- Faculdade Mater Dei

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REVISTA JURÍDICA
MATER DEI
ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI
ISSN 1676-1278
Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
PATO BRANCO - PARANÁ
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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SECRETÁRIA EDITORIAL:
MARISOL TOMASINI
DUTRA
REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA: PROFª.
SETEMBRINA
ZUCCHI NUNES
VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA:
PROFª.
THELMA BELMONTE
R454
Revista Jurídica Mater Dei / Faculdade Mater Dei
Pato Branco, PR, v. 2, n. 2, jan./jun. 2002.
Periodicidade: semestral
ISSN: 1676-1278
1. Direito - Periódicos.
CDD: 340.05
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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REVISTA JURÍDICA MATER DEI
-
COMPOSIÇÃO
DIRETOR GERAL DA
FACULDADE MATER DEI:
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
EDITOR:
PROF. FLORI ANTONIO TASCA
SUPERVISOR EDITORIAL:
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PROF. CÁSSIO LISANDRO TELLES
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PROF. JUAREZ MATIAS SOARES
PROF. LEONARDO RIBAS TAVARES
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PROF. NILSON DE FARIAS
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PROF. RODRIGO CORONA MENEGASSI
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PROFª. SILVANA DE MELLO GUZZO
CONSELHO CONSULTIVO:
PROF. DR. ABILI LÁZARO CASTRO
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PROF. MS. ALCÍDIO SOARES JÚNIOR (UEPG)
PROF. MS. ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA (UEPG)
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PROF. DR. ALVACIR ALFREDO NICZ (UFPR)
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PROF. DR. JOSÉ ANTONIO PERES GEDIEL (UFPR)
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PROF. DR. LUIZ EDSON FACHIN (UFPR)
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PROF. DR. LUIZ RODRIGUES WAMBIER (UEPG)
PROF. DR. MANOEL EDUARDO ALVES DE
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GOMES (UFPR)
PROFª.
DRª.
SILVANA
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NETTO
MANDALOZZO (UEPG)
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TERESA
ARRUDA
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WAMBIER (PUC-SP)
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FACULDADE MATER DEI
ESTRUTURA ADMINISTRATIVA
DIRETOR GERAL
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
VICE-DIRETORA GERAL
GUERRA
PROFa
IVONE
MARIA
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DIRETOR ADMINISTRATIVO PROF. JUAREZ MATIAS SOARES
DIRETOR PEDAGÓGICO
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COORDENADOR DO CURSO
DE BACHARELADO
EM DIREITO
PROF. FLORI ANTONIO TASCA
COORDENADOR DO NÚCLEO
DE PRÁTICA JURÍDICA PROF. ANDREY HERGET
SECRETÁRIA ACADÊMICA
WAINÊS SALLETE BASSO
SECRETÁRIO FINANCEIRO
PEDRINHO DE BORTOLI
BIBLIOTECÁRIA
BERENICE DE LIMA RODRIGUES
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SUMÁRIO
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COMENTÁRIOS AO ARTIGO 81 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR –
JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETO ........................................................................... 01
ORIGENS E FUNDAMENTOS DA RESTITUTIO IN INTEGRUM NO DIREITO ... ROMANO–
FLORI ANTONIO TASCA.......................................................................................................... 39
A POLÍTICA NA PÓS-MODERNIDADE –
ABILI
LÁZARO
CASTRO
DE
LIMA
53
O PARADIGMA EMERGENTE E O ENSINO DO DIREITO –
NEY JOSÉ DE FREITAS........................................................................................................... 63
A CONSTITUIÇÃO COMO SISTEMA DE PRINCÍPIOS E NORMAS –
CARLOS ALBERTO BAPTISTA ............................................................................................... 71
O PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO –
LUDMILO
SENE
91
CONFLITO ENTRE OS TRATADOS DE DIREITO INTERNACIONAL E A NORMA DE
DIREITO INTERNO – SOLUÇÃO ADOTADA PELO STF (BRASIL) –
FRANCISCO CARLOS JORGE e SILVIA MARIA DERBLI SCHAFRANSKI....................... 115
CONSIDERAÇÕES SOBRE A UNIÃO EUROPÉIA –
HOMAR
PACZKOWSKI
ANTUNES
PINTO
145
H AR MO N IZ A Ç ÃO D AS L E G IS L AÇ ÕE S TR I BU TÁ R IA S NO ME R CO SU L –
G R AZ IE LL E H YC Z Y L I SB Ô A .. ... ... ... .. ... ... ... ... ... ... ... ... .. ... ... ... ... ... ... ... .. 1 5 7
• ACIDENTES DO TRABALHO E RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA –
MAGDA DEMARTINI TASCA................................................................. 163
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O FUTURO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E O REFLEXO NO DIREITO –
LINEU FERREIRA RIBAS ....................................................................................................... 169
DA MEDIAÇÃO E DO JUÍZO ARBITRAL – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES –
ANDREY HERGET .................................................................................................................. 177
O DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO RESSOCIALIZADOR :
............... A NECESSIDADE DA ADEQUADA VALORAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
..............SUBJETIVAS DO AUTOR DO DELITO NA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA RUDI RIGO BÜRKLE............................................................................................................... 187
A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA –
CÉLIO ARMANDO JANCZESKI ............................................................................................. 195
V Í T IM AS E V IT IM IZ AÇ ÃO N OS C R I ME S S Ó C IO - E CO NÔ MIC OS –
P E DR O L U C I AN O E V ANG EL IS T A FE R RE IR A ... ... ... ... .. ... ... ... ... ... ... ... .. 2 0 3
A APLICABILIDADE DO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL DE LIMITAÇÃO DOS
JUROS – TEORIAS CONFLITANTES –
FRANCISCO ADILSON DE ALMEIDA FILHO ....................................................................... 215
• EUTANÁSIA : SUICÍDIO OU DIREITO DE MORRER ? –
MARCIA REGINA OCHÔA SENDESKI ...................................................243
•
•
DESAFIOS PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO ÂMBITO DO DIREITO –
ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS ...................................................................................... 251
CAMINHOS E DESCAMINHOS DA SOCIOLOGIA –
GUILHERME GERMANO TÉLLES BAUER........................................................................... 256
• O CASAMENTO E O “DESCASAMENTO” CIVIL E RELIGIOSO –
GENÍRIO JOÃO FÁVERO ....................................................................................................... 267
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APRESENTAÇÃO
É com satisfação que a Faculdade Mater Dei apresenta o segundo
volume da Revista Jurídica Mater Dei, demonstrando o sério compromisso da
Instituição com a qualidade da educação jurídica, aliando o ensino à pesquisa.
Com vinte artigos da lavra de eminentes Professores e Juristas Docentes da Faculdade Mater Dei e de outras Instituições de Ensino Superior -,
a Revista constitui-se em valioso instrumento de disseminação do conhecimento
jurídico.
Como “Órgão de Divulgação Científica do Curso de Bacharelado em
Direito da Faculdade Mater Dei”, a Revista Jurídica propicia à comunidade
jurídica a reflexão sobre vários enfoques de relevantes temas, visando o
constante debate e aperfeiçoamento da Ciência do Direito.
A Faculdade Mater Dei agradece a todos os que, de forma direta ou
indireta, contribuem para que a Revista Jurídica Mater Dei cumpra sua missão
de manter espaço para que profissionais do Direito (Professores, Advogados,
Magistrados, Promotores de Justiça, Serventuários da Justiça e outros) tragam à
luz suas reflexões.
Os frutos desse trabalho serão colhidos (principalmente) pelos
integrantes do Corpo Discente do Curso de Bacharelado em Direito da
Faculdade Mater Dei, porquanto os textos ora publicados, pela atualidade e
importância dos temas, certamente irão contribuir para uma formação jurídica
mais sólida dos Acadêmicos.
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DR. GUIDO VICTOR GUERRA
DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI
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EDITORIAL
A pesquisa científica é fundamental para a boa educação superior. Pesquisa, no
dizer de Pedro Demo, “significa diálogo crítico e criativo com a realidade, culminando na
elaboração própria e na capacidade de intervenção. Em tese, pesquisa é a atitude do
‘aprender a aprender’, e, como tal, faz parte de todo processo educativo emancipatório” :
Pesquisa funda o ensino e evita que este seja simples repasse copiado.
Ensinar continua função importante da escola e da universidade, mas
não se pode mais tomar como ação auto-suficiente. Quem pesquisa,
tem o que ensinar; deve, pois, ensinar, porque ‘ensina’ a produzir, não a
copiar. Quem não pesquisa, nada tem a ensinar, pois apenas ensina a
copiar [...] Pesquisa acolhe, na mesma dignidade, teoria e prática,
desde que se trate de dialogar com a realidade. Cada processo
concreto de pesquisa pode acentuar mais teoria, ou prática; pode
interessar-se mais pelo conhecimento ou pela intervenção; pode insistir
mais em forma ou em política. Todavia, como processo completo, toda
teoria precisa confrontar-se com a prática, e toda prática precisa
retornar à teoria. (DEMO, Pedro. Desafios modernos da educação, 6
ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 128-129)
Em Instituição de Ensino Superior a pesquisa é instrumento para a
emancipação intelectual dos Docentes e dos Discentes, porque “produz o saber”,
envolvendo a todos como sujeitos na “construção” e “reconstrução” contínua do
conhecimento, um conhecimento que não comporta o rótulo de “verdade
absoluta” (eterna e imutável), sendo, ao revés, contingente, maleável, marcado
por múltiplos fatores que moldam a sociedade em dado momento histórico.
Com vistas a contribuir para a concretização dos ideais enunciados, a
Revista Jurídica Mater Dei submete à crítica dos estudiosos (estudantes) do
Direito seu segundo volume, correspondente ao primeiro semestre do ano 2002,
alvorecer de um novo milênio a exigir reflexão crítica acerca do papel do Direito
na formação de uma sociedade mais justa e fraterna.
A qualidade dos artigos publicados, a seriedade e a formação dos
colaboradores (autores) sustentam a excelência da Revista Jurídica Mater Dei.
Destarte, o Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei
certamente está contribuindo para a melhoria da educação jurídica.
Tal meta continuará a guiar as ações da Revista Jurídica Mater Dei.
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI
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ARTIGOS
COMENTÁRIOS AO ARTIGO 81 DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETO
ADVOGADO EM SÃO PAULO, RIO DE JANEIRO E BRASÍLIA – PROFESSOR
TITULAR DO MESTRADO E DO DOUTORADO DA PUC DE SÃO PAULO
RESUMO – O texto comenta o artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor, o
qual dispõe sobre a proteção dos consumidores, tratando da possibilidade da
tutela de coletividades no âmbito do Direito do Consumidor, em especial quanto
à proteção dos direitos difusos, direitos coletivos e direitos individuais
homogêneos. Trata o texto, em especial, da legitimidade ativa para ações
judiciais coletivas que tenham por objetivo dirimir conflitos de interesses
decorrentes de relações de consumo. O autor aborda ainda outros temas
processuais relevantes para a proteção dos consumidores em juízo.
COMMENTS ON ARTICLE 81 OF THE CODE OF THE CONSUMER DEFENSE
- ABSTRACT - This text comments upon article 81 of the Code of the Consumer
Defense, which deals with the consumer protection, considering the possibility of
tutelage of collectivities in the Consumer Law sphere, specially concerning
protection of diffuse rights, collective rights and homogeneous personal rights.
The text highlights the standing to sue for collective actions which have as a
purpose, to settle conflicts of interest resulting from consumption relations. The
author still approaches other procedure themes relevant to the protection of the
consumers in court.
INTRODUÇÃO
O presente estudo comenta o art. 81 do Código de Proteção e de
Defesa do Consumidor, cujo texto é o que segue :
TÍTULO III
“DA DEFESA DO CONSUMIDOR EM JUÍZO”
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das
vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título
coletivo.
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Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum.
COMENTÁRIO - PREMISSAS QUE INFORMAM A LEGITIMAÇÃO
COLETIVA
A legitimação coletiva é um resultado, no plano do processo, das
modificações, 1 - 2 - 3 verdadeiramente profundas, a partir das raízes da
sociedade, que ocorreram, e, em certa escala continuam a se verificar, e que
significaram a mudança de uma concepção e estrutura social baseada no
liberalismo e no individualismo, para uma visão e contextura social do Direito. Ao
lado dessa modificação ‘ideológica’, acentue-se que o tecido social modificou-se,
como, também, especialmente, a economia, tendo em vista a produção de bens
“de consumo”, e, daí a necessidade de disciplinar a economia de mercado em
razão, principalmente, de aí ser atingida a massa dos consumidores.
Alinha-se na ratio legis deste art. 81 a inviabilidade prática da defesa ou
do acesso à justiça, pelo consumidor, enquanto individualmente considerado.4 - 5
1
Na tradição norte-americana, anteriormente às Federal Rules, com lastro em antiga praxe da equity que deita
raízes desde o século XVII, verificou-se, muitas vezes, uma tolerância em relação ao não comparecimento de
pessoas que pudessem ser atingidas, particularmente nos casos em que esse comparecimento mostrava-se
difícil ou inviável. Argumentava que possivelmente era melhor ‘fazer algo incompleto’, do que ‘nada fazer’
(cf.Benjamin Kaplan, Continuing Work of the Civil Committee: 1966 - Amendments of the Federal Rules of
Civil Procedure (I), I, A, 1, p. 164, trabalho constante da obra Perpectives on Civil Procedure, que ostenta os
nomes dos Profs. Geoffrey C. Hazard Jr. E Jan Vetter, 1987, Boston e Toronto, ed. Litle, Brown e Company.
Estas considerações giram em torno da figura do litisconsórcio, disiciplinado pela regra 19 das Federal Rules.
2
As ações coletivas, propriamente ditas, no direito norte-americano assentam-se em fundamentos empíricos e
racionais, quais sejam ----- entre vários: 1. dificuldade ou impossibilidade de trazer todos os que possam ter
interesse cujos interesses sejam iguais ou análogos; 2. com isto eliminam-se um grande número de litígios, que
se aglutinam em um só (v. Benjamin Kaplan, Continuing W ork of the Civil Committee: 1966 - Amendments of
the Federal Rules of Civil Procedure (I),B, p. 169, na obra, já referida, Perspectives on Civil Procedure).
3
Origem da Regra 23 é a Regra 38, da Equity Rule, de 1912, que rezava: “Quando uma questão seja comum
ou do interesse geral de várias pessoas que constituam uma classe tão numerosa, de tal forma que seja
impraticável trazer todos para o Tribunal [=o processo], um ou mais pode acionar ou defender em relação ao
todo [à classe] - (v. Benjamin Kaplan, Continuing W ork of the Civil Committee: 1966 - Amendments of the
Federal Rules of Civil Procedure (I),B (onde estuda as class actions),1. p. 169, na obra, já referida,
Perspectives on Civil Procedure).
4
Em nosso Tratado de Direito Processual Civil, São Paulo, 1990, ed. RT, vol. I, pp. 32 ss., 129-130, 133-135,
procuramos proceder a uma abordagem ampla, desta temática, onde há, também, referibilidade específica à
situação do consumidor, inclusive com notícia dos vários projetos de lei, dos quais, um deles, veio a ser o
Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
5
Veja-se a obra de José B. Acosta Estévez, Tutela Procesal de los Consumidores, Barcelona, 1995,ed. Bosch,
Parte Segunda, cap. I, 1, p. 117, onde sublinha que a justiça é, para o consumidor médio, cara, demorada e
altamente técnica, e, ainda comparece um outro fator “de carater económico [que] retrae el posible aceso del
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- 6 - 7 - 8 De qualquer forma, as ações coletivas conduzem (ou, devem conduzir,
pois existem para isso) a uma unitariedade de manifestação judicial sobre uma
dada situação, que a muitos afete (nos casos de interesses ou direitos
individuais homogêneos, no caso de muitas demandas individuais, sobre
situações jurídicas análogas ou extremamente similares). 9 Justifica-se, na
literatura norte-americana, no plano a conveniência, o encarte em ações
coletivas de situações em que se possa fazer ocorrer ‘economia processual e
uniformidade de resultado, sem indevidas falhas em relação à salvaguarda das
situações dos membros da classe, ou mesmo em relação à outra parte’. 10
Mas, insiste-se sempre, no caráter “unitário”, i. e., o caráter comum, em
relação aos interesses dos membros das class actions, e, relativamente, às
ações individuais que a uma determinada class action possam vir a ser
agregadas, igualmente, remarca-se essa possibilidade de assimilação.11
Aponte-se, ainda, a existência de anseios, nas sociedades, em relação
a um maior espectro de possibilidades atinentemente ao acesso à justiça, seja
consumidor a los órganos jurisdiccionales: las pequeñas cuantías objeto del litigio”. Anota, por isso mesmo,
existir uma desiguladade intrínseca entre fornecedor e consumidor. Há autores mesmo que tem visão de
verdadeira catástrofe, em relação à posição do consumidor (v. op. ult. cit., pp. 118-119). Nos Estados Unidos e
na Inglaterra percebe-se igualmente essa forte noção - v. Martin Day, Paul Balen e Geraldine McCool, MultyParty Actions - A practioner’s guide to pursuing group claims (Ações Coletivas - Um guia prático na prosecução
de ações de grupo), Glasgow, 1995, p. 42, onde está transcrita parte de decisão da Corte de Apelação distrital
do Estado da Flórida, no mesmo sentido, em que se observa, que diante da falta de recursos dos
consumidores, estes ficariam sem acesso à justiça.
6
Na doutrina espanhola existe o entendimento de que a tarefa constitucional, tal como consta do art. 9.2, de
sua Constituição, não estaria completa se não fossem efetivas “para el individuo, pero tambiém para los grupos
en que los que éste se integra” (v. Lorenzo Bujosa Vadell, La Protección Jurisdiccional de los Interesses de
Grupo, Barcelona, 1995, ed. Bosch, Introdução, p. 20, referindo-se a nota 10, dessa página, a essas opiniões,
que são aceitas.
7
v. Lorenzo Bujosa Vadell, La Protección Jurisdiccional de los Interesses de Grupos, Barcelona, 1995, ed.
Bosch, nº 5.1., p. 59 ss., para ampla notícia sobre a terminologia.
8
O advogado Beverly C. Moore Jr., no seu trabalho intitulado Maximizing and minimizing the class recovery in
the United States, publicado na obra Les recours collectifs en Ontario et au Québec – Class Action in Ontario
and Québec, Montreal, 1991, ed. W ilson et Lafleur, p. 169, onde estima, para os Estados Unidos a utilização de
ações coletivas para valores em torno ou inferiores de US$ 20,00 por vítima. Pondera-se com a invaiblidade de
contratação de advogado, por causa um e individualmente, como ainda identifica nas ações coletivas o objetivo
de minimizar condutas ilegais ("to deter similar illegal conduct in the future"). Constata esse autor que, class
actions nos U. S. A., na área de direitos civis, especificamente, na área de discriminação em empregos,
diminuiu sensivelmente de 1976 para 1990, chegando, neste ano, a menos de 10% do que em 1976. Esse
declínio teria sido, também, devido à má remuneração dos advogados, que não convenciam juízes de que
deveriam, depois de anos, ganhar mais. Mas, sem embargo desse fator, afigura-se ao autor que ocorreu
efetivo efeito dessas ações, mercê das quais ter-se-ia obtido um ajustamento de conduta na área de
discriminação em relação a empregos.
9
Não se trata, no caso, é certo, de cogitar-se de litisconsórcio unitário. O que se deseja dizer é que situações
similares ou análogas devem, tratando-se de interesses ou direitos individuais homogêneos ----- e, isto é
viabilizado pelas ações coletivas ----- ser decididas igualmente. É que se pondereo no direito norte-americano:
“They perceived [membros do comite de consulta-Advisory Commitee], as lawyers hat for a longe time, that
some litigious situations affecting numerous person “naturally” or “necessarily” called for unitary adjudication” (v.
Kaplan, Continuing Work of the Civil Committee: 1966 - Amendments of the Federal Rules of Civil Procedure
(I), I, B [sobre class actions], p. 173).
10
V. Kaplan, Continuing W ork of the Civil Committee: 1966 - Amendments of the Federal Rules of Civil
Procedure (I), I, B [sobre class actions], p. 175.
11
V. David G. Epstein e Steve H. Niclles, Consumer Law, Minn., 1981, West Publisching Co., Introdução,
capítulo I, B, p. 9, verbis “The Supreme Court has held in Snyder v. Harris, 394, U. S. 332 (1969), that the
individual claims of class members can be aggregated only if the class members are enforcing a single right in
which theu have a common interest”.
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em relação a uma maior pauta de bens, de que são expressões relevantes os
chamados interesses e direitos difusos e os coletivos (aumento dos bens
protegíveis pelo direito), como também a realidade que, em nosso Código de
Proteção e de Defesa do Consumidor veio a ser designada como interesses ou
direitos individuais homogêneos (possibilidade real de proteção desses minidireitos subjetivos, o que, individualmente, não ocorria por múltiplas razões).
Este sistema, pois, comparece para satisfazer anseios sociais. Ilustre tratadista
alemão, Klaus A. Ziegert,12 refere-se a mecanismos de variados, de tal maneira
“a poder o Direito, o sistema jurídico e o aparato estatal recuperar a sua
correspondência ou congruência para com a sociedade”.
Há, de outra parte, mesmo em sistemas onde existem ações coletivas
há anos ----- como nos Estados Unidos ----- um permanente dissenso na
sociedade e entre juristas, a respeito das qualidades de tais ações, havendo
prós e contras. Em alguns setores é palpável a diminuição de ações coletivas. 13
De uma maneira geral, sublinhe-se ainda: essas ações diminuíram no seu todo.
Sem embargo disto, a literatura geral, sobre processo, sempre, com exaustão do
tema. 14
É comum a utilização das expressões interesses 15 difusos,
fragmentários ou supra individuais. Sem embargo de haver, na doutrina nacional
e estrangeira, um sem número de posições a respeito dessa realidade e
daquelas que dessa se aproximam. Parece existir alguns pontos em que se pode
perceber maior clareza e estabilidade, constituindo-se pontos de desejável
convergência de opiniões, como ainda parece-nos serem pontos em que se
12
Cf. Klaus Ziegert, A. Zur Effektivität der Rechtssoziologie: die Rekonstruktion der Gesselschaft durch Recht
(A efetividade da sociologia do Direito: a reconstrução da Sociedade pelo Direito), Ed. Ferdinand Enke,
Stuttgart, 1975, pág. 75.
13
Cf. Beverly C. Moore Jr., no seu trablaho intitulado Maximizing and minimizing the class recovery in the
United States, publicado na obra Les recours collectifs en Ontario et au Québec – Class Action in Ontario and
Québec, cit., p. 170, atribuindo-se como fatores contrários os de que (a) há juizes que odeiam as ações de
classe; (b) não há, ainda, uma aclimatação intelectual, ideológica e nem em termos de adequação das leis
materiais [às ações coletivas]; (c) os advogados procuram, sempre, obter o máximo, inclusive, com vistas à
obtenção de honorários elevados.
14
V. Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”, Milão, 1996, ed. Cedam, Introdução, p.XV, nota 1, referindose ao Class Action Rep. 1988, p. 95. Para a vasta literatura, v. pp. XV-XVII, notas 2, 3 e 4, principalmente.
15
Na doutrina espanhola, ao depois de descartar o empréstimo das locuções “interesse legítimo”, tais como
existem no direito italiano, afirma-se a palavra interesse, ao lado de direito “tiene en nuestro derecho un sentido
de ampliación del ámbito de proteccción del ciudadano. No se trata de unidades jurídicas distintas, sino más
bien de un desarrollo, ampliación o derramamiento de la figura nuclear del derecho subjetivo, no son ni pueden
ser perfectamente nítidos, ….” O objetivo é o de ampliar a proteção deferida a uma situação, na qual se
compreende o núcleo da figura protegida, e, bem assim, os aspectos circundantes, condicionantes e os que
porventura se encontrem na periferia da figura (v. Lorenzo Bujosa Vadell, La Protección Jurisdiccional de los
Interesses de Grupos, cit., p. 39, com largo lastro na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Sulinha-se,
portanto, que a proteção pode ser direta ou indireta, e que não é necessária uma subsunção nítida para a
proteção. Outras decisões do TC entendem que por interesse legítimo tem-se interesse juridicamente
protegido, em contraste com os meros interesses. Sem embargo do farto material coligido, diz-se que se trata
de conceito ambígüo e confuso (v. Lorenzo Bujosa Vadell, La Protección Jurisdiccional de los Interesses de
Grupos, cit., pp. 38-39). Ao lado dessa significação, atribui-se a interesse legítimo a de afetar, de uma forma,
ou outra, uma ou diversas pessoas, mas, podendo-se agir de tal forma para “reconduzir” a situação existente à
sua própria finalidade, qual seja, há de se reconhecer um “simple camino para la protección del derecho
sustantivo”, e, com isso, os interesses de tais pessoas restarão protegidos (v. Lorenzo Bujosa Vadell, La
Protección Jurisdiccional de los Interesses de Grupos, cit., p. 41). Esta idéia indica uma aproximação à de
interesses difusos, principalmente.
2
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19
alcança mais exatidão conceitual. 16 - 17 Essas posições, reveladoras de um
“desacordo” a respeito dos princípios ou fronteiras de quais devem ser os
interesses e direitos difusos e coletivos, comprometem-se, em certa escala, a
própria atividade jurisdicional. 18
O que não se verifica, todavia, é communis opinio a respeito de uma
conceituação, em torno da qual haja fronteiras razoavelmente definidas. Vale
dizer, o assunto é ainda objeto de discussões intensas, no plano da doutrina, o
que diminui em certa escala, em face de direito positivo.
O que se pode dizer é que, dentre os elementos constitutivos das
relações jurídicas, tais como existentes no individualismo, verifica-se ponderável
nitidez de contorno entre as situações jurídicas e aqueles a quem se adjudicou
16
Interessantes as considerações feitas no ano de 1929 por Widar Cesarini Sforza sobre direito coletivo (cf.
Widar Cesarini Sforza, El Derecho de los particulares, Madrid, 1986, ed. Civitas (edição de 1929; reimpressão
em 1942), trad. espanhola, no capítulo “Preliminares sobre el Derecho Colectivo”, pp. 153 e seguintes. Situarse-iam esses além do direito dos particulares, sem chegarem a ser direito público; se são contemplados da
ótica do direito público, seriam direito privado, e, se do enfoque que do direito privado parta, seriam direito
público(p. 154, nº 1). Dizia que o interesse “coletivo” era, simultaneamente individual e extraindividual, o que
não significava que o extraindividual fosse geral. A “coletividade”, todavia, é um “ente que não se resolve nem
em cada um dos indivíduos e nem na totalidade dos indivíduos” (p. 156, nº 2). A “coletividade” deve ser
s
entendida como “uma comunidade aberta ou em estado fluído”. Na seqüência do texto (nº 5 a 12, p. 159 e
segs.), prossegue o autor, inserindo no âmbito do direito coletivo as sociedades, associações, realidades estas,
atualmente, que se encontram mais distinguidas, do que, contemporaneamente, se designa como direito
coletivo, em face da temática do consumidor e outras situações que a essa se assemelham.
17
São os seguintes os pontos que nos parece representarem uma convergência de entendimentos: 1º) os
interesses e direitos difusos são aqueles que dizem respeito aos bens indivisíveis; 2º) os bens indivisíveis, a
seu turno, são aqueles em que não é viável uma forma diferenciada de gozo ou utilização (v. sentença da
Corte de Cassação, de 9 de março de 1979, número 1.463, das câmaras civis reunidas, publicado na Rivista di
Diritto Processuale, 1979, pp. 720-740; 3º) nisto está implicado que o tipo de interesse dos membros de um a
dada coletividade são quantitativa e qualitativamente iguais; 4º) ademais, por isso mesmo, esses bens não são
suscetíveis de apropriação exclusiva (v. Lorenzo Bujosa Vadell, La Protección Jurisdiccional de los Interesses
de Grupos, cit., pp. 70-71, nota 154, fine; v. tb. Nicolo Trockner, Gli interessi diffusi nell’opera della
giurisprudenza, na Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1987, pp. 1.112-1.115- 1.155); 5º) daí é que
não se pode cogitar de atribuir-se a alguém, mais do que a outro(s) uma titularidade própria ou mais
envergada; 6º) os interesses difusos para que se os possa reputar existentes, como tais, i. e., difusos,
prescindem de um grupo particularmente organizado, salvo, é certo, a própria coletividade (com a organização,
a mais geral, que lhe é própria), sendo exemplos disto a aspiração geral ou o desejo de um ‘ambiente não
contaminado’ ou o de ficar imune a uma ‘publicidade enganosa’; 7º) a referibilidade do interesse difuso não é
ao indivíduo, enquanto tal considerado, senão que diz respeito ao indivíduo dentro da coletividade, enquanto
integrante da coletividade, cujas fronteiras é a da generalidade dos outros indivíduos (Corte de Cassação
italiana, sent. de 8 de maio de 1978, número 2.207, das câmaras civis reunidas; 8º) por isso, esses indivíduos
estão numa situação definitiva e final de homogeneidade (e, neste ponto, além de muitos outros isto diferente
da situação dos interesses e direitos individuais homogêneos, que apenas são tratados homogeneamente, mas
avançam além de homogeneidade, quando se ingressa na fase de execução); 9º) daí é que esses indivíduos,
dentro da coletividade, são mais ou menos, determináveis, satisfazendo-se a nossa lei com a própria
indeterminação, do que deflui a idéia de ‘fruição múltipla’ , mesmo porque tem de haver, no elemento subjetivo,
necessário pluralidade de indivíduos/sujeitos; 10º) os interesses difusos coexistem com os interesses
estritamente individuais (v. o segundo relatório, constante da Separata, do Materiales del VI Congreso de
Jueces para la Democracia, Logroño, 20-22.junho.1991, p. XXIII); 11º) os interesses difusos são animados ou
vocacionados a um “controle sobre o conteúdo e sobre o desenvolvimento de posições econômico-jurídicas
dominantes, mas impermeáveis [à idéia] de participação” (v. F. Sgubbi, L’interesse difussi come oggetto della
tutela penale. Considerazioni svolte con particolare riguardo alla protezione del consumatore”, p. 557, em La
tutela degli interessi diffusi nel Diritto Comparato, Atos do Congresso de Salerno, 22-25 de maio de 1975, Studi
di Diritto Comparato, direção Mauro Cappelletti, Milão, 1976, ed. Giuffrè.
18
V. o texto do Prof. W . A. Bogart, intitulado Ambiguity, publicado na obra Les recours collectifs en Ontario et
au Québec – Class Action in Ontario and Québec, Montreal, cit., pp. 10-11 e 12-13, onde observa que tais
dúvidas afetam mesmo a identificação do âmbito da atividade jurisdicional (p. 10-11).
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titularidade. Como se observa, com propriedade, em recente trabalho, a temática
da legitimação coletiva envolve menos a análise da titularidade dos direitos,
senão que, mais acentuadamente o enfoque e sopesamente do que se pode
designar de relação suficiente com tais direitos. Vale dizer, qual é a posição do
grupo 19 - 20 - 21 ------ as obras tratam especificamente da legitimação de grupos ----- tendo em vista o seu patrimônio e a relação dos seus membros com esse, 22
como, ainda, pode-se sublinhar também a própria coesão dos membros
constitutivos do grupo. Pode-se dizer que a categoria dos chamados direitos
coletivos deve ser compreendida a partir de determinadas premissas, que hão
de partir de dados existentes na dogmática tradicional, e, de que se pode dizer
que, em si mesmos, são bastantes conhecidos. Afigura-se-nos que o referencial
básico ou fundamental é comparar-se à categoria dos chamados direitos
subjetivos na esteira de inumeráveis conceituações de juristas que, todavia,
contém elementos comuns. 23 A idéia central do direito subjetivo é a sua rigorosa
individualização e atribuição de poder subjetivo a uma pessoa ou ente jurídico.
Essa categoria é informada pelo princípio dispositivo que reside no poder da
pessoa do direito subjetivo fruir ou não do direito, dele desistir, sobre ele
transacionar, etc.
Contrapostamente a essa idéia, que, como se sabe, tem contornos
19
Uma das metodologias utilizadas, no estudo dos grupos, é partir da análise dos grupos existentes,
tradicionalmente, mas sem personalidade jurídica, tais como as associações não reconhecidas, as sociedades
em geral, mas sem personalidade jurídica (v. Raffaele Poggeschi, Le Associazioni e gli altri gruppi con
autonomia patrimoniale nel processo, Milano, 1951, ed. Giuffrè, cap. III, nº 28, pp. 84 e ss. Todos esses grupos
carecem de personalidade jurídica; é essa carência um traço comum (v. Raffaele Poggeschi, Le Associazioni e
gli altri gruppi con autonomia patrimoniale nel processo, cit., nº 29, p. 84). Este autor, como deflui do próprio
título de sua obra, trata das associações e outros grupos com autonomia patrimonial.
20
A idéia de grupo, no plano da língua, é a de “reunião, conjunto, amontoado de pessoas”; ou, ainda
“agregado, conglomerado de pessoas” (v. Silveira Bueno, Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, Rio de
Janeiro, 1982, 11ª ed.). Para Laudelino Freire (Dicionário de Língua Portuguesa, Livr. José Olympio, 1954, vol.
III) grupo indica “certo número de pessoas reunidas; ou “conjunto de pessoas que tem o mesmo interesse ou
as mesmas opiniões”; no mesmo Laudelino Freire categoria indica a idéia de “hierarquia”, ou “pessoas de
importância social como médicos, magistrados, altos funcionários”. Classe, ainda em Laudelino Freire indica
“categoria de cidadãos fundada na diferença de condição ou nas distinções da lei” ou “categoria de indivíduos
fundada na importância ou na dignidade dos seus empregos ou ocupações” ou “grupos de indivíduos que se
distinguem dos outros pelas suas ocupações”.Ainda em Silveira Bueno, classe define-se como “categoria,
grupo, divisão de um conjunto”; e, ainda categoria é indicada por “classe, série; …., natureza; hierarquia”. Para
Caldas Aulete (Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Lisboa, 1925, 2ª ed., vol. I) grupo significa
“um certo número de pessoas reunidas;….”; para esse dicionarista categoria aponta a idéia de hierarquia, e,
vulgarmente, é sinônimo de classe, grupo e série; classe para este mesmo envolve as idéias de “categoria de
cidadãos fundada na diferença ou nas distinções da lei: A classe baixa. …..”, ainda, “categoria de indivíduos
fundada na importância ou na dignidade dos seus empregos ou ocupação, hierarquia”.
21
Como se pode perceber é difícil, senão inviável, a partir da significação linguística pretender ver, com nitidez,
quaisquer distinções. Isto nos conduz a uma primeira conclusão, que consiste em que o legislador objetivou
conferir a mais ampla proteção a ‘qualquer agrupamento’. Ainda, parece que para a legitimidade, pouco
importa que haja referência a um grupo, quando se trataria de uma classe, porquanto, um e outra, bem com o
categoria, também, ensejam a mesma e idêntica legitimidade de qualquer um dos nominados no art. 82, como,
ainda, proporcionam igual proteção.
22
Cf. prefácio à obra de Joaquim Silguero Estagnan, La Tutela Jurisdiccional de los Interesses Coletivos a
través de la Legitimación de los Grupos, Madrid, 1995, p. 19, do Prof. Antonio Mª Loca Navarrete.
23
Assim Ihering (cf. Geist des römischen Rechts auf der Grundrechte, 1985, Baden, Baden, p. 164) onde afirma
que os direitos subjetivos são “os interesses juridicamente protegidos”; Windscheid, Lehrbuch des
Pandektenrechts, 9ª edição, trabalhada por Theodor Kipp, 1906, Frankfurt am Main, p. 156, em que afirma ser
o direito subjetivo “um poder de vontade ou uma dominação da vontade conferida pela ordem jurídica”.
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claros na ciência do direito, existem os chamados bens coletivos, e, nessa
categoria, devem ser classificados os direitos coletivos, e, que em nosso direito
positivo são denominados de interesses e direitos difusos, interesses e direitos
coletivos e, por fim, de “interesses ou direitos individuais homogêneos, assim
entendidos os decorrentes de origem comum” (art. 81, par. ún., III, quanto a esta
última categoria). Esta última, na realidade, originária e estruturalmente, é
constituída de direitos subjetivos, mas, recebem, no patamar de uma disciplina
coletiva dos direitos, um tratamento coletivo.
O que preside a previsão normativa de direitos coletivos é um acordo,
no seio da sociedade e expressado normativamente. 24
É, de outra parte, obvia a magnitude das ações coletivas que, muitas
vezes passa desapercebido à mentalidade existente, que é assentada,
principalmente, nos processos de caráter individual. 25 – De outra parte, do ponto
de vista técnico, diz-se, em relação à Inglaterra e Gales ----- o que vale, mutatis
mutandis para nós ----- que o sistema legal inglês desenvolveu-se na base de
‘direitos individuais’, não sendo fácil o transporte dessas regras para demandas
de massa. 26 Mas sublinha-se, com razão, que essas ações integram as
sociedades modernas e que esforços deverão ser feitos com vistas a acomodar
tais ações na vida contemporânea.27
A EXPRESSÃO DEFESA NO CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO
CONSUMIDOR
A expressão defesa, neste dispositivo e em todo o Código de Proteção
e Defesa do Consumidor, tem predominantemente ----- senão de forma absoluta
----- o significado de agir ativamente e não, como poderia parecer, o de ser o
consumidor (ou, os que estão por ele legitimados) réus de ação.
Há de descartar, portanto, que a expressão "defesa" possa ser utilizada
para designar os que se encontrem passivamente no processo. Ou seja, cogitase saber se quando na lei se utiliza da expressão "defesa", se nesta se
compreende, dentro do sistema do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, a possibilidade de os legitimados do art. 82 serem sujeitos passivos
24
Veja Robert Alexy, El Concepto y la Validez del Derecho, 1994, Barcelona, ed. Gedisa Editorial, p. 179, onde
sublinha que a discussão a respeito dos direitos individuais e dos bens coletivos, por ser um tema jusfilosófico,
é temática destinada a uma discussão infinita. Neste acordo social está, ainda, implicado saber como o justo
deve presidir essa temática, e quais hão de ser os bens coletivos, em relação aos quais, mais fácil é
exemplificar do que definir, o que é bem coletivo (cf. Alexy, op. ult. cit., p. 186).
25
Há um autor (Jack London, Exponential Change, 1994, 3, Loyola Annals of Health Law, 184-185, citado na
obra de Martyn Day, Paul Balen e Geraldine McCool, Multi-Party Actions, Londres, 1995, cap. II, p. 10), o qual
diz que disputas referentes a Chernobyl, Bhopal e Exxon Valdez, tendo em vista os princípios que são
aplicados, para resolver tais disputas, fluem de mentes com a largura das que indagam o que aconteceria, na
velha e feliz Inglaterra, se um cachorro entrar na propriedade alheia.
26
V. posição do Conselho Nacional do Consumidor (inglês), referida em ‘Group Actions: Learning from
Oprem,janeiro, 1989, referido em Martyn Day, Paul Balen e Geraldine McCool, Multi-Party Actions, cit., cap. II,
p. 11.
27
V. o Australian Law Commission Report nº 46, Grouped Proceedings in the Federal Court, 1988, in Martyn
Day, Paul Balen e Geraldine McCool, Multi-Party Actions, cit., cap. II, p. 11.
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22
de ação, tendo em vista os que são por esses representados. 28
É quase inimaginável ----- no sistema do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor ----- que consumidores, enquanto componentes de um grupo,
categoria, ou classe e, mais acentuadamente ainda, enquanto coletividade,
possam ser diretamente acionados como réus.
No entanto, nada impediria, aparentemente e à primeira vista, que,
proposta uma ação coletiva, houvesse reconvenção, por parte do fornecedor (ou,
conforme o caso, por parte do comerciante, art. 13, inciso III); e, nesta hipótese,
a reconvenção deveria ser proposta em face de um dos legitimados do art. 82,
com vistas a que os que se apresentam como efetivos titulares do direito
material viessem a ser atingidos.
É certo que reconvenção não poderia ser oposta contra a coletividade,
sendo isto sequer empiricamente imaginável dentro dos quadros deste sistema,
mas poderia ser plausivelmente cogitada, se a reconvenção fosse contra grupo,
categoria ou classe, e ainda, mais particularmente, no caso do art. 81, parágrafo
único, inciso III. O art. 90, de outra parte, estabelece a aplicabilidade do Código
de Processo Civil, ao sistema processual do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, exceto quando haja contrariedade ao que está neste diploma
disposto.
Essa contrariedade, no caso, existe.
O que nos parece é que é inviável interpretar a expressão "defesa", tal
como utilizada no art. 81, caput, e, bem assim, no parágrafo único desse mesmo
art. 81, como ensejadora da possibilidade de que, os representantes referidos no
art. 82, possam, em tendo proposto ação coletiva, virem a ser réus de ação que
viesse a ser promovida por aquele ou aqueles que são réus da ação coletiva.
O CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR E O
ÂMBITO DA LEGITIMIDADE DO ART. 82.
Esta hipótese admite o seguinte desdobramento: a) podem os
legitimados do art. 82 ser réus, em ação autônoma? b) ou, ainda, podem vir a
ser réus, em reconvenção?
A interpretação literal do art. 82 não esclarece, ou, ao menos, não
soluciona definitivamente a questão, porquanto somente se refere a legitimação
concorrente dos que aí são elencados.
A solução deve ser buscada à luz de outros elementos de caráter
sistemático.
Parece ser o art. 103 o texto que fornece a resposta para esta questão,
porquanto aí se disciplina a extensão subjetiva da coisa julgada, e, em o
fazendo, refere-se sempre o Código de Proteção e Defesa do Consumidor a
"pedido" (art. 103, inciso I; no inciso II, por elipse; e inciso III e parágrafo
28
Diferentemente se passa no direito norte-americano, onde é possível que uma classe seja passivamente
acionada, representada por membro que a integre (Federal Rules of Civil Procedure, CLASS ACTIONS, Rule
23, letra "a", nos pré-requisitos da ação de classe). Isto é compreensível, no sistema norte-americano, diante
da circunstância de que, previamente, aí não se exigem condições especiais para representar a classe.
2
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23
segundo; ainda, no parágrafo terceiro). Esse "pedido" é aquele que é formulado
em ação coletiva e não outro. Se não é outro pedido, aquele que,
hipoteticamente, viesse a fazer o réu de ação coletiva, rege-se pelo direito
processual comum e não pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Todos estes textos autorizam, exclusivamente,o entendimento de que a
legitimidade, a que se refere o art. 82 é, unicamente, uma legitimidade ativa. Ou
seja, é legitimidade existente para que sejam propostas ações coletivas, em prol
de consumidores, ou dos que a estes estejam, pelo próprio sistema,
equiparados, para incidência de determinada parte do regime jurídico deste
estatuto (v. arts. 17 e 29, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor). A
interpretação dos arts. 81 e 82 combinadamente com o art. 103, em que se
disciplinam os possíveis resultados das ações coletivas, conduz a que o Código
de Proteção e Defesa do Consumidor somente regula a ação, entendida esta
expressão, no seu sentido próprio, ou seja, agir ativamente contra alguém, que é
o sujeito passivo. A ação, v. g., do fornecedor, porque neste sistema dele não
cogita, enquanto autor, rege-se pelo direito processual comum.29
O sistema das ações coletivas no Código de Proteção e Defesa do
Consumidor brasileiro e o sistema norte-americano, das Federal Rules of Civil
Procedure, dos Códigos de Processo Civil de New York e da Califórnia.
Tem cabimento, nesta altura dos comentários ao art. 81, de caráter
introdutório geral, referir brevemente o sistema norte-americano das class
actions, e principalmente procurar compará-lo com o sistema brasileiro do
Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 30
29
O que nos parece é que a ação do fornecedor, regida que é pelo sistema do Código de Processo Civil, se
proposta contra um determinado consumidor, em determinadas circunstâncias, não poderá inibir a ação
autônoma (ou, por via reconvencional) do consumidor contra esse mesmo fornecedor, e, ainda que haja causa
petendi e pedido mediato que, rigorosamente, se contraponham. Ou seja, pelo direito comum, tratar-se-ia, à
primeira vista, do fenômeno de litispendência. No entanto, no sistema do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, na medida em que o consumidor estaria em condições de obter, em ação autônoma,
determinadas medidas ---- como, por exemplo, a medida do art. 83, § 4º ---- é certo que, a interpretação de que
haveria litispendência, retiraria do consumidor um tipo especial de proteção, que lhe foi deferido pela ordem
jurídica. Neste particular, a solução haverá de ser a da conexão de causas (Cf. Arruda Alvim, Teoria Geral do
Processo de Conhecimento, São Paulo, 1972, Parte Primeira, nº II, letra "A", § 9º, pp. 63 e seguintes, para um a
demonstração exaustiva desta posição; na mesma obra, vol. II, Parte Oitava, letra "A", pp. 326 e ss., para as
hipóteses que, analogamente, no processo comum, sustentam a solução).
30
Deve-se observar que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor constitui "o" nosso sistema de ações
coletivas e, à falta de norma, para outros interesses e direitos difusos, deve ser aplicado (é de resto, o que o
art. 21, da Lei da Ação Civil Pública, nela incluído pelo art. 117, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, estabelece, quanto à aplicabilidade do Título III do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor).O Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069, de 13 de julho de 1990), no seu Capítulo VII,
intitulado "Da proteção judicial dos interesses individuais, difusos e coletivos" terá tido sua inspiração no
sistema do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (e, também, no da Ação Civil Pública), quer quanto à
tipologia dos interesses não individuais, quer quanto à competência (local onde possa ocorrer ação ou
omissão, art. 209), a legitimidade (art. 210); ainda, quanto à presença do Ministério Público; ao "compromisso
de ajustamento" (art. 211; Lei de Ação Civil Pública, art. 5º, § 6º, acrescentado pelo art. 113, do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor), 212 (plenitude de todas as espécies de ações; art. 83, do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor); cabimento de mandado de segurança (art. 212, § 2º; art. 85, vetado,
todavia); possibilidade de efeito suspensivo a recursos (art. 215; art. 14, da Lei de Ação Civil Pública); valores
de multas revertem para Fundo (art. 214; Código de Proteção e Defesa do Consumidor, art. 100 e Lei da Ação
Civil Pública, art. 13); gratuidade das ações (art. 219; Código de Proteção e Defesa do Consumidor, art. 87),
havendo mais similitudes. Com isto se constata a verdadeira existência de um sistema, ainda que ocorram,
entre os três aqui mencionados, diferenças.
2
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Procuraremos, sucintamente, estabelecer as diferenças existentes entre
os dois sistemas.
Não existe, nos Estados Unidos, unanimidade a respeito da utilidade
das ações de classe, havendo uma minoria, que as denomina, mesmo como
representando elas o monstro Frankenstein. 31 Todavia, não é esta a posição
prevalecente, observando-se, mesmo que, se não fosse através das ações de
classe, toda uma série de interesses e direitos, restaria, em termos práticos,
desprotegida, pois que, tais ações configuram a única forma viável de proteção.
32 33
Por outro lado, percebeu-se que, mesmo através do instituto do
litisconsórcio, revelou-se sempre inviável a proteção de determinados interesses
e direitos, justamente diante da imensidão de pessoas a esses ligadas. 34
Identifica-se na impossibilidade de participação formal de todos aqueles “ligadas”
a uma dada situação, uma das razões de ser das class actions. 35 Para
quaisquer class actions deve haver questões de fato e de direito comuns à
classe. 36
O Código de Processo Civil da Califórnia disciplina este tema no seu §
382, 2ª frase, a partir da inviabilidade de comparecimento ao processo, de quem
pode ser por ele atingido e, bem assim, quando estes que haveriam de ser
convocados, porque muito numerosos, acarreta a impraticabilidade de que todos
sejam trazidos perante o Tribunal; nesse caso, algum ou alguns, poderão agir
em benefício de todos. 37 A maioria dos Estados federados americanos adota
31
Cf. Jack H. Friedenthal, Mary Kay Kane, Arthur R. Miller, Civil Procedure, St. Paul., Minn., 1985, W est
Publisching Co., § 16.1, p. 722.
32
Cf. Jack H. Friedenthal, Mary Kay Kane, Arthur R. Miller, Civil Procedure, St. Paul., Minn., 1985, W est
Publisching Co., § 16.1, p. 722.
33
Há autores que demonstram que a jurisprudência norte-americana, em face das Federal Rules of Civil
Procedure, tem, com lastro na Rule 23 (b) (3), onde a maioria entende estarem situadas especificamente as
class actions, tem fixado as seguintes diretrizes gerais, as quais estão previstas, anteriormente na Rule 23 (a):
1ª) é necessário restar demonstrado um "interesse comum"; 2ª) que seja definível uma classe de autores (Rule
23 (a); 3ª) que essa classe seja tão numerosa, que inviabilize litisconsórcio (Rule 23 (a) (2); 3ª) que existam
questões comuns, de direito e de fato (Rule 23 (a) (3). Essas podem ser consideradas como representativas
das exigências gerais das class actions. No entanto, tendo-se em vista as regras específicas ----- o que não
dispensa a obediência às regras gerais ------, há de se considerar, agora, a Rule 23 (b), observando-se como 4º
requisito que a Corte haverá de determinar que, as questões de direito ou de fato não só existem, mas
também, que predominam sobre as questões individuais; e, como 5º requisito, dever-se-á evidenciar que a
class action é mais operativa do que a ação individual (Cf. David G. Epstein e Steve H. Nickles, Consumer Law,
St. Paul, 1981, Capítulo I, letra "b", pp. 9-10).
34
Cf. Jack H. Friedenthal, Mary Kay Kane, Arthur R. Miller, Civil Procedure,cit., § 16.1, p. 723; Richard H. Field,
Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic Course in CIVIL PROCEDURE, New York, 1984,
The Foundation Press, Inc., p.1.117, onde dizem que "... joinder of parties in conformity to the usual rules of
procedure is impraticable" ("o litisconsórcio, em conformidade com as regras usuais do processo é
impraticável") - este trecho consta do voto do Juiz Stone, no caso Hensberry v. Lee, julgado pela Suprem a
Corte dos Estados Unidos, em 1940); tb. transcrito in Cf. Herbert Peterfreund e Joseph M. McLaughlin, New
York Practice,cit., p. 517 ss. Igualmente,
35
V. Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”,cit., na parte em versa sobre “A regra 23” (das Federal Rules
of Civil Procedure), p.64.
36
V. Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”,cit., na parte em versa sobre “A regra 23”, p. 64.
37
Cf. O WEST'S CALIFORNIA CODES CIVIL PROCEDURE, edição oficial, atualizada até 1987, St. Paul.,
Minn., W est Publisching Co., p. 84, § 382, 2ª frase, que reza: "If the consent of any one who should have been
joined as plaintiff, cannot be obtained, he may be made a defendant, the reason there of being stated in the
complaint; and when the question is one of a common of general interest, of many persons, or when the parties
are numerous, and it is impracticable to bring them all before the court, one or more may sue or defend for the
2
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Excluído:
25
modelo de class actions similar ao modelo federal. 38
O LITISCONSÓRCIO MULTITUDINÁRIO E AS AÇÕES COLETIVAS
Estes aspectos atomização dos interesses e direitos, e ausência de
proteção pela figura tradicional do litisconsórcio são fatos também presentes na
vida social brasileira, que, exigiram, justamente por isso, a criação de um outro
sistema. 39 Entre nós, de uns anos a esta parte, delimitou-se também, com base
no art. 125, inciso I, do Código de Processo Civil, o próprio âmbito do espectro
subjetivo possível do litisconsórcio, no sentido de que demandas multitudinárias
não podem utilizar-se da figura do litisconsórcio. 40 Reconheceu-se ao juiz
brasileiro o poder de, com base no referido art. 125, inciso I, desmembrar o
processo ou mesmo de o inadmitir em virtude de um tal litisconsórcio, por
inépcia. Nesse sentido para ficarmos com dois exemplos, já decidiu o Tribunal
de Santa Catarina.41 E o Tribunal de São Paulo, a seu turno, reflete igual
entendimento. 42
A REPRESENTAÇÃO ADEQUADA
O problema que nos parece crucial, no direito norte-americano, é o da
chamada representação adequada. Ou seja, no direito norte-americano,
qualquer um do grupo pode ser, em princípio, o representante dos demais, 43 - 44
benefit of all". A legislação do Estado de Nova Iorke seguia, até 1975, com o seu art. 1.005 (a), basicamente,
orientação similar à da Califórnia. Essa regra, no entanto, foi revogada, passando a prevalecer, no § 9º, 901,
subdivisão "a", do mesmo Código, em linhas gerais, mandamento equivalente ao da Rule 23, das Federal
Rules of Civil Procedure (Cf. Herbert Peterfreund e Joseph M. McLaughlin,New York Practice, Mineola, New
York, The Foundantion Press, Inc., 1978, 4ª ed. pp. 500-501.
38
V. Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”,cit., na parte em versa sobre “As regras estatais” (das Federal
Rules of Civil Procedure), p.73.
39
A não aceitação do litisconsórcio multitudinário, todavia, também não resolve o problema, para os setores em
que inexiste legislação especial,como é o caso do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
40
Cf. Cândido Rangel Dinamarco, Litisconsórcio, São Paulo,Ed.RT, 2ª.ed., 1986, p.60, nota 107 - (grifou-se);
esposando idêntica orientação, Humberto Theodoro Júnior, Processo de Conhecimento, Rio, 1984, Ed.
Forense, p.120.
41
"(...)Tratando de litisconsórcio facultativo e não necessário, pode a parte contrária se opor. Todavia, para
fazê-lo, deve apresentar razões plausíveis demonstrativas de prejuízo ou embaraço para sua defesa, como já
tem sido julgado " - V. ap. Civ. 21.559, rel. Des. Rubem Córdova - in JTJSC 48/266 - grifou-se.
42
"(...) Cuida-se aqui de litisconsórcio facultativo fundado na afinidade de questões por pontos comuns de fato
e de direito (artigo 46, inciso IV, do Código de Processo Civil). Reúnem-se em tal hipótese múltiplas ações em
um único processo, repousando a cumulação na economia processual. Não se discute que, em casos que tais,
cabe ao Juiz, no exercício do poder-dever que lhe fixa o artigo 125 do estatuto básico processual e, visando
assegurar às partes tratamento igualitário, adentrar ao exame de se o litisconsórcio não irá dificultar a defesa
do réu. Todavia, as peculiaridades decorrentes da situação funcional própria a cada um dos autores, não
faziam certo, no caso concreto, que ocorressem para a ré, pelo alentado litisconsórcio, maiores dificuldades do
que as trazidas pelo ajuizamento de centenas de processos distintos" (Ap. Civ. 115.987-1, rel.: Des. Marco
César, in RJTJSP 123/163 --- grifou-se).
43
Veja-se sobre a representação, Richard H. Field, Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic
Course in CIVIL PROCEDURE, cit.,Tópico B, Secção 1. 1.115; à p. 1.114. Observa-se que a origem das class
actions vem do direito inglês, e era exercida no campo da equity, e tinha, justamente, por objetivo evitar a
multiplicidade de litígios, versantes essas sobre questões de direito e de fato comuns, o que, por meio destas,
reduzir-se-iam a um litígio apenas. Eram e são chamados, no direito inglês de representative proceedings, e,
no direito norte-americano de class suits.
2
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26
- 45 com o que se evidencia profunda diferença em relação ao direito brasileiro,
quer porque, entre nós, predominam os organismos públicos como
representantes, quer porque, os que podem representar pelo Código de
Proteção e Defesa do Consumidor são taxativamente indicados, ou mais
precisamente, inequivocamente mencionados, sem que se ofereça margem de
dúvida para a identificação do legitimado. Autor italiano que estudou
demoradamente as class actions, dentre uma de suas características, observa
que são elas vocacionadas a uma eficácia que atinja uma classe ou um grupo
definido (mesmo que não previamente organizado), e, tanto quando favoráveis,
quanto quando, desfavoráveis, farão coisa julgada, desde que tenha havido
representação adequada; comportam, ainda, poder mais inquisitório do juiz. 46
A representação adequada no direito norte-americano, o espectro
amplo da eficácia da sentença e extensão da coisa julgada.
O problema cardeal e verdadeiramente crucial, diz respeito à extensão
subjetiva de decisão proferida a respeito de uma class action, o qual tema deve
ser correlacionado com a legitimação adequada.
Tanto mais complicado este tema, justamente porque: a) de um lado se
reconhece a imprescindibilidade das class actions, as quais, inclusive, tem
fundas raízes históricas; 47 b) de outra parte, todavia, existe a garantia
constitucional do due process of law. Estes dois lados do problema, que podem
se dizer aparentemente conflitantes é que ---- ao que parece ---- constituem o
44
Alguma espécie de notícia aos membros ausentes é indispensável (Cf. James Hazard, Civil Procedure, cit., §
10.23, p. 577), mesmo porque em princípio há exigência legal (Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, "b",
nº 3), ainda que possa haver discreção do Tribunal em estender a notícia a todos ou a apenas alguns da classe
(Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, "d", nº 2), observando, por fim, que a 'praxe', de alguma forma,
noticia a demanda a todos.
45
O maior problema, segundo uma determinada autora, nos Estados Unidos, é o de que se "providencie" para
que, todos os da classe, tenham a oportunidade de ser ouvidos, pois isto é importante para que não haja
argüição de inconstitucionalidade (v. nota 17, infra), no que diz respeito a uma lesão ou inobservância do
devido processo legal. Mas, observa que é absolutamente necessário, como decorrência do julgamento de tais
ações, que se tenham por esse vinculados, mesmo os que não tenham sido nomeados [na class action], para
que se tenha economia processual. Refere-se a decisão da Suprema Corte onde está reconhecido que essa
eficácia é uma exceção à regra de que a vinculação ao julgamento (na verdade, à coisa julgada) somente
atinge quem tenha sido parte efetivamente (Cf. Mary Kay Kane, Civil Procedure, cit., § 8.4, p. 263). Refere uma
decisão da Suprema Corte, do ano de 1921, nesse sentido. Todavia, pondera que se subordina essa possível
eficácia (ou, mais precisamente, autoridade de coisa julgada), a que tenha havido respeito ao due proces of
law; ou seja, quando tenha sido efetivamente útil e eficiente a defesa dos membros ausentes, por aquele ou
aqueles que os tenham representado (ambas as decisões estão baseadas nas regras referentes a este
assunto, anteriores à reforma de 1966, ainda que esta não tenha se alterado, neste particular, mesmo porque o
problema é de caráter constitucional). Refere-se esta autora a uma outra decisão de 1940. Esta decisão tem o
seu conteúdo melhor explicitado, por outro autor, e nessa não se reconheceu o efeito vinculante, justamente
porque a atividade da representação se mostrou defeituosa (Cf. James Hazard, Civil Procedure, Boston e
Toronto, 1985, § 10.23, pp. 576-577). Outros problemas se colocam, ademais, tais como: a) indagar se o
representante, que a lei exige que seja adequado e que atue com justiça/lealdade, tem interesse que possa
conflitar com o da classe; b) se quem representou, inclusive tendo em vista os advogados, tem competência
'profissional', experiência específica com essa espécie de demanda coletiva (Cf. James Hazard, Civil
Procedure, cit., § 10.23, pp. 576-577).
46
V. Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”, cit., Introdução, p. XXI.
47
Richard H. Field, Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic Course in CIVIL PROCEDURE,
cit., p. 1.124, onde informam que a matriz dessas ações era o bill of peace; este era o tipo de providência
jurisdicional a ser utilizado quando diversos tivessem o mesmo direito, o qual poderia ser controvertido em
múltiplas ações e em momentos variados (Cf. Black's Law Dictionary, St. Paul., Minn., 1979, 5ª ed., p. 151).
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aspecto mais controvertido das class actions.48
Como se verifica da nota de rodapé 14, a possibilidade de extensão
subjetiva da coisa julgada, vinculando, por isso mesmo, os membros não
presentes ("ausentes"), 49 pela atividade do(s) que os representaram, exige que
essa representação seja havida como adequada, pois que, se não tiver sido, e,
se pretender que a decisão vincule a todos, presentes e ausentes, o 'due
process of law' negará essa eficácia subjetiva ampla, enquanto revestida pela
autoridade de coisa julgada.
Essa afirmação, conduz constantemente, na ordem prática ao seguinte.
Muitas vezes, senão sempre, alguém que foi tido como integrante de uma class
action, se vier a mover a sua ação, agora individualmente, isto acarreta que,
preliminarmente, nesse segundo processo, haver-se-á de estabelecer se houve
ou se não houve coisa julgada para esse, desde que tenha sido ausente. E isto
se resolverá, à luz da indagação, em relação ao primeiro processo (o da class
action), consistente em saber, se nesse primeiro, houve efetivo e pleno esforço
na defesa deste, agora, litigante individual. 50 Por isto tem razão de ser a
providência a que se denomina de out put. Portanto, pode-se dizer que a
admissão da ação individual ---- para nos utilizarmos de nossa linguagem ---exige a solução da questão preliminar de ocorrência ou não da coisa julgada.
Conforme seja a solução dada a essa questão ----- que, normalmente se
constituirá em preliminar -----, a ação individual virá ou não virá a ser admitida.
O critério idôneo ao preenchimento da exigência constitucional do due
process of law é o de que os outros (isto é, os "representados") tenham sido
adequadamente representados. Isto, a seu turno, em termos práticos, quer dizer
que deverão ter sido vigorosos e tenazmente defendidos, ou seja, que toda a
classe (=todos os seus membros), tenha tido esse tipo qualificado de proteção e
48
Richard H. Field, Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic Course in CIVIL PROCEDURE,
cit., p. 1.124, afirmam que a "regra geral, pois, é a de que o julgamento de uma class action terá eficácia
subjetiva [estendida] e vinculante para todos os membros da classe" ("As a general rule though, a judgement in
a class action will bind the absent members of the class"). No entanto, logo depois, os mesmos autores
colocando a afirmação em face do due process of law, dizem: "A exceção a essa regra geral é fundada no
devido processo. O Devido Processo Legal seria violado no julgamento de uma ação de classe se entender ter
ocorrido coisa julgada para os membros ausentes, salvo se a Corte aplicando a regra da coisa julgada puder
concluir que a classe foi adequadamente representada no primeiro [primitivo] litígio" ("The exception to this
general rule is grounded in due process. Due Process of Law would be violated for the judgement in a class suit
to be res judicata to the absent members of a class, unless the court applying res judicata can conclude that the
class was adequately represented in the first suit" (grifos nossos).
49
Existe nas Federal Rules of Civil Procedure instituto, denominado certification, que se destina a viabilizar e
melhorar o tratamento coletivo da causa (“trattazione della causa in forma rappresentativa”), através do que
procura-se fazer com as razões dos ausentes sejam adequadamente tuteladas pelos que estão presentes.
Desta forma, deve-se estabelecer uma relação entre os efeitos das decisões das class actions e a certification,
onde se hão de colher elementos para determinar a extensão subjetiva ----- geralmente a máxima possível ----da eficácia das decisões (cf. Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”,cit., na parte em versa sobre “A regra
23”, p. 67-68).
50
Richard H. Field, Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic Course in CIVIL PROCEDURE,
cit., Tópico B, p. 193, nota K; v. tb. pp. 1.117 e 1.124. Igualmente, Andrea Giussani, Studi sulle “Class
Actions”,cit., na parte em versa sobre “A regra 23”, p. 67, onde diz que “si riconosce che gli effeti relativi ad ogni
membro della classe che non abbia partecipato direttamente al giudizioni possono essere rivalutati a posteriori
da parte del giudice dinanzi al quale venga sollevata l’eccesione del giudicato formatosi nell’azione
rappresentativa”.
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de defesa. 51
Há um julgamento expressivo, em que se trata, paradigmaticamente, do
significado deste ponto, ora considerado. É o caso em que um indivíduo
representou a classe adequadamente, até um dado momento, em que obteve a
satisfação dos interesses que, a ele também diziam respeito. Ocorre que, por
essa determinada decisão, esse indivíduo ("representante"), de nome Gaytan,
sentiu-se satisfeito; por isso mesmo, não apelou. E, por causa disto, neste caso,
veio a se entender ter inocorrido a eficácia subjetiva da coisa julgada para os
outros, no sentido de que o resultado não obstaria que propusessem as suas
ações individualmente. Diz-se mais nessa decisão que, justamente porque a
apelação que poderia ter sido interposta, não poderia ter sido considerada sem
maior sentido; 52 dessa omissão, foi possível concluir (num segundo processo),
que esse Gaytan não defendeu vigorosa e tenazmente os demais. A essência
deste ângulo do tema, no caso das class actions, significa que ninguém poderá
ser condenado ou vir a perder um interesse, sem que todas as suas razões e
motivos tenham sido plenamente expostos e avaliados. Ou seja, na hipótese de
alguém (o representante) ter atuado por outrem (o ausente), necessário é que
aquele tenha argumentado e discutido com absoluta exaustão também sobre o
direito de toda a classe, i. e., de todos os ausentes. E, de qualquer forma, por
outro lado, todos os interessados haverão de ter sido convocados ao processo,
ainda que por meio de uma convocação não tão segura, como a usual, ou seja,
por intermédio da citação 'clássica'. 53 - 54
COMPARAÇÃO
BRASILEIRO
DO
SISTEMA
NORTE-AMERICANO
COM
O
Estes dois problemas existentes no direito norte-americano parecem
inexistir no sistema brasileiro do Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
porque: a) de um lado, os representantes agem ex lege e são inequívocos e
taxativamente os indicados no art. 82; 55 b) de outra parte, no que diz respeito à
51
Richard H. Field, Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic Course in CIVIL PROCEDURE,
cit., p. 1125.
52
Richard H. Field, Benjamin Kaplan, Kevin M. Clermont, Materials for a Basic Course in CIVIL PROCEDURE,
cit., p.1125.
53
Cf. Jack H. Friedenthal, Mary Kay Kane, Arthur R. Miller, Civil Procedure,cit., § 16.1, p. 722, nota 5, referem
decisão da Suprema Corte, do ano de 1974, no sentido de que, numa ação de classe, relativa a danos, a todos
os membros da classe conhecidos, se haveria de dar notícia individual do litígio.
54
Outra finalidade dessa notícia é a de viabilizar o desejo de algum ou alguns, ou mesmo muitos, não fazerem
parte do processo. É a isto que se denomina de "opt out" (Cf. James Hazard, Civil Procedure, cit., § 10.23, p.
577). Efetivada essa notificação (“notice”),em caso de não manifestação do interessado, será incluído na ação,
o que significa, praticamente, sua submissão à eficácia da sentença e respectiva coisa julgada, favorável ou
não (Andrea Giussani, Studi sulle “Class Actions”,cit., na parte em versa sobre “A regra 23”, pp. 68-69).
Poderá, também, comparecer (“appearancde”), para examinar o proceso, e, não se excluindo, poderá atuar
(“intervention of richt”), através de advogado.
55
Deve-se observar que, como o Código de Proteção e Defesa do Consumidor estabelece a utilidade de um
resultado favorável aos consumidores, emergentes da procedência de uma ação civil pública, na forma do
disposto no seu art. 103, § 3º. Disto se segue que, também os legitimados pelo art. 5º, da lei 7.347, de 24 de
julho de 1985, devem ser considerados ao lado dos do art. 82. Como o art. 5º, em parte é coincidente com o
conteúdo do art. 82, mas, em parte não o é, são, por isso mesmo, por esse art. 5º, legitimadas também
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extensão da eficácia negativa da sentença 56 e respectiva autoridade da coisa
julgada suscetível de se formar no plano de ação coletiva, não virá essa afetar a
esfera individual (art. 103, § 1º, referente aos incisos I e II, do mesmo art. 103; §
2º, deste mesmo art. 103, referente à hipótese do art. 103, inciso III; nesta última
hipótese, no entanto, só haverá coisa julgada se "interessado" tiver sido
efetivamente parte, nos termos do art. 94, ou seja, trata-se de coisa julgada
formada entre este, que terá ingressado como "litisconsorte", como diz a lei, e o
réu.
De outra parte, tendo-se em vista o âmbito do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor, se o fornecedor, v. g.,entendendo que pode vir a ser réu,
mas na realidade julgar que tem direito contra um grupo, uma categoria ou
classe de consumidores, deverá acioná-los pelo processo comum e não
pretender fazê-lo "aproveitando-se" da legitimidade dos que são referenciados
no art. 82.
A eficácia da sentença, a respectiva coisa julgada e o benefício para os
consumidores. --- O resultado desfavorável aos 'beneficiários natos' da ação
coletiva não prejudica suas situações individuais.
De outra parte, há de se ter absolutamente presente, no que diz
respeito ao consumidor e os que a ele sejam equiparados, a regra cardeal de
que as ações coletivas beneficiam, mas nunca prejudicam. É que as ações
coletivas, tais como reguladas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
em hipótese alguma definem negativamente a respeito do que esteja na esfera
jurídica individual dos consumidores (não se obsta o agir individual), tendo ,
vítimas ou sucessores, estejam estes na categoria que estiverem (art. 81,
parágrafo único, incisos I/III c/c art. 103, §§ 1º e 2º). Em realidade, o sistema do
Código de Proteção e Defesa do Consumidor estabeleceu um meio de proteção
a mais e não um sistema substitutivo do processo comum.
A ação coletiva afetará, unicamente, em função do seu possível
resultado favorável; na realidade, inteiramente favorável (v. o art. 103, § 1º e o §
2º, em que se abrangem as hipóteses do art. 81, parágrafo único, incisos I/III,
correlatas às do art. 103, incisos I/III). 57
Ora, em sendo assim, se pudesse admitir ação de fornecedor, v. g.,
autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista (não o sendo pelo art. 82). Assim,
se estas, também podem propor ação civil pública e se o resultado favorável aproveita a vítimas e sucessores,
por acidente de consumo, nos termos do art. 103, § 3º, ao elenco do art. 82 devem-se ter como legitimadas
essas pessoas jurídicas, também, para agir. Não agirão, no entanto, diretamente, invocando uma legitimidade
em face do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, senão que, estarão lastreadas no art. 5º, da lei
7.347. Não nos parece, como se disse, que seja a hipótese de poderem invocar legitimidade diretamente, em
face do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, com base no art. 90, pois que o benefício do resultado
útil, da ação civil pública foi estabelecido por intermédio do art. 103, § 3º. Mas, de qualquer forma, tendo-se
presentes os citados arts. 82 e 5º, ainda assim, subsiste o critério de legitimidade taxativa, emergente de lei.
56
O que se significa com 'eficácia negativa' é que a decisão de improcedência deixa intocada as esferas
individuais, tendo em vista aqueles mesmos por quem se agiu.
57
Observe-se que a terminologia da lei é a do uso das expressões improcedente/procedente (art. 103, inciso I,
II e III); no que diz respeito à eficácia da setença favorável proferida em ação civil pública, igualmente (art. 103,
§ 3º). Isto permite concluir que, numa hipótese de julgamento parcialmente procedente,direitos dos
consumidores, vítimas ou sucessores, situados na esfera da improcedência parcial, não restam individualmente
prejudicados ou lesados. Por exemplo, no caso de procedência por danos materiais, mas negando-se os danos
morais.
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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contra consumidores, proposta em face de um dos legitimados do art. 82, não se
vislumbra, no sistema do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, texto
que excluísse o resultado (=efeito) dessa ação, como havendo de abranger
aqueles em prol dos quais se agiu, e, bem assim, a respectiva autoridade da
coisa julgada. E, sendo assim, ter-se-ia que essa ação produziria efeitos contra
os consumidores e esses efeitos estariam cobertos pela autoridade de coisa
julgada, sem que, individualmente, se lhes tivesse sido ensejada a possibilidade
de litigarem, o que virá a contrariar o mandamento do art. 5º, inciso XXXV da
Constituição Federal.
O CONCEITO DE CONSUMIDOR --- AS FIGURAS A ESSE
EQUIPARADAS --- SUA REPERCUSSÃO NO ÂMBITO DAS AÇÕES
COLETIVAS
É necessário ter-se presente, portanto, que os conceitos de consumidor
do art. 2º e o do seu parágrafo único, não são os únicos do Código de Proteção
e Defesa do Consumidor. 58 Ou, mais precisamente, há pessoas que, conquanto
não sejam consumidores a estes para determinados objetivos, são equiparadas.
No art. 17 são equiparadas a consumidores "todas as vítimas do evento", para o
que está na Seção II, do Capítulo IV, do Título I.
Quando o Código de Proteção e Defesa do Consumidor refere-se a
vítima, ou seja, a "todas as vítimas do evento", quer significar que, conquanto
estas não hajam sido, necessariamente, consumidores nos termos do disposto
no art. 2º, a estes são equiparadas, tendo em vista os acidentes de consumo.
Vale dizer, para os fins do disposto nos arts. 12 a 17, toda e qualquer pessoa
(física ou jurídica) que haja sofrido danos, em decorrência do fato do produto,
tem o direito de utilizar-se do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Mais
ainda, quaisquer entes despersonalizados, ainda que não sejam pessoas
jurídicas, têm esse direito de ver, igualmente, responsabilizado o causador ou
causadores do dano, à luz do critério e do tipo de responsabilidade constante
desses arts. 12 a 17. A expressão "pessoa" deve ter interpretação não restrita,
porque o objetivo cardeal do texto é o de que o dano seja indenizado e, que o
seja, à luz do tipo de responsabilidade instituída pelo Código de Proteção e
Defesa do Consumidor. Essa equiparação, portanto, diz com a possibilidade de
assunção do regime jurídico do Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
neste particular. Esta equiparação viabilizará em favor das vítimas também, o
pedido a que se refere o art. 81, parágrafo único, inciso III, e, bem assim, que
essas vítimas possam ser representadas por quaisquer dos legitimados a que se
refere o art. 82.
58
No art. 2º, caput, pode vir a verificar-se uma extensão do conceito de consumidor bastante grande, ainda não
adequadamente discutida pela doutrina brasileira. Nesse texto se diz ser consumidor o que adquire produto ou
serviço como destinatário final; mas, aí se lê que também é consumidor o que utiliza. Isto pode vir a significar
uma expansão bastante grande da figura de consumidor, que não se confinaria àquele que realiza um negócio
jurídico, tão somente, como é o caso do que adquire ou do que compra um produto ou serviço (v. os
comentários ao art. 2º, no sentido desse entendimento amplo). Ainda não nos convencemos dessa
interpretação, todavia.
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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No art. 29, de outra parte, mas com objetivo similar de extensão de
benefícios do Código de Proteção e Defesa do Consumidor a quem não tenha
sido consumidor ou consumidores, 59 são equiparadas a estes as pessoas,
determináveis ou não, desde que expostas às práticas comerciais, tendo em
vista as práticas abusivas e relativas a contratos, ou não; ou seja, tendo em vista
os Capítulos V e VI, do Título I. Assim quando estabelece o Código de Proteção
e Defesa do Consumidor, a defesa dos interesses e direitos dos consumidores
abrange todos os que ficaram prejudicados, vítimas, portanto, e seus
sucessores. É possível que, profissionalmente, quem é um fornecedor, por
exemplo, por dano decorrente de fato do produto, possa beneficiar-se do sistema
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, enquanto vítima do evento,
pois, nesta hipótese, está assimilado a uma vítima, e enquanto tal, a consumidor.
Em realidade, esses textos compreendem os "consu-midores", enquanto vítimas;
mais ainda, aqueles que, mesmo não sendo, ainda, própria e intrinsecamente
"consumidores", resultam a estes equiparados, pelo sistema do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor (arts. 17 e 29; v. tb. o art. 2º, parágrafo
único).
Na redação do art. 82, "caput" encontra-se erro material. 60
São os legitimados deste art. 82 que movimentam a defesa a título
coletivo deste Código. Agem, tais legitimados, em benefício dos consumidores,
enquanto inseridos nas situações descritas no art. 81, parágrafo único, incisos I,
II e III, deste Código.
