Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1)
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Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1)
CARACTERIZAÇÃO AMBIENTAL DE UMA ÁREA DE MARISMA CONHECIDA COMO “SACO DO RATÃO” (ESTUÁRIO TRAMANDAÍ-ARMAZÉM), TRAMANDAÍ, RS, BRASIL Luiz Guilherme Schultz ARTIOLI UFRGS - Instituto de Biociências, Depto. Zoologia, Laboratório de Ictiologia, Av. Bento Gonçalves, 9500, setor 4, prédio 43435, 91501-970 Porto Alegre, RS, Brasil. [email protected] RESUMO - Marismas são áreas transicionais entre o ambiente aquático e o terrestre, sendo assim, classificadas como sistema estuarino intermareal. São zonas de substrato areno-lodoso e em certos locais anaeróbico. Dominam em regiões temperadas, onde atuam na deposição e fixação de sedimento, retenção de poluentes e formação de habitats vitais para recursos pesqueiros e alta produção primária, suportando a teia trófica detritívora de forma particularmente importante em estuários temperados rasos e/ou águas turvas. A marisma do “Saco do Ratão” localiza-se na laguna Armazém, estuário do rio Tramandaí, município de Tramandaí, litoral norte do Estado do Rio Grande do Sul. Esta área caracteriza-se por apresentar uma flora tolerante a salinidade, com predomínio das macrófitas aquáticas Scirpus olneyi e Crinum americanum, e as acompanhantes Acrostichum danaefolium, Myrsine parvifolia e Typha domingensis. A fauna do estuário é diversa. Aves tais como o “canário da terra” e os “bem-te-vis”, mamíferos, em especial os “preás” e o “ratão-do-banhado”, e répteis como a cobra “cruzeira”, utilizam as áreas de marismas para alimentação ou refúgio. Peixes de importância econômica tais como a “corvina”, as “tainhas” e a “anchova” têm parte do seu ciclo de vida nas águas do estuário, e dessa forma usufruem os alimentos oriundos das marismas, assim como, crustáceos de valor comercial como o “camarão-rosa” e o “siri-azul”. Contudo, os caranguejos Chasmagnathus granulata e Uca uruguayensis são habitantes preferenciais na marisma do Saco do Ratão. Destacam-se entre outros organismos bentônicos, os do grupo Nematoda, Poliqueta e Gastrópoda no estuário Tramandaí-Armazém. Palavras chave: marismas, saco-do-ratão, estuário Tramandaí-Armazém, flora, fauna. INTRODUÇÃO As regiões litorâneas e costeiras do Brasil apresentam uma multiplicidade de ecossistemas extremamente produtivos sob o ponto de vista de recursos naturais renováveis, onde se destacam, dentre outros, os ecossistemas estuarinos (Diegues, 2001). No litoral norte do Rio Grande do Sul, contudo, a expansão urbana dos balneários aliada a falta de infra-estrutura, serviços de saneamento e a ausência de diretrizes para a ocupação do território são as maiores ameaças a este e outros ecossistemas costeiros. Quase todos os ambientes lacustres do litoral norte do Estado, vêm sofrendo impactos causados pelas atividades humanas, como empreendimentos imobiliários, despejos domésticos e a abertura de canais, para satisfazer a agricultura (Fialho, 1998). Sendo assim, torna-se fundamental o conhecimento dos ecossistemas nas áreas costeiras quando se pretende conservá-los ou utilizá-los de forma sustentável. A compreensão ecológica é mais necessária do que nunca, para aprendermos como traçar as melhores políticas no manejo das bacias hidrográficas e outras áreas, geralmente chamadas de sistemas de suporte ambiental (Ricklefs, 1996). Dessa forma, com o objetivo de reunir conhecimentos ecológicos sobre um importante ecossistema costeiro, o estuarino, foi caracterizada ambientalmente uma área de marisma, localizada na laguna Armazém, estuário do rio Tramandaí, município de Tramandaí, litoral norte do estado do Rio Grande do Sul, da qual, foram obtidos os dados ecológicos que embasaram o Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 L.Artioli 24 presente trabalho. A busca de informações foi por revisão de literatura e a partir de observações no local. 