de Belém do Pará”. Enfatiza ainda o significados, representações e linguagens expressas nas “cadeias de uma cultura mundializada, alimentadoras, por sua vez, de práticas tomadas como ritos civilizacionais”.82 Luciana Marinho analisou as fortunas de Belém e constatou que grande parte da concentração de riqueza estava relacionada à ampla participação nos negócios mercantis. A autora associa o crescimento desse tipo de centralização às grandes transformações pelas quais passou Belém a partir da década de 1850, afirmando que houve um progressivo aumento da importância comercial desde o início dos negócios da borracha.83 Com um recorte que também inicia na década de 1850, Sidiana Macêdo analisou as principais fontes de abastecimento alimentício na Belém da segunda metade do século XIX. Identificou que os alimentos que abasteciam a capital provinham dos sertões, de outras províncias do Império e do estrangeiro, dando uma importância não secundária a manteiga inglesa, ao bacalhau português, aos vinhos franceses, ao trigo, ao sal e a banha de porco norte americanos no consumo da população belenense.84 Classificou alguns alimentos como de primeira necessidade e outros para atender “os gostos mais apurados, em função dos novos padrões de consumo que passam a vigorar na capital.”85 Muitos dos objetos das casas como os móveis e os utensílios eram importados. Antonio Valente percebeu essa presença não apenas nos periódicos da época como também nos inventários. Uma parte da riqueza dos inventariados constava de produtos importados duráveis e aplicações em atividade de comércio, ramo este que teve um desenvolvimento vertiginoso nos meados do século XIX, e era dominado por negociantes notadamente portugueses, ingleses, franceses e americanos. Nesse estudo, que compreende toda a primeira metade do oitocentos, fica evidente o cenário de uma cidade que alimenta expectativas em 81 COELHO, Geraldo Mártires (2005a). Op. Cit., p. 203. Ibidem, p. 204. 83 BATISTA. Luciana Marinho. Op. Cit. p. 116-117. 84 MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira. Daquilo que se come: Uma história do abastecimento e da alimentação em Belém (1500-1900). Belém, 2009. 227 p. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia). Belém: Universidade Federal do Pará, 2009. 85 Ibidem, p. 116. 82 44 relação a novos meios de prosperidade. “O porto de Belém veria crescer o fluxo de navios vindos de todas as partes do mundo”.86 Essas pesquisas mais recentes tocam em questões pontuais relacionadas a importação, e mesmo que os objetos de análise não sejam propriamente importação, estas auxiliam na configuração do cenário estudado. Uma parte dessas pesquisas discute especificamente os importados, como é o caso da alimentação e das coisas da casa, e ajudam pensar em algumas das categorias levantadas como foco de análise. I. III. Movimento das embarcações estrangeiras As cidades sul-americanas que sentiram a prosperidade e a transformação nos costumes, na fisionomia física eram capitais que tinham portos. Montevidéu, Buenos Aires, Panamá, La Havana, San Juan de Porto Rico, Rio de Janeiro, todas tinham portos marítimos em contato direto com o exterior.87 Assim, as grandes cidades portuárias, devido a sua função de entrepostos mercantis, tinham nítida vantagem se comparadas com os distantes centros do interior.88 Entende-se o porto como o principal centro receptor de ideias, valores, modismos para além das mercadorias, não somente no Pará, mas em várias partes do Brasil. O porto do Pará era um dos mais importantes no século XIX e Belém era privilegiada por sua posição geográfica,89 o que favoreceu a recepção de bens materiais e simbólicos. Essas mudanças mais intensas ocorreram no final da segunda metade do século XIX e início do século XX. O Rio de Janeiro, por exemplo, começou sua transformação durante o período imperial e prosseguiu durante a República à medida que crescia sua população.90 A 86 GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. Op. Cit., p. 103. Outra pesquisa que trabalha sob a perspectiva da vida material em Belém, abordando aspectos da casa e dos objetos, é a de Elaine Cristina Gomes. Cf. GOMES, Elaine Cristina Rodrigues. Vida Material: Entre casas e objetos, Belém 1920-1945. 2009. 181 p. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia). Belém: Universidade Federal do Pará, 2009. 87 ROMERO, José Luis. Op. Cit., p. 250. 88 COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2010. 89 Para perceber a importância do Porto e relacionar com outros Portos do Império foram buscadas diversas referências sobre Portos. Cf. BARBOSA, Josué Humberto. Porto, navegação e vida social antiga: Um cronista e o cotidiano do Recife nos meados do século XIX. Saeculum, jan/dez, 1998-1999, pp. 197-205; CRUZ, Maria Cecilia Velasco. O porto do Rio de Janeiro no século XIX: Uma realidade de muitas faces. Tempo, n. 8, ago, 1999; ROMERO, José Luis. Latinoamérica: Las ciudades y lãs ideas. 2 ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2004; ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. O Porto de Salvador: Modernização em Projeto – 1854-1891. 1983. 100 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Bahia: Universidade Federal da Bahia, 1983; TORRES, Rodrigo de Oliveira. “...e a modernidade veio a bordo”: Arqueologia histórica do espaço marítimo oitocentista na cidade do Rio Grande/RS. 2010. 110 p. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural). Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2010. 90 ROMERO, José Luis. Op. Cit., p. 251. 45 capital do Império recebe “um crescente volume de mercadorias, considerando que as embarcações se avantajavam em tamanho e em capacidade e velocidade de transporte”.91 A capital paraense, por sua vez, experimentou muitas mudanças no sentido de uma “europeização dos costumes”, algumas delas possibilitadas pela presença de um significativo porto desde muito cedo, o que demonstra que a Província era privilegiada por sua posição geográfica e pelas relações diretas que estabeleceu com a metrópole desde a Colônia. A partir dos meados do século XIX, as grandes cidades litorâneas do País, a começar pelo Rio de Janeiro, Recife, Salvador, São Luis e Belém experimentaram notáveis avanços em serviços e melhoria de infraestrutura: linhas de navegação a vapor, calçamento de ruas, iluminação pública em lampiões a gás92 e outros. Concomitantemente, acompanhando essa evolução, ocorriam profundas transformações no campo cultural e ideológico. O incremento do comércio e o maior contato com o estrangeiro desencadearam um processo de reeuropeização das elites nacionais de acordo com padrões anglo-franceses, o que provocou mudanças em seu estilo de vida e um aburguesamento dos costumes, alterando a velha ordem patriarcal da sociedade agrário-escravista herdada do período colonial e criando novas condições materiais de existência que transformaram a vida e o hábito dos citadinos.93 De acordo com os Mapas Estatísticos do Comércio e Navegação do Império do 94 Brasil , durante a década de 1840 vinte portos no Império recebiam embarcações que traziam produtos importados de diversos países, principalmente da Europa e Estados Unidos. O porto de Belém aparece com o sexto maior montante de importações estrangeiras, como mostrado na tabela abaixo, mas na década de 1860, segundo Tavares Bastos, já ocupara o quarto ou quinto lugar no comércio de importação.95 91 COSTA, Suely Gomes. Op. Cit,. p. 65. FREYRE, Gilberto (1996). Op. Cit. 93 BARRETO, Mauro V. O Romance da vida Amazônica: uma leitura socioantropológica da obra de Inglês de Souza. São Paulo: Letras à Margem, 2003, p. 95. 94 Coleção de mapas estatísticos do comércio e navegação do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1841-1850. 95 TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido. O valle do Amazonas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 156. 92 46 Tabela 3 – Importação Estrangeira total, para os seis maiores portos do Brasil Imperial durante a década de 1841-185096 (valores em réis) Porto Valor da importação estrangeira Rio de Janeiro 177.138: 599$155 Salvador 54.048: 207$426 Recife 49.116: 560$440 São Luís 13.968: 190$395 Porto Alegre 9.730: 173$053 Belém 7.182: 644$193 Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Mapas Estatísticos do Comércio e Navegação do Império do Brasil de [1841-1850] Já na década de 1840, os bens de consumo que constituíram o cenário do conjunto da modernidade nacional, com ênfase no Rio de Janeiro, começaram entrar de forma mais regular no cais belenense. E, muitos produtos que na segunda metade do século XIX só haviam entrado em poucos sobrados do Rio de Janeiro, Recife e Bahia, na década de 1840 já estavam presentes em anúncios de jornais da Província do Pará. Um exemplo destes é o piano, “a mercadoria fetiche dessa fase econômica e cultural”.97 Os portos, então, possibilitaram no Rio de Janeiro como no Pará a admissão de um mercado de hábitos de consumo e de objetos que, além de significar uma aquisição favorecida pelo comércio de longo curso, propiciou a inserção de elementos simbólicos de uma modernidade endossada pela expansão da civilização. O “padrão de comportamento,” para usar o termo de Luiz Felipe de Alencastro, que predominantemente moldou a Província não adveio da capital do Império, mas diretamente dos centros civilizacionais europeus. A fim de perceber o patamar dessa expansão observou-se o movimento de entrada no porto de Belém entre os anos de 1840 a 1870, tanto de embarcações nacionais quanto de estrangeiras. O objetivo primordial é comparar a frequência da entrada de navios estrangeiros no porto posterior a 1840 com o período anterior, de modo a verificar se a mudança foi realmente significante. É também possível analisar se houve um crescimento contínuo na chegada de embarcações no porto belenense. Do ponto de vista quantitativo o gráfico abaixo mostra a entrada das embarcações de portos nacionais e estrangeiros. 96 Dados para os anos fiscais de 1841-42, 1842-43, 1846-47, 1847-48, 1848-49 e 1849-50. A quantidade da importação para o Rio de Janeiro, Salvador, Recife é muito maior do que a importação para São Luiz e Belém em função de estarmos considerando a importação geral, que inclui a importação de outros países que não somente Estados Unidos, Inglaterra, Portugal e França. Enquanto o comércio do Pará se fazia basicamente com esses quatro países, as outras capitais comerciavam também em larga escala com outros países da Europa, América, África e Ásia. Se considerássemos a importação apenas com esses quatro países específicos, certamente essa diferença iria diminuir consideravelmente. 97 ALENCASTRO, Luiz Felipe de (1997). Op. Cit., p. 45-46. 47 Gráfico 1 – Embarcações Nacionais e Estrangeiras entradas na Província do Pará, 1836-1869 Fonte: Dados construídos a partir de informações disponíveis nos Relatórios, Discursos e Fallas dos Presidentes da Província do Pará para os anos de 1836 a 1871.98 A partir da análise do gráfico acima, nota-se que no período que vai de 1837 a 1840 o número de embarcações que aportaram no cais de Belém vindas de portos estrangeiros cresceu progressivamente, enquanto que, na razão inversa, o número de navios vindos de portos do Império decresceu até 1841. Isso, além de esclarecer que a cabanagem não trouxe o declínio da navegação estrangeira para a região, demonstra uma relação direta com a conjuntura da década de 1840 no centro Sul do Brasil. Esse possível distanciamento da Corte Imperial com o Pará, durante esses quatro anos, possibilitou a Província fortalecer laços comerciais com os países europeus e os Estados Unidos. Durante esses quatro anos, o número de embarcações estrangeiras que proviam os produtos, que a Província precisava aumentou de 54 para 74, enquanto que as nacionais regrediram de 24 para 13 embarcações. Santos, referindo-se ao período que vai de 1840 a 1870, período da economia paraense que ele chama de "fase de expansão", enfatiza "que o movimento de ascensão da renda já se esboça desde o intervalo histórico de 1840 a 1850, prosseguindo ininterruptamente."99 Esse mesmo crescimento ininterrupto se observa também na variedade, quantidade e frequência das embarcações e produtos importados que chegam ao cais belenense. Entre 1840 e 1847, nota-se uma fase de estagnação, embora as importações já fossem significativas. O avultado crescimento do número total de navios entrados no cais de Belém 98 Para todo esse período, apenas os anos de 1844 e 1864 não tiveram dados catalogados. Fonte: Relatórios da Presidência da Província, 1836-1871. Disponíveis em: http://www.crl.edu/brazil/provincial/ par%C3%A1. 99 SANTOS, Roberto. Op. Cit., p. 11. 48 nos anos de 1847 a 1849, que passou de 87 para 135, marca o início de uma fase de florescimento econômico que a Província já vinha experimentando, muito embora de forma modesta, desde o final dos anos 1830 de maneira ascendente. É certo que, mesmo depois de restabelecida a ordem, e no meio da mais perfeita paz, a renda ficou por muito tempo estacionaria, e só teve aumento notável nove anos depois, elevando-se de 1845-1846 a mais de 455 contos o triplo da de 1836-1837.100 Esse crescimento que se inicia no final da década de 1830 e é impulsionado nos último triênio da década de 1840 continuaria nas décadas de 1850 e 1860, ainda que tenha sofrido algumas flutuações em 1854-55 e 1860-1861. O fato é que, se em 1849 entrou no porto do Pará 135 embarcações, em 1869 a Alfândega do Pará registraria a entrada do dobro das entradas de 1849, somando 270 embarcações, das quais 189 vindas de portos estrangeiros. Ainda entre 1850-70, nota-se também o aumento da navegação de cabotagem que subiu de 18 para 81 embarcações. Apesar disso, representava menos da metade das viagens internacionais para a Província do Pará. Portanto, o número de viagens estrangeiras para o porto do Pará foi em todos os anos levantados superiores as nacionais. As saídas dos portos do Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Bahia e Maranhão, de onde o Pará mais importava, não superaram em nenhum ano analisado as embarcações vindas do estrangeiro. Nesse sentido, o contato da Província com os mercados externos é visível. Se considerarmos que uma parte dos produtos aportados eram alimentos, a noção comumente ratificada de que era preciso importar em função do deslocamento da mão de obra que antes era dedicada a produção de alimentos para os seringais, já pode ser pelo menos parcialmente desmistificada, uma vez que em 1840 – ano em que não havia exportação de borracha em grande escala – tantos os alimentos, quanto outras categorias de produtos já chegavam a Província com grande constância. Ainda tratando da navegação estrangeira e de cabotagem, é possível conferir em valores reais a participação de cada uma delas nas importações da Província no mesmo período tratado acima. Dessa maneira, pode-se perceber a influência da navegação sobre o capital mobilizado no comércio da Província frente ao cenário nacional e internacional das importações, conforme apresentado na tabela a seguir. 100 Relatorio dos negocios da provincia do Pará. Pará, Typ. de Frederico Rhossard, 1864. At head of title: Dr. Couto de Magalhães, presidente do Pará, 1864. Cover title: Relatorio dos negocios da provincia do Pará seguido de uma viagem ao Tocantins até a cachoeira das Guaribas e ás bahias do rio Anapú, pelo secretario da provincia, Domingo Soares Ferreira Penna, da exploração e exame do mesmo rio até acima das ultimas cachoeiras depois de sua juncção com o Araguaya, pelo capitão-tenente da armada, Francisco Parahybuna dos Reis. p. 59-60. 49 Tabela 4 – Importações de Portos Estrangeiros e Nacionais para o Pará, 1836-1870 Período 1836-37 1837-38 1838-39 1839-40 1841-42 1842-43 1843-44 1845-46 1846-47 1847-48 1848-49 1849-50 1850-51 1851-52 1852-53 1853-54 1854-55 1855-56 1856-57 1857-58 1858-59 1859-60 1860-61 1861-62 1862-63 1863-64 1864-65 1865-66 1866-67 1867-68 1868-69 1869-70 Portos Estrangeiros 689: 497$400 578: 584$440 852: 657$625 899: 577$233 1.075: 498$893 905: 479$318 1.818: 325$404 1.121: 199$977 1.808: 128$693 1.535: 181$730 1.410: 274$142 1.895: 517$267 2.782: 462$160 2.589: 299$599 3.094: 747$443 4.573: 656$697 3.609: 584$794 2.912: 364$182 3.616: 719$940 3.688: 600$876 3.946: 363$957 4.834: 221$360 5.660: 147$471 3.868: 272$251 4.471: 313$653 5.227: 258$968 4.566: 470$475 4.836: 363$197 6.462: 061$729 6.254: 178$780 6.283: 129$073 6.902: 422$535 Portos Nacionais 1.130: 605$333 709: 006$590 485: 587$044 659: 761$488 117: 789$800 119: 432$835 127: 839$891 164: 966$000 136: 348$302 136: 348$302 126: 389$800 276: 695$724 579: 007$626 518: 235$450 334: 427$467 337: 427$467 737: 598$900 316: 902$939 481: 881$104 776: 815$600 802: 944$600 893: 135$654 1.100: 061$203 1.477: 846$906 2.130: 046$967 2.260: 477$960 1.797: 973$579 1.868: 152$038 1.839: 201$745 4.164: 221$344 Fontes: Relatórios da Presidência da Província do Pará.101 No início da Cabanagem as importações nacionais eram quase o dobro das estrangeiras. Entretanto, a partir de 1838 a importação estrangeira aumentou em escala crescente como se observou anteriormente. No entanto, mesmo que os valores investidos em produtos vindos de portos estrangeiros entre 1838 e 1840 tenham aumentado, o acréscimo não foi tão grande, o que corrobora em alguma medida a ideia de que o período da Cabanagem não foi propício a entrada dessas mercadorias, mas que quanto mais se distanciava do fim do movimento em 1840, mais as embarcações estrangeiras encontravam os portos abertos para sua ancoragem. Quando se observa a ampliação da importação de portos estrangeiros no biênio 18431844, constata-se que a Tarifa Alves Branco trouxe um impacto nos valores da exportação 101 Dados construídos a partir de informações disponíveis nos Relatórios, Discursos e Fallas dos Presidentes da Província do Pará de 1838 a 1870. Disponíveis em: http://www.crl.edu/brazil/provincial/par%C3%A1. 50 estrangeira, uma vez que o crescimento vertiginoso no período da criação da lei pode se dever ao aumento dos impostos que passaram a ser embutidos no valor dos gêneros importados. Por outro lado, o acrescentamento em mais 100% nos valores de importação pode também significar que mais gêneros passaram a entrar em Belém a partir do segundo biênio da década de 1840. Este cenário de ampliação da importação de mercadorias estrangeiras só mudaria consubstancialmente a partir da década de 1860, com o crescimento da produção industrial brasileira, o que casou o aumento da importação de produtos nacionais. Assim como aumentou progressivamente a entrada das embarcações estrangeiras, o mesmo aconteceu com os valores das importações, tanto das importações diretas com os portos internacionais, quanto das importações de mercadorias estrangeiras vindas de portos nacionais. Observa-se que até 1838 as cifras das importações nacionais superavam as estrangeiras e, há uma tendência para as décadas seguintes, sendo que cada década possui um perfil peculiar. Na década de 1840, enquanto a importação de cabotagem manteve-se estagnada, com valores anuais em torno de 120:000$000, a importação internacional cresceu significativamente, elevando essas cifras de 900:000$000 do final da década anterior para 1.900:000$000 em 1849. Na década de 1850 enquanto a importação internacional cresce aceleradamente, alcançando 4.834:000$000, a nacional ensaia sua reação, chegando em 776:000$000 de bens importados para o Pará. Finalmente nos anos de 1860 a importação nacional cresce em ritmo mais acelerado que a estrangeira, mas ainda assim, com seus 4.164:000$000 está longe de superar os 6.902:000$000 das importações internacionais. Roberto Santos já havia notado essa tendência quando afirmou que de 1850 a 1865 "houve uma dependência maior da região, relativamente ao exterior", ao passo que o segundo quinquênio da década de 1860 já estava caracterizado por uma dependência em relação ao sul do Império,102 ainda que essa dependência interna não tenha superado a externa. O comércio da Província do Pará entre 1840 e 1870 é marcado pela forte relação mercantil que seu porto estabelece com portos estrangeiros, caracterizando uma dependência desse comércio com os estrangeiros, enquanto o sul do Império mantinha-se relativamente distante da longínqua Província do Norte. No ano fiscal de 1853-54 a importação estrangeira foi 1.355% maior que a importação nacional, o que demonstra que o grosso dos produtos consumidos nas cidades do Pará era estrangeiro, em sua maioria europeus. 102 SANTOS, Roberto. Op. Cit., p. 131. 51 O gráfico abaixo mostra a evolução da renda interna na Província do Pará de 1800 a 1872, sendo que entre 1836 e 1872 a exportação respondeu por valores entre 50% e 60% da renda total arrecadada. Em 1848, quando o comércio exterior do Pará começa sua forte ascensão, os seus principais produtos de exportação eram fumo (31,30%), cacau (21,90%), couros (17,43%), borracha (10,63%) e outros produtos (18,74%). A borracha respondia apenas por um décimo das exportações, ocupando o modesto quarto lugar nas listas de exportações.103 Contudo, se a borracha ocupava esse lugar na pauta das exportações, quem seria o impulsionador do processo de modernização do final da década de 1840, favorecido pelo aumento da economia interna nesse período? Gráfico 2 - Renda Interna da Província do Pará, 1800-1872 Fonte: Gráfico construído a partir de dados de Roberto Santos.104 As informações sobre os valores reais de importação estrangeira e nacional para o porto de Belém (da tabela 4), o registro do número de embarcações que aportaram nesse cais (gráfico 1), o aumento dos anúncios referentes aos produtos importados em periódicos da capital da Província, o crescimento da renda interna da Província (mostrada no gráfico acima), e a estes elementos podemos, ainda acrescentar as tonelagens e quantidades de itens importados que chegam a Belém nesse período, a chegada da Companhia de Navegação do Amazonas em 1853, os valores reais de exportação, a entrada de imigrantes europeus, principalmente portugueses, ingleses e franceses para Belém, permitem-nos afirmar que a goma elástica não foi o embrião impulsionador desse crescimento, pois no final dos anos 40 quando sua produção ainda era elementar, a Província já experimentava esse desenvolvimento econômico que veio oportunizar a modernização da cidade de Belém com a chegada dos bens 103 104 Ibidem, p. 53. Ibidem, p. 336-337. 52 materiais e culturais da "civilizada Europa". Em 1849, antes do advento da navegação interna a vapor, Bates observou que até no interior da Província as pessoas da classe mais elevada "vivem, ao contrário dos hábitos brasileiros, à moda europeia."105 O que talvez seria mais correto afirmar é que a borracha acelerou a chegada da modernidade à Província do Pará nos anos posteriores, pois esta já assistia a europeização dos seus costumes, com a introdução desses artigos, dos mais básicos aos de maior luxo. Bates referindo-se a essa mudança de costumes diz que, "os costumes rapidamente mudaram depois que os navios a vapor começaram a navegar no Amazonas (em 1853), trazendo uma onda de novas ideias e novos modos à região."106 Na década de 1850 houve um aumento na exportação da borracha, o que alargou o poder de obtenção dos produtos importados. Nas décadas de 1850 e 1860 aumentou o consumo desses produtos, porém o que se importava na década de 1840 não era irrisório. As viagens, então, aumentaram proporcionalmente a expansão dos negócios da borracha, embora não se possa relacionar o consumo dos produtos importados somente a isto, uma vez que na década de 1840 já se importava muito, assim como no período joanino. Ao confrontar as três décadas estudadas com o levantamento do tempo joanino constata-se que o “trânsito fluvial-marítimo” tornou-se mais intenso.107 Com o fim das guerras peninsulares em 1815 houve um aumento da entrada de embarcações estrangeiras, especialmente inglesas, norte americanas e francesas, com uma diminuição das embarcações lusitanas, sobretudo a partir de 1818.108 De 1808 a 1821 chegou ao Grão-Pará 534 embarcações. De 1840 a 1870 foram registradas a visita de 4.114 embarcações, o que equivale a uma média de 152 embarcações por ano, enquanto que no período joanino tinha-se uma média de 38 embarcações anuais. Se decompormos o período nas três décadas, teremos uma média de 94 embarcações anuais para a década de 1840, 145 para a década de 1850 e 212 para a década de 1860. Percebemos, a partir desses dados, um aumento progressivo das entradas das embarcações a partir da abertura dos portos. Consequentemente, o resultado não é definitivo, e é provável que as visitas estrangeiras a esta Província tenham sido mais numerosas do que foi possível contabilizar, pois não obtivemos informações nos anos de 1844, 1845 e 1864. 105 MELLO-LEITÃO, Cândido de. O Brasil visto pelos ingleses. São Paulo: Companhia Editora Nacional: 1937, p. 44. 106 Ibidem, p.41. 107 VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano; BARROSO, Daniel. Op. Cit. 108 Ibidem, p. 196. 53 Quanto aos portos de onde mais provinham as embarcações eram os norte americanos, portugueses, ingleses e franceses. Além desses, a Província também recebia embarcações alemães (principalmente hamburguesas), dinamarquesas, belgas e outras em escala bem menor. É importante ressaltar que as embarcações não transportavam mercadorias apenas de seus países de origem, pois não estavam impedidas de transportarem pessoas e mercadorias de outros países. A tabela 5 exibe as procedências das embarcações que se destinavam a Província do Pará não indicando necessariamente as suas nacionalidades. De 4.205 embarcações arroladas 1.179 eram nacionais e 3.026 estrangeiras, ou seja, se o contato da Província com todos os portos nacionais eram menos da metade das entradas estrangeiras, a relação com a capital do Império não era das mais regulares, sendo que a maior parte da procedência das embarcações nacionais era do Maranhão. De todas as embarcações estrangeiras 1.881 tiveram a sua nacionalidade identificada, sendo que as embarcações americanas eram quase o dobro das francesas e as portuguesas eram pouco menos que as inglesas. Tabela 5 – Procedência das Embarcações entradas no Porto de Belém, 1840-1867 (em números absolutos) ANO 1840 1841 1842 1845 1846 1847 1848 1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1858 1861 1862 1863 1866 1867 Total Portos Brasileiros (846) 20 21 13 20 18 21 15 44 19 18 23 29 49 51 64 59 50 65 65 57 64 61 846 Americanos 14 33 33 31 25 21 28 27 36 25 39 47 36 32 33 30 31 25 23 2 30 29 630 Portos Estrangeiros (3.026) Portugueses Ingleses 12 5 21 5 17 7 16 9 15 8 16 9 29 10 20 19 16 14 22 15 21 14 22 19 20 19 19 23 21 14 20 22 18 26 15 18 26 36 26 68 23 63 27 61 442 484 Franceses 3 6 6 6 9 9 14 12 9 13 11 16 16 17 20 22 22 17 23 22 26 26 325 Fonte: Tabela constituída a partir dos Relatórios da Presidência da Província.109 109 O número de embarcações referentes aos anos de 1840 e 1854 não estavam disponíveis nos Relatórios da Presidência da Província. Completamos esses dois anos com informações do jornal Treze de maio. 54 A tabela mostra o quão importante era a navegação de longo curso para a Província do Pará. Em escala bem menor, a navegação de cabotagem representa menos da metade da navegação estrangeira. Se considerássemos a relação do Pará com outras províncias essa diferença seria ainda mais manifesta. No término da década de 1830 houve um definhamento da navegação nacional, que até então tinha sido progressiva, ao passo que a navegação de longo curso que era desanimadora começa a dar os primeiros passos. Em 1840 registrou-se 1.680 viagens para o Brasil e, em 1844 já eram 1.728.110 No que diz respeito ao Pará, os norte americanos somaram o maior número de viagens para essa Província com 630 viagens. Os ingleses ocuparam o segundo lugar com 484 viagens, pouco antes dos portugueses que fizeram 442 e, por último está a França tendo realizado 325 viagens. Enquanto no Rio de Janeiro e nas províncias da Bahia e Pernambuco havia um predomínio de embarcações inglesas, no Pará a dominação era das naus norte americanas. Os Estados Unidos em 1840 lideraram com pouco mais de 40% do total de viagens internacionais, e até 1861 continuam na cabeceira com aproximadamente 38%. É notável que os produtos americanos destinavam-se principalmente para o uso de primeira necessidade, como o trigo, as fazendas de algodão e as ferragens. Por outro lado, os franceses que no ano de 1840 ocupavam o último lugar no total de entradas, com apenas 3 embarcações, isto é, apenas 9% do total de navios estrangeiros entrados naquele ano, terminam a década de 1860 tendo conseguido um relativo aumento, atingindo 26 navios, mais de 18% das viagens. No outro extremo, os produtos franceses simbolizam em uma classificação de valores, a difusão da própria civilização e, embora, eles traduzam esse simbolismo, uma parcela muito pequena da sociedade podia consumir os chapéus de seda, as sedas, as louças de porcelana, os cristais, os papeis de parede, os vinhos, que eram as mercadorias mais comumente oriundas da França. Os ingleses e portugueses ocupavam um lugar intermediário entre esses dois extremos. A entrada das naus inglesas cresceu paulatinamente, dos 5 navios entrados em 1840 para mais de 60 embarcações anuais a partir de 1863, quando ocupou a posição dos Estados Unidos, que desde 1840 lideravam as importações na Província. Entre os principais artigos ingleses estavam a manteiga, o chá, os metais e ligas, as maquinarias à vapor, as louças de porcelana e pratarias e as fazendas. Em se tratando de valores da importação, o gráfico abaixo representa a importação que o porto do Pará recebeu de produtos de cada um desses países. 110 ALBUQUERQUE, Luiz R. Cavalcanti de. A Amazônia em 1893. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894, p. 54. 55 Gráfico 3 - Participação na importação da Província do Pará, 1840-1850 Gráfico construído com base nos valores de importação da Província do Pará. Fonte: Coleção de mapas estatísticos do Império do Brasil, 1841-1850 Os dados mostram que na década de 1840 os Estados Unidos preponderavam em muito quanto a exportação de produtos para o Pará. A importação inglesa que era bem modesta no início da década, pois representava menos de 10% do valor total importado pelo Pará, crescera a partir de 1843 com relativo decaimento em 1847. Mas, ainda no final dessa década voltara a crescer continuamente e, continuaria sua ascensão durante toda a década de 1850 e suplantaria a importação norte americana no início da década de 1860. No que diz respeito à relação entre Brasil e Inglaterra, há uma tendência na década de 1860 a grandes investimentos, que dão um novo ímpeto aos interesses comerciais da Inglaterra, à medida que se dá o arrefecimento da escravidão, um dos principais interesses ingleses. Os novos interesses estão voltados para os investimentos industriais, estradas de ferro e serviços urbanos.111 No Pará, foram diversos serviços disponibilizados por meio do capital inglês, tais como a instalação da Companhia de Gás do Pará, instalada em 1863,112 o London and Brazilian Bank Ltd, que fora autorizado a funcionar em 1862,113 entre outros. 111 GRAHAM, Richard. Brasil-Inglaterra. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II. v. 6. Declínio e queda do Império. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 168. 112 Relatorio dirigido á Assembléa Legislativa da provincial do Pará na segunda sessão da XII legislatura pelo Exmo Snr. Dr. Francisco Carlos de Araujo Brusque, presidente da mesma provincia, em 17 de agosto de 1861. Pará, Typ. do Diario do Gram-Pará, [n.d.], p. 6. 113 SANTOS, Roberto. Op. Cit., p. 134. 56 Esses serviços atraíam os ingleses para a Província do Pará, o que indubitavelmente trouxe um reflexo no aumento das navegações na década de 1860. Já a relação comercial entre Portugal e a Província teve uma constância entre os anos estudados, apresentando na maioria dos anos valores em torno de 20 embarcações. Essa mesma estabilidade se notou para embarcações norte americanas, onde esse valor médio foi de 30 navios. Essas duas nacionalidades se contrapuseram aos ingleses e franceses que no início da década de 1840 registraram números irrisórios, mas cresceram expressivamente com o passar dos anos, na medida em que introduziram mais embarcações no comércio com a Província. Parece mesmo que havia uma tendência anglo-francesa operando deste lado do Atlântico, uma vez que "eram nos ingleses e franceses que principalmente se inspiraram os brasileiros mais sofisticados da época."114 Contudo, ao contrário dos ingleses, que acabaram por superar todas os outros países, a França mesmo com toda essa ascensão, a partir dos anos de 1850 continuou em último lugar, tendo o menor número de entrada de embarcações no porto de Belém. No período joanino 55% das visitas eram portuguesas, 34% tinham nacionalidade inglesa, 17% eram norte americanas e as francesas somavam 6%.115 Não é de espantar a presença maior de embarcações portuguesas, uma vez que o Brasil ainda era colônia de Portugal. No entanto, mesmo depois da independência é notável que os laços comerciais continuaram fortes, perdendo o primeiro lugar para os norte americanos que tinham um interesse evidente nos negócios da borracha, provocando inclusive sérias discussões, desde a década de 1820, com o governo imperial em torno da liberação para a navegação interna.116 Após comparar as entradas de embarcações do período de 1840 a 1870 com o período joanino é possível visualizar a partir dos países que mais comercializavam com Belém, os portos de onde saíam as embarcações. A tabela 6 apresenta essa distribuição e os portos mais importantes por marcarem uma regularidade em sua relação com essa parte do Norte do Brasil. 114 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., p. 62. VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano; BARROSO, Daniel Souza. Op. Cit., p. 196-197. 116 GREGÓRIO, Vitor Marcos. Op. Cit. 115 57 1840 1841 1842 1845 1846 1847 1848 1849 1850 1854 1855 1856 1857 Total Portuguesas Lisboa 7 13 12 9 9 10 12 14 11 12 12 12 11 144 Porto 4 7 5 4 4 6 7 6 7 8 9 7 7 81 Outras 1 1 0 3 2 0 1 0 1 0 0 2 2 13 Americanas Tabela 6 – Procedência das embarcações entradas no porto de Belém, 1840-1857 Boston 1 7 8 1 2 0 0 2 3 3 4 3 0 34 New York 5 10 9 10 8 10 15 11 14 18 19 19 21 169 Salem 6 13 12 12 10 11 13 13 17 9 10 9 6 141 Outras 2 3 2 2 2 0 0 1 2 6 5 2 3 30 Liverpool 3 3 3 2 5 5 7 17 13 15 17 12 16 118 Londres 1 1 2 2 2 1 1 0 0 1 3 0 1 15 Outras 1 1 2 3 1 3 2 4 2 3 3 3 3 31 Sète (Cette) Le Havre Marselha Nantes Outras 2 1 0 0 0 1 2 1 1 0 1 1 2 1 1 2 1 1 2 0 1 1 3 3 1 1 4 2 2 0 1 5 2 3 0 1 7 1 4 2 2 5 1 4 1 1 10 1 4 0 0 9 2 6 0 1 6 1 3 0 0 16 1 5 0 14 68 18 38 5 Francesas Inglesas Cidades Fonte: Biblioteca Fran-Paxeco. Tabela constituída a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 1840-1856;117 Relatórios da Presidência da Província118 Das entradas contabilizadas, o porto que mais teve contato com o Pará foi o de New York com 169 entradas. Ocupando o segundo lugar estava Lisboa com 144 viagens, o terceiro Salem somando 141 viagens e a cidade de Liverpool teve 118 embarcações saídas de seu porto. Os outros portos de onde Belém recebia mercadorias com mais frequência, em ordem decrescente do número de viagens, eram Porto, Havre, Nantes, Baltimore, Boston, Marselha, Londres, Sète, New Haven, Cardiff, Glasgow, Bordeaux e Swansea. De New York chegavam a Belém em média 13 embarcações por ano, de Lisboa e Salem 11, o que equivaleria a quase uma viagem por mês, lembrando que as viagens nos vapores duravam em torno de trinta dias, isso mostra uma regularidade dessas viagens. O mesmo se observa das viagens entre o Pará e Liverpool, com uma média de 9 viagens por ano. Da cidade do Porto vinham 6 navios por ano, de Le Havre 5, de Nantes 3, de Baltimore 2. Dos outros portos, as viagens eram menos intensas, de Boston era 1 viagem a cada cinco meses, de Marselha era 1 a cada nove meses, de Londres, Sète, New Haven e Bordeaux a média era de apenas 1 viagem ao ano. Assim, podemos dizer que New York, Lisboa, Salem, Liverpool, Porto e Havre eram as responsáveis pelo abastecimento das necessidades da 117 118 Os dados obtidos do Treze de maio correspondem aos anos de 1840-46 e 1854-56. No Relatórios identificamos os dados para os anos de 1847-50 e 1857. 58 cotidianidade da Província do Pará. Para cada país havia uma ou mais cidades que se destacavam. Em Portugal o destaque era Lisboa, na Inglaterra Liverpool, na França Havre e nos Estados Unidos New York e Salem. Em 1840 as embarcações saídas de Liverpool e Havre para Belém foram 3 e 1, respectivamente. Dezessete anos depois esse cenário havia mudado, pois em 1857 já se registrara na Alfândega do Pará a chegada de 16 embarcações de cada um desses portos. Esse crescimento de embarcações inglesas e francesas se deu ao longo de todo esse período, mais especificamente a partir de 1848. Foi o incremento na chegada de navios a partir desses portos que proporcionou a Província do Pará experimentar novos ares de modernidade, com a chegada das mercadorias, pessoas e costumes refinados à moda anglo-francesa. Conhecer a procedência das embarcações é importante para se entender o tipo de carga que chegava ao porto do Pará, de acordo com a cidade de origem. Figura 1 – Portos de exportação de produtos para Belém Belém LEGENDA França Portugal Inglaterra Estados Unidos Fonte: Atlas 2002, Adaptado pelo autor. Na França, por exemplo, os portos de Sète e Marselha ficam no Mediterrâneo, o que os deu a vantagem de estarem em contato direto com mercadorias do oriente, como as sedas e 59 louças de porcelana. Nantes, Havre e Bordeaux estão situadas no litoral atlântico, sendo que a região de Bordeaux é grande produtora de vinhos. Havre, mais ao norte, próxima da Inglaterra era, nos meados do oitocentos, mais industrial que as demais cidades francesas estudadas. Quanto aos portos americanos de Boston, New York, Salem e Baltimore, todos ficam na região Norte do País, e eram mais desenvolvidas industrialmente que as cidades do Sul, mas por lá se escoavam para o Brasil todos os produtos do norte e do sul dos Estados Unidos. Durante esses dezessete anos as viagens entre New York e Belém representaram 45% das viagens entre os Estados Unidos e a Província do Pará, sendo que 38% foram provenientes de Salem. Esses dois portos responderam por 83% de todas as viagens entre a Província e os Estados Unidos. Os outros 17% foram viagens de Boston, Baltimore e New Haven. Alguns produtos eram comuns a todos os portos dos Estados Unidos, como os chapéus de palha, as fazendas de algodão, o tabaco, as tábuas de pinho e as carruagens. No entanto, farinha de trigo, chá, espermacete, moedas, banha de porco e sacas e caixas vazias estavam presentes somente nas embarcações saídas de New York e Salem, enquanto que, bacalhau, sabão, móveis de madeira e pentes vinham para o Pará apenas de Salem e Boston. Havia ainda, outros artigos que eram específicos por porto, tais como pimenta, breu, piche e feno, produtos específicos de New York. Calçados, pólvora e relógios vinham somente de Salem. E, manteiga, queijo, presunto e cerveja eram artigos exclusivos de Boston. Os portos portugueses de Lisboa e do Porto, totalizam 95% das viagens que aquele país estabeleceu com o Pará, sendo 60% de Lisboa e 35% do Porto. Desses portos partiam rumo ao Pará os navios com as mercadorias mais variadas. Eram produtos comuns aos dois portos como chapéus, frutas secas e sazonadas, verduras, toucinho, presunto, imagens de santos e outros paramentos religiosos, aguardente, vinho branco e tinto, sal, alho e vinagre, pequenos objetos de metal, fazendas, ferragens, calçados, bichas (foguetes), louças, bacalhau, velas e cadeiras. Itens, prioritariamente, do Porto eram os canapés e sofás. Lisboa era a cidade que enviava ao Pará a maior diversidade de artigos, que além dos já citados acima incluíam, também, carne, castiçais e candeeiros, rapé, viola, rabeca, livros, jornais, papeis, pedras de cantaria, facas, facões, vidro, azeite, drogas e alambiques. Como se pode perceber, o predomínio dos artigos portugueses estava associado a necessidades básicas como alimentação, religiosidade, vestimenta, construções e serviços gerais. As cidades britânicas que mais comerciaram com Belém durante as décadas de 1840 e 1850 foram Liverpool e Londres. As viagens de Liverpool para o Pará corresponderam por 72% do total das viagens britânicas para a Província, 9% foram de Londres e, os outros 19% foram de Cardiff, Glasgow, Swansea e Sunderland. Um fato a ser observado é que os navios 60 saídos de portos britânicos, carregados de mercadorias, rumo ao Pará quase sempre era por Liverpool. No entanto, esses mesmos navios invariavelmente, ao retornarem à Europa com os produtos da Amazônia, e passageiros iam para Londres. Outro fator que diferencia as viagens de Londres, das de Liverpool é que quando os navios saiam de Londres rumo ao Pará eles traziam poucas mercadorias, porém muitos passageiros. Enquanto que, as viagens de Liverpool eram mais de mercadorias que de passageiros. De Londres, as principais mercadorias transportadas à Província do Pará eram fazendas, manteiga, louças, metais e ligas, tintas, pólvora e chumbo em munição. De Liverpool além desses artigos vinham, também, queijo, cerveja, sabão, moedas, ferragens e muito carvão de pedra. Em algumas viagens de Liverpool o carregamento era exclusivamente de carvão mineral. Percebe-se que, enquanto Liverpool exportava para o Pará, principalmente, bens materiais a fim de suprir as necessidades da Província, da capital inglesa a exportação era muito mais de gente. Mas, as mercadorias e as pessoas tinham uma coisa em comum, traziam da Europa para o Pará novas ideias e costumes. 61 CAPÍTULO II: ENTRE MARES, COISAS E SIGNIFICADOS II. I. Do mundo da Civilização ao da Representação A história cultural possa ajudar a esmiuçar os sentidos dos produtos importados. A história cultural, de acordo com a concepção de Chartier, tem por principal objeto “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”.119 Nesse sentido, o conceito de representação como uma das possibilidades de análise da história cultural será utilizado na medida em que a realidade pode ser analisada através das suas representações, que devem ser compreendidas como uma realidade de múltiplos sentidos. Dessa forma, “pode-se pensar em uma história cultural do social, que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos,” ou as representações do mundo social que traduzem as posições dos atores sociais, mesmo que à sua revelia, e descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou como almejassem que fosse.120 A história cultural deve ser compreendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido, tendo em vista que as representações podem ser pensadas enquanto “esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir um sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço decifrado.”121 A intenção não é alargar o abismo entre história social e cultural, mas buscar aproximá-las na medida do possível. Buscar compreender as classificações e as delimitações que organizam a apreensão do mundo social - como categorias essenciais de percepção e de apreciação do real - não é de modo algum afastar-se do social, muito pelo contrário, “consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais.” E, assim, dirimir o debate que separa “objetividade das estruturas” e a “subjetividade das representações,” incorporando sob a forma de categorias mentais e de representações coletivas demarcações da própria organização social”.122 Com base nessas noções, considera-se que a imprensa, enquanto um veículo disseminador de ideias e produtos a serem consumidos, possa ser um dos instrumentos através dos quais é possível elaborar sentidos a partir da apropriação de seus textos. Assim, a história cultural pode dela se utilizar para entender as representações da realidade social, o que põe em 119 CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 16-17. Ibidem, p. 19. 121 Ibidem, p. 17. 122 Ibidem, p. 17-18. 