As normas de processo em geral são de ordem pública ou cogentes, e
neste Código de Proteção e Defesa do Consumidor, elas o são em extensão
máxima. Também as regras de direito material deste Código de Proteção e
Defesa do Consumidor, são de ordem pública (art. 1º). Isto quer dizer que não
podem, umas e outras, serem alteradas pela vontade dos que ajustam no plano
contratual e dos que se defrontam no plano processual (salvo quando o Código
de Proteção e Defesa do Consumidor o permita, no plano do direito material, 61
como no caso do art. 18, parágrafo segundo, ainda que dentro dos limites
quantitativos aí fixados; no plano estritamente processual, pode o procedimento,
exemplificativamente, ser suspenso, aplicável que é --- entre inumeráveis outras
hipóteses ---, o art. 265, II, do Código de Processo Civil). Na verdade, aplica-se
todo o Código de Processo Civil, e, bem assim o sistema da Lei 7.347 de 24 de
julho de 1985 (art. 90, deste Código), no que não contrariar o disposto neste
Código.
59
O conceito do art. 2º, parágrafo único, equipara a consumidor "a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo", ao passo que, o art. 29, a seu turno, equipara
a consumidor "todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele (i. e., no Código de Proteção
e Defesa do Consumidor) previstas". No art. 2º, parágrafo único, a lei exige a intervenção em relação de
consumo, ao passo que, no art. 29, não necessariamente, pois tanto bastará a mera exposição às práticas
existentes neste diploma. No mais, parece existir sobreposição dos campos de abrangência, de ambas as
normas.
60
Em verdade, onde se lê art. 100, parágrafo único, deve-se ler art. 81, parágrafo único.
61
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor deve sempre ser interpretado como se expressando através
de regras cogentes; quando o legislador for expresso, em sentido contrário, e, dentro do âmbito em que o
tenha sido, ter-se-á regra dispositiva.
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No que diz com a previsão da possibilidade de tutela individual, no
Código de Proteção e Defesa do Consumidor (art. 81, "caput"), em si mesma a
previsão é despicienda, porquanto, em realidade, seria inviável, porque
inconstitucional, que o contrário tivesse sido dito. Isto porque o art. 5, inciso
XXXV, da Constituição Federal é expresso atinentemente à previsão do pleno
acesso ao Poder Judiciário, quer na hipótese de lesão a direito, quer, ainda,
quando ocorra mera "ameaça a direito". Desta forma, portanto, a previsão, nesse
texto e em outros, tem, precipuamente, o sentido de coadunar e disciplinar as
relações que podem existir entre a tutela individual e a tutela coletiva. O que é
importante, todavia, é aplicar-se o Código de Proteção e Defesa do Consumidor
de tal forma a que não fique, em hipótese alguma, obstada ou prejudicada a
ação individual, se o consumidor tiver escolhido essa via.
Há que se delinear o tipo de legitimação previsto no art. 82. Desde logo,
deve-se dizer que a dicção da lei, se confrontarmos os arts. 82 e 91 é diferente.62
O art. 91, claramente ------ para nos valermos do linguajar do processo
tradicional ----- expressa, na esteira da dicção conhecida, uma hipótese de
substituição processual, ex lege (e, não voluntária); pelos seus próprios dizeres,
pois que, diz-se aí que os legitimados "poderão propor, em nome próprio e no
interesse das vítimas ou seus sucessores ação civil coletiva", tendo em vista "os
danos individualmente sofridos". 63 Refere-se a legitimidade estabelecida no art.
91, à hipótese do art. 81, parágrafo único, inciso III. Aqui se revela a existência
de direitos subjetivos, e, portanto, de caráter individual, submetidos, no entanto,
pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a um "tratamento" ou a uma
disciplina coletiva. Se existem, nessa sede, direitos subjetivos, a legitimação
prevista no art. 82 combinado com o art. 91, convive claramente com a
legitimação individual, ainda que hajam de ser exercidas em processos e
sistemas diferentes e tendo em vista bens jurídicos diferentes (pois assim são
considerados pelo legislador: a) o bem coletivo, tendo em vista o tratamento
coletivo, da hipótese do inciso III, do parágrafo único do art. 81; b) o bem
individual, de cada um.
Como se disse, a legitimação prevista no Código de Proteção e Defesa
do Consumidor se exerce, exclusivamente, no plano da ação coletiva; e, a
individual, no plano do direito processual comum. 64
62
Erroneamente, no art. 91, alude-se ao art. 81, quando o certo é art. 82.
Os dizeres desse art. 91 são coincidentes com os do art. 6º, do Código de Processo Civil, que,
classicamente, reproduzem e expressam, textualmente, a figura da substituição processual.
64
É, apenas possível, na hipótese do art. 94, que a vítima ou sucessor atue como "litisconsorte", mas, em
verdade, essa atuação mais se aproxima da da figura do assistente litisconsorcial, e, particularmente, tendo em
vista o direito material, pois que os benefícios neste existentes podem ser alcançados pela procedência, quer
no plano da ação coletiva, como, igualmente, no da ação individual. Conseqüentemente, inexistente uma
paridade de situações entre qualquer dos legitimados do art. 82 e o particular, quando atue na ação coletiva,
esta ausência de paridade de situações já é elemento indicativo e conducente a que se descarte a exatidão do
'nomen iuris' da figura do litisconsórcio. Mais acentuadamente, ainda ---- pois na hipótese precedente poder-seia cogitar do litisconsórcio facultativo-unitário, em que qualquer dos litisconsortes pode instaurar o processo ---deve-se ter presente que o particular (vítima ou sucessor) não tem, em hipótese alguma, legitimidade para
instaurar ação coletiva. Ora, como se disse, na figura do litisconsórcio facultativo-unitário qualquer um dos
litisconsortes tem essa legitimidade. Há, neste passo, entre tais litisconsortes de litisconsórcio facultativounitário legitimidade disjuntiva e concorrente, como poderia ser denominada na esteira do que Vigoriti diz,
2
63
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Segue-se, pois, que essa convivência, conquanto possível, realiza-se
em planos diferentes, 65 - 66 que se tocam, mas que não se sobrepõem um ao
outro.
No entanto, no plano do Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
a legitimidade é própria de um ---- ou, de mais de um, ou de todos ----mas só dos
que estão elencados no art. 82 (c/c o art. 91, na hipótese do art. 81, parágrafo
único, inciso III). Ou seja, trata-se da legitimidade, através da qual se outorgam
poderes e se confere tratamento coletivo a situações ou interesses e direitos
individuais. 67
A LEGITIMIDADE DO ART. 82 E SEU AFASTAMENTO DAS
CATEGORIAS TRADICIONAIS
É certo que no art. 82 inexistem tais dizeres. Já se aventou, na
interpretação deste Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que a
legitimidade, a que se refere esse texto, é legitimidade ordinária. 68 - 69
O assunto deve ser considerado em dois planos teóricos e práticos.
Deve ser tratado no plano da ação coletiva, que é, especificamente, aquele em
que se encontra disciplinada essa legitimidade. O que parece, portanto, se deva
dizer a este respeito, é o seguinte: Se o art. 91, com clareza, alude ao fenômeno
da substituição processual ---- ao menos lingüisticamente ----, isto já inocorre no
mutatis mutandis, em relação às ações coletivas (Cf. Vicenzo Vigoriti, Interessi Colletivi e Processo (La
Legittimazione ad Agire), cit., p. 123).
65
Deve-se remarcar que predominantemente todos os conceitos e institutos, existentes neste Título III dizem
respeito à ação coletiva, exceto, é certo, quando claramente, a lei referir-se a uma situação de ação individual,
com vistas a distinguí-la da ação e do processo coletivo. Há, todavia, textos que se referem ao consumidor
individualmente considerado, v. g., como o art. 6º, inciso VIII, o art. 102, inciso I.
66
Trata-se de ações concorrentes. Ressalve-se, todavia, que se trata de uma 'concorrência' unilateral, da ação
coletiva, tal como, especialmente, a disciplinada no art. 81, parágrafo único, inciso III, cujo resultado favorável
concorre em prol da tutela individual, ainda que isto se realize no plano coletivo. O reverso, i. e., emergir da
ação individual benefício para vários, é inviável (exceto a hipótese de litisconsórcio unitário, mas que, no fundo
é ação 'individual'). Com essa ressalva pode-se dizer, com Liebman que "la sola ed unica nota distintiva della
figura delle azioni concorrenti stà nel fatto che si estinguono tutte per effeto della sentenza che accoglie una di
esse, in seguito al raggiungimento del loro scopo comune"; mas, com a rejeição, não decorrerá prejuízo para
aquele ou aqueles que tenham remanescido fora do processo (Cf. Enrico Tullio Liebman, Problemi del
Processo Civile, Nápoles, 1962, Morano ed., trabalho intitulado "Pluralità di leggitimati all'impugnazione di un
unico atto", pp. 64 e 69; v. tb. Vigoriti, Cf. Vicenzo Vigoriti, Interessi Colletivi e Processo (La Legittimazione ad
Agire), cit., p. 127.
67
Estão abrangidos os consumidores e, bem assim, os que àqueles são equiparados, no particular (art. 17),
para os fins dos arts. 12 a 17.
68
Ada Pellegrini Grinover, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Rio, 1991, 1ª ed., p. 573, nota 3;
igualmente, na mesma obra, parte de Nelson Nery Jr., p. 632 , nota 17.
69
Observe-se a tendência de que, no direito alemão, é a de vislumbrar-se, na hipótese, caso de legitimação
processual autônoma. O Prof. Harold Kock, Prozeßführung im öffentlichen Interesse [O direito de conduzir o
processo no interesse público], Frankfurt, 1983, ed. Alfred Metzner, Primeira Parte, B, III, p. 43, exemplificando
em hipótese em que ao acionista falta legitimidade, e, esta é deferida à sociedade de que é acionista. Outro
jurista (Cf. Reinhard Urbanczyk, Zur Verbandesklage im Zivilprozeß [A ação de grupo no Processo Civil],
Colônia-Berlim-Bonn-Munique, 1981, ed. Carl Heymans, Capítulo IV, III, 1, e, especialmente, nº 2, p. 42, sob o
argumento de que, na clássica substituição processual, há uma relação entre o direito feito valer e quem o faz
valer; à p. 44, afirma, examinando a posição de Hadding, no sentido de que se trata de um poder autônomo
(analisam-se na obra diversas posições, de outros juristas que, guardam em comum, um afastamento das
categorias tradicionais).
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art. 82, se examinado em si mesmo, e sem conexão com outros textos. Todavia,
tanto numa hipótese, quanto em outra, os legitimados, quer os do art. 82 (para
as hipóteses do art. 81, parágrafo único incisos I e II), quer, para a hipótese do
art. 81, parágrafo único, inciso III c/c o art. 91, não agem em benefício próprio,
senão que em benefício alheio e as legitimações que detém decorrem da lei, e,
mais, foram afetadas a esses legitimados sem qualquer relação, senão a da lei,
com as situações que pretendem fazer valer em juízo. 70 De outra parte, somente
esses é que estão legitimados, no plano da ação coletiva, enquanto tal. O agir
individual, nunca será suscetível de dar ensejo a uma ação coletiva, no sistema
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Conseqüentemente, no plano
da ação coletiva, somente podem ser autores ou somente podem agir, os
legitimados pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Isto é, são esses
do art. 82 os únicos legitimados para ação coletiva. Mas, se não são esses,
propriamente, os "prejudicados" ou se não são esses os "beneficiados" pelos
efeitos da sentença, é certo que os que são apresentados como os titulares da
situação material, é o que o serão, se a ação coletiva for julgada procedente,
com a ressalva do art. 103, parágrafos 1º e 2º, respectivamente,
respeitantemente às hipóteses do art. 81, incisos I e II, e, inciso III. Em realidade,
os legitimados pelo art. 82 agem "ex lege", independentemente de autorização
daqueles em cujo benefício agem, mas o fazem no interesse destes (ou seja, no
interesse alheio); ou, agem em seu próprio nome, mas em função de um
interesse que não lhes é pessoal ou patrimonial, direta ou indiretamente.
É certo que, no patamar da ação coletiva são os únicos possíveis
legitimados. De um lado a lei somente a estes conferiu legitimidade, e, de outra
parte, inibiu que um indivíduo pudesse ter legitimidade para a ação coletiva, que
se restringe àqueles nominados taxativamente, ou seja, às hipóteses do art. 82,
tendo em vista as ações a que se alude no art. 81. Por outro lado, se a regra
geral ----- cristalizada no processo comum ou tradicional -----, é a de que o
substituto processual, propriamente dito, haja de arcar com os ônus do processo
justamente porque age "em nome próprio", tendo em vista o eventual resultado
desfavorável, isto já não ocorre no caso das ações coletivas, com a ressalva
constante do art. 87. 71 Se, desta forma, se considerar como substituição
processual, estaria esta categoria jurídica, despida de uma característica que, no
direito comum, lhe é própria, e, que, em realidade, a distingue da representação
processual.
A LEGITIMAÇÃO E O CONTEXTO EM QUE ESTA SE ASSENTA
O que parece importante é ter-se presente que as ações coletivas
emergiram no contexto de uma temática inteiramente diferenciada daquela em
que se assenta o processo tradicional de caráter individual.
Consequentemente, todo o sistema de defesa a título coletivo foi
70
71
Este aspecto ---- agir em benefício alheio e não próprio ----- também está presente na hipótese do art. 82.
V. os comentários ao art. 87
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idealizado como uma modalidade de tutela "a mais", mas que, em última análise,
não prejudica ou faz perecer o "interesse" ou o "direito" individual, se o resultado
da ação coletiva for negativo. Não importa que o "bem jurídico", objeto da tutela
coletiva, haja sido idealizado como "outro" bem jurídico, diferente do bem jurídico
individual. Isto porque, também em última análise é, praticamente possível
imaginar-se ou fazer-se uma redução da "parcela" do "bem jurídico coletivo",
traduzindo-o para compreendê-lo no plano de sua subjetivação individual. 72 - 73 74
Mas é exatamente a configuração diferenciada do bem jurídico, no plano da
ação coletiva, que viabiliza a distinção entre esta ação e a ação individual.
OS SUJEITOS ATIVOS E OS PASSIVOS NA AÇÃO COLETIVA
A legitimação do art. 82 é concorrente entre os aí indicados.
Segue-se, pois, que essa convivência, conquanto possível, realiza-se
em planos diferentes.
O que parece importante é ter-se presente que as ações coletivas
emergiram no contexto de uma realidade material não coincidente com o
universo dominado pela figura central do direito subjetivo e engendraram uma
temática com peculiaridades inteiramente diferentes, daquela em que se assenta
o processo tradicional, de caráter individual.
Quanto à defesa individual deve-se atentar para a circunstância de que,
se eleita essa via, estabeleceu o sistema deste Código nela não influir
negativamente, ainda que se possa sair do sistema da ação individual para o de
uma ação coletiva, nos termos do art. 104, deste Código.
Admite-se a legitimidade individual, ou seja, a do consumidor
72
A tendência doutrinária ----- e, entre nós, objeto de lei ----- é a de não considerar os interesses e direitos
difusos, e bem assim, os interesses ou direitos coletivos, como um somatório das diversas situações individuais
(Cf. Francesco D'Onofrio, Prime Riflexioni sul Diritto di Acesso alla Radiotelevisione, in La Tutela degli Interesse
Diffusi nel Diritto Comparato, Milano, Giuffrè, 1976, nº 5, p. 16 [a propósito do direito de um grupo de manifestar
coletivamente o seu pensamento]; Giorgio Recchia, Considerazioni sulla tutela degli interessi diffusi, nº 2, p. 33
e passim, o qual observa (p.33) que, inclusive a partir da própria matriz constitucional italiana essa distinção,
entre interesses difusos (v. g., a tutela da saúde), distinguem-se do direito do indivíduo, ao mesmo bem, in La
Tutela degli Interessi Diffusi nel Diritto Comparato, citado. Com grande explicitude ocorre entre nós, v. g., entre
diversos textos, no do art. 129, inciso III, da Constituição Federal.
73
O interesse do consumidor não deve ser apenas considerado interesse individual. Na realidade, afirmar-se
que se trata de um interesse, que não o individual, foi idéia-valor que nasceu no mesmo momento em que se
cogitou de disciplinar a situação do consumidor, primariamente no plano do direito material e, ao depois, no do
processo. Nega que seja interesse individual, e, mais que ninguém isto defende atualmente, o Prof. Karl Thiere
(Cf. Karl Thiere, Die Wahrung überindividueller Interessen im Zivilprozeß [A defesa dos interesses supraindividuais no processo civil], Bielefel, 1980, ed. Ernst u. Werner Gieseking, § 6º, p. 106. Não se trata, por outro
lado, de um interesse geral, ainda que se diga que "cada homem é um consumidor" (Cf. Karl Thiere, Die
W ahrung überindividueller Interessen im Zivilprozeß [A defesa dos interesses supra-individuais no processo
civil], cit., § 6º, p. 106). O Prof. Mauro Cappelletti, em estudo publicado em 1976, já observava, a propósito da
criação de um aparato processual próprio às situações coletivas, que necessário era que nos
desengajássemos da dicotomia público-privado (Cf. Mauro Cappelletti, Appunti sulla tutela giurisdizionale di
Interessi Colletivi o Diffusi,p. 191 in Le Azioni a Tutela di Interessi Colletivi,Padova, 1976, Cedam, parte
referente às "Comunicações").
74
Outro enfoque é o que se se falar em interesses abstratamente, ou, então, desligadamente de um realidade,
à qual esses dizem respeito, resulta num vazio de sentido (Cf. Karl Thiere, Die Wahrung überindividueller
Interessen im Zivilprozeß [A defesa dos interesses supra-individuais no processo civil], cit., § 3º, I e II, pp. 2425).
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prejudicado, que pode agir individualmente, pois esta seria insuscetível de ser
afastada (art. 81, "caput", do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, e,
acima destes, a Constituição Federal, art. 5, XXXV).75
Todavia, a grande novidade do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor diz respeito à legitimidade ativa para a ação coletiva.
Tenha-se presente, antes de considerarmos a legitimação ativa, que
legitimados passivos são todos os que podem vir a ser responsabilizados por
danos causados (ver art. 12) ou seja, o fabricante, o produtor, o construtor,
nacional ou estrangeiro, e o importador, os quais respondem,
independentemente da existência de culpa (art. 12, deste Código, onde está
prevista esta forma radical de responsabilidade civil). Os fornecedores de
produtos de consumo, responsáveis solidários e sem culpa por vício do produto
ou do serviço (art. 18 e 19), com "certa equivalência", mas agravada para o
vendedor, se comparada com o vício redibitório do Código Civil, também são
legitimados passivos. Responsável e legitimado passivo é, também, o fornecedor
de serviços, nos termos e em função de responsabilidade, independentemente
de culpa, pelo vício do serviço, mesmo que órgãos públicos se trate (arts. 20, 21
e 22). O comerciante, nos mesmos termos, à luz dessa mesma modalidade de
responsabilização por fato do produto, nos casos do art. 13, e pelos vícios do
produto.
É possível, ademais que, conquanto dirigida a ação contra um
fornecedor, pessoa física, se aceite esta legitimidade, ainda que o produto haja
sido colocado no mercado por pessoa jurídica, tendo em vista o disposto no art.
28. Ou seja, já a partir da novidade criada pelo Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, responsabilizando objetivamente (sem culpa) o fornecedor, por
hipótese, uma pessoa jurídica, prevê a lei a possível responsabilidade também
da pessoa física, mercê da desconsideração da pessoa jurídica, acolhida
expressamente pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, o que,
igualmente, é também uma novidade, pois se fornecem ao juiz parâmetros, em
que se descrevem ilícitos (art. 28, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor) para avaliar e decidir sobre as hipóteses em que o fenômeno da
desconsideração deva ocorrer.76
Numa palavra, podem ser sujeitos passivos os que se colocam no leque
de situações opostas à do consumidor.
AS SITUAÇÕES DESCRITAS PELO LEGISLADOR, CONGRUENTES
COM OS 'TIPOS' FUNDAMENTAIS DE AÇÕES COLETIVAS
Passando a examinar a legitimidade ativa vê-se que se defendem a
título coletivo os interesses e direitos difusos 77 (art. 81, parágrafo único, inciso I),
75
É de se ter presente que, no plano do processo comum ou tradicional, entre nós, a regra geral é a do art. 6º
do Código de Processo Civil.
76
Na hipótese de desconsideração dever-se-á convocar ao processo a pessoa física, permanecendo a pessoa
jurídica, e, não ao contrário, substituir-se esta última por aquela.
77
Os interesses difusos e coletivos são marcados, aqueles menos, e, estes mais, por um permeamento de
organização.
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os interesses e direitos coletivos (art. 81, parágrafo único, inciso II) e os
individuais homogêneos (art. 81, parágrafo único, inciso III), sempre através da
ação de um ou de alguns dos legitimados do art. 82 deste Código de Proteção e
Defesa do Consumidor.
Esses três incisos definem as situações idealizadas pelo legislador para
caracterizar as situações sociais e estruturais, que podem ser objeto de defesa a
título coletivo.
É necessário fornecerem-se, ao menos, os indicativos comuns e
usualmente aceitos pela doutrina nacional e estrangeira, tendo em vista as
situações referentes aos "interesses e direitos difusos" e aos "interesses e
direitos coletivos" para mercê da respectiva utilização virem-se a identificar uns e
outros para, sucessivamente, transpô-los, assim distinguidos para as situações
de defesa coletiva existentes no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
A SITUAÇÃO DO ART. 81, PARÁGRÁFO ÚNICO, INCISO III
Antes de mais nada saliente-se que o art. 81, parágrafo único, inciso I,
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor admite a ação coletiva para a
defesa dos interesses difusos, tendo em vista "pessoas indeterminadas".78 Esta
expressão equivale a "coletividade", utilizada esta última, claramente como
sinônimo daquela, entre outros textos, no art. 103, parágrafo primeiro,
correspondentemente àquele sentido de "pessoas indeterminadas".
As expressões "interesses" e "direitos" não se equivalem. 79 Em relação
àquela sirva de exemplo a hipótese de poder ser promovida uma ação para que
a "coletividade" não venha a ser lesada, como exemplificativamente, ocorre com
a previsão do art. 102, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, tendo aí
sido atribuída legitimidade aos elencados no art. 82, do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor. Diferentemente, se tratar de hipótese de
responsabilidade civil objetiva, por danos, onde se verifica um autêntico "direito";
na verdade, um "direito subjetivo", ainda que, no caso da "coletividade" por ela
atomizadamente distribuído, tem-se um direito submetido a um tratamento
coletivo ou difuso.
No que diz respeito aos interesses e direitos difusos aceita-se que são
interesses e direitos marcados pela indeterminação dos sujeitos (por isto, se
alude a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, no art. 2º, parágrafo
único; ou, a uma situação "de que sejam titulares pessoas indeterminadas", no
art. 81, parágrafo único, I; no art. 103, parágrafo primeiro, também há referência
a coletividade).
78
Tenham-se presentes os textos do art. 2º e 29, deste Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Parte da doutrina alemã estabelece uma graduação dos interesses, tendo em vista a situação de maior, ou
menor proximidade, do sujeito em relação ao objeto (do interesse) - (Cf. Karl Thiere, Die Wahrung
überindividueller Interessen im Zivilprozeß [A defesa dos interesses supra-individuais no processo civil], cit., §
3º, I e II, pp. 24-25). No fundo, utiliza-se esse autor da própria expressão linguística, primitiva, inter-esse, isto é,
o que se coloca entre o sujeito e o objeto (p. 24). À determinabilidade do interesse num dado sujeito, e, desde
que haja proteção nítida pela ordem jurídica, pode-se designar como direito.
2
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A nós parece que a utilização conjunta de "interesses e direitos" devese, em parte, à própria indeterminação conceitual nítida, 80 e, de outra parte, ao
objetivo de que se aumente o rol dos bens juridicamente protegíveis, ainda que
de "interesses" sejam denominados,e mesmo que essa proteção seja exercida
por outrem, que não o seu titular. E isto é assim, justamente porque, há uma
série imensa de "interesses", para os quais, a defesa individual é praticamente
inviável.
São também marcados pela indivisibilidade do objeto (no art. 81,
parágrafo único, inciso I, alude-se à "natureza indivisível"); se diz "natureza
indivisível", isto implica que a lesão a uma pessoa indeterminada, configura
lesão a todos, desde que estejam englobados pelas mesmas circunstâncias de
fato, dizendo-se o mesmo, no que diz respeito à supressão do ilícito [refoge,
particularmente ---- ainda que não exclusivamente ----, desta idéia a de
reparação patrimonial "individual" que, para ocorrer, envolve a necessidade de
restauração do patrimônio de cada um). Na verdade, prescinde-se do exame do
"destinatário"ou da vítima do ilícito, sendo suficiente o exame desse ilícito, em si
mesmo, para a caracterização do interesse de agir.
A ligação, conexão ou o denominador comum reunidor dessas pessoas
é suscetível de ser estabelecido por "circunstâncias de fato" (art. 81, parágrafo
único, inciso I).
Ademais, está imprimida nos interesses e direitos difusos, por isso
mesmo, a idéia da transindividualidade (art. 81, parágrafo único, inciso I),
justamente pela aparente impessoalidade da lesão ou do ilícito (ou mais
precisamente, pela irrelevância de se determinar individualmente o sujeito
lesado) , que atinge pessoas diversas e indeterminadas (art. 81, parágrafo único,
inciso I), ainda que, neste mesmo último texto se aluda à circunstância de que
"sejam titulares pessoas indeterminadas").
Assim, tais situações, de ilícitos incidentes sobre pessoas
indeterminadas, configura, então, a ilicitude sobre interesses e direitos difusos,
marcadas por profunda conflituosidade, tanto mais intensa pela extrema
dificuldade dos contornos pouco definitórios da situação mesma, e, mais, pela
dificuldade de tutela de tais interesses e direitos, mormente nos moldes
tradicionais individualistas. Ocorre, ainda, que esses ilícitos, geralmente ou
muitas vezes, são efêmeros, ou seja, ocorrem e desaparecem, mesmo porque
tais pessoas encontram-se apenas circunstancialmente unidas, ressalvando-se a
hipótese de lesão patrimonial, cujos resultados lesivos subsistem (por isto é que,
no que diz respeito a responsabilidade civil alude-se a "sucessores"). Acentue-se
ainda, por isto mesmo, que essas determinantes aglutinadoras, são ocasionais
ou eminentemente circunstanciais. Os ilícitos se, de uma parte são efêmeros,
tendem a ser objeto de repetição, como exemplificativamente, pode ocorrer com
uma reiterada publicidade enganosa ou abusiva. Por isto tudo, tais ilícitos,
80
Quando nos referimos a indeterminação conceitual nítida, não se pretende significar que inexistam opiniões
e definições a respeito, a começar pela posição da lei brasileira. No entanto, o que inexiste é convergência de
pontos de vista, que seja aceitável, para se poder concluir que existe uma maturação de opiniões, com
denominadores comuns nítidos e convergentes.
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lesivos de interesses e direitos difusos devem receber proteção eficiente e,
conforme as circunstâncias, verdadeiramente pronta (disto é manifestação o
disposto no art. 84, parágrafo terceiro, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor), inclusive com caráter satisfativo, até mesmo liminarmente.
A IDENTIDADE E A AUTONOMIA DO BEM COLETIVO
Verifica-se, por tais diretrizes que no plano do legislador, o bem jurídico
perceptível de tais características, acaba resultando ser outro bem jurídico,
diferente de cada um dos bens jurídicos individuais, 81 ainda que estes
"componham" o bem coletivo, mas em cuja composição inserem-se
componentes valorativos, que são elementos inexistentes nos bens individuais.
Pode ser apontado, em conseqüência, como a principal implicação no plano
normativo, o sentido "de ordem pública e de interesse social" (art. 1º) que se
empresta ao interesse difuso e coletivo, inexistente em situações de interesse e
direito individual (ver o art. 1º do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e
seus comentários, onde há referência a ordem pública e interesse social).
O sistema do Código de Proteção e Defesa do Consumidor considera,
opera e trabalha, especialmente, com o bem jurídico dos interesses e direitos
difusos, tanto no plano material, quanto no plano processual. A partir das regras
constantes no plano do direito material e da possibilidade de serem infringidas,
caracterizam-se os ilícitos (ou, lesões), os quais podem atingir a coletividade, i.
e., pessoas indeterminadas; e, no plano processual, foram previstas as defesas
coletivas, inibidoras, impeditórias, ou mesmo reparatórias de lesões materiais, se
consumadas (art. 81, parágrafo único, inciso III, do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor).
A atomização dos interesses e direitos difusos, espalhados e
desagregados em relação a inumeráveis titulares dispersos, configura e se
traduz, no plano do direito processual, pela impotência dos lesados para o agir
individual, até porque torna a respectiva defesa extremamente difícil,
dispendiosa e na verdade, quando realizada exclusivamente através da tutela
individual, inviável em termos práticos.
A FISIONOMIA DAS POSSÍVEIS LESÕES NO SISTEMA DO CÓDIGO
DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR
Podem-se configurar, no sistema do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, como lesivos de interesses e direitos difusos as hipóteses que se
seguem, entre outras, à guisa de exemplificação.
Se existe o direito à informação clara e adequada, tendo em vista
produtos e serviços (art. 6, inciso III); se a publicidade deve ser veiculada de
forma a ser fácil e imediatamente identificada como tal (art. 36, "caput"); se a
81
Na ordem prática, comumente, será praticamente impossível identificarem-se, propriamente, bens jurídicos
individuais.
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publicidade enganosa ou abusiva é proibida (art. 37, "caput", definidas uma e
outra nos parágrafos primeiro e segundo, e, parágrafo terceiro, desse art. 37),
deste quadro se segue que, respeitantemente a estas hipóteses, lesam-se, ao
menos "interesses" de todas as pessoas (ainda que não sejam sequer
consumidores [art. 29], se entendidos como tais, os já inseridos em relações de
consumo [art. 2º, parágrafo único]), com a prática de ilícitos previstos nos textos
elencados. Em realidade, o art. 29 estabelece que para os fins dos Capítulos V e
VI (ou seja, para os fins dos arts. 29 a 54), deve haver proteção contra a mera
exposição, de pessoas determinavéis ou não, até mesmo enquanto possíveis e
potenciais consumidores, pois que essas pessoas são equiparadas a
verdadeiros consumidores (nos termos do art. 29). Desta forma, tais ilícitos,
maculam um interesse difuso, suscetível de configurar pressuposto para a tutela
coletiva disciplinada no art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Proteção
e Defesa do Consumidor. Ou seja, há um bem jurídico, configurador de um
interesse difuso, de caráter público, que não pode ficar à mercê de tais ilícitos,
ainda que não tenha ocorrido, sequer, prejuízo de caráter patrimonial e nem
mesmo inserção de alguém em relação de consumo.
Quando o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seqüência,
disciplina "Das Práticas Comerciais", em correlação com textos em que se
identificam os direitos fundamentais dos consumidores (e, dos que a esses
sejam equiparados, como, por exemplo, no art. 29, do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor, na verdade, em muitos casos, "consumidores
potenciais"), verificamos que não podem os fornecedores utilizar de métodos
comerciais coercitivos, por exemplo, ou desleais, e nem, em seus contratos, de
cláusulas abusivas (art. 6º, inciso IV, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor e art. 51, em que se elencam as cláusulas abusivas). Se esses
textos forem infringidos e se ilícitos se configurarem, e, mesmo que ainda não
haja consumidores (definíveis estes com o sentido fundamental que ao termo
empresta este Código), senão que haja pessoas indeterminadas, apenas
expostas a tais práticas ilícitas (atingindo, portanto, "pessoas determináveis ou
não", nos termos do art. 29, do do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor), tem cabimento a tutela coletiva, nos moldes do art. 81, parágrafo
único, inciso I, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. "A fortiori", se
existirem consumidores, que já hajam firmado contratos, prejudicados por
cláusulas abusivas, que se encontrem traduzidas em cláusulas gerais de
contração ilícitas (de "adesão"), e, portanto, uniformes, essas poderão ter suas
respectivas nulidades decretadas (ver o art. 51, parágrafo quarto, do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor).
O mesmo raciocínio se deve fazer para o anúncio de produto perigoso
(art. 10, parágrafo segundo); ou, então, se sucessivamente a introdução no
mercado de tais produtos e serviços vier o fornecedor a saber que são
perigosos. Na primeira hipótese poderá o fornecedor vir a ser coagido a dar
cumprimento ao disposto no art. 10, parágrafo primeiro, se omitir; e, outro tanto
ocorrerá com a hipótese do art. 10, parágrafo segundo, ambos do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor. Este dever do fornecedor é independente do
2
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dever estabelecido no art. 10, parágrafo terceiro; ou seja, ocorra ou não o
cumprimento do que está previsto no parágrafo terceiro, do art. 10. Inocorrendo
as comunicações previstas nos seus parágrafos primeiro e segundo do art. 10,
há sempre ilícito lesivo de pessoas determináveis ou não, que poderão incluir o
consumidor, propriamente dito, ou apenas pessoas sujeitas a tais ofertas, àquele
equiparáveis. Quanto ao descumprimento do dever no art. 10, parágrafo terceiro,
também cabe ação coletiva.
Configura, igualmente caso de ação coletiva, nos moldes do art. 81,
parágrafo único, inciso I, a que colime obstar a venda de produtos impróprios
(art. 18, parágrafo sexto, incisos I, II e III, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor); de tais lesões, se consumadas, pode haver tutela coletiva, nos
mesmos moldes para determinar-se correção de oferta, se infringente do
disposto no art. 31, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor; o mesmo
ocorrerá se, em ofertas pelo reembolso, estiver desatendido o disposto no art.
33, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Tendo em vista tabelamento (art. 41, do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor), a infração a esse, poderá conduzir a uma ação coletiva, dentro
do modelo do art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor. 82
A HIPÓTESE DO ART. 81, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II ---SIMILITUDE COM A DO ART. 81, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO I E
SUA MENOR ABRANGÊNCIA SUBJETIVA
Já com referência aos chamados interesses e direitos coletivos, no que
diz respeito ao caráter do ilícito, não se pode fazer distinção apreciável para
apartá-los dos chamados interesses e direitos difusos (art. 81, parágrafo único,
inciso II).
O que se deve firmar, desde logo, é indagar se os grupos, as categorias
ou as classes, reclamam personalidade jurídica para serem objeto de tutela pelo
Código de Proteção e Defesa do Consumidor, e a resposta no particular é
negativa. O objetivo da lei é a proteção desses grupos, categorias ou classes,
enquanto tais. Por outro lado, se os componentes do grupo, categoria ou classe,
em grande escala, ou totalmente, pertencerem a uma pessoa jurídica,
inteiramente formalizada, nem por isto deixaram de possuir o amparo do Código
de Proteção e Defesa do Consumidor. Esta circunstância, por certo, não
descaracteriza as situações descritas; afigura-se-nos ser juridicamente
irrelevante ou não interferente no problema dos grupos, categorias ou classes,
enquanto possíveis beneficiários do sistema. São as realidades definidas no art.
81, parágrafo único, inc. II, que contam para serem reconhecidas como sujeitos
substanciais de direito.
A distinção reside especificamente no grau mais intenso de agregação
82
V. Comentários ao art. 42, inclusive a respeito de aspectos referentes à constitucionalidade atinente a
tabelamento.
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com teor maior entre as pessoas pertencentes a um grupo, uma categoria ou
uma classe.83 Estas realidades deverão ter consistência própria e identidade no
mundo empírico ou social. O vínculo que aqui existe não é, normalmente, tão
rarefeito, circunstancial ou ocasional, quanto o que existe nos interesses e
direitos difusos.84 Ou, então, se for tão rarefeito,ao menos os atingidos são mais
nitidamente identificáveis. Os membros ou as pessoas de tais categorias devem
estar unidas entre si, ou, então, com a parte contrária (=fornecedor), através de
uma relação jurídica base. 85 Mas, a transindividualidade e a natureza indivisível
existem aqui, da mesma forma que na hipótese do art. 81, parágrafo único,
inciso I, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Diferem, todavia, definitivamente, no aspecto subjetivo, porquanto se no
caso dos interesses e direitos difusos a titularidade é atribuível à "pessoas
indeterminadas". Aqui, essa titularidade material, é atribuída ao grupo, à
categoria ou à classe; atribuída, portanto, à pessoas determináveis, ao menos.
A indicação dos casos de legitimidade para a defesa a título coletivo, da
hipótese do art. 81, parágrafo único, incisos I e II, assenta-se na disposição do
art. 82, "caput", tendo em vista os legitimados indicados nos seus incisos I a IV.
No que diz respeito à hipótese do art. 81, parágrafo único, inciso II,
terceira frase, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, poder-se-ia
cogitar se também é legitimado para agir em juízo (além dos demais), o próprio
grupo, categoria ou classe. Esta seria a solução aceitável pelo Código de
Processo Civil (art. 12, inciso VII), pois este admite que sociedades, ainda que
sem personalidade jurídica, hajam ativa e passivamente pela pessoa a quem
caiba a administração. Se no sistema do Código de Processo Civil,
profundamente individualista, é isto admitido, com maioria de razão, tal poderia
ter ocorrido no caso do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ainda que
se pudesse argumentar, legitimamente, que grupo, classe ou categoria, não se
83
Há decisões negando legitimidade ao Ministério Público tendo em vista o assunto de mensalidades escolares
- RSTJ 54/306, REsp. 35/644-0, 1ª T., rel. Min. Garcia Vieira, sob o fundamento central de que, nessa hipótese,
não se trata de interesses ou direitos difusos, nem coletivos, constando do voto, o seguinte: “A consagração da
legitimidade ativa ad causam do Ministério Público, para propor ação civil pública na hipótese de interesses
individuais homogêneos me parece extremamente perigosa, pois tal legitimidade pode suprimir, inclusive, o
direito subjetivo público do indivíduo para propor determinadas ações de seu interesse” (rev. cit., p. 309). E, na
forma do art. 129, III, CF, o Ministério Público não pode ter a legitimidade, quanto de tais interesses individuais
homogêneos se tratar.
84
É possível perceber-se na hipótese do art. 81, parágrafo único, inciso I, que é com o ilícito que se configura a
possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir, estando a legitimidade prevista no art. 82. Configurado o
ilícito, ou, asseverando-se plausivelmente que este terá ocorrido, a ação e respectiva providência jurisdicional
devem abranger o universo de consumidores, i. e., de todos os consumidores que se encontrem na aludida
situação (pessoas "ligadas por circunstâncias de fato"). Já referentemente à hipótese do art. 81, parágrafo
único, inciso II, deve-se considerar a preexistência de um grupo, classe ou categoria, sobre um dos quais
incidirá a abrangência da ação e da providência jurisdicional. Conseqüentemente, no grupo classe ou
categoria, são determináveis as pessoas (v. nota seguinte, parte final).
85
Essa possibilidade de determinação decorre de uma situação própria do grupo classe ou categoria, como
quando se tratar de uma associação, uma entidade, que tem, em si mesma, consistência própria estando os
respectivos membros ligados, uns aos outros. De outra parte, as realidades do grupo, classe ou categoria,
poderão configurar-se a partir de uma relação jurídica com a parte contrária, como, por exemplo, quando várias
pessoas sejam atingidas por uma dada situação jurídica, comum a essas, sendo possível, por isto, havê-las
como constitutivas de um grupo, classe ou categoria, e, daí determinarem-se quais sejam elas (V. Ada
Pellegrini Grinover e outros, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Rio, 1991, Forense Universitária, p.
510).
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constituem tipicamente, em sociedades de fato ou irregulares (ver art. 5º, XXI, da
Constituição Federal). Deve-se observar que, nos casos em que o grupo, a
classe ou categoria tenham claramente consistência prévia ao fato ou fatos, que
possam desencadear a demanda, estas considerações se prestam. Mas, se
considerarmos que a relação jurídica é com a parte contrária e é este vínculo
que conforma o grupo, as observações feitas perdem grandemente a sua
densidade.
O inciso II do parágrafo único do art. 81 estabelece que, em face da
situação aí descrita, o titular do direito é o grupo, categoria ou classe. Entretanto
inaceitável o entendimento de que essa titularidade compreenda o plano
processual, ensejando legitimidade, mesmo porque esse texto vem seguido de
artigo que especifica taxativamente os legitimados concorrentes a exercer a
defesa do consumidor em juízo e, doutra parte, legitimidade é matéria de ordem
pública (art. 82).
Estabelece este texto, do art. 81, "caput" e parágrafo único, deste
Código, como visto, em conformidade com o sistema aqui adotado, duas
modalidades de defesa do Consumidor: 1) a defesa a título individual; 2) a
defesa a título coletivo. Estas duas modalidades de defesa convergem para os
interesses e direitos dos consumidores e os que a ele são equiparados (art. 29);
e mais, das vítimas inseridas nas relações de consumo (equiparadas ao
consumidor, à luz e nos limites do disposto no art. 17 ou aqueles mesmos,
enquanto tais), também tuteladas, como, ainda para os de toda a coletividade de
pessoas (ligadas por circunstâncias de fato), ainda que composta por pessoas
indeterminadas e indetermináveis (art. 81, parágrafo único, I, do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor); para os consumidores enquanto inseridos
em grupos, categorias ou classes (art. 81, parágrafo único, II).
A HIPÓTESE DO ART. 81, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO III
Casos há para os fins dos Capítulos V e VI, do Título I, em que a mera
exposição às práticas previstas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor
(art. 29), já faz com que a situação do sujeito possa ser abrangida por esta lei.
Se tiver havido uma informação ou publicidade, "suficientemente precisa" (art. 30
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor), essa vale como oferta e
viabiliza ação individual ou coletiva, justamente para consumidor ou
consumidores potenciais, em face da oferta (porque a essa expostos); poderão
vir a ser inseridos concretamente, por via jurisdicional, em relação de consumo,
coagindo, por exemplo, o fornecedor a contratar (ver comentários ao art. 84).
Supõe-se, é certo, que tenha havido negativa do fornecedor em contratar, nos
termos da oferta feita.
A defesa coletiva compreende também interesses e direitos individuais
homogêneos (art. 81, parágrafo único, inciso III; art.s 91 a 100, deste Código),
que são aqueles cujos danos se ostentam com qualidade de ocorrência
(=origem) igual, i. e., danos provocados por uma mesma causa ou em razão de
origem comum, entendendo-se, por estas expressões, situações que são
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juridicamente iguais (quanto a terem origem comum e, pois, tendo em vista que
o mesmo fato ou fatos causaram lesão), embora diferentes, na medida em que o
fato ou fatos lesivos, manifestaram-se como fatos diferenciados no plano
empírico, tendo em vista a esfera pessoal de cada uma das vítimas ou
sucessores.
Não são explicitados, sob fisionomias heterogêneas, no pedido a título
coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos, os interesses e
direitos individuais, ou seja, enquanto se expressem por peculiaridades e
circunstâncias decorrentes e agregadas aos casos concretos, individuais, que
extrapolam da homogeneidade, ainda que, tratando-se de hipótese de
responsabilidade civil, os danos pessoais tenham tido causa originária comum,
com os interesses e direitos de outros consumidores (art. 81, parágrafo único,
inciso III). Deve a obtenção desse "quantum" da indenização individualizada, ser
objeto de pedido individual, na fase de liquidação da decisão condenatória desta
ação (art. 97, primeira frase, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor).
Ou seja, normalmente são esses danos que, em relação à qualidade, e,
especialmente quanto à quantidade, são discutidos como se fossem uniformes,
na fase de conhecimento, mas na liquidação devem refugir desse padrão de
uniformidade. Em relação ao mesmo consumidor, à luz da sua situação
individual, ao lado da dos demais, pode-se imaginar haver aspectos
homogêneos; e outros, que são peculiares à sua situação. É necessário atentarse para a decisão que se profere com base no art. 95, que haverá de ser
liqüidada, para o tipo de danos que esta concedeu. Se, exemplificativamente,
concederam-se danos materiais, é certo que não se poderá pretender liquidar
danos morais. Estes, todavia, poderão ser objeto de ação autônoma e individual,
por parte do consumidor, que entenda ou tenha sofrido.
A DEFESA INDIVIDUAL E O CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO
CONSUMIDOR
A chamada defesa individual tem sua legitimidade disciplinada, pelo
sistema processual civil (Código de Processo Civil e Leis Extravagantes),
aplicando-se-lhe alguns textos processuais e os de direito material do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor, no que seja possível (v. g.,aplica-se o
disposto no art. 6º, inciso VIII, referente à possibilidade de inversão do ônus da
prova, cujos parâmetros para que isso possa ocorrer, em realidade, referem-se
ao consumidor como indivíduo; aplicam-se, ainda, entre outras, as regras do art.
93, inciso I e 101, inciso I, entre outras).
Pode-se fixar a regra de que, nem pelo fato do consumidor litigar
individualmente, ficará privado das maiores vantagens que o Código de Proteção
e Defesa do Consumidor lhe confere. V. g., aplica-se-lhe o disposto no art. 84,
mesmo porque o art. 81, que encima o Título III, Capítulo I, engloba a atividade
judicial coletiva e individual.
Por outro lado, se o consumidor agir individualmente e perder a ação
definitivamente, antes da propositura de ação coletiva, há então coisa julgada,
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disciplinada pelo art. 472, especialmente, primeira frase do Código de Processo
Civil. Estando a ação individual ainda pendente, se vier a ser havida como
procedente a ação coletiva, proposta com base num dos incisos I, II e III, do
parágrafo único, do art. 81, deste Código, ao autor não aproveitará qualquer
efeito da sentença coletiva, favorável, salvo observância do disposto no art. 104,
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ainda que, "virtualmente" o que
foi individualmente pedido esteja contido na ação coletiva.
Se alguns consumidores já estiverem agindo individualmente, uma vez
instaurada ação coletiva, poderão solicitar suspensão da ação individual,
objetivando beneficiar-se dessa decisão, consoante o previsto do art. 104
(proposta à luz das situações descritas no art. 81, parágrafo único, incisos I e II).
O art. 104 refere-se só aos incisos II e III, por erro material, é certo, eis que a
hipótese do art. 81, parágrafo único, inciso III, pois dir-se-ia, se encontraria
disciplinada no art. 103, inciso III e parágrafo segundo. Esta, todavia, não é a
solução correta, eis que o mesmo fenômeno que se passa com os incisos I e II,
pode ocorrer com o inciso III. Se a ação, nesse caso, for julgada procedente
beneficiará todos; se improcedente, só atingirá os que atuaram em litisconsórcio.
A contrapartida dessa atuação individual na ação coletiva de que cuida o art. 81,
parágrafo único, inciso III, todavia, é a ocorrência de coisa julgada para o
litisconsorte. 86 Desta forma, portanto, se o resultado for de improcedência, há
coisa julgada também no plano de ulterior ação individual (art. 103, parágrafo
segundo, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor).
Se os efeitos da sentença coletiva, na esfera individual, operam só para
beneficiar (art. 103, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, atentando
para a exceção contida no parágrafo segundo), podem os consumidores (vítimas
ou sucessores e os que se encartem no art. 29) individualmente propor ação.
Se convocados para entrar na ação coletiva (art. 94, referente à
hipótese do art. 81, parágrafo único, inciso III) e nela não ingressarem como
litisconsortes, e se estiverem submissos ao regime da ação individual que hajam
movido, haverão de suspender o curso dessas ações individuais); para que
operando-se a coisa julgada "erga omnes" pela procedência da ação para
proteção dos interesses ou direitos individuais homogêneos, possam vir a ser
por tais efeitos beneficiados. Observe-se que, nessa hipótese prevê, o Código de
Proteção e Defesa do Consumidor, a necessidade de suspensão da ação
individual. O ingresso na ação coletiva, por causa da convocação, na forma do
art. 94, todavia, não é obrigatório, mas é necessário suspenderem-se as ações
individuais, para que os efeitos favoráveis da ação coletiva possam aproveitar.
Ainda que a ação individual esteja em segundo grau de jurisdição, com
recurso da vítima ou sucessor, porque hajam sido vencidos, desde que
suspensa esta ação individual (art. 104, deste Código), se os efeitos da ação
coletiva forem favoráveis a esses (e, pois, também ao que propôs a ação
individual), tais efeitos aproveitarão ao que agira individualmente e que
suspendeu a sua ação (hipóteses de ter tido fundamento nos incisos I, II e III do
86
Rigorosamente trata-se da figura de assistentee litisconsorcial (v. comentários ao art. 94).
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parágrafo único, do art. 81).
Se não o fizer o autor da ação individual ---- i. e., se não suspender a
ação ----- , nos termos do art. 104, não se beneficiará dos possíveis e eventuais
efeitos (favoráveis) da sentença favorável na ação coletiva, tais como regulados
nos incisos I, II e III, do art. 103, nos termos do art. 104.
Inversamente, se improcedente a ação coletiva, nos casos dos incisos I
e II, respectivamente, referentes à coletividade, e, ao grupo, classe ou categoria,
nem por isto haverá prejuízo para a tutela individual (art. 103, parágrafo primeiro,
do Código de Proteção e Defesa do Consumidor). A mesma coisa se passa com
a hipótese do art. 81, parágrafo único, III, combinado com o art. 103, inciso III, e
com o art. 103, parágrafo segundo (respeitada a hipótese ressalvada neste
parágrafo segundo).
O art. 103, inciso I, utilizando-se da expressão fará coisa julgada "erga
omnes" quer significar que todos aqueles que se encontrem em situação
subsumível ao resultado favorável, são beneficiados pelo resultado de
procedência. No caso de improcedência, por certo, todos aqueles que poderiam
ter sido beneficiados devem respeito a esse resultado, sempre no plano e em
função de resultado na ação coletiva. No caso do art. 103, inciso I, correlato ao
art. 81, parágrafo único, inciso I, sequer há que se cogitar da possibilidade de
identificação de quais pessoas, porque indeterminadas, viriam a estar
abrangidas pela coisa julgada, na hipótese de improcedência. Por isto os
interesses e direitos individuais (não mais da coletividade, em regra, pessoas
indeterminadas), subsistem intocados, no sentido de que a improcedência da
ação disciplinada pelo art. 81, parágrafo único, inciso I, e art. 103, inciso I, na
forma do disposto no art. 103, parágrafo primeiro, não obsta ulterior ação
individual.
Estas ações coletivas representam, do ponto de vista processual, a
grande vantagem do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, quer pelo
vigor que a ação coletiva carrega consigo, quer pelas facilidades (inexistem
quaisquer despesas, art. 87), quer ainda, pelo esforço conjunto, somado e
conjugado a ser exercitado perante um fornecedor que é, praticamente sempre,
incomparavelmente, mais forte e aparelhado, a todos os títulos, do que o mero
consumidor, se, individualmente, considerado. 87
A inclusão da expressão "interesses" constante deste art. 81, tem como
fito evidenciar que não só o direito subjetivo (individual), na sua concepção
clássica, é defensável, senão que situações difusas ou coletivas, e bem assim,
as atinentes a um conjunto de situações individuais homogêneas, também o são.
Referem-se os interesses difusos e os coletivos, e os individuais homogêneos, a
uma síntese ou a uma projeção dos interesses individuais, estabelecendo novas
realidades e novos valores, em si mesmos identificáveis e defensáveis, e, como
87
Há muitos anos, em estudo de notável repercussão, lastreado na mais completa informação, tratou-se no
direito processual civil, dos novos caminhos que este haveria de trilhar, para vir a satisfazer às sociedades
contemporâneas. Quando aí se cogita dos interesses difusos, inicia-se a abordagem, precisamente, a partir da
situação do consumidor (V. ACESS TO JUSTICE - A World Survey, edição de Mauro Cappelletti e Bryant
Garth, Milão, 1978, ed. de Giuffrè Editore, Livro I, Relatório Geral, dos editores, letra "C", p. 18).
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tais assumidos pelo legislador, o que é colocado como pressuposto do direito de
defesa ou do agir coletivo em juízo (situações do art. 81, parágrafo único, incisos
I e II, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor).
Este fenômeno ou esta realidade coletiva, porque transcende aos
indivíduos, nesses não sendo imantada ou subjetivada ("transindividuais", diz-se
no art. 81, parágrafo único, incisos I e II) conduz a que essas situações
individuais, aglomeradas que estão, e, porque ganham uma nova dimensão, são
insuscetíveis de divisão. A lesão a um membro ou a mais de um membro, da
coletividade, ou do grupo, categoria ou classe, é reputada comum e "indivisível"
(comunicando-se a lesão a um dos membros, aos demais), e, bem assim, por
isso mesmo, os benefícios originados da ação coletiva (ver art. 103, incisos I e II,
deste Código).
São situações geradas pela configuração social de estruturas que se
traduzem em interesses difusos (art. 81, parágrafo único, inciso I), ou coletivos
(de um grupo, categoria ou classe - art. 81, parágrafo único, inciso II), ou, ainda,
tendo em vista os interesses ou direitos individuais homogêneos (art. 81,
parágrafo único, inciso III). A titularidade material da primeira e segunda
situações reside em pessoas indeterminadas, ou, na coletividade, ou, ainda
como se diz no art. 2º, parágrafo único, em pessoas indetermináveis; ou, ainda,
pessoas determináveis ou não, como está no art. 29 (para os assuntos que
estão disciplinados nos Capítulos V e VI, do Título I do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor); ou seja, traduzem-se tais situações, nessa coletividade,
ou grupo, classe ou categoria de consumidores (incisos I e II, do art. 81,
parágrafo único, deste Código). Pessoas indeterminadas ou a coletividade, que
são os titulares materiais (isto é, os reais e efetivos beneficiários dos resultados
favoráveis de sentenças proferidas em ações a título coletivo) dos interesses ou
direitos difusos, os quais não podem, todavia, utilmente agir de forma coletiva no
plano do processo, salvo se se individualizarem (=determinarem), mas, aqui, só
a título individual. Agem por eles os legitimados do art. 82 deste Código.
Em relação à segunda situação (art. 81, parágrafo único, inciso II),
ainda que seja titular do direito o grupo, a categoria ou a classe, pois que se
radica a titularidade material no próprio grupo, categoria ou classe, os
legitimados do art. 82, deste Código são os que detém a titularidade processual
(legitimidade para agir).
Em relação à terceira (art. 81, parágrafo único, inciso III), a situação
descrita emerge dos interesses e direitos individuais mesmos, cujos interesses
ou direitos têm causa comum. Para todas as hipóteses coletivas, aqui descritas,
e, enquanto tais, legitimados concorrentemente são os indicados no art. 82.
Nas hipóteses dos incisos I e II, há de se ter presente que, mesmo que
não nominados individualmente os interessados, podem vir eles a aproveitar-se
dos efeitos favoráveis da sentença, pelo agir dos legitimados, que estão
indicados pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor (art. 82). No que diz
respeito à hipótese do inciso III, do parágrafo único, do art. 81, deste Código,
beneficiam-se dos efeitos favoráveis do agir dos legitimados do art. 82, deste
Código, e, bem assim, pelo agir dos legitimados, pela Lei 7.347, de 24 de julho
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de 1985 (art. 5º), por causa do disposto no art. 103, parágrafo terceiro, do
Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Assumiram tais situações sociais, assim estratificadas, autonomia em
face do direito, ganhando perante este o "status" de categorias jurídicas
suscetíveis de terem sido objeto de disciplina jurídica e, acima de tudo, de uma
disciplina processual, como aqui se estabelece, precisamente através da defesa
a título coletivo.
A lesão ao conjunto de pessoas indeterminadas, apenas relacionadas
estas por circunstâncias de fato, ou a pessoas atualmente indeterminadas, ou,
ainda que determináveis (porque identificáveis em função da entidade que
integram, ou seja, dentro de um grupo, categoria ou classe), é, por si só,
constitutiva de uma lesão global, que comporta defesa coletiva. Por outras
expressões, a lesão a uma dessas pessoas, significa lesão a essas pessoas
indeterminadas (art. 81, parágrafo único, inciso I), o que se passa, igualmente,
com a lesão a pessoas que integram os agrupamentos a que se refere o art. 81,
parágrafo único, inciso II, pois em ambos os textos está escrito terem tais
interesses e direitos "natureza indivisível".
A finalidade da defesa coletiva é sempre a de beneficiar, o consumidor
(ao que tenha sido sucedido a ele equiparado [art. 29] e às vítimas em geral,
estas nos termos do art. 17, para os fins da Seção II, do Capítulo IV, do Título I,
deste Código), pois, os chamados efeitos da coisa julgada (nos casos dos
incisos I, II e III, do art. 103), beneficiam. Só não beneficiarão se pender ação
individual (ou, mesmo já pendente ação a título coletivo, se vier ulteriormente vir
a pender ação individual), e vier a inocorrer a hipótese do art. 104, parte final, do
Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Aparentemente, no caso do art. 81, parágrafo único, III, a coisa julgada
seria "secundum eventum litis", pois só se formaria "erga omnes" em caso de
procedência (nos termos literais do art. 103, inciso III), o que não é inteiramente
verdadeiro. Em verdade, se improcedente inibe outra ação coletiva (e, sem a
válvula de nova prova admitida nos incisos I e II, do art. 103), mas não ações a
título individual (interpretação que decorre do parágrafo segundo, do art. 103),
salvo para os que hajam intervindo no processo como litisconsortes (art. 103,
parágrafo segundo), o que representa, neste ponto, acolhimento pelo Código de
Proteção e Defesa do Consumidor da regra do art. 472, primeira frase, do
Código de Processo Civil.
A expressão "erga omnes" do art. 103, inciso III, deve ser entendida no
sentido de abranger quer os consumidores (vítimas ou sucessores) que hajam
sido, eventualmente, nominados, quer aqueles que não o tenham sido, mas cuja
situação seja juridicamente equivalente à dos que tenham sido partes; sendo,
uns e outros, beneficiários de resultado favorável. Por isto mesmo a eficácia
(revestida pela autoridade de coisa julgada, art. 103, inciso III) é "erga omnes"
(=em relação a todos "que sejam iguais") e, poderão estes outros (que não
foram partes) beneficiar-se do resultado favorável. Ademais, no caso de
improcedência da ação coletiva inexiste óbice à ação individual, salvo a hipótese
do art. 103, parágrafo segundo, na medida e em razão de se ter o interessado
2
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tornado parte, atuando em litisconsórcio.
COMENTÁRIO AO INCISO I
Trata-se da coletividade de consumidores (art. 2º, parágrafo único; art.
29), e é a essa coletividade que se refere o art. 81, parágrafo único, inciso I; e,
no inciso II, a referência é ao grupo, categoria ou classe.
Têm esses interesses e direitos natureza indivisível, (tanto no caso do
inciso I, quanto do II) no sentido de que as pessoas ligadas, a esses interesses
ou direitos difusos ou coletivos, nessa mesma realidade qualitativa se encontram
inseridos, 88 que a todas elas envolve, de forma comum, representando uma
nova modalidade ou um novo patamar de interesses ou direitos, destacável e
distinguível dos interesses e direitos de cada um dos consumidores; se,
individualmente, considerados na hipótese do art. 81, parágrafo único, inciso III,
pode-se dizer que, essa realidade resulta numa requalificação dos vários
interesses e direitos individuais homogêneos, referentes a consumidores ou
vítimas.
Encontram-se todas essas pessoas indeterminadas de uma tal
coletividade (inciso I) ou determináveis através do grupo, classe ou categoria
(inciso II), a que pertençam, pois que, inseridas na mesma circunstância,
enquanto consumidores ou consumidores "potenciais" (enquanto pessoas
expostas às práticas deste Código - art. 29), e, particularmente, ligados por
circunstâncias de fato (inciso I), ou, na forma do disposto no inciso II, para o que
aí está estruturado (ligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação
jurídica base).
A lei, no art. 81, parágrafo único, inciso I, deste Código, alude aos
interesses ou direitos difusos, a que estejam relacionadas pessoas
"indeterminadas", mas que justamente se conectam ou se ligam a esse tipo de
interesses comuns por circunstâncias de fato ou seja, circunstâncias comuns de
fato, mas iguais juridicamente, e que, por isso mesmo, são formativas dos
interesses e direitos difusos; em rigor, essas circunstâncias iguais, configuram
interesses e direitos difusos, dependentemente do tipo de circunstância. No
caso, interessam as circunstâncias relacionadas com o consumo. Os direitos e
interesses estritamente individuais, esparsos mas conectados uns aos outros,
pela similaridade de "circunstâncias de fato" enquanto aglutinados, configuram
um outro bem jurídico, de interesse social, protegível pelo direito material e
processual, através de regras cogentes ou de ordem pública (art. 1º, do Código
de Proteção e Defesa do Consumidor) e objeto da ação coletiva deste art. 81,
parágrafo único, inciso I.
Esses interesses e direitos individuais atomizados, ou --- permita-se-nos
a expressão --- "micro" interesses e direitos, se aglomerados todos eles,
configuram o bem jurídico, propriamente dito, defensável através da defesa
88
Neste particular, parece haver simetria entre a ação do art. 81, par. ún., III e as class actions, dizendo-se que
nestas deve haver “situazioni qualitativamente ----- ma non sempre quantitativamente ----- analoghe” (v. Andrea
Giussani, Studi sulle “Class Actions”, cit., ed. Cedam, Introdução, p. XXII.
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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coletiva. Por isto, esse bem jurídico expressa o retrato de interesses e direitos
transindividuais. Aludindo o texto (art. 81, parágrafo único, inciso I), a
"circunstâncias de fato", não quer, rigorosamente, significar, necessariamente as
mesmas e idênticas circunstâncias, mas circunstâncias juridicamente
equivalentes, e, na verdade, iguais do ponto de vista do direito, identificáveis nas
linhas mestras e fundamentais pelos legitimados do art. 82, deste Código, que
ficaram investidos na função de defender coletivamente esse bem jurídico.
São "indivisíveis" porque dizem respeito a essa coletividade (de
consumidores indeterminados), como tal e enquanto tal e, porque os seus
membros podem vir a ser relacionados entre si, justamente por tais
circunstâncias comuns de fato (art. 81, parágrafo primeiro, inciso I).
São também "transindividuais", além de "indivisíveis", os interesses e
direitos referentes a consumidores, como e enquanto tais, inseridos num grupo,
categoria ou classe (art. 81, parágrafo primeiro, inciso II), ainda que esta
situação seja confinada ao grupo, classe ou categoria (ver, especialmente, art.
103, inciso II, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, onde a coisa
julgada atinge o grupo, classe ou categoria e aos respectivos integrantes, mas a
esses --- entidade e membros respectivos no âmbito da ação coletiva e
respectiva sentença --- se restringem tais efeitos, sem prejuízo de poderem,
sendo o caso, agir individualmente, respeitada a hipótese do art. 103, parágrafo
segundo). Aqui há de se identificar e nominar o grupo, a categoria ou a classe, e,
através dessa identificação, "ipso facto", identificar-se-ão os respectivos
membros integrantes.
Ainda, é admissível a defesa a título coletivo, quando referente a
consumidores ou a vítimas, agora direta e pessoalmente suscetíveis de serem
ou virem a ser identificáveis e nomináveis, mas não necessariamente
nominados, já no âmbito da fase de conhecimento (art. 94), cujos interesses ou
direitos apresentam homogeneidade, e, por isso, tendo a mesma qualidade, e,
para fins da ação coletiva, são desprezadas as diferenças de quantidade (art. 81,
parágrafo primeiro, inciso III).
As diferenças de quantidade, ou, a extensão diferenciada dos danos de
cada um, assumirá relevância no momento da liquidação (art. 97, do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor), pois a sentença de condenação referente a
essa situação de interesses ou direitos individuais homogêneos é genérica. Será
na liquidação (arts. 97 e 103, parágrafo terceiro) que se manifestarão as
diferentes dimensões individuais dos danos.
COMENTÁRIO AO INCISO II
A hipótese do inciso I, do parágrafo único, do art. 81, é a mais rarefeita
e, pois, a mais delicada de ser delineada, no que diz respeito aos titulares dos
interesses ou dos direitos. Já a hipótese desse inciso II, alude àquilo que é
designado como interesses ou direitos coletivos, que, em comum com os do art.
81, parágrafo único, I, têm as características de transcenderem aos indivíduos e
prescindirem da necessária identificação individual e são, estes interesses e
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direitos, igualmente, indivisíveis. A diferença está, neste inciso II, em relação ao
anterior, na possível delimitação clara dos beneficiários do interesse ou direito,
tendo em vista os pressupostos, em si mesmos definidos, para identificar a
titularidade do grupo, classe ou categoria. E isto porque, nesta hipótese, não há
a indeterminação (pessoas indeterminadas), no grau em que ocorre na hipótese
do art. 81, parágrafo único, inciso I, senão que destes direitos coletivos são
titulares imediatos os grupos, categorias e classes, e, mediatamente são
beneficiados, os integrantes destes, nessa medida.
Essa determinação dos consumidores deve poder ser feita, a qualquer
momento, porque será necessário para fins de ser possível determinar-se a
identidade subjetiva para fins de benefício de resultado favorável da ação
coletiva.
Por isso, no caso do art. 104, ao disciplinar, o Código de Proteção e
Defesa do Consumidor, as hipóteses de inocorrência de litispendência,
referentes aos incisos I e II do art. 81, parágrafo único, demanda identificação do
consumidor-autor da ação individual, para se saber se este poderá, ou não
poderá, vir a beneficiar-se da ação coletiva. Ou seja, haver-se-á de identificar se
o consumidor ou a vítima, integrante do grupo, classe ou categoria (em nome de
quem, em "ultima ratio" foi formulado um pedido em ação coletiva, ainda que
englobadamente dentro do pedido maior e diverso referente ao grupo, categoria
ou classe), é individualmente o mesmo consumidor ou vítima que agiu
individualmente.
Os beneficiários, pela ligação a uma dessas entidades coletivas, são
facilmente identificáveis. Estas são as titulares de tais interesses e direitos, o que
conduz a que o pedido ou a postulação haja de ser feita em nome destas pelos
legitimados do art. 82.
Essas entidades, por isso mesmo, devem ter uma pré-existência, 89
consistência real, identidade no mundo social, ainda que não com personalidade
ou qualificação especial nos quadros do direito, salvo esta do art. 81, parágrafo
único, inciso II. Os componentes do grupo, categoria ou classe, devem ter, entre
si, um elo que os ligue; ou, então uma relação jurídica base com a parte
contrária. Esta relação jurídica diferencia, esta hipótese, por mais este requisito,
tendo em vista a do art. 81, parágrafo único, inciso I, onde se exigem, apenas
"circunstâncias de fato", (que congregam as pessoas indeterminadas [caso do
art. 81, parágrafo único, inciso I], ao passo que o requisito específico do inciso II,
do mesmo parágrafo único, do art. 81, é o de estarem os consumidores ou
vítimas inseridos em uma entidade [grupo, classe ou categoria]). Nesta última
hipótese do inciso II, deve haver ligação entre os integrantes do grupo, classe ou
categoria, que se pode constituir em uma relação ou situação jurídica entre
estes; ou, com a parte contrária, aqui é expressada por uma relação jurídica
89
No caso de se tratar de relação jurídica base com a parte contrária, a classe, categoria ou grupo pode vir a
ter nascimento com a prática do próprio ilícito. Por isto é que, conquanto o art. 81, parágrafo único, inciso III,
refira-se a que tais entidades podem estar ligadas "com a parte contrária por uma relação jurídica base", devese, neste texto, compreender-se que essa chamada relação base, muitas vezes, senão quase sempre,
expressar-se-á por um conflito de interesses.
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base.
COMENTÁRIO AO INCISO III
Os interesses ou direitos individuais, podem ser também objeto de
defesa coletiva, enquanto significativos de interesses e direitos individuais
homogêneos do consumidor (ou seus sucessores), que tenham tido origem ou
causa comum, no que diz com os fatos geradores de tais interesses ou direitos
individuais. O modelo legal disciplinado no art. 81, parágrafo único, inciso III, não
se circunscreve à hipótese de danos, senão que é mais ampla. No entanto, os
dados se constituem, na ordem prática, muito provavelmente, no conteúdo mais
constante do rendimento prático do texto.90
Assim, na hipótese de danos, a origem comum será representada por
fatos que, podem ser o mesmo, ou, então, fatos que juridicamente são havidos
como iguais e aptos, por isto mesmo, a embasar esta ação coletiva. Esta a
situação definida neste art. 81, parágrafo único, inciso III, descrita para o fim de
comportar defesa coletiva. Por homogêneos entendam-se aqueles decorrentes
de origem comum, que sejam homogêneos (qualitativamente, desprezadas "ab
initio" quaisquer diferenças quantitativas), e, por isso, apresentados com
uniformidade, o que viabiliza também a chamada defesa a título coletivo, através
de um processo de conhecimento, a qual abrangerá esses interesses e direitos
nos seus aspectos comuns. São esses interesses ou direitos defensáveis a título
coletivo, porque devem ser desprezadas e necessariamente desconsideradas as
peculiaridades agregadas à situação pessoal e diferenciada de cada
consumidor, exatamente porque refogem tais aspectos da homogeneidade, e,
por essa razão, se assim não tivesse sido previsto, inviabilizariam praticamente
um pedido a título coletivo, no bojo de uma ação coletiva, no processo de
conhecimento.
Quanto a estes aspectos pessoais diferenciados, próprios de cada
situação concreta de cada consumidor (vítima ou sucessor), de forma
preferencial, poderão vir a ser postulados pelos próprios interessados, o que
deve ocorrer na liquidação da sentença genérica, proferida no processo de
conhecimento (art. 95 e art. 97). Isto não obsta, todavia, a possibilidade de
liquidação pelos legitimados do art. 82, observado o art. 100. É compreensível
que se a liquidação vier a ocorrer por postulação de um dos legitimados pelo art.
82, certamente aspectos peculiares, os quais diferenciariam as situações
pessoais de cada consumidor (vítima ou sucessor), deixarão de ser
especificamente levantados. Nesta hipótese a homogeneidade que existiu
durante a fase do processo de conhecimento, perdurará na de liquidação, ao que
tudo indica.
90
O art. 81, parafo único, inciso III, é correlato ao art. 103, inciso III. Mas, em realidade, o que se disciplina no
art. 103, inciso III, é uma das hipóteses ---- certamente a mais comum e rotineira -----, mesmo porque, neste
último texto se diz, ao depois de disciplinar a coisa julgada, que se trata "na hipótese do inciso III, do parágrafo
único do art. 81". Isto não quer dizer, porém, que outras ações ou pretensões, não possam ser deduzidas, sem
que se refiram a danos, dentro do âmbito do art. 81, parágrafo único, inciso III.
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ORIGENS E FUNDAMENTOS DA
RESTITUTIO IN INTEGRUM NO DIREITO ROMANO 91
FLORI ANTONIO TASCA
PROFESSOR TITULAR DE DIREITO ROMANO E COORDENADOR DO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI – MESTRE EM DIREITO
PRIVADO E DOUTOR EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UFPR ADVOGADO NO PARANÁ
RESUMO – O texto estuda a restitutio in integrum (restituição integral) no Direito
Romano, abordando suas origens e características fundamentais, analisando as
hipóteses de concessão pelos magistrados romanos e explicitando os requisitos
exigidos para tanto. O autor estuda o tema em perspectiva histórica, ressaltando
o desenvolvimento do instituto na República Romana e seu declínio no Império
Romano, além de mencionar qual o sentido atual atribuído pela responsabilidade
civil à expressão restitutio in integrum.
ORIGNS AND GROUND OF THE RESTITUTIO IN INTEGRUM IN THE ROMAN
LAW - ABSTRACT – This text studies the restitutio in integrum (restitution) in the
Roman Law, approaching its origins and fundamental characteristics, analyzing
the concession hypotheses by the Roman magistrates and exposing the
demanded requirements for such. The author studies the theme under a
historical perspective, emphasizing the development of the institute in the Roman
Republic and its decline in the Roman Empire, and also mentions the present
meaning attributed by the civil liability to the expression restitutio in integrum.
INTRODUÇÃO
Sabe-se que os magistrados romanos exerciam diversas funções,
inclusive a jurisdicional, desempenhando relevante papel na solução dos
conflitos de interesse gerados em sociedade, principalmente no sistema
processual per formulas, durante o período republicano.
Além de ordenarem a primeira fase do processo formular (in iure), os
magistrados ainda praticavam, por força do poder do imperium de que estavam
investidos, atos de natureza jurisdicional em caráter extraordinário.
Tais atos tinham a natureza de auxilium extraordinarium, destinando-se
a proteger interesses jurídicos em caráter emergencial, sob condições especiais.
Dos atos de proteção jurídica extra iudicium destacam-se os interditos, as
missiones in possessionem, as estipulações pretorianas e as restitutiones in
integrum.
A presente pesquisa é circunscrita ao estudo da restitutio in integrum
(RII) presente no sistema processual romano como um auxílio extraordinário
91
Trabalho apresentado no Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade Federal do
Paraná, na disciplina Direito Romano, ministrada pelo Prof. Dr. Aloísio Surgik, em 1993.
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prestado por determinados magistrados, em casos específicos.
Assim, procurar-se-á fornecer uma visão global do instituto, determinando-lhe o
conceito, investigando sua provável origem mediante breve análise de textos doutrinários
que se reportam às fontes, acompanhando, enfim, seu desenvolvimento durante as fases
do processo civil romano.
CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA RII
A idéia da RII está intimamente ligada, no direito romano clássico, ao
imperium dos magistrados, em especial do pretor, que, considerando injusto um
ato ou negócio jurídico (mesmo que perfeitamente válido, de acordo com o ius
civile) o declarava inexistente, restabelecendo a situação jurídica anterior ao
acontecimento daquele ato ou negócio.
A doutrina esboça o conceito de RII em múltiplas manifestações,
afirmando José Carlos Moreira Alves (insigne professor e Ministro do Supremo
Tribunal Federal) que “a restituição in integrum era o ato do magistrado pelo qual
ele considerava não realizado negócio jurídico ou formalidade processual, a que
o ius civile reconhecia efeitos jurídicos, por considerar que os efeitos eram
contrários à eqüidade”. 92
Esclarece Moreira Alves que o termo RII significa, precisamente,
reposição na situação anterior, 93 ou seja, o retorno, tanto quanto possível, ao
estado anterior a ato lesivo de direito.
Na mesma trilha, Ebert Chamoun doutrina que “as restitutiones in
integrum eram medidas judiciais concedidas pelo pretor com o fim de destruir os
efeitos civis de um ato jurídico, restabelecendo o estado de direito anterior (in
statu quo ante)”, 94 sustentando Vicenzo Arangio-Ruiz, no mesmo sentido, que “a
in integrum restitutio é uma decisão do magistrado, que reduz a nada um ato
jurídico qualquer, material ou processual”. 95
Humberto Cuenca, em magnífica obra acerca do processo civil romano,
afirma que a RII é um meio processual criado pelo pretor, em virtude de seu
império, visando a sanar os vícios de consentimento nos contratos e proteger as
pessoas que, em função de sua inexperiência, foram lesadas em seu patrimônio,
anulando tudo o que houvera sido convencionado e restituindo as coisas ao seu
estado anterior.96
Como se vê, a RII é derivada do império do pretor, que rescinde
qualquer ato ou negócio jurídico que seja contrário aos elementares princípios da
92
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano, vol. I, 5 ed. Rio de Janeiro : Forense, 1983, p. 293-294.
Idem, p. 289.
CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Rio de Janeiro : Forense, 1951, p. 130.
95
ARANGIO-RUIZ, Vicenzo. Institutiones de derecho romano. Buenos Aires, Argentina : Editorial Depalma,
1952, p. 160.