1. Caracterização e Importância Ecológica das Marismas. Sistema estuarial é um sistema aquático, comumente contornado por terra, mas com uma saída para o oceano. Esse sistema é dividido em dois subsistemas: o infralitoral, onde o substrato se encontra permanentemente submerso, e o intermareal, onde o substrato é alternadamente exposto e inundado pelas marés. Já as marismas são áreas transicionais entre o ambiente aquático (estuarial) e o terrestre. Sendo assim, o ecossistema de marisma é classificado como sistema estuarino intermareal, que apresenta como características básicas, zonas de substrato areno-lodoso e em certos locais anaeróbico, com vegetação predominantemente herbácea, ereta, perene e tolerante às variações de salinidade sendo submetida à dessecação e as inundações irregulares (Cordazzo & Seeliger, 1988; Seeliger, et al. 2004). A cobertura vegetal das zonas intermareais com fundos moles (areias e lamas), as marismas, dominam em regiões temperadas, embora também ocorram em regiões tropicais. Contudo, os manguezais dominam zonas intermareais de regiões tropicais e equatoriais, aparentemente excluindo competitivamente as plantas de marismas pela atenuação da luz (Adam, 1990). O litoral brasileiro apresenta áreas de mangues (ou manguezal) em praticamente toda a sua extensão, exceção feita ao extremo sul do Estado de Santa Catarina e ao Estado do Rio Grande do Sul. Nesta região da costa brasileira as gramíneas são mais abundantes, e esse ambiente, que substitui os manguezais, recebe a denominação de “marisma” (Diegues, 2001). Áreas intermareais de marismas e pradarias submersas propiciam a deposição e fixação de sedimento, retenção de poluentes, formação de habitats vitais para recursos pesqueiros e alta produção primária (Costa et al. 1997). São grandes provedoras de matéria orgânica vegetal, suportando a teia trófica detritívora de forma particularmente importante em estuários temperados rasos e/ou águas turvas (Adam, 1990). A fertilização natural causada pela entrada de sedimentos finos ricos em nutrientes nas marismas das águas do estuário é muito eficaz. Como poucos animais se alimentam diretamente das plantas vivas, a maior parte das plantas se transforma em detrito vegetal, com isso, enormes quantidades de partículas de detrito orgânico são removidos durante o alagamento para o estuário e as águas costeiras, constituindo a base de alimento para a maioria dos consumidores. Nas enseadas rasas o lento processo de decomposição disponibiliza, ao longo do ano, uma fonte segura de alimento para a maioria da fauna, já que a disponibilidade de plantas vivas como alimento diminui no inverno e também entre anos (Seeliger, et al. 2004). As marismas são utilizadas como refúgio, berçário, áreas de reprodução e alimentação de várias espécies de animais residentes e migratórios, incluindo peixes e crustáceos de interesse comercial (Peixoto, 1997 apud Peixoto et al. 1998). 2. Caracterização Ambiental da Área de Estudo 2.1. Meio Físico 2.1.1. Localização Geográfica O estuário Tramandaí-Armazém está localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul entre as coordenadas de 29°55’49’’ e 30 °00’56’’ de latitude sul e 50°06’21’’ e 50 °11’ 20’’ de longitude Oeste (Tomazelli, 1990). Em sua porção norte situa-se a laguna Tramandaí e ao sul a laguna Armazém. A marisma em estudo situa-se na porção sudeste da laguna Armazém, em área conhecida como “Saco-do-Ratão” (Fig.1). Ao norte esta área caracteriza-se principalmente por estandes monoespecíficos de Scirpus olneyi, uma macrófita aquática da família Cyperaceae (Fig.2). Ao sul e sudeste a área encontra-se delimitada por uma estrada que liga a cidade de Osório à de Tramandaí, fator físico que impede um escoamento maior de águas doces provenientes de banhados próximos (Verdade, 1998). Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 Caracterização ambiental de uma área de marisma 25 Fig. (1) (A) Localização das lagunas Tramandaí e Armazém e da área de estudo no detalhe e (B) Área conhecida como “Saco do Ratão” com destaque para a marisma descrita. (Fonte: adaptado de Google Earth) Fig. (2) Estandes de Scirpus olneyi (Fonte: Autor). 2.1.2. Clima O clima da região, de acordo com a classificação de Köppen (Köppen, 1948 apud Würdig, 1987) é, basicamente, subtropical úmido sem estação seca (Cf), com verão quente (Cfa). Todo o Litoral Norte está sob a influência de uma temperatura média anual de 17,6° C e uma precipitação pluviométrica inferior a 1300 mm anuais com exceção da área de Torres que estaria em torno de 1400 mm anuais. A ação dos ventos na região é muito importante, pois seus efeitos são sentidos em toda a planície. A direção predominante dos ventos é do quadrante nordeste (NE) e sudoeste (SW) (Schwarzbold e Schäfer, 1984; Würdig, 1987). 2.1.3. Recursos Hídricos Controlado pelo regime regional de ventos de direção NE, formou-se um novo sistema lagunar isolado. Neste subsistema estão incluídas as lagunas Armazém e Tramandaí, que correspondem a uma zona estuarial seguidamente referida como o Estuário de Tramandaí. Estes dois corpos lagunares estão parcialmente separados por um pontal que cresce na direção NW-SE, formado por ondas e correntes produzidas pelos ventos provenientes de NE (Tomazelli & Villwock, 1991). Ligam-se ao Oceano Atlântico por um curto canal de aproximadamente 1,5 km de extensão, que foi regularizado artificialmente pela barra de Tramandaí (Fig.1A). A laguna Tramandaí caracteriza-se por receber o aporte de água e de sedimentos finos (silte e argila) provenientes de rios e lagoas ao norte do sistema, através do rio Tramandaí (Tomazelli, 1990). Já na laguna Armazém é mais comum a entrada de água salgada vinda do oceano, embora também haja a influência de dois outros cursos d’água que fluem para o estuário através desta laguna, contudo, sem apresentar grande contribuição de sedimentos (Tabajara, 1994). Trata-se do canal do Camarão, que liga a lagoa das Custódias (ao sul) à laguna Armazém, e outro canal, que chega à laguna através de suas margens a sudeste, na área denominada “Saco do Ratão”. Esta área apresenta canais marginados por vegetação característica, isolando porções de terra mais altas formando pequenas ilhas (Verdade, 1998) (Fig.1 e 3). Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 L.Artioli 24 Fig. (3) Área conhecida como “Saco do Ratão” evidenciando a formação de canais e de pequenas ilhas de vegetação característica. (Fonte: Autor) Segundo Würdig (1987) esses canais normalmente são rasos, com cerca de 10 a 60 cm de profundidade e pouca ou nenhuma corrente. Entretanto, a área apresenta alterações na lâmina d’água quando ocorrem ventos predominantemente do quadrante sul, e marés, inundando partes dessas ilhas. A altura das marés oscila em torno de 0,20m. As marés, durante a preamar, introduzem uma cunha salina no canal de ligação com o mar, cuja maior ou menor penetração é responsável pelas variações de salinidade dentro do estuário. Entre os anos de 1993 a 2005 a salinidade variou de 0 a 32,8 ppm com média de 6,67 e desvio padrão de 7,9 (ver Campello, 2006 para mais detalhes). Os maiores graus de salinização da laguna ocorrem quando se conjugam os fatores de altos valores de marés meteorológicas aliados de estiagem no continente (Tomazelli & Villwock, 1991). A água salgada introduzida através do canal de Tramandaí é diluída pela água doce proveniente principalmente do rio Tramandaí e, secundariamente do canal do Camarão, situados, respectivamente ao norte e ao sul do corpo lagunar. 