120 62 causa a visão da fonte enquanto um testemunho fidedigno da realidade, da qual seria um instrumento de mediação. Seja como for, os jornais são uma singular demonstração dos aspectos simbólicos que permearam a chegada e a disseminação de produtos estrangeiros para os mais variados fins. Neles são expressos os valores que se pretende imprimir como marca dos produtos importados a partir de uma representação textual da dimensão dos valores importados impingidos nas mercadorias. É esse sentido que a história cultural pode ajudar a apreender. Os periódicos estavam sempre a bordo dos navios informando o que acontecia em várias partes do mundo. Na medida em que entravam as embarcações as notícias eram atualizadas, sobretudo os acontecimentos políticos. Os jornais criaram um verdadeiro intercâmbio entre o mundo da propagada civilização e outro que aspirava ser cosmopolita, ainda que por vezes fosse provinciano. Apesar da diversidade da história cultural em suas variadas tradições parece que um terreno comum dos historiadores culturais pode ser traduzido no interesse pelo simbólico e suas interpretações.123 Historiadores que estão na linha de frente da história cultural como Roger Chartier, Robert Darnton e Carlo Ginzburg, embora possuam posturas diferenciadas, trabalham com a ideia de compreender os sentidos aferidos ao mundo e “que se manifestam em palavras, discursos, imagens, coisas, práticas.”124 Tentemos visualizá-los. Era dia 10 de maio de 1840 quando chegou ao porto de Belém o Brigue Americano Heber, vindo de Salem, em 30 dias de viagem. Trazia em sua bagagem produtos com os quais o Pará contaria costumeiramente, dado não somente a presença de produtos de primeira necessidade, como também outros que, pelo menos por um primeiro julgamento, seriam quase dispensáveis. Mas, será que a importação serviria apenas para atender as penúrias mais urgentes, como a falta de alimentação? Entre as mercadorias destacavam-se farinha, charutos, bacalhau, cebolas, velas, sabão, bolacha e fazendas.125 Poucos dias depois aportou o Brigue Francez Zenobia, vindo de Marcelle por Maranhão. Este trazia vinho tinto, licor, vinagre, azeite, queijos, sal, papel, quinquilharias, fazendas, chapéus, calçados, fitas e sedas.126 Ainda dia 25 do mesmo mês ancorava o Brigue Portuguez Carlota & Amelia, vindo de Lisbôa em 33 dias de viagem, trazendo vinagre, vinho branco, sal, carne, azeite, calçados, impressos, mobília, violas e miçangas, dentre outros.127 123 Ibidem, p. 10. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. Cit., p. 17. 125 Treze de maio, 13 de maio de 1840, n.1. p. 4. 126 Idem. 127 Treze de maio, 27 de maio de 1840, n.5. p. 19-20. 124 63 No dia 10 de junho o jornal registrou a entrada do Brigue Inglês City of Perth que trouxe queijos, cerveja, batatas, fazendas de algodão, linho, roupas, louças e panelas de ferro.128 Parece que muito do que o Pará usava não vinha do sertão e nem mesmo da capital da corte, vinha de portos extra-nacionais. Depois de 1840 a entrada de embarcações estrangeiras teve um crescimento contínuo do ponto de vista quantitativo e simbólico, pois além do porto ser mais visitado se comparado com décadas anteriores, os anúncios das mercadorias tornaram-se constantes, permitindo a construção social de sentidos a partir da apropriação dos textos, sobretudo os divulgados em periódicos. Nesses textos publicados, além dos pianos fortes, noticiava-se a chegada de remédios da América e de Portugal como o elixir contra verminoses,129 geleia de marmelo e outros doces de calda em latas vindas de Lisboa,130 lenços de seda para mãos e pescoço de senhoras da última moda oriundos da Inglaterra,131 bonés para meninos e homens e sapatos franceses,132 além de incontáveis outras mercadorias que eram divulgadas quase que cotidianamente. Os jornais demonstram que o movimento de entrada de embarcações seria cada vez mais intenso e os manifestos de cargas foram paulatinamente alongados. É habitual nesses impressos a listagem dos produtos que chegavam ao porto. Mas, sobretudo havia um empenho maciço em valorizar a qualidade dos mesmos, repassando uma imagem de superioridade em relação a outros artigos. Desse modo, construía-se uma imagem não somente de um produto sofisticado, mas também útil e necessário, bem como a origem do produto era sempre um detalhe bem demarcado. O adjetivo “superior” e a demarcação temporal “ultimamente chegado” compunham o apelo publicitário construído em torno dos gêneros europeus e americanos. Na botica de José Accurcio Cavalleiro de Macedo, na rua dos Mercadores número 28 havia para vender remédios chegados ultimamente da América e de Portugal, podendo-se destacar na nota elixir contra lumbrigas ou vermifugo de Swain, especifico contra picadas, e mordeduras venenosas como por exemplo de arraia, cobra e lacraia. Também tinham na mesma botica pomada para aliviar a dor das hemorroidas e os impressos que explicavam os modos de uso e as doses convenientes para as diferentes idades. Estes eram, segundo o 128 Treze de maio, 10 de junho de 1840, n. 9, p. 43. Treze de maio, 7 de julho de 1840, n. 117, p. 660. 130 Treze de maio, 22 de junho de 1842, n. 217, p. 978. 131 Treze de maio, 15 de setembro de 1849, n. 21, p. 4. 132 Treze de maio, 21 de setembro de 1842, n. 243, p. 1082. 129 64 anúncio, os preparados químicos em maior uso na medicina.133 Outro dístico falava dos maravilhosos efeitos do óleo de bacalhau. As ultimas experiências na Alemanha, França e já em Portugal tem mostrado uma virtude específica do oleo de bacalháo contra os vicios escrufoloso e rachilico, e contra os enfartes do fígado, baço e gânglios glandulares do ventre. Os praticos que tem feito uzo deste oleo (...), animaõ facultativos prudentes a ensaia-lo nas moléstias indicadas: a doze marcada He uma colherinha de chá pela manhã, outra pela tarde, por dez a quatorze dias, ficando ao arbitrio do pratico elevar dahi em diante a doze á aquelle número de colherinhas que quizer. Os vômitos, náuseas, e o quadro symptomatico de um medicamento [sic], He o que apparece depois das primeiras dozes, isto não deve atemorizar ao medico; ele verá alguns dias depois tudo desaparecer, e se alegrará de ver progredir a moléstia para uma cura rápida e accelerada. 134 A referência de que o remédio já havia sido testado em vários lugares da Europa devia ser um considerável atrativo para que se adquirisse o referido óleo como um medicamento que traria os efeitos esperados. Outro dia, o jornal indicava que em casa de Lourenço da Graça & C.ª tinha para vender “as verdadeiras pílulas da família chegadas novamente da cidade do Porto.” Elas vinham acompanhadas por certificados, juntamente com um abaixo assinado de médicos e cirurgiões, atestando que para todos os casos em que podia ser empregada, julgava-se que se podia usar com toda segurança.135 Não se deve deixar de associar as representações envolvendo o uso de medicamentos à modernidade científica que estava em voga na época. O aperfeiçoamento da ciência e das técnicas gerou no campo social o sentido da higienização dos costumes e novos métodos de tratar as doenças de acordo com os avanços no campo da medicina. Leopoldino José da Silveira prometia comerciar em sua loja, por preços módicos pevides de melancia, geleia de marmelo e outros doces de calda em latas, além de muito boa marmelada em bocetas, tudo recentemente vindo de Lisboa no Brigue Delfim.136 Outra comerciante, Marion Daniels, moradora da Rua da Paixão, próximo da saída Largo da Misericórdia, oferecia, por preços cômodos, suas mercadorias ultimamente chegadas da Inglaterra – que se destacavam por serem objetos da última moda como lenços de seda para mãos e pescoço de senhoras e homens, botões, vestidos, rendas de seda, linho, algodão e gaze. 133 Treze de maio, 7 de julho de 1840, n. 117, n. 117, p. 660. Treze de maio, 11 de novembro de 1840, n. 50, p. 273. 135 Treze de maio, 16 de fevereiro de 1842, n. 182, p. 930. 136 Treze de maio, 22 de junho de 1842, n. 217, p. 978. 134 65 Também tinha chapéus e bobinetes brancos e pretos para senhoras “e muitos outros objectos tentadores ás algibeiras dos tafues do grande tom.”137 No largo do palácio, continuava-se a vender “cortes de vestidos de lanzinha e meio côvados,” sapatos franceses, bonés para meninos e homens, volantes amarelo e cor de rosa para enfeites de capelinha e mais o que se quisesse.138 Já Joaquim se distanciou dos alimentos, das vestimentas e acessórios para anunciar a possibilidade de variadas leituras. Ele falava de um leilão de um grande sortimento de livros portugueses, latinos, ingleses e franceses que seria realizado da rua do Açougue e quem quisesse se antecipar em examinar os ditos livros poderia fazê-lo a qualquer hora do dia.139 É preciso admitir que “a venda de livros era um negócio como outro qualquer nos quadros da economia mundializada e da mundialização da cultura.”140 Por sua vez, Dickenson & Corbett, informavam que na segunda feira próxima seria vendido no seu armazém arreios e cavalo americano, pertencentes aos bens do falecido George Handerson.141 O próprio nome dos comerciantes, como é o caso do citado acima representava o país de origem do produto que estava sendo divulgado e demonstra também uma aproximação com a cultura a qual o bem pertence. Nesse contexto, as navegações disponibilizaram artigos de diversas procedências e para muitos fins, numa situação em que não se produzia na província tudo que era preciso ou almejado, de acordo com os princípios da modernidade que aflorava. A historiografia recente vem contribuindo para a superação das explicações tradicionais acerca do Grão-Pará no século XIX, de que sua economia estava fundamentalmente assentada em atividades extrativas desde o período colonial, e que o aumento da exportação da borracha em 1850 teria ocasionado, quase que definitivamente, o abandono da agricultura. Estudos recentes têm evidenciado que a agricultura nesse período se desenvolveu de forma bastante significativa, e que ao contrário do discurso dos presidentes da província, o Pará produzia muito do que se consumia e ainda exportava em número plausível.142 De fato, em se tratando de alimentos, por exemplo, os produtos do sertão e de outros recantos do Império tinham importância no abastecimento de Belém.143 Porém, o que se importava de portos estrangeiros era muito mais amplo do que a província precisava para 137 Treze de maio, 15 de setembro de 1849, n. 21, p. 4. Treze de maio, 21 de setembro de 1842, n. 243, p. 1082. 139 Treze de maio, 27 de outubro de 1849, n. 26, p. 4. 140 COELHO, Geraldo Mártires (2005b). Op. cit. p. 370. 141 Treze de maio, 3 de abril de 1841, n. 91. 142 BATISTA, Luciana Marinho. Op. Cit. 143 MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira. Op. Cit. 138 66 se alimentar, embora essa também fosse uma dimensão que coadunasse para o aumento da chegada de produtos importados. Em função de fatores como o crescimento demográfico, especialmente a partir de 1850, aliado as epidemias que causaram mortes e fome, ao contrabando de gado e as decorrentes carestias da carne verde, problemas nos transportes, além de fatores climáticos que destruíam plantações, foi inevitável a falta de alimentos.144 Se na década de 1840, a importação de alimentos já era muito importante, depois de 1850 torna-se essencial. Bates ao voltar para Belém em 1859, depois de sua longa jornada no interior, ressaltava a carestia que tomara conta da cidade. Os artigos importados, não somente os alimentos como também, roupas e móveis, “eram quase sempre mais baratos do que os produtos locais, embora taxados com impostos que variavam de 18 a 80 por cento somados aos altos fretes e aos lucros exagerados.” E ainda exemplificava asseverando que “o bacalhau salgado era mais barato do que o seu correspondente local, o detestável pirarucu”.145 No entanto, os alimentos são apenas uma parte da pauta dos produtos importados. A leitura dos anúncios dos jornais evidencia a variedade das coisas que vinham para Belém, desde produtos de primeira necessidade - como era o caso do sal que era trazido em abundância, principalmente dos Estados Unidos, do bacalhau vindo de Portugal – até os cortes de crepe, lã e seda provenientes da França e Inglaterra. Contudo, essa dicotomia não parece ser o mais importante, mas as representações construídas em torno sejam dos bens supérfluos ou dos indispensáveis. As representações são “matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotada de uma força integradora e coesiva, bem como explicativa do real”,146 que promovem uma assimilação a partir da leitura dos códigos de interpretação. Mas não significa que a leitura é a mesma que foi prescrita, pois será sempre resignificada, amparada no que Chartier chama de “processo de construção de sentido.” Logo, tem que se considerar que as práticas através das quais há a apropriação do texto são histórica e socialmente variáveis.147 Ainda que se tente incutir uma imagem de civilidade oriunda de uma cultura europeia, os elementos culturais serão sempre recompostos por “uma releitura e uma adaptação locais de um tipo de apetrecho cultural desenraizado e por isso passível de ser apropriado e redesenhado”.148 Alencastro tratando desse mesmo contexto no Rio de Janeiro 144 Ibidem. BATES, Henry Walter. Op. Cit., p. 297. 146 PESAVANTO, Sandra Jatahy., Op. cit., p. 39 147 CHARTIER, Roger (1990). Op. cit., p. 25. 148 COELHO, Geraldo Mártires (2005a). Op.cit., p. 213. 145 67 diz que lá se engendrou “um mercado de hábitos de consumo relativamente europeizados num ultramar ainda pouco ocupado por essas ‘falsas Europas’”,149 utilizando uma expressão de Braudel. Por outro lado, a representação não é uma invenção. Embora não seja o real, está inserida no campo da verossimilhança e da credibilidade pautada nos seus elementos simbólicos, que dizem mais do que aquilo que enunciam, carregam sentidos. Ela significa “estar no lugar de, é presentificação de um ausente (...)”, e sua ideia central é a “substituição que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença”.150 O que promove a sensibilidade no caso aqui elucidado? Em 1841 divulga-se a venda de dois pianos fortes, “sendo um muito lindo chegado ultimamente” e outro usado.151 Pelo teor das palavras não parecia ser o primeiro piano chegado à Província, parecia já haver alguma proximidade com este objeto, ao contrário de outros como a rabeca e o violão. Este era um instrumento europeu de pouca circulação e de grande notabilidade, sendo raras as Províncias que recebiam algum até meados do século XIX. O piano só adentrara a alguns raros sobrados do Rio de Janeiro, Recife e Bahia, sendo praticamente desconhecido em outras partes. Não foi o caso do Pará, que não esperou 1850 para se emaranhar a mercadoria-fetiche dessa fase econômica e cultural,152 e nem para desfrutar de outras miudezas. João Ribeiro Arede tinha em seu estabelecimento na Travessa Mercês, de frente ao Tesouro provincial, “relógios americanos, quadrilongos, fabrica de metal, e corda para oito dias a 16$000 réis.”153 Além dos relógios e outros enfeites, as fazendas tinham um espaço reservado para divulgação sendo oriundos de vários países. Na casa de Sparhavvk & Pond havia um bom sortimento de fazendas chegadas no Pataxo Americano Rattler e se prometia vender por preços razoáveis.154 Na loja de Bentes & Alves Irmão tinha “fazendas francesas e dos últimos gostos chegadas ultimamente de França, no Brigue Esmeralda.”155 Mas era comum também que elas viessem da Inglaterra. Antonio José Rodrigues, “fará leilão nos dias 31 do corrente mez (...) de um bom sortimento de fazendas vindas ultimamente de Liverpool no navio George as 149 ALENCASTRO, Luiz Felipe de (1997). Op. cit., p. 36. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. Cit., p. 40-41. 151 Treze de maio, 7 de abril de 1841, n. 92, p. 551. 152 ALENCASTRO, Luiz Felipe de (1997). Op. Cit., p. 45, 46. 153 Treze de maio, 23 de junho de 1849, n. 8, p. 4. 154 Treze de maio, 21 de julho de 1849, n. 12, p. 4. 155 Treze de maio, 17 de agosto de 1850, n. 65, p. 6. 150 68 quaes seraõ vendidas impreterivelmente, e não se retira lote.”156 Outro anúncio destacava: “Este estabelecimento acaba de receber de França um lindo sortimento de cambraias de cores a Rainha Estephania, fazenda inteiramente nova neste mercado; ninguém deixará de comprar á vista do preço e qualidade”.157 Desenhava-se a representação de um modelo de consumo de uma sociedade europeia que se apresentava como um paradigma de civilidade para uma sociedade tropical, que na mesma página em que construía a imagem convincente da última moda colocava o anúncio de venda e compra de escravos e denunciava os que haviam fugido. Dessa maneira, o mesmo anunciante que vendia um preto crioulo, oferecia muito boa massa para temperos vinda de Lisboa.158 O mercado de joias também era bastante fértil, de forma que se avisava constantemente do recebimento de joias de ouro e brilhantes dos gostos mais modernos, bem como relógios de ouro com patente inglesa, dispondo de bons cronômetros.159 Ao tempo em que eram gestadas modernas sensações pela possibilidade de consumir produtos contendo o selo do requinte, o império assegurava a ordem privada a partir das conciliações e do clientelismo entre grupos mais abastados político e economicamente, gerando no seu seio as próprias contradições entre a modernidade que apregoava e os sistemas retrógrados da qual a escravidão é um protótipo. O escravismo não era algo que o império pretendia dissolver, mas reconfigurar, não sendo apresentado como uma herança do passado colonial, mas como uma convenção que deveria ser levada para o porvir. Nesses moldes, o Império “retoma e reconstrói a escravidão no quadro do direito moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre a contemporaneidade”.160 Para Alencastro, o sistema escravista permeava uma comunidade que buscava alcançar os princípios liberais predominantes na política, na economia e na sociedade da Europa ocidental.161 No entanto, afirma José Murilo de Carvalho que “as teorias políticas e os modelos de organização de poder existentes na Europa não se adaptavam ou se adaptavam parcialmente as circunstâncias em que se achavam os novos países, “como era o caso do Brasil. Este, um país imerso em inúmeros dilemas como, por exemplo, o centralismo e a descentralização, o liberalismo e o trabalho escravo.162 A escravidão também era antagônica em relação ao consumo expressivo de importados (entendidos não como meros construtos 156 Treze de maio, 28 de julho de 1851, n. 117, p. 4. Gazeta Oficial, 8 de julho de 1858, n. 48, p. 4. 158 Treze de maio, 22 de janeiro de 1842, n. 173, p. 899. 159 Gazeta Oficial, 16 de junho de 1858, n. 31, p. 4. 160 ALENCASTRO Luiz Felipe de (1997). Op. Cit., p. 17. 161 Ibidem, p. 16. 162 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 34. 157 69 materiais), como sinônimo de progresso porque acentuava as contradições que o império buscava administrar sem causar prejuízos para as elites. Foi assim no Brasil e mais especificamente na Província do Pará. A partir da segunda metade do século XIX, com mais afinco, os padrões das sociedades ditas civilizadas são incorporados de forma bastante intensificada com a introdução do navio a vapor, a recepção de produtos importados e a própria ideia do que era público e privado. Desse modo, se no caso de escravos a posse, mesmo sendo particular, precisava ter o aval da autoridade pública, no caso dos importados eles estavam diretamente imbricados com a ordem privada e com a garantia de enquadramento em uma ordem privilegiada. O consumo desses produtos é um dos elementos constitutivos dessa nova ordem burguesa, que permitiu que o império aderisse a padrões proclamados civilizados, mas simultaneamente mantivesse costumes de outrora. No âmbito das novas identificações com a matriz de identidade burguesa, o mercado de joias se apresentou como bastante fértil, de forma que se avisava constantemente do recebimento de joias de ouro e brilhantes dos gostos mais modernos, bem como relógios de ouro com patente inglesa, dispondo de bons cronômetros.163 Nesse contexto da construção de novas sensibilidades também estavam os serviços dispensados como é um bom exemplo os ourives e os relojoeiros. Guilherme Potter fazia conhecidas as suas habilidades de relojoeiro e retratista de pessoas falecidas e de todos os objetos com toda perfeição. Oferecia ao respeitável público “seus serviços da grande arte de retrato pela Daguerreotypo,” método mais moderno da América.164 Um dos estabelecimentos ao mesmo tempo em que dispunha sempre “de um lindo e variado sortimento de joias de ouro, e obras de prata, e pedras preciosas de gostos os mais modernos, vindas diretamente da Europa,” prometia trocar obras velhas que não estivessem mais na moda. E ainda se oferecia a consertar grátis por ser o dono profissional e ter juntamente uma oficina onde se podia reparar obras nacionais e estrangeiras.165 Nota-se que esses serviços especializados, inclusive para produtos estrangeiros denotam que havia um mercado em crescimento e que a província tinha seu tempo já marcado pelos cronômetros ditos civilizados. Os princípios próprios de um discurso civilizatório emergente precisavam está bem definidos. A alusão a origem do produto ou possível relação com a Europa repassava uma 163 Gazeta Oficial, 16 de junho de 1858, n. 31, p. 4. Treze de maio, 19 de julho de 1851, n. 116, p. 4. 165 Gazeta Oficial, 8 de julho de 1858, n. 48, p. 4. 164 70 ideia de credibilidade e de superioridade. Observe a narração encontrada no jornal Treze de Maio: A palavra Rapé é de origem franceza, assim como a qualidade de tabaco que indica. Desde os primeiros tempos da introducção do tabaco na França se começou alli a fazer uso delle para cheirar; porém não se vendia já preparado para esse fim. Cada pessoa fazia a sua provisão de tabaco em rolo, e o raspava ou ralava todas as vezes que queria cheirar huma pitada. Para este efeito usavaõ-se humas caixas ou estojos, a que chamavam rapé: o seu feitio ordinariamente era sobre o comprido, e esta a sua construcção: o interior da caixa tinha dois repartimentos; em hum delles estava o tabaco em rôlo; e o outro era destinado para receber o rapé. A tampa pela parte debaixo estava guarnecida de huma folha delgada de aço picada como huma lima ou groza. Então quando a pessoa queria cheirar, esfregava o rolo de tabaco por quella espécie de ralador até haver muido a porção sufficiente. Ora esta acção de ralar ou raspar em francez diz-se raper, e portanto o seu producto chamava-se tabaco rapé. D’ahi com o uso nos veio o nome desta preparação do tabaco, a qual depois se foi alterando com a mistura de alguns aromas, e então se começou a vender já preparado. Ainda no tempo de Luiz 14.º se usavaõ os rapés, de que algumas se conservaõ de grande luxo e valor.166 O rapé era muito difundido na província. Pelas inúmeras vezes que ele aparece no jornal dar a entender que tinha grande aceitabilidade, a partir da força do simbólico que operava. A cultura enquanto produto comercial ensejava de forma profícua nos quadros da modernidade. O simbólico que aparece interligando o rapé a França e ao tempo de Luiz XIV não é de forma alguma desproposital, “é uma estratégia de representação cultural, inerente ao homem como criador da cultura”,167 como também de suas linguagens. Por essas linhas, pretendeu-se pensar alguns indicativos dos processos civilizatórios que já era possível de serem visualizados bem antes do cosmopolitismo de 1870, os quais Geraldo Coelho denominou de o Anfiteato da Belle Époque. Buscou-se exatamente situar esses processos civilizatórios no contexto da intensificação das navegações pós 1840, que interligou em um sentido já bastante amplo a província do Pará a centros hegemônicos da cultura mundial, como os Estados Unidos, Portugal, França e Inglaterra. Esses países destacaram-se como os mais importantes em relação à entrada de produtos das mais variadas ordens - como alimentos, utensílios domésticos, vestimentas e adereços dos mais aprimorados gostos - que aqui foram lidos como bens culturais com seus valores simbólicos e por isso representativos. Faz parte da representação não somente os produtos materiais, como também as concepções e as ideias de mundo que lhe são peculiares. 166 167 Treze de maio, 29 de outubro de 1842, n. 254, p. 1125. COELHO, Geraldo Mártires (2005b). Op. Cit., p. 19. 71 A economia que rege estes bens, embora se relacionem com os interesses propriamente econômicos, só podem ser compreendidos amplamente por meio das representações e não apenas através da lógica da economia mercantil.168 Consequentemente, inserir o estudo desses bens culturais no campo cultural é situá-lo em um “mundo econômico investido,” embora tenha que se considerar que para este caso o material não deva dissociar-se do imaterial. Para isso, parte-se da ideia de que o consumo dos bens culturais elucidados provavelmente era restrito as condições de classe, portanto, as condições materiais de existência. Mas também não é uma regra geral, é preciso relativizar. Pode-se elaborar isso questionando as distinções primordiais erudito/popular, criação/consumo, realidade/ficção. É preciso romper com esses falsos dualismos a partir da circularidade cultural proposta por Bakhtin.169 A problematização pode romper a linha vertical que liga o consumo as condições de classe social. Enquanto a proeminência do adjetivo “superior” indica o acesso imediatamente para as classes mais abastadas, o “barato,” recorrente nos anúncios pode apontar para outros níveis sociais, quanto mais os produtos eram entendidos como essenciais, sobretudo os alimentos. Quando Bates afirma que em 1859 o Bacalhau importado encontrava-se mais barato do que o peixe local, o pirarucu, pode está indicando que os produtos advindos dos países mencionados não eram tão inacessíveis assim, pelo menos não todos. A história cultural, indubitavelmente pode ajudar no encontro de alguns caminhos de cunho teórico e metodológico, dos quais alguns foram discutidos, mesmo com a consciência dos seus limites. Mas muito ainda há que trilhar. Não são respostas prontas e muito menos definitivas, mas possibilidades de captar a cultura como meio de entender a própria sociedade, como construtora de elementos alegóricos imagináveis construídos a partir da realidade possível. O fluxo de bens e ideias importados em sua maior parte via transatlântica, inauguraram novos tempos, novas formas de pensar o mundo e de se relacionar com o inusitado, para os quais a navegação de longo curso desempenharia um papel fundamental. As melhorias das embarcações com o desenvolvimento de técnicas a nível internacional e local significaram nessa conjuntura a diminuição das distâncias, mas também do intervalo que separava o Pará das nações ditas superiores. Assim como o desenvolvimento 168 CHARTIER, Roger. “O mundo econômico ao contrário”. In: Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2005. 169 Para saber mais sobre o conceito de circularidade cultural ver BAKHTIN, Mikhail. Op. Cit.; GINZBURG, Carlo. Op. Cit. 72 dos transportes foi um aspecto importante para a indústria do divertimento na França,170 aqui inaugurou novas sensibilidades. Um nativo da Inglaterra dizia que o Pará estava sendo permeada por um sentido mais racional, “parecendo que os paraenses procuravam agora imitar os costumes das nações do norte da Europa, ao invés da mãe-pátria.” Parecia mesmo que tudo se encaminhava para uma filiação bastarda. II. II. Atlântico: diálogos e intercâmbios Desde o final da Idade Média a Europa experimentou mudanças que no século XVIII viriam a edificar as bases da noção de civilização, entendida a partir de hábitos, posturas e comportamentos peculiares do homem ocidental. Cortesia, na Idade Média, civilidade, nos séculos XVI e XVII, e civilização no século XVIII são as três etapas do que Norbert Elias classificou de processo civilizador,171 caracterizado pela evolução do comportamento dos povos ocidentais em um período de longa duração. Contudo, tal processo não ocorreu da mesma forma em todos os lugares, pois enquanto na França o processo civilizador se constituiu basicamente em torno de elementos como a economia e a política, na Alemanha relacionava-se civilização a atividades de erudição, religião, arte e filosofia. Assim, com suas variações e diferentes significados, as noções de civilização se apresentaram com muita força em várias partes do mundo, seja por meio de produção intelectual, normas, condutas, valores morais e culturais ou expressas em produtos. Tomando este viés como opção, é possível abordar a viagem das coisas e das ideias que representam as noções de civilização que aportaram em Belém nos meados do oitocentos. No século XIX, o conceito de civilização estava consolidado em países como Alemanha, Inglaterra e, sobretudo em França de acordo com um conjunto específico de situações históricas. Franceses e ingleses poderiam dizer aos alemães quais elementos tornavam o conceito de civilização a representação da “auto-imagem nacional”.172 A partir de 170 CORBIN, Alain. “História dos tempos livres”. In: CORBIN, Alain (org). História dos tempos livres: O advento do lazer. Lisboa: Teorema, 2001. 171 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 1994. De acordo com Vainfas "o papel assumido pela França e pela Inglaterra no período iria tornar esses países referenciais na crença sobre o ininterrupto, embora gradual, avanço da humanidade para a civilização e o progresso," que iria eliminar tudo que fosse irracional, inclusive as barreiras do comércio. Cf. VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial (org.). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. Entretanto, essa crença no progresso foi desconstruída no segundo e no terceiro decênio do século XX com a Primeira guerra mundial e a crise dos anos 30, tornando a ideia de progresso um mito oitocentista. Cf. ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador: A idéia de Progresso. São Paulo: Unesp, 2000. 172 ELIAS, Norbert. Op. Cit., p. 25. 73 então era possível disseminar a civilização para outras nações ou para lugares pouco antes navegados em que a própria ideia de nação era claudicante, como era o caso do Brasil.173 A Província do Pará até 1823 cambiava entre fazer parte do Império ou continuar mantendo relações diretas com Portugal. Mesmo com a adesão do Pará a independência, os laços com a antiga metrópole estavam enraizados e não apenas com Portugal. O movimento do porto demonstra que a relação da Província com Inglaterra, França e Estados Unidos era intensa. Frequentemente, aportavam no cais belenense embarcações dessas nacionalidades trazendo vestimentas, medicamentos, alimentos, ferragens e tantas outras mercadorias que compunham o cotidiano das casas, do trabalho, da diversão de uma parte da população. Entretanto, o que está em questão não é apenas a disseminação das mercadorias como meros objetos, mas os valores que a elas estavam agregados como procedentes de nações civilizadas. Dessa maneira, os produtos importados oriundos das navegações de longo curso têm um sentido geográfico, econômico, social, e simbólico, que está relacionado de um lado à necessidade de produtos no cotidiano de pessoas não obrigatoriamente abastadas e de outro a ostentação, o refinamento e a busca da distinção social174 por alguns grupos da elite local,175 que objetivavam enquadrar-se no conjunto da modernidade nacional brasileira. Portanto, houve para além da viagem das coisas, a viagem das ideias. Ideias estas que foram construídas em um tempo longo com o processo civilizador e que aportaram no Pará em escunas, galeras, iates, brigues, patachos e vapores. O Atlântico foi o oceano mais importante para o comércio mundial entre os séculos XVIII e XIX. Se o Atlântico Sul foi a região dinâmica do comércio entre África, Europa e América desde o século XIV ao início do XIX - atuando como o centro comercial do mundo 173 Há ideias controversas acerca da formação da América Latina de modo geral. De um lado há os que acreditam que na América Latina a identidade nacional já existia anteriormente ao surgimento dos estados independentes. Por outro lado, há os que compreendem a criação do estado como o ponto inicial para a criação da nação. Richard Graham afirma que no Brasil o estado levou a formação de uma nação. Ver: GRAHAM, Richard. Construindo uma nação no Brasil do século XIX: Visões novas e antigas sobre classe, cultura e estado. Diálogos. DHI/UEM, v. 5, n. 1, p. 11-47, 2001. Considera-se que após o surgimento do estado, a construção da nação se deu de forma bastante lenta. Sendo o número de entradas de embarcações estrangeiras muito maior que as entradas nacionais já pressupõe que o contato com outros países era mais comum do que com o próprio império brasileiro e que, portanto a ideia de nação como uma identidade comum não estava estabilizada. 174 Bourdieu destaca a não arbitrariedade da produção simbólica na vida social, afirmando o seu caráter de legitimação das forças dominantes que são expressas através dos gostos de classe e estilos de vida, criando, dessa forma, a distinção social e reafirmando o poder simbólico. Para saber mais, ver: BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. 175 Entende-se por elite grupos que ao longo do tempo conseguiram acumular, riquezas, bens e prestígio, seja através de investimentos individuais ou no estabelecimento de relações familiares ou de alianças. Considerando essa noção, no Pará existiam basicamente três atividades que propiciavam acumulação de riqueza e todas estavam interligadas: a agricultura, o extrativismo e o comércio, sendo a atividade mercantil o principal ramo da economia no acúmulo de riqueza. Não coincidentemente é a atividade relacionada ao fluxo de importados. Cf. BATISTA, Luciana Marinho. Op. Cit. 74 ocidental -, ele teria sido suplantado pelo Atlântico Norte no século XIX a medida que o tráfico de escravos foi reduzido significativamente. Cresce, então, o comércio entre Europa e América do Norte, América do Sul e também entre América do Norte e América do Sul. Essa transformação no comércio em muito se deve a outras mudanças ocorridas no mundo que possibilitaram que muitos antigos sistemas coloniais passassem a depender intensamente de alguns mercados estrangeiros. No entanto, essa dependência não é simplesmente uma necessidade, mas uma veleidade de se enquadrar no processo de desenvolvimento técnico, científico, civilizatório, através do que Braudel chamou de “os jogos das trocas”,176 que ligou cidades de antigas colônias aos grandes centros propulsores da civilização, da industrialização. De acordo com Levi, as estratégias de consumo são resultados de uma cultura complexa que não pode ser reduzida a subsistência ou a necessidade sem escolha, pois dessa forma a realidade seria apreendida de maneira descontextualizada.177 No caso da Província do Pará, antigo Estado do Maranhão e posteriormente GrãoPará, pode-se verificar as conexões mercantis com portos estrangeiros a partir das especificidades dos produtos importados em se tratando dos países aqui elencados. Devido à grande abundância de diferentes produtos entrados neste porto,178 os mesmos foram classificados em quarenta e oito subcategorias e sete categorias.179 Veja no quadro abaixo como as categorias foram arranjadas. 176 BRAUDEL, Fernand. Op. Cit. LEVI, Giovanni. Op. Cit. 178 De acordo com o levantamento, verificou-se a entrada de mais de mil produtos. Ver apêndice 1. 179 São elas: Adorno para roupas e pessoas, alimentos de origem animal, alimentos de origem vegetal, alimentos processados, armamento e munições, artigos funerários, artigos religiosos (litúrgicos), artigos de pesca, bebidas, condimentos, diversão, ferramentas, Flores, plantas, sementes, produtos e objetos medicinais, fumo, iluminação, instrumentos musicais e outros, itens fotográficos, joias, leitura: livros bibliotecas e escritório, louças, materiais e produtos de limpeza, maquinarias diversas, material para imprensa, material para construção de casas e ruas, metais e ligas metálicas, mobílias do lar, moedas, bens da casa, objetos de vidro e outros, objetos militares, obras diversas, óleos e azeites, papéis, perfumaria, produtos para botica e medicamentos, produtos químicos, tecidos e linhas, transportes, utensílios de trabalho (Destilaria e Ourivesaria), Utensílios de trabalho (Costura), utensílios de trabalho (Marceneiro e Tanoeiro), utensílios de trabalho (Ferreiro) e ferragens, utensílios de trabalho (Padeiro), utensílios de trabalho (Sapateiro), utensílios e alimentos para animais, utensílios para agricultura, utensílios para comércios, açougues e mercarias, vasilhames, outros. Para conhecer os produtos específicos de cada subcategoria, ver apêndice. 177 75 Quadro 2 – Agrupamento dos produtos em categorias e subcategorias CATEGORIAS SUBCATEGORIAS Alimentos e bebidas Alimentos de origem animal, alimentos de origem vegetal, alimentos processados, bebidas, condimentos, óleos e azeites. Coisas de uso público e/ou privado Artigos funerários, artigos religiosos (litúrgicos), diversão, fumo, iluminação, instrumentos musicais, leitura: livros, bibliotecas e escritórios, louças, materiais e produtos de limpeza, mobílias do lar, objetos de vidro, bens da casa, obras diversas, transporte, utensílios e alimentos para animais, vasilhames. Equipamentos Ferramentas, maquinarias diversas. Indumentárias e joias Adorno para roupas e pessoas, joias, perfumaria, tecidos e linhas, vestuário. Trabalho e negócios Armamentos e munições, artigos de pesca, itens fotográficos, materiais para construção de casas e ruas, materiais para imprensa, metais e ligas metálicas, moeda, objetos militares, papéis, produtos químicos, utensílios de destilaria e ourivesaria, utensílios de costura, utensílios de marceneiro, carpinteiro e tanoeiro, utensílios de ferreiro e ferragens, utensílios de padeiro, utensílios de sapateiro, utensílios para agricultura, utensílios para comércio, açougue e mercearia. Tratamentos medicinais e outros usos Flores, plantas, sementes, produtos e objetos medicinais, produtos para botica e medicamentos. Diversos - Fonte: Quadro compilado a partir das informações do Jornal Treze de maio, 1840-1856 As categorias foram uma estratégia metodológica para enquadrar todos os produtos na análise, ainda que algumas subcategorias pareçam não ser apropriadas para a categoria a qual faz parte. Porém, na medida do possível, levou-se em consideração os usos e fins de cada importado. A categoria diversos, especialmente, compreende produtos que possuem os usos mais variados ou que não foi possível identificar o seu uso no período estudado. A maior parte deles pode ser enquadrada nas outras categorias no decorrer da análise. De modo geral, as categorias ajudam a entender a partir da variedade dos produtos os processos históricos experimentados por Portugal, Estados Unidos, Inglaterra e França e que tiveram reflexos na Província. O gráfico aponta para a variedade de produtos chegados no porto de Belém de acordo com as categorias provenientes de cada país. 76 Gráfico 4 – Variedade dos Produtos Importados, 1840-1850 Fonte: Biblioteca Fran-Paxeco. Gráfico constituído a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 18401850. A antiga metrópole do Brasil trazia a maior variedade de produtos para o consumo dessa parte da ex-colônia. Note que os Estados Unidos se posicionavam quase sempre em segundo lugar, exceto quando se trata de artigos da Indumentária em que decai para o último. A França ocupava na maioria das vezes o terceiro lugar, exceto nos itens equipamentos, e trabalho e negócios, onde ocupou o último lugar e na categoria Indumentárias em que superou até mesmo Portugal. Já os navios provenientes da Inglaterra eram os que traziam a menor variedade de importados com exceção das categorias equipamentos, e trabalho e negócios em que os itens avultavam. Uma tendência geral é que Portugal e Estados Unidos formam um grupo destacado não somente porque ocupam o primeiro e o segundo lugar, mas pelo tamanho da diferença em relação aos demais. Se confrontarmos a tendência variedade com a quantidade de embarcações entradas esses países trocam de posição, pois apesar de o maior número de embarcações vir dos Estados Unidos, a maior variedade de importados vinha de Portugal. A mesma tendência se repete quando se fala de Inglaterra e França, pois França ocupa a terceira posição em se tratando de variedades, ainda que tenha o menor número de embarcações entradas. 77 De acordo com o registro sistemático das entradas das embarcações e seus respectivos carregamentos pode-se analisar a frequência com que os produtos entravam, bem como as cidades de onde provinham. Alguns produtos se destacam com intensidade, considerando a intensificação do comércio Atlântico. A tabela abaixo aponta os principais produtos vindos de Portugal, destacados por sua constância. A frequência indica em quantas viagens o produto estava presente, considerando o total das viagens para cada país.180 Tabela 7 – Importados de maior frequência oriundos de Portugal Categorias Subcategorias Frequência Categorias Subcategorias Frequência Categorias Subcategorias Frequência Alimentos de origem animal 74% Alimentos de origem vegetal 89% Artigos religiosos Diversão 41% 54% Alimentos e bebidas Alimentos Bebidas processados 93% 93% Condimentos 96% Coisas de uso público e/ou privado Iluminação Instrumentos Leitura: Livros, biblioteca e musicais escritório 41% 48% 39% Coisas de uso público e/ou privado Louças Mobílias Bens da do lar casa 44,5% 48% 58% Indumentária Adornos 59% Tecidos e linhas 54% Vestuário 61% Óleos e azeites 50% Objetos de vidro Obras diversas 35% 44,5% Tratamentos medicinais e outros usos Produtos para botica e medicamentos 48% Categorias Subcategorias Trabalho e negócios Diversos Materiais para Materiais para construção Papéis Utensílios para ferreiro Diversos imprensa de casas e ruas e ferragens 37% 41% 33,5% 50% 87% Frequência Fonte: Tabela constituída a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 1840-1850. Biblioteca FranPaxeco. Grêmio Literário Português. Em todas as categorias, Portugal tem uma presença constante, sendo a categoria Equipamentos (ferramentas – 11%, maquinarias diversas – 4%) a única que não mantém uma regularidade expressiva. Portugal conserva um equilíbrio não somente na variedade, mas também na frequência no envio das mercadorias que em 1840 já faziam parte da vida material de uma parte dos moradores da Província do Pará, sejam eles nascidos ou imigrantes que por razões adversas a adotaram como pátria. Em se tratando dos produtos mais frequentes destacam-se os alimentos que em sua maioria vinham em mais de 90% das viagens. Entre eles, tem destaque carne, bacalhau, batata, cebola, castanha, azeitona, manteiga, queijo, presunto, cevadinha, toucinho, alho, sal, vinagre, azeite, vinho tinto e vinho branco. No caso das coisas de uso público e/ou privado a 180 Estão destacadas nesta tabela apenas as categorias e subcategorias com maior frequência nas viagens. 