96
Diz Cuenca : “La restitutio in integrum es um medio processal creado por el pretor en virtud de su imperium
para subsanar los vicios del consentimiento en los contratos y proteger a las personas que a causa de su
inexperiencia hubieram contratado em condiciones lesivas a su patrimonio, anulando todo lo convenido y
restituyendo las cosas al estado que tenian antes de celebrarse el convenio”. CUENCA, Humbero. Proceso
civil romano. Buenos Aires, Argentina : Ediciones Juridicas Europa-América, 1957, p. 351
2
93
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55
eqüidade, no dizer de Giuliano Cervenca. 97
Outro grande jusromanista, Moacyr Lobo da Costa, reportando-se à
lição de Savigny, conceitua a RII como “a reintegração de um anterior estado
jurídico, fundada sobre a contraposição entre a eqüidade e o estrito direito, e
efetuada graças à potestade pretória que modifica cientemente um direito
efetivamente existente”. 98
Assim, a RII, ao lado dos interditos (interdicta), das estipulações
pretorianas (stipulationes praetoriae) e das imissões na possessio (missiones in
possessionem), constitua-se em meio complementar e extraordinário de auxílio
ao pretor, no exercício de sua magistratura.
Em tais casos, segundo a lição de Lobo da Costa, a intervenção do
pretor assumia a natureza de auxilium extraordinarium em prol da parte lesada,
especialmente quando inexistissem outros meios ordinários para impedir as
danosas conseqüências daqueles atos formalmente consagrados pelo ius civile.
“A palavra extraordinarium, esclarece SCIALOJA, deve ser aqui entendida em
duplo sentido : extraordinário é o remédio porque o pretor não se limita a ordenar
o juízo, mas ele próprio assume o conhecimento da controvérsia; extraordinário
é também porque se emprega quando faltem todos os outros meios processuais
ordinários”. 99
A doutrina chega a afirmar que a RII seria o “meio mais extraordinário”
de intervenção do pretor, que restituia as coisas ao seu estado anterior,
anulando uma situação jurídica originada normalmente, segundo os preceitos do
direito tradicional. 100
Diz-se que tal remédio extraordinário teve nascedouro no imperium dos
magistrados romanos (especialmente do pretor no direito romano clássico),
poder esse que tinha conotação nitidamente popular, considerando que os
magistrados romanos eram eleitos pelo “povo” para um mandato certo e
determinado de um ano.
Acerca do conceito jurídico do imperium dos magistrados e seus
desvios políticos destaca-se a lição do notável jurista Aloísio Surgik, que estuda
com clareza e pertinência o desenvolvimento do poder de imperium de que
estavam investidos certos magistrados, demonstrando como o sentido do termo
foi deformado durante o direito romano pós-clássico. 101
Do valioso estudo do professor Surgik, merece destaque o excerto
seguinte: “por paradoxal que possa parecer, e por mais que o vocábulo imperium
nos suscite desde logo a idéia de dominação e autoritarismo, seu verdadeiro
97
Afirma Cervenca : “La restitutio in integrum è un rimedio normalmente concesso dal magistrato in base al suo
imperium, al fine di rescindere gli effetti di un qualsivoglia atto giuridico, sia esso un negozio, ovvero investa il
processo, il quale, pur essendo formalmente valido, sia stato concluso con un concorso di circostanze che
rendono i suoi effetti contrari ai principi dell’aequitas”. CERVENCA, Giuliano. Novissimo digesto italiano, vol.
XV. Verbete ‘restitutio in integrum”. Turim, Itália : Vnione Tipografico-Editrice Torinese, 1968, p. 740 .
98
COSTA, Moacyr Lobo da. A revogação da sentença. Perfil histórico. In: Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, vol. LXXII, 2º fascículo. São Paulo: USP, p. 156 .
99
Idem, ibibem.
100
CORRÊA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano, 6 ed. São Paulo : RT, 1988, p. 89.
101
SURGIK, Aloísio. Lineamentos do processo civil romano. Curitiba : Edições Livro é Cultura, 1990, p. 97113 .
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sentido de origem, na república romana, particularmente no âmbito processual, é
de caráter nitidamente popular. Sua deturpação veio a ocorrer somente com o
advento do principado e, de um modo especial, durante o império”. 102
Não eram, porém, todos os magistrados que poderiam conceder a RII,
senão alguns, conforme salienta Moacyr Lobo da Costa : “por ser um remédio
extraordinário, que se fundava no amplo poder discricionário inerente ao
imperium de que estavam investidos determinados magistrados romanos, como
o Cônsul, o Pretor, o Pró-Cônsul e o Governador das Províncias, seu emprego
não era permitido aos magistrados que não possuiam aquele poder, como os
magistrados municipais.” 103
Assim, tudo indica que a RII só poderia ser concedida por altos
magistrados: no início pelo cônsul ou pelo pretor e no Baixo Império pelos
delegados do príncipe (praefectus urbi), porém jamais por magistrados inferiores
ou provinciais. 104
Disso pode-se concluir que a RII era fundamentada no imperium dos
magistrados, poder recebido e consagrado pelo voto popular, com
características democráticas, ao menos na idade áurea da vida jurídica e política
de Roma, na época clássica, durante a República Romana.
ORIGENS E FONTES DE ESTUDOS DA RII
Não se sabe ao certo onde e como nasceu a RII, sendo que os
romanistas ainda hoje buscam explicar o surgimento de tal remédio
extraordinário, revelando-se controvertida a origem histórica da RII.
Lobo da Costa esclarece que “as origens desse instituto não são bem
conhecidas, divergindo os romanistas quanto à época em que teria surgido, bem
como quanto à sua conceituação como remédio pretoriano, por não ter sido
encontrado qualquer texto ou inscrição que comprove haver sido introduzido em
Roma pelo Pretor, e, também, por não ser de sua exclusiva atribuição,
competindo igualmente a outros magistrados investidos do imperium, como o
Pró-Cônsul e os Governadores nas Províncias”. 105
Alguns reportam-se a textos literários, especialmente algumas
narrações de Tito Lívio, uma comédia de Terêncio e dois discursos de Cícero,
como fontes de pesquisa sobre a origem e a evolução histórica do instituto. 106
De fundamental importância, por constituir-se no primeiro documento
jurídico em que a RII aparece com claras e definidas conotações substanciais e
102
Idem, p. 97 .
COSTA, Moacyr Lobo da. Ob. cit., p. 157.
CUENCA, Humberto. Ob. cit., p. 352.
105
COSTA, Moacyr Lobo da. Ob. cit., p. 157 .
106
Moacyr Lobo da Costa, invocando as lições de Louis Charvet e Manlio Sargenti, quem ressalta que algumas
passagens das narrativas de Tito Lívio revelam que os primeiros casos conhecidos de concessão de RII
ocorreram em províncias, por realização do Pró-Cônsul ou do Governador, e, em Roma, por obra do pretor
peregrino, devendo-se buscar a origem do instituto no efetivo exercício do poder de imperium dos magistrados.
Idem, p. 158.
2
103
104
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formais, é o senatusconsulto de Asclepiade sociisque, do ano 78 a.C., prevendo
hipóteses de RII motivados pela absentia rei publicae causa, sendo seu objeto
recompensar três navegadores gregos (Asclepíade, Polystrato e Menisco) por
seus desempenhos durante a guerra itálica. Entre as vantagens concedidas pelo
Senado, umas eram de caráter honorífico e outras de caráter jurídico, como o
direito de reclamar a RII para desfazer as conseqüências prejudiciais causadas
pela ausência. 107
Em minucioso estudo acerca da origem da RII, sustenta Lobo da Costa
que "entre os textos literários considerados pela generalidade dos autores como
fonte para o conhecimento das origens da RII, a passagem do ato II cena IV,
verso 9, da comédia Phormio de TERÊNCIO é, sem dúvida, das mais
importantes, por oferecer seguro testemunho de que na época da sua primeira
representação (presumivelmente em 161 a.C.) a restitutio já era um meio
largamente usado, sendo bem conhecido o seu fundamento sobre a aequitas em
contraposição ao strictum ius, tanto que podia ser invocada num diálogo teatral
que fosse compreendido pelo público". 108
Quanto à mencionada passagem da peça teatral, a opinião dominante
entre os romanistas atribui ao verso de Terêncio a condição de inequívoco
testemunho de que tal remédio extraordinário, a RII, era conhecida e
amplamente praticado pelos magistrados na segunda metade do século II a.C.
Considera-se a obra de Cícero rica fonte de estudos desse importante
instituto jurídico do direito romano, salientando os autores que em suas orações
(especialmente a segunda contra Verres e a oração Pro Flacco), encontram-se
as mais importantes notícias sobre a existência do auxilium extraordinarium no
direito romano clássico.
"Nessas duas orações Cícero refere o largo emprego das restitutiones
por magistrados romanos nas províncias, como instrumento jurídico fundado no
poder de imperium, em cujas decisões transparece o senso político daquelas
autoridades empenhadas em desfazer os danos resultantes de atos contrários à
eqüidade, para captar a confiança e o apoio dos habitantes das regiões
conquistadas." 109
O estudo das fontes acerca da origem da RII revela o quanto o instituto
foi desenvolvido no direito romano clássico, refletindo de modo cristalino o
imperium de que estavam investidos determinados magistrados romanos, que
recebiam seu poder diretamente do “povo”, pelo voto.
A RII NO DIREITO ROMANO CLÁSSICO
Foi no direito clássico, correspondente ao momento histórico da
República romana, que a RII desenvolveu-se consideravelmente, sendo que o
pretor, ao ser eleito, já trazia em seu edito as causas em favor das quais
concederia o auxilium extraordinarium.
107
108
109
Idem, p. 158-159.
Idem, p. 161 .
Idem, p. 163.
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Segundo Cuenca, no Direito Romano Clássico, a RII podia ser
concedida mediante dois procedimentos: ordinário e extraordinário. 110
Pelo procedimento ordinário, o pretor, com prévio conhecimento da
causa (cognitio causae) e valorando as circunstâncias do caso concreto, entrega
a fórmula ao interessado, para que o juiz decida em conformidade com o sistema
per formulas.
Seria extraordinário se o magistrado, em virtude de seu império,
prescindisse do sistema formulário e tomasse para si mesmo, sem necessidade
da intervenção do juiz popular, todo o estudo e conhecimento do assunto, em
uma só instância. 111
Podia ainda o magistrado negar liminarmente o pedido de RII, desde
que lhe parecesse desnecessária a concessão do auxilium extraordinarium, pois,
como observa Lobo da Costa, a causa cognitio representava para o magistrado
uma reserva do direito de acolher ou não o pedido, constituindo-se em
pressuposto da concessão ou negativa da RII pelo pretor. 112
A causa cognitio na RII está intimamente ligada às atribuições
legislativas do pretor, sendo certo que, nos primeiros tempos, o pretor somente
concedia o auxilium quando entendesse necessário e conveniente.
Entretanto, arrolando em seu edito quais as causas que poderiam
receber o remédio extraordinário, o pretor deveria (necessariamente) conceder o
auxilium, privando-se (em certa medida) do poder de recusar concessão à RII.
Assim, existindo previsão expressa no edito, pela qual o pretor comprometia-se a
cumprir e estando presentes os demais requisitos, o benefício deveria ser
concedido.
Diante de tais considerações, cumpre questionar em quais hipóteses
poderia ser concedido tão importante medida extraordinária no direito romano
clássico.
HIPÓTESES DE CONCESSÃO DA RII
Diversas eram as hipóteses de concessão do remédio extraordinário,
citando Ebert Chamoun os casos de erro (restitutio ob ou propter errorem), o
dolo (ob dolum), a coação (ob metum), a menoridade (ob aetatem) e a capitis
diminutio,113 agregando Moreira Alves a ausência (ob absentiam) e a fraude
contra credores (ob fraudem creditorum). 114
Além dessas causas, havia outras idôneas a legitimar a concessão do
auxilium, desde que a situação fosse de tal forma grave que ferisse os princípios
110
CUENCA, Humberto. Ob. cit., p. 355 .
Idem, ibidem.
A afirmação fundamenta-se em Modestino : "Omnes in integrum restitutiones causa cognita a Praetore
promittuntur; scilicet ut iustitiam earum causarum examinaret, na verae sint, quarum nomine singulis subvenit
(Dig. 4. 1.3) ... A causa cognitio, referida por Modestino, não deve, então, ser entendida no restrito significado
de apreciação discricionária do Pretor, porém no sentido mais amplo de verificação da correspondência ao
caso concreto da abstrata hipótese tipo prevista no Edito". COSTA. Moacyr Lobo da. Ob. cit., p. 180-181 .
113
CHAMOUN, Ebert. Ob. cit., p. 130.
114
ALVES, José Carlos Moreira. Ob. cit., p. 294 .
2
111
112
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da justiça e da eqüidade, mesmo que oriunda de ato jurídico perfeitamente válido
(sob o ponto de vista formal) de acordo com o ius civile tradicional .
O presente estudo não pretende e nem poderia esgotar o assunto, tão
rico em detalhes e de tamanha relevância no áureo período do Direito Romano
Clássico, motivo pelo qual a análise das hipóteses será limitada às principais,
aquelas que mais freqüentemente ocorriam na vida jurídica romana.
RII OB METUM
Quando determinado ato ou negócio jurídico fosse praticado mediante
coação física ou moral, o pretor poderia conceder o auxilium extraordinarium,
pelo qual o ato viciado seria anulado.
Abordando o tema, Vandick Londres da Nóbrega afirma que o metus
era considerado uma figura delitual no direito pretoriano : "o delito qualificado
como metus - violência - consistia em fazer que certa pessoa praticasse um ato
jurídico contra a vontade. A violência podia ser praticada contra a vida, o corpo
ou a liberdade da própria pessoa ou de seus parentes. O pretor considerava que
esses atos, realizados sob o império do metus, não deviam produzir efeito
jurídico". 115
A violência física era chamada vis absoluta ou vis corporales, enquanto
a ameaça ou violência psíquica (moral) era a vis compulsiva, ensejando em
ambos os casos a mesma conseqüência, inevitável em face da eficaz concessão
da RII.
Quando alguém pedisse ao pretor a RII alegando ter praticado
determinado ato ou negócio jurídico mediante violência física ou coação moral, o
magistrado, após certificar-se dos fatos, concedia o remédio extraordinário e
fazia com que as coisas ou as pessoas retornassem ao statu quo ante.
RII OB DOLUM
À semelhança da violência, o dolo também era considerado delito no
direito romano, anotando Londres da Nóbrega que "o dolus malus consistia em
manobras e maquinações com o objetivo de induzir alguém à prática de
determinado ato que lhe causasse prejuízo e que não seria realizado se esse
procedimento não tivesse ocorrido". 116
Assim, o dolo era igualmente motivo para a concessão da RII, sendo
que o pretor, verificando a ocorrência do vício volitivo, rescindia plenamente os
atos eivados, ainda que formalmente válidos consoante às rígidas disposições
do ius civile.
Revela-se aqui a riqueza e o caráter democrático do imperium do
magistrado, a flexibilizar o rigor formal do ius civile tradicional .
115
NÓBREGA, Vandick Londres da. História e sistema do direito privado romano, 2 ed. Rio de Janeiro :
Freitas Bastos, 1959, p. 457.
116
Idem, p. 458.
2
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O PROBLEMA DA PRECEDÊNCIA OU NÃO DAS RII OB METUM E OB
DOLUM ÀS RESPECTIVAS AÇÕES
Além das RII ob metum e ob dolum, havia as correspondentes actio
quod metus causa e actio de dolo malo, que eram exercidas nas mesmas
hipóteses de violência ou dolo.
A circunstância de no edito do pretor estarem conjuntamente previstos
para os casos de dolo ou de medo, tanto a RII quanto as correspondentes
ações, suscitou celeuma entre os romanistas quanto à natureza histórica e
precedência desses meios jurídicos de atuação dos magistrados, especialmente
do pretor.
Questiona-se, então, acerca de qual dos remédios (as RII ou as ações)
foi utilizado antes pelo pretor, acirrando-se o debate sobre o tema, com a divisão
das opiniões em duas grandes correntes doutrinárias.
Para Buchardi e Georges Vidal, 117 as ações precederam as RII em
matéria de violência ou dolo, porém com o tempo o auxilium extraordinarium
passou a ser preferido em razão de seu procedimento mais célere (breve), além
de oferecer vantagem prática ao demandante, que poderia ser restituído ao statu
quo ante ao ato lesivo .
Já Savigny 118 defende a precedência das RII em relação à actio quod
metus causa e actio de dolo malo, argumentando que as RII do direito clássico,
por depender sua concessão quase que unicamente do imperium do magistrado,
era um remédio ainda imperfeito, em fase de desenvolvimento.
"De maior importância foi o fato de que os Pretores em alguns
casos transformaram a restituição, que anteriormente concediam, em ações e
exceções ordinárias, mudando assim a regra, até então incompleta, em uma
norma estável e completa ..." 119
Segundo Lobo da Costa, a segunda opinião, desenvolvida pelo jurista
alemão Savigny, "é a que se reveste de maior verossimilhança", 120 denotando a
constante evolução do direito romano, que a partir de uma experiência prática e
ainda desordenada, dependente do exclusivo imperium do pretor, evolui para a
previsão de ações específicas, dentro do ordenamento, tratando de violência ou
dolo como vícios da vontade.
RII OB FRAUDEM CREDITORUM
A fraude contra credores (fraus creditorum) consistia em qualquer ato
que conduzisse a uma deterioração ou diminuição no patrimônio material de
determinada pessoa, que se reduzia à insolvência em prejuízo de seus credores,
117
Citados por Lobo da Costa. COSTA, Moacyr Lobo da. Ob. cit., p. 183.
Citado por Lobo da Costa. Idem, p. 184.
Idem, ibidem.
120
Idem, p. 187.
2
118
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121
sendo a fraude uma forma delitual para o direito honorário.
Assim, a fraude era um expediente usado pelas pessoas que,
geralmente tendo realizado maus empreendimentos, pretendiam diminuir
voluntariamente o patrimônio, de modo a tornarem-se insolvente, sendo certo
que o recurso à fraude contra credores aumenta a partir do momento no qual a
execução por dívidas deixa de ser pessoal (recaindo diretamente sobre o corpo
do devedor) e passa a ser eminentemente patrimonial.
Para Londres da Nóbrega, a "in integrum restitutio ob fraudem era o
processo usado para rescindir o ato fraudulento, através de uma fórmula fictícia
concedida pelo pretor", 122 que restituía a situação patrimonial do devedor ao
estado anterior ao ato de alienação fraudulenta de seus bens, garantindo então
a execução da dívida, ficando tutelado o direito do credor.
RII OB AETATEM
A RII ob aetatem era concedida pelo magistrado a fim de desconstituir
ato ou negócio jurídico praticado por menor de idade, tendo em vista sua
inexperiência de vida e considerando os efeitos lesivos de tais atos ao
patrimônio e à pessoa do menor.
Segundo informa Cuenca, em determinados casos a restitutio era
concedida para anular atos de tutores ou curadores, desde que prejudiciais ao
patrimônio dos pupilos ou curatelados, revelando-se assim especial proteção a
tais pessoas. 123
RII OB ABSENTIAM
Era concedida para fulminar atos ou negócios jurídicos que tivessem
sido realizados em detrimento de certa pessoa enquanto estava fora dos limites
territoriais de seu domicílio, desde que prestando serviços em favor da República
Romana.
Por isso mesmo, a ausência que qualifica o pedido do auxilium
extraordinarium é a reipublicae causa, como bem observado por Lobo da Costa.
124
Concedia-se o benefício para a anulação de atos e negócios desde que
presentes duas circunstâncias : o prejuízo sofrido pelo ausente em sua situação
patrimonial e a prestação de serviços em favor de Roma, durante o período no
qual o ato ou negócio foi realizado.
RII OB ERROREM
A doutrina é controvertida ao tratar da RII decorrente de erro como
121
NÓBREGA, Vandick Londres da. Ob. cit., p. 459.
Idem, p. 461.
CUENCA, Humberto. Ob. cit., p. 354.
124
COSTA, Moacyr Lobo da. Ob. cit., p. 159.
122
123
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manifestação de vontade, esclarecendo Humberto Cuenca que é difícil justificar
sua existência, apesar de mencionar casos citados por tratadistas, segundo os
quais seria possível, por exemplo, que o demandante que por erro ou omissão
tenha deixado de pedir a inclusão de uma exceção (meio de defesa), pedisse o
benefício extraordinário. 125 - 126
PRAZOS PARA CONCESSÃO DA RII
Segundo a lição de Moreira Alves, "a restitutio in integrum era
concedida se solicitada dentro do prazo de um ano útil, a contar, porém, não da
data da celebração do negócio jurídico ou do cumprimento da formalidade
processual, mas daquela em que fosse possível a solicitação da providência
(assim, por exemplo, quando o menor se tornasse maior; quando o ausente
regressasse; quando o dolo fosse descoberto)", 127 sendo a assertiva
corroborada por Lobo da Costa, ao afirmar que no direito romano clássico as
ações pretorianas, em regra, eram concedidas no prazo de um ano. 128
Com o advento do Império, o Imperador Constantino realiza uma
profunda modificação com relação ao prazo para a concessão da RII, levando
em conta a idade do prejudicado, com o estabelecimento de diferentes prazos
para cada situação. 129
No ano de 531, uma constituição do Imperador Justiniano reunifica os
prazos : "disse o Imperador que, desterrando a supérflua diferença do ano útil da
restituição, mandava que na antiga Roma, como nesta augusta cidade de
Constantinopla, na Itália, como nas demais províncias, se conte unicamente um
quadriênio contínuo a partir do dia em que começava a correr o ano útil, e que
esse tempo seja comum a todos os lugares ..." 130
Assim, com a unificação dos prazos de concessão do auxilium
extraordinarium, os prejudicados poderiam solicitar a RII, no prazo de quatro
anos, comum a todas as hipóteses.
A RII NO SISTEMA EXTRA ORDINEM
Afirma Lobo da Costa que, "nos séculos II e III d.C., no período do
Principado, sob a influência da nova organização judiciária, estabelecida como
suprema autoridade, o auxilium extraordinarium da RII passa por sensíveis
modificações, que vão lentamente descaracterizando o antigo remédio
pretoriano, à medida em que o imperium do Pretor vai sendo absorvido pela
125
CUENCA, Humberto. Ob. cit., p. 354.
A RII ob ou propter errorem é também citada por : CHAMOUN, Ebert. Ob. cit., p. 130
ALVES, José Carlos Moreira. Ob. cit., p. 294.
128
COSTA, Moacyr Lobo da. Ob. cit., p. 188.
129
O prazo passou a ser, para os menores de vinte e cinco anos, de cinco anos, quando a RII fosse
demandada em Roma, ou ainda, no espaço de cem milhas da cidade; e de quatro anos se fosse requerida em
qualquer outra parte do território italiano; e de três anos se pedida em qualquer outra província do Império,
segundo esclarece Lobo da Costa. Idem, p. 188-189.
130
Idem, p. 190.
2
126
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autoridade do Imperador e, depois, pela do magistrado que por nomeação do
Imperador exerce a iurisdictio em Roma, o Praefectus Urbi". 131
Aos poucos o Direito Processual Civil Romano como um todo (incluindo
o auxilium extraordinarium da RII) vai perdendo o caráter popular e democrático
que o marca na fase republicana, dando lugar a uma crescente burocratização e
autoritarismo, características marcantes do Direito Romano Pós-Clássico.
É nesse contexto histórico, por exemplo, que surge o recurso de
apelação, como o meio disponibilizado ao vencido em uma demanda cuja
decisão fora prolatada por um funcionário imperial, de submeter a causa ao
superior julgamento do Imperador, sob a alegação de ser possível a reparação
de eventual injustiça decorrente da sentença proferida.
Como esclarece Lobo da Costa, "durante a República, a decisão do
Pretor, concedendo ou denegando a RII segundo a sua livre discricionaridade,
era insusceptível de modificação, porque se fundava no imperium do
magistrado", mas "no Principado, ao contrário, ao lado do Pretor encontra-se o
Praefectus Urbi, com atividade jurisdicional delegada pelo Imperador, na qual se
compreendia o poder de rever a decisão do Pretor e cujo julgamento, por sua
vez, podia ser reexaminado pelo Imperador mediante o recurso da appellatio". 132
Percebe-se, pois, que o instituto pretoriano é totalmente desfigurado no
direito pós-clássico, perdendo seus contornos democráticos, que se fundavam
no imperium dos magistrados, para dar lugar ao poder imperial, absoluto e
incontestável.
Diante da mudança de perspectiva ideológica do processo civil romano,
revelam-se diferenças entre o instituto da RII no direito clássico e no período
Pós-Clássico, destacando Lobo da Costa que, enquanto na República o pretor
poderia conceder o remédio inaudita altera pars, isto é, sem a oitiva da parte
contrária, no Império se fazia obrigatória a presença da parte contra quem era
solicitada a medida. 133
Transforma-se ainda a RII, em sua própria natureza jurídica, que de
auxilium extraordinarium passa a ser considerada um simples beneficium, 134
havendo uma mudança radical que desvirtua o instituto como remédio
extraordinário, fundamentado no império do magistrado, para submetê-lo ao
regime burocrático do sistema processual romano pós-clássico .
Aliás, o autoritarismo que caracteriza o direito romano pós-clássico, é
muito bem explicado por Aloísio Surgik, quando afirma que, "sob o regime
imperial, à medida que se acentua o poder arbitrário do imperador e se consolida
a organização hierárquica, com a conseqüente multiplicação das mais variadas
funções burocráticas, em cuja máquina se insere também o juiz-magistrado,
131
Idem, p. 191.
Idem, ibidem.
Idem, p. 194.
134
Ocorre no sistema do processo extraordinário (vigente no direito romano pós-clássico) uma crescente
burocratização (processualização) da RII, que, transformada de auxilium para beneficium, passa a ser
considerada uma espécie de "direito subjetivo", fundado sobre uma norma de ius singulare, e destinado a
paralisar o ius civile, que o interessado faz valer em juízo por intermédio de uma contestatio, que é o ato
introdutório do procedimento no sistema da cognitio extra ordinem, como observa Lobo da Costa. Idem, p. 191.
2
132
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subordinado ao imperador e à complexidade dos poderes eclesiásticos, todo o
processo se desfigura, tornando-se em geral prolixo e muito moroso, sujeito a
múltiplos recursos". 135
Em síntese, o que fica claro em relação ao auxilium extraordinarium é
que o Império Romano ofuscou todo o brilho que tinha a antiga RII (de origem
pretoriana) instituto magistralmente desenvolvido na fase republicana,
submetendo-o a ritos processuais complexos, sujeitos a inúmeros recursos,
características inerentes ao declínio do processo civil romano, marcantes no
sistema da cognitio extra ordinem.
O SENTIDO ATUAL DO TERMO RII
Nos dias atuais, ainda pode ser sentida a riqueza e importância do
vetusto instituto da RII, quando afirma-se que a responsabilidade civil deve
buscar recompor “integralmente” o patrimônio da pessoa ofendida pela prática
de um ato danoso, sendo princípio elementar de responsabilidade a indenização
mais completa possível, que visa a restituir o lesado (ao menos quando se fala
em dano patrimonial) ao statu quo ante ao evento lesivo .
Como explica Maria Helena Diniz, "o princípio que domina a
responsabilidade civil, na era contemporânea, é o da restitutio in integrum, ou
seja, a reposição completa da vítima à situação anterior à lesão, por meio de
uma restituição natural, de recurso a uma situação material correspondente ou
de indenização, que represente do modo mais exato possível, o valor do
prejuízo, no momento de seu ressarcimento". 136
A própria etimologia do termo "indenização" (in + damnum) indica o
objetivo fundamental do instituto na atualidade, qual seja, retornar o quanto
possível a situação da vítima ao statu quo ante à ocorrência do dano, anular o
dano : indenizar.
Ademais, a doutrina, há muito, vem se manifestando no sentido da
ampla e efetiva reparação dos danos, renovando o antigo sentido da RII, que se
identifica, hoje, com o princípio da reparação integral, situação observada por
João Casillo, 137 Caio Mário da Silva Pereira, 138 dentre outros notáveis autores,
que se dedicam ao estudo da moderna responsabilidade civil.
CONCLUSÃO
O estudo dos princípios e características da RII na perspectiva do direito
romano, enseja várias conclusões, impondo-se destacar inicialmente o caráter
eminentemente popular e democrático do instituto, ao menos na época do direito
romano clássico, no período histórico da República Romana.
135
SURGIK, Aloísio. Ob. cit., p. 132.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 7. Responsabilidade civil. São Paulo : Saraiva,
1988, p. 07.
137
CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. São Paulo : RT, 1987, p. 53.
138
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III. Rio de Janeiro : Forense, 1990, p. 400.
2
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Os magistrados, na República, eram eleitos pelo povo e exerciam sua
função pública, durante mandato certo e determinado, trabalhando em prol dos
interesses comunitários, revelando-se bastante participativo o exercício da
magistratura, na fase áurea da história do direito romano.
No direito romano clássico, os representantes do povo (magistrados)
concediam o auxilium extraordinarium, sempre, que estivessem diante de
situação, na qual os princípios de justiça e eqüidade fossem afrontados.
Fundada no imperium de que estavam investidos determinados
magistrados, a concessão da RII, no direito clássico, revela-se extremamente
flexível, destacando-se a previsão de algumas hipóteses no edito do pretor, as
quais verificadas ensejariam a concessão do remédio, diante de circunstâncias
fáticas específicas.
Com o advento do Império romano, o instituto é totalmente desvirtuado
(o que de resto ocorre com todo o sistema processual romano), sofrendo um
desvio de perspectiva, no período imperial : gradativamente, afasta-se do ordo
iudiciorum privatorum (vigente no sistema das ações da lei e no sistema
formulário), concentrando-se, cada vez mais, a função jurisdicional, nas mãos de
um único homem: o Imperador .
Como não poderia deixar de ser, a RII também é afetada pela nova
ideologia dominante, passando a jurisdição a ser exercida de modo autoritário e
absoluto, com o controle e a centralização do poder na figura do Príncipe.
Em suma, o instituto é desnaturado por completo, na fase imperial, não
guardando mais semelhança àquele auxilium extraordinarium, que poderia ser
concedido pelo pretor sob determinadas circunstâncias, na época do direito
romano clássico.
Atualmente, retoma-se a expressão RII, mas não exatamente no sentido
original do direito romano, porém identificando-a com o princípio da reparação
integral dos danos, em torno do qual gira a teoria da responsabilidade civil
hodierna.
Sendo princípio elementar da responsabilidade civil a reposição do
patrimônio da vítima ao statu quo ante ao fato lesivo, situação que é referida pelo
termo RII, revela-se aqui, uma vez mais, a perenidade do direito romano e a fértil
inspiração que ainda exerce no direito atual .
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano, vol. I, 5 ed. Rio de Janeiro : Forense, 1983.
ARANGIO-RUIZ, Vicenzo. Institutiones de derecho romano. Buenos Aires, Argentina : Editorial Depalma,
1952.
CASILLO, João. Dano à pessoa e sua indenização. São Paulo : RT, 1987.
CERVENCA, Giuliano. Novissimo digesto italiano, vol. XV. Verbete “restitutio in integrum”. Turim, Itália:
Vnione Tipografico-Editrice Torinese, 1968.
CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. Rio de Janeiro : Forense, 1951.
CORRÊA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano, 6 ed. São Paulo : RT, 1988.
COSTA, Moacyr Lobo da. A revogação da sentença. Perfil histórico. In: Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, vol. LXXII, 2º fascículo. São Paulo: USP.
CUENCA, Humbero. Proceso civil romano. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Juridicas Europa-América,
1957.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 7. Responsabilidade civil. São Paulo : Saraiva,
1988.
NÓBREGA, Vandick Londres da. História e sistema do direito privado romano, 2 ed. Rio de Janeiro : Freitas
Bastos, 1959.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III. Rio de Janeiro : Forense, 1990.
SURGIK, Aloísio. Lineamentos do processo civil romano. Curitiba : Edições Livro é Cultura, 1990.
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A POLÍTICA NA PÓS-MODERNIDADE 139
ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA
PROFESSOR DA DISCIPLINA DIREITO E SOCIEDADE E SOCIOLOGIA DO DIREITO DA UFPR - MESTRE E
DOUTOR EM DIREITO PELA UFPR.
RESUMO – O artigo inicia abordando a política na modernidade, exercida em
um espaço territorial (estatal) delimitado, moldada pelas teorias da soberania do
Estado, destacando o autor, a propósito, o pensamento de Max Weber. Na
seqüência, trata o texto da política na pós-modernidade, cuja principal
característica é a desterritorialização, que se manifesta pela globalização.
Concluindo, o autor analisa em perspectiva crítica as conseqüências negativas
da configuração política engendrada pela pós-modernidade.
POLITICS IN POSTMODERNITY - ABSTRACT - The article starts approaching
politics in modernity, exerted in a delimited territorial space (state), molded by the
theories of sovereignty of the State, and the author, at this moment, highlights
Max Weber’s thoughts. In the sequence, he deals with politics in postmodernity,
whose main characteristic is the deterritorialization, which is manifested through
globalization. To conclude, the author analyzes upon a critical perspective the
negative consequences of the politics configuration produced by postmodernity.
INTRODUÇÃO
Antes de ingressar na abordagem da política na pós-modernidade, 140 é
necessário resgatar como a política manifestava-se na modernidade, a fim de
possibilitar o contraste das duas experiências.
A idéia de política moderna tem como referencial a peculiaridade de ser
desenvolvida dentro de um espaço delimitado territorialmente, ou seja, os limites
do Estado.
Podemos vislumbrar esta peculiaridade, a partir das teorias da
soberania, consubstanciadas na soberania estatal, consoante as teorias de Jean
Bodin e de Thomas Hobbes, na soberania popular, segundo as idéias de John
Locke e Jean-Jacques Rousseau e na soberania nacional, através das teorias de
Sièyes.
Todavia, as teorizações de Max Weber nos propiciarão uma leitura
privilegiada da política, na modernidade 141, a qual encontrava-se identificada
139
Trabalho apresentado no Curso: Pós-Modernidade em Debate: ciência, política, direito e arte, realizado na
Universidade Federal do Paraná de 11 a 15 de setembro de 2000.
140
Sérgio Paulo Rouanet, na obra As razões do iluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 231,
questiona a se a consciência de que algumas pessoas têm da ruptura da modernidade, efetivamente
corresponde a uma ruptura real ao asseverar: “E o pós-moderno? Corresponderia a uma verdadeira ruptura?
Reformulando a pergunta: partindo do princípio de que o pós-moderno se define, em sua acepção mais geral,
por um questionamento da modernidade, no todo ou em parte, podemos dizer que estamos vivendo uma época
de transição para a pós-modernidade?”
141
Neste sentido asseverou Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p. 231, que não há melhor guia para compreender a
modernidade do que W eber, aduzindo ainda que: “Como se sabe, para Weber a modernidade é o produto do
2
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68
com a delimitação territorial do Estado.
Weber identifica como característica do Estado moderno, a dominação
racional, baseada na crença da legalidade das ordenações, fundada em regras
racionalmente criadas, as leis. O Estado moderno seria um Estado racional, em
face da forma racional de gerir o Estado, através de uma administração
racionalmente estabelecida, através da burocracia e de uma concepção racional
da ordem jurídica, definida pelas leis, nas quais a administração deve estar
pautada.
O Estado moderno caracteriza-se através de um meio específico, que é
o exercício do monopólio da coação física legítima. Outra característica é o
território, que estabelece os limites do exercício da coação física. Constitui ainda
característica do Estado moderno a burocracia, os funcionários do Estado, que
pautam as suas atividades através de regras racionais, gerais e abstratas: a lei
emanada do próprio Estado, sendo, portanto, uma atividade impessoal e
vinculada. 142
Assim, para Weber, o Estado é “[...] uma relação de domínio de homens
sobre homens, baseada por meio da coação legítima (é dizer, considerada
legítima)”.
Quanto à questão da política e do Estado, Julien Freund inicia a análise
das teorizações de Weber asseverando que “A política é uma atividade geral do
ser humano, isto é, está em toda a nossa história”. 143 Aduz, ainda que, ao longo
do tempo, ela tomou diversas formas, fundadas em vários princípios e dando
legitimidade a várias instituições. Compreendendo-a assim, não podemos
confundi-la com o Estado, que é apenas uma das suas manifestações
modernas, decorrente do processo de racionalização. “A política é, pois, anterior
ao Estado, mesmo que, em nossos dias, a atividade política tenda a se reduzir a
atividade estatal ou o agrupamento político, que reivindica, com êxito, o
monopólio do constrangimento físico legítimo”. 144
O objetivo principal de Weber não é analisar o desenvolvimento
histórico do Estado, mas, sobretudo, busca compreender o fenômeno político em
geral. Tal escopo se faz necessário, pois o uso legítimo da força pode ocorrer
em outros agrupamentos, que não uma associação política, tais como a
comunidade doméstica, as corporações ou os feudos. “Weber exprime ainda
esta idéia sob outra forma: a unidade política, sempre, constituiu um
agrupamento (Verband) e foi só, em nossos dias, que ela tomou o aspecto de
uma instituição (Anstalt) rígida. É pois, a natureza específica do agrupamento
político que é preciso explicar para se apreender o fenômeno político em
si mesmo”. 145
processo de racionalização que ocorreu no Ocidente, desde o final do século XVIII, e que implicou a
modernização da sociedade e a modernização da cultura”.
142
Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p. 231 sintetiza as características do Estado moderno: “[...] O Estado
moderno se organiza com base num sistema tributário centralizado, num poder militar permanente, no
monopólio da legislação e da violência e principalmente numa administração burocrática racional”.
143
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber, 4. ed., Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987, p. 159.
144
FREUND, Julien. op. cit., p. 159.
145
FREUND, Julien. op. cit., p. 160.
2
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Recordando o que já vimos acerca da categoria dominação, Weber
define o que é associação política dizendo que “Uma associação de dominação
deve chamar-se associação política, quando, e, na medida, em que, sua
existência e a validez de suas ordenações, dentro de um âmbito geográfico
determinado, estejam garantidas, de um modo contínuo, pela ameaça e
aplicação da força física, por parte do seu quadro administrativo”. 146
Weber assevera ainda que “Um dos mais importantes campos da
associação compulsória é o controle das áreas territoriais”. 147
Antes de estabelecer o liame entre a política e o Estado, é importante
elucidar os estudos de Weber no tocante à atividade política.
A atividade política é assim definida por Julien Freund, a partir das
teorizações de Max Weber:
“A atividade política se define, em primeiro lugar, pelo fato de se
desenrolar, no interior do território delimitado. Não é necessário que as
fronteiras sejam fixadas rigorosamente; podem ser variáveis; entretanto,
sem a existência de um território, que particularize o agrupamento, não
se poderia falar em política. Disso decorre a separação característica
entre o interior e o exterior, qualquer que seja a forma da ordem interior
ou a das relações exteriores. Esta separação é inerente ao conceito de
território. Em segundo lugar, os que habitam, no interior das fronteiras
do agrupamento, adotam um comportamento, que se orienta
significativamente, segundo esse território e a comunidade
correspondente, no sentido em que sua atividade se acha condicionada
pela autoridade encarregada da ordem, eventualmente, pelo uso do
constrangimento e a necessidade de defender a sua particularidade. Ao
mesmo tempo, os membros do agrupamento político nele encontram
certo número de oportunidades específicas que oferecem novas
possibilidades à sua atividade em geral. Em terceiro lugar, o meio da
política é a força, eventualmente, a violência. Ela utiliza, por certo, todos
os outros meios para levar, a bom termo, seus empreendimentos,
porém em caso de falência dos outros processos, a força é a ultima
ratio; é o seu meio específico”. 148
Julien Freund analisa as articulações entre a dominação e a atividade
política:
“[...] Decorre destas explicações, que o domínio (Herrschaft) está no
âmago do político, como a atividade, que reivindica para a autoridade
instalada em um território, o direito de domínio, com a possibilidade de
usar, em caso de necessidade, a força ou a violência, quer para manter
a ordem interna e as oportunidades, que dela decorrem, quer para
146
WEBER, Max. Economia y Sociedad, 2 ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 43.
WEBER, Max. The theory of social and economic organization, p. 151-162, apud DREYFUSS, René.
Política, poder, Estado e força: uma leitura de Weber, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1993, p. 67.
148
FREUND, Julien. op. cit., p. 160-161.
2
147
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70
defender a comunidade contra ameaças externas. A atividade política
consiste, em suma, no jogo que tenta, incessantemente, formar,
desenvolver, entravar, deslocar ou perturbar as relações de domínio”.
149
Segundo as teorizações weberianas, até aqui apresentadas, como
podemos observar, a questão da territorialidade é crucial em se tratando de
Estado e da política, dentro da perspectiva moderna. 150
Podemos concluir, que a política na modernidade, estava centrada no
Estado, ou seja, era dentro dos limites territoriais do Estado que a ela se
manifestava.
Antes de abordarmos a política na pós-modernidade, iremos analisar
algumas experiências contemporâneas, que nos permitirão identificar algumas
características da situação pós-moderna.
Segundo Krishan Kumar, a pós-modernidade “[...] apaga as linhas
divisórias entre os diferentes reinos da sociedade – político, econômico, social e
cultural”. 151 Esta manifestação nada tem de sui generis, eis que as teorizações
de Durkheim e Marx 152 no século XIX, já contemplavam a interconexão entre os
diferentes reinos da sociedade.
A pós-modernidade funde os diferentes reinos da sociedade e o faz de
modo peculiar, assim identificado por Kumar:
“[...] Não são negados o pluralismo e a diversidade irredutíveis da
sociedade contemporânea. [...] Esse pluralismo, contudo, não é
organizado e integrado de acordo com qualquer princípio discernível.
Não há, ou pelo menos não há mais, qualquer força controladora e
orientadora que dê à sociedade forma e significado – nem na economia,
como argumentaram os marxistas, nem o corpo político, como
pensaram os liberais, nem mesmo, como insistiram os conservadores,
na história e na tradição. Há simplesmente um fluxo um tanto aleatório,
sem direção, que perpassa todos os setores da sociedade. As fronteiras
entre eles se dissolvem, resultando, contudo, não em uma totalidade
149
FREUND, Julien. op. cit., p. 161.
Julien Freund, op. cit., p. 161-162 é enfático acerca da característica peculiar da política no âmbito do
Estado moderno: “[...] Nem o poderio nem o domínio são peculiares apenas ao político, já que existem outras
circunstâncias ou necessidades (economia, pedagogia), em que o homem é igualmente levado a fazer triunfar
a sua vontade. Tornam-se políticas quando a vontade se orienta significativamente em função de um
agrupamento territorial, com vistas a realizar um fim, que só tem sentido pela existência desse agrupamento.
[...] na base de todo domínio político existe a relação fundamental do mando e da obediência. [...] O mando é,
por sua natureza, fator de organização do agrupamento; em nossos dias, ele se exerce em geral com base em
uma organização fortemente estruturada, graças à presença de uma administração, de um aparelho
permanente de constrangimento de regulamentos racionais, etc., que são como garantias de continuidade da
atividade política. Esta situação, entretanto, é característica apenas do Estado moderno e não da política em
geral, pois existiram agrupamentos políticos sem nenhuma administração instituída e outros em que o serviço
político era prestado por escravos ou por pessoas ligadas pessoalmente ao soberano”.
151
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo
contemporâneo, Rio de Janeiro, Zahar, 1997, p. 113.
152
Marx ligou a superestrutura (a política, a religião e a cultura) à base econômica (infra-estrutura).
2
150
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71
neoprimitivista, mas em uma condição pós-moderna de fragmentação”.
153
Resgatando o que vimos até aqui, constatamos que a pós-modernidade
rompe as fronteiras entre as várias dimensões da vida social, decorrendo um
pluralismo 154, que perpassa todos os setores da sociedade, resultando em
fragmentação. 155
Esta ruptura das fronteiras nos diferentes reinos da sociedade também
se apresentará no âmbito do Estado e na política, uma vez que poderemos
constatar que a condição pós-moderna implica a metamorfose da política, na
medida em que a política da pós-modernidade tem como característica marcante
a desterritorialização.
A manifestação mais eloqüente da desterritorialização encontra-se no
fenômeno da globalização. Anthony Giddens define a globalização “[...] como a
intensificação das relações sociais, em escala mundial, que ligam localidades
distantes, de tal maneira que, os acontecimentos locais são modelados por
eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa”. 156
Observamos que a globalização econômica que vivenciamos é peculiar
pela velocidade, extensão, interconexão da movimentação de mercadorias e
informações ao redor do mundo, nunca antes visto na história. Tais fatores
contribuíram para o aumento da internacionalização do comércio, produzindo um
crescimento gigantesco no comércio mundial, em tal proporção que tornou os
Estados impotentes para controlar os fluxos de capitais, cuja dinâmica rompe ou
ultrapassa as fronteiras estatais, fazendo com que as fronteiras nacionais
começassem a perder sentido. Neste contexto, as empresas transnacionais
tornam-se protagonistas privilegiados no mundo globalizado, em face do poder
por elas detido, fazendo frente ao poder dos Estados. Surge uma nova divisão
internacional do trabalho, a qual contribui para o reforço deste poder, fazendo
com que a produção se dissemine em vários países, tornando obsoletas as
fronteiras dos Estados e reduzindo o seu poder.
153
KUMAR, Krishan. op. cit., p. 113-114.
Agnes Heller e Ferenc Fehér, na obra A condição política pós-moderna, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1998, p. 16, fazem a seguinte leitura do pluralismo presente na pós-modernidade: “A condição
política pós-moderna se baseia ma aceitação de culturas e discursos. O pluralismo (de vários tipos) está
implícito na pós-modernidade como projeto. O colapso da grande narrativa é um convite direto à coabitação
entre várias pequenas narrativas (locais, culturais, étnicas, religiosas, ´ideológicas´) . Essa coexistência, porém,
pode assumir formas extremamente diferentes. Pode aparecer como a completa indiferença relativista das
respectivas culturas umas pelas outras. Pode manifestar-se como a adoração inteiramente falsa ´do outro´(´o
terceiro-mundismo´ dos intelectuais do primeiro mundo). Pode vir acompanhada de total negação, e também
pela revitalização, de proposições universais. O sentido da rejeição total do universalismo se evidencia por si
mesmo. Deve-se observar, porém, que o ´anti-universalismo holístico´ (uma posição altamente contraditória em
seus próprios termos) se combina com outros dois termos negativos: o ´anti-humanismo filosófico´ e um a
interpretação específica da post-histoire, em que este termo significa a negação, e não apenas o fim, da
história. [...]”.
155
Acerca da fragmentação presente na sociedade pós-moderna, aduz Sérgio Paulo Rouanet, op. cit., p. 234:
“Essa é a característica comum de todas as descrições da sociedade pós-moderna: o social como um fervilhar
incontrolável de multiplicidades e particularismos, pouco importando se alguns vêem nisso um fenômeno
negativo, produto de uma tecnociência que programa os homens para serem átomos, ou outros um fenômeno
positivo, sintoma de uma sociedade rebelde a todas as totalizações – ou o terrorismo do conceito, ou o da
polícia”.
156
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, São Paulo, UNESP, 1991, p. 69.
2
154
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72
Octavio Ianni assevera que a desterritorialização tem o condão de fazer
com que a sociedade global ingresse na pós-modernidade:
“À primeira vista, a desterritorialização lança a idéia da sociedade global
no cerne da pós-modernidade. Aí muita coisa muda de figura, desloca-se,
flutua, adquire outro significado, dissolve-se. Ao lançar-se, além dos
territórios, fronteiras, sociedades nacionais, línguas, dialetos, bandeiras,
moedas, hinos, aparatos estatais, regimes políticos, tradições, heróis,
santos, monumentos, ruínas, a sociedade global desterritorializa quase
tudo o que encontra pela frente. E o que se mantém territorializado já não
é mais a mesma coisa, muda de aspecto, adquire outro significado,
desfigura-se. Rompem-se os quadros geográficos e históricos
prevalecentes de espaço e tempo. Emergem outras conotações para que
é singular, particular, universal, em outras mediações. Os quadros
mentais de referência, fortemente enraizados na hipótese da sociedade
nacional, do Estado-Nação, adquirem outras possibilidades de
expressão. Rompem-se os significados dos conceitos, categorias, leis e
interpretações codificados nas noções da sociedade civil, Estado
nacional, povo, cidadão, classe social, grupo étnico, movimento social,
partido político, corrente de opinião pública, diversidades, desigualdades,
antagonismos.
De forma inesperada, o simulacro aparece no lugar da realidade, vida,
formas de ser, viver e sentir, agir, pensar, sonhar e imaginar. O mesmo
processo de desenraizar e desterritorializar produz o fetichismo das
coisas, gentes e idéias, das relações sociais, modos de pensar, imaginar.
Tudo que é social descola-se do tempo e do lugar, conferindo a ilusão de
outro mundo. [...]
É assim que a desterritorialização aparece como um momento essencial
da pós-modernidade, um modo de ser isento de espaços e tempos, no
qual se engendram espaços e tempos inimagináveis. É como se o mundo
se mostrasse povoado de sucedâneos, simulacros, fetiches
autonomizados, reificados, alheios ao cerne das coisas, isentos da
tensão e da aura real”. 157
A metamorfose da política na sociedade
brilhantemente descrita por Sérgio Paulo Rouanet:
pós-moderna
foi
“[...] Enquanto a política moderna tinha como palco o Estado e visava a
conquista e a manutenção do poder estatal, a política pós-moderna tem
como palco a sociedade civil e visa a conquista de objetivos grupais ou
segmentares. Os sujeitos da nova política não são mais os cidadãos, mas
grupos, e seus fins não são mais universais, visando o interesse geral,
mas micrológicos. O citoyen rousseauista,
abstração social sem
157
IANNI, Octavio. A sociedade global, 5. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997, p. 103-105.
2
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73
biografia, pulveriza-se em seus elementos constitutivos e é restituído à
sua particularidade de mulher e judeu, negro e homossexual, e
conseqüentemente a política não é mais a genérica, exercida pelo
cidadão, mas a específica, de quem está inscrito em campos setoriais de
dominação – a dialética homem/mulher, anti-semita, judeu, etnia
dominante/etnias minoritárias.
Assim como não há atores políticos universais – grandes partidos
agregando um leque amplo de interesses e posições -, não há mais um
´poder´ central, localizado no Estado, mas um poder difuso, estendendo
sua rede capilar por toda a sociedade civil – as ´disciplinas´ de Foucault.
Política segmentar, exercida por grupos particulares, política micrológica,
destinada a combater o poder instalado nos interstícios mais
imperceptíveis da vida cotidiana, estamos longe da política moderna, em
que o jogo político se dava através de partidos, segundo os mecanismos
da democracia representativa”. 158
Krishan Kumar faz uma leitura da perspectiva espacial da sociedade
pós-moderna, mostrando a imbricação do global e do local:
“A sociedade pós-moderna associa tipicamente o local e o global. Os
acontecimentos globais – a internacionalização da economia e da cultura
– são refletidos para as sociedades nacionais, minando as estruturas
nacionais e promovendo as locais. A etnicidade recebe um impulso
renovado. Ocorre um
ressurgimento do regionalismo e dos
‘regionalismos periféricos’ - o nacionalismo de pequenas nações
incorporadas à unidades mais amplas, como o Reino Unido, a França, a
Espanha e outros agrupamentos nacionais históricos. ´Pense
globalmente, haja localmente´, o lema da década de 1960, aplica-se a um
bom número de novos movimentos sociais, sobretudo aos movimentos
feminista e ecológico. Uma vinculação semelhante ocorre em alguns dos
novos movimentos de revivência religiosa, tais como o fundamentalismo
protestante e o islâmico”. 159
Como vimos anteriormente, as várias dimensões da vida social (a
política, a economia e a cultura) são influenciadas por acontecimentos que
ocorrem em âmbito global, que implicou uma “[...] renovada importância ao local
e a uma tendência para estimular culturas subnacionais e regionais”. 160
Em decorrência de tais peculiaridades, vamos constatar que a condição
política pós-moderna, na visão de Kumar, pode ser identificada nas seguintes
manifestações:
158
159
160
ROUANET, Sérgio Paulo. op. cit., p. 237.
KUMAR, Krishan. op. cit., p. 132-133.
KUMAR, Krishan. op. cit., p. 132.
2
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“As instituições e práticas típicas da nação-estado são
correspondentemente debilitadas. Os partidos políticos cedem lugar a
´novos movimentos sociais´ baseados em sexo, raça, localização,
sexualidade. As ´identidades coletivas´ de classe e experiência
compartilhadas de trabalho dissolvem-se em formas mais pluralizadas e
específicas. A idéia de uma cultura e de uma identidade nacionais é
atacada em nome de culturas ´minoritárias´ - as culturas de grupos
étnicos, de seitas religiosas e comunidades específicas, baseadas na
idade, sexo e sexualidade. O pós-modernismo destaca sociedades
multiculturais e multiétnicas. Promove a ´política da diferença´. A
identidade não é unitária nem essencial, mais fluída e mutável,
alimentada por fontes múltiplas e assumindo formas múltiplas (não há
distinções tais como ´mulher´ ou ´negro´)”. 161
Agnes Heller e Ferenc Fehér 162 destacam o caráter negativo da
condição política pós-moderna, eis que a política estaria impregnada de
irracionalidade e imprevisibilidade no tocante à questão nacional:
“[...] Mas as políticas baseadas no interesse têm uma excelente
tendência racional: são calculáveis e, como tal, mais ou menos
previsíveis. Nesse sentido, os frutos da condição pós-moderna são
quase inteiramente negativos, na medida em que a política e a
mudança política se tornaram quase inteiramente irracionais e
imprevisíveis. A relativa parcela de nacionalismo, um fator de
racionalidade invariavelmente dúbio, continuou sendo uma constante,
para dizer o mínimo. Essa parcela talvez tenha aumentado. Pior, sua
função mudou. Pois há muita verdade no velho truísmo marxista de que
a ´questão nacional´ foi, até a fundação dos modernos estados nações,
em grande parte, uma questão de classe. Contudo, assim que surgiram
os estados nações, a ênfase ao componente nacional, tão visível na
condição política pós-moderna, intensificou o elemento irracional na
política pós-moderna. O racismo que se acreditava morto depois de
Hitler, tornou-se mais uma vez, uma questão politizada, e isso não está
inteiramente desvinculado do relativismo pós-moderno, que solapou o
sendo de tabu. O ´componente de etnicidade´ da política, que parecia
ter sido varrido pela existência do estado nação, tornou-se mais uma
161
KUMAR, Krishan. op. cit., p. 132.
É importante destacar a leitura que os autores têm da condição política pós-moderna, a qual é apresentada
na op. cit., p. 23: “Será o que chamamos ´condição política pós-moderna´ um novo período da política? Temos
de reiterar o que vimos sugerindo desde o início: a pós-modernidade é em todos os sentidos ´parasítica´ da
modernidade; vive e alimenta-se de duas conquistas e seus dilemas. O que é novo na situação é a inédita
consciência histórica surgida na post-histoire; o sentimento grassante de que vamos ficar sempre no presente
do que jamais fizemos, além de criarmos um distanciamento crítico dele. E quem continua insatisfeito com
apenas esse tanto de distanciamento crítico de nossas perspectivas políticas deve lembrar que a negação
absoluta do presente (inegavelmente mais do que poderia oferecer a pós-modernidade) com toda a
probabilidade acabaria ou em total perda de liberdade ou em total destruição”.
2
162
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75
vez um conflito explosivo”. 163
A fim de que a análise ora realizada não se restrinja a uma mera
descrição da condição política pós-moderna, iremos concluir nossa reflexão
realizando uma breve abordagem crítica das conseqüências negativas da
configuração política engendrada pela pós-modernidade. Para tanto, iremos
contextualizar nossa leitura, a partir do fenômeno da globalização, onde
vislumbramos as manifestações pós-modernas no âmbito da política.
Primeiramente, é importante resgatar o que Octavio Ianni asseverou
que a desterritorialização lança a idéia da sociedade global, no cerne da pósmodernidade. Portanto, a peculiaridade da política na pós-modernidade cinge-se
ao processo de transnacionalização do espaço político, decorrente da
globalização, quando a noção de política perde o seu referencial de
manifestação, num espaço definido territorialmente, transcendendo as fronteiras
do Estado.
No tocante à tendência da globalização, reforçar a importância do local,
entendemos que tal peculiaridade não se manifesta no âmbito da política local.
Vislumbramos que com a globalização, o espaço público está se esvanecendo
na medida, em que, as decisões transcendem o âmbito do Estado, máxime
quando definidas pelas empresas transnacionais e organismos internacionais,
implicando o enfraquecimento do poder local (Estado-nação) e produzindo apatia
política, uma vez que, a participação política dos cidadãos, cada vez mais perde
significância, eis que o indivíduo sente-se distante dos centros decisórios, que se
encontram fora do lugar onde vive.
Vimos, anteriormente, que dentre as manifestações da sociedade
pós-moderna, vamos identificar a fragmentação e o individualismo, os quais
entendemos que causam efeitos nefastos na política. No contexto do mundo
globalizado, os cidadãos acabariam assumindo a condição de consumidores,
ensejando comportamentos egoístas, despertando o individualismo, rompendo
os elos de solidariedade social e de compartilhamento de um destino comum na
sociedade, peculiaridade que poderá resultar na fragmentação progressiva da
sociedade e no perecimento da política. 164
Constataremos ainda na sociedade global, a existência de uma
crescente exclusão social, caracterizada pela precarização das condições de
trabalho, pela disseminação do desemprego crônico, baixos níveis salariais,
perda das garantias sociais dos cidadãos e pela geração de um quadro de
pobreza estrutural, que compromete a participação dos cidadãos nos âmbitos
político e jurídico, eis que os cidadãos não têm garantidas condições mínimas e
dignas de existência para participarem politicamente.
163
HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. op. cit., p. 20.
Agnes Heller e Ferenc Féher, op. cit., p. 23, destacam a prevalência do critério econômico sobre o político
na tomada das decisões: “[...] O aspecto negativo da atual situação refere-se à problemática divisão dos
trabalhadores entre partidos e movimentos. Nas últimas décadas, nas políticas ocidentais, os partidos se
tornaram quase exclusivamente agências econômicas, enquanto se atribuía aos movimentos o papel de forjar
opções políticas. Em conseqüência disso, as eleições se concentram, quase sem exceção, em problemas
econômicos. [...]”.
2
164
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76
Refletir a condição política pós-moderna, constitui uma oportunidade
para pensar o mundo que vivemos, tomando consciência nosso presente e das
estratégias para debelar as vicissitudes do nosso cotidiano. Sem ter a pretensão
de esgotar a temática, as reflexões, aqui apresentadas, visaram instigar o leitor a
participar no debate das questões, ora suscitadas, e de outras que delas
decorrerem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DREYFUSS, René. Política, poder, Estado e força: uma leitura de Weber, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1993.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber, 4. ed., Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, São Paulo, UNESP, 1991.
IANNI, Octavio. A sociedade global, 5. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997.
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo,
Rio de Janeiro, Zahar, 1997.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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O PARADIGMA EMERGENTE E O ENSINO DO DIREITO
NEY JOSÉ DE FREITAS
JUIZ DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 9a REGIÃO - MESTRE EM
DIREITO PELA PUC-PR, DOUTORANDO PELA UFPR - PROFESSOR DE DIREITO
ADMINISTRATIVO (LICENCIADO) DA PUC-PR. PROFESSOR NA ÁREA DE
ESPECIALIZAÇÃO DAS UNIVERSIDADES TUIUTI E DE PONTA GROSSA,
FACULDADE DE DIREITO DA UNIBRASIL E FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA.
RESUMO – O texto inicia tratando dos paradigmas tradicionais da ciência,
geradores de conhecimentos fragmentados e de uma visão mecanicista do
mundo, contrastando com a transformação desses paradigmas a partir do século
XX, gerando ruptura decorrente de descobertas científicas, as quais ensejam
uma nova concepção de ciência, holística, sistêmica. Tais concepções, aplicadas
ao ensino, revelam que a utilização dos paradigmas conservadores oportuniza a
mera reprodução do conhecimento, enquanto os paradigmas emergentes
conduzem à produção de novos conhecimentos. Defende o autor, no âmbito do
ensino jurídico, a necessidade de profundas mudanças nas relações entre
docentes e discentes, com a valorização da pesquisa enquanto instrumento para
um aprendizado holístico.
THE EMERGENT PARADIGM AND THE TEACHING OF LAW - ABSTRACT The text starts treating the traditional paradigms of science, generators of
fragmented knowledge and of a mechanistic vision of the world, and contrasts
them with the transformation of these paradigms from century XX, generating
ruptures as a result from scientific discoveries, which wait for a new conception of
science - holistic, systemic. Such conceptions, applied to education, reveal that
the use of conservative paradigms gives chance to the mere reproduction of
knowledge, while emergent paradigms lead to the production of new knowledge.
The author defends, in the scope of legal education, the necessity of deep
changes concerning the relations between professors and student bodies, with
the valuing of research while instrument for a holistic learning.
INTRODUÇÃO - PARADIGMAS DA CIÊNCIA
Por longo tempo vigorou na
ciência o paradigma newtonianocartesiano, que apresentou como característica fundamental a fragmentação. A
afirmação dessa forma de pensar, o mundo surgiu com Galileu Galilei com a
concepção do denominado método científico (observação dos fenômenos,
experimentação, regularidade matemática), idéia que se acopla com visão de
Descartes, quando no discurso do método - fundamentalmente - preconiza que
é preciso fragmentar para conhecer. Eis aí a origem, sem dúvida, do
pensamento que predominou no mundo até o início do século: concepção
mecanicista do mundo. Fragmentação. Separação completa entre corpo e
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mente. Emoção divorciada, por completo, da razão.
Esta visão do mundo provocou influência em todos os compartimentos
da sociedade. No plano existencial (Cardoso, 1.995, pág. 31)165 a ética
individualista e os valores materiais cimentam a civilização do ter. Em outras
palavras ocorreu um notável progresso no campo da ciência e da técnica, mas,
no campo do sentimento, houve uma paralisação com prejuízos incalculáveis
para o progresso do homem.
Contudo, é preciso admitir, que na vida, nada possui caráter de
definitividade. Tudo é processo. Movimento. Mudança. Alteração. Deste modo,
como não poderia deixar de ser, também, no que atine aos paradigmas da
ciência, ocorreu o mesmo fenômeno. A mudança de paradigma é sempre
precedida de crises. Assim, o paradigma começa a sofrer um movimento erosivo
em suas bases, provocando, por consequência, a sua derrocada. Dito de outra
forma: os seus pilares enfraquecem, na medida exata em que o novo paradigma
começa a surgir. Cabe esclarecer que a mudança de paradigma não é algo
instantâneo, pois, a mudança é sempre traumática, visto que, implica no
rompimento com o passado sem que o futuro esteja, ainda, delineado. Do
mesmo sentir é Kunh (1.996 - pg. 17)166 quando assere que a formação do novo
paradigma ocorre nas entranhas do anterior. E este por sua vez nunca
desaparecerá totalmente. Escrevendo a respeito do tema Pierre Weil167 teve a
oportunidade de dizer que, a crise é uma pré-condição para o aparecimento de
novas teorias. Tem razão, sem dúvida, o notável Professor Weil, pois, da
mesmice não nasce mudança. É imperioso que surja uma comunicação
divergente em desarmonia com o pensamento dominante para que se
estabeleça a contradição, surja a crise e seja possível a mudança.
Surge, então, a ruptura. Segundo Behrens (1.999: 31)168. “A ruptura de
um paradigma decorre da existência de um conjunto de problemas, que os
pressupostos vigentes na ciência, não conseguem solucionar. O começo deste
século foi o momento histórico apropriado para a mudança de paradigma. Tal
mudança ocorreu no campo da biologia, física e química, como não poderia
deixar de ser.
De fato, a ciência atual funda-se num paradigma que surgiu, de certo
modo, com a introdução no campo científico das idéias de Lamark (evolução a
partir de formas primitivas sob a influência do meio). Pensamento este, que foi
retomado e aperfeiçoado por Charles Darwin (a evolução se verifica em
decorrência de mutações que se produzem, seja por forma natural ou por
cruzamento e estabilizam-se por seleção natural). De outra parte, no campo da
física surgiu introduzida por Plank e outros a denominada física quântica (1.900),
demonstrando que o mundo não pode ser decomposto em unidades
elementares, que existem de maneira independente. O que existe, na verdade, é
165
CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. A canção da inteireza. Uma visão holística da educação. São Paulo:
Summus, 1995.
166
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas, 4ª ed, 5. São Paulo: Perspectiva, 1996.
167
BRANDÃO, Denis & CREMA, Roberto. O novo paradigma holístico. São Paulo: Sumus. 1.991.
168
BEHRENS, Marilda Aparecida. O paradigma emergente e a prática pedagógica. 1ª ed, Curitiba:
Champagnat Universitária, 1999.
2
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uma complexa teia de relações entre as várias partes de um todo unificado
(Capra, 1996169). Em suma: a física quântica despreza a fragmentação para
prestigiar o todo. Outro contributo importante foi oferecido por Prigogine por meio
da sua teoria das estruturas dissipativas quando afirma “que em sistemas vivos,
que operam afastados do equilíbrio, os processos irreversíveis desempenham
um papel construtivo e indispensável. A irreversibilidade é o mecanismo que
produz a ordem a partir do caos” (p.152). Não se pode esquecer, de outra
margem, o pensamento de Capra (1.996) quando oferece ao meio científico a
sua concepção de rede, no livro A teia da vida, com uma nova compreensão dos
sistemas vivos, rejeitando a visão fragmentária do mundo e afirmando que a
natureza do todo é sempre diferente da mera soma das suas partes. Ou seja: o
todo está em cada uma das partes como afirma Cardoso170.
Este o quadro.
Prevalece, hoje, uma visão do mundo de índole holística ou sistêmica.
Abandona-se, por completo, a idéia de fragmentação. Prepondera a perspectiva
global, sistêmica, como uma nova forma de compreensão da vida.
PARADIGMAS CONSERVADORES
CONHECIMENTO
E
A
REPRODUÇÃO
DO
A educação faz parte da dimensão humana. Nesta linha de princípio,
cumpre investigar qual a influência de um paradigma conservador no campo da
educação. Fundamentalmente, no âmbito de um paradigma conservador
privilegia-se, sem dúvida, a reprodução do conhecimento. Meras repetições.
Esquemas pré-moldados, onde o professor é o único detentor do conhecimento,
oferecendo tal dádiva ao aluno, que a recebe de forma pronta e acabada, sem
qualquer participação de sua parte, aceitando silente a sua condição de ser
receptivo e passivo, tão só. Leia, escute, decore e repita é a síntese do método
utilizado. Na avaliação predominam perguntas pré-determinadas, que recebem
respostas prontas. Refiro, ligeiramente, que o paradigma escolanovista
representou sensível avanço. Contudo, tal experiência não foi utilizada de modo
amplo por deficiência estrutural do sistema escolar vigente. De outro lado, o
modelo tecnicista preocupou-se, sempre, apenas, em atender ao mercado,
tornando-se, ao meu ver, uma forma unilateral de observar o fenômeno da
educação, não procurando, assim, aliar a competência técnica à competência
política.
PARADIGMAS EMERGENTE E A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
A mudança de paradigma no campo da ciência, como antes
demonstrado, provoca a necessidade de uma nova perspectiva, no campo da
educação. A reprodução do conhecimento há de ceder espaço para a
169
CAPRA, Fritjaof. A teia da vida. Uma nova concepção científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix,
1996.
170
Ob Cit 1 p. 49.
2
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80
denominada produção do conhecimento, o que é coisa completamente diferente.
A respeito, Berhrens171 adverte. Para alicerçar uma prática pedagógica
compatível com as mudanças paradigmáticas da ciência, o Paradigma
Emergente, segundo a autora, deve constituir uma aliança, formando uma
verdadeira teia com a visão sistêmica ou holística, com a abordagem
progressista e com o ensino com pesquisa. Essa aliança se justifica e se torna
necessária em função das características de cada abordagem.
A visão sistêmica ou holística foge da fragmentação do conhecimento,
para prestigiar sempre a visão do todo, observando o homem como um
complexo ou seja em suas inteligências múltiplas. Em suma: o homem total.
A abordagem progressista está ligada, intimamente, com o aspecto da
transformação social. Há, neste caso, um entroncamento entre o individual e o
social. Incita ao diálogo, a discussão e o trabalho coletivo, às parcerias e
participação crítica e reflexiva de alunos e professores.
E por fim, o ensino com pesquisa, tem em conta professores e alunos
como pesquisadores e produtores do seu próprio conhecimento. Não apenas
pesquisar para repetir. Mas, acima de tudo, desenvolver a pesquisa como
maneira correta de formação de um substratum para a elaboração de futura
produção própria.
O ENSINO DO DIREITO E O PARADIGMA EMERGENTE
O último tópico do presente trabalho cuida do ensino do direito em relação ao
paradigma emergente.
Assunto difícil. A minha experiência, de mais de 20 anos, lidando com o direito, como
professor, advogado e magistrado, autorizam-me a dizer: o profissional do direito é altamente
conservador. Extremamente formal. Obediente a rígida hierarquia. Avesso - por demais - à
mudanças, que impliquem em alteração na sua conduta profissional. Por este motivo toda e qualquer
mudança causa, de logo, profunda urticária no profissional ligado ao exercício do direito.
Não me parece, assim, tarefa fácil, a mudança de paradigma, no ensino do direito.
Todavia, como tudo na vida caminha para a frente (não obstante alguns aparentes retrocessos), pois,
o homem carrega em sua intimidade a fatalidade da evolução, penso que o direito, também, será
conduzido pelos mesmos ventos que deverão embalar a educação de modo geral.
Pois bem, o ensino para a produção do conhecimento enseja como visto
anteriormente, uma visão holística, uma abordagem progressista e o ensino com
pesquisa.
Como enquadrar o ensino do direito, no esquema teórico, acima explicitado.
A VISÃO HOLÍSTICA
A visão holística pretende recuperar uma perspectiva do todo. Afirma
Behrens172 que o grande desafio da visão holística é a superação do saber
171
172
Ob Cit 4 p. 60.
Ob cit 4 p. 63/64.
2
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fragmentado, que foi dividido na escola em disciplinas isoladas. No ensino do
direito, não poderia ser diferente. Porém, a ciência do direito é una. Não pode
ser compartimentada, sob pena de grave desvio de perspectiva em relação ao
todo.
É impossivel estudar o fenômeno jurídico por meio do exame de ramos
isolados ou de institutos desconectados do sistema. Vale dizer: aqui como nas
demais ciências, as propriedades das partes somente podem ser compreendidas
a partir da organização do todo. Assim, o ensino do direito deve incorporar esta
forma de pensamento restabelecendo a visão de todo. Neste contexto o
professor é extremamente significativo. Horácio Wanderlei Rodrigues173 (1996), a
respeito do docente atual, teve a oportunidade de dizer: um poço de narcisismo,
egocentrismo e auto-suficiência. Esta parece ser, em muitos casos, a postura do
professor de Direito. Postura que gera uma relação autoritária e vertical __ um
“verdadeiro monólogo”. Este tipo de professor não terá mais espaço de atuação
no modelo de ensino que se aproxima. Ou se modifica ou desaparece para
sempre. Em suma: o professor na visão sistêmica precisa recuperar no aluno
valores perdidos e assim segundo Cardoso,174 “educar significa utilizar práticas
pedagógicas com integração intercultural e a visão interplanetária das coisas, em
nome da paz e da unidade do mundo”. De outro lado, nesta forma de ver o
mundo, o aluno deve ser compreendido como um ser complexo, mas, de outra
parte, dotado de individualidade, que precisa ser respeitada. Ou seja: o aluno
como ser humano, é dotado de uma realidade espiritual, que o diferencia de
todos os demais. Como diz Behrens175. “ O aluno precisa ser considerado em
suas inteligências múltiplas e pelos dois lados do cérebro“. No que atine ao
método, o que se busca, e uma prática pedagógica crítica, produtiva, reflexiva e
transformadora. Nada disto acontece no ensino do direito. Pelo contrário, o
conhecimento escorre do professor sem qualquer participação do aluno e, via de
conseqüência, sem qualquer conduta crítica de parte deste. São as
conhecidíssimas aulas magistrais, onde o, docente exerce (crivado de vaidade
os seu dotes de expositor, de profundo conhecedor da matéria, totalmente
despreocupado com o aprendizado de parte do aluno). Por fim, na visão
holística, a avaliação tem como alvo, fundamentalmente, o crescimento gradativo
do aluno. Na verdade, a avaliação, é resultado de um processo, que não tem e
nem pode ter conteúdo punitivo como acontece, não raro, onde o professor
exerce, quando contrariado, uma certa forma de vingança contra seus alunos.
O PARADIGMA PROGRESSISTA
O paradigma progressista está conectado com uma procura de
transformação social. Assim, o ensino deve proporcionar uma prática
pedagógica crítica, reflexiva e transformadora.
173
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Ensino Jurídico para que (m)? Tópicos para análise e reflexão. In OAB
Ensino Jurídico -Diagnóstico - Perspectivas – Propostas. 2ª ed. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996.
174
Ob cit 1 p. 53.
175
Ob cit 4 p. 72.
2
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82
Nesta perspectiva, a escola deve ser um ambiente, onde seja possível o
exercício constante de uma atividade libertadora, democrática, diarógica e
crítica. A escola de direito sempre foi avessa a estas proposições. É bem
verdade que o ensino no Brasil, em sua totalidade, serviu ao regime do momento
e ao ditador de plantão. Não havia, assim, prática democrática. O ensino deveria
refletir as linhas mestras do regime político imposto. Assim, como o regime era
autoritário, o ensino não poderia ser diferente. Enraizou-se, portanto, no ensino
do direito, uma prática pedagógica autoritária, não cedendo espaço para o
diálogo, para a crítica, ofuscando, de outra parte, a possibilidade de uma ação
libertadora e democrática. Este pano de fundo gerou uma visão individualista do
mundo que contamina, de modo profundo, a todos, que lidam com fenômeno
jurídico.
Passo a examinar, agora, o papel do professor, do aluno e a
metodologia numa perspectiva progressista.
O professor como sujeito do processo estabelece uma relação
horizontal com os alunos e busca, sempre, o diálogo, repelindo toda forma de
repressão no processo e possibilitando a vivência grupal. No ensino do direito,
nada disto acontece, lamentavelmente. O docente cria uma relação verticalizada
(tanto isto é certo que determinadas escolas mantém o tradicional estrado para
materializar a situação de inferioridade em que se encontra o discente), vendo o
aluno como alguém que suplica a dádiva de receber o conhecimento que
somente ele (o professor) detém.
De outra parte, o diálogo somente existe quando o aluno concorda com
a lição recebida do professor, como se isto não fosse, na verdade, uma forma de
monólogo disfarçado. A verdade é que inexiste aula dialógica. E dizer: o
professor de direito não estabelece qualquer aliança com o aluno, na busca de
uma convivência participativa, geradora de crescimento para todos os envolvidos
no processo de aprendizagem. Desgraçadamente, na atualidade o aluno é
objeto e somente o professor é sujeito na relação de aprendizagem.
Esquecemos, todos, de uma premissa fundamental: o aprendizado é via de mão
dupla. Sem aluno não há professor, e, aluno ausente, amorfo, não participativo,
desinteressado, não é aluno, mas, mero expectador de alguém que apresenta o
seu texto, corretamente decorado, recebe os aplausos e vai embora, deixando
um imenso vazio no objeto que permanece na sala de aprendizado.
O aluno na abordagem progressista, é participante efetivo do processo
educativo. Confesso que prefiro a expressão aprendiz, pois, me parece mais
significativa do que aluno. Aprendiz é aquele que está ligado, de modo
indissociável, ao ato de aprender. E no aprendiz que o processo de
aprendizagem está centrado. Aqui, também, o ensino do direito está em elevado
débito com a sociedade. O aluno (uso a expressão, apenas, porque consagrada)
é objeto. Diria mais. Em alguns casos é considerado coisa, mero elemento
contábil, objeto de uma relação de mercancia de parte das instituições de ensino
particular. De qualquer forma, no aspecto pedagógico, a desejada relação
dialógica e amorosa na saborosa expressão de Freire está longe de acontecer
no âmbito do ensino do direito.