2.2. Meio Biótico 2.2.1. Flora Conforme Cordazzo & Seeliger (1988) as comunidades vegetais desempenham importante papel na estabilidade do substrato, impedindo a erosão, representando o hábitat de diversos organismos e constituindo importante fonte de detrito para as teias tróficas estuarinas. Para sobreviver neste ambiente hostil às plantas desenvolveram adaptações anatômicas, fisiológicas e bioquímicas. O sistema subterrâneo das plantas é composto por rizomas ramificados, geralmente recobertos de cortiça, com função de ancoragem no substrato macio, com numerosos filamentos afinados de vida curta com função na absorção de nutrientes. As folhas apresentam adaptações xeromórficas pelo aumento da lignificação, cutícula bem desenvolvida, feixes da bainha bem desenvolvidos, modificações na estrutura caulinar e foliar para tipo suculento e glândulas de eliminação de sais. A presença de tecido aerenquimático assegura a difusão do oxigênio das folhas até as raízes, permitindo a respiração das raízes no substrato depleto de oxigênio. Estudos em marismas demonstraram que, embora a textura do solo domine sobre a variação ambiental, os padrões da vegetação são primariamente relacionados à salinidade dos sedimentos. Em seguida têm-se as diferenças de textura e umidade do solo (Verdade 1998). A salinidade e o regime hídrico têm efeito direto sobre o crescimento de Scirpus olneyi em áreas litorâneas (Araújo de Oliveira et al. 1994 apud Verdade, 1998). Esta espécie de macrófita aquática Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 Caracterização ambiental de uma área de marisma 27 predomina nas marismas do “Saco do Ratão” (Fig.2 e 4), constituindo-se em importante fonte de alimento para as espécies de animais que ali habitam (Verdade, 1998). Schwarzbold (1982, apud Irgang, 1999) referiu-se ao conjunto de plantas organizadas de “agrupamento” formado por uma espécie dominante e as acompanhantes principais. Descreveu sumariamente os “agrupamentos” das lagoas próximas a Tramandaí caracterizadas pela presença de salinidade (Ruppia marítima, Scirpus olneyi e Potamogeton pectinatus). A comunidade de macrófitas aquáticas da marisma do Saco-do-Ratão pode ser classificada como “comunidade enraizada no substrato com caules e folhas emergentes” segundo a classificação de Irgang (1999). A identificação das espécies desta comunidade teve como base os trabalhos de Pereira & Agarez (1983); Cordazzo & Seeliger (1988) e Seeliger, et al. (2004), enquanto para os demais grupos vegetais a descrição das espécies segue os trabalhos referidos no decorrer do texto. Destacam-se pela dominância a ciperácea Scirpus olneyi (tiririca) (Fig.2 e 4) e a amarilidácea Crinum americanum (açucena-d’água) (Fig.5). Como espécies acompanhantes aparecem Acrostichum danaefolium (samambaia) (Fig.6), Myrsine parvifolia (capororoca) (Fig.7) e Typha domingensis (taboa) (Fig.8). Fig. (4) Scirpus olneyi (Fonte: Autor) Fig. (5) Crinum americanum (Fonte: Autor) Fig. (6) Acrostichum danaefolium (Fonte: Autor) Fig. (7) Myrsine parvifolia (Fonte: Autor) Cordazzo & Seeliger (1988), citaram Scirpus olneyi, Crinum americanum e Typha domingensis, como espécies ocorrentes em sistemas intermareais da laguna dos Patos, litoral sul do Estado. Conforme Seeliger et al., (2004) estas marismas apresentam plantas características que formam grandes extensões (p.ex. as “macegas” Spartina alterniflora e Spartina densiflora), sendo que nas marismas mais altas, raramente alagadas, predominam sedimentos lamosos, onde geralmente dominam a “capororoca” Myrsine parvifolia e a “samambaia” Acrostichum danaefolium. Em relação às macroalgas do estuário Tramandaí-Armazém, Biancamano (1995) identificou 14 espécies distribuídas em Chlorophyta (n=8), Xanthophyta (n=1), Phaeophyta (n=1) e Rhodophyta (n=4). Os gêneros mais representativos foram Rhizoclonium (R. hookeri, R. kerneri e R. riparium), Ulva (U. lingulata, U. clathrata e U. flexuosa) e Polysiphonia (P. subtilissima e P. scopulorum) (Fig.9, 10 e 11). A comunidade fitoplanctônica das lagunas Tramandaí e Armazém foi estudada por Callegaro et al., (1981), onde as diatomáceas e cianofíceas foram os grupos dominantes, com destaque nas amostragens da laguna Armazém para as florações de Anabaena circinalis, Merismopedia tenuissima e Asterionella japonica (Fig.12, 13 e 14). Contudo, 114 táxons específicos e infra-específicos de diatomáceas marinhas e estuarinas são reconhecidos na região Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 L.Artioli 24 de Tramandaí (Rosa, 1982), dos quais se destaca o gênero Navicula (Fig.15) como um dos mais representativos nas lagunas de Tramandaí e do Armazém, quanto a diversidade de espécies (n=21) (Rosa & Callegaro, 1988). Werner (1988) identificou 20 espécies de cianofíceas planctônicas nestas duas lagunas. Fig. (8) Typha domingensis (Fonte: Fig. (9) Rhrizoclonium spp. (Fonte: http://www.birdandhike.com/Veg/Species/Aqua http://www.glerl.noaa.gov/seagrant/GLWL/Algae/ tic/C-tail_S/C-tail_S.htm) Chlorophyta/Images/Rhizoclonium.gif) Fig. (10) Ulva lingulata (Fonte: Fig. (11) Polysiphonia subtilissima (Fonte: http://www.bama.ua.edu/~jlopez/prolifera.htm) http://omp.gso.uri.edu/doee/biota/algae/rhodo/polysi. htm) Fig. (12) Anabaena circinalis (Fonte: http://botany.natur.cuni.cz/algo/images/ determin/Anabaena_circinalis.jpg) Fig. (13) Merismopedia tenuissima (Fonte: http://www.nies.go.jp/biology/mcc/images /PCD4212/0397L.jpg) Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 Caracterização ambiental de uma área de marisma Fig. (14) Asterionella japonica (Fonte: http://keisou.hp.infoseek.co.jp/kaiyou /ujou/aster01.jpg) 29 Fig. (15) Navicula spp. (Fonte: http://biology.missouristate.edu/phycology/ asian%20carp/navicula%20(40x)-w.jpg) 2.2.2. Fauna 2.2.2.1 Vertebrados Seeliger, et al. (2004), destacam que a vegetação das marismas da laguna dos Patos oferece abrigo para uma rica fauna de insetos que encontram condições favoráveis para sua reprodução e crescimento. Os autores citam a presença de pássaros como o “tipiu”, o “canário-daterra” e o “bem-te-vi” que se alimentam de insetos e de sementes, assim como, gaviões “chimango” e “carcarás”. Na área urbana de Tramandaí e Imbé foram identificadas 27 espécies de aves distribuídas em 16 famílias e 10 ordens (Ramos & Dautd 2005), dentre estas o “canário-da-terra” (Sicalis flaveola) e o “bem-te-vi” (Pitangus sulphuratus) (Fig.16 e 17). Os gaviões identificados por estes autores na região foram o “carijó” (Ruposnis magnirostris) e o “caramujeiro” (Rostrhamus sociabilis), além de aves aquáticas como as garças, “branca-pequena” (Egretta thula) e “vaqueira” (Bubulcus íbis) (Fig.18 e 19). Mamíferos roedores como a “preá” (Cavia aperea) e o “ratão-do-banhado” (Myocastor coypus) (Fig.20 e 21), se alimentam de talos e rizomas das macrófitas nas marismas e, ocasionalmente, a “cobra cruzeira” (Bothrops alternatus) (Fig.22) também visita estas áreas (Seeliger, et al. 2004). Fig. (16) Sicalis flaveola (Fonte: http://www.geometer.org/Brazil2006/images /SaffronFinch.jpg) Fig. (17) Pitangus sulphuratus (Fonte: http://www.arthurgrosset.com/sabirds/photos /philic14731.jpg) Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 L.Artioli 24 Fig. (19) Bubulcus ibis (Fonte: Fig. (18) Egretta thula (Fonte: http://sdakotabirds.com/species/photos/snowy_e http://www.parcodelbrembiolo.it/Ambiente/Foto_Am biente/Foto_fauna/uccelli/Bubulcus_ibis.jpg) gret_2.jpg) Fig. (20) Cavia aperea (Fonte: http://www.visindavefur.is/myndir/naggris) Fig. (21) Myocastor coypus (Fonte: http://www.greglasley.net) Fig. (22) Bothrops alternatus (Fonte: http://www.pesc.org.br) Fig. (23) Micropogonias furnieri (Fonte: Luciano Gomes Fischer, acervo pessoal) Com relação à fauna de peixes da região estuarina de Tramandaí, dentre as espécies mais abundantes coletadas por Silva (1982) estiveram a “corvina” (Micropogonias furnieri), as “tainhas” (Mugil platanus e M. curema), a “savelha” (Brevoortia pectinata), e a “anchova” (Pomatomus saltator) (Fig.23 a 26) espécies de reconhecido interesse pesqueiro no estuário ou na costa marinha adjacente. Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 Caracterização ambiental de uma área de marisma Fig. (24) Mugil platanus (Fonte: Luciano Gomes Fischer, acervo pessoal) 31 Fig. (25) Brevoortia pectinata (Fonte: Luciano Gomes Fischer, acervo pessoal) Fig. (26) Pomatomus saltator (Fonte: Luciano Gomes Fischer, acervo pessoal) 2.2.2.2 Invertebrados Uma rica fauna de animais invertebrados compõe a biodiversidade do sistema estuarino de Tramandaí. Dentre os seus principais representantes estão os crustáceos decápodos, com destaque para os de valor econômico como o “camarão rosa” (Farfantepenaeus paulensis) e o “siri azul” (Callinectes sapidus) (Fig.27 e 28), dentre outras espécies (Moraes, 1980 e Tavares, 1987). Fig. (27) Farfantepenaeus paulensis (Fonte: Luciano Gomes Fig. (28) Callinectes sapidus (Fonte: Fischer, acervo pessoal) Luciano G. Fischer, acervo pessoal) Schwarzbold, & Würdig (1994), citam a presença de “caranguejais” nas zonas marginais das Lagunas Tramandaí, Armazém, Saco do Ratão e outras áreas com influência salina. A espécie de caranguejo Chasmagnathus granulata foi observada no ambiente em estudo, enquanto a espécie Uca uruguayensis, apesar da sua provável ocorrência, não é facilmente observável, possivelmente por seu tamanho diminuto (Fig. 29 e 30). Estas espécies estão incluídas no “Livro Vermelho da Fauna Ameaçada de Extinção no Rio Grande do Sul” (Decreto Nº 41.672/2002) na categoria “vulnerável”. Estes organismos transformam o detrito Fig. (29) Tocas de Chasmagnathus orgânico em biomassa participando da ciclagem de granulata entre a vegetação (Fonte: nutrientes entre sedimento e coluna d’água Autor) (Schwarzbold & Würdig, 1994). Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 L.Artioli 24 B Fig. (30 A) C. granulata (Fonte:http://www.peld.furg.br) Fig. (30 B) Uca uruguayensis (Fonte: http://www.csv.unesp.br/P_noticias/07/fev07/img/ uruguayensis.jpg) A meiofauna bentônica, organismos com tamanho entre 0,1mm e 0,5mm, (Campello, 2006) das lagunas Tramandaí e Armazém é composta de 14 grupos taxonômicos. Na laguna Armazém os grupos mais abundantes são Nematoda e Copepoda (Fig. 31 e 32). As altas densidades de organismos bentônicos, verificadas na laguna Armazém, quando comparadas a laguna Tramandaí e ao canal da barra, estão relacionadas à instabilidade ambiental destes Fig. (31) Nematódeo Terschellingia spp. últimos, uma vez que estão sob o efeito da (Fonte:http://www.mnhn.fr/mnhn/bimm/diversite/w descarga de água continental e da ebterschvde.jpg) imprevisível entrada de água marinha conduzindo a grandes variações de salinidade e a instabilidade do sedimento (Kapusta et al. 2005). No ecossistema estes organismos atuam no substrato através de suas atividades de alimentação, excreção, locomoção e interações tróficas. As conseqüências de tais atividades são a bioturbação, mineralização de nutrientes, a estimulação do crescimento bacteriano e a participação no fluxo de energia do ciclo alimentar estuarino (Kapusta et al. 2002). Por fim a macrofauna bentônica (>0,5mm) é constituída de 20 táxons pertencentes aos filos Arthropoda, Anellida e Mollusca (Tab. 1) (Campello, 2006). Destacam-se pela ampla distribuição e abundância no estuário os poliquetas infaunais Laeonereis acuta (Fig.33), Heteromastus similis e Nephtys fluviatilis (Fig.34) e o gastrópode epifaunal Heleobia australis (Fig.35). Fig. (32) Copépodo (Fonte: http://www.gpmatthews.nildram.co.uk/animalcules/ copepoda/diaptomus04.jpg) Fig. (33) Poliqueta