Primeiras aproximações sobre a identificação de identidades
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Primeiras aproximações sobre a identificação de identidades
PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES SOBRE A IDENTIFICAÇÃO DE IDENTIDADES TERRITORIAIS EM LUTA E UM ESTUDO DE CASO. Mercedes Solá Pérez Gustavo Ronconi de Nazareno Pedro Kiatkoski Kim Resumo No presente trabalho apresenta-se, dentro do contexto da América Latina, duas experiências de identidades territoriais em luta contra as conseqüências do sistema capitalista e; na escala local realiza-se uma análise sintética da realidade de moradores de rua do bairro Alto da rua XV na cidade de Curitiba-Pr. A primeira parte discorre sobre o histórico da realidade latino-americana como dominada pelos “países desenvolvidos” e pelos grupos econômicos, fazendo uma breve análise bibliográfica sobre dois referenciais de luta contra o sistema: o movimento zapatista e os cocaleiros da Bolívia. Posteriormente, procura-se encontrar os elementos que configuram a realidade latino-americana dentro da cidade de Curitiba, com um grupo de moradores de rua. Consideramos que o histórico de dominação da nossa América Latina aos poucos vai sendo modificado graças à atuação de movimentos sociais que não aceitam passivamente a dominação. Acredita-se que só a partir da união de base de organizações populares torna-se possível o fim da dominação pelos grupos econômicos e dos países que estes representam. Palavras-chave: identidades territoriais em luta; sistema capitalista; realidade latinoamericana. Resumen El presente trabajo se presenta, dentro del contexto de América Latina, dos experiencias de identidades territoriales en lucha contra las consecuencias del sistema capitalista y; en la escala local un análisis sintético de la realidad de personas de la calle en el barrio “Alto da rua XV” en la ciudad de Curitiba, Paraná. La primera parte decorre sobre el histórico de la realidad latinoamericana como dominda por los “países desarrollados” y por los grupos económicos, haciendo un breve análisis bibliográfico sobre dos referencias de lucha contra el sistema: el movimiento zapatista y los cocaleros de Bolívia. Posteriormente, se busca encontrar los elementos que configuran la realidad latinoamericana dentro de la ciudad de Curitiba, con un grupo de habitantes de la calle. Consideramos que el histórico de dominación de nuestra América Latina de a poco se va modificando gracias a la actuación de movimientos sociales que no aceptan pasivamente la dominación. Creemos que sólo a partir de la unión de base de organizaciones populares se torna posible el fin de la dominación por los grupos económicos e de los países que estos representan. Palabras-clave: Identidades territoriales en lucha; sistema capitalista; realidad latinoamericana. Como seria um mundo verdadeiro? Podemos ter uma idéia vaga: seria um mundo em que as pessoas pudessem se relacionar entre si como pessoas e não como coisas, um mundo em que as pessoas pudessem decidir sua própria vida. (Holloway, 2003, 11) Introdução Partindo da proposta do professor Jorge Montenegro na disciplina de Conflitos territoriais, fazemos uma análise sobre a relação que se estabelece entre o desenvolvimento como estratégia de controle social por parte dos grupos econômicos dominantes e as Identidades territoriais em luta, pois nos parece que a partir desta relação é possível compreender o território da América Latina. Entendemos o território como um espaço delimitado, apropriado por diferentes atores onde se estabelecem relações de poder, conflitos decorrentes destas relações e, ao mesmo tempo, alternativas aos conflitos. A análise é feita num primeiro momento no contexto da América Latina, mas entendendo que as políticas e conjunturas são mais amplas. Já que os atores que intervêm neste território são tanto internos (grupos econômicos nacionais, grupos políticos nacionais, sociedade civil, movimentos sociais) quanto externos (grupos econômicos multinacionais, BIRD, BM, ONU). No nível da América Latina escolhemos trabalhar com algumas referências que dizem respeito às identidades territoriais em Bolívia (Movimento Social Indígena) e México (Movimento Zapatista). Posteriormente, partimos para a escala local de Curitiba-PR, realizando uma análise em campo do conflito urbano com os moradores de rua. Relações de poder na América Latina No fim do século XVIII o mercado se difunde e institucionaliza como setor autônomo da política, da cultura, da sociedade. Este fenômeno resulta de filosofias que predominam nesta época, como o individualismo e o utilitarismo (ESCOBAR, 2000). A conseqüência é a consolidação do capitalismo que implica em relações de poder nas quais poucos atores são dominadores, pelo fato de serem os detentores de capital, e muitos são subordinados, com o objetivo de propiciar maior acumulação de capital aos primeiros e como conseqüência criar fortes desigualdades sociais. (MILLET; TOUSSAINT, 2006) Este fenômeno se reproduz permanentemente em diferentes escalas e ao longo do tempo a partir de mecanismos diferentes. No caso da América Latina, isto é o conjunto dos 34 países “em desenvolvimento”, a dominação apresenta-se em diferentes períodos. Desde a colonização da América Latina o território tem sido alvo de dominação e exploração por parte dos chamados “países desenvolvidos”. Galeano (1976), Santos (2002) já identificavam as primeiras formas de exploração na América Latina através da extração de matérias primas e utilização de mão de obra escravizada indígena e negra. Depois do período de colonização uma nova forma de dominação é a política, pois se implantam ditaduras militares que aplicam políticas de substituição de importações impostas pelos países desenvolvidos. Após esta conjuntura, a dominação é predominantemente econômica, já que a contração de dívida externa por parte dos governos militares implica uma total dependência dos países em desenvolvimento de atrelar-se às condições dos organismos internacionais para o pagamento da mesma. O que interessa, e interessou sempre, para os grupos econômicos e os países desenvolvidos é a exploração de pessoas e da natureza. (ESCOBAR, 2000) A exploração se dá de diversas maneiras e, atualmente, é a partir da adoção dos planos de ajuste estrutural para o pagamento da dívida externa (fruto dos empréstimos realizados durante as ditaduras militares) ditados por organismos internacionais e aplicados pelos governos de cada país (MILLET; TOUSSAINT, 2006). Estes organismos internacionais (Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial) são liderados pelos países da Europa Ocidental, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia e Japão. Pois, apesar de serem formados por aproximadamente 184 países, o maior poder de voto lhes corresponde a EUA e Europa Ocidental, já que por cada dólar que o país tiver pagado na subscrição (para o ingresso ao organismo) lhe corresponde um voto. “No fim das contas, é a cota paga pelos países que determina a influência que terão (ou não terão...) no FMI.” (MILLET; TOUSSAINT, 2006, 78) Portanto, isto indica que os organismos internacionais são e foram criados como instrumentos para a reprodução do sistema capitalista e dominação dos países em desenvolvimento pelos desenvolvidos. América Latina: um território de luta? Em resposta a estas imposições, em diferentes países, organizam-se grupos que buscam fugir ou contrariar a lógica deste sistema de alguma maneira. Na Bolívia, tenta-se a partir da ascensão de Evo Morales ao poder a partir do Movimento Ao Socialismo liderado por indígenas historicamente subjugados. Segundo Gutiérrez e Lorini (2007) a força da sociedade civil organizada, em especial os cocaleiros e os indígenas, permitiu esta ascensão. As propostas que se apresentam em busca de contrariar as normas dos grupos econômicos reprodutores do sistema capitalista de acumulação são: a nacionalização dos recursos naturais, água, gás e petróleo; a criação de leis de terras para acabar com o latifúndio e; um sistema de educação único baseado na intraculturalidade. Outra aposta que vai contra o sistema capitalista é a consolidação do Movimento Zapatista no México. Este movimento nasce como alternativa às políticas neoliberais que buscam destruir a propriedade sócio-econômica comunal indígena. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) se manifesta contra o institucional, contra as políticas neoliberais, os acordos com os EUA como o Tratado de Livre Comércio e utiliza como estratégia -e como solução à dominação- a formação de comunas auto-governadas, livres, democráticas e autônomas. (BUENROSTRO Y ARELLANO, 2002) Este movimento tem servido de exemplo de luta a outros que estão se espalhando pela nossa América. Moradores de Rua em Curitiba-PR Na escala local apresentamos uma análise em campo sobre uma das situações de conflito que ocorrem na cidade de Curitiba-PR: o conflito entre moradores/as de rua e moradores do bairro onde os primeiros moram. Previamente à saída de campo coletamos dados na Fundação de Ação Social (FAS) sobre o perfil dos moradores de rua como sexo, idade, nível de escolaridade. Segundo esta instituição atualmente há 1216 pessoas moradoras de rua das quais são maioria os homens (888), seguem em ordem decrescente as crianças e adolescentes entre sete e dezessete anos (172) e a minoria são mulheres (156). Respeito ao nível de escolaridade (Tabela 1) nos homens um 45 % indicou ter realizado entre a primeira à quarta série, 32% pararam no Ensino Fundamental entre a quinta e a oitava série, um 11% dos homens freqüentou o ensino médio; quase um 6 % deles são analfabetos e: no ensino superior seja completo ou incompleto apresenta-se uma porcentagem de 0,1%. Entre as mulheres a maior porcentagem (60 %), ao igual que nos homens, é no ensino fundamental entre a primeira e a quarta série; 19 % correspondem à categoria da quinta à oitava série; mais do 9 % são analfabetas; 4 % delas freqüentou o ensino médio e nenhuma das mulheres ingressou no ensino superior. Nas crianças e adolescentes 117 das 172 delas estavam no nível fundamental básico (primeira à quarta série), isto é um 68 %; a seguinte porcentagem refere-se ao nível fundamental entre a quinta e oitava séries sendo de um 24 % e um 4 % se identificam como analfabetas. Tabela 1- Escolaridade dos moradores, moradoras, crianças e adolescentes de rua. Após o conhecimento destes e outros dados fornecidos pela FAS, procedemos à análise em campo dos conflitos, vivências e perfil de quatro moradores de rua: dois homens, uma mulher e um menino. A análise foi realizada no bairro Alto da XV em Curitiba-PR por ser um bairro por nós freqüentado. Neste identificamos através de questionamentos informais os comerciantes e moradores do mesmo que os conflitos que se apresentam estão relacionados ao incômodo que os moradores de rua provocam a invasão de terrenos baldios, pedirem sempre tanto nas residências quanto nos comércios. Desde a perspectiva dos moradores de rua as problemáticas que observamos são: a utilização de bebidas alcoólicas para não passar frio, a necessidade de abrigar-se em algum lugar quando chove, a presença de policiais que reprimem. Quando conversamos com este grupo de pessoas concluímos pelos dados que nos deram que os dois homens (de 62 e 47 anos) moram na rua por estarem desempregados de trabalhos agrícolas (cortador de cana e técnico agrícola, respectivamente) e sem condições para pagar um lugar onde morar, mas ao mesmo tempo, sentem que a rua lhes dá liberdade. A mulher não informou as razões pelas quais se encontra morando na rua, pertence a um grupo na rua que utiliza drogas e praticamente não tem contato com a família porque não a aceitam. O menino saiu de casa por violência familiar quando tinha onze anos e viveu durante quatro anos vendendo e consumindo drogas, atualmente vive numa Organização Não Governamental que abriga meninos de rua ou que viviam em situação vulnerável. Frente a esta problemática observamos também o trabalho e preocupação de várias organizações não governamentais e algumas governamentais que procuram de alguma maneira amenizar a vida desta população de rua, a partir de ações específicas como algum almoço, banho, abrigo temporário, atividades. Porém, nos parece que considerando o nível de práticas alternativas aos conflitos, neste caso ainda não foi alcançado. Qual são a América Latina, o país e a cidade que queremos? Por um lado, ainda nos questionamos se este processo de “esquerdização” dos governos na América Latina, não continua sendo funcional à conjuntura maior da reprodução capitalista. Por