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O método no ensino do direito, de sua parte, encontra-se totalmente
superado. Neste sentido a Comissão de Ciência e Ensino Jurídico da (OAB
1.996-11)176 afirma que existe uma preocupação com a substituição do
verbalismo, numa recuperação metodológica, capaz de resgatar a “importância
de se ensinar o aluno a pensar”. Em outro trecho, a mesma comissão conclui
que os currículos jurídicos são exageradamente normativos, permitindo a
transmissão de um conhecimento genérico, dogmático e pouco dirigido para a
solução de problemas, sendo carentes, de outra parte, de uma visão de
interdisciplinariedade. De fato, é preciso admitir, delogo, que o ensino do direito
encontra-se divorciado da realidade social. Impera um positivismo de superfície
na feliz expressão de Fábío Comparato (citado por Walter Claudius
Rothenburg177). Cumpre salientar, no particular, o que consta do Parecer de
1.981, aprovado no Instituto dos Advogados Brasileiros quando afirma que o
aluno deve ser capaz, não apenas de reproduzir o conhecimento por meio de
suas ações ou ensinamento a terceiro, mas, especialmente, de produzir novos
conhecimentos. Esta conclusão se afina com a abordagem progressista, pois,
esta visa a produção do conhecimento e provoca a reflexão crítica na e para a
ação (Behrens, p. 84). Ao que parece, pelo menos, a OAB mantém constante
preocupação com o ensino do direito. Algumas universidades, entre as quais a
PUC do Paraná, começam a despertar para a nova realidade. Tal
despertamento, contudo, deve contaminar toda a educação do Brasil para que
surja uma nova mentalidade, com real progresso, para o povo, no que atine ao
direito constitucionalmente assegurado à educação e à cultura.
A avaliação na abordagem progressista é contínua, processual e
transformadora. No ensino do direito, a avaliação não é contínua, muito menos
processual e transformadora. Prevalece, ainda, o velho e perverso sistema de
provas bimestrais. Não há caráter de processualidade e nem timbre de
transformação. Ao meu sentir, a avaliação, no ensino do direito, é mera
imposição da escola e dever do qual o professor procura se livrar com a maior
rapidez possível, sem qualquer preocupação com o aspecto relativo à
aprendizagem do aluno. É imperativo uma reformulação imediata dos métodos
de avaliação, pois, como utilizados nada significam. Nada avaliam. Apenas
servem como uma forma de jogo onde o aluno devolve para o professor aquilo
que decorou.
PARADIGMA DO ENSINO COM PESQUISA
Por fim, cumpre examinar o paradigma do ensino com pesquisa. O
ensino com pesquisa impõe o desafio de domar a informação, submetendo-a a um
processo interpretativo e a partir deste dado, produzir novas informações. Em
estudo antes citado, a Comissão de Ciência e Ensino Jurídico da OAB teve a
oportunidade de esclarecer que não se pesquisa nos cursos de Direito, repete-se.
Não se pratica nos cursos jurídicos, comenta-se. Daí a necessidade de um
176
177
Ob cit 9.
Princípios Constitucionais. Fabris. 1.999. p. 14
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aprofundamento dos estudos dogmáticos, do desenvolvimento da pesquisa
jurídica, da introdução do tratamento interdisciplinar dos conceitos jurídicos e de
uma contextualização dos estudos da dogmática jurídica (p. 27).
Neste contexto, o professor deve ser o orquestrador da construção do
conhecimento. No ensino do direito prevalece, ainda, a figura do professor
conservador: dono do conhecimento. Não há qualquer participação do aluno do
projeto pedagógico do professor (se é que ele existe). Pelo contrário. O programa
é confeccionado pelo professor e imposto, unilateralmente, ao aluno que somente
possui uma alternativa, ou seja, aceitar, pacientemente, o conteúdo oferecido,
como algo acabado, sem qualquer possibilidade de nele interferir.
No que se refere ao aluno, altera-se por completo sua situação, pois,
abandona a sua condição de objeto para se tornar sujeito do processo
educacionar e não mero expectador. A respeito do assunto, escreveu Pedro
Demo178 (1.994:54/55): É fundamental que os alunos escrevam, redijam, coloquem
no papel o que querem dizer e fazer, sobretudo que alcancem a capacidade de
formular... Formular, elaborar são termos essenciais da formação do sujeito,
porque significam propriamente a competência, à medida que se supera a
recepção passiva do conhecimento, passando a participar como sujeito capaz de
propor e contrapor. Aprende a duvidar, a perguntar, a querer saber sempre mais e
melhor. A partir daí, surge o desafio da elaboração própria, através da qual, o
sujeito que desperta, começa a ganhar forma, expressão, contorno, perfil. Deixase para trás a condição de objeto (p. 28 e 29).
A metodologia tem como objetivo a produção do conhecimento Pesquisa,
contudo, não é mera cópia. Vale dizer: o ensino com pesquisa pressupõe a
capacidade do aluno em aprisionar o conteúdo do material pesquisado,
submetendo-o a uma análise crítica e reflexiva para gerar, posteriormente, a
produção de um trabalho próprio. No ensino do direito o aluno - na condição de
objeto - é mero copiador de textos, sem nenhum proveito, pois, alcançado o
objetivo da pesquisa (geralmente a atribuição de nota) nada resta, nada fica, e o
aluno encontra-se vazio, exatamente, como estava antes de iniciar a pesquisa.
Acredito que é o momento de mudar para melhor. A afirmação de novos
paradigmas representa, sem dúvida, esperança. Como diz Warat179 aprender
direito é ser criativo, aberto ao novo e predisposto à solidariedade. O resto é crise.
A CONSTITUIÇÃO COMO SISTEMA DE PRINCÍPIOS E NORMAS
178
DEMO, Pedro. Pesquisa e construção do conhecimento. Metodologia científica no caminho de Habermas.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994, b.
179
WARAT, Luis Alberto. Comissões Pedagógicas diante da crise do Ensino Jurídico, in ob. cit. 9.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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CARLOS ALBERTO BAPTISTA
PROFESSOR DO CURSO DE DIREITO DA UEPG - PROMOTOR DE JUSTIÇA
TITULAR DA VARA DE INFÂNCIA E JUVENTUDE NA COMARCA DE PONTA GROSSA
- ESPECIALISTA EM DIREITO PELO IBEJ - MESTRANDO EM DIREITO PELA PUCPR.
RESUMO – O texto trata da Constituição como um sistema de princípios e
normas que sustenta a ordem jurídica nacional, destacando o papel da vigente
Constituição Federal como instrumento de reconstrução do arcabouço jurídico
brasileiro. O autor aborda temas importantes para a Ciência do Direito, como o
conceito de sistema, aplicando-o à Constituição, considerada um sistema
integrado de princípios e normas, cada qual com características (espécies,
funções) próprias. O artigo ressalta a importância da Constituição no
ordenamento jurídico nacional, assegurando direitos fundamentais, servindo
como meio de interpretação e integração do sistema, ditando diretrizes à
legislação infraconstitucional.
THE CONSTITUTION AS A SYSTEM OF PRINCIPLES AND RULES –
ABSTRACT - The text deals with the Constitution as a system of principles and
rules which supports the national legal system, and emphasizes the role of the
Federal Constitution in force as an instrument of reconstruction of the Brazilian
legal framework. The author approaches important subjects for the Science of
Law, such as the concept of system, applying it to the Constitution, considered an
integrated system of principles and rules, each one with its proper characteristics
(species, functions). The article points out the importance of the Constitution in
the national legal system, assuring basic rights, serving as a means of
interpretation and integration of the system, dictating policies to the
infraconstitutional legislation.
INTRODUÇÃO
O presente estudo objetiva, embora resumidamente, tratar do texto
constitucional sob o enfoque de sua sistemática de princípios e normas a
orientar todo o ordenamento jurídico infraconstitucional. Tal adquire maior
importância máxime, após a edição da Constituição de 1988, como verdadeiro
instrumento de reconstrução paradigmática do arcabouço jurídico nacional. É
cada vez maior o direcionamento doutrinário e jurisprudencial em relação à
utilização dos princípios como veículo dimensionador da compreensão e da
aplicação do direito.
Vivenciamos, hodiernamente, uma complexidade e multiplicidade
recrudescente das relações, em suas mais variadas formas (sociais,
econômicas, políticas, familiares, educacionais, patrimoniais, etc.), que acarreta
como conseqüência, um aumento das situações conflituosas para as quais não
encontramos remédio jurídico na legislação ordinária, impondo a necessidade de
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re-visitação ao texto constitucional buscando resposta no seu sistema de
princípios e normas.
Tal observância é fundamental, na medida da implantação, e
consolidação normativo-constitucional do Estado de Direito Democrático, no país
decorrente do texto em vigor. Advém disto, portanto, a importância de
visualização, entendimento e fixação da Constituição como sistema de princípios
e normas a orientar a sua aplicação redirecionando a legislação ordinária para o
atendimento de suas finalidades nas soluções dos conflitos promovendo o bemestar e distribuindo justiça.
A IDÉIA DE SISTEMA NO DIREITO
Para iniciarmos o presente estudo necessário se faz a tratamento do
que seja o conceito de sistema no direito.
Eis o seu conteúdo lexical :
SISTEMA. Conjunto de partes coordenadas entre si, formando um
corpo de doutrina ou síntese científica; doutrina; combinação de partes de
maneira que concorram para determinado fim; modo de coordenar as noções
particulares de uma arte, ciência, etc.; conjunto de princípios, de leis, de regras
que regulam certa ordem de fenômenos.180
No entanto, seu significado, abrangência e resultados na seara do
Direito são mais significativos.
Para Tércio Sampaio Ferraz Jr., “entendemos por sistema um conjunto
de objetos e seus atributos (repertório do sistema), mais as relações entre eles,
conforme certas regras (estrutura do sistema)”.181 No entanto, a este repertório e
estrutura podemos acrescentar outras características, com as quais concorda
Eros Roberto Grau. 182
Os sistemas possuem como características presentes a unidade – como
fator que não permite a dispersão na multitude de singularidades desconexas
reconduzindo-as a alguns princípios fundamentais - e a ordem –
consubstanciada na situação de coerência que não permite conflitos e, embora
possam existir, o próprio sistema fornece instrumentos para solucioná-los.
Bobbio, ao tratar da unidade referente ao ordenamento jurídico, traz, à
baila, as concepções jusnaturalistas e juspositivistas nos seguintes termos :
Segundo os jusnaturalistas, portanto, o direito constitui um sistema
unitário, porque todas suas normas podem ser deduzidas por um
procedimento lógico, uma da outra, até que se chegue a uma norma
totalmente geral, que é a base de todo o sistema e que constitui um
postulado moral auto-evidente (para Hobbes tal norma diz pax est
180
Grande dicionário enciclopédico Rideel, São Paulo: Editora Rideel, 1980, vol. 9, p. 2470.
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação
normativa. 2. ed., Rio de Janeiro : Forense, 1986, p. 140.
182
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo : Malheiros Editores, 1996, p.
19.
2
181
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quaerenda; para Santo Tomás diz: bonum est quaerendum, male
vitandum; para Pufendorf, essa norma prescreve a busca da felicidade;
para Kant ela exige a garantia da liberdade do homem...). Já segundo
os juspositivistas, ao contrário, o direito constitui uma unidade num
outro sentido: não porque as suas normas possam ser deduzidas
logicamente uma da outra, mas porque elas todas são postas (direta ou
indiretamente, isto é, mediante delegação à autoridades subordinadas)
pela mesma autoridade, podendo assim todas serem reconduzidas à
mesma fonte originária, constituída pelo poder legitimado para criar o
direito. 183
Quanto à coerência do ordenamento jurídico, o mesmo autor assim preleciona :
O princípio, sustentado pelo positivismo jurídico, da coerência do
ordenamento jurídico, consiste em negar que nele possa haver
antinomias, isto é, normas incompatíveis entre si. Tal princípio é
garantido por uma norma, implícita em todo o ordenamento, segundo a
qual, duas normas incompatíveis (ou antinômicas) não podem ser
ambas válidas, mas somente uma delas pode (mas não
necessariamente deve) fazer parte do referido ordenamento; ou, dito de
outra forma, a compatibilidade de uma norma com seu ordenamento
(isto é, com todas as outras normas) é condição necessária para sua
validade.184
Àquelas características poderíamos incluir como seu elemento
conceitual, também a hierarquia no sentido de dependência e dedutibilidade
lógica.185
Assim, podemos dizer que o sistema é a reunião de várias partes, que
formam um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas
explicam as primeiras. As que dão razão às outras se chamam princípios.
Para Bobbio a acepção de “sistema” é :
Entendemos por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, um conjunto de
entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma
ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em
relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência
entre si. 186
A noção de sistema, no Direito, é de significativa importância, na ciência
jurídica moderna, no tratamento de validade da normatividade existente; na
facilitação da aplicabilidade dos princípios, conceitos e regras gerais; como na
própria hermenêutica, inclusive constitucional, donde surgiu a interpretação
183
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, lições de filosofia do direito. São Paulo : Ícone, 1995, p. 199200.
184
Ob. cit., p. 203.
185
AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no Direito Civil brasileiro. Revista de Informação
Legislativa. Brasília : a. 31, n. 121, p.236, jan../mar. 1994.
186
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6. ed.. Brasília : EdUnB, 1995.
2
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sistemática. Tudo isto propicia condições a uma melhor segurança jurídica, a
uma previsibilidade dos efeitos jurídicos e a uma garantia da unidade interior do
direito.
Para Paulo Bonavides, a noção de sistema no direito possui fecunda
aplicação no âmbito da hermenêutica constitucional, permitindo o
estabelecimento no regime político da sede dos valores consubstanciados nos
princípios constitucionais, valores estes que inspiram os direitos fundamentais,
bem como as normas constitucionais de organização e competência.187
Francisco Amaral, após asseverar a existência de vários conceitos de
sistema, considera impróprios aqueles que não exprimam a ordem – no sentido
de compatibilidade lógica de seus elementos -e a unidade – no sentido de
referência a um ponto central -, entre eles o sistema externo, o sistema
axiomático-dedutivo, todos aqueles que externem apenas categorias puramente
formais, como os de Stammler, Kelsen e Nawiasky e o sistema lógico-formal da
jurisprudência dos conceitos.188
Assim, e para concluir de forma abreviada, embora a complexidade da
teoria sistêmica, por não ser o objeto do presente estudo, verifica-se que a idéia
de sistema, no direito, adquire significativo papel, pois a completude do direito
positivo brasileiro decorre da existência de um conjunto de fatores, que se
interligam por características comuns, próprio daquele.
SISTEMA DE PRINCÍPIOS E NORMAS
Gomes Canotilho, entendendo da necessidade de estabelecimento de
bases para a compreensão dogmática do direito constitucional, procura analisar
o sistema jurídico do Estado de direito democrático português como um sistema
normativo aberto de regras e princípios, evidenciando assim a importância
destes dois institutos jurídicos para o estudo do direito e sua co-existência para a
completude do sistema.
Decodificando tal assertiva, preleciona o autor lusitano : a) é um sistema
jurídico porque, como atrás se referiu, (cfr., supra, Parte I, cap. 2.º) é um sistema
dinâmico de normas; b) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica,
(Caliess) traduzida na disponibilidade e “capacidade de aprendizagem” das
normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem
abertas às concepções cambiantes da “verdade” e da “justiça”; c) é um sistema
normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores,
programas, funções e pessoas, é feita através de normas; d) é um sistema de
regras e princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a
forma de princípios como sob a forma de regras. 189
Verifica-se, portanto, a necessidade de co-existência no sistema
constitucional dos princípios e normas. Existentes somente aqueles, teríamos
uma situação de insegurança jurídica; existentes somente estas, teríamos uma
187
188
189
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1988, p. 120.
Ob. cit., 236-237
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra : Livraria Almedina,, 1993, p.165.
2
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situação de “engessamento” jurídico.
Ainda citando o mesmo autor :
Um modelo ou sistema constituído
exclusivamente por regras
conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática.
Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do
mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os
resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ía um “sistema de
segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a
complementação e desenvolvimento de um sistema, como o
constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro
lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos
conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses,
de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma
organização política monodimensional (Zagrebelsky).
O modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios (Alexy:
Prinzipien-Modell des Rechtssystems) levar-nos-ía a conseqüências
também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras
precisas, a coexistência de princípios conflitantes, a dependência do
“possível” fático e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de
segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a
complexidade do próprio sistema.190
Manifesta-se, desta maneira, o Direito, inclusive o constitucional, num
conjunto sistêmico de princípios e normas, consubstanciados em regras e
valores, que devem ser observados pelo ordenamento infraconstitucional,
operacionalizados através de procedimentos e processos, que proporcionam
condições de solucionar-se
problemas advindos, inclusive, de situações
conflituosas geradas entre direitos fundamentais.
Para Canotilho, esta perspectiva teorético-jurídica, do sistema
constitucional, como “sistema processual de regras e princípios”, permite
respirar, legitimar, enraizar e caminhar o próprio sistema, assim entendendo-se
estes :
A respiração obtem-se através da “textura aberta” dos princípios; a
legitimidade entrevê-se na idéia de os princípios consagrarem valores (
liberdade, democracia, dignidade) fundamentadores da ordem jurídica;
o enraizamento prescruta-se na referência sociológica dos princípios a
valores, programas, funções e pessoas; a capacidade de caminhar
obtem-se através de instrumentos processuais e procedimentos
adequados, possibilitadores da concretização, densificação e realização
prática (política, administrativa, judicial) das mensagens normativas da
constituição. 191
190
191
Ob. cit. P. 168-169.
Ob. cit., p. 170.
2
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90
Embora a evidente necessidade de presentes no sistema, tanto os
princípios como as normas, sua diferenciação doutrinariamente considerada e
sua identificação dentro do ordenamento jurídico, não é de fácil solução,
digladiando-se nos conceitos, os vários esposamentos. Neste sentido Celso
Ribeiro Bastos ao aceitar a distinção entre normas e princípios, mas
reconhecendo a dificuldade da mesma ser firmada, nos seguinte termos :
Os autores prendem-se a mais de um critério. O mais encontrável é o
grau de abstração pelo qual não se acentua a diferença qualitativa entre
princípios e normas, mas tão somente se insiste no grau
tendencialmente mais abstrato dos princípios em relação às normas.
Outras vezes, o que se acentua é a aplicabilidade, o que vale dizer, que
os princípios demandariam medidas de concentração em comparação
com a possibilidade de aplicação direta das normas.
Finalmente, o critério da separação radical, que vislumbra na relação
entre normas e princípios, uma rigorosa distinção qualitativa, quer
quanto à estrutura lógica, quer quanto à intencionalidade normativa.192
Já o autor lusitano, afastando-se da teoria da metodologia jurídica
tradicional, que distingue normas de princípios, sugere em substituição a
distinção entre regras, e princípios como duas espécies de normas, apontando
critérios para diferenciá-las :
a) Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de
abstracção relativamente elevado, de modo diverso, as regras
possuem uma abstracção relativamente reduzida.
b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os
princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de
mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as
regras são susceptíveis de aplicação direta.
c) Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os
princípios são normas de natureza ou com papel fundamental no
ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica, no sistema
das fontes, (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância
estruturante, dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de
Direito).
d) “Proximidade“ da idéia de direito: os princípios são “standars”
juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça”
(Dworkin) ou na “idéia de direito” (Larenz); as regras podem ser
normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.
e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras,
isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de
regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função
192
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo : Editora Saraiva, 1994, p.
137.
2
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normogenética fundamentante. 193
Mediante destes critérios diferenciadores constata-se que os princípios
surgem dos enfoques da “justiça” e do “direito”, motivo pelo qual possuem uma
abstração acentuada, que resulta na necessidade de uma mediação para sua
concretização, mas posicionando-se hierarquicamente dentro do sistema a
constituir a ratio das regras jurídicas.
Apresenta, ainda, Canotilho, diferenças de qualidade que são
fundamentais entre os princípios e, para ele, as regras jurídicas, que merecem
inclusão neste estudo:
1) - os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização,
compatíveis com vários graus de concretização, consoante os
condicionalismos correto e jurídicos; as regras são normas que
prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou
proíbem), que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable
in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios e conflitual
(Zagrebelsky); a convivência de regras é antinomica. Os princípios
coexistem; as regras antinômicas excluem-se;
2) - conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de
optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não
obedecem, como as regras, à “lógica do tudo ou nada”), consoante o
seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente
conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra
solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na
exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos;
3) - em caso de conflitos entre princípios, estes podem ser objectos de
ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas “exigências” ou
“standards” que, em “primeira linha” (prima facie), devem ser realizados;
as regras contêm “fixações normativas” definitivas, sendo insustentável
a validade simultânea de regras contraditórias;
4) - os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância,
ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se
elas não são corretas devem ser alteradas).194
Para Floriano P. de Azevedo Marques Neto :
Diversamente, das regras, que são concebidas para serem aplicadas à
situações fáticas determinadas (ainda que independente das pessoas
envolvidas), os princípios se aninham dentro do sistema jurídico como padrões
abertos e incondicionados da racionalidade jurídica do sistema. Não são
concebidos para atos ou fatos determinados. Existem como preceitos de
existência ou de sociabilidade do sistema, ou melhor, como padrões - condição
para a continuidade do pacto de adesão, que engendrou o sistema jurídico. 195
193
194
195
Ob. cit., p. 166-167.
Ob. cit., p. 167-168
MARQUES NETO, Floriano P. de Azevedo. O conflito entre princípios constitucionais – breves pautas para
2
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Não obstante estas diretrizes, a diferenciação entre princípios e normas,
ou como quer Canotilho, entre princípios e regras, é particularmente complexa e
a correta identificação é de significativa importância prática, quando da
interpretação e aplicabilidade.
PRINCÍPIOS
CONCEITO
O vocábulo princípio provém do latim principium que quer dizer começo,
origem, ponto de partida.
Princípio é: “Ato de principiar; momento em que se faz alguma coisa
pela primeira vez ou em que alguma coisa tem origem; a primeira formação de
alguma coisa; causa primária, começo, razão fundamental; elemento que
predomina na constituição de um corpo organizado; regra, teoria, preceito moral;
estréia, germe, opinião; modo de ver. S.m.pl. Os princípios da vida; as primeiras
épocas em que a vida surgiu; antecedentes, primícias, rendimentos; opiniões,
convicções; regras fundamentais e gerais de qualquer ciência ou arte; regra
fundamental, doutrina”. 196
Toda forma de conhecimento filosófico ou científico implica na
existência de princípios.197
Sob o enfoque da Filosofia, apresentam-se eles em dois significados: é
aquilo que explica a origem de um ser, de alguma coisa, no plano da existência,
ou é isso relativamente ao plano do conhecimento.
Princípio jurídico é um enunciado lógico implícito ou explícito, que, por
sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes
do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a
aplicação das normas jurídicas, que com elas se conectam.
Princípio, segundo conhecida e já clássica definição de BANDEIRA DE
MELLO, se traduz :
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental, que se irradia sobre
diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para
sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e
a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe
dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário, que há
por nome sistema jurídico positivo.
sua solução.Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.
Revista dos Tribunais. v.10, p. 42, ano 3, jan./mar.-1995.
196
Grande dicionário enciclopédico Rideel ilustrado. São Paulo : Editora Rideel, 1980, vol. 8, p. 2162.
197
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 9. ed. São Paulo : Saraiva, 1991, p. 299.
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E prossegue o administrativista :
Violar um princípio, é muito mais grave do que transgredir uma norma.
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão
do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais...198
José Afonso da Silva, ao tratar do tema, entende que a palavra
princípio, por apresentar sentidos diversos, é equívoca. Pode a mesma
apresentar-se como norma de princípio a significar o início ou esquema de um
órgão, entidade ou programa; ou como princípios fundamentais, exprimindo o
“mandamento nuclear de um sistema”, na expressão já mencionada por
Bandeira de Mello.199
Norberto Bobbio ressalta a significância dos princípios como fator
determinante da completude do ordenamento jurídico, assim afirmando :
Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou
generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios
leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os
princípios gerais são normas. Para mim não há dúvida: os princípios
gerais são normas como todas as outras. E esta é também a tese
sustentada por CRISAFULLI. Para sustentar que os princípios gerais
são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais
nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são
extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não
se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da
espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em
segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a
mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um
caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para
regular um comportamento não-regulamentado: mas então, servem ao
mesmo escopo ao que serem as normas expressas. E por que não
deveriam ser normas? 200
Também ressaltando a importância dos princípios e sua força
integrativa ao direito, podemos trazer a colação, outro autor português, Jorge
Miranda, assim se expressando :
198
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo : Editora RT, 1986,
p. 230.
199
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 8ª edição. São Paulo : Malheiros
Editores, 1992, p. 84.
200
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6. ed. EdUnB, 1995.
2
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O Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de atos de
vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre
si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção
resultante de vigência simultânea; é coerência ou, talvez, mais
rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor incorporado
em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor
projeta-se ou traduz-se em princípio, logicamente anteriores aos
preceitos.201
Os princípios constitucionais podem ser considerados como valores
superiores e diretrizes fundamentais que “costuram” as diferentes partes da
ordem jurídica, consubstanciando-se em premissas básicas desta, irradiando-se
para todo o sistema de normas da Constituição, harmonizando-a e propiciando
condições de convivência sem atritos. Os princípios constitucionais são a síntese
dos valores principais da ordem jurídica. 202
Princípio, então, será o sistema nervoso, que comanda todos os
sentidos do ordenamento jurídico, irradiando focos de incidência, até o mais
longínquo extensor de vontade, quer de ordem pública, quer de ordem particular,
na supremacia e obediência dos núcleos verbais contidos no texto magno.203
FUNÇÕES DOS PRINCÍPIOS
Embora não possam os princípios gerar direitos subjetivos, eles
desempenham uma função transcendental dentro da Constituição. Eles são que
lhe dão vida e estrutura, porque são como a carne no corpo humano, revestindo,
portanto, a ossatura do esqueleto. É o que dá feição de unidade ao texto
constitucional, determinando-lhe as diretrizes fundamentais.204
No entanto, os princípios exercem funções importantes no ordenamento
jurídico, podendo ser identificados de duas naturezas:
a. função ordenadora: nesta, se vinculam, mais essencialmente, por
servirem de diretrizes para a fixação de critérios de interpretação e de integração
do direito dando assim, coerência geral ao sistema.
A interpretação deve ser iniciada pelos princípios constitucionais, a
começar do princípio maior que trata da matéria, objeto da mesma, depois para
o mais genérico, após, vai-se ao mais específico, até findar na regra concreta
aplicável ao caso. Como os princípios são dotados, como já visto, de
generalidade, abstração e capacidade de expansão, o intérprete, ao deles se
utilizar, possui condições de buscar a solução, mais justa possível, superando o
positivismo exacerbado e claudicante da regra jurídica, ao mesmo tempo em que
201
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª.ed.. Lisboa : Coimbra Editora, 1988, p. 196-197.
BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 3. ed. Rio de Janeiro
: 1996, p.287.
203
GALVÃO, Flávio Alberto Gonçalves. Sistema, hierarquia de normas e princípios constitucionais no
direito. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.
Revista dos Tribunais, nº 13, ano 03, p. 86, out./dez.-1995.
204
BASTOS, Celso Ribeiro.Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 1994, p.159.
2
202
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95
impõe a ele se afaste do subjetivismo decorrente dos sentimentos pessoais e
das conveniências políticas, restringindo a sua discricionariedade, motivando,
suficientemente, o seu posicionamento, na solução do caso concreto posto sob
apreciação.
É a isto que se refere Canotilho ao tratar das diferenças qualitativas
entre princípios e regras, quando fala do grau de abstração daqueles :
A articulação de princípios e regras, de diferentes tipos e
características, iluminará a compreensão da constituição como um
sistema interno assente em princípios estruturantes fundamentais que,
por sua vez, assentam em subprincípios e regras constitucionais
concretizadores desses mesmos princípios. Quer dizer: a constituição é
formada por regras e princípios de diferente grau de concretização (=
diferente densidade semântica).205
Mediante a utilização dos princípios, como instrumentos do trabalho
exegético, que surge o caminho mais seguro para suprir as lacunas dos
dispositivos legais, bem assim de chegar-se ao verdadeiro sentido do espírito do
ordenamento jurídico, procurando atingir os autênticos fins sociais a que se
dirigem.206
b. função prospectiva: os princípios têm capacidade de impor sugestões
para a adoção de formulações novas ou de regras jurídicas mais atualizadas,
tudo inspirado pela idéia do aprimoramento do direito aplicado.
Sobre esta função específica preleciona Jorge Miranda neste sentido :
Exercem, finalmente, uma função prospectiva, dinamizadora e
transformadora, em virtude da força expansiva que possuem (e de que
se acham desprovidos os preceitos, desde logo por causa das suas
amarras verbais). Daí, o peso que revestem na interpretação evolutiva;
daí, a exigência que contêm ou o convite que sugerem para a adoção
de novas formulações ou de novas normas que com eles melhor se
coadunem e que portanto, mais se aproximem da idéia de Direito
inspiradora da Constituição (sobretudo, quando se trata de Constituição
programática). 207
Para Sálvio de Figueiredo Teixeira, são os princípios que, situando-se
entre a deontologia e a epistemologia, inspiram o legislador na criação de novos
institutos, dão ao intérprete o alcance dos existentes e a verdadeira inteligência
das normas. 208
Resulta destas duas funções a força dos princípios com relação às
regras jurídicas, como instrumentos inafastáveis de integração e interpretação da
205
Ob. cit., p. 180.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Princípios gerais do Direito Processual Civil. RePro nº 23, p.175.
Ob. cit., p. 200.
208
O processo civil na nova Constituição. RePro nº 53, p.78.
2
206
207
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96
legislação infraconstitucional aplicável – de lege lata -, bem assim, de sua
edificação ou reconstrução - de lege ferenda.
Já para Luis Roberto Barroso, o papel prático dos princípios, no que se
refere ao ordenamento jurídico constitucional, pode ser enfocado sob três linhas:
constituem em supedâneo para o constituinte tomar as decisões políticas
fundamentais, fixando os valores que devem inspirar a criação ou reorganização
do próprio Estado e suas instituições; compatibilizam as normas à primeira vista
contraditórias, harmonizando-as ao sistema e assegurando a unidade deste e
condicionam a atuação dos poderes públicos, nas três esferas, no que diz
respeito a aplicação de todas as normas jurídicas em vigência.209
ESPÉCIES DE PRINCÍPIOS
A tipologia dos princípios não se esgota naqueles expressamente
previstos no texto constitucional, mesmo porque se consubstanciam em valores
supremos, encontráveis também, externamente, às regras jurídicas e nem por
isto facultam a sua não observância, nos termos postos, quando do tratamento
das suas funções no item suso. Neste sentido, v.g., podemos citar :
- Princípio da supremacia da Constituição – o texto constitucional situase como fundamento da validez das demais disposições normativas,
tidas infraconstitucionais, que àquele devem ajustar-se sob pena de
ilegitimidade;
- Princípio da unidade da Constituição – não podem, as normas insertas
no texto constitucional, serem apreciadas solitariamente, pois elementos
de um conjunto, que se quer harmônico, daí sua unidade, inclusive
hierárquica dentro do sistema;
- Princípio da continuidade da ordem jurídica – consiste na recepção
pelo novo texto constitucional de toda normatização infraconstitucional,
que com o mesmo não se situe em rota de colisão;
- Princípio da interpretação conforme a Constituição – por tal, sempre
que, sob a análise da constitucionalidade ocorrer mais de uma
interpretação razoável das normas jurídicas, uma levando à sua
validade e outra à sua inconstitucionalidade, deve-se optar pela
primeira. 210
A heterogeneidade dos princípios com assento constitucional devido à
sua natureza ou configuração, resultam numa diversidade de classificações
feitas pelos doutrinadores, dos quais podemos citar os seguintes.
Para Jorge Miranda, os princípios constitucionais podem ser
substantivos, sub-divididos em axiológicos fundamentais e políticoconstitucionais – que são “aqueles válidos em si mesmos e que espelham os
209
210
Ob. cit., p. 291-292.
BARROSO, Luis Roberto. Ob. cit., p. 286-287.
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valores básicos a que adere a Constituição material”; e adjetivos ou
instrumentais – que são aqueles “sobretudo de alcance técnico, complementares
dos primeiros e que enquadram as disposições articuladas no seu conjunto.”
Para o autor existem, portanto, três categorias de princípios :
1) Princípios axiológicos fundamentais – são os limites preexistentes ao
poder constituinte e que devem ser, por este observado, constituindo
assim uma “ponte de passagem” do Direito natural para o Direito
positivo. Como exemplos podemos citar: a igualdade entre as pessoas,
o respeito à dignidade humana, o direito de defesa a quem for acusado,
a liberdade de escolha de religião, etc.
2) Princípios político-constitucionais – se constituem nas características
de cada Constituição materialmente considerada em relação às demais,
referente à opção de cada regime. Como exemplos podemos citar: o
regime democrático, a representatividade, a separação dos poderes do
Estado, etc.
3) Princípios constitucionais instrumentais – são aqueles que auxiliam
na construção estrutural do sistema constitucional, propiciando-lhe
condições de operacionalidade e racionalidade. Como exemplos
podemos citar: princípio da proporcionalidade, princípio da publicidade
das normas jurídicas, etc. 211
Já, Gomes Canotilho, apresenta tipologia de princípios, considerando a
delimitação do tema dentro dos quadrantes do direito constitucional da seguinte
maneira : 212
1) Princípios jurídicos fundamentais: são aqueles que historicamente
objetivados e, progressivamente, introduzidos na consciência jurídica e
que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto
constitucional. Sua importância resulta evidente para a interpretação,
integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. Como
exemplos podemos citar: princípio da publicidade dos atos jurídicos,
princípio de acesso aos tribunais, princípio da imparcialidade da
administração, etc.
2) Princípios políticos constitucionalmente conformadores: são aqueles
que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador
constituinte. Através deles refletem-se as posições políticas e
ideológicas, inspiradoras da elaboração da constituição. A partir da
Constituição escrita é que vamos entender os princípios, que regem a
estrutura e a composição orgânica de um Estado.213 Como exemplos
211
Ob. cit., p. 202-203.
Ob. cit., p. 170-174.
213
MACEDO, Dimas. Princípios do regime republicano democrático. Cadenos de Direito Constitucional e
Ciência Política. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Revista dos Tribunais. nº 9, ano 3, p.14,
out./dez.-1994.
2
212
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98
podemos citar: princípios definidores da forma de Estado, princípios
definidores da estrutura do Estado, princípios estruturantes do regime
político, princípios caracterizadores da forma de governo, etc.
3) Princípios constitucionais impositivos: são aqueles que, sobretudo no
âmbito da constituição dirigente, impõem aos órgãos do Estado,
sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas.
Como exemplos podemos citar: princípio da independência nacional,
princípio da correção das desigualdades na distribuição de riqueza e do
rendimento, etc.
4) Princípios-garantia: são aqueles que visam instituir direta e
imediatamente uma garantia dos cidadãos. Como exemplos podemos
citar: princípio do nullum crimen sine lege e de nulla poena sine lege,
princípio do juiz natural, princípio do in dúbio pro reo, princípio do non
bis in idem, etc.
Quanto ao objeto, os princípios podem ser: princípios constitucionais de
organização (referentes à forma de Estado, a forma, o regime e o sistema de
governo), princípios constitucionais de garantia (como o do devido processo
legal, da irretroatividade da lei, do acesso à justiça, etc.); e princípios de caráter
programático (como a livre iniciativa, a função social da propriedade, a justiça
social, publicidade dos atos administrativos, etc.).
Quanto ao grau de importância e abrangência, os princípios podem ser:
princípios fundamentais (referentes às decisões políticas estruturais do Estado.
Ex: princípios republicano, federativo, do Estado democrático de direito, da
separação dos Poderes, presidencialista, etc.); princípios constitucionais gerais
(referentes àqueles que se desdobram dos princípios fundamentais e se dirigem
a todo ordenamento jurídico, Ex: princípios da legalidade, da isonomia, da
autonomia estatal e municipal, de acesso à Justiça, do juiz natural, do devido
processo legal, etc. ); e princípios setoriais ou especiais (referentes aqueles que
presidem um determinado conjunto de normas, podendo constituir-se numa
pormenorização dos princípios gerais. Ex: princípios da moralidade
administrativa, do concurso público, da motivação das decisões judiciais e
administrativas, da universalidade do orçamento, etc.).
Esta última classificação é deveras importante quando da utilização dos
princípios no trabalho interpretativo das normas, como já referido anteriormente.
Embora inexistam graus hierárquicos entre os mesmos no texto constitucional,
advindo do chamado princípio da unidade da Constituição (já suso referido)
também conhecido como princípio da unidade hierárquico-normativo,
apresentam eles diferentes graus de densificação, ou no dizer de Canotilho
“diferente grau de concretização (= diferente densidade semântica)”. 214
Desta maneira, quando da interpretação, deve o operador principiar por aqueles
tidos fundamentais, após, vai aos gerais e só por fim utiliza-se dos setoriais, numa
verdadeira cadeia de concretização ou densificação uns dos outros.
214
Ob. cit., p. 180.
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NORMAS (REGRAS)
CONCEITO
A palavra “norma” procede do latim: norma, e na língua alemã tomou o
caráter de uma palavra de origem estrangeira – se bem que não em caráter
exclusivo, todavia primacial. Com o termo se designa um mandamento, uma
prescrição, uma ordem. Mandamento não é, todavia, a única função de uma
norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas.215
NORMA: Derivado do latim norma, oriundo do grego gnorimos
(esquadria, esquadro) dentro do seu sentido literal, é tomado na
linguagem jurídica como regra, modelo, paradigma, forma ou tudo o que
se estabeleça em lei ou regulamento para servir de pauta ou padrão na
maneira de agir.
NORMA: Derivado do antigo latim, falado pelos Etruscos, no sentido
físico quer significar “esquadro” ou “gabarito”, ou seja, um instrumento
utilizado na agricultura para medir os campos agricultáveis. Tal palavra
foi emprestada do grego gowma que no latim era gruma. No sentido
moral eram as regras de conduta.
REGRA: Do latim “regula” é de origem religiosa e tudo é derivado do
verbo: rego, is, rexi, rectum, regere (cujo sentido é dirigir, conduzir).
Como já suso mencionado, para Gomes Canotilho 216 devemos nos
afastar da metodologia jurídica tradicional a qual faz a distinção entre normas e
princípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz), para substituí-la
por : as regras e princípios são duas espécies de normas; a distinção entre
regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas.
A norma distingue-se do princípio porque contém uma regra, instrução,
ou imposição imediatamente vinculante para certo tipo de questões.
Já para José Afonso da Silva, as normas “são preceitos que tutelam
situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um
lado, a pessoas ou a entidades, a faculdade de realizar certos interesses por ato
próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam
pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma
prestação, ação ou abstenção em favor de outrem”. 217
ESPÉCIES DE NORMAS (REGRAS)
215
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas (Allgemeine theorie der normen). Trad. José Florentino Duarte.
Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p.1.
216
Ob. cit. P. 166.
217
Ob. cit., p. 84-85.
2
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100
Da mesma maneira que ocorre com os princípios, da diversidade de
normas existentes no texto constitucional decorrem várias classificações feitas
pelos doutrinadores, podendo-se citar algumas.
Gomes Canotilho, embora considere ultrapassada a distinção entre
normas organizatórias e normas materiais, utiliza-se desta dicotomia qualitativa
para estabelecer uma não exaustiva tipologia das normas constitucionais, a
saber :
1) Regras jurídico-organizatórias: são normas que possuem a função
estruturante das organizações; a função atributiva de um poder; a função
distributiva de competência por vários órgãos de um ente público e a função
procedimental ou processual com a seguinte subdivisão :
a) Regras de competência: são normas constitucionais através das
quais se estabelecem atribuições aos órgãos constitucionais ou esferas
de competência entre estes mesmos órgãos. Como exemplos podemos
citar as normas que estabelecem a competência da União, aos Estados
Membros e aos municípios em termos de legislar, as atribuições do
Congresso Nacional, Senado Federal e Câmara dos Deputados, as
competências dos Tribunais Superiores, etc.
b) Regras de criação de órgãos (normas orgânicas): são normas
constitucionais que disciplinam a criação ou instituição constitucional de
certos órgãos. Como exemplos podemos citar as normas que instituem
os órgãos do Poder Judiciário, os Ministérios Públicos, Federal e
Estaduais, o Tribunal de Contas, etc.
c) Regras de procedimento: são normas constitucionais, que
estabelecem procedimentos para a formação da vontade política e do
exercício das competências constitucionalmente consagradas. Como
exemplos podemos citar as normas referentes ao processo legislativo,
etc.
2) Regras jurídico-materiais:
a) Regras de direitos fundamentais: são normas constitucionais
destinadas ao reconhecimento, garantia ou conformação constitutiva de
direitos fundamentais. Como exemplos podemos citar as normas
referentes aos direitos individuais, aos direitos coletivos, aos direitos
sociais, etc.
b) Regras de garantias institucionais: são normas constitucionais que
visam proteger instituições públicas ou privadas. Como exemplo
podemos citar as normas, que asseguram a proteção da família e do
casamento, como instituições e a união estável como entidade familiar,
etc.
c) Regras determinadoras de fins e tarefas do Estado: são normas
2
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constitucionais que, de uma forma global e abstrata, fixam
essencialmente, os fins e as tarefas prioritárias do Estado.
d) Regras constitucionais impositivas: são normas constitucionais
através das quais são impostos deveres concretos e permanentes,
materialmente determinados, que, no caso de não serem cumpridos,
darão origem à omissão constitucional. Como exemplos podemos citar
a organização da seguridade social, da assistência social e da
educação, etc. 218
Luis Roberto Barroso propõe uma sistematização das normas, sem
contudo criar novas categorias, e sim procedendo uma ordenação das já
existentes na teoria das normas jurídicas, articulando-as em função do conteúdo
e finalidade predominantes, chegando a seguinte classificação :
1) Normas constitucionais de organização: são as normas
constitucionais que instituem os órgãos da soberania, definindo-lhes as
competências e determinando as formas e processos de exercício do
poder político. Se destinam “à ordenação dos poderes estatais, à
criação e estruturação de entidades e órgãos públicos, à distribuição de
suas atribuições, bem como à identificação e aplicação de outros atos
normativos”. São normas concessivas de poderes jurídicos. Como
exemplos podemos citar as que definem a forma de Estado e de
governo, a divisão orgânica do poder, as competências dos órgãos
constitucionais, as que criam órgãos públicos, as de elaboração
legislativa, etc.
2) Normas constitucionais definidoras de direitos: são as
normas constitucionais, que estabelecem os direitos fundamentais
(políticos, individuais e sociais) dos indivíduos submetidos à soberania
estatal. São normas concessivas de direitos. Como exemplos podemos
citar as capacidades eleitoral e eletiva, os direitos previstos no artigo 5º
do texto constitucional, etc.
3) Normas constitucionais programáticas: são as normas
consti-tucionais que objetivam estabelecer determinados princípios ou
fixar programas de ação para o Poder Público. Através delas a
Constituição disciplina também o futuro previsível219 .Como exemplos
podemos citar as normas que consagram a função social da
propriedade, a ordem social tendo como base o primado do trabalho, o
apoiamento, incentivo, valorização e difusão das manifestações sociais,
etc. 220
218
Ob. cit., p. 174-180.
BASTOS, Celso Ribeiro. As normas programáticas na Constituição de 1988. Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Revista dos Tribunais, nº 14,
ano 4, p. 9-15, jan./mar. 1996.
220
Ob. cit, p. 91-118.
2
219
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102
Com relação às normas ditas programáticas, sintetiza, Jorge Miranda,
sua força jurídica nos seguintes termos :
1) Elas determinam a cessação da vigência, por inconstitucionalidade
superveniente, das normas legais anteriores que disponham em
sentido contrário;
2) Conquanto o seu sentido essencial seja sempre prescritivo, e não
proibitivo, elas possuem, complementarmente, um duplo sentido
proibitivo ou negativo – proíbem a emissão de normas legais
contrárias e proíbem a prática de comportamentos que tenham a
impedir a produção de actos por elas impostos – donde
inconstitucionalidade material em caso de violação;
3) Elas fixam diretivas ou critérios para o legislador ordinário nos
domínios sobre que versam – donde, inconstitucionalidade por
omissão em caso de inércia legislativa e ainda inconstitucionalidade
material (que é inconstitucionalidade por ação), por desvio de poder,
em caso de afastamento desses critérios;
4) Elas adquirem eficácia sistemática como elemento de integração
dos restantes preceitos constitucionais e, assim, através da analogia
que sobre elas se construa, adquirem uma eficácia criadora de
novas normas. 221
Por fim, não poderíamos deixar de trazer à baila, a já clássica divisão
tricotômica de José Afonso da Silva referente à eficácia e aplicabilidade das
normas constitucionais, com base na seguinte divisão :
1) Normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade ime-diata:
são aquelas que recebem do constituinte normatividade suficiente à
sua incidência imediata e independem de providência normativa
ulterior para sua aplicação.
2) Normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata,
mas passíveis de restrição: são aquelas que receberam
normatividade suficiente para reger os interesses de que cogitam,
mas prevêem meios normativos que lhes podem reduzir a eficácia e
aplicabilidade.
3) Normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida: são aquelas
que não receberam do constituinte normatividade suficiente para
sua aplicação, o qual deixou ao legislador ordinário a tarefa de
completar a regulamentação das matérias nelas traçadas em
princípio ou esquema. 222
221
222
Ob. cit., p.219-220.
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 1982, título II, capítulos II, III e IV.
2
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CONCLUSÃO
A Constituição é um sistema, pois assentada num conjunto de
elementos que compõem uma unidade (princípio da unidade da Constituição),
entrelaçadas coerentemente de modo a evitar conflitos ou fornecer meios para a
solução quando surgidos.
Trata-se de um sistema composto por princípios e normas, pois inviável
sua existência somente com uns ou com outras.
Embora há dificuldade de diferenciação entre princípios e normas (ou
regras como quer Canotilho), existem critérios para o estabelecimento de suas
particularidades, que vão desde o grau de abstração até a solução de seus
conflitos.
Os princípios constitucionais exercem, em especial na atual conjuntura
sócio-político-jurídica do país, papel significativo de adequação da normatividade
nacional ao asseguramento dos direitos fundamentais, como meios de
interpretação e integração no sistema, em suas funções ordenadora e
prospectiva.
As normas constitucionais propiciam condições de uma mais
densificada segurança jurídica no país, estabelecendo diretrizes, mesmo as
programáticas, a serem observadas pela legislação infraconstitucional.
Todos os princípios e normas previstos no atual texto constitucional
deverão ser observados pelo legislador ordinário e pelos operadores do direito –
princípio da supremacia da Constituição – os quais poderão lhes dar maior grau
de concretização e densidade através da concretização legislativa e
jurisprudencial (principialização da jurisprudência) .223
223
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A “principialização” da jurisprudência através da Constituição.RePro
98, p.83-89.
2
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2
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O PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
LUDMILO SENE
PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA E DO CESCAGE –
MESTRANDO EM DIREITO NA PUC DO PARANÁ – ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO – O texto estuda princípios e normas que consubstanciam garantias
fundamentais aos cidadãos, analisando-os a partir do texto constitucional
brasileiro. Tomando o Direito Constitucional como base, o autor aborda temas
relevantes como os princípios constitucionais, a interpretação constitucional
(fazendo distinção entre hermenêutica e interpretação), discorrendo ainda sobre
o sujeito, o objeto, as finalidades e os efeitos da interpretação. O artigo destaca
o princípio do duplo grau de jurisdição, seus aspectos históricos e atuais,
enfatizando assuntos como a alçada recursal na Lei de Execuções Fiscais e a
remessa de ofício.
THE PRINCIPLE OF THE DOUBLE DEGREE OF JURISDICTION –
ABSTRACT - The text analyzes principles and rules that consubstantiate basic
guarantees to citizens, analyzing them from the Brazilian constitutional text.
Taking the Constitutional Law as the background, the author approaches relevant
subjects as the constitutional principles, the constitutional interpretation (making
a distinction between hermeneutics and interpretation), and still discusses the
subject, the object, the purposes and the effects of the interpretation. The article
focuses on the principle of the double degree of jurisdiction, its historical and
current aspects, emphasizing issues as the court of appeals in the Law of
Foreclosure Tax and the remittance of notice.
INTRODUÇÃO
Nelson Nery Junior, ao tratar da importância do conhecimento e do
estudo da Constituição, como lei básica e fundamental do Estado, e para sua
efetiva aplicação, estimula que “... todos devem conhecer e aplicar o Direito
Constitucional em toda a sua extensão, independentemente do ramo do direito
infraconstitucional que se esteja examinando” 224 , para se obter e se realizar,
enfim, o verdadeiro Estado de Direito.
E no estudo da nossa Lei Maior, deparamos com a existência de
inúmeros princípios, que norteiam toda a nossa vida em sociedade, envolvendo,
de modo genérico, o cidadão e o Estado, as suas relações privadas e públicas, a
proteção dos direitos fundamentais, etc.
Do complexo de princípios existentes, interessa para o presente estudo,
a matéria concernente à tutela dos direitos do cidadão, insculpida no Artigo 5°,
inciso XXXV da Constituição Federal, que assegura a todos que a “lei não
224
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 6ª ed. RT. 2000, p. 20.
2
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excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e
correlacionado com este princípio, ainda, será tema do estudo o contido no
inciso LV, que assegura "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos
a ela inerentes".
E a existência dessas garantias na Constituição Federal justifica-se, até
pela constatação objetiva de que o ser humano é falível: errar é humano. O juiz,
o administrador não está imune ao erro, à falha. Além do que, como defendia
Montesquieu225, um juiz único poderia tornar-se despótico e sem qualquer
controle dos seus atos e decisões se não houvesse, por parte do jurisdicionado,
o direito de questionar a decisão diante de outro julgador.
Por outro lado, é também natural no ser humano o inconformismo diante
da decisão desfavorável, causando de imediato uma reação, que o impele a
reclamar novo julgamento, revisão da questão. 226
Este é o quadro comum do ser humano como um todo, que se reflete (e
não poderia ser diferente) no mundo jurídico, especialmente, porque este mesmo
ser humano quer e necessita da garantia da boa justiça, 227 da garantia da boa
solução ! 228
Nesta ótica, na defesa de um direito lesado ou ameaçado, para garantia
do cidadão e do próprio sistema, existem os princípios do devido processo legal,
do contraditório, da ampla defesa, o da recorribilidade, etc., princípios que se
encontram expressos na nossa Constituição.
Porém, além dos princípios ditos constitucionais, existem outros, que
embora não previstos expressamente no texto constitucional, têm sua aplicação
no direito, em decorrência de previsão infraconstitucional, como por exemplo, o
do duplo grau de jurisdição, que de tão importante, é caracterizado por muitos
doutrinadores, como um princípio implícito na Constituição Federal, e então,
causando grande polêmica sobre a sua natureza constitucional ou não e as
implicações daí decorrentes, tema que será o objeto deste trabalho.
Para registro, o presente estudo circunscreverá a matéria no âmbito do
judiciário. Porém, como será de forma ampla e doutrinária, as elucidações
colecionadas são aplicáveis também ao processo administrativo.
O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO BASE
Até pouco tempo atrás, não se dava importância ao estudo do Direito
Constitucional no Brasil, devido ao fenômeno cultural e político do nosso recente
passado, como sintetiza Nelson Nery Junior. 229
Decorrente disso, as interpretações dos diversos ramos do direito se
225
MONTESQUIEU. L’esprit des Lois, Paris, Livro VI, Cap VII, p. 78 apud NERY JUNIOR, Nelson. Princípios
Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos. 5ª ed. RT, 2000, p. 39.
226
SILVA, Ovídio A. Baptista, Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo : RT, 1997, p. 304.
227
PERROT. Le Principe du double degré de juridiction et son évolution em droit judiciaire privé français, v III,
Milão, 1979, p. 1971 apud NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 39.
228
BARBOSA MOREIRA, Comentários ao Código de Processo Civil, 1ª ed. V. V, nº 107.
229
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 6ª ed. RT, 2000, p. 19.
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dava, apenas, com fundamento nas suas respectivas leis ordinárias, sem
qualquer apoio ou ilação com o texto da Constituição, que é e deveria ser,
sempre, o parâmetro, o paradigma e o fundamento do Estado de Direito.
Entretanto, o sistema jurídico brasileiro tem evoluído e a doutrina e os
estudos de direito constitucional têm aumentado, com significativo
desenvolvimento da teoria da interpretação constitucional, para recolocar o
direito constitucional no ápice da pirâmide do sistema, por ser ele o detentor do
estudo do texto fundamental do Estado de Direito, da Democracia.
Em suma, hoje, o sistema dirige seus olhos, primeiro para a
Constituição, para a interpretação constitucional, para poder averiguar e só
aplicar a legislação infraconstitucional se esta estiver de acordo com o espírito,
os princípios e as normas constitucionais.
Por esta razão, antes do estudo de um dos princípios, que regem o
nosso sistema, é necessário uma breve reflexão sobre a teoria da interpretação
constitucional, que não é, de modo algum, exaustiva, mas apenas, norteadora.
Dando seguimento, como citado acima, e que será objeto deste estudo,
a Constituição condensa princípios e normas asseguradores dos direitos
fundamentais. Por isso, o correto e claro entendimento do texto constitucional é
condição necessária para a perfeita aplicação dos seus princípios para atingir,
por fim, os objetivos estatuídos na própria Constituição, fins do Estado Brasileiro,
que é uma sociedade livre, justa e solidária.
E o entendimento do texto constitucional, que contém, como dito,
princípios e normas, abstratos e fluidos, se dá através da sua interpretação. E a
interpretação constitucional, a interpretação do texto maior e mais importante do
Estado, apresenta dificuldades porque, o seu resultado, vai repercutir em todo o
ordenamento jurídico.
Por esta razão, ressalta a importância do estudo dos métodos de
interpretação, para a propagação destas teorias e melhoramento cultural da
sociedade e, principalmente, dos seus intérpretes diretos, a fim de se obter, pela
correta aplicação das normas e princípios constitucionais, uma sociedade livre,
justa e solidária.
OS PRINCÍPIOS E A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Em outros países de longa tradição de estudos constitucionais, há
abundante literatura sobre a teoria da Constituição, o que não ocorre do mesmo
modo no Brasil, especialmente a respeito da hermenêutica e da interpretação do
texto constitucional.
Porém, esta diferença doutrinária está sendo diminuída nestes últimos
anos, com o aparecimento de inúmeras obras, que se debruçam sobre a teoria
constitucional e, com muito zelo, sobre a sua interpretação, o que está causando
grande desenvolvimento na nossa cultura constitucional e tem estimulado novos
pesquisadores a colaborar no seu aprofundamento.
Interpretar a Constituição é, na verdade, procurar conhecê-la em seus
significados mais profundos e em seu verdadeiro alcance.
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Interpretar significa conferir ou irrogar um sentido à norma, com vistas à
sua aplicação num caso concreto. A interpretação não pode ser desprendida do
seu sentido pragmático, que é oferecer uma solução, uma decisão para o caso
concreto ou, ao menos, uma hipótese levantada. 230
Porém, as regras gerais de hermenêutica jurídica, que é a ciência que
tem por objetivos estabelecer princípios e regras tendentes a tornar possíveis a
interpretação, não são suficientes para a boa compreensão do texto
constitucional em razão das particularidades como: inicialidade, supremacia da
ordem jurídica, caráter predominantemente coloquial de seus termos, regulação
do fenômeno político, etc.
A interpretação constitucional, observando então estas particularidades,
deve adaptar o texto constitucional às novas realidades sociais e, segundo Peter
Häberle, até mesmo à vontade popular, para o que deve o povo conhecer e
debater a Constituição.
A interpretação constitucional é um momento prévio da interpretação da
lei jurídica. Não pode haver, por exemplo, uma interpretação da lei civil senão
conforme a Constituição. Tudo aquilo que não tiver um mínimo de
constitucionalidade não é relevante juridicamente, porque não significa a criação
de nada. A Constituição dá a certeza. Na interpretação há que haver um mínimo
de constitutividade.
A Constituição é lei suprema no país. Contra a sua letra ou espírito não
prevalecem resoluções dos poderes federais, decretos ou sentenças estaduais,
nem tratados ou quaisquer atos diplomáticos.
A interpretação constitucional tem princípios próprios do Direito
Constitucional, entretanto, não abandona os fundamentos da interpretação da
lei, utilizados pela Teoria Geral do Direito. A Constituição, com seu caráter
superior, é lei e forma parte do ordenamento jurídico total assentando sua
aplicação, também, em problemas interpretativos da lei comum. Isto
principalmente no que se refere aos métodos, fins e resultados, que de certa
forma influenciam a interpretação.
A interpretação legal é responsável pela criação da norma e sua
evolução. Toda lei enseja interpretação, e o processo hermenêutico tem, sem
dúvida, relevância superior ao próprio processo de elaboração legislativa, uma
vez que será através da interpretação da lei que esta será aplicada e inserida
dentro de um contexto fático específico, sendo adequada a toda uma realidade
histórica e os valores dela decorrentes.
A simplificação dos processos de aplicação da lei à realidade social, são
decorrentes de práticas autoritárias e burocráticas, onde, a vontade do
administrador, e os atos administrativos por ele praticados, têm por vezes maior
importância do que a vontade constitucional.
José Lamego leciona :
230
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos,
1999, p. 14.
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"A hermenêutica rompe o hermetismo do universo dos signos, abrindo o
texto e o discurso ao ‘mundo’. Para a Hermenêutica, o intérprete não
‘descodifica’ apenas um sistema de signos, mas ‘interpreta’ um texto.
Subjacente a este conjunto de idéias está a rejeição pela Hermenêutica
de uma concepção de linguagem com função meramente instrumental a linguagem como ‘signo’ ou mera ‘forma simbólica’ - considerando-a,
ao invés, como uma ‘instituição social’ complexa. As expressões têm
sentido apenas no contexto dos distintos jogos de linguagem, que são
complexos de discurso e de ação. A aprendizagem de uma linguagem
‘natural’ implica a participação em práticas e a comparticipação de
critérios que regem o seu desempenho. A ‘gramática’ da linguagem só
poderá ser elucidada de ‘dentro’, a partir do conhecimento das regras
constitutivas do ‘jogo’ e não mediante apelo a ‘metalinguagens”.231
O processo de interpretação de texto requer do intérprete,
conhecimento de todo sistema constitucional, sua interpretação diante de uma
dada realidade histórica, assim como uma leitura do dispositivo legal, objeto de
interpretação dentro de uma leitura sistemática do seu texto, inserida no
ordenamento jurídico infraconstitucional, e no ordenamento constitucional.
Uma série de princípios, preceitos e normas têm que ser de
conhecimento do intérprete, assim como a correta relação entre estas normas,
especialmente no que se refere à hierarquia e os mecanismos de superação dos
possíveis antagonismos entre princípios.
O objetivo primeiro da interpretação deverá ser a criação de condições
para que a norma interpretada tenha eficácia, sempre, no sentido da realização
dos princípios e valores constitucionais, e principalmente, sempre, da ideologia
constitucionalmente adotada.
Este direcionamento pode fazer diminuir a enorme distância, que muitas
vezes ocorre entre a interpretação realizada pela jurisprudência e pela doutrina.
De nada adianta a leitura de uma norma, que venha a ser absolutamente
inaplicável a uma realidade histórica, que não mais comporta aquela
interpretação, o que ocorre, por vezes, com o doutrinador, que em análises
dissociadas de situações concretas, cria normas impossíveis. Entretanto o
oposto não pode ocorrer, que seria o intérprete responsável pela aplicação da
norma ao caso concreto, deixar de dar o seu correto direcionamento valorativo,
oferecido pela Constituição e especialmente pela ideologia adotada,
fundamentando sua interpretação em valores outros, que não os consagrados
pela Constituição (entenda-se Constituição como a sua interpretação construída
democraticamente em um momento histórico).
Em outro trecho do livro, José Lamego, ao traçar regras e critérios da
"Teoria da Interpretação", observa :
231
LAMEGO, JOSÉ. Hermenêutica e Jurisprudência. Lisboa, Fragmentos, 1990.
2
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"Enquanto disciplina prática, a Jurisprudência dirigir-se-ia, não ao
conhecimento do ‘objeto’ Direito, mas seria um agir mediador na
realização da ‘possibilidade’ do ‘melhor Direito’. E, nesta conformidade,
o Direito não seria susceptível de ser definido em termos de
propriedades descritivas (como sustenta o positivismo metodológico ou
conceptual), mas comportaria uma dimensão de valor. A jurisprudência
serviria, assim, à realização do ‘justo’."
Dworkin denomina como sendo o Direito no seu estágio préinterpretativo, podendo ser identificado segundo o critério positivista das fontes.
O Direito no estágio pós-interpretativo é a realização da "possibilidade" do
"melhor direito", nas circunstâncias concretas.
Desta forma, a interpretação é um agir mediador, que visa não se
perder em operações cognitivas e exegéticas, mas sim práticas de realização da
"possibilidade".
Dworkin aproxima a interpretação jurídica e a interpretação literária,
estabelecendo um paralelo entre o escrever uma novela em que cada capítulo
tem um autor diferente (chain novel) e a ‘construção’ do sentido das normas
através das suas sucessivas concretizações. A acumulação dos capítulos
precedentes estreita a margem de escolha do participante. A metáfora da novela
por capítulos (chain novel) e a concepção do Direito como ‘cadeia’ (the chain of
law) evoca uma idéia de coerência e racionalidade posicional, que reintegra o
sentido dos episódios anteriores e ajuda, assim, à construção do ‘texto’. A
metáfora interpretativa é um novo fundamento para a concepção do Direito que
Dworkin tem vindo a defender, desde os seus escritos iniciais, e que agora,
denomina de ‘integridade’. Sustenta que esta concepção reflete uma visão mais
alargada do Direito.
Todavia, a Constituição, sabe-se, condensa princípios e normas
asseguradoras do progresso, da liberdade, da ordem, por isso os seus
problemas de interpretação constitucional são mais amplos do que aqueles da lei
comum, repercutindo em todo o ordenamento jurídico.
E porque os problemas de interpretação constitucional são mais
amplos, por isso mesmo, é que ressalta a importância do estudo dos métodos de
interpretação, para a propagação destas teorias e melhoramento cultural da
sociedade e, principalmente, dos seus intérpretes diretos, a fim de se obter,
dentro dos princípios constitucionais, uma sociedade livre, justa e solidária.
DISTINÇÃO ENTRE HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO
Conforme o Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, a
hermenêutica é a “ciência auxiliar do direito que tem por objetivo estabelecer princípios e
regras tendentes a tornar possíveis a interpretação e a explicação, não só das leis, como
também do direito como sistema” (Verbete hermenêutica jurídica, Dicionário Jurídico,
Forense Universitária, 1990, pp. 226/227).
Por sua vez, interpretação está conceituada com a “investigação
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metódica de uma lei, a fim de apreender-lhe o sentido, não apenas gramatical,
mas em função lógica, sistemática, história e teleológica, ou seja, a sua conexão
harmônica com o sistema jurídico, o motivo porque foi feita e o intuito para que
foi feita. Exegese, na moderna acepção” (Ob. Cit. P. 303).
Segundo Emílio Betti, hermenêutica é a ciência do espírito que engloba
a atividade humana de interpretar. 232
Carlos Maximiliano, posiciona-se em sua obra com a concepção de que
interpretação é a aplicação da hermenêutica.233 Nesta concepção, a
hermenêutica é o ramo da ciência dedicado ao estudo e determinação das
regras que devem presidir o processo interpretativo de busca do significado da
lei, e não a sua aplicação, a busca efetiva desse significado em cada caso.
Limongi França defende a mesma posição doutrinária e afirma que “a
interpretação, portanto, consiste em aplicar as regras, que a hermenêutica
perquire e ordena, para o bom entendimento dos textos legais”.234
Destarte a distinção científica entre hermenêutica e interpretação,
muitos autores nacionais e estrangeiros entendem sê-la despicienda, de
nenhuma utilidade prática, dentre os quais relaciona-se Miguel Reale, sob o
fundamento de que a distinção é meramente escolasticismo abstrato que não
atende a natureza da interpretação, que é essencialmente concreta.
Porém, até em nome da ciência, da pesquisa, tem razão a corrente que
defende a distinção, porque, de primeiro plano, hermenêutica e interpretação são
fenômenos intelectuais diferentes e é fácil constatar.
A hermenêutica trata das regras, alcance, validade, origem e
desenvolvimento. São, como leciona Celso Ribeiro Bastos, enunciados e tem
existência autônoma antes e depois do objeto a ser interpretado.
A interpretação não tem a mesma natureza. Ela é o exercício intelectual
dentro dos limites e “regras” (enunciados) fornecidos pela hermenêutica e existe
só no momento que foca o objeto a ser interpretado. Não tem vida autônoma,
com ciência teórica-jurídica. Assim, realmente a interpretação é concreta.
Todavia, pelo fato de ser concreta como o é, não pode e não exclui a
validade da distinção científica entre ela e a hermenêutica.
E sendo uma atividade concreta, o ato de interpretar, como é curial, ela
segue um rumo, um método (do grego, meta odos = caminho através do qual) já
pré-existente, estatuído, abstrato dado pela ciência da hermenêutica.
A hermenêutica fornece princípios, enunciados. É, portanto, sumamente
abstrata, não “vê” os casos concretos e não se preocupa com eles. Apenas
normatiza, instrumentaliza a atividade de interpretar, a arte de interpretar.
Diferencia-se da interpretação que está mais próxima da dialética, pois
o intérprete, com os princípios e instrumentos fornecidos pela hermenêutica, tem
sua atividade voltada para convencer, para persuadir a respeito do conteúdo de
uma norma jurídica colocada ao seu estudo e arte de interpretação.
232
233
234
Apud BASTOS, Celso Ribeiro. Ob. Cit., p. 19.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro, Forense, 1988, p. 1.
FRANÇA, Limongi. Hermenêutica Jurídica. São Paulo, Saraiva, 1995, p. 4.
2
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O SUJEITO DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Os agentes da interpretação são praticamente todos, como afirma Celso
Ribeiro Bastos. 235 Por exemplo, o Poder Legislativo interpreta quando elabora a
lei de acordo com as determinações da Constituição Federal.
Porém, a interpretação mais relevante, é a efetuada pelo Poder
Judiciário, seja na adequação da norma abstrata a cada caso concreto, seja na
verificação da constitucionalidade da regra, mesmo em abstrato.
Na aplicação da lei ao caso concreto, faz o Poder Judiciário a
interpretação operativa.
Além desses citados, outro importante agente de interpretação é o
Poder Executivo, quando aplica diretamente o Direito por ocasião da criação de
novas normas (como medidas provisórias, portarias, regulamentos, etc), limitada,
é claro, pelo crivo do judicial da constitucionalidade de tais normas.
Outro agente da interpretação é a Doutrina. Segundo Paulo Bonavides,
isto ocorre quando é a “interpretação derivada dos mestres e teoristas do direito,
dos que, mediante obras, pareceres, estudos e ensaios jurídicos intentam
precisar, a uma nova luz, o conteúdo e os fins da norma, ou abrir-lhe caminhos
de aplicação a situações inéditas ou de todo imprevistas.” 236
E, por fim, como cita Celso Ribeiro Bastos, existem outras fontes
genéricas que são as advindas das partes e de seus representantes no processo
judicial, que buscam influenciar na interpretação operativa; as advindas da
opinião pública, especialmente desempenhado pela imprensa.
O OBJETO DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
O objeto da interpretação é o texto constitucional, com suas regras e
princípios, para compreensão e aplicação plena na defesa dos direitos e também
na fixação dos deveres de todos perante a Lei Maior.
O doutrinador Usera, citado por Celso Ribeiro Bastos, anota que a
norma só vive, em sentido estrito, durante o momento de ser aplicada. Este
raciocínio está de acordo com a doutrina de Peter Häberle, segundo a qual não
há norma jurídica senão norma jurídica interpretada.
Portanto, o objeto da interpretação constitucional não é, como poderia
sugerir, o sistema jurídico constitucional. O sistema, como um todo, existe como
fundamento, como pressuposto do qual não se deve afastar o intérprete, pois na
verdade, a última interpretação, deve ser de acordo com a Constituição, sob
pena de incorrer na inconstitucionalidade.
São objetos de interpretação os Princípios Constitucionais, sendo que
estes, ao mesmo tempo que objeto, são também diretrizes da interpretação,
matéria que será melhor tratada em tópico separado, por merecer atenção
especial.
235
236
Ob. Cit. p. 65.
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Forense. 1980, p. 270.
2
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Deixando então para posterior estudo os princípios constitucionais, pela
sua importância, a doutrina coloca entre os objetos da interpretação, o
preâmbulo da Constituição. Isto se justifica porque o texto preambular que é um
conjunto de afirmações que antecedem o próprio ato que promulga ou decreta a
Constituição, carece de força normativa,237 mas contém alguns vetores,
declarações principiológicas, de caráter geral, que interessam à atividade de
interpretação.
Ao texto do preâmbulo, por estas características, pode-se aplicar o
estudo a respeito dos princípios, mais abaixo.
Deste modo, a interpretação em regra, destina-se ao texto
constitucional que se afigure contrário, ou inadequado, ao “espírito” da própria
Constituição e de modo especial, com outra conotação, a interpretação se
dirigirá aos princípios e ao preâmbulo, por suas características e natureza
singulares.
FINALIDADE E EFEITOS DA INTERPRETAÇÃO
Christiano José de Andrade anota que a “interpretação faz a ordem
jurídica funcionar, tornando o Direito operativo”. 238
O Direito é geral e abstrato e necessita, pois, para a sua justa e correta
aplicação aos casos concretos, necessita de um método para atender o seu fim
de regular a vida em sociedade, gerar e manter a paz e a justiça social.
O mesmo autor acima citado, na mesma obra, lembra que “as leis não
podem operar por si sós, senão unicamente através da interpretação que lhes é
dada”.
O processo de aplicação da lei, como já se definiu neste estudo, é uma
forma de interpretação da lei, é a interpretação operativa. É neste sentido que
Aristóteles considerava o juiz como a justiça viva.
A interpretação, assim, pelo seu agente principal que é o juiz, exerce
uma função estabilizadora do direito ao esclarecer os pontos dúbios ou
conflitantes; exerce a função renovadora e atualizadora da ordem jurídica
quando acompanha a evolução história da sociedade.
PRESSUPOSTOS DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Para que se possa falar de interpretação constitucional entende-se
necessário haver certos pressupostos inerentes a dita hermenêutica.
Primeiramente, mister se faz, a existência de uma Constituição rígida, porque se
a Constituição é flexível e modificável por simples leis, o problema interpretativo
constitucional perde grande parte de sua especialidade e de seu interesse pela
impossibilidade de praticar o controle de constitucionalidade das leis.
A Constituição existe para ser cumprida, ela tanto provê no presente
237
238
BASTOS, Celso Ribeiro. Ob. Cit. p. 80.
Apud BASTOS, Celso Ribeiro. Ob. Cit., p. 89.
2
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como prepara o futuro. O espírito constitucional deverá estar presente entre os
governantes e governados. A filosofia democrática do constitucionalismo e seu
respeito ao soberano, poder constituinte do povo, são crenças e realidades
duradouras e profundas na alma popular. Entende-se que para a interpretação
constitucional ter utilidade e sentido, é indispensável o clima de liberdade civil e
política das garantias plenas, isso para que as controvérsias e disputas
constitucionais possam se resolver racionalmente e não pela imposição da força.
Sem estes pressupostos, ou seja, quando o constitucionalismo é
meramente ilusório, a interpretação constitucional carecerá de suas bases de
seriedade e poderá voltar-se a uma luta política para impor a opressão ou para
combatê-la. Sua qualidade científica e seu mérito jurídico se ressentirão
seriamente em tais circunstâncias.
O verdadeiro constitucionalismo se desenvolve e floresce nas épocas
de normalidade e estabilidade, nas quais se cumprem os pressupostos da
autêntica vida constitucional do regime político.
Os períodos históricos perturbados por guerra, revoluções, golpes de
Estado, grandes crises socioeconômicas e extrema violência, de diferentes
matizes, não são próprias da prática do constitucionalismo. Sabe-se que
somente em alguns países desenvolvidos, com grande tradição democrática,
tem sido possível manter as instituições livres, durante as guerras internacionais
ou mesmo civis.
O autêntico constitucionalismo supõe, necessariamente, os fins
humanistas, personalistas do ordenamento jurídico e, o governo limitado a
serviço dos direitos humanos. Este é o único constitucionalismo digno deste
nome, que se conhece, e o único ambiente vital ao qual é possível desenvolverse a ciência do direito constitucional e sua jurisprudência.
OS PRINCÍPIOS
INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAIS
COMO
DIRETRIZES
DA
A interpretação constitucional é a ferramenta mais apropriada para
permitir uma leitura sistêmica do texto constitucional e, em consagrando a
indivisibilidade dos direitos fundamentais, sob a hierarquização de princípios
aplicáveis e variáveis de acordo com a situação concreta, e a partir daí, a
construção de um conceito mais amplo de cidadania e de democracia, para
ultrapassar a idéia restrita da democracia como a simples consagração do direito
do voto. A interpretação, deste modo, fará chegar à idéia de uma verdadeira
democracia, enquanto processo em constante evolução, que permite a criação
de cidadãos, através da maior inclusão dos indivíduos, e que possibilita, enfim, a
maior participação dos cidadãos na construção do seu próprio futuro. O Estado,
dentro destes parâmetros, deixará de ser assistencialista, clientelista.
É por meio da correta interpretação do texto de uma constituição,
confrontado com a realidade social e econômica vivida, é que se pode
revolucionar o sistema constitucional, saindo de uma equivocada leitura
assistencial e clientelista do texto, para a construção de Constituição
2
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democrática.
Muito importante para o desenvolvimento do Estado é o
desenvolvimento da arte da interpretação, porque “difícil é este caminho de
mutação do texto constitucional, uma vez que parte do Judiciário ainda lê a
legislação infraconstitucional distante dos seus princípios”. 239
E os princípios diferem das regras jurídicas, as normas em sentido
estrito, que regulam situação específica, tendo grau de abrangência menor em
relação as outras regras.
Os princípios são regras em sentido amplo, que se aplicam a diversas
situações, direcionando e condicionando a aplicação da regras constitucionais
em sentido restrito e as diversas normas infraconstitucionais.
Estes princípios constitucionais, ora se complementam, ora se chocam,
causando o aparente conflito, que são dirimidos à luz da ideologia
constitucionalmente adotada, como princípio maior, ou valor maior, que
possibilitará eliminar os antagonismos do texto constitucional.
Ivo Dantas, ensina que, a interpretação constitucional há de ser feita,
levando-se em conta o sentido exposto nos Princípios Fundamentais
consagrados na Lei Maior. 240
Cabe ressaltar a lição de Willis Santiago Guerra Filho241 a qual salienta
que a expressão “norma de direito fundamental” tem mais abrangência que a
expressão “norma”. Isto é, existem normas fundamentais positivadas no
ordenamento jurídico, que não estão escritos na Lei Maior.
Afirma o autor que, “por outro lado, se o conjunto de direitos
fundamentais não se reduz àquele em que se encontram as normas que os
consagram, também nesse último conjunto se encontra mais do que normas de
direitos fundamentais”.