Laeonereis acuta (Fonte:http://www.scielo.br/img/revistas/bn/v 7n3/34f1.jpg) Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 Caracterização ambiental de uma área de marisma 33 Fig. (34) Poliqueta Nephtys fluviatilis (Fonte: http://www.unige.ch/sciences/biologie/biani/ msg/teaching/photos%20liste/Nephtys%20sp.2.jpg) Fig. (35) Gastrópode Heleobia australis (Fonte: http://www.gastropods.com/Shell_Im ages) Tabela I - Lista dos táxons de macroinvertebrados bentônicos coletados no estuário TramandaíArmazém entre novembro de 2004 e abril de 2005. Dados extraídos de Campello, 2006. Annelida Filo Classe Ordem Aciculata Polychaeta Capitellida Família Espécie Nereidae Laeonereis acuta (Treadwell, 1930) Nephtydae Nephtys fluviatilis Monro, 1937 Pilargidae Sigambra grubii Muller, 1958 Capitellidae Heteromastus similis Southern, 1921 Canalipalpata Gastroloda Spionidae Boccardia sp. Rhynchobdellida Glossiphoniidae Mesogastropoda Hydrobiidae Heleobia australis (Orbigny, 1835) Bivalvia Veneroida Arthropoda Mollusca Hirudinea Tellinidae Telina sp. Psammobiidae Tagelus plebeius (Lightfoot, 1786) Tanaidacea Tanaidae Sinelobus stanfordi (Richardson, 1901) Cumacea Diastylidae Diastylis sp. Amphipoda Oedicerotidae Bathyporeiapus sp. Malacostraca Isopoda Sphaeromatidae Tholozodium rhombofrontalis (Giambiagi, 1922) Munnidae Munna peterseni Pires, 1985 Penaeidae Farfantepenaeus paulensis Farfante, 1967 Portunidae Callinectes sp. Grapsidae Chasmagnathus granulata Dana, 1851 Maxillopoda Thoracica Balanidae Balanus sp. Insecta Chironomidae Decapoda Diptera Chironomus sp. Cladotanytarsus sp. Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008 24 L.Artioli REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, P. 1990. Saltmarsh ecology. Cambridge : Cambridge University, 461p. BIANCAMANO, M.I.M. 1995. Estudos das macroalgas na Lagoa de Tramandaí, RS, Brasil. Dissertação de Mestrado em Botânica, UFRGS, Porto Alegre, 112p. CALLEGARO, V.L.M.; ROSA, Z.M. & WERNER, V.R. 1981. Comunidades fitoplanctônicas das Lagoas de Tramandaí e do Armazém, Tramandaí, Rio Grande do Sul, Brasil. Iheringia, Porto Alegre, sér. bot., 28: 3-16. CAMPELLO, F.D. 2006. A problemática da poluição por esgotos domésticos no sistema estuarinolagunar Tramandaí-Armazém (RS, Brasil): física e química da água e a resposta dos macroinvertebrados bentônicos. Dissertação de Mestrado em Ecologia, UFRGS, Porto Alegre, 194p. CORDAZZO, C.V. & SEELIGER, U. 1988. Guia ilustrado da vegetação costeira do extremo sul do Brasil. 2. ed. Rio Grande : Ed. FURG, 275p. COSTA, C.S.B.; SEELIGER, U. & OLIVEIRA, C.P.L. 1997. 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Detrito - Material sedimentável e finamente dividido, suspenso na água; compreende o detrito orgânico, proveniente de decomposição e quebra de restos de organismos e detrito inorgânico, que corresponde aos materiais minerais sedimentáveis. Epifauna - Fauna que vive sobre o substrato. Infauna - Fauna que vive dentro de um sedimento inconsolidado. Macrófita aquática - Vegetais que habitam desde brejos até ambientes verdadeiramente aquáticos. ppm - Abreviação de partes por milhão, medida de concentração que se utiliza quando as soluções são muito diluídas. Pradarias - Grande extensão de vegetação rasteira. Preamar - Altura máxima que a maré atinge podendo ser determinada apenas pelas forças periódicas de marés, ou acrescida de efeitos meteorológicos. Produção primária - Quantidade de matéria orgânica produzida por organismos autótrofos, a partir de substâncias inorgânicas, durante certo intervalo de tempo em uma determinada área ou volume. Teia trófica detritívora - Conjunto de cadeias alimentares com base no detrito. Xeromórficas - Adaptações estruturais ou funcionais que impedem ou reduzem a perda d’água por evaporação. Cadernos de Ecologia Aquática 3 (1): 23-36, jan – jul 2008