que esta questão? Depois de anos de ditaduras militares nos países da América Latina, aos poucos a sociedade começa a se reorganizar novamente para impedir a continua implantação de políticas de dominação, políticas neoliberais. A reorganização destes grupos implica na ascensão de algum líder como é o caso de Evo Morales na Bolívia. Os países industrializados aceitam que este líder popular “assuma o poder” porque as organizações populares não irão se opor às políticas que ele implantar por considerar-las convenientes, mesmo que “pareçam” políticas neoliberais, pois é seu líder que está ao mando. Assim, a conjuntura do sistema continua funcionando e o desafio atual do governo de propiciar mudanças sócio-econômicas que acabem com a pobreza no país torna-se extremamente complicado, pois isso não interessa aos detentores de capital. A maioria dos países da América Latina teve os mesmos processos nas mesmas épocas: exportadores de matérias primas, processo de industrialização, substituição de importações, atualmente o neoliberalismo disfarçado por alguns “governos de esquerda”. Após a discussão realizada anteriormente sobre o sistema capitalista e suas conseqüências e os relatos dos moradores/as de rua, acreditamos que os problemas reais das pessoas que conhecemos nestas condições estão associados ao desemprego, falta de oportunidades, baixos-salários, exploração, drogas, alcoolismo, violência sexual, violência física, violência psicológica. Principalmente, identificamos aqui uma total indiferença por parte da sociedade que cria um preconceito com estas pessoas, sem procurar se colocar no lugar do outro (OZ, 2002, 13-41). Fazendo uma retrospectiva dos últimos tempos observamos que, durante os anos 60-70, as instaurações dos regimes ditatoriais reprimiram as possibilidades de mudança de um sistema de produção capitalista que não funcionava já naquele tempo. Isto provocou a síndrome da pós-modernidade, implicando em algumas pessoas na queda das utopias e ideais. Com o fim das ditaduras, aos poucos, a sociedade começa a “acordar” novamente para se reorganizar e lutar pelos seus ideais. Assim, a cada dia aumentam os movimentos sociais, que identificam a urgência de mudanças de um sistema que: serve para poucos, privilegia o individualismo, a acumulação de capital, a homogeneização de uma cultura onde predomina o consumismo e a desigualdade social. Estas experiências descritas -e muitas outras existentes- demonstram que a desigualdade não é o que tod@s queremos que com valores como cooperação, organização, autonomia, responsabilidade, a dignidade e identidade é possível mudar. “A dignidade é a auto-afirmação dos reprimidos e do reprimido, a afirmação do poder-fazer em toda sua multiplicidade e em toda sua unidade.” (HOLLOWAY, 2003, 311) Novas alternativas surgem pela recusa à globalização, ao capitalismo em si mesmo, que respondem às especificidades de cada país (ou sociedade) que as elabora, “Então uma globalização constituída de baixo para cima, em que a busca de classificação entre potências deixe de ser uma meta, poderá permitir que preocupações de ordem social, cultural e moral possam prevalecer” (SANTOS, 2006, 124). Acreditamos que é desde a sociedade organizada que se torna possível uma mudança, a partir do momento que nos tornamos conscientes das nossas ações, pensamentos, atitudes com @s outr@s, de saber-nos/reconhecer-nos protagonistas, responsáveis e dignos da nossa existência. Referências BUENROSTRO Y ARELLANO, Alejandro. As raízes do fenômeno Chiapas: O já basta da resistência zapatista. São Paulo: Alfarrábio, 2002. p. 21-47; 71-91. CARRIL, Lourdes de Fátima Bezerra. Quilombo, território e geografia. São Paulo: Agrária, n° 3, 2006. p. 156-171 ESCOBAR, Arturo. Planejamento. In: SACHS, Wolfgang (Ed.) Dicionário de desenvolvimento: Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000 [1992]. p. 211-228. GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. 1976. GUTIÉRREZ, Carlos Jahnsen; LORINI, Irma. A trilha de Morales: novo movimento social indígena na Bolívia. Novos estudos-CEBRAP. Mar. 2007, n° 77. p. 49-70. HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. 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