O conceito de norma, com isto, necessariamente teve que ser ampliado
no direito contemporâneo, para incluir esta nova espécie de norma fundamental
que sequer, era antes considerada como tal. As normas fundamentais são
especiais, porque embora fundamentais, não conferem novos direitos, e não
configuram qualquer outra situação subjetiva. São os princípios.
Portanto, para sistematizar o estudo, existem normas que são “regras” e
existem outras que são “princípios”, dentre as quais situam-se as de “direitos
fundamentais”, tema primeiramente abordado na literatura por Dworkin e no
Brasil por Eros Grau, de acordo com Willis Santiago Guerra Filho. 242
E as “regras”, no contexto acima, trazem a descrição de estados-decoisas formados por um fato ou um certo número deles.
Enquanto que nos “princípios” há, apenas, referência direta a valores,
que são abstratos. Não se vinculam os princípios aos fatos, à qualquer ação.
“Princípios” são incomparavelmente mais genéricos e abstratos do que a mais
239
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. “Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional”.
DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro : Lumen Juris.
1995, p. 79.
241
GUERRA FILHO, W illis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo :
Celso Bastos Editor. 2001, p. 43/44.
242
Ob. Cit., p. 45.
2
240
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ampla e genérica “regra”.
A respeito da “regra”, é possível afirmar, diante de um fato concreto, se
ela foi ou não observada. Contudo, quanto aos “princípios”, já não se pode dizer
o mesmo, já que são “determinações de otimização”, como se expressa Alexy243.
Princípios se cumprem na medida das possibilidades, fáticas ou jurídicas, que se
oferecem concretamente.
"Para nós, PRINCÍPIOS são categoria lógica e, tanto quanto possível,
universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo,
quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo,
refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal,
representativa dos valores consagrados por uma determinada
sociedade." 244
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao tratar do tema, realiza algumas
ponderações, nas quais explica :
"Os juristas empregam o termo ‘princípio’ em três sentidos de alcance
diferente. Num primeiro, seriam ‘supernormas’, ou seja, normas (gerais
ou generalíssimas), que exprimem valores e que por isso, são ponto de
referência, modelo, para regras que as desdobram. No segundo, seriam
standards, que se imporiam para o estabelecimento de normas
específicas - ou seja, as disposições que preordenem o conteúdo da
regra legal. No último, seriam generalizações, obtidas por indução a
partir das normas vigentes sobre determinada ou determinadas
matérias. Nos dois primeiros sentidos, pois, o termo tem uma conotação
prescritiva; no derradeiro, a conotação é descritiva: trata-se de uma
‘abstração por indução”.245
É nesse sentido e contexto que são importantes os princípios na
interpretação da Constituição, porque, em suma, são as “supernormas” que
exprimem valores, são pontos de referência, estão no topo da pirâmide do
ordenamento jurídico.
São os princípios que representam, como consagrou Loewenstein, “a
decisão política fundamental”, e a interpretação não pode e não poderia se
afastar da sua abrangência.
HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Vários autores noticiam que o princípio teve aplicação inicial entre os
romanos, quando estes sentiram a necessidade de haver novo julgamento sobre
243
Apud Willis Santiago Guerra. In Ob. Cit., p. 45.
DANTAS, Ivo. Ob. Cit., pág. 59.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito Constitucional do Trabalho. Estudos em Homenagem ao
Prof. Amauri Mascaro do Nascimento, Ed. Ltr, 1991, Vol. I, pp. 73-74.
2
244
245
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117
a mesma causa para corrigir injustiça ou erro, o que levou à alteração do direito
romano clássico, que não admitia qualquer recurso contra as decisões.
Max Kaser, citado por Nelson Nery Junior, menciona que há
comprovação de recursos nos moldes da apelação, desde a época do imperador
Augusto. 246
E o princípio, sofrendo alterações ao longo do tempo, manteve-se
presente nos mais diferentes sistemas jurídicos, embora não da forma como a
conhecemos.
Na Idade Média, principalmente no período da Inquisição, como todo o
sistema jurídico, o princípio do duplo grau foi praticamente suprimido pelo direito
canônico inquisitorial.
Já após a Revolução Francesa, por entenderem os novos detentores do
poder que os juízes dos tribunais superiores eram uma casta com poderes sobre
os demais magistrados de primeiro grau, e que os recursos eram uma forma de
elitismo, que de qualquer forma era combatido pelos revolucionários, por este
raciocínio, o duplo grau foi extirpado da Constituição Francesa de 1793, restando
somente a possibilidade de cassar a decisão para que o juiz de primeiro grau
lançasse outra.
Porém, em 1795, por insistência do bom senso, o princípio foi
restabelecido, estando vigente, até hoje, no sistema jurídico francês, bem como
na maioria dos países ocidentais.
No Brasil, o princípio do duplo grau constava, expressamente, na
Constituição de 1824, no seu artigo 158. As demais não o consignaram.
O Decreto 737 de 1850, que regulava o processo comercial, porém, em
seu artigo 646 previa apelação para o Tribunal de Relação das causas, que
excedessem o valor de $200, inserindo o requisito do valor de alçada. E o
princípio então passou a ter aplicação também no processo civil por força do
Decreto 763 de 1890.
Como ressalta Nelson Nery Junior, como naquela época não se dava
importância ao Direito Constitucional, ninguém se manifestou sobre a
inconstitucionalidade do artigo 646 do Decreto 737, de 1850, que estipulou valor
de alçada para o direito ao duplo grau, regra que violava a Constituição de 1824,
que assegurava o duplo grau no artigo 158, sem qualquer ressalva ou limitação.
247
Na atual Constituição, há a enumeração de recursos nos artigos 102 e
105, da competência do STF e do STJ, respectivamente. Porém,
especificamente, quando aos incisos III dos referidos artigos, os recursos
extraordinário e especial, não significam eles a existência e a consagração no
texto constitucional do princípio do Duplo Grau, porque tais recursos não são
destinados para a defesa do interesse privado, particular das partes como o são
os recursos previstos no Código de Processo Civil, por exemplo. Os recursos
ditos extraordinários, não têm a finalidade de impugnar a decisão judicial em
razão do inconformismo da parte que se sentiu prejudicada. Os recursos ali
246
247
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 38.
NERY JUNIOR, Nelson. Ob. Cit., p. 41.
2
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previstos tem função mais elevada que é a defesa e a garantia do sistema
jurídico.
Cabe aqui um parêntese para tratar desta classificação dos recursos
extraordinários, que tem sua importância doutrinária e atende os fins da ciência
jurídica, em contraposição à crítica que lhe fazem vários processualistas.
No sistema jurídico brasileiro existem diferentes recursos previstos e
regulados o seu procedimento por lei federal. E sendo muitos, é possível
classificá-los segundo diversos critérios. Um deles é pela finalidade248.
Por este critério, os recursos são classificados em ordinários e
extraordinários. Os primeiros têm a finalidade de proteção ao direito subjetivo, ao
interesse privado da parte vencida. Já os segundos, têm a finalidade de velar
pela correta aplicação da lei federal e da Constituição Federal. Visam esses
últimos a integridade e uniformidade de interpretação da lei federal e da
Constituição Federal, portanto, visam a integridade do próprio sistema jurídico,
para dar a todos, por fim, a segurança jurídica de um Estado de Direito.
O Ministro Athos Gusmão Carneiro, sobre a mesma classificação,
apenas denominando os ordinários como comuns, complementa, que os
recursos comuns respondem, imediatamente, ao interesse do litigante vencido
em ver reformada a decisão, que o desfavoreceu; como regra geral, assim,
fundamental para a admissão do recurso é apenas o fato da sucumbência, e em
determinados casos exige-se um ‘plus’, como, por exemplo, o da existência de
voto divergente como pressuposto ao cabimento dos embargos infringentes.
Os extraordinários, por sua vez, são os recursos propriamente ditos
(interpostos, portanto, no mesmo processo) e fundados, imediatamente, no
interesse da ordem pública em ver prevalecer a autoridade e a exata aplicação
da Constituição e da Lei Federal. Tem pois um caráter político, como observou
ENRIQUE VESCOVI ("Los recursos judiciales y demás medios impugnativos en
Iberoamerica", B. Aires, Depalma, 1988). 249
O interesse privado do litigante vencido funciona, nos recursos
ordinários, então, mais como móvel e estímulo para a interposição dos recursos
extraordinários, cuja admissão, todavia, liga-se à existência de uma questão
federal, à defesa da ordem jurídica no plano do direito federal, assegurando-lhe,
como referiu PONTES DE MIRANDA, a "inteireza positiva", a "autoridade", a
"validade" e a "uniformidade de interpretação".
Com a promulgação da vigente Constituição Federal, o Recurso
Extraordinário previsto no sistema constitucional, anterior, foi desdobrado em
recurso extraordinário stricto sensu - RE e recurso especial - REsp., aquele
destinado precipuamente à tutela das normas constitucionais e com julgamento
pelo STF (CF, art. 102, III); este, o recurso especial, voltado à tutela da lei (ou
tratado) federal, com julgamento pelo STJ (CF, art. 105, III).
248
MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial. 2ª ed. RT,
1999, p. 62/63.
249
Requisitos específicos de admissibilidade do recurso especial. In “Aspectos polêmicos e atuais dos
recursos cíveis de acordo com a Lei 9.756/98”. ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda; NERY JUNIOR, Nelson
(Coord). São Paulo:RT, 1999, p. 96.
2
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Visam, os ditos recursos, levar ao conhecimento do STF e do STJ
qualquer violação, contrariedade ou interpretação errônea do texto constitucional
ou da Lei Federal, para a imediata correção pelo Tribunal competente e, deste
modo, manter hígido, íntegro o sistema jurídico do País. As decisões do STF e
do STJ são paradigmáticas.
Por isso, não podem ser classificados como recursos caracterizadores
do princípio do duplo grau de jurisdição, de forma expressa, na Constituição
Federal.
O DIREITO AOS RECURSOS
Ensina o Ministro Athos Gusmão Carneiro, no seu artigo já citado, que
cada país busca, em seu ordenamento processual, realizar adequada
conciliação entre os ideais de Justiça e a necessidade de Segurança, na
aplicação jurisdicional do Direito. Isto é, proferida uma sentença, o Estado terá
outorgado aos litigantes a prestação jurisdicional, meio de eliminar conflitos de
interesses, prestação a que o Poder Público se obrigou, ao proibir a justiça
privada e ao reservar-se, com exceções limitadíssimas, o monopólio da
jurisdição.
A existência de recursos, o reexame das decisões, pelo mesmo, ou por
outro órgão julgador, vincula-se destarte a exigências de ordem eminentemente
pragmática, ligadas à falibilidade humana, à conveniência no aperfeiçoamento
das decisões judiciárias e, também, ao natural desejo do vencido em ver suas
pretensões, objeto de uma segunda e, possivelmente, mais acurada apreciação,
que inclusive poderá proporcionar maior aceitação social da decisão
reexaminada.
Se o legislador atentasse apenas à busca do valor Justiça, sempre
novos recursos poderiam ser admitidos, aberta sempre a possibilidade de
apresentar renovados argumentos, outras provas, diferentes exceções. Mas a
necessidade de uma solução estável, de um momento em que o conflito de
interesses fique definitivamente eliminado, no mundo do Direito, a exigência de
Segurança no gozo dos bens da vida, impõe uma limitação ao número e
admissibilidade dos recursos, em opção legislativa ante às condições culturais e
econômicas, às tradições, às experiências de cada país em determinado
momento de sua história.
Assim é que a recorribilidade das decisões, o instituto dos recursos, é o
que assegura ao interessado inconformado, contra decisão que lhe possa
prejudicar um direito ou interesse, um “meio de evitar ou emendar os erros e
falhas que são inerentes aos julgamentos humanos”. 250
Porém, o direito de recorrer, como corolário da garantia de ampla
defesa, não se confunde com o duplo grau de jurisdição, pois que se admite, e
permite a lei, a interposição de recursos para o mesmo juiz, o que restaria
250
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense.
1997, p. 29.
2
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preservado o preceito do artigo 5º, LV da CF, que é o da recorribilidade das
decisões sem ofensa ao duplo grau de jurisdição.
Já, o duplo grau de jurisdição, complemento do princípio da
recorribilidade, no seu conceito, em regra, consiste na possibilidade de
submeter-se a lide a exames sucessivos, por juízes ou julgadores diferentes,
como garantia da boa solução, como referido anteriormente e ainda com o
benefício de recomendar ao julgador maior cuidado no julgamento e estímulo ao
seu aprimoramento. 251
O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Após a Constituição de 1824, não existe mais, de forma expressa no
texto constitucional, a previsão do duplo grau de jurisdição, de modo genérico,
para toda e qualquer ação. E como visto acima, embora haja previsão de
recursos na própria Constituição, nos casos em que enumera nos artigos 102 e
105, eles não caracterizam e não significam a previsão constitucional do
princípio do duplo grau de jurisdição.
Os recursos extraordinários, para ser breve, são voltados para a defesa
da Constituição e da Legislação Federal, para manter íntegro o sistema jurídico e
uniforme a sua interpretação para a segurança jurídica de todos e não para a
defesa de interesse subjetivo da parte sucumbente.
Porém, a despeito da não previsão expressa do princípio no texto
constitucional, doutrinadores, como José Frederico Marques, Moacyr Amaral
Santos, Barbosa Moreira e outros, ensinam que o princípio está ínsito no nosso
sistema constitucional, como conseqüência e decorrente do devido processo
legal e da ampla defesa. Está ínsito e não implícito, registre-se.
O conceito de duplo grau de jurisdição, na visão geral do sistema, está
intimamente ligado ao conceito de recurso, ao princípio da recorribilidade,
embora não se confundam, e está intimamente ligado à idéia de uma autoridade
hierarquicamente superior à que haja proferido a decisão de que se recorre.
Para ilustrar, Barbosa Moreira252 ao tratar dos recursos, esclarece este
liame entre o princípio da recorribilidade e do duplo grau, quando ensina, que
“não fica circunscrita, em regra, a um único pronunciamento a apreciação, pelo
organismo investido da função jurisdicional, da matéria que lhe compete julgar.
Com o propósito de assegurar, na medida do possível, a justiça das decisões,
contempla a lei, a realização de dois ou mais exames sucessivos, ao passo que,
por outro lado, a fim de evitar que se sacrifique a necessidade da segurança,
cuida de limitar o número das revisões possíveis”.
E, continuando, para que ocorra estes exames sucessivos, por meio
dos recursos, “abre-se às partes e, por vezes, a outras pessoas, o ensejo de
impugnar a decisão proferida, pleiteando a emissão de outra, emanada em regra
de órgão diverso e, por exceção, do mesmo órgão que proferiu a anterior”.
251
AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil.3º v. 8ª ed. São Paulo : Saraiva.
1985, p. 84.
252
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Novo Processo Civil Brasileiro. 21ª ed. Forense. 2001, p. 113.
2
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Portanto, direito de recorrer tem previsão constitucional, e deve ser
observado sempre, sob pena de ofensa ao princípio constitucional e, em
conseqüência de nulidade absoluta do processo.
Já, entretanto, o direito ao duplo grau, que não tem previsão
constitucional, só deve ser observado se previsto, expressamente, na legislação
federal infraconstitucional.
Assim é, que ao se analisar o ensinamento de Barbosa Moreira, vê-se,
ao mesmo tempo, o conceito e a diferença dos dois institutos (do direito de
recorrer e do duplo grau de jurisdição), quando se relacionam, sendo que o
primeiro (a recorribilidade) se caracteriza como meio de impugnação da decisão
e o segundo (duplo grau), como complemento, que caracteriza-se pelo
deslocamento da competência (em regra), para levar o inconformismo para outro
órgão, encarregado do reexame.
Disso se extrai que, ao contrário, por não constar de forma expressa na
Constituição, de forma ilimitada como na Constituição de 1824, o princípio é
regulado e pode sofrer limitações pela lei federal infraconstitucional e tal medida
não ofende a Constituição, não é inconstitucional.
Desta forma, embora a sua vigência no nosso sistema jurídico seja
aceita com tranqüilidade, ficando a cargo da Lei Ordinária ou Complementar
dispor sobre a sua aplicação, conforme dispõe o artigo 22, I e 24, XI da
Constituição Federal, como é o caso do Código de Processo Civil, no qual a
aplicação do princípio do duplo grau é ampla, pois contra toda sentença cabe
apelação (art. 513), é de se concluir que, por não constar mais expressamente
no texto constitucional, a sua existência, como princípio, tem natureza
processual e é constitucional a sua limitação e sua previsão pela legislação
federal infraconstitucional.
Exemplos disso, e perfeitamente constitucionais, são: a) a hipótese do
artigo 34, caput, da Lei 6.830/80, de Execuções Fiscais, onde não se admite
outros recursos senão os de Embargos Infringentes e de Declaração, para o juiz
da causa. Entretanto, é perfeitamente possível o Recurso Extraordinário para o
STF, com fundamento no art. 102, III da CF; e, ainda, b) a do artigo 41 da Lei
9.099/95, dos Juizados Especiais, que prevê apenas recurso para próprio
juizado, porém não para um órgão de segundo grau.
São situações que não violam o princípio do duplo grau e garantem a
aplicação do princípio da recorribilidade, o direito aos recursos.
Vários autores já defendem, inclusive, numa eventual reforma do
processo civil, a adoção de maiores obstáculos ao cabimento do recurso de
apelação, para restringir as hipóteses e obter maior efetividade na prestação
jurisdicional.
É claro que o princípio do duplo grau é exigência do devido processo
legal e como tal deve ser preservado, garantem. Mas, preservado dentro de
certos limites, com freios, para não favorecer o litigante, que quer apenas
protelar e desprestigiar a eficácia da justiça em detrimento da paz social,
2
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finalidade da atividade jurisdicional. 253
Recentemente, num brilhante trabalho, Djanira Maria Radamés de Sá
254
defendeu a condição de garantia constitucional do princípio do duplo grau de
jurisdição, a partir do raciocínio de que, o processo judicial não é somente o
meio técnico, mas também o ético a serviço da realização do bem comum. O
processo é o instrumento eficaz da participação e de acesso à ordem jurídica e à
tutela jurisdicional justas, o que revela sua função sócio-política-jurídica.
Realça a citada autora, que é a instituição de garantias, que
resguardam os titulares de direitos contra o arbítrio e a força que não deixa
tornar inócua a proclamação dos direitos pela Constituição.
“Reconhecendo no processo, é o instrumento público de realização da
justiça e do estabelecimento do equilíbrio, entre o poder e a liberdade,
estabelece a Constituição os mecanismos que asseguram, pela jurisdição, a sua
supremacia, premissa básica do Estado Democrático de Direito, e de seus
valores. Dessa forma, a mesma Constituição, que enuncia os direitos
fundamentais viabiliza sua efetivação, através da previsão de garantias
processuais”, leciona a referida autora.
E a garantia das garantias, é o princípio do devido processo legal, do
qual decorrem todos os demais. Deste modo, a partir da supremacia do princípio
do devido processo legal, que assegura e resguarda todos os direitos
fundamentais como a vida, a liberdade e os bens, na sua ampla acepção e,
então, como no conceito de bem também se pode incluir o patrimônio emocional,
intelectual e social do homem, assim, do mesmo modo, o desejo de uma decisão
judicial favorável, também faz parte do patrimônio emocional e é protegido pelo
princípio dos princípios.
Por esta razão, defende a citada autora, não se pode negar ao vencido
um novo julgamento, o que atende também ao princípio da razoabilidade. E,
portanto, entende ela, para a proteção deste bem imaterial do vencido é que
existe a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, decorrente do devido
processo legal.
Além deste argumento, ainda há que se levar em conta que o Estado de
Direito visa a pacificação social, e esta só se realiza com a “realização da justiça,
com segurança em cada caso concreto” e, nisto, há uma extrapolação dos
interesses particulares para se transformar em interesse público, o que faz
necessário e imperativo o reexame da decisão do processo e “justifica à inclusão
do duplo grau de jurisdição no elenco das garantias processuais constitucionais,
diretamente derivadas da cláusula do devido processo legal, porque
indispensável à consecução dos fins últimos do Estado pelo afastamento da
possibilidade de concretização da injustiça”. 255
Os argumentos da preclara autora, envolventes e fundamentados,
253
Defensores como Solus-Perrot, Pizzoruso, Ricci, Ada Grinover, Frederico Marques, Nelson Nery.
O duplo grau de jurisdição como garantia constitucional. In “Aspectos polêmicos e atuais dos recursos
cíveis de acordo com a Lei 9.756/98”. ALVIM W AMBIER, Teresa Arruda; NERY JUNIOR, Nelson (Coord).
São Paulo:RT, 1999, p. 185.
255
Ob. Cit. p. 188.
2
254
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123
todavia, pecam, ao meu ver, pela tentativa de tentar resolver tudo pelo princípio
do devido processo legal e este especialmente direcionado à defesa dos bens,
do patrimônio imaterial, no qual se inclui a aspiração de decisão favorável.
Ora, se assim fosse, de acordo com a tese defendida, para se proteger
o inconformismo da parte sucumbente, e exagerando, através de medidas
protelatórias, o processo poderia não ter fim e poderia se prolongar ao longo do
tempo. Isto ocorrendo, a paz social, a pacificação social seria atingida? O
interesse público que extrapola o interesse particular estaria preservado,
defendido?
A resposta mais razoável é negativa, e com fundamento em respeitada
doutrina, que como já exposto em linhas acima, defendem a existência do duplo
grau, mas com limites, isto é, exatamente nos limites da lei infraconstitucional. E
nisso não se está ofendendo o princípio do devido processo legal, ao contrário,
pois ele significa, antes de tudo, a existência de regras preestabelecidas que a
todos subordinam.
Em suma, a existência de limitação ao duplo grau de jurisdição, ou
melhor, a possibilidade de aplicação do duplo grau só nos casos permitidos pela
lei infraconstitucional, é a exata exteriorização do princípio do devido processo
legal e não ao contrário, como defendido naquele trabalho citado.
Para a solução da polêmica discutida é salutar a lição de Barbosa
Moreira, 256 citado páginas atrás: “não fica circunscrita, em regra, a um único
pronunciamento a apreciação, pelo organismo investido da função jurisdicional,
da matéria que lhe compete julgar. Com o propósito de assegurar, na medida do
possível, a justiça das decisões, contempla a lei, a realização de dois ou mais
exames sucessivos, ao passo que, por outro lado, a fim de evitar que se
sacrifique a necessidade da segurança, cuida de limitar o número das revisões
possíveis”.
E, continuando, para que ocorra estes exames sucessivos, por meio
dos recursos, “abre-se às partes e, por vezes, a outras pessoas, o ensejo de
impugnar a decisão proferida, pleiteando a emissão de outra, emanada em regra
de órgão diverso e, por exceção, do mesmo órgão que proferiu a anterior”.
A ALÇADA RECURSAL NA LEI DE EXECUÇÕES FISCAIS
Ligado ao tema em estudo e como confirmação da tese defendida, a
alçada recursal na lei de execuções fiscais, garante o direito aos recursos, que é
de natureza constitucional, embora afaste a aplicação do princípio do duplo grau
de jurisdição e, neste aspecto, não é inconstitucional.
Este posicionamento encontra-se em predomínio nos tribunais e traz em
si, na defesa da recepção do disposto no art. 4º, da Lei nº 6.825/80, pela Lei
Maior de 1988, a noção que distingue a dupla instância do duplo grau de
jurisdição, de maneira que, permitindo a lei a interposição de recursos, ainda que
para o mesmo juízo, fica resguardado o preceito estabelecido no art. 5º, LV, da
256
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Novo Processo Civil Brasileiro. 21ª ed. Forense. 2001, p. 113.
2
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Constituição Brasileira, posto que há a oportunidade de reapreciação do julgado.
O problema é colocado em face da alçada prevista no art. 34, da Lei nº
6.830, de 22.9.1980, onde são contemplados, somente, como recursos, os
embargos infringentes e os embargos declaratórios, perante o mesmo juízo
monocrático, tendo em conta o valor da causa, impedindo as partes envolvidas
de terem acesso ao tribunal de segunda instância, via recursos ordinários. Nesse
contexto, é preciso saber se comportam o apelo extremo e o especial dessa
sentença, visto que, o juízo singular proferiu decisão em causa de única
instância.
Debalde foram as tentativas de superar, na Justiça Comum Federal, o
impedimento de subida de apelações e de agravos de instrumento, nas causas
sujeitas à alçada, ao antigo Tribunal Federal de Recursos - sucedido, em quase
todas as suas atribuições, pelos Tribunais Regionais Federais.
O máximo que se conseguiu foi a exceção condensada na Súmula 246
do TFR.
Com o advento da CF/88, e diante da extinção do Tribunal Federal de
Recursos, e das obrigações do Tesouro Nacional, tentou florescer o
entendimento, de que, não mais vigoravam os freios recursais decorrentes da
alçada.
Essa idéia, entretanto, foi repudiada pelos Tribunais Regionais
Federais, que pacificaram a questão, mantendo válido o disposto no art. 4º, da
Lei nº 6.825/80 e no art. 34 da Lei nº 6.830/80.
Diante disso, forçoso é, o reconhecimento de que as leis, que limitam a
subida de recursos aos tribunais federais, em função da alçada, são
constitucionais, desde que admitam o reexame da matéria pelo mesmo juízo
monocrático.
E também, em decorrência da previsão constitucional, nestes casos, é
possível manejar o Recurso Extraordinário ao STF e o Recurso Especial ao STJ,
porque são causas julgadas em única instância.
REMESSA DE OFÍCIO
Outro tema importante dentro do estudo do princípio do duplo grau de
jurisdição, diz respeito à remessa obrigatória, como condição de eficácia da
sentença nos casos especificados na legislação processual vigente. E, por isso,
convém traçar alguns aspectos importantes deste instituto para compreender
melhor, todo o sistema processual brasileiro, que se revela nestas nuances
específicas, moderno e em busca da efetividade.
Para iniciar, existem outros institutos na legislação infraconstitucional,
mais precisamente no Código de Processo Civil, que não são classificados como
recursos, que a doutrina denomina de sucedâneos, porque fazem às vezes de
recursos.
Dentre eles os mais importantes são: o pedido de reconsideração, a
correição parcial, a remessa de ofício, a argüição de relevância no recurso
extraordinário, os embargos de terceiro, a medida cautelar inominada, os
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agravos regimentais, o habeas corpus contra decreto de prisão civil e o mandado
de segurança contra ato judicial.
Destes, o que tem relevância para o presente estudo, como já se
alinhou, pela sua correlação, é o da remessa de ofício, existente no Código de
Processo Civil, no artigo 475, pelo qual, a decisão nos casos lá previstos, só
produzirá efeito após ser reexaminada e confirmada pelo Tribunal de segundo
grau.
Cabe esclarecer que a remessa não é recurso. Portanto, de início, está
equivocada a expressão “apelação ex officio”, antigamente utilizada, tradicional
do direito brasileiro.
Sua origem é do sistema medieval e visava o controle da atividade do
juiz cujos poderes eram amplos no processo inquisitório.
Para afastar, de vez, qualquer confusão com a natureza jurídica do
recurso basta analisar que falta à remessa: a voluntariedade, tipicidade,
dialeticidade, interesse em recorrer, legitimidade, tempestividade e preparo.
a) voluntariedade: o juiz, que é quem deve impulsionar e tomar a
iniciativa da remessa, não tem “vontade” em recorrer, mas é obrigado
remeter os autos à instância superior, por força de lei;
b) tipicidade: a remessa não está descrita no Código de Processo Civil
como recurso. A enumeração dos recursos é taxativa;
c) dialeticidade: os recursos são dialéticos, precisam ser fundamentados e há atendimento ao princípio do contraditório, o que não é
exigido na remessa;
d) interesse em recorrer: que se caracteriza pela sucumbência, que não
se encontra presente na remessa, pelo simples fato de que o juiz não
sucumbe e nem ganha com a própria decisão.
e) legitimidade: para manejar os recursos, só se admite as pessoas
enumeradas no artigo 499, exigência que não tem aplicação para a
remessa, que é de dever do juiz da causa;
f) tempestividade e preparo: diferente dos recursos cujos prazos e o
preparo devem ser rigorosamente observados, na remessa nada disso
é exigido. O juiz não está obrigado a nenhum prazo e não necessita
fazer o preparo. Se o juiz não fizer a remessa, por qualquer motivo, o
presidente do Tribunal poderá avocar os autos (parágrafo único do
artigo 475).
Em suma, a remessa de ofício, como entende a grande maioria dos
doutrinadores, é condição de eficácia da sentença.
Embora, então, não se possa confundir a remessa como da mesma
natureza jurídica de recurso de apelação, o seu procedimento no Tribunal é
idêntico. Há o efeito suspensivo e devolutivo pleno e isto significa, efeito
translativo (a decisão do Tribunal, mesmo confirmando, substitui a decisão de
primeiro grau).
Conseqüência disso, por essas semelhanças, é que, a doutrina está
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propensa a admitir o cabimento de embargos infringentes de acórdão não
unânime da decisão da remessa, como se fosse o caso de apelação, não
unânime, contrapondo-se as súmulas 597 do STF e 169 do STJ.
Mas, da mesma maneira como a doutrina está defendendo a idéia de
maiores obstáculos para o recurso de apelação, restrição ao duplo grau de
jurisdição, também tem dirigido seus olhos para a idéia de eliminação por
completo da remessa de ofício, por entendê-la anacrônica, ultrapassada,
medida, que ofende princípios tão importantes como o da efetividade, da
celeridade, da igualdade das partes, da instrumentalidade, do juízo natural. 257
E, registre-se, que a eliminação da remessa obrigatória do nosso
ordenamento jurídico, não causará nenhum prejuízo ao interesse das partes,
principalmente do Estado, que terá sempre, como qualquer outro interessado, os
demais recursos previstos no Código de Processo Civil, como a apelação, os
embargos de declaração, etc.
Por fim, a justificação da remessa obrigatória é a existência do interesse
público a ser salvaguardado, nas hipóteses do artigo 475 do CPC. E o conceito
de interesse público não pode significar prejuízo processual às partes, medidas
protelatórias, injustas, desiguais.
Interesse público, segundo Márcia Maria Bianchi Prates, “se manifesta
na recomendação de que a Fazenda não pague a mais, nem a menos: pague o
justo”. 258
CONCLUSÃO
O princípio do duplo grau, em suma, significa a possibilidade de levar à
reapreciação uma decisão definitiva a outro órgão de jurisdição, normalmente de
hierarquia superior daquele que a proferiu, o que se faz pela interposição de
recurso. E como é adotado pelo sistema jurídico vigente, na legislação federal
infraconstitucional, o princípio é de ordem pública, porém, não é de natureza
constitucional. A sua existência pode sofrer limitações pelas leis processuais,
que são infraconstitucionais.
E este seu significado, seu alcance, está de acordo com a busca da
efetividade do processo, pelo que se busca uma sociedade mais justa sem
olvidar da segurança jurídica. Busca-se a paz social com mais agilidade, na
prática. Portanto, não há como impedir este crescente efervescer da alma do
jurista em busca de soluções para atingir estes fins.
E uma delas, talvez a mais concreta, próxima e coerente para renovar o
atual sistema processual, é a de restringir o uso dos recursos e, ao mesmo
tempo, eliminar a remessa de ofício. Medidas que, bem pesadas, não trarão
qualquer prejuízo ao direito das partes, ao contrário, trarão resultados práticos,
efetividade, satisfação.
É a tutela jurisdicional das pessoas e não mais dos direitos, ensina
257
DIAS, Francisco Barros. “A busca da efetividade do processo”. RePro 97/217. São Paulo: RT, Jan/Mar
2000.
258
TRF 4ª, Remessa Ex Officio 1998.04.01.062260-6/PR. 1ª T. Rel. Juiz Vladimir de Freitas in RePro 99/333.
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Dinamarco. Continua o jurista: “hoje, reconhecida a autonomia da ação e
proclamado o método do processo civil de resultados, sabe-se que tutela
jurisdicional é dada às pessoas, não aos direitos, e somente àquele sujeito que
tiver razão: a tutela dos direitos não é o escopo da jurisdição nem do sistema
processual; constitui grave erro de perspectiva, a crença, de que, o sistema
gravite em torno da ação ou dos direitos subjetivos materiais”. 259
Para encerrar, e resumindo, o importante para o processo, neste
momento de necessárias transformações, é ressaltar o seu aspecto ético, a sua
conotação deontológica, aspectos pelos quais a relevância de uma norma ou de
um ordenamento será indicada quando estiver em conformidade com um valor,
com um “dever ser”, como justiça, liberdade e o bem comum.
Neste contexto, e acreditando num Judiciário mais preparado, e
também, escorado e iluminado o direito pela moderna doutrina, que em síntese
apresenta os anseios e o desenvolvimento da própria sociedade, isto é, ela é o
extrato do pensamento da sociedade, é legítimo aceitar e defender a limitação
do duplo grau de jurisdição pela legislação federal infraconstitucional, sem
qualquer ofensa aos demais princípios constitucionais, principalmente o do
devido processo legal, que restará preservado, porque estão ou já estarão
previstas no momento anterior ao fato, todas as “regras do jogo”, válidas para
todos.
259
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 9ª ed. Malheiros Editores. 2001, p.
149/155.
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CONFLITO ENTRE OS TRATADOS DE
DIREITO INTERNACIONAL E A NORMA DE DIREITO INTERNO –
SOLUÇÃO ADOTADA PELO STF (BRASIL)
FRANCISCO CARLOS JORGE
MAGISTRADO NO PARANÁ. PROFESSOR DE DIREITO CIVIL NA UEPG.
DOUTORANDO EM DIREITO PELA UNIVERSIDAD DE EXTREMADURA, ESPANHA.
SILVIA MARIA DERBLI SCHAFRANSKI
ADVOGADA NO PARANÁ. DOUTORANDA EM DIREITO PELA UNIVERSIDAD DE
EXTREMADURA, ESPANHA.
RESUMO – O artigo trata dos elos entre o Direito Internacional e o Direito interno
brasileiro, gerados pela adesão do Brasil a tratados ou ajustes internacionais,
abordando as controvérsias daí advindas. Afirmando que a Constituição
brasileira considera o tratado internacional como fonte do Direito Positivo, o texto
cuida da problemática do conflito entre tratado internacional e legislação interna,
o qual pode ser solucionado à luz das teorias monista e dualista, analisando as
diferentes soluções adotadas pelos Estados. O tema é estudado em cotejo com
o Direito Constitucional e com diversas decisões de Tribunais nacionais,
destacando os autores a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
CONFLICT BETWEEN THE TREATIES OF INTERNATIONAL LAW AND
THE STATUTE OF DOMESTIC LAW – THE SOLUTION ADOPTED BY
THE STF (SUPREME COURT OF BRAZIL) – ABSTRACT - This article
deals with the links between the International Law and the Brazilian
Domestic Law, generated by the adhesion of Brazil to treaties or
international agreements, approaching the controversies resulting from
this. Considering that the Brazilian Constitution considers the international
treat as a source of the Positive Law, the text is interested in the
problematic of the conflict between international treaty and internal laws,
which can be solved under the light of the monistic and dualistic theories,
analyzing the different solutions adopted by States. The subject is studied
in comparison with the Constitutional Law and with diverse decisions of
national Courts, distinguishing the authors of the jurisprudence of the
Supreme Federal Court.
INTRODUÇÃO
A conexão entre direito internacional e direito interno ocorre por meio de
acordos internacionais, cujas espécies variam:
tratados, convenções,
protocolos, declarações, pactos, etc. Estes acordos vêm sendo utilizados com
muita freqüência e alguns exigem mais formalidades que outros, havendo um
debate acerca do poder vinculante dos mesmos.
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Segundo Accioly 260 , os tratados ou ajustes internacionais são atos
jurídicos, por meio dos quais, se manifesta o acordo de vontades entre duas ou
mais pessoas internacionais.
É portanto o tratado, um documento, que evidencia um consentimento
expresso por parte de Estados na regulamentação de seus interesses de acordo
com a lei internacional, sendo que a multiplicação dos tratados tornou necessária
a regulamentação da matéria.
A regulamentação adveio com a Convenção de Viena sobre a Lei dos
Tratados, de 1969, que dispõe sobre acordos entre Estados. Além de codificar
as regras do costume internacional relativas à conclusão e entrada em vigor dos
tratados, sua aplicação e interpretação, sua modificação e suspensão, a
Convenção também fez evoluir o direito internacional público, no que toca à
matéria.
O art. 2º, da Convenção de Viena, de 1969, define precisamente o que
constitui tratado, como "um acordo internacional celebrado por escrito entre
Estados e regido pelo direito internacional, quer conste de um instrumento único,
quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua
denominação particular".
No Brasil, o tratado internacional, regularmente constituído, é uma fonte
de direito positivo, na ordem interna, expressamente previsto na Constituição.
Apesar de ser reservada competência privativa ao Presidente da
República para a celebração dos tratados, convenções e atos internacionais, a
aprovação pelo poder Legislativo é requisito de validade interna. A aprovação
do Congresso Nacional autoriza o Executivo a ratificar o tratado. A promulgação
é exigência para a executoriedade da norma jurídica e não transforma o tratado
em direito interno.
Não há no entanto, expressa disposição na Constituição brasileira, que
estabeleça uma solução para o conflito entre o tratado internacional e a lei
ordinária federal, sendo que antes de abordarmos o cerne da questão, faz-se
mister uma rápida análise das teorias monista e dualista, que fornecem as bases
doutrinárias para a solução a ser adotada pelos Estados, no conflito entre o
tratado internacional e o direito interno e de outras questões pertinentes ao tema,
examinando-se, a seguir, alguns julgados pelas Cortes internas.
TEORIAS
É consabido, que duas foram as grandes correntes, que surgiram no
final do século XIX, visando explicar as relações entre o direito internacional e o
direito interno: a teoria dualista e a teoria monista.
Verdross, em 1914, cunhou a expressão "dualismo". Para os dualistas,
o direito interno e o externo ao Estado são dois sistemas distintos, entre os quais
não haveria conflito, porque eles regulam matérias diferentes.
A Teoria dualista, exposta por HEIRICH TRIEPEL, que encontrou
260
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
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adeptos em diversos países, nega portanto, a possibilidade de conflito entre a
ordem jurídica interna e a internacional.
Segundo TRIEPEL, em sua obra de direito internacional de 1899, são
três as diferenças entre as ordens jurídicas interna e externa:
• na esfera internacional, o Estado é o único sujeito de direito;
• o direito internacional é fruto da vontade de vários Estados,
manifestada em tratados;
• na ordem interna ocorrem relações de subordinação entre o Estado e
seus súditos, e na ordem externa as relações são de coordenação entre
os Estados.
Muitos autores se filiaram a esta corrente, podendo-se citar entre
outros, ANZILOTTI, STRUP, WALZ E LISZT.
Os principais aspectos da teoria dualista foram sintetizados por alguns
autores, é o que se extrai da lição de RANGEL 261 :
"Cisão rigorosa entre a ordem jurídica interna e a internacional, a tal
ponto que se nega a possibilidade de conflito entre ambas. Vontade de
um só ou de vários Estados como fundamento respectivo dessas
ordens: relação de subordinação na primeira e coordenação na
segunda. Distinguem-nas, outrossim, relações, sujeitos, fontes e
estruturas diversas. Constituem-se como duas esferas, quando muito
tangentes, mas, jamais secantes. Como conseqÜência da separação
das duas ordens: validade de normas internas contrárias ao Direito das
Gentes; impossibilidade de que a ordem jurídica possa determinar a
validade das normas de outra ordem; inadmissibilidade da norma
internacional no direito interno; necessidade de transformação da norma
internacional para integrar-se no direito interno, inocorrência de primazia
de uma ordem sobre outra, por constituírem dois círculos que estão em
contacto íntimo, mas que não se sobrepõe jamais. Separam-se
nitidamente, pois, o Estado e a ordem jurídica internacional.
É o
Estado - assinalam ainda, os adeptos do paralelismo-o prius lógico do
Direito Internacional, de modo que aquele não está para este, senão ao
contrário, o direito internacional está para o Estado".
As críticas freqüentemente feitas ao dualismo são as seguintes:
• atualmente as partículas também podem ser sujeitos de direito
internacional;
• o direito internacional é fruto da vontade de vários Estados;
• o Estado é indissociável de seu ordenamento, logo, é o mesmo sujeito
no direito interno e no externo.
261
RANGEL, Vicente Marotta. Os Conflitos entre o Direito Interno e os Tratados Internacionais, in BSBDI n.4445, 1967, apud FRAGA Mirtô. O Conflito entre Tratado Internacional e a Norma de Direito Interno. Rio de
Janeiro: Forense, 1998.
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Em contrapartida à esta teoria, outro grupo procurou explicar as
relações entre o direito interno e o direito internacional, advindo então, a teoria
monista liderada por KELSEN e seguida por muitos outros estudiosos.
Para o monismo, o ordenamento jurídico internacional e interno fazem
parte de um único sistema, havendo equiparação entre sujeitos, fontes, objeto e
estrutura das duas ordens que se comunicam.
Os adeptos desta teoria se dividem em duas correntes: A da primazia
do Direito Interno (Max Wenzel, Zorn, Kaufmann, etc), e a da Prevalência do
Direito Internacional (Kelsen, Scelle, Duguit e outros). O monismo como
predomínio do direito interno afirma a superioridade do Estado, que é soberano
para dirigir suas relações internacionais em conformidade com sua lei interna.
Os principais argumentos dos autores que defendem o monismo como
primazia do direito interno são:
a) a ausência de uma autoridade supra-estatal, pelo que cada Estado
determina livremente suas obrigações internacionais, sendo em
princípio, juiz único da forma de executá-las;
b) o fundamento constitucional dos órgãos competentes para concluir
tratados em nome do Estado, obrigando-os no plano internacional.
As críticas mais freqüentes a esta corrente são:
• acaba por reduzir o direito internacional a uma mera manifestação do
direito interno;
• é um pseudo-monismo, haja vista a variedade de direitos internos;
• a validade dos acordos internacionais permanece em detrimento de
direitos internos.
Já para aqueles que defendem o monismo como primazia do Direito
Internacional, não há duas ordens jurídicas coordenadas, mas duas ordens
jurídicas, sendo que a de Direito Internacional é superior e a de Direito Interno
lhe é subordinada, ou seja, a ordem jurídica internacional tem supremacia.
Assim, quando há oposição entre as ordens interna e externa, não
ocorre uma cisão do sistema jurídico, porque é a norma internacional que
predomina.
O monismo com primazia dos tratados é criticado por não corresponder
à História, que coloca o Estado como anterior ao direito internacional. Já, em
contrapartida, os adeptos desta vertente sustentam que ela é uma teoria lógica
uma vez que, não se pode conceber um direito internacional, que não seja
superior aos ordenamentos estatais.
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DAS DIFERENTES SOLUÇÕES ADOTADAS PELOS ESTADOS
Na Constituição de alguns Estados, encontram-se dispositivos que
versam sobre a matéria, procurando regular as relações entre o direito
internacional e o direito interno, não havendo no entanto, uniformidade quanto à
solução adotada.
Mirtô FRAGA 262 classifica o texto constitucional dos Estados que dispõe
sobre o tema em quatro grupos distintos: no primeiro estão os que estabelecem
a adoção global da regra do Direito Internacional pelo direito interno, sem,
contudo, instituir a primazia de uma sobre a outra.
Esta solução advém do preceito jurisprudencial inglês: International law
is part of the law of the land.
Nesta mesma linha, encontra-se a Constituição dos Estados Unidos da
América, que em seu texto, introduz a prática inglesa, mas restringe-a ao
tratado.
De acordo com a Constituição dos EUA, a Constituição, as leis dos
Estados Unidos e os tratados concluídos, constituem a lei suprema do país. As
Constituições e as leis não podem contrariar texto de tratado.
Outros Estados possuem disposições semelhantes em suas
Constituições: Argentina, Alemanha, Áustria, Estônia, Equador, Irlanda, etc.
No entanto, a adoção global do direito internacional pelo direito interno,
segundo Lapidoth, não resolve, de todo, a questão, pois ainda resta saber se os
tribunais, em virtude de tal disposição, aplicam uma norma internacional ou uma
norma interna.
O segundo grupo, acaba por aceitar a cláusula da adoção global, dá
supremacia ao Direito Internacional pelo Direito Interno, com supremacia do
primeiro. Esta cláusula está presente nas Constituições, que determinam que as
normas de direito Internacional constituem parte integrante do direito federal,
com preponderância sobre as leis. Têm-se como exemplo: as cartas da
República Federal da Alemanha, da Itália e da Holanda.
No terceiro grupo, estão os que aderem ao sistema da incorporação
obrigatória, mas não automática. Significa dizer que o Constituinte emana uma
ordem ao legislador ordinário, atribuindo-lhe o dever de incorporar as regras do
Direito Internacional na legislação interna. Não é a integração portanto, uma
conseqüência imediata do texto constitucional, necessitando de um ato
legislativo posterior. Constitui exemplo deste sistema, a Constituição Espanhola
de 1931.
Por derradeiro, o quarto grupo abrange aqueles cuja Constituição,
submete o Estado ao Direito Internacional, porém não trata da integração deste
no direito interno. Cita-se como exemplo, a Constituição francesa de 1946, que
mencionava a conformidade da República às normas de Direito Internacional
Público.
262
FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado internacional e a norma de direito interno. Rio de Janeiro: Forense,
1998.
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SITUAÇÃO CONSTITUCIONAL DA PROBLEMÁTICA NO BRASIL
A Constituição Imperial de 1824, não fazia menção sobre a aplicação de
tratado pelo Poder Judiciário, sendo que, ao Imperador cabia a representação do
Estado, podendo celebrar tratados, que só, excepcionalmente, deveriam receber
aprovação legislativa.
Mirtô FRAGA 263, demonstra que todas as nossas Constituições
republicanas acabam por se referir à aplicação de tratado pelos tribunais, o que
acaba por gerar indagações, a respeito da adoção ou não pelo Brasil, da teoria
da incorporação imediata do Direito Internacional convencional no direito interno,
ou ainda, acerca da necessidade ou não de atos legislativos, que integrem no
sistema jurídico brasileiro a matéria contida no tratado. Para este estudioso, a
resposta a tais indagações requer uma prévia análise de questões referentes a
aprovação legislativa e o decreto de promulgação do executivo.
A Constituição Brasileira, promulgada a 5.10.1988, prevê que o tratado
internacional, regularmente constituído, é uma fonte de direito positivo, na ordem
interna, como se depreende do disposto em seu art. 5º:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - ... (omissis) …
§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte.
(sublinhou-se)
Em relação a aprovação pelo legislativo, salienta-se, que, no Brasil, as
Constituições Republicanas sempre exigiram a concordância das duas casas
que compõem o Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado
Federal), para que o acordo contido no tratado pudesse ser concluído. Assim é
atualmente.
Têm-se, portanto, que o tratado, depois de assinado pelos
representantes devidamente credenciados pelo presidente da República, deverá
ser encaminhado imediatamente ao Congresso Nacional, como requisito de
validade interna, consoante a norma constitucional, contida no art. 84, inciso VIII:
263
Idem, ibidem.
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Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
I - … (omissis) ....
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais,
sujeitos a referendo do Congresso Nacional;
(sublinhou-se)
Aprovando o tratado assinado pelo Executivo, o Congresso consente
em que se conclua o ato internacional, sendo que, a aprovação do tratado
obedeça ao mesmo processo de elaboração da lei, com observância de
idênticas formalidades de tramitação, divergindo somente no aspecto que condiz
a inadmissibilidade de emendas e ao fato de poder ser promulgada pelo
presidente do Senado sem necessidade de sanção do Presidente da República.
A aprovação se dá por decreto legislativo, sendo que tal ato, apesar de
ser compreendido no processo Legislativo não tem o condão de transformar o
acordo assinado pelo Executivo em norma a ser observada, seja na órbita
interna, seja na internacional. Isto ocorre, porque, constitucionalmente, o
Executivo só pode ratificar, o tratado mediante prévia autorização do Congresso.
Como assevera Mirtô FRAGA:
"a intervenção do Legislativo, na conclusão de tratado, se opera,
sobretudo, na função fiscalizadora, que ele exerce sobre os atos do
Executivo. E, embora, ao autorizar a ratificação, esteja, também, dando
sua aquiescência à matéria contida no ato internacional, não há, nessa
aprovação, uma atividade legislativa, capaz de gerar uma norma interna
e, menos ainda, de transformar o tratado em direito interno a ser
aplicado pelo tribunal. Isso só acontece com a promulgação, data em
que, geralmente entra em vigor."
Embora siga quase o mesmo processo destinado à produção da lei, o
decreto legislativo utilizado na aprovação de tratado não pode ser a ela
equiparado, haja visto que a lei é ato conjunto do Legislativo e do Executivo,
pois exige a participação de ambos os poderes para converter-se em norma
obrigatória, depois de publicada, e o decreto Legislativo, conclui-se com a
aprovação, não sendo suscetível nem de sanção nem de veto.
Depois de aprovado pelo Congresso nacional, o tratado, se ratificado,
entrará em vigor na órbita internacional, na data nele estipulado.
No Brasil, embora não haja nenhum dispositivo Constitucional, que
determine expressa e taxativamente a necessidade de promulgação do tratado
pelo Chefe do Executivo, através de decreto, tal fato tornou-se comum, desde
1826.
Ao contrário dos doutrinadores, que entendem que a promulgação se
resume à mera prática brasileira, estão àqueles que entendem que a mesma
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encontra arrimo em comando constitucional.
Como bem diz o mesmo Mirtô FRAGA, o decreto de promulgação não
tem o poder de transformar em norma interna o que se convencionou no ato
internacional, uma vez que, o decreto de promulgação é, o atestado de
existência de uma regra jurídica, regularmente, concluída, em obediência ao
processo específico, instituído na Lei Maior. Para ele, se a promulgação não
integra o processo legislativo, vez que lhe é posterior, o que se promulga já é lei,
não se podendo afirmar que o tratado promulgado pelo Executivo deixa no
âmbito interno do Estado de ser Direito Internacional, para ser disposição
legislativa interna.
Além de promulgado, ensina José Afonso da SILVA, que o tratado deve
ser publicado para que se divulgue a comunicação da existência de uma norma
jurídica. A publicação acaba por tornar obrigatório o tratado, a partir da inserção,
no Diário Oficial da União, do decreto de promulgação contendo em apenso o
tratado.
Têm-se portanto, que no Brasil, o tratado regularmente concluído, é
fonte de direito e deve ser promulgado pelo Poder Competente, publicando-se
em seguida, a promulgação para conhecimento de todos, após o que será
obrigatório.
O Supremo Tribunal Federal tem entendido ser necessária a
promulgação para que o tratado tenha força executória na ordem interna. Na
jurisprudência, no entanto, apesar de alguns votos isolados, é pacífico o
entendimento de que, após a promulgação, o tratado passa a ter vigência na
ordem interna, devendo ser aplicado pelos Tribunais, tal como se vê da seguinte
decisão adotada pelo Egrégio Tribunal Superior do Trabalho:
RECURSO DE REVISTA DA ITAMON – HORAS EXTRAS – ACORDO
DE
COMPENSAÇÃO
E
PRORROGAÇÃO
DE
JORNADA
SIMULTÂNEOS – Não existe em nosso ordenamento jurídico norma
que impeça a realização de horas extras, simultaneamente, ao regime
compensatório, desde que observados, é claro, os limites legais
impostos à duração da jornada de trabalho. O que há, na verdade, é a
autorização expressa da norma consolidada, "ex vi" do art. 61, para a
extrapolação do limite legal ou convencionado para a duração do
trabalho na hipótese de necessidade imperiosa. Recurso provido.
HORAS EXTRAS. MINUTOS QUE ANTECEDEM A JORNADA
CONTRATUAL – A jurisprudência desta corte entende que é devido o
pagamento das horas extras relativas aos dias em que o excesso de
jornada ultrapassa cinco minutos antes e/ou após a duração normal do
trabalho. Não conheço. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EM DOMINGOS
E FERIADOS – O Enunciado nº 146 do TST aplica-se à hipótese em
exame, pois os domingos e feriados trabalhados e não compensados
devem ser pagos em dobro sem prejuízo da remuneração relativa ao
repouso semanal, inteligência da Orientação Jurisprudencial nº 93 da
SDI. Não conheço. HORA NOTURNA REDUZIDA. TRATADO DE
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ITAIPU – As regras disciplinadoras do trabalho noturno previstas no art.
73 da CLT, não obstante permaneçam em vigência, foram
excepcionadas pelas estabelecidas no Protocolo Adicional ao Tratado
da Itaipu, norma esta que efetivamente se aplica aos trabalhadores a
serviço da construção da Usina de Itaipu, visto que passou a integrar o
direito positivo por força do § 2º do art. 5º da Constituição Federal.
Indevida, portanto, a hora noturna reduzida, a teor do disposto na alínea
"f" do art. 5º do Decreto nº 75242/75. Recurso provido. ADICIONAL DE
PERICULOSIDADE. INTERMITÊNCIA – A atual orientação
jurisprudencial do TST, consubstanciada no Enunciado nº 361, pacificou
o entendimento de que "o trabalho exercido em condições perigosas,
embora de forma intermitente, dá direito ao empregado a receber o
adicional de periculosidade de forma integral, tendo em vista que a Lei
nº 7369/85 não estabeleceu qualquer proporcionalidade em relação ao
seu pagamento." Não conheço. DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS E
FISCAIS – O recurso, no particular, encontra-se prejudicado, haja vista
que o acórdão impugnado não emitiu tese acerca das matérias
supracitadas, carecendo, portanto, do requisito do prequestionamento a
que alude o Enunciado nº 297 do TST. Não conheço. RECURSO DE
REVISTA DA ITAIPU – Fica prejudicado o exame do recurso de revista
interposto pela ITAIPU, em face de as matérias nele contidas já terem
sido objeto de apreciação por esta corte quando da análise do recurso
da ITAMON. (TST – RR 240701 – 1ª T. – Rel. Min. Ronaldo José Lopes
Leal – DJU 24.03.2000 – p. 70) (Juris Síntese “Millennium”, ementa nº
30045444, JCLT., art. 73 JCF.art. 5, § 2º — sem destaques no original)
Ou mesmo pelos Tribunais Regionais do Trabalho a exemplo do que
decidiu o TRT da 2ª Região:
CONVENÇÃO Nº 158 DA OIT – VIGÊNCIA – A Convenção nº 158, de
1982, aprovada pelo Congresso Nacional em 1992 e ratificada pelo
Brasil em 05.01.1995, tem plena vigência no território nacional a partir
de 05.01.1996, de acordo com os princípios do direito internacional e
com a Constituição de 1988, que incorpora à nossa ordem jurídica os
tratados internacionais (Constituição de 1988, art. 5º, § 2º, e Decreto do
sr. Presidente da República de nº 1.855, de 10.04.1996. (TRT 2ª R. –
DCG 379/96-A – Ac. SDC 257/96-A – Rel. Juiz Floriano Correa Vaz da
Silva – DOESP 19.06.1996) (Juris Síntese “Millennium”, ementa nº
100389 – JCF.5.2, sem destaques no original)
A nível Regional, ou seja, no âmbito dos Estados-Membros da
Federação, também adota-se o mesmo entendimento, como a propósito se vê
da decisão do E. Tribunal de Justiça do Distrito Federal:
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DIREITO PENAL – HABEAS CORPUS – CONSTITUCIONAL – PRISÃO
CIVIL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – ILEGALIDADE – 1. É ilegal a
prisão civil do devedor fiduciário como depositário infiel, uma vez que
não se reconhece na alienação fiduciária o contrato de depósito. A
prisão civil está restrita aos casos indicados pela CF/88 em seu art. 5º,
inciso lXVII. 2. O pacto internacional sobre direitos civis e políticos,
incorporado ao direito brasileiro face ao § 2º do art. 5º da Carta Magna,
veda taxativamente a prisão civil por descumprimento de obrigação
contratual. 3. Ordem concedida. Conceder a ordem à unanimidade.
(TJDF – HBC 19990020045985 – CM – Rel. Des. Vasquez Cruxên –
DJU 21.02.2000 – p. 22) (Juris Síntese “Millennium”, ementa nº
32063280, JCF.5.IXVII JCF.5.2 JCF.5, sem destaques no original).
Semelhante posição adotou-se no julgado a seguir citado, pelo Tribunal
de Alçada de Minas Gerais:
BUSCA E APREENSÃO – CONVERSÃO EM DEPÓSITO –
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – INADIMPLEMENTO CONTRATUAL –
DISCUSSÃO EM TORNO DE ENCARGOS CONTRATUAIS –
IMPOSSIBILIDADE FACE À AUSÊNCIA DE DEPÓSITO DO VALOR
QUE ENTENDE DEVIDO PRISÃO DO DEVEDOR FIDUCIANTE –
IMPOSSIBILIDADE – INTELIGÊNCIA DO INCISO LXVII, C/C § 2º,
AMBOS DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA –
"CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS” –
"PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA", DE 1969, AO QUAL
ADERIU O BRASIL EM 25.9.92 – A despeito de entender ser possível a
argüição em ação de busca e apreensão dos encargos decorrentes do
contrato, na espécie, tornou-se inviável, isto porque não demonstrou a
devedora à alegada cobrança excessiva e abusiva, sequer dignou-se a
efetuar o depósito da quantia que entende devida, circunstância que
torna desnecessária, neste momento, o exame da revisão das cláusulas
contratuais. Não se admite a prisão do devedor fiduciante visto não se
tratar a alienação fiduciária de verdadeiro contrato de depósito, mas de
simples "equiparação a depósito", para maior garantia da Instituição
Financeira e ainda diante da incorporação ao ordenamento jurídico
pátrio do "Pacto de San José da Costa Rica", ratificado em 25.9.92,
que, em seu art. 11, proíbe a prisão por inadimplemento de obrigação
contratual. (TAMG – AC 0300299-3 – 3ª C.Cív. – Rel. Juiz Dorival
Guimarães Pereira – J. 01.03.2000) (Juris Síntese “Millennium”, ementa
nº 34020570 – JCF.5.LXVII JCF.5.2 JCF.5, sem destaques no original)
Contrariamente, porém, entendeu a mesma 3ª Câmara Cível do E.
Tribunal de Alçada de Minas Gerais, embora sendo outro o Relator, consoante
se vê do julgado:
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ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA – AÇÃO DE BUSCA E
APREENSÃO CONVERTIDA EM DEPÓSITO – INADIMPLÊNCIA DO
DEVEDOR – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – PACTO DE
SÃO JOSÉ DE COSTA RICA – IMPOSSIBILIDADE – VOTO VENCIDO
– Os tratados dos direitos humanos não apenas se incorporam
automaticamente na ordem jurídica interna brasileira, por força do
disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição, como também aqui passam a
valer com o "status" hierárquica de norma constitucional, e não de
norma ordinária. Vv.: É possível a cominação da pena ao devedor
fiduciário que se torna infiel depositário, não por descumprir com
condições do mútuo ou por dívida, mas, por inadimplência de
obrigações como depositário, cargo assumido em face da própria
natureza do instituto da alienação fiduciária em garantia, que exige para
sua perfeição a existência do depósito legal da coisa alienada. Embora
se admita o conflito entre o Pacto São José de Costa Rica, ratificado
pelo Brasil, e o Decreto Lei 911/69, não tem o tratado internacional força
suficiente para revogar o disposto na Constituição Federal,
prevalecendo a lei brasileira, por expressa autorização constitucional,
sob pena de negar o princípio da supremacia da Constituição. As
regras, advindas de convenções ou tratados, aderidas pelo governo
brasileiro, não têm aplicabilidade, internamente, no país, até que sejam
recepcionados, validamente (§ 2º, do art. 60, CF), pela Constituição, isto
é, através do poder constituinte. (TAMG – AC 0291539-1 – 3ª C.Cív. –
Rel. p/o Ac. Juiz Kildare Carvalho – J. 09.02.2000) (Juris Síntese
“Millennium”, ementa nº 34020672 – JCF.5.2 JCF.5 JCF.60.2 JCF.60,
sem destaques no original).
O último entendimento também foi adotado pelo Tribunal Regional do
Trabalho da 15ª Região:
“HABEAS CORPUS” – DEPOSITÁRIO – PRISÃO CIVIL – TRATADO
INTERNACIONAL QUE PROÍBE PRISÃO POR DÍVIDA – NORMA
INFRACONSTITUCIONAL – EXEGESE DOS ART. 5º, INCISO LXVII, E
SEU § 2º DA CF – O depositário lógico e legal dos bens penhorados é o
devedor-executado, na forma do “caput” do art. 666 do CPC – De
conseqüência, esse último não pode escusar-se desse encargo nem
deixar de assinar o respectivo auto, sendo ineficaz essa recusa, sob
pena de obstrução ilegítima da execução e de consagração de fraude. A
prisão por depósito infiel não pressupõe ação específica de depósito,
podendo ser decretada no próprio processo em que se constituiu o
encargo (Súmula nº 619 do STF). A Convenção Americana sobre
Direitos Humanos não suplantou o inciso LXVII da CF, daí sendo
possível a prisão por depósito infiel. Essa norma internacional passou a
integrar o sistema jurídico brasileiro com “status” de norma ordinária;
raciocínio diverso consagraria total subversão da rigidez constitucional,
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prevista no art. 60 e seus parágrafos da Carta Política. Ordem de
“habeas corpus” denegada. (TRT 15ª R. – HC 1582/99 – Ac. 81/00-A –
SE – Rel. p/ o Ac. José Pedro de Camrgo Rodrigues de Souza –
DOESP 11.02.2000 – p. 3) (Juris Síntese “Millennium”, ementa nº
24006455 JCF.5.LXVII JCF.5.2 JCPC.666, sem destaques no original).
O 2º Grupo de Câmaras Cíveis do E. Tribunal de Alçada do Estado do
Paraná, também discrepa do entendimento que hoje predomina na
jurisprudência, mormente do E. Superior Tribunal de Justiça, a respeito da prisão
civil em face do Pacto de San José, consoante o julgado relatado pelo brilhante
juiz Wilde de Lima Pugliesi:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO
CONVERTIDA EM AÇÃO DE DEPÓSITO – DEPOSITÁRIO INFIEL –
PRISÃO CIVIL – ADMISSIBILIDADE – CONSTITUCIONALIDADE DO
DECRETO LEI Nº 911/69 – PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA –
EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS – 1 – É legal a prisão do
alienante fiduciário em face da atual norma constitucional (art. 5º, XVII),
enquanto a constituição contemplar a prisão de depositário infiel e a
legislação definir o alienante fiduciário como enquadrado nessa
condição, nenhuma ilegalidade haverá. 2 – Os compromissos
assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte
(parágrafo 2º do art. 5º, da CF) não minimiza o conceito de soberania do
estado-povo na elaboração da sua constituição; a norma (art. 7º, nº 7,
do pacto de São José da Costa Rica), deve ser interpretada com as
limitações impostas pelo art. 5º, XVII, da CF. (TAPR – EI 121565801 –
Ac. 955 – 2º G.C.Cív. – Rel. Juiz Wilde Pugliese – DJPR 26.02.1999)
(Juris Síntese “Millennium”, ementa nº 9000247 – JCF.5.2 JCF.5.XVII
JCF.5, sem destaques no original).
Mesmo no âmbito do Direito Penal, vem se entendendo ser o tratado
internacional, após sua promulgação, como integrante da ordem interna, como a
propósito decidiu o E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
AGRAVO EM EXECUÇÃO – PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL
EM CRIME CLASSIFICADO COMO HEDIONDO – Realidade jurídica
atual e regime jurídico constitucional e infraconstitucional do regime
penal dos crimes hediondos propriamente tais e por equiparação.
Progressão. Imperativo categórico que a espécie reclama modo visão
constitucional e internacional. Reforma penal (Lei nº 7.210/84)
introdutora do "processo de diálogo entre o estado e o delinqüente".
Fato, valor e norma. Tríade conjugada a questões de ordem jurídica,
sociológica, filosófica, ideológica e princípios gerais do direito como
hermenêutica abrangente do total regime jurídico da espécie. Regras de
Tóquio, Pacto de San José da Costa Rica e Pacto Internacional Sobre
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Direitos Civis e Políticos de New York. Direitos e garantias expressos na
Constituição Federal, arts. 1º, inc. III e 4º, inc. II que não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte. Incidência cogente do disposto no art. 5º, par. 2º, da Constituição
Federal. Normas de ordem pública qualificada. Jurisprudência do STJ.
Progressão do regime mantida. Provimento negado ao agravo. (TJRS –
AG 699051306 – RS – C.Fér.Crim. – Rel. Des. Carlos Roberto Lofego
Canibal – J. 26.05.1999) (Juris Síntese “Millennium”, ementa nº
27015365 – JCF.5.2 JCF.5 JCF.4.II JCF.4 JCF.1.III JCF.1, sem
destaques no original).
Tal como o 2º Grupo de Câmaras Cíveis do Paraná, é, porém, a
posição da Corte Suprema de nosso País, ao que se vê, dentre outros, do
julgado a seguir colacionado:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL –
A CF proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se
furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o
depósito voluntário ou legal (art. 5º, LXVII, última parte). É constitucional
a prisão civil do depositário infiel de bem gravado com cláusula de
alienação fiduciária, porque o depósito a que se refere a CF e como
tratado pelo direito positivo brasileiro, não é apenas o depósito
convencional, mas também o necessário e legal. Precedente. Os arts.
1º (art. 66 da Lei nº 4.728/65) e 4º do DL 911/69 definem o devedor
alienante fiduciário como depositário, porque o domínio e a posse direta
do bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou credor, em
face da natureza do contrato. Os compromissos assumidos pelo Brasil
em tratado internacional de que seja parte (§ 2º do art. 5º da
Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo
na elaboração da sua Constituição; por esta razão, o art. 7º, nº 7, do
Pacto de São José da Costa Rica, (“ninguém deve ser detido por dívida:
este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação
alimentar”) deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art.
5º, LXVII, da CF. (STF – HC 77.942-1 – RJ – 2ª T. – Rel. Min. Maurício
Corrêa – DJU 11.12.1998) (Juris Síntese “Millennium”, ementa nº
702731 – JCF.5.2 JCF.5.LXVII, sem destaques no original)
Após o julgado da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça – STJ
(Resp nº 149.518-60, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, de 05/05/99) a
jurisprudência tornou-se firme no sentido da impossibilidade de decreto prisional
contra o depositário em relação contratual de alienação fiduciária, mesmo sem
se referir propriamente ao Pacto de San José da Costa Rica, mas sim, na
interpretação da legislação infra-constitucional. Foi assim que em recente
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decisão o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira definiu o tema 264, sintetizando-o
à luz da doutrina, que cerca o artigo 904 do CPC, e art. 4º do Decreto Lei n.º
911/69 (que regulamenta especificamente a matéria de garantia fiduciária),
entendendo haver sob o enfoque constitucional elastecido, "depósito atípico". In
verbis:
"HABEAS CORPUS. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PRISÃO CIVIL.
DESCABIMENTO. NOVA ORIENTAÇÃO DA CORTE ESPECIAL.
RECURSO DESACOLHIDO”. Conforme decidiu a Corte Especial
(EResp 149.518- GO, DJ 28.2.2000), descabe prisão civil em alienação
fiduciária, por não se tratar de depósito Típico. Vistos, etc. 1. Trata-se
de recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal, da relatoria do Desembargador Lécio Resende, que,
por maioria de votos, concedeu habeas corpus em favor do recorrido,
restando assim ementado; "HABEAS CORPUS. AÇÃO DE BUSCA E
APREENSÃO - CONVERSÃO EM DEPÓSITO - CONTRATO MÚTUO DEPÓSITO ATÍPICO - PRISÃO CIVIL – IMPOSSIBILIDADE AMPLIAÇÃO DO CONCEITO ANTE A CONSTITUIÇÃO - ORDEM
CONCEDIDA. É juridicamente impossível a prisão do devedor em
virtude de depósito atípico, resultante da ampliação do conceito, que no
plano constitucional, tem caráter restritivo." O recurso especial aponta,
além de dissídio, violação do art. 904, parágrafo único, CPC e 4º do
Decreto-Lei n.º 911/69, sustantando a legalidade da prisão do recorrido,
ao fundamento de ser cabível a prisão civil em alienação fiduciária.
Opina o Ministério Público Federal pelo provimento do recurso.
Distribuídos os autos ao Ministro Fernando Gonçalves, determinou S.
Exª a redistribuição, por se tratar de matéria afeta à competência de
uma das Turmas da Segunda Seção. Acrescente-se que houve
interposição de recurso extraordinário, que de igual forma restou
admitido. 2. A questão diz respeito à prisão civil em alienação fiduciária,
tendo este Superior Tribunal de Justiça firmado o entendimento de ser
incabível a prisão, por se tratar de depósito atípico. A propósito, o HC 7.
812- GO (DJ 12/4-99), relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, assim
ementado: "HC. PRISÃO CIVIL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Não há
relação de depósito na alienação fiduciária e por isso descabe a prisão
civil do devedor. Nova orientação da Quarta Turma. Ordem concedida.
Voto vencido". No mesmo sentido, dentre outros, o HC 9.014- SP (DJ
14.6.99), de que fui relator, e o REsp 196.330-RJ (DJ 3.5.99), também
da 4.ª Turma. E a Corte Especial, revendo seu anterior entedimento,
firmou posição pelo descabimento da prisão na espécie. Mais
recentemente, EREsp 149.518-GO, DJ 28.02.2000."
264
Diário da Justiça da União, de 27/03/00, pág. 286, Resp. n.º 132.950 - DF
2
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Apesar desse posicionamente, permanece a discussão a nível
Constitucional sobre a eficácia do Pacto de San José, a respeito da prisão por
dívida, justamente por não se ter uma posição firme com relação ao tratamento
de que se deve emprestar ao tratato internacional, inclusive quanto a sua
eventual hierarquia em relação ao direito interno.
O CONFLITO ENTRE A LEI E O TRATADO
Como visto anteriormente, o decreto de promulgação apenas confere
força executória ao tratado, e é através da sua publicação que a norma
convencional se torna obrigatória a todos, devendo ser aplicada pelos Tribunais.
O conflito entre o tratado e as disposições legislativas internas advêm
do fato de o decreto de promulgação não converter o tratado em direito interno, o
que acaba por gerar inúmeros debates na busca de uma solução para esta
polêmica, como supra demonstrado.
Em relação a atual Constituição, têm-se que a mesma não estabeleceu
qualquer prioridade sobre a prevalência de uma sobre a outra norma (art. 5º, §
2º), sendo que a solução deve ser encontrada à luz da interpretação e segundo
os princípios gerais do direito. Não há, entre os doutrinadores, um entendimento
pacífico, sendo que as soluções propostas costumam ser abordadas em três
grupos.
No primeiro grupo estão aqueles que equiparam a lei e o tratado
resolvendo o conflito através do princípio lex posterior derrogat priori. Desta
forma, as disposições convencionais e legislativas têm o mesmo valor, e com a
integração no direito interno, o tratado passa a ser lei estando com ela em
situação de igualdade hierárquica e o conflito entre suas disposições se resolve
em virtude da ordem cronológica de sua edição, ou seja, a mais recente revoga
a mais antiga.
Já, para o segundo grupo, a aplicação da lei afasta a do tratado devido
à obrigação imposta aos tribunais de emprestar eficácia à lei. Não se admite a
revogação do tratado pela lei nem a desta por aquele, vez que, tendo processos
de laboração diversos, só por eles podem ser modificados. No entanto, os
tribunais como órgãos estatais incumbidos de aplicar o direito, estão obrigados
a emprestar eficácia às normas internas. Neste caso, fica afastada a aplicação
da lei podendo ocorrer a responsabilidade internacional do Estado.
A terceira solução apontada pela doutrina se consubstancia no
reconhecimento da superioridade do tratado em face da norma do direito interno.
Para grande parte da doutrina brasileira, a supremacia do direito internacional é,
o único meio possível, de acordo com o sistema jurídico brasileiro, de solucionar
o conflito entre as normas. Entretanto, a Constituição Brasileira não previu
nenhuma das três soluções.
Têm-se portanto, que a resposta não pode ser encontrada em norma
expressa de direito positivo, e sim através de preceitos implícitos na Lei Maior e
com auxílio de princípios gerais de direito.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
144
A SOLUÇÃO ADOTADA NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
O Supremo Tribunal Federal, recentemente se manifestou sobre o
tema, ao apreciar pedido de habeas corpus 265, onde se pretendia o seguimento
de "recurso inominado", com força de apelação, pleiteado perante o Superior
Tribunal de Justiça, objetivando o reexame da matéria de fato examinada em
processo criminal da competência originária do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, entendendo — por maioria — não ser possível a interposição do
recurso, em favor da condenada, por considerar que a Constituição Federal
enumera taxativamente os recursos cabíveis para o STJ e STF, na espécie, e
dentre essa enumeração, não está previsto o recurso interposto, não obstante a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de São José da Costa
Rica — tenha previsto no art. 8º, 2, que: "Toda pessoa acusada de delito tem ... "
h: "direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior".
Considerou o Supremo Tribunal Federal, que a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos — Pacto de São José da Costa Rica, quando reconhece
e assegura o princípio da isonomia e do duplo grau de jurisdição, possui
natureza de lei ordinária, não estando a Constituição Federal, portanto, obrigada
a observar as disposições nela contidas, além do que, o duplo grau de jurisdição
não é uma garantia constitucional.
Nesse julgamento — ocorrido em 29.03.2000 —, restou vencido o Min.
Marco Aurélio, que entendia ser possível, na espécie, o seguimento do recurso,
por aplicação analógica do art. 105, II, a, da CF, o qual atribui ao STJ o
julgamento, em recurso ordinário, de “habeas corpus” decididos em única
instância pelos tribunais dos Estados, e, por fundamento diverso, o Min. Carlos
Velloso, por entender que a CF consagra como direitos fundamentais aqueles
reconhecidos em tratados, de que o Brasil seja signatário, por expressa
disposição do art. 5º, § 2º da CF, como já reconhecido em outros precedentes:
ADInMC 1.480-DF (julgada em 4.9.97, acórdão pendente de publicação; v.
Informativo 82) e HC 72.131-RJ (julgado em 22.11.95 , acórdão pendente de
publicação; v. Informativo 14).
Confiram-se os fundamentos invocados pelo preclaro Min. Relator:
Ação Penal Originária e Duplo Grau (Transcrições) RHC N. 79.785RJ*266 –
265 RHC (Recursos de Hábeas Corpus) 79.785-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 29.3.2000, in Informativo
STF nº 187, "WWW.stf.gov.br"
266
Ver Informativo 183
2
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145
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE:
Relatório: A recorrente foi condenada em processo da competência
originária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por figurar um Juiz
de Direito como co-réu. Do acórdão interpôs recurso inominado, "com
força de apelação" para o Superior Tribunal de Justiça, invocando a
Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos. No
Tribunal de origem, o órgão especial indeferiu liminarmente o apelo.
Donde o habeas corpus requerido por seu il. Defensor, advogado Luiz
Carlos de Andrade, ao Superior Tribunal de Justiça, visando à subida do
recurso inominado. Da fundamentação do pedido se colhe:
"Basta uma interpretação isenta e profunda da Constituição Federal
para se perceber o direito da paciente. Se a carta magna não inclui o
reexame de mérito nas ações originárias, também não proíbe. Não se
pode esquecer que o duplo grau de jurisdição está incluído no capítulo
referente às garantias individuais e coletivas sendo pressuposto do
contraditório, ampla defesa e devido processo legal, (art. 5º, LV);
impossível falar em garantir as processuais mínimas sem duplo grau de
jurisdição. [...]