78 regularidade variava entre 35% a 54% com ênfase na subcategoria Diversão. De modo geral, eram proeminentes as imagens, santos, sinos, paramentos para missa, oratórios, foguetes, velas de cera, velas de sebo, candeeiros, castiçais, violas, livros, vidro, obras de prata, obras de ouro, obras de cobre, obras de latão, louças, chocolateira de cobre, cadeiras, mesas, canapés, guarda-roupas, toucador, pederneiras, palitos de fósforo, penicos e urinóis. Já na categoria Indumentária a frequência com que chegava os Adornos, os Tecidos e os Vestuários oscilavam entre 54% e 61%. Os chapéus, bonetes, miçangas, fazendas de algodão, pano de linho, fios e linhas, tamancos e outros calçados, eram os produtos que mais entravam depois dos alimentos. Quase no mesmo grau de entrada estavam os produtos para botica, muito utilizado nos tratamentos de doenças, inclusive as típicas dos trópicos, destacando-se as drogas, a erva doce, água férrea e água de caldas. O item trabalho e negócios ressalta a entrada dos impressos, jornais, rolos de papel, lages e lages de cantaria, pedras e pedras de cal, tijolos, papel, papelão, ferragens, fechaduras e foles. E, na categoria Diversos, aparecem comumente cera, massa, tacho de cobre, arame e archote. Pela diversidade e frequência com que procediam as mercadorias de Portugal, percebe-se que ela é um dos mais importantes dinamizadoras de bens supérfluos, mas em grande medida, eram os gêneros essenciais. Se indagarmos sobre o principal produto importado de Portugal, veremos que é um alimento que está tanto no cotidiano da elite, quanto da população em geral, isto é, o sal, sobretudo por ser um condimento indispensável e por ser essencial no processo de conservação de alimentos. Por superar os outros países, na regularidade da entrada de uma maior variedade de produtos, essa presença teria uma razão óbvia? Ao que tudo indica Portugal configurava um papel de constante mantenedora e provedora de uma parte da antiga colônia, na medida em que atravessava o Atlântico trazendo artigos relacionados à religiosidade, diversão, vestuário, materiais para a realização de variados trabalhos e tinha um papel fundamental quando se trata da alimentação. Isso demonstra que a preocupação da ex-metrópole ia além das necessidades mais elementares ligadas ao corpo (alimentação, moradia, vestuário), mas passava pela diversão e pelos cuidados com o espiritual que se mantinha, haja vista que entre os anos de 1840 e 1850 não se encontrou registro de importações de artigos religiosos que não fosse de Portugal.181 A partir de uma análise do comércio entre Portugal e o porto do Rio de Janeiro entre 1803 e 1805 realizada por João Fragoso: 181 O único registro encontrado que não é de Portugal consiste em uma opa vinda dos Estados Unidos. 79 Do reino comprava-se principalmente panos: chita, baetões, fitas de seda e veludo, gangas de algodão e seda, lenços, musselinas, tecidos de algodão cru, cetim, chapéus, panos de linho e rendas. Logo vinham os vidros, as bulas, aguardentes, as drogas e espingardas, os objetos de estanho, os paios, a pólvora, os presuntos, o vinho, o bacalhau e o vinagre.182 Esse tipo de comércio de longa distância nas palavras de Fragoso era feito por comerciantes de grosso trato, que compunham a praça mercantil do Rio de Janeiro, ligados também ao comércio de outras atividades.183 No Grão-Pará, a notícia da vinda de D. João VI e de que as cidades de Lisboa e Porto teriam caído em mãos inimigas causou diversos prejuízos comerciais, pois “entre as contas do cacau – enviado do Pará para Maranhão e de lá para Portugal, e das carnes e sal que chegavam, via Maranhão ao Pará – tornou-se notório que em Lisboa os embates diplomáticos chegavam a um grande impasse.” Nesse contexto, o comércio com Portugal arrefeceu e as “novas alianças com os ingleses transformaram os negócios e amizades no antigo Grão-Pará”,184 o que acabou por desencadear lutas sociais na Amazônia envolvendo a relação Grão-Pará/Portugal. Ainda que no Grão-Pará as mudanças de 1808 tenham exasperado os ânimos do comércio e que a situação tenha se agravado com a declaração de morte aos portugueses em7 de janeiro de 1835 pelos homens cabanos, é notório que Portugal não perdeu o seu domínio. Assim, o que tem de novo ao se registrar a entrada dos mesmos produtos que já eram recorrentes no período colonial? A continuidade dos negócios, das trocas, mesmo que não mais na condição de metrópole é evidente. Por outro lado, essa continuidade não é absoluta, como não é desde 1808 com a abertura dos portos, tendo causado movimentos no sentido de reestruturar o mercado que se subtraía de Portugal, como foi o caso da Revolução do Porto em 1820. Mas, em geral, na “fase pós-independência, as trocas comerciais não se interromperam, ainda que as novas situações (de mercado e política) tenham contribuído para um significativo abrandamento” das relações comerciais.185 Ainda assim, o comércio entre Portugal e o Pará 182 FRAGOSO. João Luís R. O arcaísmo como projeto: Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro c. 1790-c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 99-100. 183 Das 15 empresas de longa distância estudadas por Fragoso nos anos de 1812, 1813, 1814, 1816, 1817 e 1822, os negociantes estavam ligados ao tráfico de africanos, ao comércio do trigo colonial, do charque e eram importantes consignatários no comércio português. Cf. FRAGOSO. João Luís R.; FLORENTINO Manolo. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. 184 RICCI, Magda. Entre portos, comércio, e troca culturais: os portugueses e as lutas sociais na Amazônia – 1808-1835. In: MATOS, Maria Izilda; SOUZA, Fernando de; HECKER, Alexandre. Deslocamentos e Histórias. São Paulo: Edusc, 2008, p. 191-194. 185 ALVES, Jorge Fernandes. Os Brasileiros, Emigração e Retorno no Porto Oitocentista. 1993. 451 p. Tese (Doutoramento em História). Porto: Faculdade de letras da Universidade do Porto, 1993, p. 66. 80 continuou ativo. A tabela abaixo evidencia os produtos com os quais eram despendidos mais valores no montante da importação portuguesa. Tabela 8 - Importações portuguesas para o Porto de Belém, durante a década de 1841-50 MERCADORIA Vinhos Sal e vinagre Ferragens e ferramentas Calçados e couros preparados Velas de cera e sebo Manteiga e queijo Carnes Tecidos e manufaturas Drogas e espécies medicinais Pedras preciosas, obras de prata e ouro Azeite de oliva Objetos de cobre Especiarias Moedas de prata e ouro Livros e papeis Armas de fogo Louças Mobílias e móveis Chapéus Quinquilharias Instrumentos musicais Frutas secas e sazonadas Bacalhau e outros peixes Rapé Outros produtos TOTAL DE IMPORTAÇÕES VALOR ABSOLUTO (EM RÉIS) 250:539$615 241:529$307 240:477$154 74:513$798 62:441$980 51:349$926 40:241$737 38:335$508 34:314$603 33:813$218 33:561$680 29:001$775 28:173$805 27:471$200 27:247$313 26:183$967 23:679$881 23:509$956 23:378$842 21:022$898 20:531$765 13:636$707 12:867$267 8:402$844 142:862$180 1.529:088$926 VALOR PERCENTUAL 16,38% 15,79% 15,73% 4,87% 4,08% 3,36% 2,63% 2,51% 2,24% 2,21% 2,19% 1,90% 1,84% 1,80% 1,78% 1,71% 1,55% 1,54% 1,53% 1,37% 1,34% 0,89% 0,84% 0,55% 9,34% 100% Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil nos annos financeiros de [1841-1850] Os navios portugueses traziam variadas mercadorias dentre alimentos, ferragens, cabos, calçados, candeeiros, chapéus de senhora, chumbo, cômodas, cadeiras, drogas, fazendas, livros, louças, obras de latão, cobre, ouro e prata, vinhos, violas, livros e periódicos, entre outros produtos que fazem parte das necessidades cotidianas e outros que são eminentemente símbolos de distinção social.186 O primeiro produto que se sobressai é o vinho, no qual aparece apenas o vinho branco e o vinho tinto. Isso diferencia, por exemplo, Portugal da França que, como veremos 186 Bourdieu destaca a não arbitrariedade da produção simbólica na vida social, afirmando o seu caráter de legitimação das forças dominantes que são expressas através dos gostos de classe e estilos de vida, criando, dessa forma, a distinção social e reafirmando o poder simbólico. Para saber mais, ver: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difusão Editorial LTDA, 1989. 81 adiante, importa uma multiplicidade desse produto. Os condimentos são uma marca registrada entre as importações de Lisboa e Porto, com preponderância do sal do vinagre. O primeiro devia ser mais e o segundo menos essencial, já que a importação de sal somou 213:000$000, enquanto o vinagre reuniu apenas 28:000$000, o que indica que possivelmente, a maior parte dos indivíduos não consumisse vinagre para o preparo dos alimentos. Analisando alguns dos produtos importados como os alimentos, entre eles a carne, a farinha e o sal eram considerados produtos indispensáveis, exceto a carne, pois a maioria da população comia peixe da região. É de se considerar que a Província mesmo produzindo em quantidade considerável açúcar e farinha precisava importar para atender as suas necessidades, haja vista que a maioria da população consumia esses produtos. Em contrapartida, azeite, doce, vinho, bacalhau, castanha, nozes, ameixas eram consumidos por um grupo seleto,187 uma parte dele composta por portugueses que migraram com grande intensidade para a Província a partir da década de 1850. Dos artigos portugueses importados pela Província do Pará, as ferragens e ferramentas tais como enxadas, foices, machados, machadinhas e terçados merecem destaque pelas consideráveis cifras investidas e pela importância que representaram para a agricultura e para outras atividades extrativas, uma vez que só nos anos de 1846 e 1847 chegaram ao Pará vinte e um mil novecentos e sessenta machados, sete mil e trezentos e doze terçados, duas mil e novecentos e noventa enxadas, duas mil e setecentos e oitenta e duas foices e um mil e duzentas e cinquenta machadinhas. O desembarque dessas ferramentas no cais de Belém trouxe oportunidades para o desenvolvimento de diversas funções com esse tipo de ferramentas. Os calçados e couros preparados somaram 74:513$798, o que equivaleu a 4,87% das importações portuguesas. Sendo que a importação desses produtos decaiu ao longo dos anos de 1840. Em 1841 as cifras chegaram a 31:000$000. Por outro lado, em 1849 não passou de 900:000$000. No início da década preponderavam os couros usados na confecção dos calçados, enquanto que no final da década o predomínio era dos calçados prontos, essencialmente os tamancos. Nos anos de 1848 e 1849 chegaram a Belém, vindos do Porto e Lisboa, sete mil cento e cinquenta e três tamancos. Um dado que diferencia Portugal dos outros países concerne aos tecidos. Essa importação é distinguida basicamente pela importação de linho. No mais se importava lã em detrimento da seda vinda da França, do algodão americano e inglês. A importação de linho 187 MACÊDO. Sidiana da Consolação Ferreira. Op. Cit. 82 estava em oitava posição no total da importação portuguesa para a Província. Embora, o vestuário compusesse a diversidade do que se trazia da ex-metropole, esse parece compor o arranjo dos produtos mais sofisticados. Até a instalação da iluminação a gás em 1863 na capital da Província, “o azeite e o sebo eram os únicos combustíveis usados para gerar luz, não existindo regularidade na iluminação pública.188 Esses produtos que abasteciam os candeeiros vinham de Portugal e de outros países. Mas, no que toca a iluminação, chegava à Província as velas de sebo e as de cera. Essa segunda, segundo temos informações, era um objeto que simbolizava zelo. Usar velas de cera no velório, por exemplo, era sinal de apreço e cuidado, uma vez que "a cera continuava sendo algo raro."189 Portanto, assim como o linho, as velas de cera não podiam ser usados pela população em geral. As louças, por sua vez, objetos extremamente requintados, eram provenientes, sobretudo da Europa. Eram objetos para os quais o acesso era raro e poucas famílias puderam adquiri-los antes de 1850.190 Um pouco mais acima estavam os objetos de cobre que incluíam tachos, alguidares e alambiques. O primeiro pode ser considerado um objeto extremamente necessário, sobretudo na casa, mas ocupavam o espaço do recôndito, do escondido, não estando à mostra nas reuniões sociais mais esmeradas. Os móveis eram basicamente os trastes de madeira. As cadeiras do Porto eram das mais conhecidas na Província e apareceram com muita frequência nos inventários. Em geral, os trastes eram objetos sem refinamento, pois embora atendessem algumas necessidades não davam conta das transformações voltadas para a modernização das residências. Como nem todos os importados partiam desse pressuposto, é importante frisar, uma vez que também faziam parte dos produtos importados. Embora estivessem longe da representação de conforto, as cadeiras quando devidamente alinhadas e arrumadas davam o tom dos cuidados relacionados a presença feminina dentro dos lares. Observamos, através dos inventários, que apenas a descrição "cadeira do Porto" agrega valor a estes objetos, ainda que as noções de conforto, nos meados do XIX não estivessem devidamente difundidas. As violas estiveram presentes no Grão-Pará desde as primeiras décadas do século XIX.191 Rabeca, flauta e violão apareciam como os instrumentos europeus mais comuns no país até os meados do XIX, ao contrário da harpa, cítara, cravo e o piano que circularam 188 CRUZ, Ernesto (1952). Op. Cit., p. 116. Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência de urbanização. São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p. 40. 190 GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. Op. Cit. 191 Ibidem, p. 153. 189 83 pouco, antes deste período.192 Porém, a partir de 1850 “o comércio de música e de instrumentos musicais já se estabelecera”,193 mas estes eram importados pertencentes a poucos. Quando falamos da importação de instrumentos oriundos de Portugal, estamos nos referindo aos instrumentos de corda, tais como os violões, o cavaquinho e a rabeca, enquanto os pianos e os instrumentos de sopro eram mais ingleses e franceses. No ano de 1846 o Pará importou de Portugal mil duzentos e sessenta instrumentos de corda, enquanto que da França vieram apenas cinco desses instrumentos. Os livros representam, além das mercadorias para suprir as necessidades básicas ou as mais requintadas, que o conhecimento também atravessou o Atlântico, e estes produtos eram providos na Província principalmente pelas viagens portuguesas. No período colonial tinham um uso restrito. Em Portugal a produção e movimentação dos livros foram limitadas pelas imposições da inquisição.194 Na colônia, os limites eram muito maiores. Foi com a Revolução Constitucional do Porto em 1820 que foi garantida a criação da imprensa e a circulação de obras literárias.195 Depois disso, era comum encontrar anúncio de vendas de livros, tendo eles se tornado “um negócio como outro qualquer nos quadros da economia mundializada da cultura”.196 Entre os "outros" se destacam as pederneiras, os palitos de fósforo, as pedras de cantaria e de cal e o macadame português. Esse macadame foi muito usado na estruturação das ruas de Belém nos meados do oitocentos. O pastor presbiteriano James Fletcher, em 1855, destaca o aspecto da pavimentação das ruas de Belém, que tinham macadame. O aspecto geral da cidade do Pará corresponde ao da maioria das cidades do Brasil, apresentando uma mistura de paredes brancas e telhados vermelhos. O plano em que foi construída não é falta de gosto e regularidade. Possui numerosas praças públicas e ruas que, embora não muito largas, são bem pavimentadas, ou antes macadamizadas.197 Freyre falou que uma das consequências da navegação a vapor foi a importação de macadame, o que significou uma importante inovação para a época. Segundo ele, essa novidade é uma das razões do progresso que os observadores franceses observavam nas 192 ALENCASTRO, Luiz Felipe de (1997). Op. Cit., p. 23-24. SALLES, Vicente (1980). Op. Cit., p. 267. 194 SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis. Do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 195 COELHO, Geraldo Mártires (1989). Op. Cit. 196 COELHO, Geraldo Mártires. O violino de Ingres: Leituras de história cultural. Belém: Paka-Tatu, (2005b). 197 KIDDER, Daniel; FLETCHER, James. O Brasil e os Brasileiros: esboço histórico e descritivo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 189. 193 84 cidades marítimas e fluviais.198 A ruas macadamizadas que, no final da década de 1830, não foram percebidas por Kidder, nos meados de 1850 foram notadas pelos viajantes estrangeiros. Os Estados Unidos, ao contrário de Portugal, não tinham laços históricos firmados com a Província. Em 1826 houve a primeira tentativa de navegar o Amazonas por parte dos Estados Unidos, quando empresários norte americanos formaram a companhia de vapores de New York, exclusivamente para a realização dessa atividade que enfrentou sérias oposições do parlamento e do governo brasileiro199 e acabou indo a falência. Diante disso, a navegação de longo curso foi o caminho encontrado não somente para a colocação dos produtos dos Estados Unidos, mas para a aproximação dos laços com a Província onde estava concentrada uma parte da imensa bacia hidrográfica que era de seu interesse. No caso dos Estados Unidos observe as categorias e subcategorias mais frequentes. Tabela 9 – Importados de maior frequência oriundos dos Estados Unidos Categorias Subcategoria Frequência Categorias Alimentos Alimentos de origem animal 44% Alimentos Processados 85% Bebidas 63% Óleos e azeites 44% Indumentárias e joias Adornos Tecidos e linhas 58% 87% Trabalho e negócios Utensílios para carpinteiro 77,5% Coisas de uso público e/ou privado Tratamentos Diversos medicinais e outros usos Materiais Utensílios e Bens da Vasilhames Produtos para Diversos Subcategorias Fumo botica e de limpeza alimentos para casa animais medicamentos 66% 50% 36,5% 44% 45,5% 37,5% 46,5% Frequência Fonte: Biblioteca Fran-Paxeco. Tabela constituída a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 18401850. Assim como de Portugal, vinham dos Estados Unidos mercadorias de todas as categorias com muita frequência, menos equipamentos que chegavam em menor escala, apesar de constarem algumas vezes. Eram constantes bacalhau, carne salgada, carne de porco, farinha de trigo, manteiga, presunto, bolacha, chá e banha de porco para a alimentação na Província. Os chapéus de palha e as fazendas preponderavam na categoria Indumentária e joias, enquanto que tabuado de pinho era o principal produto destinado ao trabalho de marceneiros e carpinteiros. Tabaco, charuto, sabão, feno, pente, fogão de ferro, espelho e 198 FREYRE, Gilberto (2008). Op. Cit., p. 77. GREGÓRIO, Vitor Marcos., Op. Cit. p. 20; MEDEIROS, Fernando Sabóia. A liberdade de navegação do Amazonas: relações entre o Império e os Estados Unidos da América. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938; PALM, Paulo Roberto. A Abertura do Rio Amazonas à Navegação Internacional e o Parlamento Brasileiro. Dissertação (Mestrado). 2009. 97 p. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. 199 85 caixas abatidas estavam nos ambientes domésticos e públicos. Espermacete, droga, óleo de linhaça e óleo de mamona eram os principais produtos destinados a botica, que eram em sua maioria os óleos, enquanto que de Portugal se destacavam as drogas. Na categoria diversos estavam as bombas, balanças e cascos de tartaruga. A farinha de trigo e as fazendas que vinham em larga escala dos portos de Salem, New York e Boston coincidem com o desenvolvimento do sistema de plantation de algodão no Sul dos Estados Unidos e o cultivo de trigo, bem como o incremento do sistema fabril e a indústria têxtil no Norte. No Sul, a monocultura algodoeira, produzida pela mão de obra escrava significava mais de 50% do valor das exportações norte americanas, além de ser a mais importante fonte de matéria prima para os fabricantes de tecidos do Norte. Além desses fatores determinantes para entender o que se importava dos Estados Unidos, existia uma ideia circundante de civilização, que emanava tanto do Norte quanto do Sul. Para o Norte, isso se refletia na busca de se desenvolver cada vez mais agrícola e industrialmente e na possibilidade de aumentar o mercado consumidor dos seus produtos, utilizando-se para isso da mão de obra livre assalariada e o domínio do litoral atlântico. Já no Sul a ideia de civilização está presente na busca pela expansão para Cuba, Américas Central e do Sul a partir da decadência da economia escravocrata sulista na década de 1850. A Amazônia teve um papel importante neste ensejo,200 tendo sido alvo de incontáveis tentativas de penetração em seus rios. O objetivo era criar uma base territorial sólida a partir de uma perspectiva de um novo colonialismo visando ocupar a Amazônia com milhares de negros norte americanos. O discurso civilizatório fez parte do projeto empreendido pelo tenente da marinha norte americana Matthew Fontaine Maury. A civilização atingiu agora um desenvolvimento tal que já não mais requer o abrigo de Montanhas (...). Agora se delicia no livre intercâmbio entre as nações, e melhor floresce onde o comércio é mais ativo (...).201 O tenente Maury sentia-se o novo Colombo abrindo o comércio e a civilização para a Amazônia. Nesse sentido, o discurso da civilização não era unicamente europeu. Os Estados Unidos, diretamente influenciados pelo comércio Atlântico, também o usava como símbolo do expansionismo almejado. Vejamos se os produtos mais frequentes demonstrados na tabela anterior condizem com os maiores valores arremetidos para a importação norte americana, demonstrados na tabela abaixo. 200 LUZ, Nicia Vilela. A Amazônia para os negros americanos: As origens de uma controvérsia internacional. Rio de janeiro: Editora Saga, 1968. 201 Donald Marquand Dozer apud LUZ, Nicia Vilela. Op. Cit., p. 57. 86 Tabela 10 - Importações norte americanas para o Porto de Belém, durante a década de 1841-50 MERCADORIA Tecidos e manufaturas de algodão Moedas Farinha de trigo e massas alimentares Fumo Sabão Pólvora Chapéus de palha Instrumentos náuticos Chá Carnes, banha e toucinho Madeiras Velas de espermacete Ferragens Máquinas diversas Manteiga Bacalhau e outros peixes Pentes Vasilhames vazios Mobília e móveis Carruagens, seges e seus pertences Outros produtos TOTAL DE IMPORTAÇÕES VALOR ABSOLUTO (EM RÉIS) 903:219$371 498:738$563 468:798$379 141:193$908 126:374$966 110:808$292 48:360$418 36:877$499 40:357$510 31:227$690 30:565$308 23:871$375 21:821$732 20:304$100 18:160$905 17:939$737 16:739$267 16:160$494 9:957$565 7:946$000 105:956$825 2.695:379$904 VALOR PERCENTUAL 33,51% 18,50% 17,39% 5,24% 4,69% 4,11% 1,79% 1,37% 1,50% 1,16% 1,13% 0,89% 0,81% 0,75% 0,67% 0,66% 0,62% 0,60% 0,37% 0,29% 3,95% 100% Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil nos annos financeiros de [1841-1850] Os principais produtos americanos entrados no porto do Pará durante a década de 1841-50, em valores reais, eram agrícolas, sendo que algodão (33,51%), trigo (17,39%) e fumo (5,24%) eram responsáveis por 55,59% das importações norte americanas, ou seja, mais da metade de tudo que chegou daquele país em Belém. Os tecidos de algodão não eram considerados requintados, pois os mesmos sempre aparecem nos relatos dos viajantes quando se referem às vestimentas dos segmentos mais populares. Quando falam das classes mais abastadas, sobressaem as vestes de seda, tafetá, cassa e linho, o que permite pensar que as importações de algodão norte americanas convinham para atender as necessidades mais elementares ligadas ao vestuário. O tabaco em folha ou rama se destacava nas importações norte americanas tanto quanto o rapé vindo de Portugal. Enquanto vinha dos Estados Unidos um produto in natura, provavelmente para os mais pobres, os abastados tinha a disposição no comércio local um artigo processado, símbolo de ostentação, o charuto, que são tratados nos anúncios de jornais como superiores. A mesma loja que oferecia chá verde e preto oriundo dos Estados Unidos 87 disponibilizava charutos ditos superiores, que faziam concorrência com os famosos charutos da Bahia e com os charutos produzidos em fábrica local.202 A farinha de trigo era caracteristicamente americana. Por causa dessa importação em larga escala, foi possível um incremento das padarias, confeitarias, motivadas em grande medida pelo aumento da imigração portuguesa para a Província. A farinha de mandioca, segundo Bates, no final da década de 1850 estava tão escassa que as classes mais pobres estavam passando fome, "os que tinham recursos compravam por um alto preço o pão de trigo, feito com farinha americana". Logo, "esse produto se tinha tornado um item muito oneroso para qualquer pessoa que não tivesse uma renda muito elevada."203 A farinha, que na década de 1840 era um tanto acessível para classes menos endinheiradas , tornou-se um produto de luxo na década seguinte, devido ao encarecimento possibilitado pelo aumento da população e pela agitação do comércio local. Apesar disso, o trigo e seus derivados, pães, bolachas, biscoitos tinham uma ampla recepção na Província, chegando a serem consumidos mil e duzentos barris mensalmente. As moedas, quase exclusivamente moedas de prata somaram 498:738$563, o que correspondeu a 18,50% do total das importações americanas. Além dos Estados Unidos, as moedas vinham também da França e Inglaterra, mas majoritariamente eram trazidas por navios americanos. Elas começaram a ser introduzidas em larga escala no comércio do Pará a partir de 1846. De 1846 a 1850, foram introduzidas na Praça de Belém trezentas e noventa e oito mil e quatrocentas e vinte e quatro moedas de prata, das quais duzentas e cinquenta mil chegaram em navios americanos. Embora as moedas não sejam símbolos de luxo, mas sim de uma necessidade comercial, elas servem para indicar que a modernidade chegava ao Pará, que nesse período experimentava um florescente crescimento econômico, iniciado ainda no final da década de 1830 e, intensifica-se a partir da década de 1840. Assim, "nota-se que o movimento de ascensão da renda interna já se esboça desde o intervalo histórico de 1840 a 1850, prosseguindo ininterruptamente."204 O sabão tomou o quinto lugar na pauta das importações americanas. Antonio Valente ao analisar as moradias de Belém, destacou que um dos ofícios realizados nessas moradias era a produção de sabão.205 No entanto, constantemente chegava de portos americanos sabão já pronto para o consumo, seja para a lavagem de roupas, de louças, de typos, de vidraças ou 202 Treze de maio, 6 de março de 1861, n.9, p. 6. BATES, Henry Walter. Op. Cit. p. 297. 204 SANTOS, Roberto. Op. Cit., p. 11. 205 GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. Op. Cit., p. 158. 203 88 eram usados no banho.206 No início da década de 1840 a Inglaterra também comercializava sabão com o Pará. Em 1840 o brigue inglês City of Perth, trouxe para o Pará 1.759 caixas com sabão. Todavia, a partir de 1848 somente os Estados Unidos forneceu sabão ao comércio do Pará. Mesmo que a partir de 1854 já se encontrasse estabelecida na Rua Longa, uma fábrica de sabão, de propriedade de José do O' de Almeida,207 o sabão norte americano continuou sendo muito comercializado ainda no final do século, mesmo depois da implantação de diversas outras fábricas de sabão em 1895.208 A pólvora era fornecida aos paraenses pelos norte americanos e pelos ingleses. Os norte americanos eram responsáveis por 80% de toda a pólvora chegada ao Pará, os 20% restante vinha da Inglaterra. A pólvora norte americana era de melhor qualidade e mais barata.209 A importação de pólvora americana durante a década de 1840 ultrapassou os 110:000$000. Além de ser usada como munição pelos militares e por outros paraenses, a pólvora chegada a Belém nos meados do oitocentos, também, foi muito usada na fabricação de foguetes (fogos de artifício), pois conforme consta no Relatório da Presidência da Província de 1859, a cidade do Pará contava com a presença de cinco fábricas de foguetes.210 Com o chá foi gasto um valor nada irrisório de mais de 40:000$000. Não é por acaso que é constante nos inventários, que trataremos no próximo capítulo, os aparelhos para chá. Tomar chá se tornou comum, sobretudo entre as senhoras, pois a reunião para tomar chá tornou-se uma prática social recorrente. O chá passou a estar presente nos encontros nas salas de visitas, em que todo um código de etiqueta e gestualidade se originou dessa prática que seguia a tradição inglesa.211 Também eram importados madeira, pau campeche, tabuado de pinho, vasilhames, principalmente de madeira, como barricas, barris e caixas abatidas. Além dos vasilhames de madeira, destacam-se as sacas de gunes. Esses produtos denotam bem a característica dos 206 ALMEIDA. Conceição Maria Rocha de. As águas e a cidade de Belém do Pará: história, natureza e cultura material no século XIX. 2010. 340 p. Tese (Doutorado em História). São Paulo: PUC, 2010. 207 Treze de maio, 22 de julho de 1854, n. 360, p. 6. 208 WEINSTEIN, Bárbara. Op. Cit., p. 114. 209 O francês Eleuthère Irénée du Pont de Nemours, que tinha estudado química com Lavoisier, imigrou para os Estados Unidos em 1800. Lá ele fundou uma fábrica de pólvora negra, a Eleutherian Mills (Fábrica Eleutherian), no estado de Delaware. Du Pont percebeu que a pólvora americana era de má qualidade, então desenvolveu uma nova técnica de fabricação desse produto, que a tornou de melhor qualidade e mais barata que a pólvora britânica. Ver: GOBBI-RICARDO Laurice de Fátima. DUPONT DE NEMOURS: fisiocracia e educação. 2009. 152 p. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual de Maringá - UEM, 2009. 210 Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Pará na segunda sessão da XI legislatura pelo Exmo Snr. tenente coronel Manoel de Frias e Vasconcellos, presidente da mesma provincia, em 1 de outubro de 1859. Pará, Typ. Commercial de A.J.R. Guimarães, [n.d.], p. 38. 211 ABRAHÃO, Eliane Morelli. A casa da fazenda Santa Genebra: morar e viver em Campinas (18501900). Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime. Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011, p. 6. 89 produtos americanos que, em sua maioria, não eram manufaturados industrialmente. Até mesmo os móveis, que eram basicamente as cadeiras de palinha e de balanço e trastes de madeiras eram diferenciados dos móveis vindos da Europa, como os toucadores, os aparadores, os canapés, sofás, cadeiras acolchoadas e poltronas. Porém, é importante lembrar que dos Estados Unidos vinham tanto os móveis prontos como a matéria prima para fabricação. Nos inventários aparecem duas nomenclaturas, cadeiras americanas e cadeiras de madeira americana, o que pressupõe que as últimas eram fabricadas na Província. Mas, além dessa mobília, vinham também, embora em menor escala, burras de ferro (cofres), fogões de ferro e espelhos. As máquinas chegadas a Belém provenientes dos Estados Unidos incluíam, polyoramas, daguerreotypos, balanças, bombas, máquinas de descaroçar, fiar e tecer algodão, máquinas a vapor para diversos usos, prelos e typos móveis. A introdução desses maquinismos simbolizaram notáveis avanços em diversas áreas na Província, que contribuíram significativamente para a modernização da cidade e do interior. Já em 1839 Kidder, ao visitar uma fazenda nos arredores de Belém, testemunhou a presença de máquinas norte americanas de beneficiar arroz.212 A importação das máquinas de fiar e tecer algodão foi incentivada pelo governo provincial pelo decreto n.º 494 de 13 janeiro de 1847, que estabelecia entre outras coisas a isenção dos direitos de importação sobre essas máquinas e suas peças.213 Incentivando ainda a implantação de fábricas que produzissem manufaturas de algodão, esse mesmo decreto estendia o prazo de gozo desses e outros direitos por dez anos. Podemos dizer que as máquinas, com variadas utilidades, foram aos poucos adentrando a Província com mais notoriedade. Outra atividade na cidade que se beneficiou com a importação de máquinas a vapor foi a panificação. Em 1861, Antonio Henriques Carreira, proprietário da "Nova padaria a vapor Estrella do Norte", visando alcançar um público maior, prometia vender mais rápido que outro qualquer por causa da rapidez das suas máquinas a vapor, que estariam aptas a preparar qualquer encomenda. 212 KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de Viagens e Permanências no Brasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo) . Belo Horizonte; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 214. 213 Treze de maio, 27 de fevereiro de 1847, n. 680, p. 2. 90 Figura 2 - Anúncio de uma padaria equipada com máquina a vapor Fonte: Treze de maio, 22 de maio de 1861, n. 3, p. 6. As máquinas também vieram equipar as casas tipográficas com novos prelos que começaram a se expandir no final da década de 1830. Até esse período, o Pará era carente de tipografias e de encadernadores, havendo uma ausência de jornais diários e a primeira publicação local importante foi o livro intitulado Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará, somente publicado em 1839 pela tipografia de Honório José dos Santos. Ainda assim a cidade do Pará foi a sétima no Brasil a possuir uma tipografia.214 Já na década de 1840 foram criadas mais quatro tipografias, o que aumentou em muito o consumo desses produtos norte americanos. Nas décadas posteriores, esses produtos estão cada vez mais sofisticados. Se observarmos a própria composição das letras no anúncio da padaria Estrella do Norte, notaremos que houve um melhoramento na qualidade gráfica dos jornais, por exemplo. Os pentes, essencialmente de osso, passaram a fazer parte do cotidiano da cidade, pois somente em 1846 chegaram ao comércio de Belém trinta mil pentes vindos exclusivamente dos Estados Unidos. Com a chegada desse artigo, as mulheres tinham a disposição um importante objeto de embelezamento, para apresentarem-se nas festas da cidade, religiosas ou cívicas, com suas cabeleiras arrumadas. Os transportes, carruagens, seges e cabriolés, que custavam em média de 800$000 a 1:000$000 cada um eram fornecidos aos paraenses exclusivamente pelos americanos. A Alfândega do Pará registrou entre 1841-49 a chegada de mais de dez desses transportes. Além dos carros, os americanos exportavam para o Pará pertences e peças de manutenção desses veículos, pois se encontrou nas listas de importação rodas, eixos e outras peças para 214 NOBRE, Izenete Garcia. Leitura a vapor: a cultura letrada na Belém oitocentista. Dissertação (Mestrado). 2009. 194 p. Belém: UFPA, 2009, p. 34. 91 carruagens. Em agosto de 1846, referindo-se as carruagens, o vice-presidente da Província João Maria de Moraes escreveu que "são objeto de luxo para uns, para outros o são de primeira necessidade,"215 haja vista que alguns usavam as carruagens como profissão, tais como os cocheiros que viviam dos aluguéis desses veículos. Em fins do século XVIII, pelas ruas de Belém, rodavam apenas doze seges.216 Kidder, ao observar a festa em honra a Nossa Senhora de Nazaré, dá conta que vinha uma banda de música seguida de um piquete de cavalaria [...] Imediatamente após marchava a guarda composta de civis a cavalo e oito ou dez carruagens que, provavelmente, eram todas quantas possuía a cidade.217 Em 1848, mesmo que já tivesse chegado mais dez carruagens dos Estados Unidos elas não chamaram a atenção dos viajantes, mas em 1859 Bates viu "sessenta veículos públicos, leves cabriolés, aumentando muito a animação das praças, ruas e avenidas".218 Por volta de 1870 as carruagens já eram tão comuns em Belém, que foi possível em duas esquinas do centro de Belém serem fotografadas por Felipe Fidanza oito carruagens, sendo quatro em cada esquina. Figura 3 - Carruagens no Centro de Belém, cerca de 1870 Fonte: Fotografias de Felipe Augusto Fidanza, cerca de 1870 - Esquina da Igreja das Mercês (Coleção Alphons Stübel. Acervo Leibniz-Insrirut Für Länderkunde) Entre os “Outros produtos”, que somaram a monta de mais de 105:000$000, destacam-se os palitos de fósforo, as pederneiras, os relógios de parede e para cima de mesa, 215 Treze de maio, 12 de agosto de 1846, n. 628, p. 4. MELLO-LEITÃO, Cândido de. O Brasil visto pelos ingleses. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 33. 217 KIDDER, Daniel Parish. Op. Cit., p. 226. 218 MELLO-LEITÃO, Cândido de. Op. Cit., p. 33. 216 92 os papéis para embrulho e papelão, fogos de artifício, vassoura de piaçaba, feno, óleos medicinais, espermacete em velas e para iluminação, tijolos e cimento. Entre 1846 e 1850 chegaram à Alfândega do Pará duzentos e oitenta e três relógios de parede e de mesa. Desses, duzentos e quinze ou 76% vieram de portos americanos. Destacam-se como símbolo de modernidade os palitos, que vem substituir as pederneiras, instrumento utilizado para produzir fogo. Os fósforos, chegados ao Rio em meados do século, criam formidáveis economias de tempo, quando substituem essas e outras formas tradicionais de acender lenha, seja nas rústicas trempes de três pedras das mulheres pobres, seja nos sofisticados fogões de ferro das pessoas de renda média e alta. Fósforos de atrito, uma invenção européia da década de 30, só estão disponíveis no Rio nos anos 60 do século XIX, mas nem sempre disponíveis no resto do país (Marx, 1975, p. 279). Até então, usase a pederneira, sílex que produz centelhas quando percutido ou atritado por peças de metal, em especial, de ferro. Mas a obtenção da chama depende de lenha nem sempre disponível, de gravetos sem umidade ou da manutenção de brasa acesa no fogo morto.219 Os fósforos significaram um melhoramento, sobretudo para as atividades domésticas. É curioso que no Rio de Janeiro este produto só tivesse disponível em 1860, uma vez que nos idos de 1846 esses produtos já estavam disponíveis na Província do Pará, vindos dos Estados Unidos e da Inglaterra, mas a maior parte dessa importação era americana. Como marca registrada dos produtos americanos entrados no porto do Pará no meados do oitocentos, tem-se os artigos provenientes do sistema econômico agrário que aquele país experimentava, com a introdução de algumas manufaturas industrializadas, mas limitadas às indústrias de base, como é o caso do sabão, pólvora, chapéus de palha, pentes de osso, mobílias e móveis de madeira. Mas em se tratando da importação inglesa, quais os produtos que tornaram-se símbolos daquele país. A tabela abaixo mostra a frequencia com que as importações inglesas chegavam ao cais belenense? Tabela 11 – Importados de maior frequência oriundos da Inglaterra Categorias Subcategoria Frequência Alimentos Alimentos processados 86% Bebidas 59% Coisas de uso público e/ou privado Louças Transportes 72,5% Categorias Subcategoria 35% Indumentári as e joias Tecidos e linhas 93% Tratamentos Medicinais e outros usos Produtos para botica e medicamentos 31% Trabalho e negócios Diversos Armamento e Metais e ligas Produtos Utensílios para ferreiro Diversos munições metálicas químicos e ferragens 48% 69% 31% 69% 79,5% Frequência Fonte: Biblioteca Fran-Paxeco. Tabela constituída a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 18401850. 219 COSTA, Suely Gomes. Op. Cit., p. 59-82. 93 Da Inglaterra, sobressaíam as fazendas entre todos os produtos importados. Em segundo lugar estavam os alimentos processados com destaque para a manteiga e o queijo. Em seguida situavam-se as louças (de metal), que quase sempre não eram especificadas e, em quarto lugar, predominavam o estanho, chumbo, cobre, ferro, aço, zinco, flandres, latão, pólvora, chumbo para munição, eixo de ferro para carro, roda de ferro, âncora, ancorete, barra de ferro, ferragem e outros objetos de ferro como bigorna, fole e torno. Todos esses materiais necessitam de matéria prima proveniente da metalurgia, o que já vinha se desenvolvendo desde o século XVIII, tendo os ingleses como pioneiros nesse processo. Outros produtos que se destacavam nas categorias Bebidas, Produtos para botica e medicamentos e Produtos químicos eram a cerveja, óleo de linhaça, salitre, barrilha, alcatrão e cal, e eram resultados do aprimoramento da indústria química que a partir do final do século XVIII começou a sistematizar seus processos de fabricação, através do uso de balanças, termômetros, recipientes com controle de volume, além do aumento das matérias primas disponíveis para o fabrico de novos materiais até então desconhecidos do homem ou de difícil produção. E, a partir do século XIX, passou a compreender o processo de fermentação alcoólica para a produção de bebidas. As palavras “indústria”, “fábrica”, “cientista”, “ciência moderna,”220 de acordo com Hobsbawm, eram cunhagens adequadas para o contexto inglês ao qual estamos tratando e que possibilitou os avanços da conhecida “era das revoluções.” A Província do Pará sentira os reflexos desses avanços e dessa mudanças, pois não é de estranhar que a maioria das mercadorias inglesas que aqui aportavam faziam parte desse processo geral. O arrefecimento do comércio entre o Porto e o Brasil após a independência, além dos fatores políticos tem com esse quadro uma relação significativa, uma vez que O senso prático procurava o desenvolvimento das relações econômicas com o Brasil, agora mais difíceis porque inscritas num quadro concorrencial, dominado pela Inglaterra, fortemente industrializada e competitiva, promovendo o investimento de ponta e as transferências de capital para o processo de modernização.221 A reordenação da economia-mundo “incluía o Brasil na órbita central dominada pelos interesses britânicos.” Há um reclame por parte do Porto em 1844 de que o “consumo do linho substituído pelo algodão inglês mais barato,” assim como se tem notícias de que vários outros produtos como as ferragens, as fechaduras, as foices e enxadas estão perdendo o Brasil como mercado consumidor. Enquanto Portugal perdia um dos seus mais fortes 220 221 HOBSBAWM, Eric J. A Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 15. ALVES, Jorge Fernandes. Op. Cit., p. 65. 94 mercados consumidores, a Inglaterra estreitava cada vez mais os laços comerciais com o Brasil. Para Richard Graham, no período de 1831 a 1889, os interesses britânicos no Brasil se concentravam em torno de três questões estreitamente relacionadas, quais sejam, a escravatura, o comércio e os investimentos.222 Tendo em vista o comércio, que já vinha se disseminando desde a abertura dos portos - embora os produtos ingleses já tivessem um espaço dentro das importações brasileiras ao menos desde o tratado de Methuen, estabelecido entre Portugal e Grã- Bretanha em 1702-1703 -, observemos os principais produtos que passaram a circular com amplitude nos meados do oitocentos. A tabela abaixo faz uma demonstração dos números da importação de produtos ingleses na Província. Tabela 12 - Importações inglesas para o Porto de Belém, durante a década de 1841-50 MERCADORIA Tecidos e outras manufaturas Manteiga e queijo Louças de todas as espécies e vidros Metais e ligas Carvão de pedra Ferragens Moedas de prata Pólvora Chapéus de sol Vinhos diversos Sal Cerveja Sabão Aguardente, e bebidas espirituosas Frutas sazonadas e secas Tintas Farinha de trigo e seus artefatos Outros produtos TOTAL DE IMPORTAÇÕES VALOR ABSOLUTO (EM RÉIS) 1.171:453$095 71:808$257 63:525$013 62:510$327 53:142$200 40:730$783 33:920$000 27:417$000 21:150$000 16:353$877 12:649$054 11:132$539 10:479$200 10:249$138 5:123$659 3:556$344 3:507$000 92:401$538 1.711:109$024 VALOR PERCENTUAL 68,46% 4,19% 3,71% 3,66% 3,11% 2,38% 1,98% 1,60% 1,24% 0,96% 0,74% 0,65% 0,61% 0,60% 0,30% 0,21% 0,20% 5,40% 100% Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil nos annos financeiros de [1841-1850] Os dados acima são relevantes porque revelam os valores investidos em cada produto. De acordo com os dados da Alfândega do Pará, acerca das mercadorias estrangeiras importadas e despachadas para consumo, os produtos mais importados conferem com o dados obtidos nos jornais ainda que não fosse uma fonte oficial. Assim, percebemos que o Pará já na 222 GRAHAM, Richard (2004). Op. Cit., p. 168. 95 década de 1840 é eminentemente um consumidor dos tecidos ingleses. Preponderam os tecidos e outras manufaturas de algodão, lã, linho e seda. Os tecidos de algodão superam em muito nesse consumo, uma vez que são responsáveis por 91% do valor total da importação de tecidos. Em seguida está a lã, o linho e por último a seda, esta representando pouco mais de 1% de todo o importância despendida na aquisição de tecidos. Mas o fato é que, durante toda a década de 1840, os tecidos representaram quase 70% de tudo o que veio da Inglaterra para esta Província. Com efeito, o consumo dos produtos manufaturados britânicos serviria para dar forma às relações anglobrasileiras entre os anos de 1831 a 1889, sendo os têxteis, especialmente os artigos de algodão os principais artigos importados, representando mais de 65% das importações brasileiras da Grã-Bretanha até 1870.223 Essa era uma tendência corrente para as importações inglesas em se tratando de Brasil e não apenas do Pará. Podemos dizer que os tecidos são a grande representação da importação inglesa, embora outros produtos também sejam símbolos, tais como a manteiga, os queijos, os metais e ligas metálicas, as ferragens, as moedas e a pólvora. De resto, as importações inglesas serviam de aditamento, frente a concorrência dos outros países estudados. Algumas mercadorias figuraram na pauta de importações inglesas para o porto da Província do Pará durante toda a década de 1840,224 como é o caso da maioria dos itens listados na tabela acima. Porém, alguns itens passaram a apresentar valores expressivos somente a partir de 1846, como as moedas de prata, com valores acima de 6:000$000, os chapéus de sol, acima dos 6:000$000 e as tintas, com valores acima de 1:000$000. No caso das tintas, que somente vieram a partir de 1847, essa aquisição pode estar relacionada com o melhoramento da estrutura urbana que já era notável nesse período. Outras mercadorias, no entanto, que no início da década representavam valores expressivos, aguardente, licor e outras bebidas espirituosas, frutas secas e sazonadas, sabão, vinhos e farinha de trigo, ao longo da década deixaram de ser importadas da Inglaterra, ou tiveram sua importância diminuída no comércio entre ingleses e paraenses. De maneira geral, o consumo dos importados ingleses e de outras procedências chamam para uma reflexão a respeito do que Gilberto Freyre denominou de "europeização" da população brasileira. Contudo, essa europeização não necessariamente está relacionada ao luxo, pois pode também está coesa com um conjunto de necessidades mais gerais de variados 223 GRAHAM, Richard (2004). Op. Cit., p. 172. Dados compilados a partir de seis anos financeiros da década de 1840, 1841-42, 1842-43, 1846-47, 1847-48, 1848-49 e 1849-50. Ver: Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil no anno financeiro de [1841-1850 ]. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1848-1855. 6 v. 224 96 sujeitos históricos daquela realidade social. Se utilizarmos o exemplo dos tecidos de algodão, veremos que era um tecido que vestia as classes menos favorecidas da cidade e do interior da Província, como aparece repetidamente no relato dos viajantes. Por outro lado, se tomarmos como exemplo a manteiga inglesa, inúmeras vezes citadas nos anúncios dos jornais, veremos que não era um produto acessível para a maior parte da população, pelo menos não cotidianamente. Segundo Darcy Ribeiro, os artigos manufaturados, os procedimentos técnicos, os serviços e os hábitos de vida e consumo gerados pela revolução industrial, acarretam mudanças na sociedade brasileira, iniciando um processo de urbanização em moldes modernos antes mesmo do advento da industrialização propriamente dita.225 E para um país que não estava vivendo tão velozmente um processo de industrialização? Quais os produtos oferecido ao consumo? A tabela abaixo destaca os produtos que mais estavam presentes nas embarcações chegadas da França. Tabela 13 – Importados de maior frequência oriundos da França Categorias Subcategoria Frequência Categorias Subcategoria Alimentos Alimentos processados 62% Indumentárias e joias Bebidas Adornos 81% 53% Tecidos e linhas 72% Vestuário Trabalho e negócios Papéis 38% 38% Coisas de uso público e/ou privado Diversos Leitura: livros Louças Bens da Objetos de Diversos e escritório casa vidro 43% 28,5% 38% 38% 33,5% 67% Frequência Fonte: Biblioteca Fran-Paxeco. Tabela constituída a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 18401850. Iluminação Dos quatro países analisados era frequente a importação de bebidas. No entanto, enquanto de Portugal vinham dois tipos de vinhos, dos Estados Unidos, quase que unicamente chá e da Inglaterra essencialmente cerveja, da França vinham uma diversidade: vinho branco, vinho tinto, vinho Bordeaux, vinho muscatel, licor, champanhe e genebra. E na categoria Alimentos, destacavam-se o queijo e a manteiga, apesar desses alimentos serem predominantemente ingleses. Quanto as Indumentárias e joias, importavam-se chapéus de seda, fitas, lenços de seda, leque, miçangas, fazendas e muitos sapatos. Apesar dos adornos virem em apenas 53% das viagens, se eliminarmos a cidade de Sète, esta porcentagem aumenta para 74%, haja vista 225 RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização. Petrópolis: Vozes, 1983. 97 que de lá não se importou adorno uma única vez. Importava-se também velas de sebo, vidro para candeeiro, livros, louça, porcelana, manta, faca, terçado, espelho e vidros com muita regularidade. É notório que da França procede alguns objetos diferenciados que não vem comumente de outro país, como é o caso de determinados tipos de vinho, leques, lenços, chapéus de seda e porcelana. Mesmo os Estados Unidos que comercializavam muitos chapéus, mas nenhum era de seda, mas sim de palha, e de Portugal prevaleciam os chapéus de lã. Ainda que a Inglaterra tenha mandado tantas louças não se registrou louças de porcelana, mas em sua maioria de ferro e cobre. Portanto, o conceito de civilização na França encontra equivalência nos objetos materiais e a Província do Pará, além de importar os produtos, importa também civilização, pois já tendo na França um processo consolidado teria que ser difundido. O conceito de civilização indica com clareza, em seu uso no século XIX, que o processo de civilização – ou, em termos mais rigorosos, uma fase desse processo – fora completado e esquecido. As pessoas apenas querem que esse processo se realize em outras nações, e também durante um período, nas classes mais baixas de sua própria sociedade. Para as classes alta e média da sociedade, civilização parece firmemente enraizada. Querem acima de tudo, difundi-la e, no máximo, ampliá-la dentro do padrão já conhecido.226 Nesse sentido, a civilização deveria ser disseminada e apropriada de acordo com a aquisição dos objetos a serem usados no cotidiano, em ocasiões esporádicas ou simplesmente poderiam não ser usados, mas somente apreciados. Seja qual for o fim, as coisas e as ideias atravessaram o Atlântico com muito mais regularidade nos meados do oitocentos. Ainda que as coisas vindas da França sejam corriqueiramente interrelacionadas as ideias de civilização, podemos conferir também que havia produtos que não devemos incluir nesse conceito. A tabela abaixo mostra em valor absoluto e percentual os principais produtos que caracterizavam a relação da Província do Pará com portos franceses. Esses dados são relevantes porque demonstram a importância monetária dos produtos, enquanto que a tabela anterior mostrou a frequência de chegada dos itens no cais belenense. Observe os valores e os produtos da importação francesa. 226 ELIAS, Norbert. Op. Cit., p. 113. 98 Tabela 14 - Importações francesas para o Porto de Belém, durante a década de 1841-50 MERCADORIA Moedas de prata Tecidos e outras manufaturas Vinhos e bebidas espirituosas Armamento e munição Couros preparados e calçados Manteiga e queijo Ferragens Papeis e livros Chapéus Farinha de trigo e seus artefatos Louças de todas as espécies e vidros Vidros Terçados Quinquilharias e joias Obras de armador, bordador e sirgueiro Drogas e espécies medicinais Azeites e óleos Perfumes e sabonetes Outros produtos TOTAL DE IMPORTAÇÕES VALOR ABSOLUTO (EM RÉIS) 205:325$680 157:678$669 126:749$974 88:340$700 60:904$763 53:094$550 48:845$030 38:539$255 26:345$100 25:287$350 20:616$163 18:188$760 15:240$554 10:884$171 10:661$918 8:688$552 8:240$320 6:435$600 56:401$566 986:468$675 VALOR PERCENTUAL 20,81% 15,98% 12,85% 8,96% 6,17% 5,39% 4,95% 3,91% 2,67% 2,56% 2,09% 1,84% 1,54% 1,10% 1,08% 0,88% 0,84% 0,65% 5,73% 100% Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil nos annos financeiros de [1841-1850] Das mercadorias francesas, entradas no porto de Belém durante essa década, as moedas de prata representaram a maior monta, com mais de 200:000$000. No entanto, nos primeiros anos de 1840, esse produto nem figurava na lista de importação. Somente em 1846 entraram quase 102:000$000 em moedas de prata vindas da França, e no mesmo ano chegou da Inglaterra e Estados Unidos juntos mais de 100:000$000 desse mesmo produto, o que pode indicar que o comércio interno florescia, e necessitava de moedas para o desenvolvimento de seus negócios mercantis. Outro produto que se destacou nas importações francesas foram os tecidos e manufaturas de algodão, lã, linho e seda. Todavia, havia uma grande diferença entre as importações francesas e inglesas. No caso da França, a importação de algodão caminhava paralelamente a da seda, pois os tecidos e manufaturas de algodão somaram 61:576$759 e os de seda 60:099$991. A lã ocupava o terceiro lugar na pauta de importações de tecidos com cerca de 32:000$000 e o linho somou menos de 4:000$000, o que significou pouco mais de 2% do total de importações de tecidos. A partir de 1846 começou aparecer na lista de importação as manufaturas de tecidos, as roupas feitas, que vinham de Portugal e da França, mas tinham como principal procedência os portos franceses. 99 Quanto às bebidas, além de apresentarem uma regularidade por constarem em 81% de todos os navios que chegaram da França, os valores gastos com estes produtos, que como já vimos eram muito variados, eram o terceiro maior, perdendo apenas para as moedas e os tecidos, representando 12,85% de tudo o que se importava daquele país. As armas de fogo, o chumbo em munição e as espoletas eram provenientes prioritariamente dos portos franceses e portugueses, com destaque para as importações francesas, que somaram ao longo da década estudada mais de 88:000$000. Somente no ano de 1847-48 desembarcaram na Alfândega do Pará duas mil e duzentas e sessenta e cinco armas de fogo227 vindas da França, entre as quais havia lazarinas, mosquetes, carabinas, bacamartes, espingardas e fuzis. Os calçados, sapatos, botas de borracha, tamancos e os materiais usados na confecção dos mesmos, isto é, os couros preparados e envernizados e o cordovão, ocuparam lugar de destaque nas importações francesas para a Província do Pará no período de 1841-50, somando 60:904$763, o que equivaleu a 6,17% do total de importações daquele país. Assim, como não era comum a importação de roupas feitas no início da década, mas somente as matérias primas usadas na sua fabricação, o mesmo se observa para os calçados, que se tornam mais volumosos quanto mais se aproxima o final da década, ao passo em que diminui a importação dos materiais usados na sua produção. Os livros em branco e impressos, os papeis para escrever, para imprimir, para forrar paredes, para música, as balas de papel usadas em tipografias e os papelões que chegavam em Belém nos navios vindos da França com frequência de 38% para os papeis e 28,5% para os livros, estiveram nas listas de importações ao longo de toda a década de 1840, com valores anuais variando entre quatro e 9:000$000, somando em seis anos 38:539$255. Merecem destaque não pelas cifras, mas pela importância que representaram para a modernização de Belém, os papeis para música e para forrar paredes, que chegavam a Belém apenas de Portugal e França. Segundo Eliane Morelli "os papéis de parede e as cortinas de tecido adamascado davam um toque de requinte às salas de jantar,"228 e expressavam o bom gosto das senhoras no tocante a decoração de suas casas. Em 1847-48, foi registrada da França a importação de 234 folhas de papel para música.229 Dos oitocentos e quarenta e dois livros em branco entrados no porto do Pará em 227 Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil no anno financeiro de 1847-48. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1854. p. 114. 228 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2011). Op. Cit., p. 9. 229 Ibidem, p. 123. 100 1849-50, oitocentos e trinta eram provenientes de portos franceses230 e das quatro mil e trezentas e oitenta resmas de papel chegadas na Província naquele mesmo ano, quatro mil e cento e setenta e três resmas, ou seja, 95% vieram da França.231 Ainda outros produtos se tornaram muito característicos da relação que o Pará tinha com a França. Um desses produtos eram os vidros, tais como, vidros para espelho, garrafões e vasilhames de vidro, vidro para vidraças e caixilhos. Dentre esses, apenas os vidros para vidraças e caixilhos eram exclusivos da França. Com isso, o ano de 1847, período em que pela primeira vez se importou esse material, demarcou uma importante transição na Província, caracterizada pela mudança na aparência das casas belenenses. Mudança que foi notada por Bates. Até 1848 as casas não tinham vidraças, nem mesmo as casas de campo, as rocinhas de que com tanto agrado escrevem os dois naturalistas ingleses. As janelas eram gradeadas ou tapadas com gurupemas — "um tecido de palha tão miúdo, que apenas se distingue o vulto de quem está por detrás delas". Grades e gurupemas que, como as rótulas em Portugal, tinham por fim impedir que se vissem as mulheres.232 A mudança das janelas de gurupema para as janelas de vidro significaram um aprimoramento nas moradias, pois a vidraça das janelas em substituição as janelas de palha e as rótulas de madeira "promoveu uma alteração nos valores familiares, deixando o espaço privado da casa exposto aos olhares dos transeuntes, que poderia ser uma medida ostentatória para os ricos ou expor a pobreza dos mais pobres".233 James Fletcher, em 1855, referindo-se as moradias de Belém, destaca que havia um misto de janelas com gelosias (rótulas) e vidraças. Somente as salas da frente são de teto forrado, a não ser nos edifícios mais importantes em que todas as salas o são. Janelas com gelosias são mais frequentes do que com vidraças, porém, algumas casas têm esses dois complementos, dando-se preferência às gelosias na estação seca.234 As quinquilharias que incluem botões, miçangas, bijuterias, corais, joias, bocetas para tabaco e charuto e toda espécie de miudezas de diversos usos, eram usadas principalmente como adornos para pessoas e roupas. Bates, em 1851, referindo-se à classe superior da população relatou a presença dessas bocetinhas, e enfatizou que eram de muito 230 Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil no anno financeiro de 1849-50. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1855, p. 100. 231 Ibidem. p. 123. 232 MELLO-LEITÃO, Cândido de. Op. Cit., p. 31. 233 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 83. 234 KIDDER, Daniel; FLETCHER, James. Op. Cit., p. 189. 101 luxo. "Essa classe não tem o hábito de fumar, mas todos tomam rapé, que é guardado em bocetinhas de prata e de ouro, de grande luxo."235 Diferentes artigos devem ser destacados pela importância simbólica são os perfumes, as alfazemas, as águas de colônia e os sabonetes que eram tipicamente franceses. Entre os anos de 1841-50 chegaram 6:435$600 desses produtos, que tinham um significado simbólico na Província, relacionado a novos hábitos de higiene e de cuidar do corpo. Diferentemente do sabão, provavelmente o apetrecho mais usado para o banho, o sabonete estava ligado a um luxo que por certo não podia ser usado pela maior parte da população, pelo menos não cotidianamente. Conceição Rocha, ao tratar do ato de tomar banho, dizia que "o banheiro, mesmo de dimensões reduzidas, tornava possível a observação do corpo, a aplicação do sabão/sabonete, a limpeza das partes íntimas." Portanto, para essa prática, que no século de XIX se tornou de foro cada vez mais íntimo, o sabonete se tornou essencial para agregar intimidade e refinamento. Os "Outros produtos" que representaram 5,73% das importações francesas não tiveram fluxo constante no comércio entre a França e o Pará durante a década de 1840-50, eles foram expressivos em apenas um período ou ano da década. No geral, cada um desses produtos não representa nem um décimo de 1% do total das importações francesas. Mas entre eles destacam-se as velas, o sal, o vinagre, importações predominantemente portuguesas e as tintas, ferro e aço, que eram primordialmente inglesas. Diversos outros produtos chegaram ao porto do Pará vindos da França. Alguns desses itens tipicamente franceses que são símbolos dessa relação comercial entre a Província e esse país europeu são, os leques para senhoras, instrumentos musicais de sopro, caixas de música, realejos, penas de metal para escrever, relógios de algibeira, dentre tantos outros. Somente no ano de 1847-48 a Alfândega do Pará registrou a entrada de dezessete mil e quinhentos e vinte e quatro penas de metal vindas da França. O francês François Biard ficou admirado pela quantidade desse artigo que ele encontrou no comércio belenense. Perdera uma caneta e não havia jeito de achar uma outra; por onde andei a procura me ofereciam, ao invés de caneta, lancetas para sangrar [penas de metal], objeto esse que havia por toda parte à venda no comércio do Pará; mas esqueci-me de me informar a razão dessa abundância tão estranha.236 Os relógios franceses diferenciavam-se dos relógios americanos, pois estes últimos eram para a casa, eram de parede ou para cima de mesa, enquanto que os relógios franceses 235 BATES, Henry Walter. Op. Cit, p. 140-141. BIARD, François Auguste. Dois Anos no Brasil (1858-1859). Brasília: Edições do Senado Federal, 2004. p. 132. 236 102 eram para uso pessoal. Mais requintados que os relógios americanos, eram os de algibeira usados como símbolo de distinção social. Com este produto uma nova noção de tempo foi estimulada, passando a compor a indumentária dos brasileiros, fazendo com que "o tempo imperial entrasse em sincronia com o da modernidade européia."237 Nos meados do oitocentos Bates, referindo-se as maneiras e costumes da classe mais alta, escreve que "todos os cavalheiros, e de fato a maioria das senhoras, usam relógio de ouro presos a uma corrente."238 A entrada desse artigo na capital da Província do Pará serviu como elemento complementar na modernização dos costumes à moda inglesa, porque com eles as senhoras tinham como seguir fielmente os horários dos chás, cafés, jantar, ou outra cerimônia que se prestassem a oferecer a amigos ou a elite local. É ainda necessário ressaltar que no mapa das mercadorias estrangeiras entradas na Alfândega do Pará em 1848-49 há uma categoria denominada objetos de moda, responsável por 200$000 de importação. Categoria essa que não existe para nenhum outro país estudado. Isso é elucidativo de que muitos objetos vindos da França estavam agregados de valores culturais ligados a um processo de refinamento material e simbólico. Entretanto, como já foi demonstrado, através da descrição dos produtos acima, nem sempre esses produtos estavam ligados à beleza, à moda e ao luxo. O gráfico abaixo mostra de forma mais detalhada, os objetos que mais sobressaíam para cada contexto. Gráfico 5 – Importados de maior relevância para cada país Fonte: Biblioteca Fran-Paxeco. Gráfico constituído a partir de dados publicados no jornal Treze de Maio, 18401850. 237 238 VAINFAS, Ronaldo. (Org.) Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 538. BATES, Henry Walter. Op. Cit., 1944. p. 141. 103 Pode-se traçar um quadro comparativo entre a importação dos quatro países abordados, pois já estão evidentes os produtos que representavam cada um deles. De modo geral, a capital paraense importa de Portugal em larga escala alimentos, bebidas, itens do lar e vestuário. Já os Estados Unidos ganha destaque nos produtos provenientes da terra como é o caso do algodão, das fazendas, das madeiras e da farinha de trigo, enquanto que os produtos que realçam a Inglaterra são resultados de aprimoramentos técnicos como é o caso das louças, dos tecidos, dos metais, dos transportes. No caso da França os produtos, em grande parte, estão eminentemente relacionados ao requinte como, por exemplo, os enfeites, adornos e as bebidas. Portanto, considerando essas especificidades dos produtos infere-se que o Pará estava concatenado aos grandes centros econômicos, experimentando processos pelos quais também passavam o próprio Rio de Janeiro. Observe as semelhanças entre os produtos importados pela capital do Império e a capital belenense. Embarcações multiplicam-se, trazendo para o Rio muitos e os mais diferentes objetos. São, sobretudo, os de metal – ferramentas as mais variadas, sempre associadas também a usos domésticos. Utensílios de metal substituem os de madeira, como talheres, em especial facas e vasilhames de cerâmica, fogões de pedras e barro; multiplicam-se os artigos de fiação, de tecelagem, de costura, como fusos, agulhas, alfinetes, botões, colchetes, tesouras, fios de linha em novelos, rendas, tecidos finos - em grande parte produzidos na Inglaterra e na França.239 Os objetos materiais com o seu teor útil ou simbólico aportavam no porto de Belém vindos de cidades como França e Inglaterra, que ponderavam terem alcançado um alto nível de civilização e desenvolvimento muito propiciado pelas mudanças que o século XIX proporcionou. Os Estados Unidos viviam um projeto expansionista para o qual a Amazônia tinha uma participação obrigatória e a antiga metrópole continuava relacionada por seus laços de maternidade intermináveis. Os laços fortes da antiga colônia com Portugal, a agricultura no Sul dos Estados Unidos, o desenvolvimento do sistema fabril no Norte, a Revolução Industrial, e o desenvolvimento do conceito de civilização não são fatores únicos, porém são fatores decisivos para a compreensão das coisas e das ideias que chegaram a partir de 1840 no porto de Belém. Motivados por interesses múltiplos no conjunto das relações internacionais esses portos emissores enviaram para o porto de Belém noções de cultura, civilização, que se disseminaram simultaneamente ao aumento do movimento marítimo, demarcando o início de um processo de disseminação do afluxo de importados. 239 COSTA, Suely Gomes. Op. Cit., p. 65. 104 CAPÍTULO III: IDEIAS E PRODUTOS NO COTIDIANO DA CIDADE III. I. Dos muitos usos dos produtos importados A Belém dos meados do século XIX esteve permeada pela presença dos objetos importados. As mudanças fulcrais que tem início ainda na primeira metade do século XIX, como o empoderamento de hábitos burgueses,240 a adoção das fronteiras entre o publico e o privado,241 o incremento das relações transatlânticas, possibilitaram em âmbito micro transformações relacionadas ao mundo da casa, do trabalho, da diversão ou mesmo as maneiras de tratar as doenças, de vestir-se ou alimentar-se. O incremento das navegações de longo curso, a partir de 1840, propiciou a adoção de hábitos inspirados nos países “civilizados”, que no Pará foram incorporados por sujeitos de distintos níveis de riqueza. Nos rastros das navegações de longo curso acompanhamos as viagens de uma diversidade de produtos rumo a capital da Província do Pará. Eram objetos de muitos tipos, dimensões e significados. Mas depois que eles chegavam ao porto, quais os seus destinos? Tais destinos eram muitíssimos variados, podendo ser as lojas de secos e molhados, as lojas de fazendas, as boticas, as casas dos carpinteiros, ferreiros, costureiras, as bibliotecas particulares ou o interior das igrejas. No entanto, infere-se que a maior parte deles era destinada ao comércio da cidade que estava em constante crescimento e, posteriormente, às residências das famílias belenenses. Eram objetos para uso doméstico, tanto para consumo coletivo quanto individual. Para além de entender a chegada dos objetos importados no porto da capital é necessário conhecer, ainda que de maneira parcial, os consumidores desses produtos. Portanto, é preciso identificar no meio social a existência desses objetos, assim como suas possibilidades de uso. “Dos muitos usos dos produtos importados”, buscará demonstrar várias dessas possibilidades, tomando como base o fato de que os produtos importados eram consumidos por pessoas com níveis de renda ou de riqueza distintos e que tinham cotidianos também diferenciados. Pensemos em um cotidiano que não se confunda com história da vida privada, uma história da casa ou exclusivamente da domesticidade, mas que abranja outros aspectos da vida comum, na casa ou na rua, na vida privada ou na pública. Nesse sentido, o sistema de hábitos 240 SENNETT, Richard. O declínio do homem público: As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 241 Ibidem. 105 e o uso dos objetos, bem como a socialização por eles produzida, sobre a qual se constrói a cultura humana, formam as estruturas do cotidiano,242 portanto a história. Pensando nisso, foram analisados 52 inventários de pessoas de diferentes níveis econômicos e sociais da capital e do interior da Província, sendo que a maior parte dos inventariados morava na capital. No entanto, 2 não entraram na análise das faixas de fortuna por não conterem monte-mor243 do inventariado, mas foram considerados por conterem itens importados. O objetivo é identificar ou não a presença dos objetos descritos nas cargas das embarcações aportadas na capital. O número de inventários está distribuído nas três décadas estudadas. Os inventários são fontes que descrevem os bens de um indivíduo falecido que devem ser partilhados.244 Entre os tipos de bens que podem ser descritos estão os bens móveis, os bens de raiz e os semoventes. A partir da análise do inventário é possível apreender as condições materiais da vida do inventariado, bem como a inserção do sujeito na sociedade a qual foi partícipe, embora nem sempre esteja tão evidente. O interesse dessa pesquisa é verificar em meio aos bens móveis os objetos importados, assim como visualizar um perfil, sobretudo econômico dos seus consumidores em Belém dos meados do século XIX. Uma das dificuldades encontradas se deve ao problema de que nem sempre se faz referência à origem do produto. Apesar disso, em muitos casos é possível identificar um produto estrangeiro pelo tipo de material que ele é composto ou pela técnica de produção que não existia no Brasil, tais como os objetos da indústria metalúrgica. Outra questão que dificulta a análise é a ausência em muitos dos inventários da profissão do inventariado, o que impede uma análise mais densa a partir de critérios qualitativos como, por exemplo, os ligados ao trabalho e ao prestígio dentro da hierarquia social. A análise dos inventários, segundo Zélia Cardoso de Mello, está relacionada a critérios básicos: “o quantitativo por montante de rendimentos, e o qualitativo, por posição no trabalho, prestígio”.245 Os inventários analisados nessa pesquisa estarão dispostos a partir de 242 HELLER, A. Sociologia de la vida cotidiana. Barcelona: Ed. 62, 1977 (1970). O monte-mor consiste no valor bruto de uma herança. Portanto, é a totalidade de bens deixados pelo autor da herança, antes de deduzidas as despesas e os encargos que devem ser efetuados pelos herdeiros. 244 Para se obter um resumo das etapas principais da realização de um inventário ver: OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Op. Cit., p. 23-25; COMISSOLI, Adriano. Serão os números a certeza da História? Análise de fortunas com base em inventários post mortem para oficiais administrativos do Rio Grande de São Pedro. In: Anais: produzindo história a partir de fontes primárias / VI Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: CORAG, 2008, p. 12-14. 245 MELLO, Zélia Maria Cardoso de. Metamorfoses da riqueza, São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 67. 243 106 ambos os critérios. Primeiramente, serão divididos no que João Fragoso chamou de faixa de fortuna, de acordo com os valores encontrados na pesquisa. Isso se tornou necessário como uma maneira sistemática para a organização dos inventários selecionados, criando maiores possibilidades de análise dos objetos estrangeiros com possibilidade de referência não somente para os indivíduos, como também para o grupo ao qual pertencia. (...) a elaboração de uma estratificação econômico-social, através de inventários, pode ter como ponto de partida a confecção de uma hierarquia econômica por faixas de fortuna.246 Por conseguinte, a análise qualitativa pretende, sempre que possível relacionar os bens importados com a profissão do indivíduo ou com algum grupo que, porventura, ele esteja ligado, apesar de as redes de relações sociais não serem o foco deste estudo. É importante também a relação dos objetos arrolados com os bens de raiz e com outros tipos de bens, a fim de verificar a importância dos importados frente ao restante da composição da fortuna. Então, a partir do monte-mor do inventariado, qual o valor do produto importado? Embora isso seja considerado, não se pode perder de vista que essa importância não era aferida apenas pelo seu valor monetário, mas pelo valor de uso ou simbólico. Com o objetivo de ressaltar o valor simbólico dos objetos importados nos inventários, procuramos organizar os inventários selecionados de acordo com diferentes níveis de riqueza, a fim de verificar se há um perfil no consumo dos grupos que serão analisados. Dessa maneira, a seleção dos inventários está relacionada com a necessidade de uma amostra correspondente as décadas estudadas, sendo que posteriormente ela foi arranjada em faixas de fortuna. Tabela 15 – Autos de Inventário/Arrolamento Fortuna em Libras ( £ ) 80 a 200 201 a 600 601 a 1.000 1.001 a 2.500 2.501 a 10.000 Total Números de Inventários por década 1840-1849 1850-1859 1860-1870 1 2 2 2 2 9 1 4 6 4 3 18 2 3 4 9 5 23 Fonte: CMA, Autos de Inventário dos Cartórios ODON e FABILIANO247 246 FRAGOSO. João Luís R.; FLORENTINO Manolo. Op. Cit. Kátia Matoso chamou de “divisão de fortuna” Cf. MATTOSO, Kátia de Queiroz. Bahia, século XIX, uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. Já outra autora denomina de “grupo de riqueza” Cf. OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Op. Cit. 247 107 Os inventários foram repartidos em cinco faixas de fortuna considerando o montemor bruto que variou de 80 a 10.000 libras esterlinas.248 Essa divisão visa criar mais visibilidade a documentação e facilitar a análise dos objetos importados em cada faixa. A partir dessa distribuição, foram indicadas algumas possibilidades de análise, entre elas a variação da intensidade de produtos importados de acordo com a faixa de fortuna e o tipo de importado preponderante, isto é, utensílios domésticos, objetos relacionados ao trabalho e aos negócios, indumentárias, joias e diversos outros. Procuramos identificar nos inventários a presença dos importados entre os bens arrolados no processo. Embora esse tenha sido o principal parâmetro, buscamos relacioná-lo basicamente às dívidas passivas e ativas e aos bens de raiz na composição das faixas de fortuna e, quando possível, relacionamos o montante a profissão/função dos inventariados. Ainda que tenha sido necessária a referência a outros elementos que compõem o monte-mor, a análise tem como epicentro a notabilidade dos objetos importados nos grupos estudados, portanto a riqueza material relacionada a posse desses produtos. É inevitável o predomínio dos bens econômicos a partir dos demarcadores de renda, embora sempre que possível relacionemos aos demarcadores sociais, que influem diretamente no nível de riqueza ou no perfil econômico das faixas de fortunas. Tabela 16 – Classificação da riqueza Inventariada por Faixas de Fortunas, em réis e libras esterlinas Inventariados Fortuna em Réis (Rs $) Fortuna em Libras ( £ ) A P 1:000$000 a 2:000$000 80 a 200 4 8% 2:000$000 a 5:000$000 5:000$000 a 10:000$000 201 a 600 9 18% 601 a 1.000 12 24% 10:000$000 a 30:000$000 1.001 a 2.500 15 30% 30:000$000 a 100:000$000 2.501 a 10.000 10 20% 50 100% Total de Inventários (A) Números absolutos de inventários por faixa de fortuna. (P) Percentual de inventários na faixa de fortuna em relação ao total de inventários. Fonte: CMA, Inventários post mortem dos Cartórios ODON e FABILIANO As faixas de fortuna não estabelecem limites estanques para o entendimento da riqueza material de grupos diferentes. Embora reconheçamos os ricos de determinismos, neste 248 A classificação das faixas de fortunas foi feita em libras esterlinas com base na tabela de conversão em anexo. Essa conversão foi necessária para corrigir as variações da inflação no decorrer dos anos. Apesar disso, os valores em réis estarão sempre dispostos tais como aparecem na documentação. 108 caso elas servem para a percepção da maneira pela qual os importados circulam entre os dessemelhantes níveis de riqueza. Assim, é possível inferir de maneira mais precisa a circulação e a recepção dos objetos na sociedade belenense, como também em outras partes da Província. Ao considerarmos que os bens vindos do além-mar tinham muitos usos, estamos afirmando que a sua circulação era intensa, não estando restrita a determinados grupos econômicos. Por outro lado, é necessário assegurar quais produtos circulavam mais entre os diferentes grupos e os que estavam mais circunscritos as faixas mais e as menos elevadas. O primeiro grupo que corresponde ao intervalo entre 80 e 200 libras (1:000$000 a 2:000$000) nós denominamos de os mais pobres, por terem as menores rendas encontradas no montante de inventários levantados, formando o menor grupo entre as cinco faixas de fortuna. Esse grupo era constituído por pessoas aparentemente de vida modesta, que não possuíam dívidas passivas e ativas ou bens de raiz,249 mas tinham algum tipo de bem importado. Na maioria dos casos esses bens estavam concentrados nos bens da casa e em joias, como é representativo o caso do Major José Cândido Ferraz, o único nessa faixa em que aparece a ocupação.250 Ele era casado com D. Anna Sabina Ferraz Teixeira e seus bens somavam o monte-mor de 169,20 libras (1:340$180). Entre os bens arrolados estavam um canapé251 do Porto, um oratório pequeno com um crucifixo, uma frasqueirinha de pinho252, um resplendor de prata e outras peças de cobre e ouro. Como a maior parte dos bens do Major eram dois quartos de casas térreas que juntas custavam 113 libras (900$000), os bens importados tinham uma importância significativa no seu inventário. Fazia parte desse mesmo grupo D. Maria Egnacia Ribeiro.253 Ela possuía 89,80 libras (1:146$400) em bens juntamente com seu marido Julio Cezar Cordeiro Lima. Não consta em seu nome bens de raiz e o bem mais precioso do casal era uma escrava já em idade avançada que valia 78,3 libras (1:000$000). Constava no seu inventário uma dúzia de cadeiras americanas, um lavatório de ferro, seis colheres de prata para sopa, seis colheres de prata para chá, um aparelho branco para chá e um par de castiçais de porcelana. Embora o casal não possuísse bens de raiz, mas os itens importados estavam presentes em seu cotidiano. O segundo grupo, com 18% do total de inventariados compreende a faixa de 201 a 600 libras (2:000$000 a 5:000$000). Escolhemos denominá-lo de pobres estabilizados por 249 Nessa faixa de fortuna apenas o inventariado José Cândido Ferraz possuía uma pequena dívida ativa dois quartos de casas térreas na Rua Barroca, números 2 e 3. 250 CMA, Inventário de José Cândido Ferraz, 1941. Caixa: 405.923.972.944-809. 251 Banco com encosto, cujo assento servia de tampa a uma caixa formada pelo mesmo móvel. Cf. BRUNO, Ernani Silva. Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2001, p. 205. 252 Madeira importada dos Estados Unidos. 253 CMA, Inventário de D. Maria Egnacia Ribeiro, 1869. Caixa: 275.117.268.240-697. 109 estarmos nos referindo a indivíduos que em sua maioria possuíam bens de raiz no campo e/ou na cidade. Esse grupo se difere do anterior em função de uma maior diversidade de seus bens, pois em geral, no primeiro grupo a maior parte da renda está comprometida apenas com uma posse, seja de uma casinha, um sítio ou uma escrava. Apesar desses indivíduos do segundo grupo não terem uma grande fortuna, eles têm como característica principal a estabilidade, pois dos 9 inventariados deste grupo 6 não registraram dívidas, e nos 2 casos com dívidas passivas, elas eram inferiores as ativas. Em apenas 1 inventário a dívida passiva superou a ativa, mas ainda assim não gerou um déficit significativo no montante do falecido. Nesse grupo apenas Honório José dos Santos tem sua profissão descrita, a de tipógrafo. Por isso, os bens importados contidos em seu inventário estavam mais ligados ao seu trabalho de tipografia. Um exemplo dessa relativa estabilidade, é o de Antonio de Araújo Bastos.254 Pelo que consta não era casado. Todos os seus bens somavam 512,74 libras (3:870$140), mais 70,8 libras (621$000) em dinheiro, que tudo indica que guardava em casa. Era dono de três casas térreas perfazendo juntas 2:400$000, além de três chões.255 Apesar da sua profissão não ser citada, pode-se inferir que ele realizasse algum trabalho manual, pois entre os bens importados no seu inventário, encontrava-se setenta machadinhos, vinte terçados, seis facões, um machado, um martelo, quatorze verrumas, oito trinchetes, vinte e quatro libras de ferro, trezentos e sessenta pregos, uma colher de pedreiro, um martelo, um pincel de pedreiro e um enxó. A maioria dos instrumentos de trabalho está voltada para o serviço de carpintaria ou marcenaria, provavelmente ele tivesse envolvido com essa atividade. Na casa de Antonio Araújo Bastos os objetos importados que prevaleciam, além dos objetos de trabalho já citados, eram os bens da casa e joias, o que era uma baliza do grupo como um todo. O inventário continha, três caçarolas de cobre de diferentes tamanhos, três colheres, três cabos de faca e um garfo, todos com oitavas de prata e alguns poucos objetos em ouro. Ao terceiro grupo que abrange o intervalo de 601 a 1.000 libras (5:000$000 a 10:000$000) chamamos de remediados,256 por estarem situados na linha divisória entre uma 254 CMA, Inventário de Antonio de Araújo Bastos, 1852. Caixa: 855.653.834.806-395. Indicativo de pequena propriedade. 256 O termo remediado é utilizado por vários autores quando analisam o século XIX. Maria Luiza Ferreira de Oliveira utiliza para designar um grupo de riqueza com poucos bens de raiz, dívidas e grande mobilidade. Ao que parece era um termo já corrente no oitocentos, já aparecendo com frequência em obras de literatos. Em Lima Barreto os remediados estão relacionados a uma ideia de ascensão em que ser remediado estaria em uma condição suspensa, um estado indefinido cujo real significado somente o sujeito seria capaz de atribuir, mas poderia significar uma camada intermediária da sociedade, caracterizada pelo crescimento econômico por meio do mérito, das articulações ou do trabalho. Cf. MELO, Rita de Cássia Guimarães. Lima Barreto: a experiência 255 110 tênue estabilização e a solidez da abundância de bens e de fortuna. Isso lhes dava direito de possuir casas térreas, casas de sobrado, rocinhas e terrenos avulsos, como foi identificado na maioria dos inventários deste grupo, que é marcado pela presença de funcionários públicos. Nele, encontramos advogado, tabelião, escrivão, professor e um dos cinco comerciantes que levantamos em toda a nossa amostra. A maior parte dos indivíduos desse grupo possuía bens de raiz e não tinha dívidas passivas consideráveis. Em alguns casos as dívidas passivas eram superadas pelas ativas e apenas um inventariado teve dívida passiva maior que a ativa, o que denota certo acúmulo de bens e uma situação econômica estável. Outra característica peculiar que distingue esse grupo dos anteriores é o aparecimento de uma multiplicidade de produtos. Nele nós localizamos todas as categorias que propusemos no capítulo antecedente: alimentos e bebidas, coisas de uso público e/ou privado, equipamentos, indumentárias e joias, trabalho e negócios, tratamentos medicinais e diversos. Em outras palavras, foram constantes as louças, os artigos religiosos, as roupas, as joias, as ferramentas, etc. No inventário do escrivão João José de Amorim Poeira,257 que dedicou muitos anos da sua vida à atividade de escrivão, encontramos essa variedade. Após sua morte em 22 de fevereiro de 1869 seus bens foram inventariados. Casou-se duas vezes e no momento da sua morte a primeira e a segunda esposa já eram falecidas. E, "não tendo Amorim Poeira prole alguma instituiu em seu testamento como suas únicas e universais herdeiras de todos os seus bens as afilhadas de baptismo e do Chrisma (...)." Quais bens foram herdadas pelas afilhadas do escrivão? Os mais valiosos deles era uma morada de casas na Rua Nova de Sant’Ana258, número 1, um terreno atrás do Quartel d’Artilharia e um sítio denominado Carvalho com casa coberta de telhas. Amorim Poeira devia um pouco mais do que tinha para receber, uma vez que sua dívida ativa era de 95 libras (1:212$770) e a passiva de 155,9 (1: 990$930). Portanto, suas dívidas não comprometiam a sua renda total. Mais de 90% do seu monte-mor era investido em bens de raiz, sendo que uma delas foi avaliada pelo curador em 10:000$000, representando quase todo o seu monte-mor, que era de pouco mais do que esse valor, isto é, 849,72 libras (10:847$435). Percebemos o quanto para este grupo a aquisição de bens de raiz social e cultural na formação dos remediados. 2008. 2480 p. Tese (Doutorado em História Social). São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2008. Apesar dessa relativa indefinição podemos dizer que o remediado não era pobre, mas também não era da elite, não era o grupo econômico dominante. 257 CMA, Inventário de João José Amorim Poeira, 1869. Caixa: 275.117.268.240-697. 258 Atual Senador Manuel Barata. 111 era frequente. Aqui os imóveis já vão além do necessário que seria a moradia, e possivelmente passam a servir para gerar lucros. Entre os bens móveis e importados tinham dezoito cadeiras portuguesas, dois pares de mangas de vidro, dois pares de castiçais de vidro, uma terrina com asa quebrada, um aparelho de porcelana para chá incompleto, dezessete cálices de diversas qualidades para vinho, oito vidros domados para bebidas, sendo quatro grandes e quatro pequenas, várias imagens de diferentes santos, sendo algumas com detalhes de prata, colheres de prata e um tacho de cobre. Amorim Poeira deixou peças de ouro distribuídas em anéis, cordões e pingentes, um forno de cobre, setenta e dois alqueires de cal e um par de dragonas de alferes. No quarto grupo, incluímos sujeitos em que o próprio valor da renda já pode ser entendido como sinônimo de riqueza, que varia de 1.001 a 2.500 libras (10:000$000 a 30:000$000). O monte-mor deles os tira de um padrão de instabilidade e os inscreve no que designamos como abastados. Considerando os parâmetros pré-estabelecidos, 94% dos remediados possuíam bens de raiz, 55% não apresentaram nenhum tipo de dívidas, 25% possuíam apenas dívidas ativas e 20% apresentaram dívidas passivas, algumas vezes comprometendo mais de 50% do monte-mor, o que denota que a estabilidade não era característica de todos os inventariados. O gráfico abaixo mostra que este era o maior grupo, representado 30% de toda a amostra. Gráfico 6 - Faixas de fortuna com base em inventários post mortem 1840-1870 em libras esterlinas (£) Fonte: CMA, Inventários post mortem Mesmo que a estabilidade não abranja todo o grupo, podemos dizer que se dos 15 inventariados, em apenas 3 aparecem dívidas passivas, e nos outros casos somente havia 112 dívidas ativas ou nenhuma dívida. Isso nos leva a entender que existia certa solidez econômica e, em alguns casos, haviam investimentos ressarcidos no caso dos que possuíam aquisições de ações bancárias, em companhias de navegação, empréstimos ou algum valor referente ao pagamento de compras feitas na casa comercial de sua posse. Esses dados apontam que a solidez era um indicador dessa faixa de fortuna. Estudando as faixas de fortuna na Província da Bahia Kátia Mattoso pondera que: As fortunas verdadeiras ultrapassam os 10 mil contos de réis. São aquelas em que se estabeleceu uma espécie de estratégia de equilíbrio entre os diferentes elementos que as compõem: bens imobiliários, depósitos bancários, ações, obrigações. Na categoria dos que possuem esse tipo de fortuna encontram-se muitos comerciantes bem estabelecidos na praça, funcionários e magistrados, representantes de várias profissões liberais e alguns membros do alto clero. São em geral, fortunas sólidas.259 Acreditamos que o parâmetro de Kátia Mattoso sirva para entender a nossa realidade dos meados do século XIX, apesar de estarmos falando de províncias diferentes. No caso das profissões que conseguimos levantar nessa faixa, a maioria eram funcionários públicos ligados a justiça, ao serviço militar e ao trabalho de escreventes em instituições públicas. Outros ainda eram comerciantes e apenas um era clérigo, acredita-se que de alto escalão pelos bens alistados. Nesse grupo tínhamos comerciantes, capitães e juízes. Embora, estejamos avaliando a faixa de fortuna a partir das dívidas ativas e passivas e dos bens de raiz, podemos versar que vários membros com essa fortuna desfrutavam de diversos investimentos. Antonio José da Silva Neves reuniu no seu inventário o montante de 1044,96 libras (13:340$000).260 Não tinha dívida passiva e seus investimentos no Banco Mauá, na Companhia de Navegação do Amazonas e, em letras sob a tutela de vários indivíduos, portanto tinha alguns dos investimentos citados por Mattoso, que somavam 533,3 libras, ou seja, mais de 50% de todos os seus bens. Ele possuía um montante em dinheiro, várias letras na praça, um cheque do Banco Mauá e quatro ações da Companhia do Amazonas. Esses tipos de aplicações passaram a se tornar cada vez mais comuns na segunda metade do XIX, o que gerou a "ascensão de novos tipos de investimentos, com a consequente recriação de alguns signos de valor, prestígio e poder."261 Nesse sentido, 259 MATTOSO, Kátia de Queiroz. A opulência na Província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (org). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 162. 260 CMA, Inventário de Antonio José da Silva Neves, 1869. Caixa: 275.117.268.240.697. 261 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha. 2006. 343 p. Tese (Doutorado em História). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, p. 247. 113 (...) o crescimento do número de firmas comerciais com o fortalecimento de uma elite de comerciantes, a diversificação dos bens, serviços e oportunidades de trabalho, o incremento da instituição bancária e das sociedades por ações, refletemse nos bens que agregam riqueza.262 A maneira como se compõe a fortuna está diretamente relacionada as transformações e os movimentos vividos pela sociedade.263 Mas, então, voltemos para o nosso referencial inicial: os bens de raiz e as dívidas. Com referência aos bens de raiz pertencentes aos abastados constatamos que todos eles tinham bem de raiz, sendo que 80% deles tinham a posse de mais de um imóvel. Quanto aos bens importados, observamos a sua frequencia e em vários deles observamos que o inventariado possuía todas as categorias de bens móveis por nós já elencados anteriormente. Vejamos o inventário do juiz de órfãos João Baptista Passos.264 Dono de uma fortuna de 1857,9 libras (23:718$000), era possuidor de quatro bens de raiz, o mais valioso uma casa térrea situada na Travessa do Passinho265 número 43 que custava 12:500$000. O Dr. João Baptista Passos era um daqueles que não tinha dívida alguma. Foram arrolados em seu inventários muitos objetos relacionados a casa, ao trabalho e joias. Entre os bens da casa havia salvas de prata, castiçais de prata, colheres para sopa, arroz e chá de prata, concha de prata, paliteiro de prata, candelabros, espelhos, escarradeiras, canapé do Porto, cadeiras e cadeiras de balanço americana, cadeiras do Porto, cama americana com lastro de lona e várias edições de livros como um volume de direito mercantil por Lisboa, dois volumes de dicionário português e um volume velho de uma gramática inglesa. Entre as joias tinha um relógio de ouro, um relógio americano usado, um botão de diamante, pulseira, medalha, trancelim de ouro e adereços de brilhantes. No caso desse juiz, podemos notar que ele reunia todas as características do que estamos chamando de os abastados, pois ele não deixou dívidas e deixou para sua herdeira D. Antonia de Melo Passos e seus filhos vários bens imóveis, entre casas e terrenos na Rua dos Caripunas, Travessa dos Mundurucus e Estrada São Jerônimo, imóveis estes que reuniam 77% do seu montante, o que significa que era um investimento sólido e que poderia possibilitar outras rendas para a família além do salário do magistrado. Por fim, o quinto grupo, que compreende o intervalo de 2.501 a 10.000 libras (10:000$000 a 30:000$000) intitulamos os mais abastados, sobretudo por estarem posicionados no maior nível de fortuna que encontramos. Um grande marcador dessa faixa de 262 Ibidem, p. 246. MELLO, Zélia Maria Cardoso de. Op. Cit., p. 28. 264 CMA, Inventário de João Baptista Passos, 1869. Caixa: 275.117.268.240.697. 265 A Travessa do Passinho é a Travessa Campos Sales. 263 114 fortuna é a quantidade de bens de raiz que cada inventariado possui, pois localizamos até 12 casas pertencentes a um único dono, o que não aconteceu com o quarto grupo em que 6 era o maior número de casas para um único inventariado. Por outro lado, no grupo anterior apenas 21% tinha dívida passiva e neste caso estas mesmas dívidas chegam a comprometer a fortuna de 50% dos inventariados. Se compararmos também com o terceiro grupo em que também 50% dos inventariados contraíram dívidas, uma diferença marcante é que naquele caso, em geral, as dívidas passivas eram pequenas ou inferiores as ativas e neste a maioria das passivas são muito superiores as ativas. Aprioristicamente, podemos dizer que quanto maior a fortuna e os movimentos dos investimentos e as possibilidades de negócios, maior também a probabilidade de se contrair dívidas, o que não significa que em larga medida essas dívidas não pudessem ser quitadas. Não foi o que aconteceu com o agente de leilão266 de que vamos tratar. Antonio José de Carvalho267 era casado com Antonia Luiza Valente de Carvalho. Seu monte-mor correspondia a 2829,96 libras (30$321000). No entanto, seu monte-mor líquido era de apenas 795,37 libras (8:521$868), indicando que mais de 70% do seu montante estava comprometido com dívidas. O agente Carvalho aparentava ser um indivíduo muito conhecido na cidade, pois comumente encontramos seu nome nos anúncios dos jornais, em larga medida envolvido com a intermediação de vendas dos produtos importados, como se pode ver na Gazeta Oficial, mostrada abaixo: 266 O agente de leilão, segundo o Código Comercial Brasileiro de 1850 era uma espécie de auxiliar do comércio que estava sujeito as leis comerciais com relação as operações que efetivavam, assim como os corretores, os feitores, guarda-livros, caixeiros, trapicheiros, administradores de armazéns e comissários de transportes. Ver: Brasil. Lei nº 556 - Código Comercial do Império do Brasil, de 25 de junho de 1850. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Coleção de Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Vianna, 1872. Segundo Bulgarelli, Os agentes de leilão ou leiloeiros, sendo uma das espécies de auxiliares ou colaboradores independentes do comércio, são os profissionais mediadores, intermediários e motivadores da venda de determinados bens, mediante oferta pública, que lhe são confiadas a este fim. Cf. BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 11.ed. São Paulo: Atlas, 1995. p. 193. 267 CMA, Inventário de Antonio José de Carvalho, 1867. Caixa: 355.015.046.018.031. 115 Figura 4 - Anúncio de leilões no Jornal Gazeta Official Fonte: Gazeta Official, 4 de junho de 1858, n. 21, p. 4 Os jornais estão repletos desse tipo de anúncio em que aparece o nome do agente Carvalho. São anúncios que oferecem muitos tipos de produtos importados, entre os mais frequentes, manteiga inglesa, bacalhau português e sortimentos de fazendas inglesas e francesas. Através dos constantes anúncios intuímos que o agente Carvalho prestava serviços para a administração pública, casas comerciais e outros sujeitos. Não obstante, a profissão desse inventariado era bastante requerida por comerciantes que necessitavam vender algum produto ou algum indivíduo que precisasse se desfazer de seus bens. Mas esse trabalho não lhe rendeu uma fortuna sólida. Fazia parte do inventário de Antonio José de Carvalho uma série de documentos de credores requerendo suas dívidas à viúva do falecido, como no exemplo abaixo: Diz o Dor Trajano de Souza Velho, que tendo confiado ao falecido agente de leilão AntonioJozé de Carvalho para serem por ele vendidos diversos objetos , cuja renda produziu a importância de trinta e cinco mil novecentos e setenta reis (35$970) deduzidas as respectivas comissões, como tendo melhor [ilegível] da conta junta, não realizar o falecido agente o pagamento da referida importância em sua vida; e porque a quantia em questão não pertença ao espolio do mesmo falecido, e nem por consequência vem ser [ilegível] pelos herdeiros do mesmo, por isso digão aos interessados. (p. 29). Outro documento dessa mesma natureza remeteu Muller e Cª . Na qualidade de "depositários da massa falida do falecido José Severino Nunes Branco que tendo (...) sido 116 vendido em leilão mercantil e espolio do dito Nunes Branco pelo agente de Leilões Antonio Joze de Carvalho," vinham a requerer o valor em dinheiro equivalente a esta venda de 1:225$583. Além disso, constavam dívidas de compras em botica, casas comerciais, dos quais muitos eram produtos importados, destacando-se uma grande quantidades de garrafas de cerveja que ficou devendo a Guimarães Antonio e Ca. Observamos que nem sempre o nível de riqueza dos legados condizia com a real situação do indivíduo. No caso do agente Carvalho, nem a venda de todos os seus imóveis daria para que sua esposa e filhos quitassem as suas dívidas com seus credores após sua morte. Entretanto, se considerarmos todo o seu montante era possível pagar as dívidas e lhes sobraria um valor que lhe garantiria uma vaga entre os remediados, o que ainda é uma situação favorável a uma boa posição econômica, longe dos parcos recursos da maioria da população. Já José Antonio dos Santos268 era um legítimo representante do nível de riqueza do grupo ao qual pertence. De nacionalidade portuguesa era casado com D. Emilia da Silva Castro. Seu monte-mor equivalia a 7442,65 libras (73:811$450) e no momento de sua morte não deixou nenhuma dívida. Era dono de sete imóveis, todos na cidade, sendo uma morada de casas de sobrado e duas casas térreas na Travessa da Companhia, uma morada de casas térreas na Rua Formosa269, duas moradas de casas de sobrado na Rua da Boa Vista270 e outra morada de casa de sobrado na Rua dos Mercadores.271 José Antonio dos Santos era comerciante, mas os dados indicam que boa parte da sua renda provinha do aluguel de algumas dessas casas e de aplicações em ações, pois ele detinha a posse de vários títulos e ações do Banco de Portugal. Apesar dessa significativa riqueza tinhas poucos objetos importados voltados para a casa, tais como uma salva de prata, três pares de castiçais de prata, vinte e quatro cadeiras de madeira do Porto, duas cadeiras de balanço com assento de palhinha de madeira estrangeira e um aparelho de chá de porcelana. Seu bem importado mais oneroso era um piano avaliado em 30,25 libras (300$000). 268 CMA, Inventário de José Antonio dos Santos, 1866. Caixa: 400.965.140.112.313. Em 1840 a Rua Formosa passou a ser 13 de Maio. Cf. CRUZ, Ernesto (1952). Op. Cit., p. 85. 270 No livro Procissão dos séculos: Vultos e episódios da História do Pará, no tópico Ruas da cidade: Confrontos e Contrastes, Ernesto Cruz faz um pequeno apanhado de algumas trocas dos nomes das ruas de Belém. Segundo ele, após a limpeza e o aterramento da Rua Boa Vista, Bernardo de Sousa Franco, no dia da sua inauguração resolveu prestar uma homenagem ao sr. D. Pedro II, dando o nome de Rua Nova do Imperador a rua que no período colonial se chamava Rua da Praia. Cf. CRUZ, Ernesto (1952). Op. Cit., p. 84. Atualmente a Rua Nova do Imperador é a 15 de novembro. 271 A Rua dos Mercadores passou a se chamar Rua Conselheiro João Alfredo. Cf. CRUZ, Ernesto História do Pará. 2. ed. Belém: Editora Universitária UFPA, 1973, p. 148. 269 117 Uma questão importante, na análise das fortunas, diz respeito às profissões ou atividades praticadas pelos inventariados, apesar de não ser tão fácil identificar. Isso acontece porque nem todos os inventários trazem nitidamente esse tipo de informação.272 Para resolver, pelo menos em parte esse problema, seguimos algumas pistas dadas no decorrer do inventário que levasse a uma possível atividade do inventariado.273 Cruzamos também os inventários com os jornais e com os almanaques dos anos 1868, 1869, 1870,274 a fim de obtermos esses dados, que não somente nos ajudariam a construir um perfil para cada faixa de fortuna como também dos consumidores dos produtos importados. Dessa maneira conseguiu-se fazer uma classificação sócio-profissional de 70% dos inventariados. O gráfico 7 demonstra quais profissões se sobressaíam em cada faixa de fortuna. Gráfico 7 - Categorias socioeconômicas, 1840-70 (% da categoria na faixa de fortuna) Fonte: Gráfico elaborado com base nos inventários post mortem, jornais e Almanaques de 1868-71 Notamos a presença latente de algumas profissões/funções no conjunto de inventários percorridos, entre eles, comerciantes, funcionários públicos, militares, religiosos e proprietários. Para todas as faixas de fortunas havia 11 funcionários públicos, 8 comerciantes, 272 Maria Luiza Ferreira de Oliveira e Cristina Donza Cancela já falaram dessa dificuldade encontrada nessa fonte. Seria frequente faltar o lugar de moradia, a naturalidade do morto, a profissão, o que segundo Oliveira dificulta a classificação dos dados e exige um trabalho diferenciado com a fonte. 273 Quando não foi possível localizar a profissão do inventariado, recorremos a profissão do cônjuge. 274 Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1869; Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Província do Pará para o ano de 1869. Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1870. 118 6 militares, 4 proprietários, 2 religiosos e 4 inventariados que não tiveram suas profissões identificadas, mas se sabe que eram membros da Guarda Nacional.275 No interior de cada faixa de fortuna havia uma ou duas atividades socioeconômicas principais. Os funcionários públicos eram 55% dos remediados, estavam em sua maioria na faixa de fortuna média, de acordo com essa classificação, que corresponde ao valor de 601 a 1000 libras. Outra parcela significativa, isto é, 44% estava no grupo de maior monta, com montante variando entre 1.001 e 10.000 libras. Eram indivíduos que praticavam diversos ofícios, tais como as funções de professor, juiz, inspetor, tabelião e escrivão. Entre eles havia funcionários da secretaria do governo provincial e da câmara municipal. Entre os abastados e os mais abastados se destacaram os funcionários que ocupavam os cargos públicos mais prestigiosos, relacionados à atuação como juízes de paz e escriturários da recebedoria de rendas provinciais. Entre os remediados, encontramos tabelião, escrivão, professor, enquanto que, entre os abastados localizamos juízes de paz e de órfãos e escriturários da Recebedoria de Rendas Provinciais e da Tesouraria da Fazenda. Não era infrequente que alguns deles acumulassem mais de uma função dentro do funcionalismo público como José Pinto de Araújo que era escrivão, mas acumulou por algum tempo a função de inspetor da Alfândega. Havia também as situações em que o sujeito tinha um cargo público, mas desempenhava outra atividade ao mesmo tempo, tal como o médico João Lopes de Freitas, médico do governo provincial. Em 1855 foi integrante da comissão dos socorros públicos de combate a epidemia da cólera, mas era também farmacêutico e dono de uma botica na Rua da Cadeia.276 Além do acúmulo de atividades, existia alguma mobilidade quanto as atividades desenvolvidas ao longo de uma carreira pública. Era o caso de Manoel João de Lara Cavalero que começou como escrevente (copista) da secretaria da Presidência da Província, em abril de 1854 foi nomeado colaborador da secretaria de governo277, em dezembro do mesmo ano ele foi nomeado Segundo Oficial278 e em agosto de 1855 já era Primeiro Oficial da mesma secretaria.279 275 Para compor a Guarda Nacional a renda mínima de 100 mil réis anuais. O valor exigido para ingresso na tropa era uma disposição legal que poderia ser atendida por homens de baixa renda, estes não estavam assim, oficialmente excluídos da Guarda Nacional. Então, pequenos proprietários e comerciantes, além de trabalhadores poderiam integrá-la. Cf. ALMEIDA, Adilson José de Almeida. Uniformes da Guarda Nacional (1831-1852): a indumentária na organização e funcionamento de uma associação armada. 1999. 195 p. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998. p. 28. Porém, a Guarda Nacional era hierarquizada e, dentre os consumidores de importados, encontramos indivíduos que encontravam funções diferentes dentro da instituição. 276 CMA, Inventário de Francisca de Farias Freitas, 1856. Caixa: 895.339.397.369.084. 277 Treze de maio, 25 de abril de 1854, n. 322, p. 3. 278 Treze de maio, 9 de janeiro de 1855, n. 433, p. 2. 279 Treze de maio, 9 de janeiro de 1855, n. 433, p. 2. 119 Além de funcionários públicos que ocupavam cargos elevados, predominaram entre os mais abastados os que estavam envolvidos com a atividade comercial e em menor escala estavam os militares como os capitães e coronéis. As profissões que estavam relacionadas ao exercício militar foram a segunda mais ocorrente entre as atividades dos inventariados, sendo que variavam de acordo as patentes que iam desde sargento a coronel. Os militares aparecem em todas as faixas de fortuna, com exceção da segunda que compreende os pobres estabilizados. Na primeira faixa localizamos o major José Cândido Ferraz, que não se sabe por qual razão se localiza entre os mais pobres, haja vista que sua patente era a terceira maior entre os inventariados. O referido Major morreu em 1837, tendo sido inventariado em 1841. Possivelmente, o definhamento dos seus bens esteja relacionado ao movimento cabano. De modo geral, os militares tendem a se concentrar entre as faixas com fortunas mais elevadas. Excluindo o major, a inserção desse grupo nas faixas de fortuna tem a ver com as patentes por eles alçadas. Dentre os remediados temos o capitão da 4ª Companhia da Guarda Nacional João Chrizostomo Ferreira da Costa e o tenente Joaquim Francisco de Oliveira Campos. Entre os abastados Joaquim José de Lima, Manoel da Conceição Pereira de Castro e Joaquim Gomes de Oliveira Cavalero tinham a patente de capitão. Nesse grupo apenas José Joaquim Ramos Villar tinha uma patente considerada baixa, qual seja, a de 2º sargento. O que poderia justificar o tamanho do seu monte-mor? Possivelmente, a proveniência da sua fortuna estivesse relacionada com a herança que sua esposa herdou do primeiro casamento, pois a mesma recebia um meio soldo equivalente a 180$000,280 fora o que deve ter acumulado durante o período em que esteve casada com seu primeiro marido, um militar cuja patente não foi possível identificar. Mas pelo que demonstra várias notas no jornal Treze de maio, ela havia sido casada com o cadete Antonio Bernal do Couto. Isso pode pelo menos ser um dos elementos que podem justificar a presença de um militar de patente não elevada, entres os mais abastados. Na faixa dos mais abastados estão o tenente-coronel João da Pontes e Souza, o coronel José Duarte Rodrigues, isto é, os militares inventariados com mais altas patentes levantadas na pesquisa. Nesse grupo também encontramos D. Maria Pimenta Bueno, casada com o capitão Manoel Antonio Pimenta Bueno, mas que não tinha como única fonte de renda o cargo militar, pois também era gerente da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, gerente da Sociedade Bancária Mauá e Cª., primeiro presidente da Praça de 280 Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1869, p. 111. 120 Comércio, diretor da Companhia d"estrada de Ferro Paraense,281 entre outras funções acumuladas. Pimenta Bueno era membro de família tradicional e influente, filho do Marquês de São Vicente,282 portanto, de "uma família de destaque que extrapolava os limites provinciais, chegando à Corte imperial."283 Após o segmento dos militares, têm-se os comerciantes,284 distribuídos nas três faixas com as maiores fortunas, tendo maior destaque na faixa que compreende os mais abastados, representando aproximadamente 43% desse grupo. Cristina Cancela enfatizou esse perfil dos comerciantes. Segundo ela, a maioria dos inventariados com faixa de renda acima de 2.000 libras eram os comerciantes.285 Eles são os que mais expressam a relação com os importados. Através da descrição dos bens dos estabelecimentos comerciais, é possível evidenciar a variedade de produtos importados disponíveis no comércio do Pará. Isso porque, embora o comerciante fosse matriculado como negociante de um tipo de produto específico, acabava por comercializar diversos tipos de mercadorias, o que acabava por vezes a alargar sua fortuna. Em quarto lugar aparecem os proprietários. Escolhemos este termo para agrupar pessoas que tinham propriedade sobre algum negócio que significasse a sua principal fonte de renda. Nesse grupo está um tipógrafo, dois boticários e um fazendeiro, situados na faixa dos pobres estabilizados e dos abastados, não existindo um padrão fixo de riqueza, uma vez que dependia da propriedade em questão, que poderia ser de pequena ou maior monta. Poderíamos ter classificado os donos de tipografia e de botica como comerciantes. Não fizemos isso em função de que o desenvolvimento dessas atividades exigia habilidades especializadas, não consistindo em um simples comércio ou compra e venda de produtos chegados ao porto. Fiquemos com o caso ilustrativo de Honório José dos Santos. Dono de negócio que funcionara desde o final da década de 1830, ele começou com a tipografia Santos & menor, 281 Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1869; Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Província do Pará para o ano de 1869. Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1870. 282 MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo. “Alianças Matrimoniais na Alta Sociedade Paraense no Século XIX”. In: Estudos Econômicos, nº 15, 1985, pp. 153-167. 283 BATISTA, Luciana Marinho. Op. Cit., p. 218. 284 A função de comerciante era um importante meio de adquirir riquezas e uma rede de relações que colocaria esses indivíduos nos circuitos econômicos, políticos e sociais da Província. Era perfeitamente possível amealhar alianças e prestigio como destacou Luciana Marinho. Cf. MARINHO, Luciana Batista. Op. Cit. Foram essas redes de relações que permitiram, por exemplo, que comerciantes portugueses, mesmo com a vulnerabilidade do capitalismo mercantil português na transição para o XIX, conseguissem se articular com a sociedade de "privilégio e o império." Os comerciantes tiveram um papel político na construção do Império. Cf. PEDREIRA, Jorge M. Negócio e capitalismo, riqueza e acumulação: Os negociantes de Lisboa (1750-1820). Tempo, v. 8, n. 15, p. 37-69, julho, 2003; PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Negociantes, independência e o primeiro banco do Brasil: uma trajetória de poder e de grandes negócios. Tempo, v. 8, n. 15, julho, 2003, p. 71-91. 285 CANCELA, Cristina Donza. Op. Cit., p. 259. 121 que mudou para Santos & Filhos e depois de sua morte em 1857 passou a se chamar Santos & Irmãos. Até 1850, a tipografia de Honório tinha preferência na impressão de documentos do governo, haja vista que antes disso quase não havia concorrência. Ela era responsável pela impressão dos Relatórios da Presidência da Província e toda sorte de documentos oficiais de várias repartições públicas. Após 1853, a tipografia que por muito tempo teve prioridade na impressão dos documentos oficiais, passou a conviver com a concorrência de outras casas tipográficas e de encadernação, o que fez com que começasse a imprimir jornais semanalmente e depois diariamente. A tipografia era responsável pela impressão das folhas Treze de maio (18401862), Revista Mensal do Atheneu Paraense (1860-1861) e Jornal do Pará (1862-1878). Publicou a partir de 1859 diariamente anúncios oferecendo seus serviços de impressão: Santos & Irmãos, com loja de encadernação na rua de S. João, casa n. 18 AA, fazem sciente aos illms senrs. Chefes de repartições públicas, e ao commercio em geral, que augmentarão este seu estabelecimento com uma bem montada officina typographica, na qual se imprime qualquer obra com toda a pronptidão possível e asseio, tendo para esse fim mandado vir dos Estados-Unidos um rico sortimento de emblemas, enfeites e lettras de titulos de gosto moderno. Os mesmos declarão, que, além da boa impressão que promettem fazer, assegurão também a commodidade em preços.286 O anúncio demonstra que a tipografia Santos & Menor precisou efetuar um processo de constantes melhoramentos para se manter no mercado local de impressões. Para tanto, falava das suas modernizações, enfatizando os novos produtos utilizados no estabelecimento vindo dos Estados Unidos. Os serviços estavam disponíveis tanto para as repartições públicas quanto para o comércio em geral. Nesse sentido, a tipografia não somente utilizava as mercadorias importadas, como divulgava ideias estrangeiras, o que era corriqueiro nos jornais. Honório dos Santos perderia muito espaço para Frederic Rhossard, que iniciou como um modesto impressor no jornal semanal O Observador em 1857, tendo se tornado tipógrafo e proprietário do Diário do Gram-Pará e, em 1861 ganhou o direito de imprimir as falas e os documentos do governo.287 Como podemos conferir, a tipografia de Honório José dos Santos oscilou entre prestar serviços públicos e particulares, o que variou de acordo com a concorrência do mercado livresco na capital da Província. Honório morreu tendo deixado um dos filhos, Cipriano José dos Santos, sob a gerência do negócio e tendo que saudar uma dívida de mais 286 287 A Epocha, 4 de maio de 1859, p. 3. NOBRE, Izenete Garcia. Op. Cit., p. 59. 122 de 1:000$000. De qualquer modo, a posse desse negócio parece ter sido de grande valia para a família e para o próprio governo provincial que dele se beneficiou quando o mercado da impressão na Província era deficitário, e continuaria a ser por algum tempo. Entre os religiosos, destacamos os cônegos Leonardo Pinto Moreira Espindola e Thomas Nogueira Picanço, o primeiro situado na faixa dos remediados e o segundo no limite entre os remediados e os abastados. Apesar de serem poucos eles apresentam um bom número de objetos importados em seus inventários, sobretudo porque fazem parte de um grupo marcado pela variedade no consumo desses objetos. Notemos que em todas as faixas de fortunas analisadas, seja em qualquer profissão, estão presentes bens importados, o que nos permite considerar que, antes de 1870, Belém estava articulada com países europeus em um processo que criava distinções e supria necessidades de muitos de seus moradores, seja dos mais pobres ou dos mais abastados, compondo o quinhão de muitos herdeiros já desde bastante tempo. III. II. O consumo na elite belenense. Nesse tópico, trataremos apenas de sujeitos que tinham legados acima de 1.000 libras (10:000$000), ainda que eles tivessem uma dívida passiva considerável, no momento da partilha. Isso porque, por mais que o indivíduo tivesse muitas dívidas, no que se refere ao consumo de importados, o poder de aquisição das mercadorias poderia está relacionado a uma influência simbólica de um possível capital disponível, ainda que na realidade ele fosse aparente. Optamos por considerar, para a análise do consumo do grupo, que estamos entendendo como elite, apenas os abastados e os mais abastados, por possuírem os médios e grandes legados,288 ou as fortunas sólidas, segundo a definição de Kátia Mattoso. Mas o critério econômico não seria o único aceitável para a classificação de um grupo enquanto elite, mas outros fatores influem diretamente, pois um grupo de elite se define, segundo Burke, a partir de elementos como status, riqueza e poder.289Além disso, seria mais ponderado falar em elites e não elite, uma vez que havia diferentes composições de riquezas econômicas e simbólicas. Luciana Marinho ressalta algumas elites no Grão-Pará no período de 1850 a 1870, destacando que havia uma elite agrária e uma elite mercantil que se articulavam 288 Cristina Donza Cancela, considerou médios e grandes legados as fortunas iguais ou maiores a 2.000 libras, excluindo as dívidas passivas. Nessa pesquisa, consideramos como médios e grandes e legados o monte-mor igual ou maior de 1.000 libras, incluindo as dívidas passivas. 289 BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: Um estudo das elites do século XVII. São: Brasiliense, 1990. 123 constantemente por meio de casamentos e relações de amizade. Segundo ela, essas relações se davam em uma sociedade com economia do tipo pré-industrial, em que as esferas econômica e política estavam fortemente intrincadas. Ao analisar que a manutenção da elite se baseia em estratégias e suas ações eram motivadas pela busca da sustentação do prestígio social, podemos dizer que o consumo dos bens importados era também uma forma de demonstrar poder e status, além da riqueza material. Nesse sentido, o acesso aos importados disponíveis no comércio local, possibilitaria a alguns grupos da elite a demonstração de sua posição na escala social do Grão Pará. Pensando neste contexto mais amplo de elite, procuramos no tópico anterior traçar um perfil dos inventariados. De acordo com a divisão em faixas de fortunas que realizamos, a elite inclui os inventariados em que suas rendas variam entre 1.001 a 10.000 libras (10:000$000 a 100:000$000), o que envolve 25% da amostra. O objetivo dessa delimitação é verificar a presença dos importados na vida material desses indivíduos, o lugar dos objetos no viver cotidiano. Mas não apenas isso. Será possível entender as diferenças e semelhanças entre o consumo dos abastados e os mais abastados e, posteriormente, dos outros grupos possuidores de monte-mor abaixo de 1.000 libras. Considerando o processo de produção alargado na Europa com a Revolução Industrial, a circulação possibilitada pelas viagens transatlânticas, busquemos identificar a apropriação dos objetos no viver cotidiano, considerando que o aumento do consumo no oitocentos se tornou prática recorrente entre sujeitos com diferentes faixas de fortuna. É fato que as mais profundas mudanças ocorreram na virada do século XIX para o XX, mas os meados do XIX já era um prelúdio das mudanças nos hábitos cotidianos, nas ideias e percepções, na qual um dos pilares básicos foi as transformações ocorridas na Europa e o crescimento da circulação de um ideal de progresso, que culminaria em um processo constante de modernização nas sociedades ocidentais. O princípio do progresso, então, foi se convertendo em uma crença, em que os avanços tecnológicos sancionavam ao criar produtos e serviços, objetos de desejo e símbolos do progresso.290 No entanto, esses objetos, símbolos de uma modernidade emergente, consumidos pela elite, nem sempre eram exclusivos símbolos de distinção social, pois muitos deles faziam parte das condições materiais de sobrevivência diária, sem que estivessem necessariamente associados ao prestígio. 290 DUPAS, G. O mito do progresso. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p.13. 124 Os objetos, as relações físicas ou humanas que eles criam não podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos de comunicação ou de distinção social. Eles não pertencem apenas ao porão e ao sótão, ou então simultaneamente aos dois, devemos colocá-los em rede de abstração e sensibilidade essenciais a compreensão dos fatos sociais. Sem dúvida, na história a vida material estabelece 'os limites do possível e do impossível', como desejava Braudel, mas ela o faz na imbricação de contextos sociais de informações e de comunicações que organizam a significação das coisas e dos bens (...).291 Durante a análise dos bens importados pertencentes a este grupo, que na verdade são os dois grupos que anteriormente denominamos de os abastados e os mais abastados, é possível encontrar desde objetos considerados requintados, como os que eram usados nas ocasiões especiais, até a panela de cobre ou ferro, um instrumento do cotidiano, presente na maioria dos inventários, dos que possuíam maior ou menor fortuna. Portanto, essa vida material, ainda que estejamos tratando de elite, ultrapassa os limites do supérfluo e abrange uma apropriação de bens a partir de uma multiplicação do consumo e uma vultosa circulação que é muito diferente dos períodos anteriores, caracterizado pela raridade dos objetos.292 Com efeito, numa cidade em que o modo de vida burguês antecedeu a implantação da estrutura produtiva, "o consumo assume o papel disciplinador que as transformações técnicas e planificação do trabalho nas indústrias preencheram no epicentro do sistema."293 Nesse contexto, as coisas de uso público e/ou privado estavam presentes ainda que em quantidades diferentes em 96% dos inventários dos grupos com fortuna acima de 1.000 libras (10:000$000), sendo a categoria com presença mais significativa e diversificada. Em segundo lugar estavam as indumentárias e joias que apareceram em 64% dos inventários. A categoria diversos está presente em 36% e trabalho e negócios vêm logo em seguida com 32%. As categorias menos visíveis são equipamentos, representando 12% e em último lugar as categorias alimentos e bebidas e tratamentos medicinais e outros usos,294 que se encontram cada uma, irrisoriamente, em somente 4% dos autos percorridos. Buscaremos a partir de agora, traçar um perfil dos produtos que mais compunham o cotidiano das famílias procurando, na medida do possível, dar um sentido social a eles. Afinal, (...) os artefatos também nos moldam; não apenas nos expressam, mas, igualmente, de formas e em graus variados, nos constituem. O artefato, desse modo, é, ao mesmo 291 ROCHE, Daniel. Op. Cit., p. 13. Ibidem. 293 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material São Paulo 1870-1920. São Paulo: Edusp, 2008, p. 13. 294 As categorias Alimentos e bebidas e Tratamentos medicinais e outros usos não são comuns estarem presente nos inventários, salvo em raríssimos caso. Em geral isso acontece porque não são produtos duráveis. Cada uma delas apareceu uma vez nos em apenas um inventário. 292 125 tempo, produto e vetor das relações que seus fabricantes e usuários estabelecem em sociedade e, ainda, produtor de seres sociais.295 Por isso, acreditamos que o consumo pelas elites dos produtos importados é o resultado das transformações inerentes ao século XIX, que possibilitaram aos usuários ou consumidores belenenses a produção de novos sentidos. Os produtos que mais possibilitaram esses novos sentidos foram os de uso privado, sobretudo as louças, mobília, os artigos de iluminação. O consumo é fundamental para entendermos a modernidade e para a reflexão sobre a mesma, levantando questões de necessidades e identidade, escolha e representação, poder, relação entre o público e o privado, o individual e o coletivo.296 Nesse aspecto, o consumo, além de unir ou dicotomizar grupos de consumidores diferentes seria, antes de tudo, uma forma de classificação. Se os importados servem para vestir, comer, abrigar, também possuem um sentido que ultrapassa o valor da utilidade, que possibilitar pensar, escolher, selecionar e dar sentido ao mundo. Assim sendo, o consumo pode ter a função de prover, mas também delineia relações entre indivíduos e grupos por meio de um contexto social e histórico particular. Os objetos que se enquadram em as coisas de uso privado e/ou público se referem a objetos que poderiam tanto ser usado no espaço da casa quanto no espaço público ou em apenas um desses espaços, embora as fronteiras desses usos ainda estivessem imbricadas. Nos inventários levantados, de modo geral, foram mais comuns os bens da casa, os artigos religiosos, os objetos voltados para a iluminação e para a leitura, os instrumentos musicais e os vasilhames,297 e outros aparecem com menos intensidade. Dona Olimpia Ângela Paes de Carvalho morreu em 1855, deixou um quarto de casas térreas298 cita na Rua da Pedreira sem número (...) "de um lado com as casas dos herdeiros do tenente coronel João da Gama Lobo e de outro lado com as cazas do Falecido Vicente Antonio de Miranda”, sendo muito provavelmente esta a sua casa de morada, haja vista ser o único imóvel em seu nome. Os bens imóveis não eram sua principal fonte de renda, contudo reuniu uma herança material de 31:936$180, o que era um valor nada irrisório. Foi o 295 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Op. Cit., p.12. SLATER, Don. Cultura do Consumo e modernidade. São Paulo: Nobel, 2002, p. 5. 297 São inúmeros os objetos que compõem os que estamos chamando bens da casa, inclusive os artigos religiosos, os de iluminação, os relacionados à leitura e à música podem ser considerados bens da casa. No entanto estão destacados de forma separada porque também podem ser utilizados em âmbito público, não se constituindo exclusivamente como bens da casa. 298 As casas térreas, além das construções religiosas, era o elemento mais característico nas vilas e cidades brasileiras do período colonial. Cf. SAIA, Luís. Notas sobre a arquitetura rural paulista do Segundo Século. Rio de Janeiro: Revista do SPHAN, n. 8, 1944, p. 211-275. A expressão "um quarto de casas térreas", bastante constante nos inventários se refere a uma casa com vários cômodos. É uma casa geminada, ou seja, casa de paredes-meias, construída duas a duas, geralmente com as mesmas divisões, mas investidas. 296 126 suficiente para que a mesma acumulasse uma boa quantidade de bens importados, entre os mais valiosos estão os artefatos voltados para o uso doméstico. Encontramos móveis, louças, objetos de iluminação e um instrumento musical, que por sinal era o mais requintado da época. São eles: Dezoito cadeiras com assento de palhinha, 72$000; doze cadeiras americanas com assento de palhinha, 72$000; seis cadeiras americanas mais inferiores, 3$000; uma cadeira de balanço de madeira americana, 6$000; um sofá, 40$000; uma salva com o peso de cento e quarenta e uma oitavas de prata, 33$840; uma salva com o peso de cento e cinquenta e duas oitavas de prata, 36$480; seis colheres para sopa com o peso de cento e trinta oitavas de prata, 26$000; seis colheres menores com o peso de oitenta e seis oitavas de prata, 17$200; doze colheres pequenas para chá com o peso de setenta e nove oitavas de prata, 15$800; uma colher para tirar sopa com o peso de cinqüenta e uma oitavas de prata, 10$200; um paliteiro com noventa e uma oitavas de prata, 27$120; um aparelho de porcelana dourado para chá, 25$000; um galheteiro com cinco vidros, 25$000; um par de castiçais com o peso de duzentas e cinqüenta oitavas de prata, 70$000; um par de castiçais com o peso de duzentas e oito oitavas de prata [valor não descrito]; um par de mangas de vidro bordado, 4$000; uma manga, 2$000; um par de castiçais de casquinha com manga de vidro, 6$000; um candeeiro de globo para sala, 10$000; um candeeiro de latão sem vidro, 1$000; uma lamparina de porcelana, $320, um lampião de vidro para corredor, 3$000; um piano, 200$000.299 Com respeito aos móveis, existiam também outros que poderiam ser importados como também havia a possibilidade de terem sido fabricados com madeira da região. Na década de 1850 já havia uma forte tendência a importação dos móveis que passaram a conviver com a mobília de macacaúba, acapú, cedro e pau amarelo, os mais descritos nas avaliações. Por isso, quando não identificamos a madeira com a qual se produziu o móvel, seja um guarda louças, uma mesa de jantar, um toucador, uma marqueza, não podemos afirmar consubstancialmente que se tratava de um objeto importado. No entanto, podemos fazer inferências, a partir das listas desses mesmos objetos, nos manifestos de importações ou nos jornais consultados. Podemos afirmar que houve um importante aumento na entrada de móveis importados, em sua grande maioria advindos dos Estados Unidos e de Portugal. Uma grande tendência foi a recepção das cadeiras com assento de palhinha que transmitiam um tom de sofisticação e bom gosto. O uso da palhinha se relacionava a outros fatores que não somente o bom gosto, mas também mostrava concepções de higiene, ventilação e modernidade, isso por ser um elemento vazado que atua como radiador de luz. Se nos reportarmos ao histórico desse material, constataremos que a palhinha está relacionada a tradição de móveis da Índia, tendo sido introduzida em Portugal entre os séculos XVII e XVIII e, posteriormente, chegaria a influenciar o mobiliário brasileiro. Esse material se tornou largamente utilizado por duas 299 CMA, Inventário de Olimpia Angela Paes de Carvalho, 1856. Caixa: 355.156.181.153.436. 127 razões básicas. Primeiro pela qualidade sensorial e higiênica por proporcionar arejamento em função das frestas, sendo favoráveis ao clima tropical. A segunda vantagem se refere ao material de fácil aquisição e manuseio.300 Nos inventários, as cadeiras de palhinha estavam presentes repetidamente, algumas vezes com referência explícita da sua origem portuguesa ou norte americana, outras vezes sem fazer menção a qualquer país exportador. Mesmo sabendo que boa parte das cadeiras de palhinha podem ter sido produzidas na Província, uma vez que o próprio processo de produção se assemelhava a técnicas comuns nessas terras desde longo tempo, grande parte dessa mobília vinha de portos estrangeiros. No século XIX, a palhinha dissipa a ideia de móveis pesados e contrabalança a textura escura das espécies de madeira local,301 se adaptando perfeitamente a paisagem tropical. Eliane Morelli notou esta mesma inclinação no gosto das famílias campineiras mais abastadas, em que "os móveis de sala confeccionados com assentos e encostos de palhinha começavam a aparecer", nesse caso "destronando os luso-brasileiros de jacarandá forrados de sola (couro), da segunda metade do século XVIII."302 No século XIX, a preocupação com a mobília das casas era uma constante. Não bastava que os móveis atendessem apenas as necessidades, mas deveriam estampar o nível, social, econômico e cultural de quem pertenciam. O uso de uma grande quantidade de cadeiras por D. Olimpia Paes de Carvalho, indica que ela era adepta de gostos renovados e de novas práticas relacionadas aos bens materiais, considerando que "da classificação do mobiliário, da sua escolha, depende a compreensão das práticas, pois não existe móvel inútil." Para Roche, no contexto francês do século XVIII "a multiplicação das cadeiras mostrava a riqueza, liberava o espaço polivalente e constituía um mobiliário normal da segunda peça," a partir do qual se construía as 'comodidades da conversação'.303 Nesse sentido, as cadeiras eram um mobiliário de distinção que nasceu, sobretudo de uma noção de conforto e de liberdade do corpo. No caso da Província do Pará, para a maior parte da população, os objetos que permitiam sentar-se, deitar-se, acomodar-se eram traduzidos em um item do cotidiano fundamental: a rede. Onde quer que se vá, para onde quer que se olhe, vê-se, logo uma rede baloiçando, na qual alguém, descansando de nada fazer, dá um ligeiro impulso. Esse regime da 300 MELO, Alexandre Penedo Barbosa de. Mobiliário moderno brasileiro: aspectos da forma e sua relação com a paisagem. 2008. 339 p. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2008, p. 294. 301 Ibidem, p. 295. 302 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 101. 303 ROCHE, Daniel. Op. Cit., p. 231. 128 rede é comum em geral. A rede é cama, cadeira sofá, e em muitos quartos, caso se possa falar nisso, a única mobília, sempre usada e sempre em movimento. Nela não se descansa do trabalho, e sim do banho.304 A rede sempre foi um objeto muito utilizado no Pará e não deixaria de ser, mesmo com a importação de outros objetos com funções similares. Antonio Valente já destacara a rede como "um importante objeto na mobília da casa do belemenses" e um "objeto muito utilizado nas moradias de família dos mais diversos estratos da sociedade".305 Por outro lado, o caso da inventariada de quem estamos falando não era um caso isolado, pois a grande utilização de redes não excluía a posse dos objetos mais requintados. Bates relata que "as classes mais elevadas, que vêm gozar da alegria geral, estão sentadas em cadeiras, à porta deporta de casas amigas."306 Houve um tempo em que o mobiliário estava relacionado as necessidades primordiais ou mais necessárias a vida familiar, mas "os móveis iriam revelar um estado de sociedade em relação com suas significações (...), direcionando para a linguagem silenciosa dos símbolos."307 Portanto, há uma produção de sentido que ultrapassa a sua materialidade, uma vez que a necessidade deixa de ser um elemento maior que justifique a posse. Além dos móveis, D. Olimpia possuía uma boa quantidade de louças, isto é, as salvas de prata, as colheres para sopa e chá, colher grande para tirar comida, galheteiro, paliteiro, aparelhos de louça para jantar e para chá, o que indica que o uso dos objetos materiais relacionados a novos hábitos já haviam adentrado à Província. Na primeira metade do século XIX, sobretudo nas primeiras décadas, os casos de indivíduos que possuíam esse tipo de bem eram mais raros.308 Isso não implica em dizer que, antes do oitocentos, muitos sujeitos não pudessem adquirir esse tipo de produto, pois várias famílias possuíram desde a colônia, mas foi no século XIX que se elaborou novos sentidos, a partir de valores sociais ligados a novas práticas do consumo e maneiras sociais de viver. Nesse sentido, "as louças devem ser compreendidas não apenas em seu papel funcional, mas também simbólico."309 A lista de louças dessa inventariada, apesar de não poder ser considerada extensa, pode sugerir para o que Tânia Andrade chamou de emergência de um modo de vida burguês, 304 AVÉ- LALLEMANT, Robert. Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, 1961, p. 43. 305 GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. Op. Cit., p. 116; 170. 306 BATES, Henry Walter. Op. Cit., p. 125. 307 ROCHE, Daniel. Op. Cit, p. 233. 308 GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. Op. Cit. 309 DEETZ (1977) apud LIMA. Tânia Andrade. Prato e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX. In: Anais do Museu Paulista: São Paulo, v. 3, jan./dez., 1995, p. 129. 129 quando se referiu ao Rio de Janeiro. Podemos inferir que D. Olímpia estava apta a receber pessoas para pequenas ocasiões em família, dispondo já de apetrechos requintados, símbolos da cultura mais elitizada, sobretudo europeia. Embora não possuísse garfos, já havia um bom número de colheres de funções variadas e o aparelho de jantar indica que já havia uma boa organização no ritual do jantar.310 Os aparelhos de jantar completo, contendo travessas rasas e fundas, sopeiras, molheiras, jarras, fruteiras, cremeiras, tornaram-se "uma exigência no novo estilo de servir",311 e o galheteiro com cinco vidros, por exemplo, era um objeto elegante sugerido por vários manuais. O livro O cozinheiro nacional, o segundo livro de culinária e gastronomia editado no Brasil, na segunda metade do século XIX, por volta da década de 1870, trata a respeito dos utensílios de cozinha indispensáveis para o preparo de alimentos. No que se refere ao serviço da mesa, além das referências as travessas, aos copos e aos talheres, destacou que quem tivesse servindo deveria dispor de um galheteiro com cinco vidros para servir azeite, vinagre, mostarda, pimenta e sal. O aparelho de chá, que mesmo não tendo sido descrito de maneira pormenorizada, incluía basicamente bule, leiteira, açucareiro, xícaras e pires, sendo um bom exemplo de que novos hábitos haviam sido introduzidos. O movimento geral no sentido de uma maior individualização e especialização, ocorrido ao longo do século XIX, atingiu também o domínio da alimentação, em todas as suas expressões como já foi visto. Entre elas, o equipamento da mesa, que se diversificou consideravelmente: novas formas foram inventadas e adaptadas a funções antes preenchidas por implementos multifuncionais, sofisticando sobremaneira o aparato destinado ao consumo dos alimentos.312 A porcelana, material que compunha o aparelho de chá de D. Olímpia foi eleito pela aristocracia no século XVIII "como um poderoso elemento de distinção social." A posse desses utensílios significava a incorporação dos modos de viver trazidos do outro lado do Atlântico. Posteriormente, este material que era bastante caro foi substituído por um material bem mais barato e tivemos a explosão do consumo das faianças disseminadas por várias partes do globo e por muitas mesas.313 Possivelmente, o aparelho de chá tratado fosse uma faiança, mas tinha um valor simbólico e econômico, pois foi avaliado em 25$000. Ainda assim, poderia ser considerado um elemento de sofisticação e distinção social, e seu uso 310 VISSER. Margaret. O Ritual do Jantar: as origens, evolução, excentricidades e significados das boas maneiras à mesa. Rio de Janeiro: Campus, 1998. 311 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Op. Cit., p. 172. 312 Ibidem, p. 171-172. 313 Ibidem. 130 deveria estar associado a momentos de sociabilidade, juntamente com as salvas de prata, indicados para servir bolachas, biscoitos e bolos. Outros bens importados pertencentes a D. Olímpia eram os objetos de iluminação. Aqui podemos destacar um objeto em especial: o castiçal de prata. O valor do castiçal de prata de 70$000 em muito se difere dos outros objetos de iluminação dessa casa localizada na Rua da Pedreira. Isto porque a lamparina, o lampião de vidro para o corredor, o candeeiro de latão, estavam presente na maior parte dos inventários em que foram identificados objetos de iluminação e seus valores oscilavam entre $600 e 12$000 de acordo com os avaliadores. Todavia, os castiçais de prata estavam presentes nas casas mais abastadas. Nos jantares ou banquetes, o cuidado com a belíssima apresentação dos pratos era ainda maior. Os castiçais de prata, colocados nas extremidades da mesa, as fruteiras e floreiras no centro, davam um charme ao conjunto com os pratos, talheres de prata e cálices de cristal.314 Em uma realidade marcada pela "tirania das horas escuras"315 em que se desfrutava exclusivamente de formas engenhosas de iluminação como os candeeiros e os lampiões, os castiçais serviam para dar um tom de refinamento à parca iluminação. Eles eram um importante componente da mesa de jantar, dando uma impressão de requinte e bom gosto. Por se colocarem nas pontas da mesa, eram necessários dois castiçais de prata que era exatamente o que encontramos neste inventário. Outros inventariados tinham mais de dois castiçais de prata, o que sugere que poderia haver um revezamento entre eles entre um jantar e outro, ou que poderiam ser colocados em outras posições na casa. O fato de D. Olimpia ter deixado dois castiçais significa que ela desfrutava de itens básicos requintados para o ritual do jantar, o que caracteriza um modo de vida privado em acordo com as transformações culturais e econômicas. O bem mais caro era um piano em bom uso avaliado em 200$000. Esse era um bem importado de poucos lares, enquanto que as flautas, a rabeca e o violão eram instrumentos europeus mais comuns, como foram disponibilizadas em larga escala no inventário de um dos comerciantes, o qual trataremos depois. De modo geral, como também é o caso do Rio de Janeiro, a partir de 1850 houve um aumento na importação de pianos,316 sendo um objeto de desejo dos lares patriarcais. 314 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 159. ROCHE, Daniel. Op. Cit, p. 155. 316 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. Cit., p. 45. 315 131 Comprando um piano, as famílias introduziram um móvel aristocrático no meio de um sobrado urbano ou nas sedes das fazendas - o salão: um espaço privado de sociabilidade que tornará visível, para observadores selecionados, a representação da vida familiar (...). Vendendo um piano, os importadores comercializavam - pela primeira vez desde 1808 - um produto caro, prestigioso, de larga demanda, capaz de drenar para a Europa e os Estados Unidos uma parte da renda local antes reservada ao comércio com a África, ao trato negreiro.317 Freyre se referindo as mudanças na vida social no Brasil no século XIX, afirma que nas casas aristocráticas "raramente faltava um piano". Empregando uma frase de Francis de Castelnau, naturalista inglês que esteve no Brasil na década de 1840, Freyre destacou que "no Brasil 'em quase todas as casas vê-se ou ouve-se um piano, muitas vezes nas mais pobres.318'" O piano é um importante produto dentre os importados para a Província do Pará, senão em quantidade, mas como representação de novos valores culturais incorporados em algumas casas, que não necessariamente sobrados ou casas de fazendas. No caso de D. Olimpia, era uma casa térrea que não valia dez por cento do seu espólio. Bates observou que os principais instrumentos eram a flauta, o violino, o violão e o cavaquinho, sendo que "o violão era o instrumento favorito tanto dos rapazes como das moças, no Pará; mas o piano estava rapidamente tomando o seu lugar."319 Observe a figura abaixo. Figura 5 - Anúncio de venda de acessório para piano Fonte: Gazeta Official, 10 de agosto de 1858, n. 76, p. 660. A figura acima expõe o anúncio de "polka" para piano em 1858, o que evidencia que não apenas o piano, mas outros aparatos que lhe garantiria o funcionamento estavam 317 Ibidem, p. 47. FREYRE, Gilberto (2008). Op. Cit., p. 91. 319 BATES, Henry Walter, Op. Cit. p. 141 318 132 disponíveis no comércio de Belém. A tendência notada por Gilberto Freyre em outras províncias encontrou correspondência no Pará. Um caso expressivo, quanto ao uso dos produtos importados, é o do Reverendo Thomas Nogueira Picanço. Seu monte-mor era de 1087,46 libras (8:124$620), porém sua dívida ativa comprometia 63% da sua renda. A despeito da enorme dívida que deveria ser quitada pelo seu sobrinho, pois foi quem inventariou os seus bens, o reverendo José Joaquim Alves Picanço pode desfrutar de uma multiplicidade dos objetos importados. Aqui trataremos, ainda, dos relacionados às coisas de uso público e/ou privado. A maior parte do seu espólio estava investida em uma casa de sobrado, na Rua das Escadinhas número 1, no valor de 568,12 libras (4:500$000) e em um chãos "fazendo frente para a Rua do Açougue"320 avaliado em 63,12 libras (500$000). Entre os bens arrolados, no ano de 1841, observamos objetos relacionados a casa, a iluminação, a leitura, a música e a religiosidade. Oito cadeiras com assento de palhinha, 16$000; uma cadeira com assento de palhinha [valor não descrito]; seis cadeiras de pau pintadas americanas, 6$000; um canapé com assento de palhinha , 8$000, [valor não descrito] uma salva de prata com o peso de duzentas e dezenove oitavas, 26$280; uma outra salva de prata com peso de duzentas e treze oitavas, 25$560; um cabo de faca com o peso de dezoito oitavas, $960, seis cabos de faca com o peso de setenta e oito oitavas de prata, 9$360; seis cabos de garfos com o peso de setenta e duas oitavas de prata, 8$640; 3$120; um garfo todo de prata, 2$160; uma colher grande de tirar sopa de prata, 3$780; sete colheres pequenas de prata para sopa com o peso de noventa e três oitavas, 11$160; seis colheres pequenas de prata para chá e uma colher de prata para tirar açúcar, 4$320; uma terrina, $240; dezesseis pratos redondos, $640; quatro pratos travessas de diferentes tamanhos, $640; um prato redondo grande, $240; onze xícaras e doze pires, 1$000; um manteigueira, $160; um açucareiro, 160; três pratos para fatear, $180; uma tigela de lavar $100; um estojo de navalhas de barba com gaveta, $600; uma condessa muito velha, [valor não descrito]; cinco mangas de vidro, 10$000; Seis castiçais de prata, 67$080; um lampião, 1$000; uma estante com sessenta e três livros velhos [valor não descrito]; sessenta e três livros velhos, 6$300; um violão, 4$000; um realejo de música com relógio estampado, 40$000; um tinteiro de estanho, $080; um Cristo [valor não descrito]; um oratório de madeira pintada com seis imagens, 3$000.321 O Reverendo Picanço tinha muitos dos bens semelhantes ao de D. Olimpia Paes de Carvalho, principalmente em se tratando das louças e dos móveis. Fazia parte do seu espólio as famosas cadeiras de palhinha, um canapé do mesmo material e cadeiras de pau pintadas americanas. Realmente, os móveis que tinham encosto começavam a se tornar comuns, mas não tão comuns como os simples banquinhos que eram muito usados nas casas dessa Província, pois praticamente em todos os inventários vários desses banquinhos foram 320 Rua que ia do canto das Mercês a Travessa dos Mirandas. Cf. CRUZ, Ernesto (1952). Op. Cit., p. 84. A Rua do Açougue é a atual Gaspar Viana. 321 CMA, Inventário de Thomas Nogueira Picanço, 1868. Caixa: 055.579.610.582.723. 133 avaliados, geralmente por um baixo valor. Para o serviço das refeições, além dos mesmos que já havia no inventário do qual falamos anteriormente, podemos destacar os cabos para faca e garfo com pesos em prata, as travessas de diversos tamanhos e uma tigela de lavar. Através desses objetos, presumimos que o jantar tivesse um lugar especial na vida do inventariado. Nos meados do XIX, "a mesa de comer ganhou um ambiente próprio, que lhe foi exclusivamente destinado - a sala de jantar - transformada em ambiente imprescindível na casa burguesa."322 Os talheres, por sua vez, "foram se fortalecendo como mediadores entre o estado de natureza e o estado da cultura."323 O uso das travessas que desde o século XVIII até a primeira metade do século XIX traduzia fartura, na medida em que nelas eram colocadas uma grande profusão de alimentos, na segunda metade do XIX, "as travessas de alimentos foram retiradas da mesa e depositada em aparadores ou em apoios laterais."324 Isso ocorreu em função da mudança do jantar à la française para o serviço à la russe,325 que trouxe uma revolução para o comportamento à mesa e todo o ritual do jantar. A utilização da tigela com água para lavar as mãos também passou por transformações. Até as primeiras décadas do oitocentos, mantinha-se um antigo costume de enxaguar a boca após a refeição, que depois foi considerada uma prática desagradável. De acordo com essa prática, no final do último prato servido traziam-se tigelas com água fria e um copo de água quente no meio. Então, molhavam-se os dedos na água fria fazia-se um gargarejo com a água quente e em seguida jogava-se a água do gargarejo na tigela novamente. Com a introdução do novo serviço a la russe, as tigelas passaram a conter lavandas em que deveriam ser mergulhadas rapidamente a ponta dos dedos, passando a ter esse ato "um caráter mais ornamental e simbólico que propriamente utilitário."326 Não estamos querendo dizer com isso que o serviço de jantar da casa do revendo obedecia cabalmente a essas regras. No entanto, considerando que o uso dos objetos pressupõe práticas, a partir de uma relação entre o material e o sensível, podemos dizer que havia um processo de assimilação em curso que poderia ser caricato, mas representava as mudanças com a introdução de novos objetos na Província, e significava também a escolha do 322 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Op. Cit., p. 136. Ibidem, p. 140. 324 Idem, p. 144. 325 O jantar à la française se consolidou na França no século XVIII e era marcado pela transmissão da impressão de opulência e abundância. Para isso, a mesa precisava está carregada de alimentos e objetos decorativos dispostos de maneira simétrica. Todos os aparatos do jantar eram colocados sobre a mesa. Esse modelo perdurou até a primeira metade do século XIX, quando foi substituído pela jantar à la russe, que teve como principal novidade o serviço de pratos em sucessão e não mais simultaneamente como antes. Cf. LIMA. Tânia Andrade. Op. Cit., p. 141-144. 326 Ibidem, p. 148. 323 134 indivíduo por ter esses objetos e não tantos outros que poderiam ser adquiridos. Encontramos também em meio aos objetos de uso comum, um objeto de uso pessoal, um estojo de navalha de barba, o que aprofunda cada vez mais as noções de intimidade e individualidade da sociedade, que aqui teve fortes reflexos. Quanto aos objetos de iluminação, localizamos novamente os castiçais de prata que estamos entendendo enquanto um objeto requintado. Há também uma variedade de mangas de vidro e um lampião, o que pressupõe um bom investimento de 11$000 réis nesses objetos de usos mais comuns. As mangas de vidro serviam para proteger as chamas das velas nos castiçais, resguardando-as dos ventos e dos insetos. No caso do lampião, ele funcionava a base de outros produtos importados, como por exemplo, os azeites de baleia, facilmente encontrados na descrição das cargas dos navios. O inventariado era dono de uma boa quantidade de livros, somando sessenta e três no total. Na década de 1840 já se pode falar em leitura com um pouco mais de liberdade, sobretudo a partir da criação da imprensa no Pará em 1822 com o jornal O Paraense.327 Em 1840 houve a criação da Biblioteca Pública de Belém, "que funcionava em uma das salas do Colégio Paraense,"328 em 1857 fundou-se um Gabinete Português de Leitura e em 1867 foi criado o Grêmio Literário Português, onde “os sócios ali encontrarão uma magnífica bibliotheca de obras de instrucção e recreio, e os jornaes mais modernos da América e Europa."329 Segundo Geraldo Mártires Coelho, os "jornais de Lisboa e do Porto, chegados em regime de assinatura, conferiam um sentido cosmopolita as leituras."330 Para além desses lugares de sociabilidade, (...) a partir de 1850, no Brasil, 'sentia-se a prosperidade no ar, a cultura se aprimorava (...) em um ritmo superior ao da década anterior', o que corroborou para a expansão do mercado livreiro. Observou-se a expansão do livro por todo o território nacional. No Rio de Janeiro, livreiros como Laemmert e Garnier se definiam como grandes editores. Em outras províncias como a do Pará, percebeu-se, nesse mesmo período, a veiculação de jornais diários pela primeira vez em sua história. Livreiros portugueses e brasileiros se estabeleceram, fazendo concorrência às livrarias religiosas que existiam até então – uma de religiosos do Convento de Santo Antonio e a outra de religiosos Carmelitas.331 Não são descritos nos inventários de Thomas Nogueira Picanço os títulos das obras de sua propriedade. No entanto, pela sua formação religiosa supomos que boa parte desses 327 COELHO, Geraldo Mártires (1989). Op. Cit. NOBRE, Izenete Garcia. Op. Cit., p. 90. 329 Diário do Gram-Pará, 22 de setembro de 1858, n. 215, p. 3. 330 COELHO, Geraldo Mártires, (2005b). Op. Cit., p. 360. 331 NOBRE, Izenete Garcia. Op. Cit., p. 22. 328 135 livros, se não todos, poderiam ter um caráter menos laico, ainda mais considerando a existência de duas livrarias religiosas na capital. Por outro lado, poderia também ter desfrutado de outras leituras ainda que não fossem tão difundidas antes de 1850. De qualquer modo, ter uma pequena biblioteca particular em casa não era prática muito corriqueira na primeira metade do XIX. Se analisarmos o caso do juiz João Batista Passos, sendo o seu inventário já de 1869, percebemos a variedade de obras que ele possuía, a maior parte delas voltada para o conhecimento do Direito. Por ser a formação em Direto recente no Brasil, possivelmente a maior parte desses livros era importada, importação esta possibilitada pelos novos meios de divulgação amplamente incrementados na Província. Mas do que analisar o conteúdo do livro, o que mais importa é entender o significado da prática da leitura naquele momento para aquela sociedade, assim como "o livro como um objeto cultural repleto de usos e significados construídos historicamente."332 Dessa maneira, "a leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, em espaços, em hábitos,"333 e naquele contexto foi apropriada por uma pequena camada letrada. Podemos também destacar o realejo musical com relógio estampado e o violão presentes na casa do inventariado. O primeiro, produto da indústria portuguesa, não era um produto considerado trivial, encontrado em somente dois dos inventários levantados. O segundo considerado mais comum e amplamente difundido no comércio da capital. No inventário de D. Angela Penna da Rocha,334 esposa de um importante comerciante da capital, constava inúmeros instrumentos musicais, bem como seus acessórios. Ela tinha vários contos de réis investidos nesses objetos que pertenciam à loja como, por exemplo, quatro violões franceses de jacarandá, três violões franceses amarelos, trezentas e onze dúzias de cordas de ré para violão, trezentas dúzias de cordas de lá para violão, cento e vinte e três dúzias de cordas de mi para violão e dezesseis métodos de violão, dez dúzias de cordas para violoncelo, cento e cinquenta e nove cavalhetes para violão e rabeca, quatrocentos e cinquenta cravos para violão e cento e dez dúzias de bordões sortidos para violão. Nessa loja havia uma infinidade de produtos voltados para a música. Eram flautins, flautas, cavaquinhos, clarinetes, rabeca, saxofone, bem como toda sorte de adicionais que para eles fossem necessários. Mesmo com o aumento na aquisição de pianos, o uso de outros instrumentos, 332 Ibidem, p. 19. CHARTIER, Roger. Comunidade de Leitores. In: CHARTIER, Roger. A ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 13. 334 CMA, Inventário de Angela Penna da Rocha, 1865. Caixa: 400.965.140.112.313. 333 136 entre eles os violões continuaram fortemente arraigados na Província, como já havia destacado Bates. Abaixo um estabelecimento que contém artigos variados. Figura 6 - Estabelecimento de um sapateiro em Belém, 1862 Fonte: Biard. Une boutique au Pará, 1862.335 Acima, vemos um indivíduo desenvolvendo a atividade de sapateiro. É uma fotografia que data do ano de 1862. A imagem mostra vários objetos pendurados e dispostos nas paredes da loja como se fossem objetos de ornamento ou decoração, entre eles um violão e um saxofone, o que demonstra a presença marcante desses objetos na capital da Província. Além de ter registrado através de imagem, o viajante Francês François Biard em uma das suas narrativas disse se referindo a Belém: "encontram-se aqui objetos os mais disparatados numa mesma loja, eram "sapatos ou guarda-chuvas onde se vende tabaco" e "um sapateiro expõe a venda também licor Chartreuse, violão e papagaios.336 Corroborando esta tendência Alfred Wallace falava que os negócios eram "providos de uma miscelânea de artigos."337 335 Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/002856-076. BIARD, François Auguste. Op. Cit., p. 132. 337 MELLO-LEITÃO, Cândido de. Op. Cit., p. 28. 336 137 Por último, ressaltamos no inventário do reverendo Picanço os objetos religiosos como imagens e oratórios, e nem poderiam faltar por causa da sua função religiosa. Por outro lado, o uso dos objetos sagrados no período em que estamos analisando, eram muito comuns por pessoas de camadas sociais diferenciadas, o que muda geralmente é o material com que eram fabricados, que poderia ser de barro, de madeira, ou até de prata e ouro. São vários os emblemas religiosos que se mostravam presentes nas casas das famílias belemenses, porém nenhum deles era tão marcante quanto a presença dos oratórios particulares. Este móvel sacro ocupava um espaço de destaque na casa, geralmente a sala era um campo destinado para a instalação dos oratórios, porém o quarto ou cômodos específicos também foram destinados em moradias para estes móveis.338 Nos inventários analisados dos grupos os abastados e os mais abastados existiam seis oratórios. No entanto, muitos que não dispunham de um oratório em casa tinham outros objetos sacros relacionados aos muitos santos de devoção. Eram comuns imagens de Santo Antonio, São João, Santa Luzia, Nossa senhora da Conceição, muitas delas com resplendor ou coroa de prata ou de ouro. Essas imagens importadas eram constantes na descrição das cargas das embarcações e nos inventários, sendo de grande importância na vida da Província, que ainda se mantinha interrelacionada com a antiga Metrópole, tanto que Portugal era de onde mais se importava os oratórios e os artigos religiosos em geral. Luiz Mott, se referindo ao oratório, afirma que ele era uma "espécie de relicário".339 Portanto, de menor ou maior valor, os objetos religiosos tinham uma importância para a maior parte da população que se mantinha fiel aos preceitos da fé cristã difundida na colônia. D. Maria Pimenta Boeno, foi casada com Manoel Antonio Pimenta Boeno, capitão da Guarda Nacional, era "Moço Fidalgo da Casa Real de S. M. F., Official da Imperial Ordem da Rosa, Cavalheiro da Ordem de Christo e Coordenador da Real Ordem da Conceição de Villa-Viçosa de Portugal."340 Ele também foi o fundador da praça do comércio do Pará em 1864, e seu primeiro presidente, eleito em 1867 e reeleito em 1868.341 Dono de uma fortuna de 9868,76 libras (97:872$000) e sem nenhuma dívida a pagar, como cabeça de casal, após a morte da sua esposa, ele inventariou muitos bens de uso privado e/ou público. 338 GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. Op. Cit., p. 168. MOTT, Luiz. Cotidiano e vivencia religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de Melo. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 164. 340 Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1869. 341 CRUZ, Ernesto (1996). Op. Cit. 339 138 uma salva grande com quarenta e seis oitavas de prata, 90$400; uma salva pequena com o peso de sessenta e seis oitavas de prata, 30$400; duas salvas de casquinha, 20$000; um paliteiro com o peso de setenta e quatro oitavas de prata, 29$600; um paliteiro com o peso de cinqüenta oitavas de prata, 20$000; dois pares de castiçais altos de metal branco, 40$000; um faqueiro com doze colheres para sopa, doze garfos, uma concha, uma colher para tirar arroz, tudo de latão galvaniado a prata, 50$000; seis colheres pequenas para chá, 10$500; um bule de prata com noventa e duas oitavas, 30$000; uma cafeteira com o peso de oitenta e quatro oitavas de prata, 25$000; três lamparinas, 20$000; um relógio para cima da mesa, 12$000; uma mobília para sala de jantar com todos os seus pertences em bom estado, 800$000; uma mobília completa de sala, 800$000; uma mobília mais inferior de sala de espera, 400$000; um piano em bom estado, 900$000. Uma parte considerável da fortuna de D. Maria Pimenta Bueno estava investida nos bens da sua casa na Rua Nazareth nº 12. Pelos objetos, percebemos que os cômodos da casa eram bem divididos, pois havia sala de jantar, uma outra sala e, ainda, a sala de espera. Essa estrutura da casa pressupõe o uso de objetos específicos para cada espaço, o que é uma característica própria das casas mais abastadas da segunda metade do século XIX e, reverbera o poder econômico e social daqueles que podem possuir esse tipo de moradia, o que também está relacionado com o processo contínuo de higienização dos costumes.342 É possível compor um cenário por meio da reflexão a partir de fragmentos da cultura material. A diferenciação entre os cômodos da sala, pressupõe o uso de objetos adequados para cada espaço. Os valores despendidos com mobília evidenciam que para cada divisão da casa contavam seus objetos específicos. Essa é uma concepção própria do oitocentos, em que os cômodos da casa, bem como suas decorações, sobretudo os de uso não privativo, como é o caso das salas, demonstram o lugar social da família na sociedade, por ser um lugar observado pelas visitas. Trataremos agora da segunda categoria mais constante nos inventários, isto é, as indumentárias e as joias. Essa categoria compreende toda espécie de adorno para roupas e pessoas, tecidos, linhas, enfim, tudo que pode está relacionado ao vestuário e a qualquer tipo de acessório de uso individual. Essa reflexão tem a ver com os modismos difundidos a partir de 1840 e, portanto, com o que poderia ser considerado de luxo, mas também com o que passou a ser usual partindo de necessidades básicas, como vestir, por exemplo. Abordaremos, principalmente, o vestuário considerando não somente as roupas prontas, mas os materiais importados para fabricação, tais como os tecidos e as linhas. A indumentária seria, neste caso, não somente os objetos que servem para vestir o corpo, mas todos os elementos que compõem o todo apresentável socialmente, isso inclui os chapéus e os lenços. No que diz respeito as joias, discutiremos os objetos de ouro e prata que serviam para 342 ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização dos costumes. São Paulo: Fapesp, 2003. 139 adornar tanto as pessoas quanto as roupas. O sentido da discussão perpassa pela compreensão dos objetos, enquanto uma expressão da moda, como um símbolo de modernidade, embora seja necessário reiterar que nem todo objeto importado é um símbolo de distinção social.343 (...) a moda a partir do século XIX tornou-se uma extensão do ethos social na moderna urbe. Através da sucessão de estilos de roupa gerados ao longo do século, podemos “ler” a realidade social e o universo cultural das gerações que se seguiram no decurso do mesmo. Isso é possível porque a roupa, na categoria de composição indumentária, é composta em sua forma e significado por símbolos que representam a evolução das sociedades. Por ela podemos observar as mudanças ocorridas nos papéis sociais, na vida pública e privada dos indivíduos, assim como perceber a importância adquirida pelo corpo e sua ornamentação nas sociedades complexas, sobretudo a partir do contexto social do século XIX".344 É nesse contexto social, de mudanças dos meados do XIX, que o Pará adquire novos hábitos de consumo, a partir das importações internacionais. O inventário de Francisco de Paula Coelho, comerciante local, é elucidativo desse novo cenário cultural, experimentado antes mesmo de a borracha tomar o primeiro lugar na pauta das exportações. Na loja dele, tinham muitos objetos de uso público e/ou privado, mas o que queremos destacar são os objetos ligados ao vestuário, sendo que a maior parte das mercadorias eram os tecidos. Os têxteis, especialmente os artigos de algodão eram os principais artigos importados sendo que, em meados do século XIX, eles representavam três quartos de suas exportações para o Brasil, e foram responsáveis por mais de 65% das importações brasileiras da GrãBretanha até 1870.345 Os dados da Alfândega do Pará apontam na década de 1840 que a importação de tecidos e outras manufaturas de algodão, lã, linho e seda tiveram um incremento importante, pois eles no ano de 1841 representavam mais de 54% de tudo o que era importado da Inglaterra.346 Os tecidos eram sarjão, cassa, bretanha, riscados, brim branco, brim de cor, dril branco, chita, zuarte e cambraia. Na loja da já citada D. Angela Penna da Rocha não encontramos somente aqueles objetos ligados a música como também seiscentas e vinte e 343 Reduzir a história da moda a apenas a apenas um símbolo de distinção social teria conduzido a temática a um enfoque empobrecedor, quando na verdade ela teria surgido relacionada a dois valores fundamentais da modernidade: a importância do novo e a expressão da individualidade. Nesse caso, "a moda não é mais um efeito estético, um acessório da sua vida coletiva; é sua pedra angular. Ver LIPOVETSKY (1989), apud ALMEIDA, Adilson José de. Indumentária e moda: seleção bibliográfica em português. In: Anais do Museu Paulista: São Paulo, v. 1, 1995, p. 251-297. 344 BRANDINI, Valéria. Moda, Comunicação e Modernidade no século XIX. A fabricação sociocultural da imagem pública pela moda na era da industrialização. Revista Interin. Paraná, n. 6, 2008, p. 14. 345 GRAHAM, Richard (2004). Op. Cit. 346 Collecção de mappas estatisticos do commercio e navegação do Imperio do Brasil no anno financeiro de [1841-1842]. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1848. 140 quatro gardas de chita em retalhos, sete peças de riscado azul e branco, duas peças de dril azul, doze peças de pano americano, dez peças de riscado forte, uma peça de riscado xadrez, quatrocentos e vinte côvados de seda branca, trinta e oito côvados de seda preta lavrada, três cortes de lãzinha, sete peças de merinó setim, cinquenta e nove côvados de dril branco, vinte e três varas de chita preta, nove côvados de casemira, treze varas de bobinete, duzentas e noventa varas de cambraia de linha de cor, duzentas e quarenta varas de renda, cento e onze côvados de chaly, sete peças de ganga adamascada, bem como toda sorte de linhas e materiais para o fabrico das roupas.347 A lista de tecidos na loja dessa inventariada era vastíssima, como também houve o arrolamento de algumas roupas prontas como camisas, calças e sobrepeles. De acordo com a descrição dos tecidos neste estabelecimento comercial, achamos aproximadamente duzentas referências a tecidos com suas respectivas medidas, vários deles com a expressa menção a origem, tais como: três peças de morim francês, quatro peças de morim inglês, quarenta e oito gardas de pano americano enfestado, sessenta e duas gardas e meia de pano americano grosso, trinta e cinco côvados de linho francês, duas dúzias de riscadinho francês, entre outros. Pela quantidade e variedade dos tecidos encontrados nos inventários, afirmamos que a Província era um mercado consumidor em expansão assíduo das mercadorias produzidas no contexto internacional, sobretudo em Inglaterra, Portugal, França e Estados Unidos. Essas informações reiteram a proeminência da indústria têxtil no mercado de luxo anglo-americano. Fáceis de transportar e confeccionados com matérias-primas raras e preciosas como fios de metal e seda, os tecidos eram os símbolos de riqueza e poder dos príncipes do medievo europeu, período marcado pela forte mobilidade espacial das cortes. A partir do final do século XVIII, os tecidos estiveram no centro das transformações na estrutura da produção, foram alvo de investimentos tecnológicos e objetivo da criatividade artística. Durante o século XIX, a fascinação que os tecidos adamascados produziam explicava-se justamente pela sua inserção ambivalente no mercado, ou seja, a industrialização baixara custos e tornara acessível uma mercadoria que lograra manter a força aurática do objeto luxuoso.348 A maior parte desses tecidos citados estão ligados a esse mercado têxtil de luxo e a moda, ambos interligados a elementos fundamentais para o vestuário como são os tecidos. Segundo Roche, utilizando as palavras de um estudioso da evolução das vestimentas, "o vestuário é submetido à lei do progresso e as modas se sucedem com uma continuidade quase perfeita."349 Assim, como os outros produtos que a Província do Pará importava, os tecidos 347 Na loja do comerciante Francisco Antonio de Almeida Braga, encontramos muitos desses mesmo objetos. CMA, Inventário de Francisco Antonio de Almeida Braga, 1866. Caixa: 400. 965. 140. 112. 313. 348 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Op. Cit. p. 26. 349 ROCHE, Daniel. Op. Cit, p. 256. 141 também passaram por uma construção de sentido social e simbólico, que em Belém foi muito propiciado pela difusão da imprensa e seus modos de divulgação de ideias. Imagens como estas passaram a ser correntes nos periódicos pós década de 1840, acentuando-se a partir de 1850, sendo as fazendas um dos fortes produtos concorrentes de venda no comércio local. Figura 7 - Anúncio de vendas de tecidos Fonte: Treze de maio, 6 de janeiro de 1855, n. 432, p. 4. Nesse contexto, a moda passa a se orientar pela busca de novas demandas consumidoras. Para isso, se reportam a boa qualidade do produto e o valor do mesmo, como se pode visualizar no anúncio acima. Assim, "a moda aprendeu a jogar com todas as possibilidades de linguagem para acelerar o consumo",350 compreendendo uma multiplicidade de sentidos que ultrapassam em muito o vestuário como utilidade ou necessidade e os mesclam à ideia do luxo, do requinte, do que se tem de melhor do outro lado do Atlântico. O luxo distingue os objetos inúteis e raros dos objetos ordinários, "cuja função decorre da sua capacidade, socialmente atribuída, de produzir valores e sentidos"351 que, neste caso, é estético. Logo, o vestuário seria um sistema de comunicação e, portanto, uma linguagem, que se apresenta com clareza no que Barthes chamou de moda escrita, encontrada com frequência nos periódicos.352 Os relatos dos jornais se correlacionam com as informações 350 Ibidem, p. 257. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Op. Cit. p. 25. 352 BARTHES, R. Sistema da moda. São Paulo: EDUSP, 1979. Barthes destacou três tipos de análises considerando o vestuário como um elemento da moda. Seria o vestuário escrito, composto por palavras em relação sintática (estrutura verbal), o vestuário imagem, considerando as formas, linhas e cores (estrutura icônica) e o vestuário real em que o produto depende das fases de sua fabricação, como o corte, a costura (estrutura tecnológica). 351 142 dos viajantes. Bates ao mencionar uma procissão, ocasião especial na capital da Província conta que As mulheres são sempre em grande número, com os bastos cabelos negros enfeitados de jasmins, orquídeas brancas e outras flores tropicais (...) Vestem-se com os costumados atavios dos dias de festa, com blusas de gaze e saias de seda preta (...).353 Não sabemos se o narrador se referia a mulheres abastadas ou não, mas as roupas de gaze e seda eram muito utilizadas em ocasiões especiais. Outros símbolos que adentraram com rapidez no cotidiano dos mais abastados e que ainda fazem parte da indumentária compondo o que designamos de todo apresentável socialmente foram as meias, os lenços, os chapéus e uma série de quinquilharias que serviam para completar o vestuário ou adornar os indivíduos, notavelmente, em situação de aparições públicas ou convívio social. Naquele mesmo comércio dos tecidos, que é o mesmo daquele dos objetos musicais, estavam vinte e quatro dúzias de lenços brancos, treze dúzias de meias para homens, nove dúzia de gravatas, quinze enfeites para senhora, quarenta pares de luvas, cinco dúzias de meias para crianças, doze peças de fitas lisas, seis peças de fitas lavradas, trinta e seis grosas de botões de ágata, vinte e nove dúzias de lenços sortidos, dez dúzias de lenços brancos de linho, vinte e sete chapéus de sol de seda e tantos outros complementos do vestuário que poderiam ser citados repetidas vezes em vários dos inventários selecionados. Esses adereços, ao que tudo indica, passaram a compor a vida material dos indivíduos mais endinheirados. Em 1859, Bates descreve como as moças brancas costumavam vestir-se no domingo em contraposição ao vestuário das moças tapuias. Os rapazes vieram endomingados para ver as moças que iam de chapéu de seda, para a igreja [...] entre as damas mais ou menos brancas, contrastavam maravilhosamente com as moças espartilhadas as fuscas tapuias, que, com as leves anáguas e as camisas brancas flutuantes, circulavam dum lado para outro.354 O uso do chapéu de seda era um diferencial das moças abastadas em relação as classes mais inferiores economicamente. Apesar disso, era apenas um dos ornatos entre muitos outros de origem europeia que passou a ser consumido no Norte do Brasil, juntamente com um vestuário, simples, sem rebuscamentos, fabricados com os tecidos mais simples e mais baratos. Ainda que seja forte a influência dos modismos europeus, "as maneiras de se vestir evoluíram segundo seus ritmos próprios," sendo que elas não dependeram apenas da 353 354 BATES, Henry Walter. Op. Cit., p. 45. AVÉ-LALLEMANT, Robert. Op. Cit., p. 80 143 história das modas, "pois a sociedade moderna veria coexistirem classes e maneiras mais ou menos tocadas pela mobilidade."355 Todavia, os que ascenderam por meio das atividades agrícolas, extrativistas ou mercantis, ou os que eram descendentes de famílias já privilegiadas desde a colônia podiam trajar-se à moda Europeia. O francês François Auguste Biard ao descrever a maneira que se trajou para encontrar o presidente da Província durante a sua permanência em Belém, deixa evidente alguns elementos próprios do modo europeu de se vestir, e como essa era uma prática recorrente nesta Província. Meu vizinho de quarto me levou um dia com ele a visitar o presidente da província e para tal metí-me na roupa preta, solenemente. O sacrifício aqui era maior do que no Rio, pois nos achávamos em cima da linha do equador e malgrado o bom exemplo do povo da terra em se mostrar vestido à Europeia, aparecem igualmente nas ruas todos de branco sem se envergonhar do indumento [...]. Contudo, para ir à presença do presidente, uma espécie de vice-rei [...]. Meu maior inimigo teria sentido piedade de mim ao me ver, em pleno meio-dia, com um sol bem alto, meter-me no traje de casimira [...] colete de seda e gravata branca, ajeitados com um trabalho enorme. Quando quis enfiar as luvas, elas estouraram por todos os lados, o que foi muito bem feito, porque entre os conselhos que me haviam dado ao partir para aqui, e dos quais motejara a princípio, existia o de usar luvas costuradas com linha e não seda, pois esta com o calor se partiía facilmente. De uma dúzia de pares possuídos apenas uma pode mais ou menos me servir; calcei a menos estragada e enrolei a outra na mão com que deveria pegar o chapéu, esse chapéu a me apertar as têmporas e me fazer suar horrivelmente. Meu companheiro, no entanto, mostrava-se ufano: ele estava a gosto com suas calças, suas polainas e seus suspensórios.356 O francês ao usar roupas de casimira, colete de seda, gravata branca, luvas e chapéu, sentiu um extremo desconforto em função do clima local. Aquilo lhes parecia um tanto estranho, o que lhe fez ter inveja do seu companheiro que se vestiu de forma menos ostentatória, parecia já um tanto comum na capital do Pará. Esse modo de vestir, ainda que aos olhos do próprio europeu soasse estranho e inapropriado para uma região tropical, buscou atrair diversos gostos e um público o mais variado possível, considerando as questões de sexo e idade. Isso se reflete na busca por um público masculino e feminino, que abrangesse homens, mulheres e crianças nas suas especificidades. 355 356 ROCHE, Daniel. Op. Cit, p. 257. BIARD, François Auguste. Op. Cit., p. 133-34 144 Figura 8 - Anúncio do Bazar Paraense Fonte: Jornal Treze de maio, 16 de fevereiro de 1861, n. 4, p. 8. O recorte de jornal acima mostra que os produtos eram propagandeados se fazendo menção ao sexo. O desejo de alcançar a satisfação, sobretudo do sexo feminino, parecia ser preponderante, não apenas por parte dos apelos publicitários como também dos homens, que passaram a representar o seu poder monetário e social através da ostentação das vestes de esposas, mães e filhas.357 Aliás, essa é uma característica primordial dos meados do oitocentos. João Affonso do Nascimento, maranhense, estudioso da moda, ao escrever um livro sobre esse tema para comemorar o tricentenário da cidade de Belém em 1916, afirmou ao tratar do vestuário masculino: (...) uniforme monótono, sem estética, sem pitoresco, sem graça, com o único préstimo de servir de contraste para realçar a elegância, a arte, a esbelteza do sexo feminino. 357 BRANDINI, Valéria. Op. Cit., p. 3. 145 Para ele, no primeiro quartel do século XIX o traje masculino estagnou. Segundo ele, "o trajo do homem civilizado fixou-se para sempre e nunca mais variou". As peças que compunham o vestuário masculino eram casaca, sobrecasaca, fraque, paletó de gola aberta ou fechada, coletes autos ou decotados, camisa branca ou de cor, gravata de dar laço ou de laço feito, calça de boca de sino ou de boca estreita, chapéu, botina, borzeguim ou sapato, bengala grossa ou fina, guarda chuva ou chapéu de sol, "em suma, 'mutatis, mutandis, o mesmo fraque, o mesmo colete, a mesma calça, o mesmo chapéu, a mesma botina".358 Abaixo uma imagem representando a forma de vestimenta dos meados do século XIX. Figura 9 - Vestuário Masculino no ano de 1850 NASCIMENTO, João Affonso. Três séculos de moda. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1976. Para o autor de uma cultura que considerava de pura influência estrangeira, e especialmente afrancesada pelo gosto estético, ele mostrava um expresso descrédito pelo modo de vestir-se da primeira metade do século XIX. Antes, preferia o elegante século XVIII e classificava os anos entre 1830 e 1850 como quase de completa estagnação em se tratando de modas.359 João Afonso de Miranda criticava esse modo de vestir classificando como pouco elegante e simplório. 358 359 NASCIMENTO, João Affonso. Três séculos de moda. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1976, p.130. Ibidem, p. 135. 146 Em 1850, na França, a moda teria dado seus primeiros sinais de mudança, sobretudo o vestuário feminino. A moda teria sacudido a apatia em que há muito tempo se imobilizara, e começaram a aparecer novas criações. De acordo com João Affonso, os triunfos militares, o desenvolvimento da riqueza pública, os recentes embelezamentos da cidade forneceram temas para as novidades nos tecidos e enfeites. A imagem do vestuário feminino abaixo demonstra essas mudanças visualizadas pelo estudioso da moda. Figura 10 - Vestuário Feminino no ano de 1850 NASCIMENTO, João Affonso. Três séculos de moda. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1976. Utilizando o drama "A dama das Camélias" para falar dos elementos da moda então emergente, destacando a preocupação da peça com a cor local e o vestuário da época, ele descreve a forma como estava vestida a personagem principal, Margarida Gautier. Ela vestia roupas com mangas curtas, "ampla saia de setim coberta de rendas filós bordados toucado de plumas e fios de pérola sobre fartos bandós negligentemente caído sobre as orelhas"360 formavam uma legítima representação do estado de alma da sociedade francesa naquele momento histórico. 360 Idem, p. 136. 147 No entanto, os anos posteriores, segundo João Affonso, seriam marcados por um profundo exagero em matéria de modas, causada pela ambição dos modistas. O excesso de panos nas roupas era tamanho, "cuja extensão mal permitiria a três damas sentadas ocupar a saleta de uma casa." Dessa maneira, "a vintena de 50 a 70 encaminhava-se a largos passos para os mais absurdos disparates" em que o "mau gosto campeia triunfante".361 Afora o próprio gosto do autor, a partir da sua concepção de moda, observemos que esses poucos ou mais exagerados trajes estiveram presentes na Província. Podemos inferir isso por causa dos objetos materiais que neste porto chegaram e passaram a compor a fortuna de uma parte da população, isto é, os tecidos mais finos e muitos tipos de adornos que compunham o vestuário belenense à moda europeia, sobretudo francesa. O recorte de jornal abaixo mostra o anúncio da loja Cidade de Paris, que recorria à referência francesa no oferecimento de produtos vindos de portos europeus. Figura 11 - Anúncio de venda de calçados Fonte: Gazeta Official, 9 de outubro de 1858, n. 126, p. 4. O nome da loja já é uma referência à incorporação da moda francesa, embora também se tivesse oferecendo produtos portugueses. Mas não é o vestuário a única expressão da moda. As joias também se tornaram um símbolo ostentatório de riqueza. Na descrição das cargas dos navios encontramos ouro, contas, contas de ouro, contas marítimas, objetos de prata, contas de vidro, adereços de contas, relógios, relógio de ouro e prata, relógio de algibeira, pulseiras, brincos, braceletes, bijuteria, coral (corais), coralina e cordão. Parte considerável das joias usada na Província era importada, quando não vinha o produto 361 Idem, p. 137-138. 148 acabado, pronto para o uso, chegava a matéria prima para ser manuseada através do trabalho de ourivesaria existente em várias partes da cidade. O casal Manoel da Conceição Pereira de Castro e Maria Leocadia da Conceição Castro, donos de uma fortuna de 1426,74 libras (18:213$680) tiveram algumas joias inventariadas.362 Era uma corrente de relógio, um trancelim pesando dez oitavas, um anel pesando cinco oitavas e quatorze grãos, um cordão pequeno com uma santa Lígia e dois pares de brincos pesando duas e meia oitavas. Um cordão com crucifixo pesando trinta e sete oitavas, avaliado em 148$000 e um relógio de ouro de algibeira no valor de 80$000 eram os itens mais caros. Antonio José da Silva Neves, com fortuna de 1044,97 libras (9:361$000), possuía dois cordões de ouro, três alfinetes de ouro, o primeiro e segundo pesando meia e o terceiro uma oitava de ouro, um trancelim de ouro com o peso de duas oitavas, um anelão de ouro pesando duas e meia oitavas, uma banda de botão de ouro com o peso de uma oitava, uma banda de pulseira, entre outros. Poderíamos enumerar uma lista de inventariados que durante sua vida deram importância a este tipo de objeto material, fosse de ouro ou de prata, com diamantes, com mais ou menos detalhes. Bates observou em 1851 que todos os homens de posição e a maioria das senhoras usam relógios e correntes de ouro."363 É notório que com a Revolução Industrial, o gosto pelo luxo, além do vestuário, foi representado pelas inúmeras joias feitas com diamantes e outras riquezas. As joalherias foram, intensificadamente, tomando seu espaço frente ao mercado em expansão nos países excolonizados. De tal modo como as roupas, os adornos, as joias também tiveram espaço nos anúncios publicitários da Província. O anúncio abaixo, publicado em 1858, trata de um sortimento de joias vindo da Europa. O apelo publicitário se faz utilizando o país de origem dos objetos oferecidos, bem como a variedade desses objetos. A variedade de itens oferecidos também ajuda no conjunto do discurso sobre o objeto,364 criando uma mensagem publicitária que age por meio do convencimento de um público maior possível. Além disso, as imagens do anúncio também podem chamar atenção do consumidor sobre os artigos disponíveis naquele negócio específico. 362 CMA, Inventário de Manoel da Conceição Pereira de Castro e Maria Leocadia da Conceição Castro, 1869. Caixa: 275.117.268.240.697. 363 BATES, Henry Walter. Op. Cit., p. 141 364 Baudrillard, Jean. O sistema dos objetos. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 173. 149 Figura 12 - Divulgação de venda de joias Fonte: Gazeta Official, 18 de setembro de 1858, n. 108, p. 4. A loja de Guelfe Freire, localizada na Rua Nova de Sant'Anna divulgava seus serviços de joalheiro, fabricante e dourador e, oferecia relógios, adereços e obras de prata em geral, além de joias de ouro e pedras preciosas. A medida que esse público fosse sendo alcançado novos elementos da cultura material iam se tornando símbolo dessas camadas sociais mais favorecidas. Até este momento tratamos de alguns objetos que fazem aflorar à memória o luxo, o requinte, a moda presentes na Província em meados do XIX. A partir de agora mencionaremos as categorias, que não estavam diretamente relacionadas ao cenário crescente de uma relativa opulência, mas também fizeram com que Belém se tornasse uma cidade com uma ambiência cosmopolita, por serem também produtos estrangeiros. Faremos aqui uma pequena abordagem acerca dos objetos de trabalho e negócios, dos equipamentos e outros que categorizamos como diversos. 150 Os objetos de trabalho e negócios mais encontrados nos inventários foram armamentos e munições, materiais para imprensa, metais e ligas metálicas, moedas, papéis em geral, utensílios de costura, utensílios de ferreiro e ferragens, materiais para construção de casas e ruas, mas os que se sobressaíram foram os objetos para a atividade de marcenaria e carpintaria. Nesta categoria, há uma predominância das matérias primas para a fabricação de algum objeto. Com exceção das armas e munições, das moedas, os objetos de trabalho e negócio serviam para suprir as necessidades nas fábricas e oficinas na Província. Em 1859 Belém contava com 744 casas de comércio, que incluíam 251 tabernas, 209 lojas diversas, 95 armazéns, 43 oficinas, 30 açougues, 15 padarias, 11 fábricas, 5 boticas, 4 tipografias, e outros 81 estabelecimentos comerciais como hotéis, cartórios, escritórios, estâncias, quitandas, saboarias e barbearias.365 Parte significativa dos produtos importados iam para estes estabelecimentos, tais como os papéis para as tipografias, as tesouras e linhas para as alfaiatarias, as navalhas para as barbearias, as fateixas para os açougues, os metais e ligas para os fundidores, os martelos e foles para os ferreiros ou marceneiros. Esses são exemplos que demonstram o valor dos importados, fosse nas maiores casas comerciais ou nas menores fábricas e oficinas. Encontramos muitos desses objetos nos inventários. Na loja do comerciante Francisco Antonio de Almeida Braga tinha para vender quatro mil espoletas, um quintal de chumbo em grão, oito fuzis, trinta e sete e meia libras de pólvora, um barril com pólvora, seis oitavas de prata, uma resma de papel de peso, quatro resmas de papel almaço de algodão, um milheiro de agulhas, ferragem, vinte e oito libras de peso de ferro, trinta e cinco arroubas e vinte e três libras de ferro, um milheiro de telhas, e vinte libras de pregos americanos.366 No inventário de Maria do Carmo Lopes listamos uma bigorna, quatro martelos para ferreiro, um fole pequeno, quarenta e oito libras em peso de ferro e três armas.367 Não dá para saber, a partir dos objetos de trabalhos descritos, com qual atividade a família da inventariada estava envolvida. Os instrumentos de trabalho, geralmente, não dão conta de explicar a profissão do inventariado. A presença desses objetos pode apenas indicar que existiam para o caso de uma eventual necessidade, que poderia ser, inclusive, doméstica ou mapear algumas atividades desenvolvidas na Província. No caso do tenente coronel João da Pontes e Souza, que tinha um monte-mor de 4464,34 libras (39:391$240), o único objeto de trabalho que se 365 Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Pará na segunda sessão da XI legislatura pelo Exmo Snr. tenente coronel Manoel de Frias e Vasconcellos, presidente da mesma provincia, em 1 de outubro de 1859. Pará, Typ. Commercial de A.J.R. Guimarães, p. 117. 366 CMA, Inventário de Francisco Antonio de Almeida Braga, 1866. Caixa: 400. 965. 140. 112. 313. 367 CMA, Inventário de Maria do Carmo Lopes, 1842. Caixa: 575.547.575.547.618. 151 relacionava com a atividade que desenvolvia era um par de dragonas para tenente coronel. Os outros eram três grades de ferro para janela, quinhentos e noventa e nove alqueires de cal, e um forno de cozer cal.368 Quanto aos equipamentos, foram arrolados nos inventários machados, enxadas, foices, terçados importados em grande medida da Inglaterra. Mesmo sabendo que os equipamentos poderiam ter sido inclusos no item trabalho e negócios, optamos por deixá-los separados por não termos os incluídos em uma atividade particular, como foi o caso dos utensílios para marceneiros e ferreiros. Os equipamentos são objetos que nem sempre podem ser enquadrados por uma função específica, por isso preferimos criar essa categoria a parte. Ainda no que se refere aos equipamentos, além dos machados, foices, enxadas, destacaram-se, nos inventários, maquinarias diversas como alambiques com suas competentes serpentinas, moinhos, escaroçadores de algodão, fiares e outros dessa natureza, sendo todos produtos despachados na Alfândega do Pará para o comércio local. Estes objetos eram comuns entre os inventariados que tinham sítios nos arredores da capital da Província. Um exemplo deles é o de Antonio José Antunes de Souza, pois fora sua casa de sobrado na Rua do Norte, número 24, ele tinha um sítio denominado Carmelo. Nele tinha alguns equipamentos, entre eles duas máquinas de escaroçar algodão, um no valor de 16$000 e o outro 50$000.369 Mas, a posse desses equipamentos, entre os abastados e os mais abastados, era rarefeita nos inventários pesquisados. Esses produtos estavam muito mais ligados à necessidade, ao contrário dos bens da casa e das indumentárias que, em sem maioria, eram símbolos de prestígio social. III.III. Os não abastados também consumiam A importação, a partir de 1840, teve uma entrada na Província cada vez mais intensa, alcançando consumidores que cada vez mais se atinham a esses bens para diversos usos. Mas quem eram estes consumidores? Eram apenas os indivíduos mais endinheirados? Os dados dos inventários apontam que o grupo de consumidores dos produtos estrangeiros era muito mais alargado do que no início podemos pensar. Isso porque quando pensamos nesses produtos vindos do além-mar, relacionamo-los imediatamente ao luxo e a ostentação, dando a entender que somente os grupos mais abastados teriam acesso a eles. 368 369 CMA, Inventário de João da Pontes e Souza, 1863. Caixa: 665.294.316.288.841. CMA, Inventário de Antonio José Antunes de Souza, 1842. Caixa: 575.547.575.547.618. 152 De acordo com a pesquisa, não eram apenas os abastados e os mais abastados que consumiam os produtos importados. Esse consumo era mais alardeado quanto mais se tratava dos objetos não necessariamente associados exclusivamente ao luxo, ainda que em muitos casos os tenhamos encontrado. Não estamos dizendo que as camadas menos favorecidas consumiam todos os mesmos produtos que os mais ricos, mesmo porque o monte-mor mais baixo que utilizamos foi de 80 libras (1:000$000), o que não reflete o consumo entre as camadas mais baixas da população. Contudo, parte significativa dos bens importados estava nas mãos das três primeiras faixas de fortuna, isto é, dos sujeitos que tinham um montante abaixo de 1.000 libras (10:000$000). Apesar de estarmos trabalhando com uma pequena amostra dos consumidores, acreditamos que esses dados são expressivos de uma realidade maior, devido a enorme quantidade de artigos nas listagens relativas ao movimento do porto. Em se tratando do consumo dos grupos com menos de 1.000 libras (10:000$000), verificamos uma maior variedade de produtos importados. No grupo com mais de 1.000 libras havia uma preponderância das coisas de uso público e/ou privado e das indumentárias e joias. Neste caso, há uma frequência de objetos pertencentes a várias categorias em um mesmo inventário. Notamos que em todos os inventários, houve ocorrência dos objetos de uso público e/ou privado, 84% dos inventariados tinham descritos indumentárias e joias, 72% possuíam objetos que se enquadravam na categoria diversos, em 44% foram descritos os objetos de trabalho, e em 28% aparecem os equipamentos. Se compararmos estes dados percentuais com os grupos mais ricos, veremos um aumento de 4% no caso das coisas de uso público e/ou privado, 16% para as indumentárias e joias, 36% para os diversos, 12% para os itens destinados ao trabalho e 16% para os equipamentos. Percebemos que o consumo desse grupo é mais variado, sendo a distribuição dos objetos em cada categoria mais comum. Entre os abastados e os mais abastados, ao contrário, os importados se concentravam com maior regularidade nos bens da casa (coisas de uso público e/ou privado) nas indumentárias e joias. Tabela 17- Diversidade média por inventário dos bens importados entre as faixas de fortuna Categorias Coisas de uso privado e/ou público Equipamentos Indumentárias e joias Trabalho e negócios Faixas de fortuna Os remediados Os abastados (12) (15) Os mais pobres (4) Pobres estabilizados (9) Os mais abastados (10) 4 11 18 13,5 12 0 3,5 0,25 2,50 10,50 3,50 11 1,20 2,40 4,60 0,10 1,30 5 0,2 0,5 153 Tratamentos medicinais e outros usos Diversos Média total de itens importados 0 0 0,10 0 0 0,25 1,50 1,30 1 0,5 8 29 34 20,5 18,2 Os números entre parênteses, ( ), indicam as quantidades de inventários pesquisados. Fonte: CMA, Inventários post mortem dos Cartórios ODON e FABILIANO Constatamos, então, que as classes menos abastadas, de alguma forma, partilhavam dos mesmos bens das mais abastadas, sendo que os remediados eram quem tinham maior variedade de bens importados. Havia, pode-se dizer uma assimilação dos novos gostos, assim como deveria haver uma imitação dos mais abastados pelos modos de consumir dos mais abastados ainda, que não conseguimos identificar na nossa amostra. Todavia, de acordo com os estudos relacionados à antropologia do consumo, nem sempre as motivações que levam os indivíduos a consumir estão ligadas a uma imitação das classes mais altas, pois refletem elementos morais e valorativos culturalmente dados, tendo se tornado uma prática recorrente no oitocentos em função de um interesse pelas novidades disponíveis para o consumo. Entre os sujeitos com menos de 1.000 libras, temos uma camada que podemos chamar de intermediária por se situarem entre os abastados e os pobres estabilizados. Por sinal, eles detinham a maior variedade no consumo dos importados. Os inventariados Joaquim Francisco Oliveira Campos e Silvestre Tenreiro Aranha compunham esse grupo, sendo o primeiro tenente e o segundo secretário da Câmara Municipal. O inventário foi solicitado por Margarida Rosa Nunes, viúva de ambos os senhores, e a mesma requeria a divisão dos bens que juntavam 933,56 (8:786$500) dos seus primeiro e segundo casamento, já estando casada pela terceira vez com Antonio Dias Guerreiro Junior. Diz D. Margarida Rosa Nunes que tenho sido casada em primeiras núpcias com o tenente ajudante Joaquim Francisco Oliveira Campos o qual [sic] lhe ficarão dois filhos menores (...) casou-se ela Suppe. em segundas núpcias com Silvestre Tenreiro Aranha sem ter inventariado e partilhados os bens do primeiro casal, e como tinha falecido o segundo marido da suppe, por isso devendo inventariar e partir os bens dos dois cazais na partilha tem de serem aquinhoados os referidos seus dois filhos (...)370 A inventariante queria a repartição de uma "rocinha na rua que vai para a olaria" no valor de 3:000$000 e uma casa de sobrado avaliada em 4:000$000. Fazia parte também do 370 CMA, Inventário de Joaquim Francisco Oliveira Campos e Silvestre tenreiro Aranha, 1858. Caixa: 355.156.181.153.436. 154 conjunto dos bens, um oratório, vinte e quatro cadeiras de madeira americana, uma cadeira de balanço de madeira americana, um par de escarradeira de louça, um par de mangas de vidro, um candeeiro de globo de vidro para sala e dois pares de serpentina. Muitos desses objetos já vimos em inventários anteriores, como as cadeiras americanas em grande número. Parecia que havia um uso parecido desse mobiliário nas diferentes casas pesquisadas e essa arrumação comum precisava de um bom número de cadeiras. As salas eram um espaço de representação social. Nas casas aristocráticas, elas eram o lugar onde os anfitriões recepcionavam os amigos e "nesse cômodo eram expostos os móveis mais luxuosos e elegantes." Sendo assim, "a forma de disposição das cadeiras e dos sofás induzia implicitamente a um caráter de distinção e hierarquia." Segundo Morelli, no caso de São Paulo, os arranjos dos móveis formavam um U, sendo que a poltrona de encosto alto e com braços do uso do chefe da família ficava em uma das extremidades, ladeado por um sofá, canapé ou cadeiras de palhinha.371 No Pará, percebemos a presença dos mesmos móveis nos inventários, mas a sua disposição poderia não ser a mesma. De acordo com o naturalista Spruce, observando a arrumação das salas em uma cidade do interior da Província, proferiu que A melhor sala de cada casa é destinada às recepções, e as pessoas devem apresentarse de roupa preta, não obstante o furioso calor que caustica as ruas arenosas de Santarém ao meio dia, que é a hora das visitas. (...). Na sala há um sofá e cadeiras de junco, envernizados e dourados, dispostos em quadrado, aonde se convidam os visitantes a sentar, enquanto se trocam amabilidades ou se tratam de negócios. Ao despedir-se, os donos da casa levam as visitas até a porta da rua com repetidas reverências.372 Na capital da Província não sabemos qual a real disposição dos móveis na sala e as cadeiras não eram de junco. Porém, é fato que a presença das cadeiras era constante, não só das várias cadeiras de palinha que encontramos em muitas residências, como se tornou comum a presença da cadeira de balanço americana. As cadeiras de palhinha estão presentes nas residências de inventariados que dispõem da mais exígua mobília, não sendo características exclusivamente das casas mais abastadas. No caso da cadeira de balanço, ela aparecia sempre sozinha, ao contrário das outras cadeiras que aparecem sempre em número avultado. Isso nos leva a inferir que essa cadeira de balanço, até mais ou menos a década de 371 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 105. MELLO-LEITÃO, Cândido de. Op. Cit. Esse livro discorre sobre as impressões dos três grandes naturalistas ingleses que visitaram a Amazônia nos meados do oitocentos: Bates, Spruce e Wallace. 372 155 1870, ocupou o lugar que as poltronas ocupariam no final do século e, possivelmente, servia para dá lugar de destaque ao homem da casa. Fora o oratório e alguns objetos de iluminação já comentados em outros momentos, chama a atenção um objeto um tanto raro entre os inventários, não encontrados nem entre os mais abastados: as serpentinas. Neste inventário, existiam dois pares de serpentina em bom uso. "As serpentinas eram um tipo de candelabro com mangas de cristal."373 Ao estudar os interiores domésticos da cidade de São Paulo no período da expansão do café, Maria Lucília Viveiros de Araújo averiguou que os candelabros e as serpentinas eram produtos raros nas casas paulistanas.374 Confirmando essa raridade, em todo o período de 1840 a 1920, estudado por Morelli, aparecem somente cinco pares de serpentinas de prata.375 Não há referência se esses pares de serpentina encontrados neste inventário eram de prata. De qualquer forma, era um objeto que não compunha a lista dos objetos necessários, mas dos supérfluos que auxiliavam na composição da decoração das salas e na "personificação dos ambientes por seus moradores," pois Ao fazer o uso de mercadorias, os consumidores têm de dar sentido a elas em termos de suas próprias vidas e culturas. A cultura do consumo não é algo simplesmente imposto pela modernidade ocidental, é uma das áreas em que todas as pessoas tentam construir sua própria modernidade.376 Destacaremos também o caso do tabelião Bartholomeu José de Oliveira, morador da Rua Formosa, casado com Ana Emilia Vieira, valia-se de um monte-mor de 759,03 libras (10:715$820). No seu inventário tinha uma baixela de prata, uma salva grande, vinte e quatro colheres de tirar sopa, vinte e quatro colheres para chá, uma concha para tirar sopa, uma colher para tirar arroz, uma concha pequena para tirar açúcar, um paliteiro, tudo em prata.377 As louças de prata eram um importante investimento nesse inventário. Os paramentos das refeições tinham presença acentuada neste cenário em que o consumo vai tomando cada vez mais espaço deste lado do Atlântico. Mas queremos sobressair neste inventário a baixela de prata avaliada em 400$000. Em 1840, Kidder registrou que "era rico e farto o serviço da mesa, mas reinava certa confusão entre as dez ou doze copeiras que 373 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 113. ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os interiores domésticos após a expansão da economia exportadora paulista. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 12, jan./dez., 2004, p. 129-160. 375 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 113. 376 SLATER, Don. Op. Cit., p. 6. 377 CMA, Inventário de Bartholomeu José de Oliveira, 1868. Caixa: 120. 925. 061.033.076. 374 156 poderiam ser perfeitamente substituídas por apenas duas que conhecessem o métier. A baixela era das mais finas e caras,"378 e conviviam com objetos sem requinte. Além da baixela, o tabelião dispunha de outros objetos de luxo, tais como um tinteiro de prata de 38$000, um espelho grande valendo 15$000 e o mais caro deles era um piano avaliado em 700$000. Este foi o segundo piano mais caro da amostra, só perdendo para o de D. Maria Pimenta Bueno, que valia 900$000. Contudo, era mais caro do que o de D. Ângela Paes de Carvalho (200$000) e o do Português Antonio José dos Santos (300$000), ambos pertencentes ao grupo dos mais abastados. O cônego Leonardo Pinto Moreira Espindola, com monte-mor de 741,61 libras (6:201$700), tinha vários itens de uso público e/ou privado, indumentárias, objetos de trabalho e negócios e também objetos que se enquadram na categoria diversos.379 Prepondera na primeira categoria os livros, em sua maior parte religiosos e as imagens de santos. Mas, ainda nesta mesma categoria, tinha uma viola grande, um lampião, duas mangas de vidro, um candeeiro, um estojo de navalhas, um relógio de parede. Aqui destacaremos o relógio. Na figura abaixo, veja o anúncio de venda de relógios de parede. Figura 13 - Anúncio de venda de relógio de parede Fonte: Gazeta Official, 17 de julho de 1859, n. 157, p. 3. 378 379 KIDDER, Daniel Parish. Op. Cit., p. 209. CMA, Inventário de Leonardo Pinto Moreira Espindola, 1850. Caixa: 605.828.847.819.434. 157 Esses objetos, geralmente, eram colocados sob caixas de madeira e não tinham um valor tão acessível para a população. O relógio de parede do cônego, mesmo já estando usado, o avaliador deu-lhe a importância de 50$000, valor que as classes menos abastadas não poderiam subtrair das suas necessidades mais prementes. Eliane Morelli destacou que o relógio de parede figurava nas salas de estar e de jantar dos sobrados campineiros na época do apogeu do café, o que não parecia ser o caso deste inventariado que não possuía um sobrado, mas uma casa no valor de 1:000$000. Leonardo Espindola tinha também dois roquetes380 com bobinetes, um roquete com renda francesa e dois chapéus de sol. Os tecidos, com os quais foram produzidas as roupas eclesiásticas, eram nitidamente tecidos importados. É possível também que as roupas já tenham sido importadas prontas, assim como os chapéus de sol que comumente eram importados dos Estados Unidos ou da França. No caso da França, predominava os chapéus de sol de seda, o que poderia ser o caso dos chapéus de Leonardo Espindola, pois um deles chegou a custar 5$000, o que pode indicar que foi feito com um material caro como a seda. O inventariado também tinha uma arma e lazarina de espoleta, o que mais uma vez confirma que nem sempre os objetos de trabalho, como foram classificados esses produtos, estavam relacionados à atividade do sujeito. O tacho de cobre, classificado na categoria diversos, está presente em mais da metade dos inventários localizados. Não o destacamos como bens da casa, porque não o eram exclusivamente, uma vez que serviam para outras atividades que não as domésticas, como para o desenvolvimento de ofícios. Esse objeto de grande utilidade na casa e em outros espaços, assim como as peças de ferro eram em geral importados.381 Na casa, os tachos de cobre ocupavam as cozinhas ou aos seus lugares externos onde acontecia a feitura das comidas, espaços estes que contrastavam com as salas de jantar, onde eram apresentadas as salvas, as baixelas e outras louças refinadas, geralmente de prata. Manoel do Nascimento Rodrigues Barreto dispunha de um montante um pouco menor que o de Leonardo Espindola. Com montante de 642,88 libras (5:610$635), era advogado, um dos poucos bacharéis formados atuando na Província nos idos de 1840. Em 1846, o Treze de Maio trouxe uma nota tratando da concessão do direito de advogar por mais um ano ao referido bacharel, que tinha escritório e residência na propriedade do capitão tenente almoxarife do Arsenal de Marinha Joaquim da Silva Arantes, onde se achava "fiel e prompto aos deveres do seo ministério".382 380 Roquete é uma túnica de cor branca, geralmente feita de linho ou tecido semelhante e enfeitados com renda. LIMA. Tânia Andrade. Op. Cit., p. 163. 382 Treze de maio, 15 de agosto de 1846, n. 629, p. 5. 381 158 No inventário desse advogado, consta uma rocinha na Rua da Glória no valor de 3:500$000 que, possivelmente, não era o lugar onde residia e advogava. Era comum residir e trabalhar no mesmo local. O fato é que independente de onde morasse, ele desfrutou de um conjunto de produtos importados que não se encontrava na maior parte dos inventários. Os objetos estavam distribuídos em mobília, louças, artigos religiosos e de iluminação, livros, espólio este muito característico do grupo ao qual pertence, cujo atributo principal é a variedade no consumo dos bens importados. Eram eles: Um sofá, 20$000; uma jardineira, 20$000; dezoito cadeiras com assento de palinha, 54$000; dois espelhos, 20$000; uma colher com seis e meia oitavas de ouro, 18$200; uma colher com seis e meia oitavas de ouro, 16$640; uma salva grande com duas libras e dezenove oitavas de prata, 66$000; doze garfos com o peso de duas libras e nove oitavas de prata, 63$600; doze colheres para sopa com o peso de duas libras de prata, 61$440; 48$960; uma salva pequena com cento e cinco oitavas de prata, 25$200; doze colheres pequenas para chá e uma espumadeira, 19$440; uma cuia com o peso de setenta e duas oitavas de prata, 17$280; uma peixeira com o peso de setenta e uma oitavas de prata, 14$640; uma colher grande para tirar sopa com o peso de cinquenta e cinco oitavas de prata, 13$200; dois cabos para faca e garfos de trinchar com o peso de cinqüenta oitavas de prata, 12$000; uma colher para tirar arroz com o peso de quarenta e uma oitavas de prata, 9$840; um aparelho para chá, 20$000; um aparelho de louça para jantar, 10$000; um tacho de cobre, 20$000; um oratório com diferentes imagens, 20$000; um rosário com detalhe em cobre e ouro, 8$000; um candeeiro para sala, 12$000; dois pares de mangas de vidro, 12$000; quatro castiçais de vidro, 2$000; dois pares de candeeiros para sala, 24$000. Somados esses bens, Manoel Barreto havia investido aproximadamente 800$000 em produtos importados, sem contar as joias que juntos perfazem um valor de quase 1:000$000 em bens importados para variados fins, embora predominasse os domésticos. Com efeito, é o campo privado da habitação que reúne a quase totalidade de nossos objetos cotidianos, ainda que não se esgote nele.383 Se considerarmos que o seu imóvel empregava mais de 60% da sua renda, o valor empregado nos objetos importados era expressivo. Manoel João de Lara Cavalero, casado com D. Luiza Philomena Aranha Cavalero, era escrevente (copista) da secretaria da presidência da Província, e residia em uma casa térrea na Rua dos Cavaleiros número 39. Seu monte-mor somava 452,67 libras (4:489$300) e o bens do seu inventário consistem nos objetos de uso doméstico e em algumas joias.384 São eles: 383 384 BAUDRILLARD, Jean. Op. Cit., p. 73. CMA, Inventário de Manoel João de Lara Cavalero, 1866. Caixa: 400.965.140.112.313. 159 Uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, 20$000; sete cadeiras de madeira americana em mau estado, 7$000; um candeeiro solar, 3$000; seis castiçais de vidro, 6$000; um relógio para cima da mesa, 5$000; um aparelho de porcelana dourado para chá, 15$000; uma terrina, 5$000; uma salva com o peso de duzentas e cinqüenta e duas oitavas de prata, 51$200; uma colher para tirar sopa com o peso de sessenta e quatro oitavas de prata, 12$800; uma colher para tirar arroz com o peso de trinta e seis oitavas de prata, 7$200; uma colher para chá com o peso de trinta e quatro oitavas de prata, 6$800; um par de castiçal com o peso de cento e noventa e uma oitavas de prata, 39$800; um relógio de algibeira com caixa de prata, 15$000; um relógio de ouro esmaltado, 6$000. A fortuna deste inventariado, mesmo estando abaixo de 504,16 libras (5:000$00), abrangia vários dos mesmos objetos que identificamos nos autos com as maiores fortunas. O valor da casa de morada de Manoel Cavalero foi ajuizada em aproximadamente 4:000$000, o que significa dizer que sobrava pouco mais de 500$000 para a aquisição de outros bens. Desse valor, os objetos importados conformavam mais de 100$000, o que não é insignificante. Mais interessante do que os valores investidos nesses bens, é verificar que alguns desses importados como os castiçais de vidro, o aparelho de chá de porcelana, as salvas de prata, o relógio de algibeira com caixa de prata eram os mesmos objetos consumidos por indivíduos de grandes posses. Quando da sua morte, Manoel Cavalero ficou a dever na loja de Antonio Pedro Belfort Gomes, nomeado capitão da Guarda Nacional em 1855385 e dono de uma loja de fazendas na Rua dos Mercadores.386 A lista do credor era composta por muitos produtos importados, a saber: uma dúzia de meias para menino, 4$000; uma dúzia de meias para mulher 6$000; uma dúzia de meias para homem, 6$000; um lenço de seda, 1$600; uma manta de coraes; 1$600; quatro varas de renda larga, 2$400; vinte e quatro caixas de chita francesa, 14$400; sete varas de cassa de cor, 4$900; três caixas de dril para forro, 1$200; dois vidros de água de colônia, 2$000. O inventariado também deixou dívidas para com José Correa, que também era dono de casa de negócios na Rua dos Mercadores denominada José Correa de Oliveira e Cª. Era um corte de seda de cor, 10$000; um chapéu para senhora, 18$000; seis côvados de brim de cor, 4$800; quatro côvados de seda, 10$000; importe de perfumarias, 12$000; um chapéu para criança [ilegível] e um vidro de água de colônia, 1$200. No total a dívida passiva do inventariado somou 327$310, e boa parte dela se devia ao consumo de bens importados. Carlota Augusta Malafaia Ricardino, viúva do boticário Joaquim Augusto Ricardino, deixou em 1856 um legado de 413,53 libras (3:609$006), o que lhe confere um posição entre 385 386 Treze de maio, 22 de fevereiro de 1855, n. 452, p. 2. Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1868, p. 230-231. 160 os pobres estabilizados, pois não deixou credores e tinha uma casa de morada, que tinha sido comprada um ano antes de sua morte onde, possivelmente, ela morou em seu último ano de vida com suas herdeiras, que após sua morte seriam tuteladas pelo seu cunhado Manoel Rodrigues de Almeida, seu inventariante. Diz o cunhado de da inventariada: Tendo falecido em minha companhia, no dia 6 do corrente mês D. Carlota Augusta Malafaia Ricardino, Irmã da minha mulher, e viúva de Joaquim Augusto Ricardino, deixando dois filhos; a saber Joaquim Augusto Ricardino, nascida em 3 de março de 1849, e Antonia Ana Augusta Malafaia Ricardino, nascida em 28 de maio de 1843, que se acham comigo deixou em bens, que me consta existirem, e pões ser inventariados o seguinte: Metade do prédio nº 51, sito na Rua do Espírito Santo, que confina por um lado com o meu prédio, por outro com o de Antonio Joze Hemias de Lima, e o fundo com o de Antonio Joze de Miranda comprado por escritura de 21 de novembro de 1856 (...) pela quantia de 1 conto de réis (1:000$000), contendo uma sala, alcova, metade do corredor, e um acanhado cômodo interior (...).387 Pela descrição do inventariante, notamos que a falecida teve uma vida modesta. A circunscrição da sua casa é indicativa de que sua casa não estava de acordo com os novos padrões das casas burguesas da segunda metade do XIX, onde havia várias salas, alcovas e outros cômodos amplos.388 No entanto, no interior dessa modesta residência, situada na Rua do Espírito Santo389 número 51, avaliada em 1:000$000, havia dezoito cadeiras com assento de palhinha, um espelho grande, três castiçais de vidro com manga, um aparelho de chá de porcelana, duas salvas de prata de tamanho diferentes, uma colher grande de tirar sopa, doze colheres, mais doze colheres para chá , um paliteiro com trinta e quatro oitavas de prata e um licoreiro. Novamente, deparamos na casa de Carlota Augusta Ricardino algumas das mobílias e louças, que estavam também na casa de D. Olimpia Paes de Carvalho que tinha um montemor de mais de 3437,5 libras (30:000$000) ou de D. Maria Pimenta Bueno, dona de uma fortuna de 9868,76 libras (97:872$000). A quantidade de utensílios dessas camadas populacionais poderia está aquém da aristocracia,390 mas havia uma possibilidade de uso de alguns dos mesmos objetos. Um exemplo disso eram os espelhos presentes nas residências de várias camadas sociais, variando apenas os tamanhos, molduras e outros detalhes. O interior burguês era também caracterizado pela multiplicação dos espelhos na parede, nos armários e onde mais se pudesse colocar. Por causa do foco luminoso, "o vidro é um local privilegiado da peça." O espelho consiste em um "objeto rico em que a prática 387 Inventário de Carlota Augusta Malafaia Ricardino, 1856. Caixa: 355.156.181.153.436. CANCELA, Cristina Donza. Op. Cit., p. 122. 389 A Rua do Espírito Santo passou a se chamar José Malcher. Cf. CRUZ, Ernesto (1952). Op. Cit., p. 86. 390 ABRAHÃO, Eliane Morelli (2010). Op. Cit., p. 117. 388 161 respeitosa em si mesmo do indivíduo burguês descobre o privilégio de multiplicar sua aparência". O espelho seria um objeto de ordem simbólica que refletiria os traços do indivíduo e o desenvolvimento histórico de sua consciência individual.391 Portanto, o uso dos espelhos era, de certa forma, a consciência de que novos padrões estavam se estabelecendo. A mesma inventariada também possuía várias peças em joias, entre cordões, anéis e anelões de ouro e diamante, trancelins, pares de brincos, e botões com pedra. As joias além de servirem de enfeites para o corpo, também poderiam ser um importante investimento, principalmente para os sujeitos que não tinham renda suficiente para investir em imóveis. Devido a isso, percebemos que estas peças eram tão comuns nos inventários dos mais e dos menos abastados. Maria dos Reis foi outra inventariada arrolada por ter em seu inventário os objetos importados.392 Não tinha tantas coisas de uso público e/ou privado quanto o cônego mencionado. Apareceram cinco pentes de casco, um rosário com coraes e contas pretas lapidadas, um espelho e um aparador, ambos usados. Por outro lado, aparecem algumas peças do vestuário bastante interessantes. Na sua maioria eram saias, em que a descrição do tecido é fielmente referida pelo avaliador. Era uma saia de seda de cor usada, uma saia de chaly, uma saia de lã e seda, uma saia de setim preto, uma saia de lãzinha, uma saia de cassa, uma saia de sarja preta, dez saias de chita usadas. Além disso, foram descritos dois retalhos de chita, um retalho de cambraia e outras peças. Em mais de 151$000 foram estimadas as joias de ouro entre gargantilhas, pulseiras, argolas e outras obras de ouro não especificadas. Ela tinha um montante de 291,55 libras (3:723$240), foi inventariada por Manoel Pinheiro com quem morava como membro da família. Manoel Pinheiro era dono de uma casa de negócio reconhecida na praça até 1845 como Firma Manoel Pinheiro e depois desse dito ano passou a se chamar Firma Manoel Pinheiro & Irmão, quando se tornou sócio de seu irmão Francisco Pinheiro. Já na década de 1850, extinta a sociedade com seu irmão, a firma passou a se chamar Manoel Pinheiro e Cª. 393 Não conseguimos descobrir se Maria dos Reis tinha algum parentesco com a família do negociante, ou se apenas prestava algum tipo de serviço. Mas o fato é que, mesmo morando com essa família, ela tinha um quarto de casas na Travessa 391 BAUDRILLARD, Jean. Op. Cit., p. 28. CMA, Inventário de Maria dos Reis, 1869. Caixa: 275.117.268.240.697. 393 Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1868; Treze de maio, 19 de julho de 1845, n. 524, p. 3. 392 162 da Estrela e mais uma casa na Rua São Vicente.394 A primeira avaliada em 1:000$000 e a segunda em 2:200$000. Do saldo dos investimentos em imóveis, característica presente na maioria dos inventários, sobraram-lhe alguns réis para o consumo de importados que pode ter sido facilitado pela sua relação com o comerciante, entre eles, aquelas saias de tecido importados da França e da Inglaterra, que tinham seus valores variando entre 4$000 e 12$000. No total, foram descritos aproximadamente 70$000 em roupas de tecidos importados, embora não pertencesse a uma camada social abastada. Isso lhe coloca numa posição de destaque porque não foi corriqueira nos inventários percorridos a descrição das roupas feitas. Os tecidos, ao contrário, aparecem com muita acuidade. Somente o fato das roupas não serem, habitualmente, descritas não constitui um explícito sinal de que as outras pessoas não tinham, deviam possuir. Porém, o arrolamento desses produtos no inventário demonstra que para o montante em questão eles tinham valor, neste caso não simbólico, mas econômico. Era comum que mesmo pessoas que não tinham posses elevadas desfrutassem de roupas de tecidos finos estrangeiros ou mesmo aparecessem em ambientes públicos portando joias. Antonio Baena, se referindo as mestiças ainda no final da década de 1820, dizia que "as ditas mulheres usam de uma saia de delgada caça ou de seda nos dias de maior luxo", e as camisas que mal cobriam os dois semiglobos "que no seio balançando se divisão entre as finas rendas que contorneão a gola."395 O mesmo autor cita que "botões de ouro ajustão o punho das mangas da camisa" e ainda "pendem-lhe do collo sobre o peito cordoens, colares, rozarios e bentinhos do mesmo metal." Bates se referindo a classe mais pobre da população observara que, em meados do oitocentos, Havia nesses grupos algumas mulheres bonitas, com as roupas em desalinho, descalças ou de chinelas, mas com brincos ricamente trabalhados e com colares de grandes contas de ouro.396 Portanto, o uso das joias e das roupas finas não era uma exclusividade das classes mais favorecidas na sociedade Belenense. Todavia, depreende-se que esses objetos luxuosos, para essas camadas mais baixas, eram de usos mais esporádicos e menos cotidianos. Os 394 A Rua de São Vicente, aberta em 1617, tornou-se Paes de Carvalho. Cf. CRUZ, Ernesto (1952). Op. Cit., p. 86. 395 Antônio Ladislau Monteiro. Op. Cit., p. 258. 396 BATES, Henry Walter. Op. Cit., p. 12. 163 naturalistas mostram-se surpresos em suas narrativas ao falar da presença das joias nas pessoas mais pobres da sociedade. As mulheres e moças, nos dias de mais pompa, costumam trajar de preferência vestidos brancos, o que produz um agradável efeito, pelo contraste de suas peles pardas ou de um negro lustroso. Nestas ocasiões é que um estrangeiro fica deveras espantado ao observar que as joias e colares, usados por estas mulheres, muitas das quais são simples escravas, são de puro ouro maciço.397 Até agora, temos observado que, no campo da distinção social,os objetos domésticos tem uma maior relevância, haja vista que alguns tecidos e joias tinham presença menos demarcada pela posição social do indivíduo. No entanto, podemos dizer que algumas peças do vestuário e, sobretudo as joias para as camadas sociais não abastadas estão mais presentes nos eventos, em ocasiões especiais e em períodos específicos, como eram as procissões. Para as camadas mais abastadas, o uso desses objetos era mais rotineiro. Porém, para ambos os grupos esses bens de consumo constituíam sistemas de comunicação e significados, não em si mesmos, mas a partir da cultura a qual estão imersos.398 Joana Cancia Lameira era filha de André Francisco Lameira, proprietário agrícola, fazendeiro e produtor de farinha, arroz, algodão e mais gêneros399. Ele tinha uma fortuna de 1372,01 libras (17:500$000),400 enquanto que ela era possuidora da menor fortuna identificada, no valor de 86,17 libras (1:100$000).401 Joana morreu em 1863, não tendo desfrutado da herança do seu pai, que faleceu em 1869, logo, ela não tomou parte nos bens deixados por Lameira, como várias sortes de terra no interior, vinte e cinco escravos e outros bens móveis. Joana Cancia tinha poucos produtos importados, se resumindo a um oratório de 35$000, um tacho pequeno de cobre avaliado em 15$000 e um forno de cobre no valor de 200$000. Tem-se, então, um objeto do âmbito privado, outro que poderia ser utilizado para os afazeres domésticos ou para o desenvolvimento de algum ofício, e o outro era nitidamente um objeto de trabalho. No entanto, somente o forno de cobre somava aproximadamente 20% do que deixou para inventariar. Seu oratório valia mais do que alguns encontrados entre os mais abastados. Mesmo que nenhum desses produtos fossem considerados requintados, pois 397 WALLACE, Alfred Russel. Viagens pela Amazônia e Rio Negro. Brasília: Edições do Senado Federal, vol. 17, 2004, p. 42-43. 398 BRANCHELLI, Fabiano Aiub. Vida Material e econômica da Porto Alegre Oitocentista. 2007. 122 p. Dissertação (Mestrado em Arqueologia). Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007. 399 Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Província do Pará para o ano de 1869. p. 158. 400 CMA, Inventário de André Francisco Lameira, 1869. Caixa: 275.117.268.240.697. 401 CMA, Inventário de Joana Cancia Lameira, 1856. Caixa: 275.117.268.240.697. 