E depois de recordar que mesmo acusados da prática dos crimes
hediondos têm direito ao reexame de mérito dos seus processos, conclui a
argumentação:
"Agora, o que não se entende e não se pode aceitar é que uma pessoa
que estudou, lutou, formou-se, não tem personalidade criminosa e não
cometeu nenhum tipo de crime descrito acima, não possa ter os
mesmos direitos que os autores de crimes repugnantes. Fere o bom
senso. O fato de uma pessoa tornar-se promotor, procurador,
magistrado e outros cargos com "foro privilegiado" não subtrai seus
direitos de cidadão. Que "foro especial" é esse que massacra o
indivíduo, tornando-o inferior processualmente aos demais cidadãos? A
própria Constituição repugna qualquer forma de discriminação, seja por
qualquer razão, (art. 3º, IV, C.F.). A paciente é advogada, não tem foro
especial, porém foi atraída a tê-lo em razão de um dos réus ser juiz de
direito. Foi julgada como funcionária pública sem nunca ter sido. Por
conta dessa "atração" desse "privilégio de foro" a paciente está
passando por essa dificuldade processual. Nunca teve os direitos de um
agente público ou um magistrado, porém respondeu pelos deveres
deste. Abre-se, aqui, uma oportunidade para este Superior Tribunal de
Justiça corrigir este grave disparate, à que a atração se dera em franco
prejuízo para sua pessoa."
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
146
No STJ, o Ministro Fernando Gonçalves, relator, indeferiu liminarmente
o habeas corpus. Dessa decisão houve agravo regimental, improvido, assim
ementado o acórdão:
"PROCESSUAL PENAL. CAUSA DECIDIDA NO ÂMBITO DE
COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO.
VIOLAÇÃO A ESTE PRINCÍPIO. INOCORRÊNCIA. PRETENSÃO DE
SUBMETER AO STJ RECURSO INOMINADO NÃO CONTEMPLADO
PELO
ORDENAMENTO
JURÍDICO.
INEXISTÊNCI
A
DE
CONSTRANGIMENTO ILEGAL AO DIREITO AMBULATORIAL DA
PACIENTE. 1. A Constituição Federal consagrou os julgamentos em
única instância, não havendo, por isso mesmo, se falar em violação ao
princípio do duplo grau de jurisdição, e muito menos malferimento a
Tratado Internacional de Direitos Humanos. 2. Não se vislumbra, por
outro lado, qualquer maltrato ao direito de ir e vir da paciente, dado que
o julgamento em instância única não é excludente dos recursos
próprios, uma vez observadas as prescrições legais a respeito. Não se
cogita de "qualquer recurso", mas, sim, daquele previsto na Lei
Fundamental, a abrir ensejo ao debate da matéria pela instância
especial, característica básica do STJ, de uniformização da
jurisprudência e não de simples revisor das decisões locais."
Daí, o recurso ordinário para o Supremo Tribunal, que insiste e
desenvolve a argumentação expendida na impetração originária. Opina pelo
improvimento o il. Subprocurador-Geral da República Cláudio Fonteles, que
ementou o parecer nestes termos:
"As ações penais originárias, aliás com expressa previsão
constitucional, não ferem o duplo grau de jurisdição: razão de ser do
chamado duplo grau de jurisdição - evitar a decisão única e final de
índole monocrática - não comprometida com o julgamento originário,
que é sempre colegiado."
É o relatório.
Voto: Entendo oportuna, uma breve revisão da estatura e do alcance
reconhecidos ao princípio do duplo grau de jurisdição, antes que, já sob
a égide do art. 5º, § 2º, da Constituição, a promulgação do Pacto de
São José da Costa Rica — a Convenção Americana de Direitos
Humanos — desse novo colorido ao tema.
Só era consensual que, explicitamente, apenas a Carta Política do
Império, no art. 158, erigira o "duplo grau" em princípio constitucional.
Não obstante o silêncio das sucessivas Constituições da República —
que leva autores de tomo a negar status constitucional ao princípio (v.g.
J. C. Barbosa Moreira, Comentários ao C.Pr.Civil, Forense, 8ª ed,
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
147
V/238; Roy Friede, Do Duplo Grau de Jurisdição, tese, UFRJ, 1990,
passim; Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, Atlas, 7ª ed.,
2000, n. 18.3, p. 97) — é numeroso e respeitável o rol dos que
entendem ser a garantia do duplo grau de jurisdição uma derivação da
própria organização constitucional do Poder Judiciário — seja em razão
da previsão de tribunais competentes para o julgamento de recursos
ordinários ou extraordinários (v.g., A. Mendonça Lima, Introdução aos
Recursos Cíveis, ed. RT, 1976, p. 140 ss) —, seja de outras garantias
constitucionais, quer a da ampla defesa, quer particularmente aquela do
devido processo legal — mesmo antes de sua consagração explícita na
Lei Fundamental (v.g., J. Frederico Marques, Introdução ao Dir. Proc.
Civil, Forense, 1960, IV/ 265, § 1000; Calmon de Passos, O devido
processo e o duplo grau de jurisdição, Em. Forense 277/1, 1982; Ada
Grinover, Os Princípios e o C.Pr.Civil, Bushatsky, 1973, p. 143; H.
Theodoro Jr., Estudos de Dir. Proc. Civil, 1974, 2/76; J. Celso de Mello
Filho, Constituição Federal Anotada, Saraiva, 1986, p. 437; Nelson Nery
Jr., Recursos no Processo Civil, ed. RT, 1993, p. 260; Djanira Radamés
de Sá, Duplo grau de Jurisdição — Conteúdo e Alcance Constitucional,
Saraiva, 1999, p. 3, e passim).
A leitura das opiniões divergentes permite verificar, contudo, que
freqüentemente o dissenso — em especial, da parte dos que insistiram na
hierarquia constitucional do postulado — tem menos de base dogmática do que
de vigoroso whishfull think ing, que parte da firme convicção na utilidade dos
recursos como instrumentos de segurança, de controle e de isonomia. Assim, a
preocupação dominante com a idéia de controle por via dos recursos da
atividade jurisdicional, verdadeiramente agravada pelo nosso sistema de
unipessoalidade do juízo de primeiro grau, ganha ênfase marcante nos trabalhos
citados de Frederico Marques e Calmon dos Passos, assim como em Cintra,
Grinover e Dinamarco (Teoria Geral do Processo, 14ª ed., Malheiros, p. 74).
De sua vez, é o princípio isonômico que domina o primoroso voto
vencido do Ministro Romildo Bueno de Souza, pela inconstitucionalidade do art.
4º da L. 6.825/80, que instituiu a alçada para a apelação na Justiça Federal
(TFR, RO 5.803, Plen., 24.6.82, rel. Ministro Adhemar Raymundo, in, R. Friede,
Do Duplo Grau, cit., p. 207, 222). Não obstante as graves preocupações
subjacentes à tese — não é fácil, no Brasil, alçar, de lege lata, o duplo grau a
princípio e garantia constitucional, tantas são as previsões na própria
Constituição de julgamentos de única instância, na área cível, já,
particularmente, na área penal. A mim me parece que — para que tenha a
eficácia instrumental, que lhe atribuem, na realização de eminentes valores - o
"duplo grau" há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres
específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro
grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso, do que a proferiu e de
hierarquia superior na ordem judiciária. Daí que — para sustentá-lo a qualquer
custo e ajustá-lo às numerosas exceções constitucionais — autores de justa
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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nomeada tivessem chegado a admitir no ponto tais concessões, que acabavam
por esvaziar o princípio que insistiam em afirmar implicitamente acolhido e
observado pela Constituição. Exemplo dessa postura é o dos que se contentam,
para entender respeitado o duplo grau, com a submissão dos acórdãos da
competência originária dos Tribunais superiores à eventualidade do cabimento
do recurso extraordinário — no entanto, de devolução circunscrita à questão
constitucional envolvida —, ou das decisões originárias dos Tribunais de
segunda instância ao mesmo recurso extraordinário e aos demais recursos de
revisão in jure da questão federal ordinária, confiados aos diversos Tribunais
Superiores: tudo isso para tentar reduzir a exceção ao princípio às hipóteses de
competência originária do Supremo Tribunal. É significativo observar que a
notável Ada Grinover — que parece subscrever, com Cintra e Dinamarco (Teoria
Geral, cit ., p. 75), a opinião referida — em trabalho mais recente (Um Enfoque
Constitucional da Teoria Geral dos Recursos, em Tabenchlak e Bustamante,
Livro de Estudos Jurídicos, IEJ, Rio, 1994, p. 70, 73) assinala, a meu ver
corretamente, que "o princípio do duplo grau esgota-se nos recursos cabíveis no
âmbito do reexame de decisão, por uma única vez. Os recursos de terceiro grau
das Justiças trabalhista e eleitoral, o recurso especial para o STJ e o
extraordinário para o STF, não se enquadram na garantia do duplo grau, sendo
outro seu fundamento").
Para outros estudiosos, de sua vez, não seria essencial à identificação
do duplo grau de jurisdição que a competência para o recurso tocasse a um
outro ou ao mesmo órgão do próprio Tribunal a quo — a exemplo dos embargos
— quando a melhor doutrina, nessa hipótese, não divisa mais que o princípio
menos exigente de duplo exame da causa. Para finalizar, recorde-se ainda a
posição dos juristas que — persistindo na dignidade constitucional do princípio
— entretanto, aceitam que a lei ordinária possa ditar exceções ao duplo grau, o
que não parece fácil de conciliar com a tese de que se cuidaria de regra
compreendida no âmbito da garantia fundamental do due process of law.
Tudo isso me conduziu — sem negar-lhe a importância, mormente
como instrumento de controle — à conclusão de que a Constituição — na linha
de suas antecedentes republicanas — efetivamente não erigiu o duplo grau de
jurisdição em garantia fundamental. Certo, não desconheço ser ele quase
universalmente um princípio geral do processo. Daí, a previsão constitucional de
Tribunais cuja função — básica nos de segundo grau (v.g, art. 108, II), e
extraordinária, nos Superiores (arts. 105, II, e 121, § 4º, III a V) e até no
Supremo (art. 102, II) — é a de constituir-se em órgão de recursos ordinários.
Entretanto, não só a Carta Política mesma subtraiu do âmbito material de
incidência do princípio do duplo grau as numerosas hipóteses de competência
originária dos Tribunais para julgar como instância ordinária única, mas também,
em linha de princípio, não vedou à lei ordinária estabelecer as exceções que
entender cabíveis, conforme a ponderação em cada caso, acerca do dilema
permanente do processo entre a segurança e a presteza da jurisdição. Essa
convicção me levou duas vezes — esta é a terceira — a negar estatura
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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constitucional ao duplo grau de jurisdição e até à regra menor do duplo exame: a
primeira, no voto como relator da ADInMC 675, DJ 20.6.97 — vencido por outros
motivos —, e a segunda, quando, com o respaldo da Primeira Turma, neguei
força de garantia constitucional à embargabilidade das decisões das ações
penais originárias, que não as do Supremo Tribunal (HC 71.124, 1ª T., 28.06.94,
Pertence, DJ 23.09.94).
Com a reserva, que entendo cabível, do exame, em cada hipótese, da
razoabilidade da exclusão legal do recurso ordinário — continuo persuadido
desse entendimento, isto é, de que a Constituição, quando não o repila ela
mesma, não garante às partes o duplo grau de jurisdição. Esse o quadro,
compreende-se o esforço do impetrante para convencer de que a situação se
alterou substancial e imediatamente, quando, já vigente o art. 5º, § 2º, da
Constituição, sobrevieram os arts. 25.1 e 2, b, e 8º, 2, h, do Pacto de São José
da Costa Rica. É o que resta examinar.
Tem este teor as duas cláusulas invocadas da Convenção Americana
de Direitos Humanos:
"Artigo 8º Garantias Judiciais (...)
2) Toda pessoa acusada de delito (...). Durante o processo, toda pessoa
tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. (...)
Art. 25 Proteção judicial
1) Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer
outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a
proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos
pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando
tal violação seja cometida por pessoas, que estejam atuando no
exercício de suas funções oficiais.
2) Os Estados-Partes comprometem-se:
(...)
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;".
Esses dois parágrafos do art. 25, a meu ver, nada têm a ver com o
problema: neles, o termo recurso — traindo a ambigüidade que o caracteriza em
língua espanhola e contamina, freqüentemente, as traduções para o português
— não parece ter o sentido restrito de impugnação a sentenças, mas de ação ou
remédio judicial, ainda quando endereçado o juízo de primeira ou única instância
(recorde-se, por exemplo, que, na Constituição da Espanha (art. 161, 1, a),
assim como na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (art. 31 ss), o instituto
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
150
assimilável à nossa ação direta de inconstitucionalidade se denomina "recurso
de inconstitucionalidade". Mas não importa: no art. 8º, 2, h, da Convenção, têmse iniludível consagração, como garantia, ao menos na esfera processual penal,
do duplo grau de jurisdição, em sua acepção mais própria: o direito de "toda
pessoa acusada de delito", durante o processo, "de recorrer da sentença para
juiz ou tribunal superio”.
II
Põe-se aqui, não resta dúvida, uma antinomia entre o Pacto —
promulgado no Brasil em 1992 — e a Constituição. O problema — como frisado
de início — ganhou cores mais fortes a partir da Constituição de 1988, que deu
realce específico, na sua Declaração de Direitos, às convenções internacionais a
eles relativas, e prescreveu:
"Art. 5º. (...) § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte".
A partir daí, a questão é saber, da perspectiva do juiz nacional, se as
convenções, de que decorrem direitos e garantias fundamentais do indivíduo,
aplicáveis independentemente da intermediação normativa dos Estados
pactuantes, têm hierarquia constitucional e conseqüente força ab-rogatória da
Constituição, de modo, por exemplo, a nela inserir o princípio questionado do
duplo grau de jurisdição. O tema foi encarado pelo Tribunal duas vezes, pelo
menos: a primeira, no HC 72.131, 23.11.95, Moreira Alves — relativa à
compatibilidade da prisão civil do depositário infiel ou equiparado com o art. 5º,
LXVII, CF, e com o Pacto de São José - e na ADinMC 1.480, 25.9.96, Celso de
Mello — acerca da constitucionalidade da Convenção 158 da Organização
Internacional do Trabalho. Ambos os acórdãos, lamentavelmente, ainda
aguardam publicação. Mas, no primeiro, fiquei vencido, dada a inteligência
restritiva que empresto à permissão constitucional da prisão do depositário infiel,
independentemente da superveniência da Convenção Americana; e, no
segundo, a nitidez das posições ficou um tanto comprometida com a
circunstância de a Convenção possuir caráter programático — como a mim e a
outros juízes pareceu — ou, pelo menos, admitir interpretação conforme, que
exclua qualquer pretensão de eficácia plena e imediata (Inf. STF, n. 82) como
entendeu a maioria (ver ementa do voto condutor do Ministro Celso de Mello,
transcrito no Inf. STF 135). Peço, assim, a paciência dos eminentes colegas para
avançar algumas considerações sobre a controvérsia, de indiscutível relevância.
De logo, participo do entendimento unânime do Tribunal, que recusa a
prevalência sobre a Constituição de qualquer convenção internacional (cf.
decisão preliminar sobre o cabimento da ADIn 1.480, cit., Inf. STF 48). A visão
dominante na doutrina nacional contemporânea não parece diversa. Das leituras
e releituras a que o caso me induziu, ficou-me a impressão de que nela, dos
trabalhos acessíveis, só o il. Prof. Celso de Albuquerque Mello (O § 2º do art. 5º
2
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151
da Constituição Federal, em Ricardo Lobo Torres, Teoria dos Direitos
Fundamentais, Renovar, 1999, 1, 25) não apenas empresta hierarquia
constitucional aos tratados, mas vai além, ao ponto de afirmar-se "ainda mais
radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma
constitucional, mesmo naquele caso em que uma constituição posterior tente
revogar uma norma internacional constitucionalizada", postura — acresce —
"que tem a grande vantagem de evitar que o Supremo Tribunal Federal venha a
julgar a constitucionalidade dos tratados internacionais". A observação final é
confirmação eloqüente da lição de Hans Kelsen (Teoria Geral do Direito e do
Estado, trad. M. Fontes/UnB, 1990, p. 375): o grande pensador — antepondo
também, aqui, o seu compromisso com o rigor científico à sua postura
ideológica, claramente internacionalista — demonstrou com clareza que entre as
teorias monistas da primazia do Direito Internacional ou da primazia do Direito
Nacional, a opção em abstrato não é jurídica, mas ideológica — na qual "somos
guiados por preferências éticas ou políticas".
De qualquer sorte, não ouso lançar-me ao mare magnun das
controvérsias que a matéria suscita entre os teóricos, relevante quando se cuida
de decidir acerca da difusa responsabilidade internacional do Estado. Se a
questão, no entanto — no estágio ainda primitivo de centralização e efetividade
da ordem jurídica internacional — é de ser resolvida sob a perspectiva do juiz
nacional — que, órgão do Estado, deriva da Constituição sua própria autoridade
jurisdicional — não compreendo possa ele buscar, senão nessa Constituição
mesma, o critério da solução de eventuais antinomias entre normas internas e
normas internacionais. O que é bastante a firmar a supremacia sobre as últimas
da Constituição, ainda quando esta eventualmente atribua aos tratados a
prevalência no conflito: é que, mesmo nessa hipótese, a primazia derivará da
Constituição e não de uma apriorística força intrínseca da convenção
internacional. "Recorde-se, de início" — assinalou Rezek, Direito Internacional
Público, Saraiva, 1989, p. 103, com invejável precisão — "que o primado do
direito das gentes sobre o direito nacional do Estado soberano é, ainda hoje,
uma proposição doutrinária. Não há, em direito internacional positivo, norma
asseguratória de tal primado. Descentralizada, a sociedade internacional
contemporânea vê cada um de seus integrantes ditar, no que lhe concerne, as
regras de composição entre o direito internacional e o de produção doméstica.
Resulta que, para o Estado soberano, a constituição nacional, vértice do
ordenamento jurídico, é a sede de determinação da estatura da norma jurídica
convencional. Dificilmente uma dessas leis fundamentais desprezaria, neste
momento histórico, o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica a ponto
de subpor-se, a si mesma, ao produto normativo dos compromissos exteriores
do Estado. Assim, posto o primado da Constituição em confronto com a norma
pacta sunt servanda, é corrente que se preserve a autoridade da lei
fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito
pelo qual, no plano externo, deva aquele responder". Talvez convenha frisar
que o ensinamento não pode ser imputado sem mais — como talvez estimasse o
ilustrado professor anteriormente recordado — à circunstância de partir de um
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Ministro do Supremo Tribunal Federal e do reacionarismo congênito que a todos
eles atribui. É eloqüente notar que também para o autorizado e insuspeito
Cançado Trindade (Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à
proteção de direitos humanos nos planos internacional e nacional em Arquivos
de Direitos Humanos, 2000, 1/3, 43) — que não é juiz do STF, mas Presidente
da Corte Interamericana de Direitos Humanos — "a posição hierárquica dos
tratados no ordenamento jurídico interno obedece ao critério do direito
constitucional de cada país...".
E não parece que realisticamente possa negá-lo quem, como juiz, deva
aplicar o tratado na órbita da jurisdição indígena. "A nós parece muito claro" —
extraio do trabalho de um mestrando de qualificada Universidade (Mauricio
Andreiuolo Rodrigues, Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos e a Constituição, em Torres, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p.
162) — "que, ao menos no Brasil, o tratado internacional não pode ultrapassar
os limites impostos pela Constituição da República. E a razão para tanto, está na
natureza estável do texto constitucional. A leitura dos artigos 59 e seguintes
deixa ver que se trata de uma Constituição rígida. E como tal, os seus preceitos
revestem-se de situação hierárquica mais elevada. Porque se trata de conflito de
normas de diferentes hierarquias — uma, constitucional e a outra, de natureza
internacional, logo, infraconstitucional — não tem valor a regra do monismo
moderado, ordinariamente utilizada, e de acordo com a qual lex posterior derogat
lex priori". "Seja como for" — conclui — "o tratado internacional derivará, sempre
— e em qualquer ocasião — de um fundamento constitucional. Sendo norma
derivada da Constituição, em nenhuma hipótese, vale sempre repetir, poderá
transcender ao que foi posto originariamente pelo legislador constitucional". Ora,
a partir da Constituição positiva do Brasil — e não daquilo que a cada um
aprouvesse que ela fosse — fica acima de minha inteligência compreender que,
sobre ela, se afirmasse o primado incondicional das convenções internacionais,
de tal modo que, se anteriores, permanecessem elas incólumes ao advento da
norma constitucional adversa e, posteriores, pudessem ab-rogá-la.
Assim, como não o afirma em relação às leis, a Constituição não
precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos
inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das
convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente
que o das emendas a ela e aquele que, em conseqüência, explicitamente admite
o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b) Certo, com o
alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem
positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso de
logo — como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 —
com o entendimento, então majoritário — que, também em relação às
convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais — preserva a
jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis. Na ordem interna,
direitos e garantias fundamentais o são, com grande freqüência, precisamente
porque - alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou
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negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à
Constituição (cf. Hans Kelsen, Teoria Geral, cit, p. 255).
Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que
alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil à
inovação, que, malgrado, os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma
abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos.
Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim —
aproximando-me, creio, da linha desenvolvida no Brasil por Cançado
Trindade (e.q., Memorial cit., ibidem, p. 43) e pela ilustrada Flávia Piovesan (A
Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos
Direitos Humanos, em E. Boucault e N. Araújo (órgão), Os Direitos Humanos e o
Direitos Internos) — a aceitar a outorga de força supra-legal às convenções
de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas —
até, se necessário, contra a lei ordinária — sempre que, sem ferir a
Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e
garantias dela constantes. Nessa linha, minha intuição é que se possa
caminhar um tanto além de Luiz Flávio Gomes (Direito de Apelar em Liberdade,
2ª ed., RT, 1996, p. 83).
No caso presente, entretanto, o aprofundamento dessas reflexões seria
ocioso. É que, em relação ao ordenamento pátrio, para dar a eficácia pretendida
à cláusula do Pacto de São José, de garantia do duplo grau de jurisdição, não
bastaria sequer lhe conceder o poder de aditar a Constituição, acrescentandolhe limitação oponível à lei: seria necessário emprestar à norma convencional
força ab-rogatória de normas da Constituição mesma, quando não dinamitadoras
do seu sistema. Com efeito, creio já ter notado que, na acepção que entendo lhe
deva ser atribuída, o duplo grau reclama a oponibilidade de recurso de
devolução ampla à sentença da instância originária: não o satisfaz, portanto, a
simples sujeição dela aos recursos de tipo extraordinário, de âmbito de cognição
circunscrito à questão de jure discutida.
Toda vez que a Constituição prescreveu para determinada causa a
competência originária de um Tribunal, de duas uma: ou também previu recurso
ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, II, a; 105, II, a e b; 121, § 4º, III, IV e V)
ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu. Em tais hipóteses, o recurso
ordinário contra decisões de Tribunal, que ela mesma não criou, a Constituição
não admite que o institua o direito infraconstitucional, da lei ordinária à
convenção internacional: é que, afora os casos da Justiça do Trabalho — que
não estão em causa — e da Justiça Militar — na qual o STM não se superpõe a
outros Tribunais —, assim como a do Supremo Tribunal, com relação a todos os
demais Tribunais e Juízos do País, também as competências recursais dos
outros Tribunais Superiores — o STJ e o TSE — estão enumeradas
taxativamente na Constituição, que só ela mesma poderia ampliar. À falta de
órgãos jurisdicionais ad qua, no sistema constitucional, indispensáveis a
viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de
competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com a
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Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da garantia
invocada.
Sem dar-lhe realce de um fundamento autônomo, o impetrante acena
com o fato de que, no caso, a paciente "foi julgada como funcionária
pública sem nunca ter sido" e, "por conta dessa atração desse 'privilégio
de foro'" é que sofre a perda da possibilidade de reexame da sua
condenação: o entendimento que, em tal hipótese, em relação ao
particular, divisa ofensa da garantia do juiz natural é respeitável, mas
tem sido sistematicamente repelido pelo Tribunal (v.g. Extr. 347, Djaci,
Pl en., 7.12.77, RTJ 86/1; RE 86.709, 22.08.78, Moreira, RTJ 90/950;
HC 68.846, Pl., 02.10.91, Galvão, RTJ 157/563; Pet 760, Plen.,
08.04.94, Moreira, RTJ 155/722): note-se que um dos precedentes
evocados — o HC 68.846 — diz respeito ao processo a que respondeu
a paciente. De tudo — anotando o escorreito e dedicado trabalho
profissional do jovem advogado impetrante — nego provimento ao
recurso: é o meu voto.267
Adotando a mesma linha de entendimento, o mesmo Ministro do STF,
prolator do voto supra citado, restou vencido no julgamento do Habeas Corpus
nº 80.133, em 13.06.2000, relatado pelo Ministro Octávio Gallotti, onde
prevaleceu o entendimento de que não há constrangimento ilegal por excesso de
prazo nas hipóteses de prisão decorrente da sentença de pronúncia, quando já
concluída a instrução criminal, não tendo o réu, pronunciado há mais de três
anos, direito a liberdade provisória. O Min. Sepúlveda Pertence, vencido, deferia
a ordem por entender que o Pacto de São José da Costa Rica não admite a
subsistência de uma sentença de pronúncia com mais de três anos de
duração268.
No último caso, não houve discussão quanto à norma constitucional,
mas negou-se eficácia ao pacto internacional, mesmo diante de omissão de lei
interna, a respeito do tema, quando a lógica recomenda que a máxima pacta
sunt servanda fosse respeitada.
Em outra situação, por seis votos contra cinco, o Pleno do STF
entendeu que a regra do art. 594 do Código de Processo Penal, que estabelece
— "o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, (...)" — continua em vigor,
não tendo sido revogada pela presunção de inocência do art. 5º, LVII, da CF —
que, segundo a maioria, concerne à disciplina do ônus da prova —, nem pela
aprovação, em 28.05.92, por decreto-legislativo do Congresso Nacional, do
Pacto de S. José da Costa Rica. Ficaram vencidos os Ministros Maurício Corrêa,
Francisco Rezek, Marco Aurélio, Ilmar Galvão e Sepúlveda Pertence. HC
72.366-SP (Relator o Min. Néri da Silveira, sessão de 13.09.95) 269.
Reiterando o posicionamento já adotado anteriormente, como
267
Acórdão pendente de publicação (sem destaques no original)
Informativo 193/STF. Sentença de Pronúncia e Excesso de Prazo. HC 80.133-PA, rel. Min. Octavio Gallotti,
13.06.2000.
269
Informativo nº 5 / STF
2
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demonstrado no tópico anterior, a Corte Suprema de nosso País, por sua Turma
competente, decidiu em 16.05.2000 270, no sentido da constitucionalidade da
prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia
(Decreto-lei 911/69, art. 4º), a Turma indeferindo habeas corpus impetrado
contra acórdão do STJ em que se sustentava a derrogação do DL 911/69 em
face do art. 7º, item 7, do Pacto de São José da Costa Rica ("Ninguém deve ser
detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar").
Acrescentou-se, ainda, que o mencionado Pacto, dada a sua natureza
infraconstitucional, não pode afastar as exceções à prisão civil por dívida, que
foram diretamente impostas pela CF, a qual prevê expressamente, e
independentemente de regulamentação infraconstitucional, a possibilidade de
prisão civil do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de
obrigação alimentícia e a do depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII). Na
oportunidade citou-se como precedente o HC 72.131-RJ (julgado em 22.11.95,
acórdão pendente de publicação - v. Informativo 14).
CONCLUSÃO
Em que pese no Brasil, o tratado internacional, regularmente
constituído, seja considerado como fonte de direito positivo, na ordem interna,
expressamente previsto na Constituição, como inicialmente afirmado, resta
flagrante, como se vêm das decisões citadas, em especial das oriundas da Corte
Suprema, que os pactos internacionais recebem, na ordem interna, verdadeiro
tratamento de fonte meramente mediata, ou secundária do direito, a par da
legislação ordinária, após sua ratificação, sem força para alterar qualquer norma
constitucional, posto a Constituição Federal é a expressão máxima da soberania
nacional, e esta, pois, acima de qualquer pacto, tratado ou convenção
internacional, sendo considerada como a norma fundamental do país,
diversamente do que pregou Kelsen.
Valorando-se imediatamente as normas infraconstitucionais internas e,
somente em não as havendo, é que se aceita o pacto como fonte do direito
positivo interno, ao menos segundo o entendimento da maioria no Supremo
Tribunal Federal, intérprete máximo da Constituição Federal entre nós. O
Supremo Tribunal Federal dá prevalência a certas normas de direito interno
sobre as de direito internacional público, em decorrência de seu próprio
entendimento, com base na especialidade das leis no sistema jurídico
constitucional, pelo qual uma lei geral não tem força de derrogar lei especial e
vice-versa.
Nem se equipara, assim, o tratado genericamente à lei, quando se
resolveria o conflito através do princípio lex posterior derrogat priori. Nem se
empresta força superior ao tratado em face da norma interna, quando situações
gerais são reguladas a par de especiais.
270
Informativo 189, HC 79.870-SP, rel. Min. Moreira Alves, 16.5.2000. (HC-79870)
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A Corte Suprema do País, vem entendendo que o tratado internacional
conteria normas meramente programáticas, mormente em tema de direitos
fundamentais, que estariam orientando o legislador para sua adoção pelo
ordenamento interno, e, então, quando a matéria é incorporada no próprio texto
da Carta Constitucional, os direitos nela reconhecidos adquirem o status de
norma constitucional e, portanto, soberana, inclusive como cláusulas pétrea,
consoante o art. 60, § 4º, IV. § 4º (Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais).
Não tratando a matéria versada no pacto, tratado ou convenção de
direitos humanos, empresta-lhe o Supremo, eficácia infra constitucional entre as
normas internas da mesma natureza, por força da disposição contida no art. 102,
da Constituição Federal, que estabelece: Compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: … III - julgar, mediante
recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando
a decisão recorrida: …b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei
federal; …, dado ao princípio que orienta a República, acolhido no art. 4º, inciso
II, da Carta Constitucional: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas
relações internacionais pelos seguintes princípios: …II - prevalência dos direitos
humanos.
Resta nítido, assim, que o Supremo Tribunal Federal, inclina-se pela
Escola Monista (Kelsen), considerando o ordenamento jurídico internacional e o
interno como parte de um único sistema, porém com primazia do Direito Interno,
a nível constitucional, afirmando a superioridade do Estado, que é soberano, não
tendo nenhuma eficácia o pacto internacional, quando contrariar dispositivos
constitucionais, e sendo meramente pragmáticos, quando não houver disposição
constitucional sobre questão que aí deveria ser tratada, prevalecendo, ainda, a
sua lei interna geral ou especial, só se admitindo a aplicação do princípio lex
posterior derrogat priori, tema diverso de direitos humanos, em que pese os
tribunais inferiores sejam mais liberais no acolhimento dos pactos internacionais,
como restou demonstrado neste trabalho.
De qualquer forma, só mesmo com a adoção de normas constitucionais
claras a respeito do tema, se permitirá entendimento uniforme. Caso contrário, a
valoração das normas contidas nos tratados no plano interno, dependerá do
entendimento das escolas à que se filiem os membros das Turmas ou do Pleno
do Supremo Tribunal Federal, conforme seja a sua composição e conforme a
natureza da norma internacional.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado internacional e a norma de direito interno. Rio de Janeiro: Forense,
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1967, apud FRAGA Mirtô. O Conflito entre Tratado Internacional e a Norma de Direito Interno. Rio de Janeiro:
Forense, 1998.
REZEK, José Francisco. 1944. Direito Internacional Público: curso elementar. 2ª Edição, São
Paulo: Saraiva, 1991.
WEB: http://www.stf.gov.br
http://gemini.stf.gov.br/netahtml/jurisp.html
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A UNIÃO EUROPÉIA
HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO
PROFESSOR DE FILOSOFIA JURÍDICA NO CESCAGE – DOUTORANDO EM
DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO PELA UNIVERSIDADED DE LAS ISLAS
BALEARES (PALMA DE MALLORCA, ESPANHA) – ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO – Após analisar múltiplas acepções de “comunidade”, esclarece o
artigo que nas Ciências Sociais o paradigma clássico (fundado nas sociedades
nacionais) está sendo substituído por outro (o da sociedade global), ensejando a
reformulação de conceitos como “soberania” e “hegemonia”, supedâneos de
doutrinas políticas e jurídicas. Destaca o autor que a formação de blocos
regionais de Estados enseja o surgimento um novo ramo do Direito, o “Direito
Comunitário”. O texto traz esboço histórico-filosófico dos blocos regionais, com
destaque para a União Européia, tratando de múltiplos aspectos da construção
da Comunidade Européia e sua atual estrutura organizacional.
CONSIDERATIONS UPON THE EUROPEAN COMMUNITY – ABSTRACT After analyzing multiple meanings of ‘community”, this article clarifies that in
Social Sciences the classic paradigm (grounded on national societies) is being
replaced by another (the one of a global society), waiting for the reformulation of
concepts such as “sovereignty” and “hegemony”, basis of legal and political
doctrines. The author emphasizes that the formation of regional blocks of States
promotes the emergence of a new branch of Law, the “Communitarian Law”. The
text presents a philosophical-historical sketch of regional blocks, giving
prominence to the European Community, treating multiple aspects of the
construction of the European Community and its current organizational structure.
INTRODUÇÃO
O vocábulo comunidade evidencia a indicação do estado ou qualidade
de tudo o que é comum ou está em comum, salientando o estado ou a posição
de comunicação efetiva sendo já a comunhão realizada.
Desse modo, a comunidade já evidencia a união ou universalização de
coisas singulares ou de pessoas, que contribuíram para a formação do todo ou
da coletividade.
Mesmo em relação à comunhão, em acepção restrita, comunidade
possui pontos diferenciais dela: a comunhão pode existir mesmo a respeito de
uma só coisa, desde que se indique pluralidade de interessados sobre elas não
a de coisas ou fatos.
A comunidade é resultante da situação jurídica, não somente em
relação à pluralidade de pessoas, como a respeito da universalidade de bens. E
pode existir, mesmo sem este sentido econômico, que é próprio da comunhão,
tal seja a comunidade de pessoas para formar uma corporação, onde os
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interesses podem ser meramente morais ou culturais.
Há, entanto, fundamental ponto de analogia: em ambos existe,
precipuamente, algo de comum, sem o que a comunidade não se objetivaria.
Também se verifica que comunidade e comunicabilidade, apresentando
significação de coisas ou fatos, que se comunicam, ou se comunicaram, têm
sentidos diferentes, pois a comunicabilidade mostra a condição ou qualidade de
ser comunicável, antes, assim, que se tenha comunicado.
É imprescindível que se saiba o significado jurídico destas palavras,
pois no assunto a ser abordado, a globalização e o próprio Direito Comunitário,
existe uma mais ampla “comunicabilidade” e uma maior “comunhão” entre os
Estados que se unem para formar “comunidades”. Os estudiosos ousavam
prever, há alguns anos, sobretudo quando ainda imperava a guerra fria, que
dividia o mundo em dois blocos ideológicos, o intenso fenômeno da globalização
registrado no mundo contemporâneo.
Atualmente o paradigma clássico das Ciências Sociais, baseado nas
sociedades nacionais, está sendo substituído por outro, o da sociedade global,
levando à reformulação dos conceitos clássicos da soberania e da hegemonia,
ainda firmemente arraigados na doutrina política e jurídica.
O fenômeno da globalização ocorre não apenas em função da intensa
circulação de bens, de capitais e de tecnologia através das fronteiras nacionais,
com a conseqüente criação de um mercado mundial, como também em razão da
universalização de padrões culturais e da necessidade de equacionamento
comum de problemas, que afetam a totalidade do planeta como o combate à
poluição ambiental, a proteção dos direitos humanos, o desarmamento nuclear e
o crescimento populacional.
A globalização vem se realizando, através da formação de blocos
regionais de estados, até como mecanismo de defesa contra esse processo, a
exemplo da União Européia, do Nafta, do Mercosul, do Asean, dentre outros, em
cujo interior, sobre tudo no âmbito da primeira, passou a desenvolver-se um
novo tipo de Direito, o “Direito Comunitário”, que se coloca entre o Direito Interno
e o Direito Internacional.
Esse novo ramo do conhecimento jurídico adquiriu foros de autonomia,
por apresentar objeto, institutos, métodos e princípios informativos próprios,
integrando já a rotina de trabalho dos juízes e demais operadores do Direito
europeu, em seu cotidiano profissional.
Em termos de objeto, o Direito Comunitário trata de normas
supranacionais, ou seja, de regras comuns aos Estados que integram
determinado bloco regional, as quais possuem fontes próprias, emanando
sobretudo dos chamados “tratados-quadro”, como o de Maastrich, que funda a
União Européia, bem assim das diretrizes, resoluções e decisões baixadas pelos
órgãos comunitários, de natureza legislativa, administrativa e judicial.
Para constituir disciplina jurídica nova, o Direito comunitário se vale de
instrumentos hermenêuticos e gnoseológicos próprios, sem prescindir daqueles
utilizados pelo Direito Interno e Internacional, em face do seu hibridismo,
previlegiando a interpretação teleológica ou finalística.
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Além de aplicar os postulados comuns às demais especialidades
jurídicas, o Direito Comunitário possui princípios específicos, dentre os quais o
da “autonomia”, da “aplicabilidade direta” e da “supremacia” de suas regras com
relação às normas internas de cada Estado.
Tais princípios, que já encontram plena aplicação no seio da União
Européia, importam numa flexibilização do conceito de soberania, sobretudo
quanto à idéia de supremacia absoluta da ordem jurídica interna, exigindo uma
nova postura dos aplicadores do Direito, sendo certo que a sua adoção por
outros blocos regionais, em particular no âmbito do Mercosul, se é que se quer
ultrapassar o estágio de mera união aduaneira constitui apenas uma questão de
tempo.
Se dermos um pequeno salto à um passado remoto, constataremos que
o homo-sapiens, desde o marco em que deixa as cavernas, neolítico para viver
em sociedade, vem procurando aperfeiçoar esta sociedade, sempre no intuito de
unir os povos, se fortalecer e evitar as constantes disputas por territórios.
Na literatura mundial podemos encontrar exemplos de homens, que
viveram em tempos hostis, e cansados daquela realidade penosa, criaram uma
gama de países imaginários.
O filósofo grego Platão, no seu célebre Diálogo “Timaeus e Cristias” e
em “A República”, descreve aquele que seria “o lugar ao sol”, “a terra prometida”.
Uma potência de dimensões continentais, plena de riquezas e vastamente
avançada em todas as searas. Habitada por um povo feliz, formador de uma
sociedade perfeita sem castas ou classes sociais, onde cada qual realizava o
seu trabalho e era feliz por isto fazer.
Temos então o nosso primeiro relato da lendária Atlântida, a qual, sem
esforçarmo-nos em demasia, vem a ser um antigo e talvez imaginário protótipo
do que seria hoje, a União Européia, ou do que tenta-se formar na América do
Sul, através do Mercosul.
Não somente os gregos, mas também os nórdicos, celtas e árabes
criaram seus países perfeitos, tal qual o célebre estadista e humanista inglês,
Thomas More, autor de “Utopia”, que nada foi que a tentativa teórica da
edificação de uma sociedade baseada na justa distribuição de bens, respeito,
igualdade e justiça; que são fatores que o homem atual ainda busca dentro da
sua própria sociedade.
Assim sendo, tem por objetivo, este pequeno trabalho, apreciar alguns
dos principais aspectos no que toca à formação, constituição e ao papel
desempenhado pela União Européia e pelo recém-criado Mercosul; além de
sempre que possível projetar algumas considerações sobre a influência dessas
instituições no futuro do planeta terra.
Fica desde já salientado que impossível seria fazer uma comparação
explícita entre as duas instituições, pois trata-se de organismos similares quanto
a sua atuação, mas, diversos no que concerne a sua história formação e
amplitude.
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ESBOÇO HISTÓRICO-FILOSÓFICO
A idéia de construir uma Europa unida remonta ao século XIV e foi
alimentada por diversos pensadores, ao longo dos séculos, até os dias atuais.
Já no século XIV, Pierre Dubois projetou o que seria os “Estados Unidos
da Europa”, no seu “Tratado de Política Geral”. No século seguinte, um pacto
confederal entre os Estados Europeus, é proposto por Atoine Marini.
Emeric Crucée, por sua vez, também contribuiu com a idéia,
preconizando em 1623 a escolha de uma cidade, onde todos os soberanos da
época tivessem embaixadores seus em caráter permanente; ao passo que
pouco mais tarde Sully apresentou o “Grande Plano de Henrique IV” ou “Le
Grand Dessein” para Richelieu, através do qual propunha que os governos se
unissem numa “Cristioníssima República”, a qual compor-se-ía por quinze
estados de igual poder, resultantes de uma previsível divisão da Europa.
Com “De Jure Suprematus ae Legationum Principum Germaniae”,
Leibiniz em 1677, concebe a unidade supranacional Européia, preconizando
uma espécie de “Colégio Universal” de cunho religioso e político, sob as
autoridades do Papa e do Imperador. Leibiniz atribuia à Europa a missão
evangelizadora do mundo, pelo que a América do Norte caberia à Inglaterra e à
Dinamarca, a América do Sul à Espanha, África à França, as Indias Orientais à
Holanda, e a Suécia e a Polônia receberiam a Sibéria e a Turquia.
Anos mais tarde, já em 1693, William Penn, autor da Constituição da
Pensilvânia, a qual serviu de modelo à constituição norte americana, publicou a
obra denominada “Ensaio para uma Paz Futura na Europa”, na qual propõe a
criação de um Parlamento Europeu, onde cada Estado estaria representado de
acordo com a sua importância.
Em 1713, o abade de Saint-Pierre convidou as soberanias Européias a
assinar e ratificar um tratado de união denominado “Projeto para Estabelecer a
Paz Perpétua na Europa. No final do mesmo século, com o seu “Projeto
Filosófico da Paz Perpétua”, publicado em 1795, Immnuel Kant defendeu a paz
pela supremacia do direito, paz esta que seria assegurada por um congresso em
que todos poderiam estar e de que livremente poderiam sair.
Por outro lado, todos os pensamentos defendidos pelos personalistas e
humanistas, tais quais os supra-citados, tiveram sempre contra si a influência de
Nicolau Maquiavél, que nunca se ocupara da “paz perpétua”, nem da resolução
arbitral dos conflitos, mas sim, do interesse nacional em expansão. A teoria
maquiavélica foi refreada pela Revolução Francesa e encontrou no Congresso
de Viena em 1815, alguns dos seus mais empenhados defensores: Alexandre I,
Czar da Rússia, Talleyrand, enviado da França, Castlereagh e Wellington da
Inglaterra, além de outros, os quais em defesa dos seus próprios países,
convencionaram que a melhor política internacional seria o estabelecimento de
uma união entre as grandes potências que se reconhecessem em pé de
igualdade e desejassem dominar o mundo, instituindo assim, o maquiavelismo
coletivo.
O acordo de Viena foi ultrapassado pelo sentimento nacionalista, ao
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passo que, Victor Hugo, rebuscando os princípios enunciados por Pierre Dubois
no início do século XIV, discursa profeticamente, no Congresso da Paz de 1848,
a criação dos “Estados Unidos da Europa”. Enfim, o humanismo na Europa
sucumbe à hegemonia alemã, após a unificação desse país encetada por
Bismark, em seguida se consolida um precário equilíbrio de poderes, que a cada
instante se arriscava a ser rompido pelas rivalidades coloniais e balcânicas e
pela corrida armamentista.
Esse equilíbrio, assegurado pela Inglaterra conseguiu sobreviver até
que as ambições da Alemanha, da Áustria e da Rússia em relação ao Império
Otomano, a rivalidade comercial e industrial entre a Inglaterra e a Alemanha e as
modalidades do nacionalismo europeu precipitaram o romper da 1ª Guerra
Mundial.
Por outro lado, a síntese das teorias histórico-econômicas inglesas, da
doutrina filosófica alemã e das doutrinas sociológicas francesas, realizada por
Karl Marx na sua obra “O Capital” com uma peculiar criticidade e a publicação
em 1848, juntamente com Engels, do “Manifesto do Partido Comunista”,
transformaram o socialismo filosófico-associacionista de Charles Fourier, Louis
Blanc e Proudhon, num socialismo político-científico.
O desfecho dos acontecimentos de 1914-1918 e a aceitação pelos
negociadores do Tratado de Versalles e da proposta do presidente Wilson, que
conduziu à formação da “Sociedade das Nações”, criaram condições favoráveis
para o resurgimento da idéia de unificação na Europa. No pós-guerra nasceram
diversos movimentos, dos quais o mais importante veio a ser o da União
Européia do Coudenhove-Kalergi.
No Pacto Germânico Italiano, de 22 de Maio de 1939, afirma-se a idéia
de que o povo alemão e o italiano resolveram intervir paralelamente no intuito de
protejer o seu espaço vital e montar a paz. A mesma idéia surge na Aliança
Tripartida, assinada como Japão, a qual reservava para o mesmo o grande
espaço do continente asiático. A “meta-mater” nada mais era que a divisão do
mundo pelo domínio de três grandes potências. O acordo Germano-Checo de
1939 e o Tratado Germano-Soviético do mesmo ano, assim como a concepção
da Área de Coprosperidade da Ásia, obedeceram a esta inspiração, que nega o
conceito tradicional de sociedade paritária. Com o desfecho desta
esquematização maquiavélica para dominar o mundo, deflagra-se então, a 2ª
Guerra Mundial.
Do conflito entre as nações européias, saíram vencedores os Estados
Unidos da América e a União Soviética, que convencidos de sua superioridade,
passam a tentar exercer um domínio sobre o mundo, agora dividido em duas
partes.
Em 1944, propõe-se em Genève a criação de uma União Federal entre
os Povos Europeus, a qual seria estruturada da seguinte forma:
a) Um governo diretamente responsável perante os povos europeus;
b) Um exército às ordens de tal Governo, com exclusão de qualquer
exército nacional;
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c) Um tribunal supremo que julgasse todas as questões respeitantes à
interpretação da Constituição Federal e aos conflitos de interesse entre
os Estados-Membros ou entre estes e a Federação.
Esta idéia, então, culmina na fundação da “União Européia dos Federalistas”,
em 14 de Agosto de 1946. Em Maio de 1947, Winston Churchill funda em Londres o
principal movimento para a Europa Unida, ao qual passa a presidir. As diversas
aspirações para criar os Estados Unidos da Europa serão expostas no Congresso de
Haia, em Maio de 1948. Os esforços dos diversos movimentos, traduziram-se na Criação
de uma organização internacional de cooperação política, o Conselho da Europa, criado
em 5 de Maio de 1949. Excite esta conquista, todos os outros planos concernentes a
qualquer outro tipo de união entre os Estados Europeus, fracassaram por falta de acordo
entre os Estados, embora as idéias do movimento tenham contribuído politicamente para
o desenvolvimento do processo da integração européia.
Aproveitando estas circunstâncias, o francês Robert Schuman proferiu
um discurso em 9 de maio de 1950, o qual visava colocar sob o controle de uma
alta autoridade, a produção francesa e alemã de carvão e aço. A proposta foi
recebida com ineresse pela Alemanha, pela Itália, pelos três países do Benelux,
assim sendo, em menos de um ano esses seis países assinavam o tratado
constitutivo da “Comunidade Européia do Carvão e do Aço” (CECA).
Com esse objetivo, realizaram-se diversos encontros e reuniões de
representantes dos seis países comunitários, nos quais se estabeleceram as
bases dos Tratados de Roma constitutivos da Comunidade Econômica Européia
(CEE) e da Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM).
A CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE EUROPÉIA
A fase, no capítulo anterior, mencionada, que compreende a criação
das organizações comunitárias e a instalação das instituições, teve início no
momento em que os países do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo), a
Alemanha e a Itália, aceitaram a proposta de Robert Schuman a qual se
consubstanciou na aprovação dos Tratados de Paris e de Roma, os quais
instituíram as três supracitadas organizações: CECA, CEE e EURATOM.
A proposta de Shuman deu origem a negociações, culminando na
assinatura do Tratado de Paris, em 18 de Abril de 1951, o qual instituiu o CECA;
este Tratado distingue-se dos outros até então firmados, pelo fato de conter
certos traços de supranacionalidade. Conferindo assim, ao órgão executivo, a
“Alta Autoridade”, poderes diretos sobre as empresas, no interior dos EstadosMembros, concedendo também, uma certa autonomia financeira à organização,
na medida, não provinham da contribuição dos Estados, mas resultavam de um
“prélevement” (primeiro imposto europeu) cuja taxa era calculada em função da
produção siderúrgica e carbonífera.
Embora importante no plano enonômico, pela abolição dos direitos de
aduana para o carvão e o minério de ferro, em fevereiro de 1953, e pela
liberalização das trocas de aço em maio de 1953. A CECA foi também um
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importante acontecimento político, constituindo o primeiro elemento de uma
futura federação européia.
Após quase dois anos de trabalhos prepararórios, os representantes
dos seis Estados comunitários (França, Itália, Alemanha e os países do
Benelux), vão se reunir no Capitólio de Roma, em 25 de Março de 1957, onde
após uma bateria de reuniões, vão assinar dois novos Tratados europeus. Os
Tratados de Roma; os quais instituíram a Comunidade Econômica Européia
(CEE) e a Comunidade Européia de Energia Atômica (EURATOM), tratados
estes que, juntamente com o tratado constitutivo do CECA, constituem as bases
da “Carta da Europa Comunitária”. Ratificados no espaço de uns poucos meses
pelos parlamentos nacionais, os Tratados de Roma entraram em vigor no dia 1º
de Janeiro de 1958.
Em 08 de Abril de 1965, foi assinado o Tratado, que unificou as
Instituições das Comunidades Européias, o qual entrou em vigor em 1º de Julho
de 1967. Assim sendo, desde essa data, a Comunidade Européia está dotada de
uma nova estrutura institucional, que resultou da fusão dos executivos das três
Comunidades e da criação de um Conselho e de uma Comissão únicos, dado
que a Assembléia Parlamentar e o Tribunal de Justiça sempre foram comuns às
três organizações. A fusão destas instituições foi uma das molas propulsoras
para o andamento do processo de integração e construção da Europa
Comunitária.
Depois de negociações delicadas e de uma revisão em todos os setores
da vida econômica e política, foi assinado o Tratado de Adesão e, a partir de
Janeiro de 1973, a Comunidade Européia passou a contar com três novos
Estados-Membros: Dinamarca, Irlanda e Reino Unido, daí que não tardasse a
suceder-se os pedidos de Adesão à Comunidade de mais três países com
regimes democráticos recém-instaurados: a Grécia em 1º de janeiro de 1981 e
Portugal e Espanha, no mesmo dia e mês do ano de 1986.
A adoção do Ato Único Europeu veio culminar um processo iniciado e
desenvolvido no Parlamento Europeu, que elevou à aprovação em 14 de
Fevereiro de 1984, do projeto de Tratado instituindo a União Européia. O Ato
Único Europeu reflete a vontade política de transformar o conjunto das relações
entre os Estados-Membros numa União Européia, em conformidade com a
Declaração solene de Estugarda em 19 de Junho de 1983.
O Ato Único alterou o funcionamento das instituições jurisdicionais,
aumentou os poderes do Parlamento Europeu e associou a Comissão e o
Parlamento ao processo de decisão em matéria de cooperação política.
A realização de um mercado interno, na seqüência da aprovação do Ato
Único Europeu, suscitou a necessidade de acelerar a União Econômica e
Monetária e de ampliar a União Política. A conclusão desse processo foi a
aprovação dos Tratados de Maastricht pelos chefes de governo dos doze, em 10
de Dezembro de 1991, que foram posteriormente fundidos no Tratado da União
Européia, assinado em 07 de Fevereiro de 1992, em Maastricht, pelos chefes de
governo dos doze países comunitários.
Com efeito, as decisões de Maastricht permitiram que se avançasse por
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fases, tanto na seara econômica quanto na monetária, suscitando assim a
possibilidade de uma moeda comum até 1999, e que a Comunidade viesse a
usufruir de competências acrescidas nas áreas da educação, da formação
profissional, da investigação e desenvolvimento do ambiente, da saúde, da
proteção do consumidor, da cooperação para o desenvolvimento, da indústria,
da coesão econômica e social e das redes de transportes transeuropéias.
A ESTRUTURA COMUNITÁRIA
Os Tratados de Paris e de Roma criaram quatro instituições
propriamente ditas: a Comissão, o Conselho de Ministros, o Parlamento Europeu
e o Tribunal de Justiça, definindo também a sua composição e as competências,
que lhes são cabidas. Além destes, outros órgãos foram criados, chamados de
“instituições laterais”; sendo eles: o Conselho Econômico e Social, o Conselho
Consultivo, o Banco Europeu de Investimentos e o Tribunal de Contas. Ainda foi
proposto que os chefes de governo, juntamente com os ministros de Negócios
Estrangeiros dos Estados-Membros se reunissem três vezes por ano, a fim de
analisar questões fundamentais relacionados ao bom funcionamento da
Comunidade. Essa proposta deu origem ao Conselho Europeu.
A COMISSÃO EUROPÉIA
A Comissão é iniciadora de toda a ação comunitária e exprime os
interesses da Comunidade junto ao Conselho, sendo tida como a guardiã dos
tratados; é a gestora e executora das regras comunitárias. Compete à Comissão
elaborar e apresentar propostas acerca dos vários aspectos da política
comunitária, sobre as quais cabe ao Conselho de Ministros deliberar.
São poderes advindos da Comissão:
1. Estabelecer os textos de aplicação de certas disposições dos
tratados ou de decisões tomadas pelo Conselho.
2. Aplicar as regras dos tratados em casos específicos e assegurar a
gestão dos fundos comunitários.
3. Assegurar a gestão das cláusulas de Salvaguarda dos tratados.
4. No exercício das suas funções, compete à Comissão:
• Emitir regulamentos;
• Emitir directivas;
• Tomar decisões;
• Fazer recomendações ou avisos.
O CONSELHO DE MINISTROS
É composto por um membro de cada um dos Estados-Membros, sendo
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a instituição, que dispõe de um poder geral de decisão, ou seja, que tem
competência para adotar os atos de caráter normativo destinados a realizar os
objetivos da Comunidade Européia. Seu papel fundamental é o de coordenar,
dentro da sua competência, as ações dos Estados-Membros e da Comundiade.
Em tratando-se de memorandos de alcance geral ou proposta, relativos a um
ponto específico, o Conselho confia a preparação das suas deliberações à
COREPER (Comissão dos Representantes Permanentes).
O CONSELHO EUROPEU
Destina-se a traçar as grandes orientações da política comunitária, a
impulsionar as ações a empreender pelas instituições comunitárias, a promover
a cooperação política entre os países membros e a resolver os impasses que por
ventura surjam no Conselho de Ministros.
O PARLAMENTO EUROPEU
O Parlamento controla a Comissão, velando para que ela se limite ao seu papel
de representante do interesse comunitário, pronto, a qualquer momento, a chamá-la à
ordem se caso lhe afigurar que a Comissão esteja se inclinando perante as solicitações
dos governos ou de um outro dentre estes. O Parlamento intervém, por outro lado, no
processo legislativo e nos poderes orçamentais da Comunidade.
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA EUROPEU
Compete-lhe assegurar o respeito pelo Direito na aplicação e
interpretação dos tratados e dos atos produzidos pelas instituições comunitárias.
Desempenha um papel essencial numa Comunidade, baseada nas regras do
Direito.
Das múltiplas competências exercidas pelo Tribunal, três têm especial
destaque:
1. controle da legalidade dos atos do Conselho e da Comissão.
2. juízo sobre as faltas dos Estados-Membros.
3. A soberania judicial sobre o Direito Comunitário.
O CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL
O Conselho Econômico e Social desempenha funções exclusivamente
consultivas. É obrigatoriamente consultado sobre todos os assuntos, que o
Tratado da União Européia, assim estipula, e facultativamente, sobre qualquer
questão, que o conselho ou a Comissão julguem oportuno consultá-lo, e pode
igualmente emitir pareceres por sua própria iniciativa. As propostas da
Comissão, antes de serem adotadas pelo Conselho de Ministros, são
transmitidas, solicitando parecer, na maioria dos casos, ao Conselho Econômico
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e Social da Comunidade.
Este papel está se alargando, graças a uma prática, segundo, a qual, as
instituições comunitárias não se limitam a solicitar-lhe pareceres sobre textos já
concluidos, mas a associá-lo à elaboração e à aplicação desses textos.
Embora não dispondo de um direito de decisão, o Conselho Econômico
e Social exerce, assim, uma certa influência sobre a elaboração da política
comum e da própria política comunitária.
O TRIBUNAL DE CONTAS
Ao Tribunal de Contas compete examinar a fazenda da Comunidade e
de qualquer organismo por ela criado, verificando a legalidade e a regularidade
das receitas e das despesas, assegurar a boa gestão financeira e apresentar
relatórios anuais às instituições da Comunidade, bem como proceder à
elaboração de relatórios especializados sobre questões específicos de
importância relevante.
A autoridade do Tribunal de Contas permite-lhe estender as suas
investigações aos Estados-Membros sobre as gerações que estes efetuam por
conta da Comunidade. Pode também, por sua própria iniciativa, dirigir às
instituições, observações sobre assuntos financeiros dependentes destas, assim
como emitir pareceres a pedido de uma instituição.
Sendo uma espécie de “consciência financeira” da Comunidade, o
Tribunal de Contas ao Parlamento Europeu utiliza as suas possibilidades de
investigação, os pareceres, que pode emitir, bem como o seu relatório anual,
para reforçar o controle parlamentar sobre as despesas comunitárias.
A criação do Tribunal de Contas, como instituição permanente, dotada
de uma autoridade jurídico-política e de um aparelho administrativo importante,
veio permitir associar, ao controle político, um controle jurídico das receitas e
despesas da Comunidade Européia.
O BANCO EUROPEU DE INVESTIMENTO
O Banco Europeu de Investimento é um dos organismos criados para
promover o progresso econômico e social comum dos Estados-Membros e dos
membros, e dos povos da Europa. Tem como principal objetivo, contribuir para o
desenvolvimento equilibrado da Comunidade, através da concessão de
empréstimos e da prestação de certas garantias a projetos de investimento em
todos os setores da economia.
Dotado de personalidade jurídica e estruturas administrativas distintas
de outras instituições comunitárias, o Banco Europeu de Investimento é
composto por um Conselho de Governadores, um Conselho de Administração,
um Comitê de Direção e um Comitê de Verificação.
O Capital do Banco Europeu de Investimento é subscrito pelos EstadosMembros. No entanto, a maior parte dos recursos é constituída pelo produto de
empréstimos públicos ou privados, operados sobre os mercados de capitais
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nacionais no interior ou no exterior da Comunidade e sobre o mercado
internacional.
As intervenções do Banco Europeu de Investimento destinam-se, na
prática, a investimentos industriais e de infra-estrutura, que contribuam para a
valorização das regiões economicamente menos favorecidas, apresentem um
interesse comum para os Estados-Membros ou ajudem à modernização e à
conversão da indústria.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Europa/Gabinete da Comissão das Comunidades Européias, 1997.
DROPA, Romualdo Flávio. Ética, política e justiça: mimeografado 1994.
DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia del derecho. Barcelona Libreria Bosch/Ronda Univerdidad,
1930.
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FERNANDES,
Antônio José. A Comunidade Européia. estrutura e funcionamento e
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FERNANDES, Newton. CHOFARD, Getúlio. Sociologia geral jurídica, criminal. São Paulo:
Rumo Editora, 1995.
GATTI, Vicente Paulo: A sociedade internacional. Rio de Janeiro: Antártida, 1996.
GINTNER, Luiz J. Em busca de liliput. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 1997.
MAIOR, Armando Souto. História geral. 25ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.
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NOEL, Emile. As instituições da Comunidade Européia. Luxemburgo, Serviço das Publicações
Oficiais das Comunidades Européias, 1988.
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HARMONIZAÇÃO DAS LEGISLAÇÕES
TRIBUTÁRIAS NO MERCOSUL
GRAZIELLE HYCZY LISBÔA
PROFESSORA DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DOS
CAMPOS GERAIS E NA FACULDADE CAMPO REAL - ESPECIALISTA EM DIREITO
INTERNACIONAL–FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA - ESPECIALISTA EM
DIREITO TRIBUTÁRIO PELO IBEJ. MESTRANDA EM DIREITO INTERNACIONAL NA
PUC-SP - ADVOGADA NO PARANÁ.
RESUMO – O artigo apresenta elementos gerais do Direito Tributário após a
entrada em vigor do Tratado de Assunção (o qual concretizou o Mercosul),
estudando o tema da harmonização das legislações tributárias nos países
integrantes do Mercado Comum do Sul. O texto assinala a necessidade de
incentivo a uma política tributária que busque uma aproximação do sistema
tributário entre os países membros do Mercosul, facilitando a efetividade dos
objetivos do bloco regional. A autora assevera a necessidade de uma reforma
constitucional tributária no Brasil, objetivando adaptar a legislação tributária
brasileira às necessidades ensejadas pelo fenômeno da globalização.
HARMONIZATION OF TAX LEGISLATIONS IN MERCOSUL – ABSTRACT This article presents general elements of Tax Law after the Treaty of Asuncion
took effect (the one which settles Mercosul), studying the theme concerning the
tax legislation harmonization in the member countries of the Common Market of
the South. The text affirms the necessity of incentive to a tax policy which
searches for an approach of the taxation system among the Mercosul member
countries, facilitating the effectiveness of the regional block objectives. The
author assures the necessity of a constitutional tax reform in Brazil, with the
intention of adapting the Brazilian tax legislation to the necessities urged by the
phenomenon of globalization.
INTRODUÇÃO
O grande fenômeno econômico do final do século vinte, é sem dúvida, a
globalização, que veio trazer enormes conseqüências e a busca por uma
convergência de requisitos e de regulação em muitos setores, que precisam
caminhar para atingir uma maior homogeneidade entre países, e o meio, que se
vem adotando são as comunidades supranacionais, das quais emanam normas
também supranacionais com o poder decisório não concentrado em um único
país.
Devido a esta reestruturação global, o Estado, para manter-se no contexto de
integração, é obrigado a se adaptar às exigências e condições do processo,
particularmente no tocante às relações entre o ordenamento jurídico interno, às normas
supranacionais, que implementam a integração, bem como, igualmente, na medida que
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uma posição externa se torna indispensável.
O artigo 1 do Tratado de Assunção, traz o ordenamento de que haja
uma harmonização legislativa visando o fortalecimento do processo de
integração, trata da harmonização das “legislações” nas “áreas
pertinentes”, entendendo-se por legislações aquelas normas que são
votadas no Congresso Nacional e as áreas pertinentes são as que o
Tratado não regula e que podem obstruir o caminho do Mercosul.
Através da harmonização das legislações, pretende-se minimizar as
diferenças entre as normas de direito interno gradualmente, na medida, em que,
este mercado globalizado se desenvolva e exija.
A harmonização é complexa e ampla, havendo a necessidade de se
adotar novas normas jurídicas, de se eliminar ou reduzir as diferenças para fazer
com que prevaleça o bom andamento pelo mercado comum.
Há a necessidade de que haja uma harmonização de normas
administrativas e regulamentares, uma vez que, estas tornariam a livre
circulação de bens, pessoas, serviços e capitais, e a liberdade de concorrência
quase impraticáveis.
Numa organização internacional, como o Mercosul, dotada de órgãos
exclusivamente intergovernamentais, o processo de produção do direito
equipara-se ao do direito internacional. As normas adotadas pelo órgão
competente, ou por uma conferência diplomática realizada em seu seio, não
gozam de eficácia direta. Por isso, estão sujeitas à incorporação nos
ordenamentos nacionais, pela forma determinada pelas Constituições dos
Estados-membros. Apesar do caráter imperativo, a sua aplicação pode ser
obstada pela existência de normas nacionais, com que, sejam incompatíveis ou
pela emissão de normas nacionais posteriores, que as revoguem. Ainda há
países, que não concedem à norma internacional, posição distinta e mais
elevada que as das suas normas legais ordinárias.
HARMONIZAÇÃO TRIBUTÁRIA
A harmonização tributária é um processo através do qual vários países
efetuam, de comum acordo, modificações nos seus sistemas tributários para
torná-los compatíveis, de modo a não gerar distorções, que afetem suas
relações econômicas no contexto de um tratado de integração econômica. Isso
não significa unificar as normas legislativas ou administrativas relativas a um
determinado tributo ou a um sistema tributário, e sim, adequá-las a critérios
comuns, que permitam eliminar ou reduzir as distorções resultantes das
divergências de maior gravidade.
A formação de um mercado comum como o Mercosul supõe, antes de
mais nada, a vontade política dos países engajados nesse processo de convergir
para condições de livre concorrência entre eles, de modo a aumentar a eficiência
de suas economias e fortalecer a posição do conjunto e de cada um deles no
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mercado internacional.
Sem dúvida, para que as condições de livre concorrência estejam
pautadas em critérios de eficiência econômica, é necessário remover todo tipo
de entraves de natureza institucional, sendo os mais manifestos as barreiras
tarifárias e não tarifárias ao comércio exterior. Mas, à medida que essas
barreiras vão sendo eliminadas, entre os países do Mercosul, surgem outros
obstáculos relacionados à políticas governamentais, que exigem certo grau de
harmonização para que o processo de integração possa avançar. Este é o caso
da tributação interna. Na medida, em que, os tributos internos incidem na
formação dos preços e na rentabilidade dos investimentos, diferenças marcantes
nessa tributação, podem constituir uma barreira de natureza institucional à livre
concorrência no mercado ampliado.
A tributação pode afetar a maior eficiência decorrente do mercado
ampliado, principalmente em dois sentidos, ambos referentes à competitividade
entre os países-membros: condições de concorrência e a localização geográfica
dos investimentos.
Em relação às condições de concorrência, as diferenças entre os
tributos que incidam diretamente na formação dos preços, como são
fundamentalmente os tributos sobre a produção e o consumo, podem fazer com
que, um fator de natureza institucional, como é o tributo, debilite a posição do
produto mais eficiente.
Por outro lado, os tributos incidentes sobre os rendimentos podem fazer
com que, no caso de existirem diferenças notáveis entre os países do Mercosul,
a opção de investir, em algum deles, seja fortemente influenciada pelo
tratamento conferido ao lucro decorrente desse investimento ou, em outros
termos, pela do Mercosul, todos eles importadores de capital. A necessidade de
harmonização nesse campo é ainda maior, sobretudo para evitar que eles
travem entre si uma guerra de incentivos para atrair capitais de dentro e de fora
da região, o que seria totalmente incompatível com a própria essência do
processo de integração econômica.
Nos quatro países integrantes do Mercosul, a tributação geral sobre o
consumo, tem por base, um imposto sobre o valor adicionado (o ICMS no caso
do Brasil), embora existam divergências significativas quanto à estrutura e
alíquotas. Esse imposto é aplicado pelo governo central na Argentina, no
Paraguai e no Uruguai, cabendo sua aplicação aos governos estaduais, no caso
do Brasil. Sua base inclui, no caso da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, tanto
a venda de mercadorias como a prestação de serviços em forma ampla
(especialmente no caso da Argentina), há diferença do Brasil, onde só
compreende os serviços em forma parcial. Argentina, Paraguai e Uruguai
desoneram a totalidade dos produtos exportados, mas no Brasil essa
desoneração não alcança os produtos primários e semi-elaborados. Também
existem diferenças nas alíquotas aplicadas: Paraguai, 10%; Brasil, 18%;
Argentina, 21%; e Uruguai, 22%. No Uruguai, a arrecadação corresponde a sete
pontos da alíquota do seu imposto geral está vinculada ao financiamento da
seguridade social; ao desordenar desse imposto suas exportações, o governo as
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está desonerando parcialmente também dos encargos da seguridade social.
Quanto ao imposto de renda, a Argentina aplica o conceito da renda
mundial para as pessoas domiciliadas no país, tanto físicas como jurídicas, o
que significa que a renda por elas auferida com atividades ou capitais situados
no território dos outros três países, está sujeita a tributação na Argentina. Já, o
Brasil, só aplica esse critério para a renda de pessoas físicas nele domiciliadas,
não para a de pessoas jurídicas. Ao mesmo tempo, Argentina e Brasil aplicam o
critério da territorialidade da fonte para os não-domiciliados, pelo qual são
tributadas também as rendas auferidas nos seus territórios pelos nãodomiciliados. Paraguai e Uruguai aplicam exclusivamente o critério da
territorialidade da fonte; em ambos os países não existe imposto pessoal sobre a
renda, tributando-se, tanto no Uruguai como no Paraguai, apenas as rendas
caracterizadas como rendas da indústria e do comércio, e com um imposto
especial, as rendas agropecuárias, sobre uma base de cálculo inspirada numa
“renda potencial” de difícil aplicação efetiva.
As divergências, até aqui apontadas, permitem concluir que é
necessário intensificar os esforços de harmonização tributária entre os países
do Mercosul, mas existem outras divergências, principalmente no tocante às
contribuições à seguridade social e aos regimes de promoção de exportações e
de investimentos, que também deveriam ser analisadas em profundidade para
melhor identificar as necessidades de harmonização.
Nas etapas preconizadas para o processo de integração econômica
pelas teorias mais ortodoxas, as duas primeiras, zona de livre comércio e união
aduaneira, são as mais estreitamente vinculadas aos problemas concernentes à
tributação aduaneira.
Na Zona de Livre Comércio271, as necessidades de harmonização
aduaneira decorrem das exigências apresentadas pela formação do
correspondente mercado zonal, no qual se promovem a progressiva liberação do
comércio, até chegar-se à total abolição das barreiras tarifárias entre os paísesmembros. Nesse caso, a harmonização compreenderá aqueles instrumentos
aduaneiros aplicáveis no mercado ampliado resultante da soma dos mercados
de cada um dos países participantes do processo.
Na União Aduaneira272, a harmonização abrange, não só os
instrumentos aplicáveis no mercado interior ampliado, mas também os que se
aplicam no comércio com terceiros países, específicos a cada um dos membros
da união. Isso porque, nessa fase do processo de integração, ocorre a
substituição dos territórios aduaneiros dos países-membros por um só território
aduaneiro. Depois de suprimidas as barreiras comerciais, tarifárias e de qualquer
tipo, existe uma fronteira aduaneira comum, que lhe confere caráter de unidade
em suas relações com terceiros países.
271
O artigo XXVI do GATT (General Agreemente on Tariffs and Trade) conceitua a Zona de Livre Comércio: “se
entenderá por zona de livre comércio, um grupo de dois ou mais territórios aduaneiros entre os quais se
eliminam os direitos de aduana e as demais regulamentações comerciais restritivas.”
272
União Aduaneira, de acordo com o artigo XXIV : “se entenderá por território aduaneiro todo território que
aplique uma tarifa distinta ou outras regulamentações comerciais distintas a uma parte substancial de seu
comércio com os demais territórios.”
2
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REFORMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIA E O MERCOSUL
Várias propostas de Reforma Tributária visando alterar a Constituição
Federal foram apresentadas, após a assinatura do Tratado de Assunção, e, não
há, ainda, expectativa em curto período de tempo, para proceder a alteração
necessária e a adequação da legislação ordinária, face às disposições firmadas
no referido Tratado. O que deve permanecer, claro, é que, o artigo 7, do Tratado
de Assunção, quando determina o tratamento isonômico dos Estados-membros
em relação aos impostos, taxas, tributos e outros tributos, tem finalidade
precípua, não a questão tributária em si, mas garantir a livre concorrência entre
os mercados que estão integrando.
E ainda, que a questão aduaneira passa primeiro pelo estabelecimento
de uma política fiscal e, caminhar para um consenso tributário entre países com
problemas tão graves e de dimensões tão diversas, é inicialmente um grande
desafio. Para tanto, se faz necessário a adequação da política fiscal interna de
cada país. Na realidade, o principal é que se estabeleçam instrumentos internos
em cada país de apoio à atividade produtiva. A reforma constitucional tributária,
para melhor adequar o Sistema Tributário, diminuirá as distorções existentes
entre o Brasil e os sistemas tributários dos outros países do Mercosul.
A proposta de reforma constitucional tributária mostra uma tendência da
legislação brasileira à integração do Mercosul, tendo em vista uma adaptação do
nosso sistema tributário aos países-membros.
O principal fator de integração é o econômico, ocasionado pelas
relações mercantis a nível externo, portanto é preciso diminuir os impecílios
desta circulação, para tanto, se faz necessário, uma mudança na estrutura
tributária.
A proposta é a criação de um único tributo com incidência sobre o
consumo, este seria o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que já é existente no
Paraguai, Uruguai e Argentina. Hoje, no Brasil, conhecemos em nossa estrutura
tributária o IPI, o ICMS, e o ISS.273
Para Luiz Carlos Bittencurt: “O grande obstáculo para a introdução do
IVA é quem vai legislar sobre ele. Se a União ou os Estados, o que é uma
questão determinante do poder político. No caso da União, os Estados perdem o
poder porque o valor arrecadado vai ficar concentrado na mão da União, o que
seria um retrocesso, que vai contra o crescimento econômico, porque os
Estados não vão ter liberdade para aplicar esses recursos, uma vez que, a União
mantêm-se muito distante dos cidadãos, a não ser, que se chegue a uma
decisão intermediária, onde determinado volume do valor arrecadado vá para
273
DERZI, Mizabel Abreu Machado. A necessidade da instituição do IVA no Sistema Constitucional Tributário
Brasileiro. In BALTHAZAR, Ubaldo Cesar (Org.). Reforma Tributária e Mercosul. Belo Horizonte: Del Rey,
1999. “ mesmo havendo aprovação de uma emenda de reforma à Constituição, por questões políticas e
econômicas, é provável que o ICMS permaneça na competência estadual, ou pelo menos continue sendo
arrecadado pelos Estados-Membros, e o ISS reste na órbita dos municípios. Neste caso, não convém mudar o
ICMS, internamente, para o estado do destino, nas operações meramente interestaduais, com a desculpa de
que devemos nos integrar ao Mercosul.”
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
176
União e outro para os Estados. Se houver a decisão do bolo na arrecadação, os
municípios terão o Imposto sobre Varejo e o Imposto Sobre Serviços”.274
Portanto, para a implementação do tributo único sobre o consumo, há
uma questão política, ou seja, a arrecadação municipal, em relação à incluir o
Imposto Sobre Serviço e ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e
Serviços.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALTAZAR, Ubaldo Cesar (org.) [et al]. Reforma Tributária & Mercosul. Belo Horizonte: Del
Rey, 1998.
____________Reforma Tributária, Mercosul e IVA. In Revista da Faculdade de Direito da UFSC,
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BITTENCOURT, Luiz Carlos Derbli. Bittencourt analisa Reforma Tributária: a adaptação
tributária é necessária para o Brasil inserir-se no contexto da globalização. Jornal da Manhã,
Ponta Grossa, 17 de outubro de 1999, cad.A, p. 11.
FERNANDES, Edison Carlos. Sistema Tributário do Mercosul. São Paulo: Editora Revista dos
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FERRO, Susana B., SANTAMARIA, Gilberto L. Mercosur – Aspectos tributários del processo
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Consulex, outubro/1997, pp.44-49.
MARTINS, Ives Gandra. Tributação no Mercosul. In Revista do Instituto de Pesquisa e Estudos
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PIMENTEL, Luiz Otávio (org.). Mercosul no cenário internacional: Direito e Sociedade. 1v.,
Curitiba: Juruá, 1998.
PITA, Claudio.et alii. Mercosul: perspectivas da integração. 2 ed., Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getúlio Vargas, 1997.
XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 5 ed.; Rio de Janeiro: Forense,
1998.
274
Bittencourt, Luiz Carlos Derbli. Bittencurt analisa Reforma Tributária: a adaptação tributária para o Brasil
inserir-se no contexto da globalizacão. Jornal da Manhã, Ponta Grossa, 17 de outubro de 1999, cad. A, p. 11.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
177
ACIDENTES DO TRABALHO E
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA
MAGDA DEMARTINI TASCA
PROFESSORA DE DIREITO EMPRESARIAL NA FACULDADE MATER DEI –
MESTRANDA EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UEPG - ESPECIALISTA EM
GESTÃO DE INFORMAÇÕES PELO IBPEX - MBA EMPRESARIAL PELA FUNDAÇÃO
GETÚLIO VARGAS – ADVOGADA NO PARANÁ.
RESUMO – Após ressaltar a importância da responsabilidade civil na atualidade,
o artigo cuida da reparação dos danos decorrentes de acidentes do trabalho,
com a análise da legislação brasileira aplicável. A autora defende a idéia da
responsabilidade civil sem culpa (objetiva) para a proteção dos trabalhadores
vítimas de acidentes do trabalho, pela qual o dever de reparar é decorrente de
lei, ainda que não seja possível a prova da culpa (dolo, negligência, imprudência
ou imperícia) do empregador. O texto aborda ainda outros aspectos revelantes
da responsabilidade civil moderna.
EMPLOYMENT RELATED ACCIDENTS AND OBJECTIVE CIVIL LIABILITY –
ABSTRACT - After emphasizing the importance of the civil liability in the present
time, this article focuses on the damage redress resulting from employment
related accidents, with the analysis of the applicable Brazilian Laws. The author
defends the idea of the civil liability without fault (objective) for the protection of
workers victims of employment-related accidents, by which the duty of redressing
is derived from law, even not being possible the evidence of the fault (malice,
negligence, imprudence or malpractice) of the employer. The text still approaches
other aspects relevant to the modern civil liability.
INTRODUÇÃO
O Direito Civil, neste início de século, é marcado por inúmeras
transformações, que indicam a necessidade do ordenamento jurídico moldar-se
à nova realidade social, da qual o ser humano passa a ser, em tese, sempre
mais valorizado e protegido.
Pode-se dizer que, os fundamentos do Direito Privado submeteram-se,
neste século, a sensíveis mudanças de perspectiva, dado que os chamados
“princípios fundamentais do direito civil” foram submetidos a uma revisão crítica,
através do confronto das bases do Direito Clássico com as novas demandas do
Direito Contemporâneo.
Dos muitos temas jurídicos importantes da atualidade, destaca-se a
responsabilidade civil, cujas regras obrigam ao causador de um dano, o dever de
repará-lo, afirmando-se o princípio de proteção da integridade moral e
patrimonial das pessoas.
O consagrado Professor Antonio Chaves escreveu que, “o tema da
responsabilidade civil é imenso, profundo e misterioso como o mar”, pois “não
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
178
há, a rigor, contrato, atividade, ato, até mesmo abstenção, que não contenha o
gérmen de uma responsabilidade criminal ou civil”.275
Para Serpa Lopes estudar a responsabilidade civil “importa imergir no
exame atento da própria atividade humana, o que vai além do campo
convencional para atingir um outro mais vasto, cuja pesquisa exige um apelo às
análises psicológicas e às considerações deduzidas do espírito do autor do ato”
.276
A doutrina aponta que, responsabilidade civil, sendo um dos
fundamentos do Direito Privado, seja, quiçá, o tema que “mais cativa, e,
certamente, o que mais desafia a argúcia do pesquisador. O seu dinamismo é de
tal ordem que, segundo Aguiar Dias, ‘não foi possível, até hoje, malgrado o
esforço dos melhores juristas, estabelecer uma teoria unitária e permanente’ “,
no dizer de Tavares Campista.277
A lição do mestre da responsabilidade civil no Brasil, José de Aguiar
Dias, bem sintetiza a relevância do tema : “em matéria de responsabilidade civil,
não obstante a freqüência com que se discute - não fora o mais sedutor entre
todos os que se relacionam com o direito civil - pode-se dizer, sem receio de
erro, que não há ponto pacífico. Nenhum se pode apontar que não seja objeto
de controvérsia, aliás, salutar, porque assim se torna cada vez mais opulenta a
literatura a respeito e mais fascinante a investigação do problema.” 278
Certo é, que o princípio da responsabilidade civil, surge da antiga
máxima dos romanos, o neminem Iaedere, princípio segundo, o qual não se
deve lesar ninguém, sob pena de responder por indenização.
Para Bittar, ao eleger o modo pelo qual atua na sociedade, o homem
assume o ônus correlativo, surgindo a noção de responsabilidade como
conseqüência natural de sua inteligência e liberdade. 279
Em outras palavras, a responsabilidade civil, defendida na nossa
Constituição de 1988, é uma das expressões de desenvolvimento da nossa
sociedade, por que não dizer, do desenvolvimento do ser humano.
A REPARAÇÃO DOS DANOS CAUSADOS AOS EMPREGADOS
Assinalada a importância do amplo tema da responsabilidade civil
importa questionar uma peculiar situação, a dos danos aos quais estão sujeitos
empregados, que muitas vezes são submetidos a condições de trabalho que
podem oferecer risco para a saúde e integridade física.
275
CHAVES, Antonio. Responsabilidade Civil. Estudo de direito comparado integrativo. São Paulo, SP:
Busthatsky, Editora da USP, 1972, p. 17.
276
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Responsabilidade civil, volume V, 4ª edição. Rio
de Janeiro, RJ: Freitas Bastos, 1995, p. 158.
277
CAMPISTA, Carlos Alberto Tavares. Pela indenização de danos morais em caso de homicídio. In Revista
0
Forense n 287. Rio de Janeiro, RJ: Forense, p. 125
278
0
DIAS, José de Aguiar. O dano moral e sua reparação. In Revista Forense n 144. Rio de Janeiro: Forense,
novembro de 1952, p. 41.
279
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: RT, 1993, p 16.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
179
O tema abordado pelo trabalho liga-se à responsabilidade dos
empregadores em (obrigatoriamente) ofertarem aos empregados, condições de
trabalho, que respeitem a dignidade humana.
O trabalho volta-se à identificação dos deveres gerais dos
empregadores em relação à saúde e segurança dos empregados, abrangendo
desde a prevenção de situações de risco pela instrução dos trabalhadores
(inclusive e especialmente pelo manuseio de equipamentos perigosos), até a
reparação do dano, quando este ocorrer.
É certo que a responsabilidade civil, em geral, fundamenta-se no dever
de reparar o dano consagrado pelo artigo 159 do Código Civil brasileiro: “Aquele
que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
Tal regra exige a prova de culpa para que se imponha o dever de
indenizar, inclusive na responsabilidade civil por acidentes do trabalho, como
dispõe a Constituição Federal, a exigir “dolo ou culpa” do empregador (inciso
XXVIII do artigo 70).
O Código Civil brasileiro, depois de exigir certos pressupostos para a
imposição do dever de indenizar, trata do tema também, no capítulo do Direito
das Obrigações, destinado à “liquidação das obrigações por atos ilícitos”, entre
os artigos 1.537 e seguintes.
O direito à integridade física e ao trabalho são afirmados pela lei civil,
tanto que o artigo 1.539 do Código Civil, cuida das ofensas à integridade física
que diminuem ou eliminam a capacidade Iaborativa da vítima : “Se da ofensa
resultar, defeito pelo qual o ofendido não possa exercer, seu ofício ou profissão,
ou se lhe diminua o valor do trabalho, a indenização, além das despesas do
tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá uma pensão
correspondente à importância do trabalho, para que se inabilitou, ou da
depreciação que ele sofreu.”
Em qualquer caso, sob o fundamento do direito comum a
responsabilidade exige a prova da culpa para obter-se a reparação, o que por
vezes torna-se demasiadamente difícil, dadas as peculiaridades das condições
em que determinado trabalho, ofício ou profissão são desenvolvidos.
Assim, ao lado da culpa como fundamento da reparação, levanta-se a
temática sob a perspectiva da responsabilidade objetiva do empregador, dada a
dificuldade, que muitas vezes enfrenta a vítima na difícil demonstração da culpa.
A
REPARAÇÃO
DO
DANO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
AO
EMPREGADO
COMO
Os contornos atuais da conceituação da responsabilidade civil revelam
a existência de uma dicotomia, dado que a responsabilidade civil pode ser
subjetiva ou objetiva.
A responsabilidade subjetiva é Iastreada na idéia de culpa, pregando a
teoria clássica, que é responsável pela reparação dos danos causados àquele
que age intencionalmente (dolo), ou com negligência, imprudência e imperícia
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
180
(culpa).
De outro lado, a responsabilidade objetiva independe da verificação da
culpa em sentido lato, imputando-se ao agente, o dever de indenizar pela
simples constatação do dano e do liame de causalidade.
Como escreve Silvio Rodrigues, “na responsabilidade objetiva a atitude
culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois,
desde que exista relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima
e o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou
não culposamente”.280
Fundamenta-se a teoria objetiva na idéia de risco, onde aquele que,
através do exercício de dada atividade, cria um risco de dano para terceiros,
deve ser obrigado a repará-lo.
O direito positivo brasileiro já acolheu o princípio da responsabilidade
objetiva em diversos diplomas legais281 destacando-se a edição da Lei nº 8.078,
de 17 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), que impulsionou
o dever de indenizar sem se cogitar do elemento subjetivo da responsabilidade
civil.
Efetivamente, tratando-se de relação de consumo, o artigo 14 do
CDC282 prescreve o dever de indenizar, independentemente da verificação da
culpabilidade do agente, sendo necessário somente o dano e o nexo de
causalidade.283
Tal a tendência da responsabilidade civil: proteger cada vez mais, e de
maneira eficiente, as vítimas dos danos a que estão sujeitas as pessoas no
moderno mundo “globalizado”, na era das máquinas e das informações.
O direito atual, evolui, no sentido de afirmar cada vez com mais força os
direitos personalíssimos, inerentes a todos os seres humanos, colocando-os no
centro dos interesses jurídicos, o que se denomina, atualmente de
“repersonalização do direito”.
No âmbito deste texto, o problema que se coloca para ligar-se há
possibilidade (necessidade) de transformar o fundamento da responsabilidade
280
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. IV. Responsabilidade Civil, 2~ ed. São Paulo Saraiva, 1977, p. 10
0
Por exemplo: a) Decreto n 2.681, de 1912, disciplinando a responsabilidade civil das estradas de ferro; b)
0
0
Lei n 6.367/76, sobre acidentes de trabalho; o) Decreto-lei n 32/66, que instituiu o Código Brasileiro do Ar, d)
0
0
Lei n 6.453/77, que dispõe sobre a responsabilidade civil por danos nucleares; e) Lei n 6.939/91, que dispõe
sobre a responsabilidade civil por dano ambiental.
282
Artigo 14 do CDC: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
283
James Marins, ao estudar a responsabilidade objetiva no CDC, assim escreve: “Não há convincente sistema
legal de tutela do consumidor sem que enseje célere, completa e efetiva reparação aos danos - morais ou
patrimoniais - sofridos pela vítima. Neste aspecto, assume extrema relevância a opção do legislador pelo
modelo jurídico de responsabilidade civil a que estará sujeito o fornecedor no âmbito das relações de consumo,
operando alterações, até mesmo substanciais, no direito positivo de modo a adequar a norma à írregressível
força de novos fatos, criando novo Direito. A intangibilidade do primado da culpa queda-se ante a necessidade
social de efetiva reparação aos danos oriundos dos acidentes de consumo. A consagrada fórmula ~as de
responsabilité sans faute’ - que carrega consigo decantadas inspirações morais - cede ante a sólidos conceitos
modernos de distribuição de justiça.” MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto.
Os acidentes de consumo no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. São Paulo, SP: RI, 1993, p.
88-89.
2
281
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
181
civil por acidente do trabalho, de subjetiva para objetiva.
A responsabilidade objetiva impõe o dever de indenizar sem a
necessidade de demonstração de culpa pelo agente, bastando a prova do ato
comissivo ou omissivo, do dano e do nexo causal, sendo a idéia sido
engendrada sob a égide da “teoria do risco”, segundo a qual, aquele que coloca
em risco a saúde ou integridade das pessoas deve suportar os ônus de
eventuais acidentes.
Em tal contexto, merece reflexão a afirmação da responsabilidade civil
objetiva como mecanismo eficiente de proteção à vítima de danos que, às vezes,
demandam prova difícil da culpabilidade do agente. Proteger a vítima, eis o
moderno objetivo da responsabilidade civil.
No tocante ao texto constitucional, afirma-se a necessidade da
Constituição evoluir no sentido de tutelar melhor os trabalhadores sujeitos a tais
infortúnios, os quais muitas vezes deixam de obter a reparação do dano dada a
dificuldade da prova da culpa.
O que se tem em mira é a proteção da vítima, devendo-se simplificar os
mecanismos necessários à reparação dos danos acidentários e conscientizar os
empregadores de que seus empregados não são meras “peças” que movem a
empresa, mas são as pessoas que fazem o sucesso ou o fracasso do
empreendimento.
Os empregados são pessoas que merecem respeito, instrução,
proteção. Devem ser tuteladas pelo direito quando ocorram acidentes, que lhes
prejudiquem a vida, a saúde, que ofendam enfim, qualquer de seus direitos de
personalidade.
Certo é, que a responsabilidade objetiva existe somente quando
prevista em lei, sendo hoje, inexistente, no tocante aos acidentes do trabalho.
Nada obstante, impõe-se questionar o direito posto, buscando a superação
dessa realidade jurídica ultrapassada, a exigir uma nova postura do
ordenamento jurídico, frente aos graves problemas enfrentados na atualidade.
Atribuindo ao empregador o encargo de provar que respeitou
integralmente os direitos do empregado, oferecendo qualificação (cursos),
equipamentos de segurança adequados, mantendo vigilância sobre os atos
praticados pelo mesmo, certamente o direito atingiria seu propósito de tutelar os
interesses do ser humano da maneira mais ampla possível.
A regra, pois, poderia ser a da responsabilidade objetiva, pois mesmo
na hipótese do empregador ter feito o melhor pelo empregado, diante de um
acidente do trabalho, restaria somente a demonstração da ocorrência de caso
fortuito ou de força maior, ou ainda a culpa exclusiva da vítima, únicas hipóteses
de afastamento do dever de indenizar.
Deve-se ressaltar, em tal contexto, os mecanismos de proteção de
acidentes do trabalho, indagando-se sobre quais os comportamentos que devem
ser adotados pelos empregadores para minimizar a ocorrência de danos aos
empregados, afirmando-se sempre, a prevenção como preferível à reparação.
Impõe-se, na atualidade, refletir sobre a dinâmica do direito, estudando
e compreendendo sua evolução, tendente a incorporar no ordenamento jurídico,
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
182
o princípio da responsabilidade objetiva em matéria de responsabilidade civil.
Além da afirmação do princípio da responsabilidade objetiva, nos
acidentes do trabalho, deve-se observar ainda, a finalidade da reparação pelo
dano exclusivamente moral, que decorra de um acidente do trabalho,
ressaltando-se de um lado a função punitiva para o ofensor e natureza
compensatória para o ofendido.
A discussão sobre as diferenças conceituais, entre o “dano material” e o
“dano moral”, também será objeto de análise, ressaltada a importância do dano
exclusivamente extrapatrimonial para a moderna doutrina dos direitos da
personalidade e o princípio da responsabilidade civil. Ademais, sem dano não há
indenização.
Certo é, que, quando ocorrem acidentes do trabalho, havendo redução
da capacidade de trabalho (permanente ou temporária), deve ser levada em
conta a idéia de reparação integral, abrangendo a indenização pelo dano
financeiro e a compensação pelo dano moral.
CONCLUSÃO
Diante da transformação e conseqüente evolução da humanidade
forçou a aceitação da responsabilidade civil, a qual tem como objetivo reparar o
dano, como uma espécie de compensação para a vítima, bem como servir de
penalidade para que o ofensor não pratique mais, os mesmos atos lesivos.
Mas a sociedade vai além, busca-se a responsabilidade objetiva que
tem como princípio proteger o hiposuficiente (empregado) da difícil prova da
culpa ou dolo do mais forte (empregador).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo: RT, 1993.
CAMPISTA, Carlos Alberto Tavares. Pela indenização de danos morais em caso de homicídio. In
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Revista Forense n 287. Rio de Janeiro, RJ: Forense.
CHAVES, Antonio. Responsabilidade civil. Estudo de direito comparado integrativo. São
Paulo, SP: Busthatsky, Editora da USP, 1972.
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Forense, novembro de 1952.
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Responsabilidade civil, volume V, 4ª
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MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. Consumo no Código
de Proteção e Defesa do Consumidor. São Paulo, SP: RI, 1993.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. IV. Responsabilidade Civil, 2 ed. São Paulo Saraiva, 1977.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
183
O FUTURO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E O
REFLEXO NO DIREITO
LINEU FERREIRA RIBAS
ADVOGADO TRABALHISTA NO PARANÁ. ESPECIALISTA EM DIREITO E
PROCESSO DO TRABALHO. PÓS-GRADUANDO EM ESPECIALIZAÇÃO EM
ECONOMIA DO TRABALHO, PELA UFPR.
RESUMO – O artigo aborda aspectos atuais e polêmicos do Direito do Trabalho,
com ênfase para as transformações a que está sendo submetido em razão dos
fenômenos da globalização e do neoliberalismo. O autor aborda o papel das
entidades sindicais no modelo trabalhista vigente, ressaltando a importância
histórica dos sindicatos na conquista de direitos trabalhistas em contraste com o
atual modelo, o qual visa a preservação de direitos e objetiva concretizar outros
interesses dos associados. Cuida o texto de outros temas de relevo, como a
“flexibilização” do Direito do Trabalho; as políticas públicas do segurodesemprego, da qualificação e da intermediação de mão-de-obra.
THE FUTURE OF WORK RELATIONS AND ITS RESPONSE IN LAW –
ABSTRACT – The article approaches current and controversial aspects of
the Labor Law, with emphasis to the transformations it is being submitted
due to the phenomena of globalization and neoliberalism. The author
approaches the role of union entities in the labor model in force, pointing
out the historical importance of the unions in the conquering of labor rights
in contrast with the current model, which aims at the preservation of rights
and intends to achieve other interests of the members. The text also deals
with other significant subjects, such as the flexibility of the Labor Law; the
public policies concerning the unemployment insurance, the qualification
and the intermediation of man power.
INTRODUÇÃO
O sistema capitalista instaurou-se em nossa sociedade, constituindo-se
o centro das economias internacionais, trazendo os benefícios peculiares, mas
também as conseqüências inevitáveis. Deste modo, sendo este sistema baseado
na acumulação de capitais, foi-se trabalhando para uma melhora da produção,
através das especializações e das novas tecnologias.
Paralelamente a este acontecimento, a população economicamente
ativa cresceu, conseqüentemente com a taxa de desemprego, onde o mercado
de trabalho deixou de assimilar a mão de obra na mesma proporção com que ela
aumentava.
Modernamente, há grande preocupação, por parte dos estudiosos,
como sociólogos, economistas e juristas, quanto a absorção desta mão de obra
excedente, que acaba pressionando o mercado de trabalho, a qual chamamos
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
184
de “Exército Industrial de Reserva”. Estes agem de maneira a forçar uma
intensificação no trabalho dos empregados, regulando os seus salários de
maneira negativa, e na maioria das vezes, forçando uma precarização das
condições de trabalho, pois precionados os trabalhadores empregados acabam
por sujeitar-se as mais diversas precarizações, condições de trabalho não
desejadas, e a níveis menores de salários.
Dentro deste grupo que denominamos de exército industrial de reserva,
encontramos os componentes principais pressionadores do mercado de
trabalho, os desempregados, assim considerados, segundo a recomendação da
OIT (Organização Internacional do Trabalho), elaborada na 13ª conferência
internacional dos estatísticos do trabalho. Os desempregados são aquelas
pessoas que estão à procura de trabalho, com disponibilidade para o mesmo e
que estão a procurá-lo de forma assalariada e num período recente284, podemos
dizer ainda, que de forma intermitente e constante.
No que diz respeito ao sub-grupo dos desempregados, consideram-se
as pessoas, que procuram trabalho e estão no desemprego, sem qualquer tipo
de trabalho remunerado, nos últimos 7 dias (definição recomendada pela OIT),
porém, há institutos, que consideram os últimos 30 dias sem o emprego
remunerado.
Um dos fatores que gera esta situação é a exigência do mercado atual
de trabalho pela qualificação do trabalhador. Diante deste quadro, o trabalhador,
iludido por uma política estatal de auto-gestão e de super qualificação
profissional, acaba por dedicar-se exatamente a isso, qualificando-se cada vez
mais para o capitalismo, o que não significa seu aproveitamento, mas apenas
que o trabalhador está a competir entre si.
Já os trabalhadores que não buscam a qualificação, podem acabar se
inserindo na massa marginal, composta em termos gerais, por aquelas pessoas
que não são aproveitadas pelo capital e nem há interesse deste nelas, sejam por
falta de qualificação, seja por idade avançada, doença que os impossibilitem ou
outro motivo, enfim são aquelas pessoas que não exercem pressão no mercado
de trabalho.
O modelo econômico vigente não tem o condão de alterar o cenário
atual, no qual, o mercado formal não está absorvendo a força de trabalho na
mesma proporção em que ela se disponibiliza, ou seja, a PEA (População
Economicamente Ativa) não vem encontrando colocação no mercado de
trabalho suficiente para a sua demanda de emprego, o que fatalmente gera a
informalidade.
Nesse conceito de informalidade, estão considerados os trabalhadores
que vão trabalhar de forma autônoma, montando seu próprio/micro negócio e
aqueles que vão trabalhar de forma precária com relação de emprego pouco ou
nada atingida pelas normas de proteção do trabalho, sujeitando-se a receber
salários, que não esperavam ou não almejavam como ideal, além dos
trabalhadores sem carteira de trabalho assinada, dentro das próprias empresas
284
HOFFMANN, Marise Pimenta; BRANDÃO, Sandra Márcia Chagas. Medição de emprego: recomendações
da OIT e práticas nacionais. UNICAMP. Cadernos do CESIT, Campinas, n. 22, nov.
2
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185
que teriam condições para assiná-las e arcar com os encargos daí decorrentes,
mas que não o fazem para melhor concorrer entre as massas de capitais,
aproveitando-se da situação opressiva em que o trabalhador se encontra.
O PAPEL DOS SINDICATOS E O MODELO TRABALHISTA VIGENTE
Os sindicatos foram de suma importância para a criação do direito do
trabalho, por meio das lutas de classes, pelas exigências por melhores
condições de trabalho, por melhores salários, muitas vezes alcançando as
reivindicações através de paralisações grevistas, manifestações e até barricadas
nas frentes de indústrias e edifícios políticos.
Desta forma, as conquistas no campo do direito do trabalho foram
marcadas por longos e árduos anos de batalhas entre empregados e
empregadores, na tentativa de evitar a opressão do trabalhador pelo capital.
É bem verdade que, atualmente, a face dos sindicatos mudou,
passando de estereótipos extremistas, para entidades mais “flexíveis”, abertas à
conversação, que visam a manutenção dos direitos conquistados, especialmente
as cláusulas de ordem social, constantes em acordos e convenções coletivas de
trabalhos.
Contudo, temos para nós, que o fenômeno da transformação é
conjuntural, diante das várias dificuldades encontradas perante o avanço
tecnológico. Avanço este, que é considerado uma ameaça constante aos postos
de trabalho, bem como a pouca atuação do Estado para mudar essa situação, e
que ao contrário, vem praticando uma política de distanciamento da relação
empregado-empregador, tolhendo direitos do trabalhador por meio do
enfraquecimento das classes operárias, sem a possibilidade de intervenção dos
sindicatos, pois estes não estão aparelhados estruturalmente para oferecer uma
efetiva alternativa ao modelo trabalhista vigente.
Inobstante à esta política do governo no sentido de enfraquecer o
trabalhador, as entidades atuantes têm mantido íntegras as suas ideologias de
classe, contrapondo-se à era do novo liberalismo. Podemos citar como exemplo
a promulgação da Lei 9.601/98, que dispõe sobre o trabalho por prazo
determinado, que inicialmente em seu projeto de lei não continha a participação
obrigatória dos sindicatos, o que foi objeto de manifestações das entidades
sindicais, obtendo êxito, pelo que foi incluída a necessidade de participação
obrigatória dos sindicatos na celebração de convenções e acordos coletivos de
trabalho para a sua instituição.
Assim, um dos objetivos atuais dos sindicatos é exatamente a
contraposição às políticas estatais de flexibilização e às idéias neoliberais,
através das manifestações de entidades maiores, como as federações,
confederações e, principalmente, por meio das centrais sindicais.
Paralelamente, muitas das ideologias sindicais transmutaram-se,
desviando suas atenções para o campo social, no qual os sindicatos continuam
tendo grande participação, não tanto na conquista de melhores condições de
trabalho e de vida para os representados, mas especialmente, à uma tendência
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de prolongar os benefícios para toda a família do trabalhador, como os planos de
saúde, com direito à inscrição dos dependentes legais e, o mesmo acontecendo
com a assistência odontológica, convênios com farmácias e outros do mesmo
gênero.
Ainda com a mesma intenção, percebemos que os sindicatos têm
promovido atuações recreativas, organizando eventos para seus representados,
celebrando convênio com cinemas e teatros, com descontos para a categoria,
possibilitando assim ao trabalhador e à sua família opções de integração social.
Em realidade as organizações sindicais têm-se buscado a
concretização da cidadania de forma transversa, visando uma melhoria de vida
da população, incluindo direitos civis, sociais e político, tal como direito de livre
expressão, à segurança, à saúde, educação, alimentação, à livre associação,
eleição de representantes, etc...
Parece-nos certo, também, que os sindicatos têm desempenhado
importante papel diante das políticas neoliberais do “pluralismo sindical”,
evitando a promulgação de leis, que permitam a organização sindical em um
único setor, ou dentro de uma única empresa, pois esta falsa política de
liberdade somente vem a enfraquecer ao sindicalismo, colocando o trabalhador
onde e na forma que o capital quer, enfraquecido.
Essa concepção somente tornou-se clara entre os sindicalistas
atuantes, após o aparecimento de muitos sindicatos de “gaveta”, sendo assim
considerados aqueles sindicatos criados com o único objetivo de arrecadação
das contribuições sindicais, antigo imposto sindical, o que colaborou em muito
para a proliferação dos sindicatos e para o enfraquecimento dos trabalhadores.
Assim, as organizações das entidades sindicais em federações,
confederações e em centrais sindicais, vêm dar esse fortalecimento necessário e
unificado, o que também acaba por unificar as lutas dos trabalhadores, voltadas
exatamente para melhor qualidade de vida e a busca da cidadania. Com este
pensamento, observa-se exatamente o contrário do que se constatou a poucos
anos atrás, ao invés da bipartição de sindicatos, hoje buscam-se maneiras de
formar um sindicato único, ou seja, fundirem em única entidade para obterem
maior representatividade e força perante o capitalismo.
Uma boa alternativa para a atual fase vivida pelo capitalismo, seria a
contratação coletiva, com a presença das organizações sindicais. Bem como
devem os sindicatos buscarem apoio não só nos trabalhadores sindicalizados de
sua categoria, mas esta busca de união e força deve estender-se à outras
categorias, especialmente, buscando o apoio dos trabalhadores desempregados.
Vemos como exemplo, a organização da central de trabalhadores denominada
de “Força Sindical”, que em outubro de 2000, lançou na praça da Sé em São
Paulo, a “Campanha Unificada 2000”, contando com a participação de 16
diferentes categorias, que juntas englobam 2 milhões de trabalhadores, unidos
em prol da redução da carga horária semanal de 44hs. para 40hs. semanais e
para o aumento do salário mínimo de R$151,00 para R$180,00, obtendo êxito
quanto a este.
Campanhas com este porte, espelham, em última instância, as
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principais reivindicações da generalidade dos trabalhadores, com alcance, sem
dúvida alguma, social.
Assim, observamos que o sindicalismo moderno caminha na defensiva, na
retranca das políticas neoliberais, porém trata-se de uma fase, na qual os
sindicatos estão se vendo obrigados a garantir os direitos adquiridos e a
manutenção das cláusulas sociais, com uma tendência em preservar o trabalho,
buscar a cidadania do trabalhador, com a melhoria de vida deste e de sua
família, com a conseqüente redemocratização do sindicalismo.
FLEXIBILIZAÇÃO
TRABALHO
E
PRECARIZAÇÃO
DAS
RELAÇÕES
DE
As mudanças que ocorreram na economia, desde a década de 70,
atingiram os postos de trabalho, especialmente os das grandes empresas, o que
acabou determinando o nascimento da discussão a cerca da necessidade de
flexibilização do trabalho.
Surgiram duas formas básicas de flexibilização, uma denominada de
quantitativa e outra de qualitativa, também chamada de funcional. A primeira visa
o enxugamento dos postos de trabalho e a segunda trata da permanência dos
trabalhadores no emprego, desde que sejam polivalentes, os quais melhor se
inserem nas novas formas de organizar a produção.
A experiência brasileira de flexibilização é diferente da Européia, pois
esta visava a melhora da qualidade da produção e aquela visa apenas a
diminuição do custo da mão-de-obra, o que causa a precarização do trabalho, a
instabilidade do emprego e a redução dos níveis salariais.
Nos anos 50, o sindicalismo brasileiro criou certa envergadura, que foi
atacada e enfraquecida nos anos 60, com a repressão militar, o que acabou
trazendo maior liberdade para as empresas contratarem trabalhadores. Este
livre-arbítrio das empresas gerou instabilidade no emprego, escassez de mãode-obra e baixos salários.
Por outro lado, o trabalho existente no mercado formal, não
corresponde à segurança e à estabilidade desejadas, mesmo aí há facilidade
para se dispensar e há muita instabilidade no emprego, com grande rotatividade
de mão-de-obra.
Em conseqüência desta rotatividade, vem os baixos níveis salariais,
pois quanto menor o tempo de permanência no emprego, menor são as chances
do trabalhador alcançar ascensão na empresa e praticamente permanece
sempre próximo do salário inicial do mercado de trabalho. A rotatividade impõe
que o trabalhador esteja sempre recebendo salários a nível ingresso e, quanto
menor o grau de instrução do trabalhador, mais sujeito está à rotatividade.
Por outro lado, os trabalhadores de instrução média acabam se
sujeitando a trabalhos não desejados e a condições mais precárias, com
trabalho mais intensificado, com o intuito de permanência no emprego e
possibilidade de ascensão.
Desde os anos 80, cresceram os postos de trabalhos informais e a partir
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dos anos 90, agravou-se a tendência de flexibilização do trabalho, pelo que
ganharam força as propostas de desregulamentação do emprego, sob o pretexto
de impedir uma maior redução do emprego formal e para evitar o aumento do
desemprego.
A regulamentação do emprego, no Brasil, não garante a estabilidade
almejada, contendo alta flexibilidade para o empregador contratar, usar,
remunerar e, especialmente, para dispensar o trabalhador, pelo que vai contra
um dos princípios norteadores do direito do trabalho, o da “continuidade da
relação de emprego”, o que não contribui para a diminuição das desigualdades
sociais e tampouco para a diminuição do desemprego, apenas levando a maior
precarização do emprego.
Por outro lado, o tema da redução dos encargos sociais ganhou
particular importância na atualidade, como fator agravante no custo do trabalho,
o que foi aceito pela maioria da sociedade como verdadeira a idéia de que no
Brasil os encargos sociais são elevados e que uma diminuição destes levaria à
estabilidade no emprego, com possibilidades reais de aumento dos salários e
dos postos de emprego.
Um estudo realizado pelo DIEESE em 1997, desmente essa falácia,
concluindo que os encargos no Brasil oneram apenas 25,1% aos salários285.
Portanto, esta política de diminuição dos encargos sociais precisa ser
repensada, especialmente encontrando definições específicas para o que vem a
ser encargos sociais, e o que é rendimento do trabalho em termos de
remuneração direta e indireta, para então ser ponderada em âmbito da analogia
internacional se o custo do trabalho é elevado ou não.
Assim, analisando-se de forma mais superficial, também constatamos
que esta política de redução dos encargos sociais pregada no Brasil, vem
associada à política de flexibilização das relações empregatícias, o que busca a
precarização do trabalho, sem garantias legais ou convencionais de direitos
mínimos a serem observados, tal como salário base, 13º salário, FGTS, multa de
40% sobre o FTGS, 1/3 de férias e INSS, deixando tudo a cargo da negociação
individual entre empregador e trabalhador, o que nada mais é que o suprimento
dos direitos trabalhistas conquistados ao longo do tempo.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DO SEGURO-DESEMPREGO,
QUALIFICAÇÃO E DA INTERMEDIAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA
DA
Não há dúvida que, no Brasil, existe má distribuição de renda, sendo o
capital concentrado nas mãos de poucos e com escassez nas mãos de muitos.
Não obstante a isso, é possível o país tornar-se uma sociedade salarial, pois tem
grande potencial econômico e populacional a ser explorado, bem como riquezas
naturais que possui como nenhum outro país.
A questão do desemprego deve ser vista através da ótica macro
econômica, onde se faz necessária maior atuação do poder estatal para regular
285
DIEESE. Encargos sociais no Brasil: conceito, magnitude e reflexos no emprego. p 13.
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as desigualdades e a má distribuição da renda.
O seguro-desemprego é um paliativo, sem qualquer pretensão de
reverter o quadro do desemprego, mas tão somente visa a dar um “pilar” de
sustentação para o trabalhador por um curto espaço de tempo.
Por outro lado, não podemos nos equivocar pela “propaganda
enganosa” de que o necessário é a qualificação e requalificação da mão-de-obra
para acabar com o desemprego, pois deste modo nós, os trabalhadores,
estaríamos assumindo a culpa pelo desemprego, o que não é verdade.
O que se observa é que os trabalhadores de nível médio estão se
sujeitando cada vez mais a trabalhar em cargos de menor importância do que os
efetivamente desejados, com o intuito de assim obterem ascensão no emprego e
sua manutenção, que via de regra vem acoplado com grande intensidade de
trabalho.
Igualmente, a intermediação de mão-de-obra, em nada contribui para a
melhora do contexto do mercado de trabalho, mas ao contrário, apenas serve
para impôr de forma veemente a precarização do trabalho, em menores
condições de trabalho e achatamento dos níveis salariais.
Assim, a premissa maior é que o grande causador do desemprego é o próprio
círculo vicioso do capitalismo, onde o crescimento vem aderido com a tecnologia
e a automação, conseqüentemente necessitando cada vez menos de mão-deobra, onde quem deve interferir é o Estado, atuando com seu braço forte para
distribuir melhor a renda.
CONCLUSÕES
Diante do exposto, constatamos que somente a retomada do crescimento
econômico poderá, de fato, contribuir para a diminuição do desemprego e que uma
desregulamentação das normas de direito do trabalho em nada contribuirá para a
redução do desemprego, mas tão somente para a sua precarização.
O direito do trabalho vai continuar a existir, especialmente porque trata-se
de um circuito natural, no qual o capital toma força e oprime o trabalhador, porém
sempre precisando deste para a sua própria manutenção, seja como força de
trabalho, seja como consumidor.
E, quando essa opressão se torna tanta, o trabalhador de forma natural
tende a se organizar para melhor reivindicar seus direitos, daí porque se faz
necessário a existência de um ramo do direito próprio, denominado “Direito do
Trabalho”, que deve dedicar-se ao estudo das premissas e evoluções do
relacionamento Capital x Trabalho, o qual sempre necessitará de regulamentação
pelo Estado.
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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DA MEDIAÇÃO E DO JUÍZO ARBITRAL –
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
ANDREY HERGET
PROFESSOR DE DIREITO CIVIL NA FACULDADE MATER DEI – ADVOGADO NO
PARANÁ - EX-PRESIDENTE DA OAB, SUBSEÇÃO DE PATO BRANCO-PR.
RESUMO – O texto comenta a legislação que instituiu no ordenamento jurídico
brasileiro a mediação e a arbitragem, observando que a matéria, em que pese
instituída por Lei Federal, tem gerado polêmicas entre os estudiosos do Direito.
O autor enfatiza a análise de alguns dispositivos da referida legislação,
apontando discrepâncias da norma em relação a direitos consagrados pela
Constituição ou por outras leis. Com ênfase, o artigo faz abordagem crítica à
regra segundo a qual a sentença proferida pelos árbitros não fica sujeita a
recurso ou homologação do Poder Judiciário, apesar de constituir-se em título
executivo extrajudicial, passível de execução forçada perante o mesmo Poder
Judiciário.
MEDIATION AND THE ARBITRARY COURT. SOME CONSIDERATIONS –
ABSTRACT - The text comments on the legislation that instituted the mediation
and arbitration in the Brazilian legal system, observing that the issue, established
by Federal Law, has raised controversies between the scholars of Law. The
author emphasizes the analysis of some terms of the legislation in question,
pointing out discrepancies of the norm in relation the rights consecrated by the
Constitution or other laws. With emphasis, the article makes a critical approach to
the rule which states that the sentence pronounced by the arbitrators is not
subject to an appeal or homologation of the Judicial Department, despite
constituting an extrajudicial executive title, subject to forced execution before the
same Judicial Department.
INTRODUÇÃO
Muito se tem debatido acerca das inovações impostas pelo legislador,
por força do estatuído na Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, a qual deu
nova roupagem ao instituto da mediação e da arbitragem, revogando por
conseqüência as disposições a respeito do assunto, anteriormente tratadas nos
artigos 1.037 a 1.048 do Código Civil Brasileiro, sob a denominação “Do
compromisso”.
As inovações não foram pacíficas, tanto é verdade, que a lei em
enfoque terminou por sofrer recentemente o crivo de apreciação de sua
Constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ( STF ), de sorte que
inúmeros de seus dispositivos possuem elevado grau de discussão, porquanto
em primeiro plano, apresentam supressão de direitos, em afronta a dispositivos
de nossa Carta Magna. Em que pesem divergirem as opiniões quanto à
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aplicabilidade de alguns dos artigos desta nova lei, nossa Corte Maior terminou
por entender, por maioria de votos, pela legalidade e constitucionalidade deste
novo instituto, via de regra da lei, em todos os seus termos.
Não se pretende através deste, determinar críticas ao sistema, ao
contrário, todas as inovações instituídas pelo legislador, que tem por escopo a
facilitação do acesso ao Judiciário, com maior celeridade e redução de custos,
são sempre bem vindas, e aplaudidas.
Não é este um caso isolado. Recorde-se igualmente a legislação que
instituiu os Juizados Especiais, com imensa aplicação na solução de casos
concretos, notadamente, com maior agilidade; com redução ou sequer existência
de custos, e, lembre-se, com desafogamento do Poder Judiciário. As demandas
são longas, e não longas, diga-se de passagem, porque o Judiciário é falho,
nem pensar. O sistema legal vigente em nosso País, necessariamente impõe um
retardamento na entrega da prestação jurisdicional. São as chamadas regras de
instrumentalização do processo, as quais têm por objetivo a propiciação ao
agente de acesso a todos os níveis de Justiça, por aplicação do preceito
constitucional esculpido no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal ( a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito ),
elegendo como regra básica de nosso ordenamento, o princípio da
inafastabilidade do controle judiciário.
Muitos são os debates em nossa doutrina, quanto ao sistema vigente,
ligado à instrumentalidade do processo, o qual apresenta a parte litigante um rol
de procedimentos que, quando bem utilizados, podem conduzir a longos anos de
discussão de determinado assunto, sob o enfoque de que tais dispositivos, em
parte, ao menos, deveriam ser suprimidos. Não há consenso quanto a tal
questão; há os que defendem a ampla instrumentalização, porque não se pode,
por via de lei ordinária, suprimir o acesso ao Judiciário, ratificando integralmente
princípios constitucionais como o da ampla defesa; do duplo grau de jurisdição;
do devido processo legal e, enfim, da inafastabilidade do controle judicial; há, por
outro lado, os que posicionam-se quanto a necessidade desta supressão, como
meio e forma de agilização da entrega da prestação jurisdicional, via de regra,
desafogamento do Judiciário.
Como alhures dito, não há consenso quanto ao tema, por demais
polêmico.
Sob este enfoque, e sob a necessária e correta condução dos
procedimentos contidos na Lei ora em exame, é que passaremos a nos
posicionar, não com objetivo de agredir o procedimento instituído, mesmo
porque é lei ( o que não quer significar que por ser lei não possa sofrer o crivo do
contraditório, ser objeto de perquirição e questionamento, notadamente porque é
conhecido o quanto é falho o processo de elaboração legislativa vigente em
nosso meio ), mas como forma de, tentando explicar os procedimentos contidos
na norma, estabelecer premissas básicas para seu correto funcionamento e
aplicabilidade, com intuito primeiro, de dar ao jurisdicionado as informações
necessárias à eleição deste procedimento, inclusive, sob o prisma do que
eventualmente estariam renunciando, caso venham a eleger o instituto da
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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mediação e arbitragem como forma de solução de conflitos. É necessário o
absoluto esclarecimento da questão, sob pena de, por via oblíqua, estar se
cerceando direitos do cidadão.
Todavia, antes mesmo de adentrarmos na perquirição de determinados
dispositivos da Lei 9.307/96, especificamente no que tange aos procedimentos a
serem adotados pelo(s) mediador(es) e árbitro(s), necessário que se estabeleça
algumas premissas básicas quanto à lei e sua interpretação, frente ao texto
Constitucional vigente, tema tortuoso, porquanto sequer o próprio STF assentou
posicionamento pacífico e unânime a respeito.
Dentre os dispositivos legais, que mais têm apresentado discussão, em
nossa ótica, estão aqueles inceridos nos artigos 4º, que instituiu a chamada
cláusula compromissória; 6º, e parágrafo único, que determina o procedimento
a ser adotado pela parte em caso de inexistência de acordo prévio sobre a forma
de instituir a arbitragem; 13º, que indica quem pode ser árbitro; 17º, que
equipara os árbitros aos funcionários públicos para efeitos da legislação penal;
18º, que determina que os árbitros são juízes de fato e de direito, e que suas
decisões não ficam sujeitas a recurso ou homologação pelo Poder Judiciário; e
por fim, o artigo 31º, que trata dos efeitos da sentença arbitral. Na visão de
Norberto Bobbio, o problema da justiça diz respeito à correspondência (ou não)
entre a norma e os valores supremos ou finais que inspiram determinado
ordenamento jurídico. Desta forma, estudar o problema da justiça de uma norma
jurídica requer o exame da sua aptidão para o ideal do bem comum.
Quanto ao artigo 4º supra mencionado, cuja redação explicita o que
significa a cláusula compromissória, estabelecendo ser “a convenção através da
qual, as partes em um contrato, comprometem-se a submeter à arbitragem os
litígios, que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato”, estabelece o
mesmo, condição prévia aos contratantes de que, em surgindo, em momento
posterior, divergência quanto ao ato jurídico praticado anteriormente (contrato),
seja tal conflito dirimido através do Juízo arbitral, em decorrência da eleição
pelas partes deste procedimento, quando da contratação.
Tal dispositivo deve ser observado pelos contratantes, mormente aquele
hiposuficiente na relação contratual com muita cautela, porquanto, ao aderir a
condição desta natureza, estaria, sob a ótica da lei e da doutrina (parte), a qual
não comungamos, renunciando ao direito de ver o conflito surgido em ato
subseqüente à celebração do contrato analisado pelo Judiciário. Ora, é cediço
que, notadamente, quando as partes celebram um ato jurídico, estabelecendo
direitos e deveres a ambos os contratantes, denominado este ato “contrato
bilateral “, a parte mais fraca, na relação contratual, adere ao instrumento sem
maiores perquirições a respeito das condições ou cláusulas contratuais, até pela
própria necessidade de ver estabelecida aquela relação. Posteriormente,
advindo do instrumento divergências, a pactuação prévia da cláusula
compromissória, delegaria a apreciação deste conflito, exclusivamente, à seara
do Juízo de Mediação e Arbitragem, o que, ao nosso ver, é uma temeridade. A
cláusula desta natureza, pela sua eleição quando da contratação, estaria
suprimindo a possibilidade de ver os conflitos surgidos seqüencialmente
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apreciados e dirimidos pelo Judiciário. Com todo respeito, em nossa visão, a
supressão é arbitrária; não se pode, por meio de convenção, notadamente
levando-se em conta as particularidades relativas, quando da celebração destas
convenções, impôr a uma das partes a impossibilidade de livre acesso ao
Judiciário; digo mais, divergindo das opiniões contrárias, entendo, data vênia,
que cláusula desta natureza não possue caráter obrigatório, ou seja, mesmo que
pactuada, se demonstrado que o fora diante da imperiosa necessidade da
contratação, conjugado tal fato com certa dose de indução em erro do
contratante aderente, por certo, por aplicação das regras relativas ao Código de
Defesa do Consumidor, que determina, entre outras, que as cláusulas
contratuais devem ser interpretadas em favor do contribuinte (artigo 47 ), por
certo, atrevo-me a afirmar que competiria ao Judiciário dizer da validade desta
convenção, inclusive do caráter obrigatório imposto. Enfim, a questão não é
pacífica, e por certo, nossos Tribunais, ao longo dos anos, darão solução(ões),
ao presente caso. Registre-se que, a ausência de atenção aos parágrafos 1º e
2º, do artigo 4º, que dispõe acerca da forma da estipulação, da dita cláusula
compromissória, torna a mesma nula de pleno direito, sem efeito prático
nenhum.
Seguindo a linha adotada, de análise de determinados dispositivos da
Lei 9.307/96, no que diz respeito ao artigo 6º e parágrafo único, aquele
estabelece que inexistindo acordo prévio sobre a forma de instituição da
arbitragem, ou seja, caso não exista consenso entre as partes para a eleição da
arbitragem como meio de dirimir determinada controvérsia, uma delas
manifestará à outra sua intenção de dar início àquele procedimento,
comunicando-a por via postal ou outro meio de comunicação ( a lei diz qualquer),
o que deve ser analisado com cautela, porque a comunicação inadequada ou
errônea pode gerar a nulidade do ato, tendo como objeto esta comunicação a
convocação da parte contrária para em dia, hora e local certos, firmar o
compromisso arbitral, este, compreendido como “convenção através da qual as
partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, que pode ser
judicial ou extrajudicial“. O parágrafo único deste artigo informa que a ausência
da parte convocada, ou mesmo comparecendo, manifestar seu não interesse a
firmar dito compromisso arbitral, ensejará então a parte que convocou,
querendo, propor a demanda perante o órgão Judiciário.
Ora, o texto em análise tem interpretação, com todo respeito ao
divergente, singela. A mediação e arbitragem têm caráter facultativo; jamais
impositivo, obrigatório. Se uma das partes efetivamente não tiver interesse em
resolver a questão mediante celebração de compromisso arbitral, conforme
determina o artigo 9º da Lei, resta, ao inconformado, o Judiciário. Não se pode
impôr a uma das partes que aceite as condições de forma impositiva, ao
contrário, a facultatividade é a regra, a nosso ver, absoluta. Abro um parênteses,
aqui, e cujo tema na sequência retomaremos, no sentido de que convidada, uma
das partes, não é obrigada a comparecer. É flagrante a equivocada interpretação
dos dispositivos legais, principalmente por alguns Tribunais instituídos para este
fim, porquanto insistem em entender que a ausência da parte, após a
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notificação, poderá de plano ensejar a emissão de laudo, inclusive apenando a
parte com os efeitos da revelia – presunção de veracidade dos fatos alegados
pela parte contrária (art. 330, II CPC). Ora, com todo respeito, conforme alhures
mencionado, trata-se de mera faculdade. A parte se desejar, se for sua vontade,
firmará compromisso arbitral; caso não deseje, nada pode lhe ser imposto. É
diferente o caso, da existência de cláusula compromissória, em que,
estabelecida a controvérsia, uma das partes se recusa a comparecer para firmar
o compromisso. Ainda assim, neste caso, diante do não comparecimento de uma
das partes, à outra, o caminho é o Judiciário, buscando neste, uma sentença
arbitral. O que se diz em contrário, com todo respeito, não está na lei. A
ausência de uma das partes, quando notificada para comparecer em
determinado dia, hora e local, para tentativa de conciliação e eventual instituição
do compromisso arbitral, não havendo cláusula compromissória, que tem outro
procedimento, conforme antes mencionado, em hipótese alguma pode gerar
efeitos de revelia. É engano firmar posição neste sentido. Ausente uma das
partes, pela facultatividade do procedimento, restará este prejudicado, podendo,
se desejar a parte insurgente, buscar o Judiciário para a solução do litígio.
Ainda, sob o enfoque relativo a alguns dos artigos mais interessantes,
senão polêmicos, da dita lei, em nossa ótica, encontra-se o artigo 13º, que
determina que “ pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança
das partes “. O dispositivo em exame, trás implícita algumas condições, dentre
as quais, de que para exercer tal prerrogativa, ou seja, de ser árbitro, com intuito
de tentar dirimir controvérsia a si submetida, deverá o eleito ser capaz,
entendido tal como a capacidade de exercer todos os atos da vida civil, ou seja,
possuir capacidade de direito (aquela adquirida com o nascimento, com vida), e
capacidade de fato (adquirida com a maioridade; emancipação e outras formas
eleitas pelo Código Civil Brasileiro); mas não somente este fato se extrai do dito
artigo. Nota-se ainda, questão relevante, que é a necessidade da existência da
fidúcia, da confiança a ser depositada por ambas as partes contendentes, na
pessoa do eleito, ou seja, daquele cujo qual se deposita a responsabilidade para
solução de eventual pendência surgida no curso do negócio realizado. Mas não
é só. O dispositivo em questão, até mesmo porque o espírito da lei é o
informalismo, não estabelece nenhuma condição específica para a pessoa do
árbitro, mormente quanto à sua capacidade técnica e intelectual. Veja-se, que ao
apenas indicar como condição a capacidade e a fidúcia, deixou de forma
aleatória dito artigo, questão que ao nosso ver, é extremamente relevante, qual
seja, a relativa à formação profissional do eleito para julgar. Não basta, com todo
respeito, que o eleito possua a confiança das partes, e que seja capaz, conforme
alhures; é necessário mais, é necessário pois, preparo intelectual para julgar.
Tantas críticas são feitas aos Magistrados, pelas decisões no mais das
vezes inadequadas a casos concretos, isto, levando-se em conta que são
preparados para este mister, com formação superior (bacharéis em Direito),
especialistas; mestres ou doutores, julgadores por escolha, imagine-se delegar o
poder de decisões a pessoas despreparadas para tal mister; certamente,
aquelas não alcançarão o objetivo proposto, que é a solução adequada da
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controvérsia e mais, além, por certo, com sérios riscos de nulidade pela ausência
de atenção a dispositivos legais inerentes às sentenças. Não se critica o artigo
pelo conteúdo, mesmo porque a idéia do legislador foi simplificar; a crítica, é no
sentido de que as partes, ao elegerem um árbitro para a solução de contróversia,
devem estar cientes do ato praticado e mais, procurar dentre aqueles que
possuam orientação e formação mais adequada ao caso concreto, ou seja,
pessoas com um mínimo de conhecimento do tema, domínio razoável desta
difícil arte de julgar e, finalmente, capacidade de dicernimento plausível com o
problema posto, com intuito de decidir, se possível, bem decidir
Outro dispositivo que nos parece palpitante, é o relativo ao artigo 17º,
que dispõe a cerca da equiparação dos árbitros, quando no exercício de suas
funções ou em razão delas, aos funcionários públicos, para efeitos da legislação
penal, da ilação deste artigo, conclue-se que todos os atos praticados pelo
árbitro, ou contra ele, na esfera penal, são regulados pelo Título XI, que trata dos
crimes contra a administração pública (artigos 312 e seguintes do Código Penal
Brasileiro), e seus Capítulos I, que estabelece a respeito dos crimes praticados
por funcionário público contra a administração em geral, e Capítulo II, que trata
dos crimes praticados por particular contra a admistração em geral. A lei
excepcionou ao caso, dando roupagem diferenciada ao árbitro. Por força de tal
dispositivo, no exercício das funções, ou em decorrência dela, os atos que venha
a praticar contra a Administração Pública, ou que venha a sofrer (agressão moral
por exemplo), não são regulados pelas normas de caráter geral, mas sim, pelas
disposições especiais, relativas ao funcionário público. Se de um lado o
legislador desejou criar garantias ao árbitro, assegurando-lhe as vantagens de
ver seus atos chancelados pela norma especial, aplicável ao servidor público, de
outro, por certo, buscou salvaguardar o interesse público, no que tange aos atos
praticados pelo árbitro, no sentido de, dando-lhe prerrogativas, igualmente deulhe maiores responsabilidades, ônus, decorrentes da aplicação da norma
inerente ao servidor público, quando da prática de atos contra a Administração
Pública. O dispositivo é questionável, porque sem concurso público, regra
inerente ao acesso na Administração Pública (artigo 37, inciso II, da Constituição
Federal), equipara-se o árbitro ao funcionário público, em aparente contradição
ao texto Constitucional. Em verdade, o que desejou o legislador foi assegurar a
garantia da adequada decisão ao caso concreto pelo árbitro, estendendo-lhe as
prerrogativas relativas ao funcionário público e, de outro lado, garantir o
interesse público e a comunidade em geral, de que os atos equivocados do
árbitro igualmente sofreriam chancela adequada, por aplicação da norma
especial. Na lembrança da sempre adequada lição do Professor José Carlos
Barbosa Moreira, “ Eram os que desdenham por questão de princípio reformas
legislativas, entendendo que nada adianta modificar a norma; se assim fosse, do
mesmo jeito que não nos daria motivo de alegria a adoção de reforma boa, não
precisaríamos preocupar-nos ante a ameaça de reforma ruim: tanto uma como
outra deixariam as coisas exatamente onde estavam.” ( Revista Jurídica 282, pg.
24/25). Somente o tempo, o uso da lei, nos dirá se as alterações foram
realmente boas. Nos resta esperar que os árbitros, conscientes da função lhes
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delegada pelo legislador, possam “redigir decisões inspiradas no ideal de
Justiça, sempre lembrando que Justiça, para ser justa, tem que ser generosa, e
de que o Direito, para ser reto, precisa ter em vista um democrato nivelamento
social, ascendente e progressivo, sem o qual não pode haver felicidade para os
homens, nem paz para os povos.” (Mozart Victor Russomano. Imperatividade e
flexibilização das normas tutelares do trabalhador. In: CLT em debate. São
Paulo: LTr, 1994).
Neste ponto, trataremos daquele que entendemos ser um dos mais, se
não o mais polêmico dos artigos da Lei 9.307/1996, que é o artigo 18º, que diz
que os árbitros são Juízos de fato e de direito, e a sentença que proferirem não
fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. Referido
dispositivo, na visão de alguns, constitue-se “fruto de uma motivação legislativa
espúria imposta por poderosos grupos econômicos que desejam suprimir as
garantias e direitos dos cidadãos “ (SALVADOR, Antônio Raphael da Silva, Lei
da Arbitragem: injustiça e ofensa à Constituição, R.EMPR Nº 02, VOL. 4, 1998,
P.29). Questionamentos a parte, fique claro que inexiste regramento ou
fundamento jurídico que impeça as partes de resolverem seus conflitos através
da arbitragem. O que eventualmente poderia se questionar, é se seria possível
um dos contratantes esquivar-se da arbitragem pactuada sob a alegação de que,
mediante o disposto no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, não
poderia ser excluída da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de
direito. A matéria é polêmica, tanto é verdade que sofreu apreciação recente do
Supremo Tribunal Federal, exatamente porque havia o questionamento de
inconstitucionalidade em face de suposta agressão ao princípio da
anafastabilidade do controle judicial, eleito no dispositivo antes mencionado.
Antes de mais nada, é necessário que se estabeleça uma pequena distinção: a
lei fala que o árbitro é Juiz, assim considerado nas suas prerrogativas e em
relação às suas funções. Registre-se aqui, que há uma diferença: enquanto um é
juiz público, nomeado pelo Estado, mediante aprovação em concurso público,
necessariamente detentor de diploma de bacharel em direito, a quem aquele
(Estado) delega o poder de dirimir conflitos de interesses, com o Poder do
imperium, atributo de soberania outorgado exclusivamente ao Poder Judiciário,
possuidor de força suficiente para determinar a adoção desta ou daquela
medida, com intuito de tentar compor o conflito, o outro (árbitro), é escolhido
pelas partes, de acordo com suas conveniências, com flagrante distinção quanto
aos órgãos que as exercem. Desejo registrar que não tenho interesse com este
ponto ora lembrado, em estabelecer controvérsia entre o Juiz togado e o natural.
Ambos possuem suas funções, delegadas por força de lei. Chamo a atenção
para o fato de que aqueles, assim o são por força do desejo do Estado em
nomeá-los para em seu nome decidirem, com o Poder que lhes é inerente. É o
Estado distribuindo o direito, fazendo Justiça; os outros, são indicados pelas
partes, dentro de um critério de facultatividade, para tentarem compor o litígio,
sem necessariamente serem detentores de características peculiares daqueles,
ou seja, detentores de curso de bacharél em direito, nomeados após aprovação
em concurso público. Um e outro podem decidir. A questão é decidir porque
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indicados pelas partes, ou pelo Estado; além, vale lembrar a força cogente
destas decisões, notadamente não iguais uma e outra. No mais, decidem porque
o Estado deseja, fruto da norma jurídica que, na visão de KELSEN, nada mais é
do que um esquema de interpretação, um enunciado linguístico que comporta
determinados significados (Teoria Pura do Direito). Afora tal ponto, resta
perquirir da questão ligada à possibilidade da parte em eximir-se de cumprir a
decisão do árbitro, invocando o texto Constitucional.
O tema, como já exaustivamente afirmei anteriormente, é por demais
polêmico, porquanto mesmo sob o enfoque de que a mediação e arbitragem é
uma faculdade das partes (jamais com caráter de obrigatoriedade), atinge um
dos pilares do poder estatal, que é o de ditar a norma aplicável aos casos
concretos, através do Poder Judiciário, gerando por conseqüência,
entendimentos no sentido de que toda e qualquer lesão a direito deve ser
submetida à apreciação judicial, sendo certo que de maneira alguma se pode
suprimir das partes este direito, sob pena de infringência à norma constitucional
esculpida no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, que reza que “a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito “,
elegando tal disposição constitucional o princípio da inafastabilidade do controle
judicial. Este princípio, de origem na Carta Magna de 1946, parágrafo 4º do
artigo 141, na visão de alguns doutrinadores, “ teve por objetivo principal evitar
que os cidadãos afetados em seus direitos individuais pelo poder público,
fossem ou sejam impedidos de recorrer ao Judiciário por disposição contida em
atos ou leis emanadas do Executivo ou do Legislativo “( Domingos Afonso Kriger
Filho – arbitragem a interesse de agir, RJ 275, pg. 29). Discussões à parte,
mesmo porque não se pacificará o tema tão cedo, já que há aqueles que pregam
que a institucionalização da arbitragem gera um natural enfraquecimento ou
forma de divisão da justiça estatal, resta indagar de dois pontos que em nossa
visão são relevantes, quais sejam: 1) da não sujeição da sentença proferida pelo
árbitro a recurso ou homologação do Poder Judiciário; e 2) se pode um dos
contratantes esquivar-se da arbitragem pactuada invocando o princípio
Constitucional acima citado.
Quanto ao primeiro, se analisarmos a questão sob o enfoque de que a
arbitragem tem caráter facultativo e não obrigatório (jamais obrigatório, diga-se
de passagem), as partes, ao eleger este instituto para solução do conflito, de
antemão teriam ciência (ou o que seria mais correto, teria que ser-lhes dado
ciência) de que a sentença proferida não poderia ser objeto de recurso,
tampouco necessitando do crivo do Poder Judiciário, tem-se que absolutamente
legal o procedimento, sequer esbarrando no princípio Constitucional; de outro
lado, se analisarmos que a legislação infra-constitucional retira das partes, ou ao
menos uma delas, o direito Constitucional de ampla defesa, que é, entre outras,
o do duplo grau de jurisdição; do devido processo legal, e como corolário, o da
impossibilidade de se afastar do controle judicial apreciação à lesão ou ameaça
de direito, certamente estaríamos diante de um impasse, cujo qual importaria
em cerceamento da parte aos princípios constitucionais antes invocados, face
aplicação de lei ordinária, o que, por certo, ensejaria condição prejudicial da
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aplicação desta. É a eterna discussão da possibilidade de se contratar;
livremente contratar, quando se tratam de direitos disponíveis. O direito das
partes, privado, neste particular, se sobrepõe ao interesse coletivo, público, para
dar valia ao pacto firmado, de que a decisão não está sujeita ao crivo do
Judiciário. Bem, em tempos de firmação do Código de Defesa do Consumidor;
em tempos de retomada do interesse público antes do interesse particular, por
certo, disposições desta natureza não poderiam ter aplicabilidade. A intervenção
do Estado, outrora presente, mais ausente pós revolução francesa, quando o
liberalismo falou mais alto, pugnando pelo afastamento intervencionista daquele,
retomou condição singular nos atuais tempos. A preocupação pelo social, pelo
direcionamento da norma ao interesse público em detrimento do particular,
notadamente dando preferência para aquele do que este, por certo nos levaria
ao raciocínio de que tal dispositivo, que cria impossibilidade de se recorrer da
decisão proferida pelo árbitro, não poderia vingar, por absoluta
inconstitucionalidade da matéria. Enfim, trata-se, como já disse, de tema
tormentoso, que somente a discussão e o tempo nos darão a luz adequada e
desejada. Quanto ao segundo ponto, vejo que é mera conseqüência do primeiro.
Se entendermos que válida a disposição, que impossibilita o recurso ou não
sujeita a decisão ao crivo do Judiciário, porque direito disponível das partes,
naturamente estaríamos diante de uma posição no sentido de que a parte,
aderindo a arbitragem, mesmo diante dos princípios constitucionais já invocados,
não poderia esquivar-se da mesma, porque pactou direitos disponíveis e mais,
tinha ciência do objeto e alcance do acordado; de outro ângulo, se imaginarmos
que a lei ordinária não pode suprimir direitos constitucionais do cidadão, porque
leva-se em conta o interesse público em detrimento ao particular, por certo ao
invocar a matéria constitucional como meio de defesa, estaria uma das partes
não mais sujeita aos efeitos da arbitragem, tampouco de submeter-se inclusive
ao compromisso arbitral.
Concluo minhas considerações quanto a lei em apreço, fazendo breve
comentário ao artigo 31, que reza que “ a sentença arbitral produz, entre as
partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos ógãos
do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitue título executivo“. Tal
dispositivo, de caráter cogente, determina que toda e qualquer decisão proferida
por um árbitro, desde que atenta à determinação contida no artigo 32 da mesma
norma, que trata das hipóteses de nulidade da sentença arbitral, gera entre as
partes contendentes efeitos idênticos àquelas decisões proferidas pelos órgãos
do Poder Judiciário, os quais atingem inclusive, seus sucessores, para fins de
responsabilidade quanto ao cumprimento da obrigação. Registre-se aqui, que tal
responsabilidade jamais poderá ser superior ao limite da meação do herdeiro, ou
seja, responde(m) ele(s), somente até o limite das forças de sua herança. A
intenção do legislador foi clara, porquanto ao tempo em que pretendeu
disponibilizar às partes outro instrumento para tentativa de composição e
solução de litígios, senão a via judicial, igualmente, deu a tal decisão força
coercitiva, comparando-a àquelas proferidas pelo Poder Judiciário. Outro não
poderia ser o caminho, eis que entendimento contrário, tornaria letra morta tal
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norma, eis que ausente vontade de uma das partes em cumprir com a obrigação
asssumida, nenhuma sanção lhe seria aplicada. Criou o legislador, com tal
dispositivo, mais um título executivo, a comparar com aqueles previstos no
artigo 584 e 585 do Código de Processo Civil. Lembro aqui, que o
descumprimento pela parte quanto a obrigação assumida, gera à outra, em
sendo condenatória a decisão, a existência de um título executivo que, para
poder ser solvido, necessariamente deverá ser executado perante o Poder
Judiciário, exatamente porque faltam aos institutos de arbitragem, e ao árbitro
em geral, o poder de determinar, inerente ao Magistrado togado. De qualquer
sorte, como toda lei polêmica, esta merece ser analisada. Como já disse
anteriormente, faz-se necessário compreender-mos a intenção do legislador e
além, o desejo das partes em não submeterem suas controvérsias à apreciação
do Poder Judiciário, sem que tal fato implique em ausência de jurisdição, já que
trata-se de um ato de disposição de vontade das partes, dentro de critérios de
conveniência próprios para a solução do litígio. Fique claro, repito, que as partes
devem ser previamente cientificada dos efeitos da arbitragem, e mais,
informando-lhes que não são obrigados a aceitar tais condições, porque mera
faculdade da(s) parte(s). Dito isto, como disse, é mais um dispositivo colocado a
disposição da população, com intuito de tentar a busca da solução de conflitos.
Lembro, ao encerrar, as palavras do ilustre professor José Carlos Barbosa
Moreira, que leciona que “nenhuma construção sólida pode erguer-se sobre
terreno minado. Se queremos edificar um novo aparelho judicial, isento das
chagas que enfeiam a face da justiça, é mister antes de mais nada que nos
libertemos de falsas idéias,... Elas turvam a nossa visão e nos induzem a
caminhos pelos quais, em vez de avançar, corremos o risco de cair no mais
fundo despenhadeiro”. ( Revista Jurídica nº 282 – abril/01).
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O DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO RESSOCIALIZADOR :
A NECESSIDADE DA ADEQUADA VALORAÇÃO DAS
CIRCUNSTÂNCIAS SUBJETIVAS DO
AUTOR DO DELITO NA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA 286
RUDI RIGO BÜRKLE
PROFESSOR DE DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E PROCESSO PENAL NA
FACULDADE MATER DEI – PROMOTOR DE JUSTIÇA - MESTRANDO EM CIÊNCIAS
JURÍDICAS, ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM FUNDAMENTOS DO DIREITO
POSITIVO, UNIVALI – ITAJAÍ/SC.
RESUMO – O texto aborda o Direito Penal como instrumento de ressocialização
dos condenados, ressaltando a necessidade de o Poder Judiciário valorizar mais
as circunstâncias subjetivas do delinqüente na individualização e gradação da
pena. Criticando o Direito Penal meramente “retributivo”, afirma o autor que, de
regra, a pena não está sendo aplicada adequadamente ao condenado, pois a lei
e o Poder Judiciário enfatizam as circunstâncias objetivas do delito, relegando a
segundo plano as peculiaridades subjetivas de seu autor. O artigo sustenta a
imperiosa necessidade de transformação ao Direito Penal e Processual Penal,
substituindo o cunho retributivo pelo aspecto ressocializador, como instituído
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
THE CRIMINAL LAW AS A RESSOCIALIZING INSTRUMENT: THE
NECESSITY OF ADJUSTED VALUATION REGARDING THE SUBJECTIVE
CIRCUMSTANCES OF THE AUTHOR OF THE WRONG IN THE
INDIVIDUALIZATION OF THE PUNISHMENT - ABSTRACT - The text
approaches the Criminal Law as an instrument of ressocialization of the convict,
pointing out the necessity of the Judicial Department to value the subjective
circumstances of the delinquent in the individualization and gradation of the
punishment to a greater degree. Criticizing the Criminal Law merely retributive,
the author affirms that, as a rule, the punishment is not being adequately applied
the convict, since the law and the Judicial Department emphasize the objective
circumstances of the wrong, relegating to a lower grade the subjective
peculiarities of its author. The article supports the imperious necessity of
transformation to the Criminal Law and Penal Procedural Law, replacing the
retributive hallmark by the ressocializing aspect, as instituted by the Statute of the
Child and the Adolescent.
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O presente texto é oriundo de Tese apresentada pelo autor no Congresso Nacional do Ministério Público
(2001) realizado no Recife - AL, aprovada por unanimidade.
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INTRODUÇÃO
Muito se tem discutido sobre a fase de execução penal e vários já são
os defensores de sistemas mais humanos de cumprimento da pena privativa de
liberdade, ou mesmo, da substituição das penas privativas de liberdade por
penas alternativas, e acertados são esses posicionamentos no sentido de que,
buscam, efetivamente, estabelecer como objetivo principal da pena, a
recuperação do autor da infração penal, ou melhor, sua reinserção social.
No entanto, não tem sido fácil estabelecer avanços significativos nessa
área, face o contexto social em que são cumpridas as penas aplicadas nas
ações penais, a primeira resistência encontra-se no próprio meio jurídico, no
qual, juristas insistem num direito penal, meramente retributivo, ou acomodam-se
frente a dificuldade de implantação de novos sistemas penais e carcerários; mas
com muito mais força, a resistência vem do meio social e político, por um lado,
em razão da cobrança feita pela sociedade que deseja o encarceramento de
autores de delitos, porque está sentido-se desprotegida, amedrontada e tem se
visto enclausurada dentro das próprias residências; por outro, dos políticos, que
na ânsia do voto, ignoram a realidade penal e interessados tão-só em responder
aos reclamos populares e agradar para conquistá-los, criam leis que em nada ou
muito pouco melhoram o panorama e, pior, omitem-se na construção do sistema
penal e carcerário adequado, desconsiderando a condição subumana dos
presídios.
Nesse quadro, o aumento da violência, o atraso processual, a
desproteção de vítimas, a situação carcerária, a ineficiência da pena, que não
são de responsabilidade do Poder Judiciário e do Ministério Público, é que,
justamente, têm lhes estabelecido o descrédito, pois ignoram propositadamente
os incautos que, na área penal, o Poder Judiciário e o Ministério Público lutam
sem os instrumentos necessários e contra um poder que lhes tem mais força – o
contexto social desfavorável, completamente disfuncional; mas o mais grave, é a
falta de consciência de cidadãos, de juristas e de políticos que têm traçado o
destino de vários infortunados, os quais têm o desprazer e o azar de se verem
processados criminalmente, condenados, estigmatizados por uma pena quase
sempre injusta e propriamente inicializados e perpetrados na criminalidade,
durante o cumprimento dessa pena.
As mudanças do sistema de execução penal devem persistir e é
obrigação de todo jurista fazer com que isso aconteça, mas principalmente do
Promotor de Justiça, porque a esse, em especial, está entregue a proteção de
todos os direitos fundamentais do cidadão e da sociedade, dentre os quais a
própria vida, a liberdade, a honra, a personalidade; portanto, a ele está atribuída
com primazia a incumbência de garantir uma sociedade justa, igualitária,
democrática, uma sociedade que seja efetivamente mais humana, em que
cidadãos possam desfrutar de condições mínimas e dignas de vida.
No entanto, verifica-se que esse processo de mudança não poderá ter
sucesso se não dermos os passos certos, se não se iniciar a fazer efetivamente
justiça durando todo o processo penal, e isso vai significar, desde a estruturação
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das polícias civis e militares, para que seja eficiente o combate da criminalidade
e a investigação criminal, a garantia efetiva do contraditório e ampla defesa
durante a instrução criminal, com destaque à disponibilização de uma dedicada e
efetiva defesa aos réus, até a adequação e justiça da sentença penal
condenatória, com a aplicação correta da pena ao condenado e adequação da
pena aplicada, para aí, então, se poder efetivar o satisfatório cumprimento da
pena durante a fase de execução.
Depois dessa breve explanação pode-se, já, informar que o ponto que
se quer efetivamente chegar é de que não está havendo adequação da pena
aplicada ao condenado e, portanto, por mais justo que seja o cumprimento da
pena que se lhe impinge nos atuais moldes, jamais se conseguirá um resultado
satisfatório, qual seja, ressocialização do autor de delito e redução da violência
social.
No atual sistema legal a fixação da pena vem regulamentada
basicamente do artigo 32 a 95 do Código Penal, apenas com algumas
alterações estabelecidas para determinados crimes em leis especiais, sendo
que, quase todas regulamentando regimes de cumprimento de pena privativa de
liberdade ou restringindo os benefícios do condenado.
Primeiramente, sobre o ponto que interessa analisar, se verifica estar
estabelecido no artigo 68, do Código Penal, que as fases de fixação da pena são
três: a primeira que considera as circunstâncias judiciais de dosimetria da pena,
estabelecida no artigo 59 do Código Penal, fase na qual existe a maior liberdade
do juiz na dosimetria da pena, uma vez que os critérios estabelecidos são
amplos; a segunda, na qual devem ser consideradas as circunstâncias
atenuantes e agravantes, artigo 61, 62 e 65 do Código Penal, fase na qual existe
uma limitação do juiz pela enumeração taxativa das hipóteses atenuantes e
agravantes, restando apenas discricionariedade de ponderação do quantum a
fixar; e a terceira, na qual serão consideradas as causas de aumento,
majorantes, ou de diminuição, minorantes, de pena, previstas na parte geral ou
especial do Código Penal ou leis esparsas, nesta fase da fixação da pena, o juiz
está adstrito a reconhecer ou não a circunstância majorante ou minorante e, a
reconhecendo, estabelecer dentro do parâmetro prefixado o aumento da pena.
Pode-se considerar, dentro do sistema aplicado, a mais importante por ser a que
mais influência tem no quantum de pena, a que, por ser definida em frações (1/3,
2/3, 1/2, 1/6), maior possibilidade de aumento ou redução da pena possui. Sem
prejuízo do estabelecido pela lei, pode-se definir uma quarta fase de fixação da
pena, não mais do quantum, mas da espécie de pena que se aplicará ao
condenado.
Em todas essas fases de fixação de pena observa-se uma grande
preocupação do legislador com as circunstâncias do delito, principalmente
circunstâncias objetivas, e o quase esquecimento, relegando a segundo plano,
dos aspectos subjetivos ligados ao seu autor. Ou seja, tecnicamente relatando,
na lei descreve-se um determinado fato para identificar o tipo penal e se lhe
estabelece uma pena, com mínimo e máximo fixos, no entanto, para os critérios
legais de dosimetria de pena também faz-se uso das circunstâncias delitivas,
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tornando essas parâmetro, portanto, para o tipo penal e para a pena.
Não bastasse essa tendência do nosso direito penal, os juristas, de um
modo geral, e mais especialmente os juízes, responsáveis pela prolação da
sentença, dão muito maior consideração aos aspectos objetivos do delito do que
aos elementos subjetivos do seu autor, quase desconsiderando o próprio réu,
senão como acusado, contra quem se profere a sentença condenatória, ou
considerando os elementos de personalidade apenas para fins de agravamento
da pena, sendo que, muitos acabam por reutilizar as circunstâncias do delito
para justificar o aumento de pena, define-se como reutilizar porque as
circunstâncias são as normais do tipo penal e, portanto, compõe o
desenvolvimento do ato e como tal possibilitam a identificação da tipicidade e
após são tomadas como circunstâncias para fixar pena, o que por certo é um
contra-senso; um exemplo disso seria a ponderação de que se deve agravar a
pena base do réu acusado pela prática de um crime de homicídio porque as
conseqüências do crime foram graves, houve a perda de uma vida, como se isso
não fosse conseqüência normal do delito e já não servisse como motivador da
pena mínima e máxima prevista ao tipo penal.
Quem trabalha visualizando o aspecto ressocializador da pena e
acredita nisso, jamais pode admitir que os principais elementos para fixação da
pena sejam outros que não as circunstâncias pessoais do autor do crime, pois se
o objetivo é recuperar para reinserir à sociedade, tem-se de saber exatamente
qual a extensão do desvio de conduta, e uma pena justa é exatamente uma
pena que vem a se adequar em tempo e em modo à necessidade de orientação
ressocializadora do autor do delito. Quando se atribui o caráter de
ressocializador à pena, se o faz em contraposição ao caráter meramente
retributivo, já referido, e pelo qual não há qualquer preocupação com aquele que
sofrerá a imposição da pena, mas tão somente com o sistema legal, qual seja,
efetivar a resposta, pena prevista em lei, e se a contrapõe justamente porque
essa forma de pena não ressocializa, não possui qualquer capacidade
recuperadora do apenado.