164 estavam atrelados as necessidades domésticas e de trabalho, eles a classificaram entre os mais pobres que possuíam algum tipo de produto importado. Além dos inventários, podemos notar que os produtos importados chegados ao porto do Pará poderiam ter outros consumidores que não apenas os inventariados. O Arsenal de Marinha, por exemplo, constantemente postava no jornal notas para compras de produtos importados para o abastecimento do armazém do almoxarifado. Além dos produtos da terra requeridos, o Arsenal de Marinha obtinha mensalmente toucinho português, azeite doce, sal, vinagre, brim, cabo de linho, espermacete em velas, tinta verde, branca e preta, papel almaço, papel de peso, alcatrão, breu e pólvora,402 todos produtos importados. Outra nota colocava de forma separada os víveres que desejava comprar, bem como alguns artigos voltados para o fardamento dos marinheiros. O conselho de compras do Arsenal impunha como um dos requisitos para quem desejasse fornecer, que os produtos deveriam ser de boa qualidade. Quanto aos víveres, se buscava adquirir azeite doce, bolachinhas americanas, bacalhau, marmelada, manteiga inglesa, sal português, toucinho português, vinagre, vinho do Porto engarrafado, sendo os outros produtos demandados da própria Província ou vindo de portos nacionais. Para o fardamento solicitava-se, entre outros, calças e camisas de brim e lenços de seda preta. Em 1856, o jornal anunciava um edital do Conselho administrativo do Arsenal de Guerra da Província para a compra de material para o expediente do Arsenal, para o provimento de três de seus armazéns e para o Hospital regimental da capital, que se faria até o dia 24 do mês de julho.403 Seria necessário uma resma de papel pautado marca grande, uma resma de papel pautado marca regular para o expediente, tarraxa com sete machos para funileiro, cinquenta arroubas de ferro inglês em verga de meia polegada, vinte e cinco dúzias de tábuas de pinho, quatro arroubas de alvaiade e uma libra de arsênico em pó para o armazéns. Já para o hospital a lista de importados era maior, sendo cinco cadeiras com assento de palhinha, cinquenta talheres completos, uma faca grande para cozinha, três chaleiras e três panelas e três caçarolas de ferro estanhado e sortidas, um charão pequeno, um relógio de parede, cem pratos e oitenta e seis tigelas de louça, um bule grande e doze colheres de metal do príncipe, doze colheres para chá, três manteigueiras e três açucareiros de louça, doze pares de xícaras e pires, vinte e quatro pratos finos de louças, três jarros de louça para água, seis 402 403 Treze de maio, 23 de abril de 1845, n. 500, p. 4. Esse tipo de anúncio foi encontrado muitas vezes no jornal. Treze de maio, 18 de julho de 1856, n. 789, p. 3. 165 urinóis de louça fina, mil setecentos e vinte e nove e três quatros de varas de brim de linho, quinhentos e sessenta e seis côvados e dois terços de riscado forte para colchões. De acordo com a receita do Tesouro Público Provincial, as meninas do Colégio Nossa Senhora do Amparo gastavam mensalmente vários artigos importados, que envolviam alimentos e outros objetos comprados junto aos comerciantes locais. Em 1853, foram comprados de Antonio Marques Viegas, na época dono de um armazém na Rua da Boa Vista,404 sete garrafas com dois esquartilhos de vinhos, uma garrafa com dois esquartilhos de vinho tinto, meio frasco de vinho branco, um pote com azeite, cem cebolas, seis maços de alho, duas caixas com sabão, oito dúzias de pratos brancos, duas dúzias de travessas, três dúzias e meia de xícaras, duas dúzias de tigelas, duas velas de espermacete, uma vela de cera e vinte e quatro penicos do Porto.405 Diante do que foi proposto, constatamos que os produtos importados foram obtidos pelas diversas faixas de fortuna desde os mais pobres aos mais abastados. Mas não somente eram usados nas casas, como nas ruas, nos eventos, nas instituições, na cidade. Os objetos importados estavam em muitos lugares. E não eram apenas os objetos de luxo, mas os de primeira necessidade. Nesse sentido, há ponderações a serem feitas. Nem todos os objetos requintados eram caros, e os mais primordiais nem sempre custavam poucos réis. Consequentemente, nem todos os objetos dos abastados eram de luxo, e nem todos os objetos dos mais pobres eram de pouco valor. A amostra indicou que ser abastado não obrigava a posse de muitos objetos importados, pois encontramos casos, como o de D. Anna Joaquina de Oliveira Pantoja,406 com monte-mor de 2250,56 libras (28:730$500), membro de família prestigiosa desde o setecentos,407 e que nem por isso adquiriu produtos importados, fora umas minguadas peças de ouro. Em contrapartida, o caso de D. Maria Egnacia Ribeiro é elucidativo, com monte-mor de pouco mais de 80 libras (1:000$000), ela dispunha de mobília e louças importadas. É claro que alguns objetos, como o piano, por exemplo, somente poderia ser consumido por alguns grupos que não o de Maria Egnacia, mas de outros que pudessem comprá-lo e usufruir do seu valor simbólico. 404 Em 1868 Antonio Marques Viegas ainda está na lista dos negociantes matriculados, com um armazém de louças e vidros na Rua Santo Antonio. Ver: Almanach administrativo, mercantil e industrial, 1868. Pará: Typ. de B. de Mattos, 1868, p. 230. 405 APEP. Tesouro Público Provincial: Caixa Efetiva, 1853. 406 BATISTA, Luciana Marinho. Op. Cit. p. 210. 407 CMA, Inventário de Anna Joaquina Oliveira Pantoja, 1869. Caixa: 275.117.268.240.697. Ela era esposa de Antonio dos Santos Queresma, juiz de paz de Abaeté. 166 Contudo, é necessário relativizar para não restringir o consumo dos importados ao requinte ou ao estabelecimento de padrões fixos de consumo ao ponto de não poder se estender a outras camadas sociais. Por isso, buscamos através de casos particulares demonstrar que o consumo era muito variado entre os sujeitos, não estando restrito a uma fortuna específica. O consumo dos importados perpassa pela circularidade cultural. De acordo com Carlo Ginzburg, a cultura popular se define em oposição a cultura das classes dominantes, mantendo uma relação com essa cultura, filtrando-a segundo seus valores e condições de vida. Para ele, houve desde a Europa pré-industrial, entre essas duas culturas "um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo".408 Com base nesse pressuposto, podermos afirmar que o consumo dos importados teve vários matizes que não eram determinados unicamente pela riqueza material dos indivíduos. 408 GINZBURG, Carlo. Op. Cit., p. 13. 167 CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluir é sempre uma tarefa difícil, porque devemos retomar aspectos que consideramos cruciais. Acredito que é necessário, primeiramente, reconhecer que ainda está por serem feitas pesquisas que abordem os diversos aspectos da vida material da Belém do século XIX. As pesquisas já realizadas que tratam dos objetos domésticos tem sido notáveis avanços nesse sentido. No entanto, os aspectos materiais, como procuramos demonstrar, vão muito além do espaço doméstico e estão muito relacionados com as relações comerciais e culturais que a Província do Pará estabeleceu com portos estrangeiros. Penso que o objetivo de inventariar ou mapear esses bens, resultantes dessas relações internacionais foi alcançado, dando margens para outros trabalhos que almejem se debruçar mais detalhadamente sobre alguns desses aspectos essenciais, que marcaram não somente a sociedade belenense como também a Província como um todo que, ainda que de forma mais modesta, sentiu os efeitos da importação de longo curso. Portanto, assistiu à entrada de produtos, ideias e noções de civilização, que atravessaram o Atlântico, ancoraram no Porto de Belém e foram distribuídas pelas inúmeras casas de comércio aos consumidores que pudessem adquirir, seja o sal, os chapéus de palha, os tecidos de algodão ou a manteiga inglesa, os chapéus de sol de seda e os tecidos de linho e seda. Tentamos demonstrar que a partir de 1840, a navegação de longo curso teve um aumento paulatino, tendo aumentado na década de 1850 e, ainda mais, na década de 1860, à medida que as consequências da cabanagem foram se distanciando. Mas, ainda que seja um fato que as décadas de 1850-60 tenham incrementado o comércio do Pará com os portos estrangeiros, é na década de 1840 que esse processo histórico/cultural começa a se desenhar. Traça-se um caminho significativo que culminará no cosmopolitismo pós década de 1870. Os anos de 1840 dão prosseguimento a um processo que começara com a abertura dos portos em 1808, fora cessado nas décadas de 1820 e 1830, e continuaria com o início de um certo impulso ao comércio internacional. Vimos que este gradual crescimento foi possibilitado pelo aumento, ainda que modesto, da economia interna, alavancada a partir de 1848. Porém, ainda no inicio da década, o movimento do porto e das embarcações estrangeiras já era muito significativo, trazendo mercadorias, que colocariam os consumidores em contato com os produtos mais necessários e igualmente os requintados. As mesmas embarcações traziam os mais variados tipos de produtos, desde os mais ordinários aos mais onerosos, que poderiam pertencer ao cotidiano ou a ocasiões esporádicas. 168 Os produtos eram disponibilizados nas casas de comércio situadas na parte central da cidade, com grande destaque para a Rua dos Mercadores, onde se apresentava os produtos chegados em sua maioria dos portos de Havre, Nantes, New York, Salem, Lisboa, Porto e Liverpool. Eram os novos produtos com serventias variáveis, de uso individual, doméstico, público, em fim, faziam parte de um processo, talvez ainda não de uma modernidade, mas de uma ampla modernização, endossada por valores burgueses, que compunham os ideais de civilização e progresso do outro lado do Atlântico. Esses modelos seriam alcançados quanto mais se incorporasse as inovações do capitalismo industrial europeu. Com base nesse novo contexto que se instaura, a Província do Pará se colocou no circuito da mundialização da cultura, dando novos ares ao comércio local, que experimentou um processo de dinamização a partir da disponibilidade de artigos que a Província não vira com frequência antes do período estudado. Assim, Belém não somente teve algumas das mais prementes necessidades supridas, como também passou ao longo dos anos por um processo de modernização, principalmente nos idos de 1850. A modernização que Belém experimentou se beneficiou do aumento crescente da economia interna, pois cifras estavam sendo investidas em diversos melhoramentos que a cidade passou a experimentar, sobretudo os bens que não eram aqui produzidos, mas que tem a ver com o momento histórico dos Estados Unidos, França, Portugal e Inglaterra. Dessa forma, foi possível obter o tijolo e cimento americano utilizado nas construções da cidade, o macadame português usado no calçamento e na pavimentação das ruas, as tintas a óleo usadas na pintura dos prédios públicos e residências, as vidraças, as ferragens francesas e inglesas, as maquinarias britânicas e americanas, que permitiram produzir bens mais rapidamente e de melhor qualidade, como as máquinas de descaroçar, fiar e tecer algodão, as máquinas tipográficas, de filtrar água, de prensar barro e fabricar tijolos. No espaço privado, as importações foram notadas para diversas necessidades e ostentações no âmbito da domesticidade, ainda que as fronteiras do público e do privado fossem tênues, uma vez que a própria ideia de domesticidade ainda estava se construindo nesta parte do Brasil. Assim mesmo, identificamos elementos que compunham essa construção, tais como as louças, os móveis, os objetos de decoração, elementos estes que dão conta de expressar que, de alguma maneira, a Província estava se transformando. Porém, essas modificações foram possíveis e apressadas em função do contato que o porto de Belém manteve com portos estrangeiros e do incremento das atividades portuárias. Os portos estrangeiros, em geral, abasteciam a Província de produtos voltados para alimentação, para o espaço da casa, para o desenvolvimento dos ofícios de alfaiate 169 ourivesaria, ferreiro, marceneiro, padeiro, sapateiro, comerciante e tantos outros que necessitavam da matéria prima e dos equipamentos oriundos da navegação de longo curso para desenvolverem suas atividades. Também se importava muito do que se vestia, desde os produtos mais simples aos mais sofisticados, que não somente vestiam, mas adornavam os mais endinheirados, como também os menos abastados que se dispusessem a adquirir um ou outro desses importados. Pelos navios a vapor vinham também os combustíveis que sustentavam as velas, os candeeiros que iluminavam as residências e os ambientes públicos, os livros, jornais e revistas que possibilitariam o incremento da leitura nas bibliotecas, os transportes que aos poucos foram aumentando em número e sofisticação. Até mesmo artigos funerários foram registrados nas cargas dessas embarcações. Porém, não era só isso. Para a cura de algumas doenças também se contava com o auxílio de produtos importados. Nos meados do oitocentos, embora a medicina fosse pouco desenvolvida, o conhecimento que já se tinha na Europa e que foram importados pelo Pará, eram comumente divulgados positivamente para a cura de males do corpo. Percebemos que os portos de onde vinham os importados mantinham entre si pontos em comuns, mas que também tinham suas especificidades, pois ao mesmo tempo em que algumas mercadorias vinham de vários portos, outras eram específicas de determinados portos ou cidades exportadoras. A mesma coisa acontecia com os países analisados. Nesse sentido, estabelecemos um perfil ou um padrão de importados para cada país exportador, considerando que, embora cada um deles trouxesse uma infinidade de produtos, havia sempre os que caracterizam cada um deles, que poderiam está relacionados à localização da cidade ou ao processo histórico por ele vivido. O sal português, os tecidos de algodão ingleses, os tecidos de seda e os vinhos franceses, as fazendas de algodão e a farinha de trigo americanos, caracterizam esses contextos históricos que influenciaram sobremaneiras o contato que o Pará estabeleceu com cada um deles, que não tem a ver apenas com o suprimento de necessidades ou abastecimento, mas com modelos, padrões de civilização e progresso. A intensificação das navegações, os constantes anúncios dos produtos importados na imprensa, geraram um consumo considerável entre diferentes grupos da população local. A organização da riqueza dos inventariados em faixas de fortuna criou a percepção de que os importados tinham uma significativa circulação entre grupos distintos, portanto, perpassam pela ideia de circularidade cultural. Apreendemos que sujeitos com níveis de riqueza variados poderiam adquirir produtos importados. É claro que isso poderia acontecer em menor ou maior escala, mas o maior número de importados não necessariamente estavam concentrados 170 entre os grupos mais afortunados, assim como a menor quantidade deles não era exclusiva dos grupos menos endinheirados. Esses limites não eram bem definidos e os objetos circulavam entre uma e outra faixa de fortuna sem possuírem lugares rígidos. Por um lado, encontramos inventários de indivíduos de muitas posses que tinham poucos bens importados ou bens pouco valiosos, por outro, também identificamos outros sujeitos com menos riqueza que detinham muitos bens importados e alguns de muito valor, tanto econômico, quanto simbólico. Por outro lado, alguns importados eram de uso apenas da faixa dos abastados e dos mais abastados, um deles era o piano, objeto considerado de luxo, e alguns deles encontrados nos inventários chegavam a ser avaliados em aproximadamente 1:000$000. Porém, louças de prata, mobílias, consideradas de bom gosto, foram encontradas entre os mais pobres, mas devemos lembrar que o que classificamos como os mais pobres eram indivíduos que tinham um monte-mor acima de 1:000$000, portanto, haviam muitos sujeitos com rendas muito abaixo desse valor e que, provavelmente, não tinham acesso a esses objetos, exceto em raros casos que não conseguimos localizar. Podemos considerar que como os produtos importados eram muito variados, eles poderiam atender a sujeitos com diferentes posses. Assim, quem não podia consumir os nozes, os figos, a marmelada de Portugal, poderia ao menos comprar o sal, quem não tinha como adquirir a manteiga inglesa, considerada por Braudel como um luxo de mesa, poderia comprar a banha de porco norte americana, quem não podia usar roupas com tecidos de seda, usava vestimentas com tecido de algodão, assim como quem não podia ter acesso a um conjunto de jantar completo de prata ou de porcelana, poderia ter um ou dois desses objetos individualizados. Era possível ter algo importado na Belém dos meados do oitocentos, pois os importados eram muito variados. Contudo, ainda que bens importados não fossem inalcançáveis, por vezes eles deixavam aflorar as distinções entre as camadas sociais. Nesse contexto, analisamos que o aumento do número de embarcações entradas no porto da capital belenense a partir de 1840, levou a uma progressiva circulação dos produtos importados na Província. Esses artigos encontraram ampla recepção entre grupos com diferentes níveis de riqueza, que passaram a usufruir dos novos e múltiplos objetos que chegavam a Belém e, não raramente, chegavam aos interiores da Província. Seja qual for o objeto descrito, o considerado supérfluo ou o indispensável, representa um item que coloca a Província do Pará no circuito de transformações que aconteceram em outras partes do Brasil e do mundo, especialmente as que foram privilegiadas com os portos. Os portos eram espaços privilegiados, onde as novidades chegavam primeiro, seja em matéria de alimentos, vestimentas, leituras, utensílios domésticos e até mesmo o 171 combustível para iluminar a cidade. Isso foi possível em uma época em que ter acesso aos produtos mais triviais e os mais elegantes, relacionava-nos diretamente com o outro lado do Atlântico. De maneira tal como o uso da faca, do garfo e do lenço à mesa, foram aos poucos sendo enquadrados em algumas partes até se tornarem imperativos, também ouvir um bom som de instrumentos, adquirir talheres em prata, ler bons livros e se manter sempre ligado com as últimas notícias e modismos europeus era estar condizente com a civilização. E quem não podia desfrutar desses elementos simbólicos propiciados pelas navegações de longo curso? Usava o sal para salgar, o açúcar para adoçar, o candeeiro para iluminar... Mas isso também não seria simbólico? Talvez..., desde que viesse pelo mar. 172 FONTES PUBLICADAS • Viajantes e naturalistas AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, 1961. BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979. BIARD, François Auguste. Dois Anos no Brasil (1858-1859). Brasília: Edições do Senado Federal, 2004. ______. Une boutique au Pará. 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Relatorio que o Exmo Snr d.r Antonio Coelho de Sá e Albuquerque, presidente da provincia do Pará, apresentou ao exm.o sr. vice-presidente, dr. Fabio Alexandrino de Carvalho Reis, ao passar-lhe a administração da mesma provincia em 12 de maio de 1860. Pará, Typ. Commercial de A.J. Rabello Guimarães, [1860] PARÁ, Governo da Província do. Relatorio dirigido á Assembléa Legislativa da provincial do Pará na segunda sessão da XII legislatura pelo Exmo Snr. Dr. Francisco Carlos de Araujo Brusque, presidente da mesma provincia, em 17 de agosto de 1861. Pará, Typ. do Diario do Gram-Pará, [n.d.] PARÁ, Governo da Província do. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Pará na primeira sessão da XIII legislatura pelo Exmo Snr. presidente da provincia, dr. Francisco Carlos de Araujo Brusque em 1.o de setembro de 1862. Pará, Typ. de Frederico Carlos Rhossard, 1862. PARÁ, Governo da Província do. 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É um carbonato básico de chumbo de composição algo indefinida em função do processo de fabricação e procedência) Alvarenga de ferro (Grande lancha para carga e descarga de navios) Ancoreta (pequeno barril chato para transporte de vinho ou aguardente) Ancorete (pequena âncora) Andor (Charola portátil e ornamentada sobre a qual se conduzem imagens nas procissões) Aparelhos de polyorama (O Polyorama, um dos tantos ancestrais do cinematógrafo) Archote de esparto (tocha de esparto breado; facho breado que se acende para iluminar) Arenques (pequenos peixes gordurosos do gênero Clupea encontrados nas águas temperadas e rasas do Atlântico) Arestas (pequeno prego quase sem cabeça, usado pelos sapateiros) Avelórios (Contas de vidro; miçangas) Bala de papel almaço (rolo de papel usado nas tipografias) Balanço (Brinquedo formado por um par de bancos colocados um em frente ao outro e suspensos por um cabo, permitindo balançar. Atualmente é chamado de baloço) Barretões (barretões de oleado: indumentária usada na cabeça pelos militares da Guarda Nacional) Barrilha (Nome comercial dos carbonatos de sódio e potássio) Betume (Betume, bitume ou pez mineral é a mistura sólida, semi-sólida, formada por compostos químicos (hidrocarbonetos), e que pode tanto ocorrer na natureza como ser obtido artificialmente, em processo de destilação do petróleo. Do betume são obtidos 187 vernizes, massas de revestimento, bases para pintura. É usado para tratar madeiras, pois protege do ataque de cupins) Bichas (Artefato pirotécnico, que consiste num canudinho de papelão cheio de pólvora e munido de um navio que ao queimar faz estalar o invólucro) Bobinetes (o mesmo que filó) Bonets (uma espécie de chapéu) Brandy ou Brande (é o produto decorrente da destilação de vinho, geralmente contendo cerca de 40–60% de graduação alcoólica por volume) Brochas (Espécie de prego curto de cabeça larga e chata; Correia de couro da canga de bois) Cabazinhos (pequeno cesto, cesta, samburá) Cadernal (peça náutica) Cadinho (vaso feito de material que resiste ao fogo) Canapé/camapé (espécie de sofá com costas e braços) Contas marítimas (miçanga; pequenos glóbulos utilizadas em joalheria (colares, anéis, pulseiras, rosários etc) Capacho (Tapete de fibra dura destinado à limpeza das solas dos sapatos) Capa-rosa (caparrosa: designação vulgar dos sulfatos; nome de certas plantas) Capilho(a) (Capilha é uma espécie de caixa onde se guardam documentos) Burra de ferro (Burra - Cofre para guardar dinheiro. Também se alude frequentemente a burra de ferro) Ceira ou seira (Cesto ou saco de vime, esparto ou junco, usado especialmente para transportar frutos) Chales (abrigo de lã ou casimira quase sempre usado por mulheres) Chamalote (Tecido de seda que, pelos desenhos, forma ondas, chamas) Chapéus de baeta (baeta: tecido felpudo de lã) Charões (Charão: verniz de laca, oriundo da China e do Japão; Plantas asiática) Chinelas de marroquim (pele de cabra ou bode tingida e já preparada para artefatos) Chumaceira de latão (Espécie de coxim de madeira sobre o qual se move um eixo) Chumbeiro (Estojo de couro para chumbo de caça) Coffo (Espécie de cesto oblongo de boca estreita, onde os pescadores arrecadam o peixe, camarão etc) 188 Condessa ou Condessa de vime (pequena cesta de verga ou vime redonda ou ovalada, sem asa e dotado de tampa) Coral (Animal dos mares quentes, muito usado em joalheria; a peça de joalheria) Coralina (o mesmo que coral. Incrustação calcária e matizada de uma espécie de alga) Cordovão (Couro de cabra, curtido, e preparado especialmente para calçado) Correame (Conjunto de correias, particularmente as do uniforme do capacete dos militares) Cotim (Espécie de tecido de linho ou de algodão) Coxim (Almofada que serve de assento; espécie de sofá sem costas) Cochicho (apitos de barro, já usados em Portugal, que, cheios d’água, quando soprados imitam a voz do pássaro do mesmo nome) Dedal (Estojo de metal, marfim etc., para proteger o dedo que enfia a agulha) Dobrões (dobrão: antiga moeda portuguesa de ouro) Dragonas de ouro (Peça de metal que os militares usam no ombro como distintivo) Dril (Pano branco inglês, antigamente muito usado no Brasil em vestuário de homem) Enxergões (enxergão: colchão inferior, isto é, aquele que vai imediatamente sobre o estrado, colocando-se depois o verdadeiro colchão) Enxofar (enxofrador: máquina para pulverizar enxofre nas plantas) Enxó (instrumento de carpinteiro para desbastar madeira, chapa de aço cortante) Escabeche/Escaveche (conserva de vinagre e temperos para peixe ou carne) Escaler (barco pequeno) Espírito de terebintina, termentina ou terbentina (o mesmo que aguarrás. Terebintina ou terebentina é um líquido obtido por destilação de resina de coníferas. A terebentina é o diluente ideal para tintas destinadas à pintura de óleo sobre tela) Estearina (fração sólida, obtida do óleo de palma, é utilizada como agente de consistência. Pode ser utilizado em sabões, velas, cremes e loções cosméticas, mas é usado principalmente na fabricação de velas) Fateixa (gancho de ferro usado nos açougues para pendurar carne) Filele (Tecido especial de várias cores, próprio para fabrico e conserto de bandeiras e galhardetes) Fole (Fole de ferreiro ou fole de forja é uma ferramenta usada pelos ferreiros para atiçar o fogo na hora da forja de metais. É composto de uma sanfona de pele entre duas peças de madeira com cabo, que quando aproximadas expulsa o ar para fora da sanfona; utensílio destinado a produzir vento para ativar o fogo) 189 Franja (Ornamento formado por fios pendentes que guarnece um vestido, uma blusa etc) Funda (Arma de arremesso formada por uma peça central presa a duas tiras de couro) Galão/Galão de ouro (Tecido espesso de ouro, prata, seda, ou lã, do feitio de uma fita, usado como remate ou enfeite em peças do vestuário ou do mobiliário) Gangas (calças jeans do sec. XIX) Garruncho/Garrucho (Círculo de ferro, onde passa um cabo de navio) Gelatina (substância obtida pela ação da água quente sobre os tecidos fibrosos dos animais. É empregada na indústria como material de revelação de chapas fotográficas) Genebra (Aguardente feito de cereais, com bagas de zimbro nela maceradas) Gigos (cestos de vime) Ginja (bebida fabricada do fruto da ginjeira) Gorgorão (Tecido encorpado de seda ou lã) Gral de pedra (recipiente usado nos laboratórios) Granadeira (objeto usado para lançar granadas) Ilhós (Aro de metal com que se debrua um orifício ou furo redondo em pano, papel ou couro, por onde se enfia um cordão, cadarço ou uma fita) Litografia (Papel próprio para desenho, pintura) Lúpulo (planta trepadeira da família das moráceas, empregada no fabrico da cerveja) Massame (Lastro de pedras ou argamassa posto no fundo dos poços, cisternas, piscinas etc.; Náutica Conjunto daquilo que concerne à mastreação de um navio: polias, enxárcias, velas, vergas, cordoalha etc.) Macete (Espécie de martelo de ferro, de forma cônica, usado por pedreiros, canteiros e funileiros, ou de madeira, de forma cilíndrica, usado por carpinteiros e marceneiros) Machete (Cavaquinho) Manteletas (vestidura curta, que dignatários eclesiásticos usam sobre o roquete; pequena capa leve e com rendas para senhoras) Mastaréu (instrumento náutico, pequeno mastro suplementar) Mechas (pedaço de papel ou pano embebido em enxofre para defumar pipas e toneis) Moitões (peça metálica em forma de eclipse destinada a levantar pesos e outros usos) Nastros (Fita estreita de linho ou algodão; trena) Obreia (pasta de massa usada para fabricar a hóstia para a comunhão) 190 Orchata (tipo de bebida refrigerante, feita com sementes de melancia, amassadas, água e açúcar; bebida feita com caldo de cevada cozida e amêndoas doces) Ocre (uma espécie de argila colorida) Oleado/Peças de oleado (o mesmo que encerado, pano tornado impermeável pela aplicação de verniz) Paio (Carne de porco acondicionada em tripa de intestino grosso) Patacão (antiga moeda de cobre portuguesa do valor de 40 réis) Pederneira pedra que se fere com um objeto para produzir fogo Pêz (breu, piche, betume) e resina Pez de sapatos (Pez: resina grudenta) Pó de marfim (para fazer bola de bilhar) Poleame/Poliame (Poleame, na náutica é o conjunto de todas as peças: moitões, cadernais, patescas, bigotas, etc, destinadas à passagem ou ao retorno de cabos em geral) Polvarinho (estojo em que se leva pólvora para a caça) Realejo (espécie de instrumento musical, portátil cujo fole e teclado são acionados por um cilindro movido a manivela) Rolão (a parte mais grossa da farinha, utilizada para fazer papas grossas) Sêmeas (O que fica da farinha de trigo, depois que esta é peneirada e separada do rolão; farelo miúdo) Sarja (Tecido entrançado feito de lã, raiom, algodão ou seda. A trama apresenta nervuras ou linhas oblíquas na superfície do tecido) Serineta (Espécie de instrumento musical com que se ensinam as aves canoras a cantar) Serpentina (castiçal de vários braços, geralmente dois ou três, onde se fixam velas; fita de papel colorido, enrolada sobre si mesma e que se desenrola quando atirada nos folguedos de carnaval) Servilha (Sapato de couro; Sapato de ourelo) Tijolos de lousa (tijolo para fazer laje) Toucador (Espécie de cômoda encimada por espelho, diante da qual as mulheres se penteiam, se pintam; penteadeira) Traste (Móvel caseiro) Umbela (Pequeno chapéu-de-sol de senhora; sombrinha) Vaqueta (couro delgado curtido e preparado, próprio para a fabricação de forro para calçados) 191 Varejo (Fogo de artilharia ou fuzilaria) Vitríolo (Nome vulgar do ácido sulfúrico e diversos sulfatos) Zuarte (pano azul ou preto de algodão) 192 APÊNDICE B – Agrupamentos dos importados em Subcategorias SUBCATEGORIA ITENS Adorno para roupas e Botões de aço, bordado de ouro, boné, bonete, leque, bengala, pessoas botões de ágata, botões de osso, botões de seda, cabeleira, cabelo, chapéu, chapéu de senhora, chapéu de chuva, chapéu de sol de seda, chapéus de palha, chapéus-de-sol, cartola, chale, chapéu de seda e paninho, chapéu de baeta, chapéu de mola, gravata, gravata de seda, umbela, lenço, lenços de seda, manta para viagem, manta de lã, luva, miçanga, fita, fita de seda Alimentos de origem animal Bacalhau, carne, carne de porco, peixe, língua de peixe, peixe de escabeche, carne salgada, carne seca, lagosta, lagosta com calda, salmão, sardinha, arenque, camarão, ovos, pássaros preparados, tartaruga em rama Alimentos de origem vegetal Azeitona, batata, cebola, hortaliça, legumes, maçã, nozes, tâmara, arroz com casca, pêssego, repolho, repolho salgado, tomates salgados, grão-de-bico, fava, grãos, grãos para sopa, tamarindo, peras secas, passas, nabo, nabo salgado, ameixa, amêndoa, aveia, castanha, farelo, feijão, figo, frutas secas, terça, rolão, sêmeas, tremoços, uva, maná Bolacha, bolacha fina, bolachinha de soda, chouriço, doce, farinha, farinha de trigo, manteiga, manteiga de porco, queijo, marmelada, massa de cacau, massa de tomate, toucinho, açúcar, presunto, biscoito, biscoitinho, café, calda, conserva, conserva de ervilha, lingüiça, pães de açúcar, salpicão, salsicha, cevada, cevadinha, paio Arma, revólver, pólvora, carabina, garruncheira, espingarda, espoleta, granadeira, cano de chumbo, chumbeiro, fecho para espingarda, pistola, polvarinho, punhal, varejo, funda, chumbo em grão, lazarina Alimentos processados Armamento e munições Artigos funerários Ferro de cova, túmulo, mausoléu, urna de pedra Artigos religiosos (litúrgicos) Crucifixos de madeira, cruz, santos, santuários, oratório, andor, cristo de prata, figuras de barro, figuras de gesso, figuras de pau, imagens, opas, paramento, paramento para missa, paramento para altar, romeira, sino, obreias. Artigos de pesca Caniço, anzol, rede, rede de pesca, rede de arame, coffos Bebidas Aguardente, chá, chá hysson, chá preto, champanhe, cidra, ginja, conhaque, brande, cognac, cerveja, licor, licor de labarraque, orchata, rum, vinho, vinho Bordeaux, vinho branco, vinho Muscatel, vinho tinto, genebra Bens da casa Assuadeira, escarradeira, caixinhas para barba, banheira, espelho, bauzinho de folha, chapa, chapa de cozinha, chapa para fogões, chapa elétrica, colchão, facas, facas de charquear, facas de ponta cortada, facões, ferro de engomar, fogões, fogões de ferro, 193 cafeteira, fogareiro de ferro, fogareiro com grelha, lavatório, lençol, cobertores, guardanapo, penico, pente, pente de marfim, pente de chifre, pente de goma elástica, pente para crianças, refrigerador, toalha, travesseiro, bancas, chaminé, jardineira, espelho, jarros, pia, ralo, manta, chaminé de vidro, jarros, baú, torrador, torrador de café, enxergões, estojo, estojos de de barba, pinceis de barba, palito, fósforo, pederneira, mobília, cama, canapé, guarda-roupa, cômodas, estante, sofá, refrigerador, cadeira, cadeira de balanço, traste, burra de ferro, cofre de ferro, toucador, marquesas, almofada para cadeira, armações para licoreiro, , licoreiros, objetos de chapeleira, chapeleira, urinóis Condimentos Alho, azeite, canela, cominho, pimenta, pimenta preta, sal, vinagre, salsaparrilha, mostarda, mostarda em grão, cravo, molhos, molhos de cebola, especiarias, escabeche Diversão Cartas para jogar, dados para jogar, jogos de bola, bichas, mesas para jogar, cochicho, lanterna, lanterna de papel, aparelhos de polyorama, balanço, balões, bilhar, boneca, boneco, bonecos de goma elástica, boneco de barro, brinquedo, carrinho para crianças, cochichos, deorama, fantasia, fogo artificial, fogo da china, fogos de artifício, foguete, foguete da índia, cana para foguetes, mesa de jogo, peões, utensílios para mascarado, cavalo de pau, serpentina Ferramenta, ferramenta de corte, afiador, amolador de pau, rebolo/pedras de rebolo, machado, machadinho, arado, enxada, enxofar, foice, instrumentos de agricultura Ferramentas Flores, plantas, sementes, produtos e objetos medicinais Bagas de zimbro, flor de sabugo, flor de laranja, sabugueiro, sumagre, sanguessugas, alfazema, linhaça, arbusto, aresta, camélia, campeche, pau de campeche, cana, capim, carnaúba, charões, essências vegatais, gergelim, grama, lúpulo, macela, mamona, pinhão, pinho, planta, planta de flores, preparo de flores, ramos de flores, raízes de flores, rutim, salva, sanguissugas, semente, semente de flores, semente romana, sumagre, vergônteas, vermífugo, videira, taboca, pirola de Brandreter, macela, instrumentos de cirurgia Fumo Porta-cigarro, porta-charuto, charuto, rapé, tabaco, folhas de tabaco, tabaco de estriga, tabaco de fumo, esturrinho Iluminação Alâmpada, candeeiros, candeeiro solares, candelabros, castiçal, lamparina, lampeão, lanternas, mangas de vidro, velas de sebo, velas de espermacete, vidro de lampião, vidro para candeeiro, velas de cera, sebo de Holanda em velas, fio de vela, azeite de baleia, azeite para luz Instrumentos musicais e outros Piano, violino, violão, guitarra, rabeca, rabecão, cavaquinho, flauta, serineta, corda para instrumentos, machete, órgão, papel para música, realejo, viola 194 Itens fotográficos Gravuras, litografia, retrato, papel fotográfico, papel para imprimir, objetos para daguerreotypo, gelatina Joias Ouro, contas, contas de ouro, contas marítimas, objetos de prata, contas de vidro, adereços de contas, relógios, relógio de ouro e prata, relógio de algibeira, pulseiras, brincos, braceletes, bijuteria, coral (corais), coralina, cordão, joias de ouro Leitura: livros, bibliotecas e escritório Tinteiro de estanho, tinteiro, tinta para escrever, pena, pena de aço, penas de metal, pena para escrever penas metálicas, máquina de copiar cartas, livro, livros em branco, mapa, mapa da costa do Brasil, mapa mundi, plano, objetos de escritório, objetos de escrituração, utensílios para desenhos, globo, globo de vidro, lápis, objeto para escrever, instrumentos matemáticos Materiais e produtos de limpeza Sabão, sabonete, água para tirar nódoas, escova, escovões, vassoura Maquinarias diversas Máquina, máquina de fazer tijolos, prensa para tijolos, máquinas e pertences para destilar, máquina magnética, máquina para cacau, máquina para cortar papel, máquina para fazer água de selts, máquina para fazer soverte, maquinismo, parafuso de engenho, peças de maquinismo por vapor, pistão de ferro, engenho de vapor, engenho de descaroçar algodão, moendas de urucu, moinho, moinho de café Material para imprensa Typos (tipografia), prelo, objetos para imprensa, bala de papel, máquina para aparar papel, folheto, gazeta, impressos, jornais do universo pitoresco, papel para imprimir, jornais do universo pitoresco, rolos de papel Materiais para construção de casas, ruas Lage, laje de cantaria, azulejo, pastilha, pares de rotula, pedra de cantaria, sacada de cantaria, pedra, pedra branca, pedra calcária, pedra de lajedo, pedra de mármore, pedra para escada, seixo, soleira de pedra, tijolo, tijolos de lousa, tijolos de zinco, varas de lajedo, cimento, soleira de porta Metais e ligas metálicas Ferro, ferro em barro, ferro em linguado, ferro de latão, cobre, estanho, latão, aço, prata, ouro, folhas de bronze, folhas de cobre, folha de ferro, folhas-de-flandres, zinco, folhas de zinque, aço, chumbo em lençol, rolo de chumbo, chumbo, barras de chumbo, metais Moedas Libras de ferro, libras de ferro da Suécia, moedas de cobre, moedas de prata, patacão, pesos, peso de ferro, peso de ouro, peso de prata, pesos mexicanos, soberano, dobrões, onça de ouro, saca com dinheiro Objetos de vidro Telas de vidro, cálices de vidro, avelórios (miçangas), cristais, telhas de vidro, vidro, vidro para vidraças, vidro em chapa Objetos militares Capacete, capacete de cobre, coturno, dragonas de ouros, correame, 195 barretões, objetos para militares, porrete, preparos para soldado Obras diversas Obras de cobre, obras de folha, obras de jaspo, obras de latão e cobre, obras de metal, obras de ouro, obras de prata, obras de vime, obras de barro, obras de vidro Óleos e azeites Óleo, azeite, azeite de oliveira, banha, banha de porco, azeite de peixe, azeite doce, Óleo de palma Papeis Papel machê, papel, papel florete, papel para forrar casas, papel para forrar salas, papel pintado, rolo de papel pintado, papelão Perfumaria Água de colônia, perfumaria Produtos para botica e medicamentos Iodo, água férrea, mercúrio, vidro de água das caldas, droga, quina, sulfato de quina, medicamento, pílula, pomada, remédio para lombrigas, ungüento russiano, unto, xarope, xarope de limão, pílula, cadinho, gral de pedra, óleo de ouro, Óleo de amêndoa, Óleo de mamona, Óleo de rícino, Óleo de castor, azeite de carrapato, óleo de limão, espermacete, Óleo de linhaça, erva, erva doce, Óleo de junipero (óleo de cedro) Produtos Químicos Aguarrás, barrilha, cal, espírito de nitro, potassa, carbonato de amoníaco, ácido, salitre, calomelano, cânfora, enxofre, espírito de terebintina, etér sulfúrico, iodo, vitríolo, estearina, alcatrão, alvaiade, betume, caparrosa, éter sulfúrico, pó para tingir cabelo, cloruro de zinco Tecidos e linhas Merinó, brim, chitas, seda, fazendas, rendas, tafetá, casimira, estampa, lã, linha de novelo, linho, veludo, pano de algodão, madapolão, zuarte, retrós, chamalote, bobinete, cetim, chamalote, cotim, dril, estopa, filele, fio, flanela, linhas, linhas rorís, peças de sarja, sarja de seda, pêlo de seda, pelúcia, riscado, oleado, peças de oleado Transportes Alvarenga de ferro, âncora, ancorete, arco de pau para mastro, arcos para mastro, arreios para carroça, arreios para carro, arreios para carrinho, cabo, cabo da rússia, cabo de cairo, cabo de linho, cadernais, carrinho, carrinho com arreios, carro, carro fúnebre, carro para água, carros para carregar pedra, carruagem, escaler, garruncho/garrucho, eixo, eixo de ferro, eixo para carro, jogos de roda, lancha, linha de barquinha, mastaréu, material para imprensa, objetos para carrinho, objetos para carruagem, pau para gurupés, poleame, remo, rodas d’arco de pau, rodas de ferro, rodas, traçado, varais para carro, ferro de canoa, aparelho de carrinho, chumaceira de latão, chicote de carrinho, poliame Utensílios de trabalho (Destilaria, Ourivesaria) Alambique, alambique de cobre, ferramenta de ourives, prata, fogão para destilar Utensílios de alfaiate Agulha, alfinete, colchete, corte de coletes e calças, cortes de 196 vestidos, dedais, franja, Ilhós, cortes de coletes e calças, renda de ouro, tesoura, nastro Utensílios de trabalho (Carpinteiro, marceneiro e Tanoeiro) Verruma, enxó, martelo, prego, dobradiça, aduela, preparos para serra, serras, tabuinha, tabuinha para janela, prancha de pinho, tabuado de pinho, pés de tabuado de pinho, tábuas, tábuas de nogueira, tábuas de pinho, madeira, rotim Utensílios de trabalho (Ferreiro) e ferragens Bigorna, fole, arco de ferro, barra de ferro, chapas de ferro, fechaduras, ferragens, martelo, torno de cobre e ferro, torno, caldeira, ferramenta de torneiro, lima, serra, prensa, forno, areia de fundição, areia, vergalhões de ferro, tacha de ferro, ferro fundido, trancas de ferro, grade de ferro, tacha de ferro fundido Utensílios de trabalho (Padeiro) Peneira, cilindro, cilindros de ferro, confeiteira, peneira de arame, peneira para padeiro Utensílios de trabalho (Sapateiro) Formas para sapatos, trinchetes, pez, breu, piche, resina, pez de pinho, pez de sapatos, cadarço, cadarço de algodão, vaqueta, pele de carneiro, peles de bezerro, peles de sapateiro, brocha de sapateiro, peles envernizadas, peles marroquim, marroquim, pelica, bicos para sapateiro, aresto, cola, cordovão, couros, coxim, coxim de linho, peças de castor, tacha, tampo de couro, vaqueta, pó de sapato, capacho, fio de sapateiro, sola, costaes sola Utensílios e alimentos para animais Albardão, corda, arreio, arreio para cavalos, ferradura, alpiste, aparelhos para cavalo, cabeçada, cabeçada para cavalo, casas de pombo, casas de ganso, casas de pato, comida para cavalo, espora, feno, freios, gaiola, gaiola com canários, objetos de selaria, selim, viveiros para canários, obras de seleiro, farinha para cavalo Utensílios para comércios, açougues e mercearias Fateixa, aparelhos de armação Vasilhames Açafate, barril, pipa, barrica, ancoreta, bacia, bacia branca, bacio, balde, botijões de barro, botijões, cabanilho, cabazinho, caixa, caixa selada com prata, caixas abatidas, caixas de pau, caixas de tartaruga, caixinhas de madeira, caldeira, cestinha, cesto, condessa, condessa de vime, frasco, frasqueira, garrafa, garrafões vazios, latas, liaças de vime, peniqueira, sacas, terno de baldes, ternos de condessa, tina, gigos, ceira (seira), paneiro, sacas de gune, vidro para água de colônia, tina Vestuário Calçado, sapato, chinelas, chinela de marroquim, roupa, roupa para teatro, chapelaria, vestido, vestido de seda, servilha, camisa, camisola, gangas, servilha, meia, tamanco Diversos Algodão, amostra, anil, arame, archote, archote de esparto, balança, balança de patente, braços de balança, barbante, polimento, couro de polimento, bezerro, bezerro branco, bezerro de polimento, 197 bezerro envernizado, bocais para bomba, bogias, bomba, bomba de incêndio, canivete, carro de mão, carteira, casco, casco de tartaruga, sebo, cera, cera brume, chicote, composição, corrente, cortiça, crivo, encerado, encomenda, escada de pau, esponja, esteiras, escudo pintado, ficha, flor artificial, gelo, goma arábica, graxa, grude, grude de peixe, lixa de peixe, lona, luneta, macete, mala, mala de couro, manteletas, manufatura, massa, massa para extinguir rato, mechas, medalhas, miudezas, modas, moitões, molde, monumento, navalha, objetos de goma elástica, objetos para cartório, objetos para sorvetes, objetos para vapor, ocre, óculos, óculos de alcance, ostra, pá, pá de ferro, palheta, palhinha, pedra para engenho, penas de aves, penas de pato, pinceis, quadro, quarto, quinquilharia, regador, regulamento, rolhas, rolhas de cortiça, seta, tabatinga, tacho, tacho de cobre, tacho de ferro, tampo, tampos envernizados, tapete, taxas de bomba, termômetro, tinta, tinta branca, tinta em óleo, tinta em pó, verniz, torneira, utencis, válvula de borracha, vara, veneziana, verguinha, vime, carvão, carvão de pedra, marcas de osso, folha, pó de marfim, redoma, fio porrete, forma, serigrafia, lousa, gesso, cinta 198 ANEXO – Conversão de Réis (Rs $) em Libras ( £ ) Como o Real (Rs), moeda brasileira do oitocentos era frágil frente ao franco francês ou a libra esterlina inglesa, e a economia brasileira apresentou durante esse período momentos de inflação, comparar uma fortuna de um período em que o real estava desvalorizado frente as moedas europeias, com a fortuna de outro momento em que o real estava valorizado no cenário econômico é desigual. Portanto, a fim de eliminar essa influência da inflação presente em cada ano, os valores em réis (Rs) foram convertidos em libra esterlina, por meio do pence inglês, como fator de conversão. Assim pode-se comparar fortunas de diferentes períodos. Este processo de conversão foi realizado com base no procedimento que Kátia de Queirós Mattoso apresenta no livro Ser Escravo no Brasil, cuja metodologia de análise de dados é baseada na relação dada abaixo. Valor [£] (em libras) = Valor [Rs 1$000] (em mil réis) x taxa de flutuação cambial em pence 240 Tabela da Taxa de flutuação cambial: valor de Rs 1$000 (mil-réis) em pence 1840-1870 Ano Câmbio Ano Câmbio Ano Câmbio 1840 31,0 1850 28,7 1860 25,8 1841 30,3 1851 29,1 1861 25,5 1842 26,8 1852 27,4 1862 26,3 1843 25,8 1853 28,5 1863 27,2 1844 23,1 1854 27,6 1864 26,7 1845 25,4 1855 27,5 1865 25,0 1846 26,9 1856 27,5 1866 24,2 1847 25,0 1857 26,6 1867 22,4 1848 25,0 1858 25,5 1868 17,0 1849 25,8 1859 25,6 1869 18,8 1850 28,7 1860 25,8 1870 22,6 Fontes: Mattoso, 1982, p. 254; Triner, 1999, p. 51.