Assim, faz-se necessário buscar a modificação normativa para redefinir
as fases de fixação de pena, alterando-se vários critérios, principalmente a
importância que os atuais critérios possuem na dosimetria do apenamento,
considerando os elementos do crime tão somente para definição da figura típica
e orientando a fixação da pena com base na personalidade do acusado, sua
conduta social, seu grau de instrução, seus antecedentes, seus motivos para
prática do crime, conseqüências do crime sobre o seu autor, situação emocional
antes, durante e após a prática do delito, efeitos de cada um dos tipos de pena
sobre o condenado, enfim, todas aquelas circunstâncias que são necessárias se
conhecer e ponderar para formulação de uma pena individualizada que vise a
readaptação social do condenado.
No entanto, não se pode perder de vista e nem se deseja afastar o
aspecto social lesivo do delito e o interesse social retributivo da pena que é o
estabelecimento de um certo receio da sanção, o qual também serve
efetivamente como meio coibidor da delinqüência; assim como que deve ser
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mantido a definição do mínimo e máximo de pena para o tipo penal, até para que
se respeite a garantia fundamental estabelecida no artigo 5º, inciso XXXIX, da
Constituição Federal.
Mas a alteração normativa não se mostra indispensável para que se
passem a considerar as circunstâncias pessoais do autor do delito como
elementos de importância na fixação da pena, pois o artigo 59 do Código Penal,
principalmente, já abre as portas para esse reconhecimento quando prevê uma
série dessas circunstâncias, tais como: culpabilidade, antecedentes, conduta
social e motivos.
O que se precisa mesmo, já no primeiro momento e no atual sistema, é
que essas circunstâncias pessoais do autor do delito sejam objeto também, da
prova do processo, que tenham a mesma importância, senão mais, do que os
elementos probatórios do ilícito, pois são elas que podem conduzir a fixação de
uma pena adequada e, portanto, eficiente, e que haja uma melhor identificação
concreta das circunstâncias, o que se dará, certamente, com o reconhecimento
da importância das mesmas na fixação da pena pelos integrantes da ação penal,
partes e magistrado, redefinindo o que seja cada uma dessas circunstâncias e
as ponderando de forma individualizada e fundamentada.
No que se refere a forma de trazer ao conhecimento do julgador essas
circunstâncias, portanto, ao processo, dentre muitas outras, de pronto, já se
poderia indicar a realização de um estudo psicossocial do acusado.
Outro detalhe a se ressaltar é, que os elementos pessoais sempre
deveriam, de fato, ter importância na individualização da pena e não somente
quando prejudiciais, e isso é o que realmente ocorre no sistema penal brasileiro,
pois, por exemplo, aquele que tiver um equilíbrio entre os elementos pessoais
favoráveis e contrários a si deve, nos moldes atuais, receber a mesma pena
daquele que possui todas as circunstâncias pessoais favoráveis, afinal é pacífico
na doutrina e na jurisprudência, em interpretação ao inciso II do artigo 59 do
Código Penal, que a pena não pode ser reduzida abaixo do mínimo legal com
base nas condições judiciais estabelecidas nesse dispositivo legal, e, então,
ambos cidadãos, tanto o que possui todas as circunstâncias pessoais favoráveis,
quanto o que não as possui totalmente favoráveis, mas que as possui em
quantidade suficiente para compensar as desfavoráveis, receberiam o
apenamento mínimo, estabelecido no próprio tipo penal. O que se está a afirmar
é que se tem dispensado o mesmo tratamento na dosimetria da pena para
cidadãos com circunstâncias pessoais diversas, principalmente pelo fato de que
a fixação da pena, parte de um patamar mínimo, e que as circunstâncias
judiciais favoráveis não são capazes de possibilitar sua alteração, razão pela
qual se estabelece uma injustiça ao tratar desiguais de forma absolutamente
igual.
Para quem considera que o direito penal tem o cunho meramente
retributivo, nos moldes já tratados, tem-se um longo caminho a percorrer até que
se compreenda o contexto do delito, a origem da conduta delituosa, fatores da
delinqüência e, portanto, se tenha uma clara e correta noção de qual seja
mesmo o objetivo do sistema penal, mas afinal, esse caminho jamais será
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percorrido porque o interesse desses é a aplicação objetiva da norma, não
possuindo importância o apenado e o contexto social.
No entanto, aqueles que afirmam ser a pena meio ressocializador do
indivíduo, tem-se é que cobrar que não só afirmem essa posição, mas a
materializem, tem-se de exigir que repensem a instrução do processo, os
elementos de dosimetria de pena, a pena mínima definida no tipo penal.
De nada adianta alterar apenas os tipos de pena ou condições de seu
cumprimento, como se tem feito, criando novas penas alternativas ou maquiando
sistemas carcerários, o que se precisa primeiro é conhecer a exigência da pena,
mal comparando, não adianta ministrar muito remédio no paciente para se curar
uma doença, isso pode intoxicá-lo, de nada adianta pouco remédio, esse não
terá potencial para produzir o efeito necessário, e muito menos adiantará se ter
qualquer remédio, o que cura, é o remédio com o princípio ativo específico.
Assim é necessário muito mais do que o fato para se definir o quantum
e o tipo de pena. É necessário se conhecer o paciente, verificar especificamente,
qual a “doença” que se está a tratar. O direito penal ressocializador é um direito
penal humano que vê, não um crime e um criminoso, mas um crime e um
cidadão que errou, descumpriu um preceito legal e está a necessitar de
orientação dos órgãos públicos para se reorganizar, para superar dificuldades,
suprir carências, realinhar princípios morais e éticos, ter recuperada sua autoestima e crença na sociedade.
Deve-se saber o porquê, deve-se conhecer a personalidade do
condenado, o que a formou, qual as influências que recebeu, deve-se
reconhecer que ele é fruto social e que, portanto, amoldou-se no seio social, que
sobre si influenciaram a família, o ambiente, a escola, a situação econômica, os
meios de comunicação, etc., pois a partir daí é que se dá uma intervenção
ressocializadora positiva, portanto, numa linha inversamente oposta à seguida
pelos defensores da redução da imputabilidade penal, os quais, por certo,
demonstram desconhecer a origem da criminalidade, ignoram que o ser humano
nasce delinqüente, melhor explicando, que quando do nascimento se
desconhece qualquer regra de conduta e, portanto, a tendência é a transgressão
e que isso só não ocorre porque as relações sociais, com mais ou menos
eficiência, alinham a personalidade do cidadão e permitem o conhecimento da
necessidade de tolerâncias e sujeições para possibilitar o convívio social.
É justamente pautado no interesse social que não se pode admitir outro
caráter à pena que não o ressocializador, pois o retributivo se iguala à vingança
individual, lei de talião, e que justamente foi afastado pelo Estado quando
estabeleceu a si o jus puniendi.
Assim se pode ousar a afirmar que, os princípios, que deveriam passar
a pautar o sistema de pena seriam os mesmos previstos na Lei n.º 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, ou seja, deveria se pensar na pena
como medida sócio-educativa, de ressocialização pela reeducação e não se
reeduca sem o conhecimento da disfunção ou se não houver atuação da forma
certa na medida necessária, se a pena não corresponder ao autor do delito, mas
tão-só ao próprio delito.
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Pelo até aqui exposto e partindo-se da premissa de que o sistema penal
tem objetivo ressocializador, pois do contrário, a discussão estabelecida
perderia qualquer sentido, uma vez que o ponto central da abordagem está em
alcançar a maior efetividade do direito penal, portanto, um direito penal
direcionado e aplicado com o fim de impedir a reincidência, pode-se sustentar
com tranqüilidade que deve haver uma completa reestruturação das linhas, que
norteiam a lei penal e seu aplicador.
Verifica-se a necessidade de uma urgente reforma legal do sistema
penal, devendo-se adequá-lo como um todo para garantia efetiva do devido
processo legal, da ampla defesa, do contraditório, enfim, tem-se de materializar
na lei e no dia-a-dia as garantias fundamentais do cidadão, pois só assim se
pode ter uma sentença justa, mas também é necessário se introduzirem
modificações legais no modo de fixação e meios de cumprimento da pena;
naquele, alterando-se os critérios determinadores da pena estabelecida no tipo
penal, mínima e máxima, sendo que para isso se poderia utilizar as
circunstâncias do delito e a lesividade social da conduta, e os critérios de
dosimetria de pena, estabelecendo-se como circunstâncias a serem
consideradas as diretamente ligadas ao autor do delito; e nesta, criando-se
novas espécies de pena, tal como as medidas sócio-educativas previstas na Lei
n.º 8.069/90 – Estatuto da Criança e Adolescente – ECA, encaminhamento para
tratamento psicológico, toxicológico, do vício do álcool, obrigação de matrícula e
freqüência escolar, curso profissionalizantes, etc.
Mas não é necessário que se aguarde uma reforma legal para dar início
à implementação de um sistema mais justo, até porque, apenas propôr e
aguardar reforma legal na atual conjuntura política seria próximo, senão o
mesmo, que apresentar uma reformulação inócua, isso demonstrado pelos anos
já decorridos desde a apresentação dos primeiros projetos de reforma do Código
Penal e do Código de Processo Penal. Pode-se, dentro do próprio sistema legal
vigente, mudar a realidade das fases de investigação penal, da ação penal e da
execução penal.
Desde já, pode-se e deve-se passar a utilizar as circunstâncias judiciais
estabelecidas no art. 59 do Código Penal, antecedentes, conduta social,
personalidade do agente, motivos do crime, como principais critérios
individualizadores da pena, pois que, realmente possibilitam a fixação da pena
ao autor da infração penal e não ao crime para apenas ser cumprida por seu
autor, eis que, em relação às circunstâncias do crime, a pena já vem
estabelecida no tipo penal; bem como dar maior importância às atenuantes,
agravantes, majorantes e minorantes que tenham relação direta com o
processado.
Portanto, verifica-se, como necessário, para materialização do ideal
ressocializador do direito penal, mais especificamente da pena, que esta guarde
adequação com o autor do delito e que, portanto, a sua individualização,
dosimetria e definição de espécie,
tenha como principais critérios as
circunstâncias subjetivas deste.
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CONCLUSÕES
1. No atual sistema legal, não ocorre adequada individuali-zação da
pena em quantum e espécie;
2. A impossibilidade de redução da pena abaixo do mínimo legal com
base no artigo 59 do Código Penal é desigualitária e injusta;
3. Não se pode cumprir com o fim ressocializador da pena sem que a
mesma tenha como parâmetros as circunstâncias pessoais do autor do
delito;
4. É necessária uma reforma legal para modificação do atual sistema de
fixação de pena criminal, na qual devem se utilizar as circunstâncias do
fato, que se pretende tipificar para descrição do tipo penal, bem como
para fixação do mínimo e do máximo de pena, e as circunstâncias
subjetivas do autor da infração penal como critérios para
individualização da pena;
5. É possível, além de necessário, de, com base no artigo 59 do Código
Penal, revalorar-se as circunstâncias subjetivas do autor do delito na
fixação do quantum e espécie de penas.
6. As circunstâncias subjetivas do autor do delito, mesmo no atual
sistema, devem, necessariamente, ser objeto de prova na ação penal.
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A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS
CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA
CÉLIO ARMANDO JANCZESKI
PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL E DE DIREITO FINANCEIRO E
TRIBUTÁRIO DA FACULDADE MATER DEI – ADVOGADO EM SANTA CATARINA –
PROFESSOR DA ESCOLA SUPERIOR DA ADVOCACIA DA OAB/SC.
RESUMO – O texto aborda o tema dos crimes contra a ordem tributária,
destacando que no presente momento histórico a carga tributária brasileira
oprime a classe produtiva. Assevera o autor estar ultrapassada a legislação que
pune a evasão fiscal, notadamente a que impõe pena privativa de liberdade ao
agente do ilícito penal tributário. Dentre outros temas, trata o artigo da extinção
da punibilidade diante do pagamento do tributo antes do recebimento da
denúncia pela Justiça Criminal, questionando acerca da possibilidade de
extinção da punibilidade em face de mero parcelamento da dívida tributária, tese
que vem sendo fortalecida no Direito Nacional.
THE EXTINCTION OF THE PUNISHMENT CONCERNING THE CRIMES
AGAINST THE TAX ORDER – ABSTRACT - The text approaches the subject
of the crimes against the tax order, emphasizing that at the present
historical moment the Brazilian tax burden oppresses the productive class.
The author affirms to be exceeded the legislation that punishes tax
evasion, notedly the one that imposes deprivation of freedom to the agent
of tax punishment offence. Amongst another subjects, this article deals
with the extinction of the punishableness in the presence of the tax
payment before the receipt of the accusation by Criminal Courts,
questioning about the possibility of the punishment extinction in face of
mere division of the tax debt, thesis that has been fortified in the Domestic
Law.
INTRODUÇÃO
A má aplicação dos recursos por parte do poder público e a pesada
carga tributária incidente sobre a classe produtiva, têm levado a sociedade a
repudiar a aplicação de pena privativa de liberdade para qualquer conduta ilícita,
que busque amenizar o impacto daquela carga na vida cotidiana das pessoas
(físicas e jurídicas), mesmo que tal conduta seja tipificada como crime contra a
ordem tributária. Ao contrário do que defendem alguns, a evasão fiscal elevada à
categoria de crime, reflete legislação penal ultrapassada, afastando-se da
tendência futura da preferência das sanções pecuniárias às sanções privativas
de liberdade.
Neste diapasão, a opção de política legislativa que permite ao sujeito
ativo de crime contra a ordem tributária, a extinção da punibilidade pelo
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pagamento do tributo, apesar de tornar o sistema penal menos severo, torna-o
mais eficiente. A exigência de multa pelo descumprimento de norma tributária, é
norma sancionatória que induz ao cumprimento da imposição fiscal, coibindo
financeiramente o contribuinte a cumprir com as obrigações da lei, facultando-se
ao Fisco a utilização de amplos poderes para fiscalizar as operações tributáveis,
como inclusive já previsto no artigo 195, do CTN. A pena corporal aplicada ao
sonegador de impostos como um criminoso socialmente nocivo e desajustado, é
atentar até contra os interesses do próprio Fisco, na medida em que contribuinte
preso não contribui e se em nada lhe auxilia, no processo crime, o pagamento do
tributo, que ao contrário, lhe prejudicaria, já que poderia ser interpretado pelo juiz
como reconhecimento de culpa, preferível levar a discussão até a última
instância administrativa e judicial, do que pagar voluntariamente o débito.
A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE E A LEI 9.249/95
A Lei 9.249/95, em seu artigo 34, reprisando política legislativa de
prevalência do crédito tributário (interesse mediatamente tutelado), 287
prescreveu que se extingue a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137/90
e na Lei 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou
contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.288
Referido dispositivo consigna, desnecessariamente, tributo ou contribuição
social, como se a espécie (contribuição) não fizesse parte do gênero (tributo),
deixando de inserir expressamente crimes fiscais definidos em outros
dispositivos (p.ex. art. 95, lei 8.212/91), que pela analogia in bonam partem
parece inquestionável a possibilidade de extensão do benefício para qualquer
crime tributário possível em direito. O limite temporal escolhido pela lei – antes
287
A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo ou contribuição social, historicamente iniciou pelo
Decreto nº 48.959-A, de 19 de setembro de 1960 e também esteve presente na Lei 4.357, de 16 de julho de
1964; Lei 4.729, de 14 de julho de 1965; Decreto-lei 94, de 30 de dezembro de 1966; Decreto-lei 157, de 10 de
fevereiro de 1967; Decreto 60.501, de 14 de março de 1967; Decreto 61.514, de 12 de outubro de 1967;
Decreto-lei 1.060, de 21 de outubro de 1969; Decreto 85.450, de 04 de dezembro de 1980, Lei 8.137/90, de 27
de dezembro de 1990 e Lei 9.249, de 26 de dezembro de 1995.
288
Art.1º.- Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer
acessório, mediante as seguintes condutas:I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades
fazendárias;II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operações de
qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura,
duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;IV – elaborar, distribuir,
fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;V – negar ou deixar de fornecer,
quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de
serviço, efetivamente realizado, ou fornecê-la em desacordo com a legislação;
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Art. 2º. – Constitui crime da mesma natureza:I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens
ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;II – deixar
de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de
sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos;III – exigir, pagar ou receber, para si
ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou
contribuição como incentivo fiscal;IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo
fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;V – utilizar ou divulgar
programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir
informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
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do recebimento da denúncia – espancando o princípio da igualdade por
estabelecer tratamento desigual entre contribuintes, sem qualquer correlação
lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal
decidida em função dele,289 elege momento que, normalmente, é desconhecido
do agente, procedendo, neste ponto, a crítica de Paulo César Conrado, para
quem se a lei, ao lado do seu intento arrecadatório, quis estabelecer um marco
temporal para que o pagamento viesse a engendrar a extinção da punibilidade –
o que é de todo compreensível e até mesmo imperioso, em homenagem aos
valores da segurança e da estabilidade jurídicas – necessário seria, no mínimo,
que ela tratasse de fazê-lo com o auxílio de um critério, que contasse com a
participação de realizador da conduta que ela própria (a norma) descreve. 290
No contexto da lei atual, apresenta-se salutar o expediente utilizado por
parcela do Ministério Público em intimar o agente, antes do oferecimento da
denúncia, para que informe e comprove eventual pagamento do tributo e
acessórios, possibilitando-se ao mesmo a utilização do benefício do art. 34, da
lei 9.249/95. Apesar de dar ciência ao agente e de melhorar o desempenho da
arrecadação tributária, o objetivo da intimação é, além de proteger o próprio
Fisco de eventual responsabilização por danos, verificar verdadeira condição de
procedibilidade da ação penal, já que comprovado o pagamento não poderá
haver a oferta da denúncia pelo Ministério Público, nem muito menos o seu
recebimento pelo Juiz. Eventual mácula à imagem do agente, perpetrada pela
denúncia, cujo oferecimento e recebimento só se concretizou pela omissão
culposa do Fisco em deixar de informar o pagamento realizado, poderá, de
acordo com as condições concretas do caso, dar azo à condenação pelos danos
advindos do ato, mesmo que puramente morais. Não verificada a iniciativa do
Ministério Público neste sentido, constitui elogiável zelo do Julgador perquirir
sobre tais providências, antes de imprimir máxima força à máquina repressora
estatal, atendendo aos princípios da moderna visão da Ciência Penal.
Promovido o pagamento do tributo – no limite temporal infeliz escolhido
pela lei - antes do recebimento da denúncia, tanto a tentativa interrompida por
ato voluntário do agente (desistência voluntária – art. 15, Código Penal), como a
prática de outra conduta que evite que o resultado ocorra (arrependimento eficaz
– art. 15, Código Penal) e inclusive no caso de crime consumado
(arrependimento posterior – art. 16, Código Penal), extingue-se a punibilidade.
Se, por um lado, a voluntariedade se faz necessária (ato de vontade do sujeito),
por outro, a espontaneidade não é exigida, ou seja, não importa saber a
natureza do motivo que levou ao pagamento (receio de ser descoberto, medo
289
a
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. In: Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3 . ed., São Paulo:
Malheiros, 1995, p. 37.
Seja, o contribuinte. Poder-se-ía tomar, assim e à guisa de exemplo, o ato do interrogatório como termo final,
como prazo para a efetivação do pagamento – à nitidez que, se assim fosse, conheceria o contribuinte, sem
espaço para surpresas, o dia fatal para obtenção da benesse da extinção da punibilidade, não se submetendo
à contingência de obter, ou não, aquele mesmo efeito de acordo com a celeridade e presteza de atos judiciais
que são praticados sem a integração dos demais sujeitos processuais, como é o caso do recebimento da
denúncia.
290
CONRADO, Paulo César. O pagamento como causa da extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem
tributária. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: nº 30, p.98,1998.
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das penalidades, conselho de terceiro, remorso ou qualquer outra razão, nobre
ou não), nem em que circunstâncias o mesmo foi levado a efeito. Mesmo que
seja realizado após fiscalização administrativa e lavratura de auto de infração ou
até após citação em processo de execução fiscal, estará presente a
voluntariedade.
O PARCELAMENTO COMO CAUSA DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE
A matéria apresenta-se controvertida na doutrina e na jurisprudência. A
tese pró-fisco, defende a impossibilidade do parcelamento do débito extinguir a
punibilidade, eis que a palavra pagamento adotada no art.34, da Lei 9.249/95
refere-se a recolhimento integral de uma só vez (art. 156, I, CTN), que não se
confunde com parcelamento (mera dilação de prazo), apto apenas a suspender
a exigibilidade do crédito tributário (art. 151, VI, CTN). Ademais, com a
introdução, pela Lei Complementar 104/2001 (DOU 11.01.2001), do
parcelamento como uma das situações de suspensão da exigibilidade, restou
manisfesto a impossibilidade desta situação implementar a extinção da
punibilidade. Acrescentam, os defensores desta tese, que igualmente não se
poderia falar em novação, eis que não há nascimento de uma nova obrigação
pela extinção de uma anterior, permanecendo íntegra a obrigação principal,
diferindo-se apenas a satisfação do crédito. Adotar a analogia para conferir ao
parcelamento, os mesmos efeitos do pagamento, seria permitir ao agente a
utilização de expediente ardiloso, no sentido de que seria possível obter o
parcelamento da dívida, na esfera administrativa, e, após pago a primeira
parcela, lograr na esfera criminal o reconhecimento da extinção da punibilidade,
para em seguida, abandonar o pagamento das parcelas, restando não punível e
a dívida inadimplida. A tese pró-contribuinte, por sua vez, defende que a lei não
distingue se o promover o pagamento é integral ou parcelado, bastando o ato
concreto de pagar e o parcelamento traduz isso, ainda que fracionado. O pedido
de parcelamento, de outra banda, excluiria o dolo e sem este não se configuraria
o tipo penal. Dizem ainda, que só esta interpretação estaria atendendo os
interesses sociais e respeitando a tendência da política criminal do Estado
Moderno em favorecer a liberdade do agente, apresentando incentivos à
arrecadação. O próprio Supremo Tribunal Federal manifestou controvérsia a
respeito, quando da análise do revogado artigo 14, da Lei 8.137/90, que continha
regra similar ao artigo 34, da Lei 9.249/95. 291
O XX Simpósio Nacional de Direito Tributário, realizado pelo Centro de
Extensão Universitária, Coordenado pelo Prof. Ives Gandra da Silva Martins,
291
A Lei 8.137/90, art. 14, considerava extinta a punibilidade dos crimes pelos quais os impetrantes foram
denunciados, se o agente promovesse o pagamento do tributo ou da contribuição social, antes do recebimento
da denúncia. Ora, se os pacientes assinaram contrato de parcelamento dos débitos respeitado aquele
requisito, compreende-se que, para efeito penal, promoveram o pagamento, inexistindo justa causa para a
ação. (RT 708/376). A punibilidade é extinta quando o agente promove pagamento integral do débito antes do
recebimento da denúncia, o que não ocorre enquanto não solvida a última prestação de pagamento parcelado,
possibilitando, neste período, o recebimento da denúncia. Precedentes. (Habeas Corpus nº 76.978-1 , Rel. Min.
Maurício Corrêa, DJ 19.02.1999, p.27)
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analisando a questão também sob o enfoque do revogado artigo 14, da referida
lei, concluiu por seu plenário que não pode ser punido com as penas previstas
na Lei 8.137/90 o contribuinte que efetua o pagamento de tributos com redução
da multa ou que obtem o parcelamento de seu crédito, nos termos da lei
aplicável. 292
Não há dúvidas que se o bem tutelado pela norma penal tributária é a
arrecadação, atingindo-se o seu intento, não subsiste motivação lícita para
penalizar o faltoso, 293 afinal, o pedido de parcelamento, reflete ato concreto de
liquidar o débito e a sua presumida impossibilidade de efetuar à vista. Nas
palavras do eminente ministro Jesus Costa Lima no voto vencedor proferido no
STJ/HC 2.538-5-RS, qualquer manifestação inequívoca de pagar o débito deve
ser compreendida, para efeitos penais, como forma de extinção de punibilidade.
Se o contribuinte atende ao chamamento do fisco, cujo interesse fundamental é
receber o pagamento dos tributos e assina contrato para saldar o débito, em
parcelas mensais, e sucessivas, e o vem cumprindo, há de ser considerado
adimplente e, pois, sem justa causa a ação penal contra ele instaurada.294
Ademais, não se pode olvidar que é praticamente impossível existir um Direito
Penal certo e justo em matéria tributária, enquanto tivermos um Direito Tributário
incerto e injusto. 295
A seriedade do propósito do contribuinte ao requerer o parcelamento
não deve passar despercebido do aplicador do direito, evitando-se, desta forma,
que o pedido seja apenas um engodo, com objetivo exclusivo de obter a extinção
da punibilidade, sem o propósito de pagar as parcelas vincendas após o trânsito
em julgado da decisão, que declarou o benefício.296 O Anteprojeto de Lei dos
Crimes Tributários, elaborada por comissão composta por Miguel Reale Júnior,
Ada Pellegrini Grinover, René Ariel Dotti, Hamilton Dias de Souza, José
Alexandre Tavares Guerreiro e David Teixeira de Azevedo, dentre outros pontos,
preconizava que o sobrestamento da ação penal seria possível com o
parcelamento do débito tributário, suspendendo-se o prazo prescricional
enquanto durasse o parcelamento, hipótese em que a quitação final do débito
também acarretaria a extinção da punibilidade.
Em lapidar solução para o problema apontado, Pedro Roberto
Decomain, leciona que para evitar essas situações, parece ser viável suspenda
o Ministério Público a deflagração da ação penal, uma vez comprovado pelo réu
a concessão do parcelamento do débito, persistindo essa situação enquanto o
devedor pagar regularmente as parcelas. Se, em algum instante, sem
292
MARTINS, Ives Gandra da Silva . Crimes contra a ordem tributária. 3ª ed. São Paulo : Ed. Revista dos
Tribunais, 1998, p. 413.
293
LOPÉRGOLO, Anthero; MACHADO, Rubens Approbato; MIRETTI, Luiz Antonio Caldeira; MELARÉ, Márcia
Regina Machado. Crimes contra a ordem tributária. 3ª ed. São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p.
254.
294
STJ, 5ª Turma un, DJU 09.05.94.
295
ROTHMANN, Gerd W. apud RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Crimes contra a ordem tributária.
3ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. 315.
296
Há manifestações de que eventual inadimplência do acordo de parcelamento firmado não é passível de
reprovação penal, pois a controvérsia ensejará solução em juízo apropriado, com sanções peculiares previstas,
mas não mais na esfera criminal.
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justificativa plausível, vier ele a suspender os pagamentos, pode o processo ser
iniciado normalmente. Caso sobrevenha prescrição antes do pagamento de
todas as parcelas, por esse motivo deverá ser-lhe declarada extinta a
punibilidade.
Também
não seria
disparatado declarar-se extinta sua
punibilidade pelo pagamento, em caso de prescrição. Caso o pagamento integral
aconteça antes de encerrado o prazo prescricional, a punibilidade do agente
resultará sem dúvida extinta nos precisos termos do art. 34 da Lei 9.249/95. 297
A orientação, além de não prejudicar o contribuinte, que efetivamente
pretende honrar o compromisso assumido e de apresentar-se compatível com a
nova redação do artigo 151, do CTN (inciso VI), coíbe expedientes ardilosos
daqueles que somente pretendem pagar as parcelas da moratória, até a extinção
da punibilidade no juízo criminal, restando não punível e o débito inadimplido
(dano não reparado). 298 Atende ainda a orientação do Pretório Excelso, que
preconiza que a extinção da punibilidade só poderá ser decretada se o débito em
causa for integralmente extinto pela sua satisfação, o que não ocorre, antes de
solvida a última parcela do pagamento fracionado. 299 Suspendendo o Ministério
Público o oferecimento da denúncia contra o agente que comprovadamente
tenha parcelado o débito, pago a última prestação restará extinto o débito e a
punibilidade.
A Lei 9.964, de 10 de abril de 2000, que instituiu um programa de
recuperação fiscal (Refis), a par de conceder moratórias e anistias, previu em
seu artigo 15, a suspensão da pretensão punitiva referente a crimes contra a
ordem tributária, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o
agente dos ilícitos penais estiver incluída no programa, desde que a inclusão
tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia. Além de prever que a
prescrição criminal não corre durante o período de suspensão, estipula a
extinção da punibilidade quando efetuado o pagamento integral dos débitos que
tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. O mesmo posicionamento
deverá ser adotado pelos Estados, Distrito-Federal e Municípios que instituírem
programas de recuperação fiscal (inciso I, parágrafo segundo, artigo 15, Lei
9.964/00).
ARREPENDIMENTO POSTERIOR E A REPARAÇÃO DO DANO
O pagamento, à vista ou fracionado, do tributo acrescido dos acessórios
(juros de mora, correção monetária e multa), antes do recebimento da denúncia,
leva a extinção da punibilidade, pela aplicação do art. 24, da Lei 9.249/95. O
Código Penal em seu artigo 16, prevê a figura do arrependimento posterior,
que se caracteriza pela reparação do dano, antes da denúncia, por ato
297
DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária.3ª ed. Florianópolis: Ed. Obra Jurídica,
1997, p.151.
298
Por esta razão o veto presidencial ao inciso I, do parágrafo segundo, do artigo 337-A, do Código Penal,
introduzido pela lei 9.983, de 14 de julho de 2000, que previa a extinção da punibilidade pelo pagamento,
inclusive parcelado, da contribuição social previdenciária, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a
denúncia.
299
STF, Pleno, Inquérito n. 1.028-6/RS, Questão de Ordem, Rel. Min. Moreira Alves, j. 04.10.95.
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voluntário do agente, nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça. 300
No caso dos crimes contra a ordem tributária, o dano sofrido pela
Fazenda Pública, consiste, basicamente, no não pagamento do tributo no
vencimento previsto na lei, ou seja, na mora do contribuinte. A reparação deste
dano, destarte, se realiza pelo pagamento do tributo, acrescido da correção
monetária (atualização pela perda do poder aquisitivo da moeda) e dos juros de
mora (indenização, em razão do pagamento ter sido feito fora do prazo).301 A
multa, como sanção de ato ilícito, não faz parte do dano causado, ou seja, se o
atraso é atendido pela atualização e pelos juros de mora, a subsistência da
multa tem natureza punitiva, sancionatória, penal.302
Neste contexto, em que pese o pagamento do tributo acrescido de
correção monetária e juros de mora, antes do recebimento da denúncia, não
implicar na extinção da punibilidade, pela não inclusão da multa, referido ato tem
o condão de reparar o dano e desta forma, autorizar a aplicação do art. 16, do
Código Penal (arrependimento posterior), impondo a redução da pena.
Como se trata de causa obrigatória de diminuição de pena e não de
mera atenuante, pode reduzir a pena abaixo do mínimo previsto para o crime,
aplicáveis na pena abstrata.
Redobra o interesse na análise dos crimes previstos no art. 1º da Lei
8.137/90, cuja pena mínima prevista é de dois anos e em que pese não se
submeterem à Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), haveria a
possibilidade de aplicação da suspensão condicional do processo (art. 89, Lei
9.099/95).303 Eis que, como já realçado, tratando - se de causa obrigatória de
diminuição da pena e aplicada aos crimes do art. 1º da Lei 8.137/90, levado em
conta o máximo da diminuição em abstrato (dois terços), resultaria em oito
meses de reclusão. Abaixo, portanto, do limite de um ano previsto pela lei dos
Juizados Especiais.
Ultrapassado o limite temporal fixado para o arrependimento posterior,
previsto no artigo 16, do Código Penal como o momento do recebimento da
300
Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparando o dano ou restituída a
coisa até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a
dois terços.
301
Sobre a matéria, pronunciou-se o Min. Moreira Alves do Pretório Excelso: Ao benefício do art. 16 faz jus o
agente que repara o dano ou restitui a coisa. Em se tratando de dinheiro, não basta restituir o principal,
independentemente, de se tratar ou não de dívida fiscal. Durante um período de elevado índice inflacionário,
não repara o dano quem devolve pura e simplesmente ao lesado a quantia subtraída. A inexistência do
pagamento de juros para concretizar a não reparação do dano é indiscutível, o que torna despicienda a
questão de saber se igualmente o era, na época do recolhimento, a correção monetária. Não há que se
pretender, no caso, a aplicação do princípio da autonomia da vontade para sustentar-se que a atenuante do
art. 16 ocorreu pelo fato de a Prefeitura haver recebido o principal sem os juros. O art. 16, em sua redação em
vigor, exige a reparação do dano e esta só ocorre quando, objetivamente, é integral. (RTJ 124/528).
302
Neste sentido a manifestação de Garcia de Enterría e Ramón Fernandes: Por sanción entendemos, aquí,
um mal infligido por la Administración a um administrado como consecuencia de uma conducta ilegal. Este mal
(fin aflictivo de la sanción) consistirá siempre em la privación de un bien o de um derecho, imposición de una
obligación de pago de uma multa ... (In: Curso de Derecho Administrativo. Quinta Edición, Editorial Civitas,
Madrid:1998, p.159).
303
Art. 89 – Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por
esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a
quatro anos, desde que, o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro
crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena.
2
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denúncia, o pagamento do tributo, acrescido de juros de mora e correção
monetária,304 após aquele limite, mas antes da sentença, servirá apenas como
atenuante da pena (Código Penal, art. 65, III, b, última parte).
304
Com ou sem a inclusão da multa.
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VÍTIMAS E VITIMIZAÇÃO NOS CRIMES SÓCIO-ECONÔMICOS
PEDRO LUCIANO EVANGELISTA FERREIRA
PROFESSOR DE CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL DO CESCAGE – MESTRANDO
EM CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL PELA UCAM/RJ – ADVOGADO NO PARANÁ
RESUMO – O artigo inicia destacando o surgimento da vitimologia e sua
importância para o Direito Penal na atualidade e suas relações com a doutrina
dos Direitos Humanos. O autor traça o perfil das vítimas dos crimes sócioeconômicos, assinalando o descrédito dessas quanto à punição dos criminosos,
opinião para a qual contribui a pouca severidade dos órgãos do Poder Judiciário,
e a solução dos casos em “instâncias administrativas”. O texto ressalta a
gravidade dos efeitos da criminalidade econômico-financeira, gerando danos
sociais e problemas econômicos de grandes proporções, sem que o
ordenamento jurídico esteja suficientemente aparelhado para prevenir e reprimir
tais delitos.
VICTIMS AND VICTIMIZATION IN SOCIOECONOMIC CRIMES – ABSTRACT The article starts focusing on the uprising of the victimology and its importance
for the Criminal Law in the present time and its relations with the Human Rights
doctrine. The author outlines the profile of the victims of socioeconomic crimes,
highlighting their discredit as to the punishment of the criminals, an opinion to
which the poor severity of the agencies of the Judicial Department contributes to,
and the solution of the cases in “administrative prosecutions”. The text points out
to the gravity of the effects concerning economic financial criminality, generating
social damages and economic problems of great dimensions, without the legal
system being equipped enough to prevent and restrain such faults.
INTRODUÇÃO – A VITIMOLOGIA
Apesar da existência da vítima ser tão remota quanto a existência do
crime, os estudos realizados sobre a vítima são recentes, uma vez que, até o
início do século XX, as preocupações estavam voltadas somente para a figura
do criminoso, ou seja, para apenas um dos integrantes do binômio “criminosovítima” também denominados “dupla penal”, “victim precipitated”, “pareja penal”
ou “cople penal”.
Foi somente após o advento da Escola Positiva que o crime passou a
ser analisado sob a perspectiva antropológica e sociológica, encarado como um
fato social e não somente um ente jurídico e abstrato, como pensava a Escola
Clássica, mas o enfoque principal ainda estava centrado apenas na pessoa do
agente criminoso, que pratica o comportamento desviante (sujeito ativo) e não
sobre a figura daquele que sofre e suporta as conseqüências da ação criminosa
lesiva, à vítima (sujeito passivo).
A palavra vítima deriva de “vincere” (vencido) ou “vincire” (animais
2
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sacrificados aos deuses), sendo também encontradiça a palavra “victimia” e
“victus” que os romanos utilizavam para “abatido”, “vencido” ou “ferido”.
O sujeito passivo, como aquele que suporta as conseqüências do ato lesivo,
pode ser tanto pessoa física quanto pessoa jurídica, uma vez que, a ocorrência da lesão
não depende do mesmo e poderá ocorrer nas duas hipóteses. Observe-se que para o
direito penal brasileiro, dependendo da espécie de crime podem figurar como sujeitos
passivos: o indivíduo (mesmo que incapaz), uma coletividade de indivíduos, a pessoa
jurídica, o Estado e até a comunidade internacional.
Já com relação ao sujeito ativo - o agente que pratica a ação lesiva - a situação
muda de figura, pois que, este só pode ser pessoa física dotada de capacidade jurídicopenal, uma vez que, no direito penal brasileiro não existe a possibilidade de
responsabilização criminal da pessoa jurídica e de associações sem personalidade,
assunto que possui crescente importância especialmente para o trato de questões
envolvendo os chamados “crimes econômicos” e “crimes ambientais”, mas que por hora
será tratado de maneira breve, pois que, o mesmo ultrapassa os limites do presente
trabalho. Os motivos que impedem a responsabilidade penal da pessoa jurídica são
simples, porém muito consistentes, uma vez que, a pessoa jurídica é incapaz de: a)
praticar a ação, no sentido adotado pelo direito penal; b) ter sua culpabilidade avaliada; c)
receber e cumprir a pena.305
a) incapacidade de ação: no sentido psicológico, a pessoa jurídica não pode
realizar ação porque não possui consciência e vontade, não possui autodeterminação.
Não há vontade própria, mas sim a manifestação das volições humanas dos sujeitos que
as compõem em razão da solidariedade representativa, havendo nítida distinção entre o
sujeito da ação e o sujeito da imputação. A ação para o direito penal de orientação
finalista representa o exercício de atividade final, atividade que é dirigida pela vontade
para a realização de determinado fim. Ainda que a pessoa jurídica possa ter patrimônio e
contratar, ela jamais poderá delinqüir porque não pode praticar ação (nullum crimen sine
actione). JESCHECK é da opinião que, a pessoa jurídica e as associações sem
personalidade, só podem atuar, por seus órgãos, pelo que elas mesmas não podem ser
apenadas.306
Enfim, se o direito penal contemporâneo está ligado de modo indissociável ao
conceito de ação, a incapacidade da pessoa jurídica para praticar ação já bastaria para
afastar a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ocorre que existem mais dois fortes
motivos para tal impossibilidade.
b) incapacidade de culpabilidade: a culpabilidade como juízo subjetivo pessoal
concreto que equaciona a “reprovação da atitude interior do sujeito ativo do crime”307
também representa um sério óbice à responsabilização criminal da pessoa jurídica, vez
que, não se pode avaliar e mensurar sua reprovabilidade. Observe-se que a pessoa
jurídica, por sua própria natureza, não se enquadra nos elementos constitutivos da
culpabilidade - segundo a teoria normativa pura - porquanto não é possível avaliar sua
305
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Vol. I - parte geral. 2ª ed. revista, atualizada e
ampliada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 160.
306
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4ª ed. corrigida e ampliada.
Tradução de José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares editorial, 1993. p. 205.
307
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro:Forense, 2001. p. 344.
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imputabilidade, seu potencial ou real conhecimento da ilicitude, e muito menos, falar em
exigibilidade de conduta diversa. Assim, mais uma vez resta afastada a possibilidade de
responsabilizar a pessoa jurídica na esfera criminal, porquanto não é possível falar em
crime se uma das categorias conceituais, cuja presença transfigura uma conduta em
delito jamais poderá estar presente.
c) incapacidade de pena: preceitua a Constituição Federal de 1988 em seu art.
5º, XLV, que a pena não poderá ultrapassar a pessoa do condenado. É o princípio da
pessoalidade ou personalidade da pena que impera no Direito Penal Brasileiro, por força
de imperativo constitucional, não podendo, portanto, ser afastado, senão por outra norma
de igual hierarquia. Determina o mandamento constitucional que a sanção recaia,
somente, sobre os autores materiais da ação delituosa, o que impede a extensão dos
efeitos jurídico-penais aos demais integrantes da pessoa jurídica, o que por certo,
ocorreria se, transpostos os dois motivos anteriores, fosse a pena aplicada à pessoa
jurídica.
Ressalte-se, por fim, que a impossibilidade de responsabilizar a pessoa
jurídica na esfera penal, não impede que a mesma receba penalidades oriundas
de outros ramos do Direito que, segundo sua estruturação interna, possam
alcançar a pessoa jurídica com maior propriedade. Também impende observar
que, em determinadas situações, podem ser alcançados os membros da pessoa
jurídica, de maneira individualizada, estes sim, como pessoas físicas, estão
sujeitos à aplicação das normas penais.
Segundo, a boa técnica, no campo penal, a vítima pode receber as
seguintes denominações: vítima (nos crimes contra a pessoa), lesado (nos
crimes contra o patrimônio) e ofendido (nos crimes contra a honra e os
costumes).
Destaca-se o trabalho pioneiro de HANS VON HENTIG que, em 1948,
publica a obra “The criminal and his victim” e desloca pela primeira vez o foco
temático para o estudo da vítima, e ainda, a consagrada obra de autoria de
BENJAMIN MENDELSOHN que em “The origins of the Doctrine of Vitimology”,
originalmente cunhou o termo “Vitimologia” (vitima + logos): estudo da vítima.
Nas palavras de EDUARDO MAYR a Vitimologia é “o estudo da vítima no
que se refere à sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico
e social, quer do de sua proteção jurídica, bem como dos meios de vitimização,
sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e
comparativos”.308
A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS VITIMOLÓGICOS
Os méritos da redescoberta da vítima como objeto de necessárias
considerações cabem a Criminologia Moderna que a visualizou não apenas no
papel de “causa” ou de precipitadora do crime, mas de sofredora direta dos
custos do crime, o que vem exigir novas respostas que não são apenas
308
MAYR, Eduardo. Atualidade Vitimológica. In KOSOVSKI, Ester; PIEDADE JUNIOR, Heitor e MAYR,
Eduardo. Vitimologia em Debate. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 07.
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respondidas por meio do sistema penal tradicional.309
Com o reconhecimento da importância dos estudos vitimológicos,
aumenta, diuturnamente, o espaço para o debate público, dando azo ao
surgimento de consistentes reflexões não apenas sobre as vítimas de crimes (e
seus papéis de influência tanto no crime como na execução da lei), mas sobre
qualquer vítima de opressão, o que em última análise leva também ao
reconhecimento dos esforços de proteção e resguardo dos Direitos Humanos.
É oportuno ressaltar o crescente, o entrosamento entre a Vitimologia e
os Direitos Humanos, uma vez que, a Vitimologia é uma ciência dotada de todo
um arsenal teórico composto por terminologia específica, técnicas e métodos
próprios, o que possibilita maior aproximação científica do objeto cognoscível,
enquanto que os Direitos Humanos oferecem um amplo horizonte explicativo
possibilitando um maior alcance e abrangência para pesquisas e uma maior
completude para suas respostas.
Vale sublinhar que Vitimologia não se limita a estudar a vítima do crime,
estendendo seu estudo das características biopsicossociológicas e jurídicas
comuns a todos os tipos de vítimas, seja qual for o fator dominante (por exemplo,
meios de divulgação e políticas estatais) transcendendo - por sua característica
interdisciplinar - os limites da Criminologia apesar de manter com esta, visíveis e
íntimas relações.
PERFIL DA VÍTIMA DOS CRIMES SÓCIO-ECONÔMICOS
Iniciados os estudos sobre a vítima do crime, surgiram várias
classificações como as de MENDELSOHN, JIMENEZ ASÚA e LOLA ANIYAR DE
CASTRO, que buscaram investigar e enquadrar a vítima em várias categorias.
Ilustrativa é a primeira classificação de vítima, formulada por MENDELSOHN,
resumida por OTÁVIO ITURBE na citação de EDGARD DE MOURA BITTENCOURT em:
Vítimas completamente inocentes, designadas de VÍTIMAS IDEAIS;
Vítimas menos culpadas do que o delinqüente, chamadas VÍTIMAS POR
IGNORÂNCIA;
Vítimas tão culpadas quanto o delinqüente, chamadas de VÍTIMAS
PROVOCADORAS;
Vítimas mais culpadas que o delinqüente, as PSEUDO- VÍTIMAS;
Vítimas como únicas culpadas, categoria que integra o chamado grupo
das VÍTIMAS AGRESSORAS. 310
Todavia, os danos provenientes dos crimes econômico-financeiros são
de difícil mensuração, visto que, seus efeitos - diretos e indiretos - são muito
amplos e, atingindo a esfera da Ordem Econômica, repercutem para vários
campos da sociedade com seus danos materiais e morais dando origem ao
309
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinqüente e a
sociedade criminógena. Reimpressão. Coimbra: Editora Limitada, 1992. p. 413.
310
BITTENCOURT, Edgard de Moura. Vítima. Ed. Universitária de Direito: São Paulo, 1978.
2
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221
fenômeno da “vitimização de grupos”.
Por estas características, as vítimas da criminalidade econômicofinanceira enquadram-se na categoria de “vítima coletiva”, consoante
classificação de LOLA ANIYAR DE CASTRO citada por ESTER KOSOVSKI311 por
compreenderem toda a comunidade, não apenas os concorrentes prejudicados e
a soma de consumidores espoliados - ambos lesados pelas abusivas manobras
dos inescrupulosos detentores do poder econômico - já que toda a comunidade,
em último plano, deixa de usufruir vários direitos, verbi gratia, a qualidade de
vida.
Utilizando a relação formulada por M ENDELSOHN,312 que deve ser
considerada com ponderação, já que foi realizada há mais de meio século, podese enquadrar as vítimas da criminalidade econômico-financeira, quanto aos
mecanismos situacionais, nas categorias de “vítima que não colabora” e “vítima
por ignorância”, isto do ponto de vista moral e jurídico, pela nítida atuação
passiva. Ainda tratando da classificação de MENDELSOHN, sob o ponto de vista
psicossocial, poderíamos caracterizá-las como “vítima que resulta de uma
coincidência”, haja vista que, não há uma individualização prévia do sujeito
passivo, como geralmente ocorre com os chamados “crimes convencionais”.
No que tange aos mecanismos relacionais, as vítimas da delinqüência
econômico-financeira, estão situadas na categoria de “vítimas de crimes”,
levando-se em conta as relações psicobiológicas, neuróticas e genobiológicas
(vítimas de outrem).
Isto tudo porque as vítimas do crime econômico-financeiro não têm
nenhuma participação ou colaboração no delito, não são escolhidas
individualmente pelos infratores, e ainda, na maioria das vezes são lesadas sem
que tenham a consciência disso.
Em se tratando das vítimas dos crimes econômico-financeiros, o que
fica claro e inequívoco é uma vitimização primária, que recai sobre a vítima
personalizada ou individual, que é a pessoa, que suporta o dano direto
proveniente do crime econômico-financeiro; uma vitimização secundária, em que
a vítima é representada pelo número de estabelecimentos comerciais atingidos
pelos crimes econômico-financeiros, ou seja, é impessoal, mas não totalmente
difusa a ponto de englobar toda a comunidade; e uma vitimização terciária em
que são atingidos os direitos de toda uma coletividade com perda da harmonia
social e o rebaixamento do padrão de vida (aumento do custo de vida),
ocorrendo a frontal agressão aos direitos difusos.
Para grande espanto, insta salientar uma justificativa encontrada para o
crescente cometimento de crimes econômico-financeiros, que é a inércia da
opinião pública quanto a esta prática delitiva, seja por ignorância ou pela idéia
que infelizmente se fortalece na consciência comum, de que o importante, é
ganhar cada vez mais, “custe o que custar”, em detrimento dos valores mais
caros da sociedade.
311
KOSOVSKI, Ester; PIEDADE JUNIOR, Heitor e MAYR, Eduardo. Vitimologia em Debate. Rio de Janeiro:
Forense, 1990. p. 07.
312
Idem. p. 06.
2
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Algumas pessoas, quando têm notícia do cometimento desta espécie de
crimes chegam a admirar-se com a habilidade dos delinqüentes e, não obstante
a “declarada” revolta e insatisfação, intimamente pensam que, se tivessem uma
oportunidade semelhante, fariam a mesma coisa (!!!), tamanha a sensação de
impunidade com relação a estes crimes.
Não obstante, os grandes prejuízos causados pelos crimes econômicofinanceiros, a grande maioria das pessoas não capta a extensão de danos
cometidos em um patamar tão elevado, o que também contribui para a
impunidade. A sociedade não estigmatiza, segrega ou deprecia o criminoso
econômico o que inevitavelmente lhe serve de grande estímulo.
Por fim, podemos destacar o baixo índice de efetiva repressão aos
crimes econômico-financeiros. Apesar da existência de inúmeras previsões
legais coibindo as mais variadas formas de atos, a atitude dos órgãos judiciários
tem sido pouco severa, isto se compararmos que para os delitos convencionais a
maioria das penas é privativa de liberdade o que não ocorre com os delitos
econômicos, e o que é pior, a maioria dos delitos econômico-financeiros são
apurados e “resolvidos” na instância administrativa, poupando os delinqüentes
das conseqüências estigmatizantes e dos registros de seus antecedentes
criminais.
Isto ocorre em grande parte pelo fenômeno da dupla seletividade do
sistema penal porquanto - ao contrário do que muitos pensam - o Direito Penal
não representa (e defende) um conjunto de valores, cuja aceitação social é
unânime, já, que em determinado contexto histórico-social, existem vários
grupos sociais cujos interesses são diversos e, não raras vezes, antagônicos.
A relatividade do sistema de normas e valores, dentro de uma
sociedade é fato conhecido e discutido pelas Teorias Criminológicas, mais
conscientes ao destacarem o papel do Direito Penal como instrumento seletor de
determinados valores e regras, de acordo com os interesses prevalentes em dois
momentos distintos (processo de dupla seletividade): a) no processo
embriogênico das normas (legislador); b) no processo de aplicação deste
conjunto de normas efetivado pelas instâncias oficiais de controle (juízes, polícia
e penitenciárias, etc.).313
Estudos realizados sobre o custo do crime e da luta contra o crime além de dividirem-no em custo público e econômico, notando a ocorrência das
chamadas “perdas preferenciais” - têm destacado a existência de relações entre
as várias espécies de delitos e seu respectivo custo social.
Como os atos da delinqüência econômico-financeira, estão
contemplados com características, que os diferenciam dos demais tipos de
crimes, visto que seus infratores possuem características próprias, os custos
sociais também adquirem caracteres distintivos específicos.
A conclusão de várias pesquisas foi, a de que os prejuízos causados
pelos chamados crimes do “colarinho branco”, dentre os quais podemos incluir a
313
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do
Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de
Criminologia, 1999. p. 75
2
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delinqüência econômico-financeira, são monstruosamente superiores a todos os
furtos, assaltos e roubos do país, uma vez que podem causar a quebra de
inúmeras empresas, recair sobre a saúde pública, ocasionar o aumento do custo
de vida, diminuir a entrada de impostos e muito mais, podendo até desestruturar
toda uma economia nacional dependendo da sua espécie.
Devido aos efeitos da criminalidade econômico-financeira serem muito
amplos e possuírem repercussões diretas e indiretas, nas mais variadas fases e
estruturas econômicas - de maneira semelhante a que ocorre em uma
progressão geométrica - o preciso volume do custo social econômico é quase
inatingível tamanha a sua dimensão. Apenas pode ser afirmado que, realmente é
muito grande o volume destes custos, pois é válido relembrar que, um só ato
pode desestruturar toda uma política econômica nacional, como ocorre com os
atos especulativos contra o sistema financeiro.
Para tornar mais perceptível a abrangência e a gravidade das
conseqüências dos crimes econômico-financeiros, cite-se o estudo realizado
pela Câmara de Comércio Americana (New dimensions of crime and
delinquency) - apresentado ao V Congresso das Nações Unidas sobre
prevenção do crime e tratamento do delinqüente ocorrido em Genebra no ano de
1975 - que concluiu alcançarem os prejuízos globais contra o crime a casa dos
50 bilhões de dólares/ano, dos quais 4/5 partes (!!!) são atribuídos aos “crimes
do colarinho branco”.
Como foi explicitado anteriormente, a mensuração do custo social do
delito, não está cingida apenas aos danos patrimoniais, que possuem “fácil”
avaliação por serem traduzíveis em termos econômicos, devendo englobar
também, os danos causados na esfera pessoal (honra, dignidade, etc.) e coletiva
(valores éticos e sociais) que, justamente pela dependência de um enfoque
subjetivo, embaraçam ainda mais uma precisa avaliação, isso sem falar mais
uma vez nas dificuldades de índole estatísticas, que se refletem na criminalidade
oculta - ou “cifra negra” como também é conhecida - que é a discrepância
existente entre o volume total da criminalidade (criminalidade real) e o volume
constatado nas estatísticas realizadas por órgãos públicos judiciais, prisionais ou
policiais (criminalidade oficial).
Em se tratando dos danos morais da delinqüência econômicofinanceira, pode-se asseverar, que nesta esfera, os prejuízos realmente são
mais contundentes por vários fatores.
Primeiro porque, geralmente, os crimes econômico-financeiros são
cometidos por grandes empresários, pessoas de alto status social e que chegam
até a ser considerados como exemplos, modelos de aprendizagem ou
parâmetros de sucesso profissional na utilização dos meios considerados
“normais”, legítimos e socialmente aceitos (meios institucionais) na escalada
econômico-social para a satisfação dos desejos pessoais (fins culturais).314
Pois bem, quando são desmascarados os crimes ocupacionais
cometidos por estes empresários infratores, o custo moral para a sociedade é
314
BARATTA, Alessandro. Op.cit. p. 63.
2
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muito grande. Imagine-se que muitos jovens se espelham nestes “líderes” e que
podem seguir o seu exemplo delitivo propiciando uma “nova geração” de
delinqüentes econômico-financeiros, gradativamente, mais inescrupulosos e
confiantes.
Esta “contaminação social” representada pela propagação, no seio
sociedade, de valores indesejáveis, é acentuada pelos mecanismos de
transmissão de valores e pelas associações diferenciais - estudadas por
SUTHERLAND - que representam a freqüência e o grau de intensidade do contato
direto ou indireto que as pessoas mantêm com aqueles que praticaram
comportamentos criminosos (comportamentos desviantes) ou com aqueles que
atuam em conformidade com a lei (comportamentos conformistas).315
Na mesma esfera estariam os demais empresários, que se sentiriam
desestimulados a continuarem agindo honestamente e em consonância com as
regras estabelecidas pelo sistema (verbi gratia, o pagamento da extenuante
carga tributária, o cumprimento de exigências técnico-normativas, sanitárias, de
segurança, a atuação de acordo com a ética profissional, a lealdade na
concorrência, etc.) já que os lucros extraordinários advindos com a prática do ato
desviante - também chamados de “recompensa do delito” - realmente são
sedutores e estimulantes, otimizados pelo sentimento de revolta com a
impunidade vigente.
Já na esfera pessoal, podemos citar as lesões, que ocorrem a um
número muito amplo e variado de pessoas, já que, os crimes econômicofinanceiros podem causar o significativo aumento do número de desempregados
com a desestabilização de muitas famílias, podendo de maneira concomitante
atingir individualmente um grande número de consumidores com a mais
variegada gama de fraudes e engodos causadores de várias seqüelas físicas
e/ou psicológicas.
CONCLUSÃO
À guisa de breve conclusão, evidencia-se, com translúcida clareza, a
existência efetiva de vítimas individuais e coletivas nos delitos sócio-econômicos
e também o amplo e complexo alcance do potencial vitimizador desta espécie de
criminalidade.
A este propósito, RAUL CERVINI citando o saudoso ROBERTO LYRA
destaca a perspectiva social do assunto em comento, uma vez que, a
“vitimização social”, “vulnerabilidade coletiva” ou “extravitimização social”
representa uma situação de indefensibilidade social em que indivíduos
particulares ou o conjunto social se colocam, ante o crescente número de ações,
com alta lesividade, que são visíveis à evidência científica, mas ignoradas pela
tipificação legal. 316
Neste sentido comungamos com o posicionamento esposado pela
315
BARATTA, Alessandro. Op. Cit. P. 72.
CERVINI, Raúl. Macrovitimização econômica. In: Discurso Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Ano
04. Números 7 e 8 - 1º e 2º semestres de 1999. p. 112.
2
316
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225
ilustrada pesquisadora ESTER KOSOVSKI - pioneira no estudo da Vitimologia no
Brasil - que a esse respeito é incisiva :
“... em todo o abuso de poder econômico há uma vitimização real. Ainda
que seja genérica e difusa, sempre acaba ficando prejudicada a
comunidade em geral. O custo social, isto é, todas as perdas diretas e
indiretas, sofridas por terceiros ou o público em geral, como resultado
de atividades econômicas, fora do controle, chega a ser altíssimo, já
que pode incluir perda de vidas, efeitos nocivos à saúde humana,
destruição ou deterioramento de bens, contaminação ambiental,
empobrecimento geral, etc.” 317
Aliás, vale sublinhar que não obstante a dificuldade da identificação
individualizada destas vítimas, nenhuma entredúvida pode esboçar-se a respeito
do grande potencial ofensivo e vitimizador, que possuem os crimes sócioeconômicos, já que, a extensão dos seus danos é muito vasta e de abstrusa
identificação.
Uma terceira constatação que não pode ser ignorada, diz respeito à
resposta legal da sociedade em relação a esta espécie de criminalidade, que
infelizmente, não corresponde ao impressionante volume da prática e da
lesividade da criminalidade econômica, porquanto a atitude das vítimas
influencia de forma substancial na criação e aplicação dos instrumentos
repressivos, muitas vezes figurando como autênticos “mecanismos de
compensação”. Observa-se, por conseguinte, que o parâmetro utilizado para a
criminalização e repressão de determinadas condutas e comportamentos não é
a sua real ou potencial lesividade, como podem pensar os consectários da
Ideologia da Defesa Social, que ignoram a rudez desta falácia.
A partir da posição escolhida pelo Estado, surge um parâmetro geral
para o bem de “toda a sociedade”, ainda que estejam, fortemente, resguardados
os interesses das classes dominantes (verbi gratia, propriedade privada dos
meios de produção, “mais- valia”, venda da força de trabalho, lei da oferta e da
procura) dos quais decorre, um fator de influência, na atuação do sistema penal
como instrumento de reprodução ideológica destes interesses e manutenção das
conseqüentes relações sociais existentes, entre as classes dominantes e as
classes dominadas. Há muito tem sido passada a imagem de que, o
ordenamento jurídico, mecanismo natural de organização social, é construído a
partir do consenso para o bem de toda a sociedade, o que não passa de um
grande sofisma como destaca CAPELLER :
“Interessa, aos detentores do poder, reproduzir, ideologicamente, uma
falsa imagem de que o Estado é imparcial na aplicação do sistema legal
(que compreende a criminologia), sempre tentando equilibrar e conciliar
os interesses dos diversos grupos sociais. Mas, apesar de que, a
317
Vitimologia em debate II. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 85. (grifo não é do original).
2
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classe dominante, não está controlando diretamente o sistema legal, o
sistema penal defende os interesses desta classe. Assim, ‘o controle do
crime se torna o maior esquema do Estado na sua promoção da
sociedade capitalista’”.318
As características do discurso penal e suas funções desempenhadas
dentro da estrutura social, passam então a ser distinguidas, segundo a definição
legal de certos “comportamentos socialmente negativos”, imposta, a partir da
visão e dos interesses das classes dominantes, revelando a natureza política do
ato de criminalização e afastando, com vigor, as idéias da pretensa “neutralidade
científica” para ressaltar ainda mais que: “A ideologia dominante em uma
formação social é, via de regra, a ideologia das classes dominantes”.319
Infelizmente, apesar do grande alcance dos danos - materiais e morais e do grande número de vítimas - individuais e coletivas - a resposta não tem sido
a altura, seja pela inexistência de instrumentos repressivos e preventivos seja
pela falta de “iniciativa e vontade” em aplicar, efetivamente, os instrumentos
existentes.
Por fim, é oportuno, observar que, quando as redes da justiça são
lançadas apenas aos peixes pequenos é que são apreendidos, enquanto os
grandes peixes escapam ilesos. Aliás, o próprio EDWIN SUTHERLAND, Professor
da Universidade de Indiana que em destacado estudo realizado em 1940 cunhou
originalmente o termo “White-Collar Criminality” onde destacava - com base em
estatísticas - o grande número de infrações cometidas por pessoas com alto
status social e as causas estruturais para a impressionante impunidade
existente, lançou já em 1945, um questionamento, que após mais de meio
século ainda persiste: “Is ‘White-Collar Crime’ Crime?”.320
318
CAPELLER, W anda Maria de Lemos. Criminalidade estrutural: aspectos ideológicos do controle social. In:
Revista de Direito Penal e Criminologia n.º 34. Rio de Janeiro: Forense, jul-dez/1982. p 69.
319
CAPELLER, Wanda Maria de Lemos. op. cit. p. 67.
320
ANDRADE, Vera Lucia Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 261,
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A APLICABILIDADE DO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL DE
LIMITAÇÃO DOS JUROS – TEORIAS CONFLITANTES
FRANCISCO ADILSON DE ALMEIDA FILHO
PROFESSOR NA FACULDADE MATER DEI. ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO – O artigo trata do parágrafo terceiro do artigo 192 da Constituição
Federal, o qual limita a taxa de “juros reais” a doze porcento ao ano,
esclarecendo o autor que tal norma jamais foi respeitada pelas instituições
financeiras no Brasil. O autor debate o problema da aplicabilidade imediata da
regra constitucional referida, apontando as divergências doutrinárias e
jurisprudenciais a propósito da matéria. Expondo diversos aspectos acerca dos
juros e da usura no Direito nacional, o texto analisa as “teses juristas” e as “teses
legalistas” a respeito da aplicação imediata da Constituição, concluindo pela
necessidade de limitação das taxas de juros no Brasil.
THE APPLICABILITY OF THE CONSTITUTIONAL PROVISION REGARDING
LIMIT OF INTERESTS. CONFLICTING THEORIES – ABSTRACT - The article
deals with paragraph third of the article 192 of the Federal Constitution, which
limits the rate of “real interests” to twelve percent a year, and the author
elucidates that such rule has never been respected by the financial institutions in
Brazil. The author discusses the problem of the immediate applicability of the
constitutional rule, pointing out the doctrinal and jurisprudencial divergences
concerning the issue. This text also exposes diverse aspects concerning the
interests and usury in the Domestic Law, analyzes “jurist theses” and “legalistic
theses” regarding the immediate application of the Constitution, concluding for
the necessity of limiting interest rates in Brazil.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu artigo 192, § 3º limita a
taxa de “juros reais” a 12% (doze porcento) ao ano. Essa limitação deveria, em
tese, ser aplicada a todos os contratos de mútuo (empréstimo), notadamente os
financiamentos bancários (CDC, limite de crédito, cartão de crédito, e até mesmo
o leasing, que é um contrato de financiamento “mascarado” de arrendamento).
Contudo, como se sabe, esse limite nunca foi obedecido pelas
instituições financeiras. A razão disso é, que a jurisprudência, seguindo
orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), tem decidido que o dispositivo
Constitucional não é “auto-aplicável”, ou seja, necessita de lei complementar
para que possa ter eficácia plena.
Esse entendimento teve por base um parecer do Banco Central sobre
as conseqüências econômicas da aplicação da limitação constitucional de 12 por
cento ao ano, e vários outros, lavrados por diversos autores de peso, como
Rossah Russomano, Ives Gandra da Silva Martins, Caio Tácito, José Frederico
Marques, Hely Lopes Meirelles, entre outros.
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O parecer do Banco Central é totalmente previsível, por sua notória
intimidade com o Poder Executivo. Quanto aos pareceres dos autores diversos,
sequer é preciso mencionar que muitos deles foram encomendados pela
Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).
Enquanto o parecer do Banco Central é abarrotado de previsões
apocalípticas para a economia do país, no caso da aplicação do § 3º, do artigo
192, da Constituição Federal de 1988, os pareceres dos autores
supramencionados enquadravam o parágrafo como não aplicável por razões
jurídicas, entre elas a falta de definição do que seria “juro real”, a situação
topográfica do dispositivo, a falta de legislação complementar do sistema
financeiro nacional, e outros.
Então, a partir de um parecer da Procuradoria da República, e de uma
circular do Banco Central, ficou entendido que, não mais havia limitação à usura,
ou melhor, que continuava não havendo limitação a tal prática, desde que
operada por instituição financeira.
Essa orientação, contudo, começa a ser desafiada por inúmeros
magistrados de primeiro grau, bem como por alguns Tribunais Estaduais, como o
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Mesmo o Tribunal de
Alçada do Estado do Paraná tem decidido, em algumas de suas câmaras,
contrariamente à orientação do STF.
Doutrinariamente, os únicos pensadores, que não contestam a
orientação do Supremo são exatamente aqueles que forneceram os pareceres
mencionados acima. Quanto aos demais, a doutrina é praticamente unânime no
sentido da auto-aplicabilidade da norma, havendo inúmeros livros e monografias,
que vêm mostrando operadores do direito – desde que desinteressados –
irresignados com o entendimento do Tribunal Supremo.
Quanto ao presente artigo, seu objeto está topograficamente localizado
no artigo 192 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) que, sozinho, regula todo
o Capítulo destinado ao sistema financeiro nacional. Vejamos o que diz este
artigo-capítulo:
“CAPÍTULO
DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
IV
Art. 192 – O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a
promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos
interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que
disporá, inclusive, sobre:
[...]
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer
outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de
crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a
cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura,
punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei
determinar.”
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O § 3º do artigo acima transcrito é o dispositivo que, cuja aplicabilidade
imediata se discutirá, examinando-se todas as interpretações conhecidas, seja a
favor, seja contra. Após a análise de cada argumento contrário e favorável, se
fará um juízo pessoal a título de conclusão específica.
Nessa linha de raciocínio, examinar-se-á se a lei complementar é
imprescindível para que a limitação de juros tenha plena eficácia, e se a Lei de
Usura não seria, pelo fenômeno da recepção, uma legislação elevada ao status
de complementar, no que tange à limitação usurária, ou se esta lei estaria, ao
menos, em vigor.
Analisar-se-á, também, a vigência da Lei de Usura no que concerne aos
bancos, em cotejo com a súmula 596, do Supremo Tribunal Federal, que dispõe
que às instituições financeiras não se aplicam os limites da Lei de Usura.Como
conseqüência da análise acima, será discutida a subsistência, ou não, da lei
anterior que liberava a taxa de juros, qual seja, a Lei nº 4.595/64.
Este tema é dos mais complexos e controversos do direito
constitucional brasileiro. Por isso, diversas teorias foram criadas para solucionar
esta divergência. Não há uma solução única, ou uma teoria que explique esta ou
aquela interpretação como a correta. Em vista disso, trazemos ao leitor todas as
teorias criadas pela doutrina e pela jurisprudência, não só no sentido de dar uma
idéia geral ao tema, mas sim porque são, absolutamente necessárias para que
se chegue a uma conclusão completa e atual.
No escopo de facilitar a invocação a cada posicionamento, fica
estabelecido que os partidários da limitação dos juros serão adiante
denominados “legalistas” e os defensores da inexistência de limite à usura, serão
chamados “juristas”.
Estes nomes adotados servem apenas para fins de facilitação de
indexação do presente trabalho. Não são eles eivados de qualquer juízo de valor
ou pré conceito.
PARTE I - DOS JUROS
ASPECTOS HISTÓRICOS
A USURA NO MUNDO
O juro, lógico, sempre foi a mesma coisa: o pagamento de um certo
preço pelo capital emprestado por um determinado período. O que mudou com o
tempo, foi a sua natureza, se remuneração ou indenização; se devido ou
condenado.
A Antiguidade clássica não foi muito simpática à prática onzenária. A
idéia grega era no sentido de que o mútuo deveria ter por substrato a amizade,
não o contrato. Entre os romanos, a usura foi, desde cedo, limitada em oito por
cento ao ano. Mais tarde (5 a.C.) Roma, fixou teto de 12 por cento em um
2
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senatoconsultum.321 Sequer os bárbaros (que mais tarde invadiram o império
romano) toleravam a usura: não admitiam contratos que extrapolassem o
máximo legal322.
Mais tarde, após o advento do Cristianismo, mais especificamente
durante a Idade Média, devido à influência da Igreja Católica, os juros foram
proibidos pela maioria das legislações européias. Restou a usura para os
Judeus, que, óbvio, não se sujeitavam aos dogmas católicos. Nesse período, as
concepções canônicas, tendo por expoente Tomás de Aquino, condenavam a
usura como pecado. Essa concepção acabou sofrendo atenuações, desde que
houvesse implemento de algumas hipóteses, como o lucro cessante do
mutuante, o risco323, etc.
Passou-se assim até a forte influência do liberalismo, que concedeu
habeas corpus à prática onzenária. Várias teorias foram desenvolvidas para
explicar o caráter remuneratório dos juros324, como a monista e a dualista.
Montesquieu bem serve para simbolizar a diferença de atitude, especialmente
por parte da burguesia, com relação à usura: “C’est bien une action très bonne
de prêter à un autre son argent sans intérêt, mais on sent que ce ne peut être
qu’un conseil de religion, et non une loi civile.” 325 (MONTESQUIEU, De L’Ésprit
des Lois).
E assim voou solta a usura, até a primeira Grande Guerra, quando os
Estados passaram a intervir mais e mais no domínio econômico, gerando novas
tendências para o direito constitucional.
Este intervencionismo aprofundou-se
após a segunda Grande Guerra. O direito constitucional desempenhava este
papel nos Estados em geral, inclusive nos mais liberais, como Inglaterra, França,
Itália. Sequer os Estados Unidos escaparam a essa orientação, em que pese
sua conformação liberal.
Hodiernamente, embora as legislações de alguns países adiantados
não limitem, expressamente, a taxa de usura, estes dispõe de eficiente
mecanismo legal para combater os juros manifestamente altos e defender o
consumidor oprimido.
Na França, por exemplo, há excesso usurário, sempre que os juros
forem superiores em dois terços à taxa média das operações análogas, ou ao
rendimento das debêntures326. Já na Itália e na Alemanha, os contratos de
mútuo, terão seus juros reduzidos, sempre que houver abuso da situação de
inferioridade do mutuário.327 Outros países do continente europeu, que controlam
a taxa de juros são Finlândia, Suécia e Dinamarca.328
Nos Estados Unidos da América, paraíso do capitalismo, os juros são
limitados, em nada menos que 39 estados. Aliás, ironizando este fato, GRABIEL
321
WEDY, Gabriel, O limite constitucional dos juros reais. Porto Alegre: Síntese, 1997, p. 22.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
324
Idem, ibidem.
325
“É mesmo uma boa ação emprestar a um outro seu dinheiro sem juros, mas sabemos que este só pode ser
um conselho religioso e não uma lei civil.”
326
WEDY, Gabriel. Opus cit., p.26.
327
Idem, p.27.
328
Idem, p.29 .
2
322
323
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233
WEDY lembra que, “em nenhum deles, se admite que estas (as taxas de juros)
possam flutuar de acordo com a mão invisível do mercado, teoria do grande
liberal Adam Smith.”329
Pela análise histórica acima realizada, observa-se que a reação dos
Estados e do direito às taxas de juros pode ser cindida em três períodos
distintos: na antiguidade clássica, repele-se, veementemente, a usura. Depois,
com a Revolução Francesa, a burguesia libera a prática. Ultimamente, os
Estados têm voltado a reprimir taxas de juros elevadas.
A USURA NO BRASIL
A usura começou com o “pé esquerdo”, em território nacional. As
Ordenações Filipinas tratavam a usura como vício e reprimiam os contratos
usurários. Essa má fortuna da usura, contudo, não perdurou muito. Foi
totalmente liberada com o advento da Lei de 21.10.1832, que, sob a égide do
liberalismo pulsante, seguiu-lhe os preceitos.
Em 1917, houve a promulgação do nosso Código Civil (CC), que definiu
os juros legais, numa tímida tentativa de estabelecer um parâmetro para a
cobrança de remuneração do capital no país. Na prática, a usura não tinha limite
legal.
Neste contexto, o divisor de águas foi o Decreto-Lei nº 22.626 de
7.4.1933, mais conhecido como a Lei de Usura. Este foi o primeiro ato
legislativo, verdadeiramente, pungente no sentido de limitar a prática onzenária,
condenando à ilegalidade os mútuos, que tivessem taxa de juros superior ao
dobro da taxa legal, ou seja, doze por cento.
Mudanças de ordem constitucional vieram, mas pouco adicionaram a
esse teor, simplesmente, reprimindo a usura através da retórica.
Outra lei de grande importância para o estudo dos juros foi a Lei nº
4.595, de 31.12.1964, que atribuiu a competência de limitar juros ao Conselho
Monetário Nacional (CMN). Igualmente importante é a Súmula nº 596 do
Supremo Tribunal Federal, que diz(ia) que as limitações de juros constantes da
Lei de Usura não se aplicavam às instituições financeiras.
Este entendimento vigora, até hoje, mesmo depois da promulgação da
Constituição Federal de 1988, que visando a coibir a prática da usura, proibiu,
em seu artigo 192, § 3º, a cobrança de “taxa de juros reais” acima de doze por
cento ao ano.
Essa limitação foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade, pelo
Partido Democrático Trabalhista (PDT), e dirigida contra o parecer nº SR-70, da
Consultoria Geral da República, e aprovado pelo Presidente da República. Esta
ação – a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 04/DF (ADIN nº 04/DF) – foi
julgada improcedente por maioria de votos (6 x 4)330.
Desde então, praticamente, todos os recursos extraordinários, que
329
Idem, ibidem.
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 04, do Distrito Federal. Julgamento em 07/03/1991. Relator: Sydney
Sanches. DJ – 25-06-1993. Brasil. Internet: www.stf.gov.br.
2
330
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[h1] Comentário:
R SE É ISTO QUE SIGN
NA INTERNET.
234
sobem ao Supremo Tribunal Federal, visando ao reconhecimento da limitação
constitucional dos juros, têm sua pretensão negada, sempre remetendo aos
fundamentos esposados, na referida ação direta de inconstitucionalidade.
Destarte, pode-se dizer que, na prática, não há limitação dos juros no
Brasil, já que as instituições financeiras não têm nenhum limite para estipulá-los.
NOÇÕES ACERCA DOS JUROS
Juros, pelo direito brasileiro atual, são remunerações ao capital
emprestado. É o valor devido ao mutuante, pelo empréstimo, por certo tempo, de
determinado capital, ao mutuário.
Sua natureza, segundo nosso Código Civil, é de fruto civil. Nisso
distingue-se dos frutos naturais porque “não são produzidos, espontaneamente
pela natureza, ou, melhor, não se derivam, naturalmente, da coisa principal, mas
‘vicem fructum obtinet’. Eles são, pois, prestados em virtude de especial razão
jurídica.”331 Essa especial razão é o empréstimo do crédito.
Portanto, o juro pode ser divido em dois tipos: O remuneratório e o
penalizador.
O juro penalizador não é objeto do presente trabalho, visto que seu
tabelamento, há muito é cumprido e aceito. É esta forma de juro conhecida como
“juros moratórios” e são aqueles usados para penalizar o devedor em mora.
CANÇADO define juros de mora como “apenação pelo atraso culposo na
liquidação da obrigação” 332. São definidos no Código Civil, no artigo 1.062, e não
podem ultrapassar os seis por cento ao ano, se não convencionados pelas
partes, e, caso previsto, limitado a doze por cento.
O tipo remuneratório de juros, a doutrina econômico-jurídica divide em
dois: os contratuais e os compensatórios.
Os contratuais são aqueles estipulados no contrato de mútuo, e que são
exigíveis pelo mutuante, contra o mutuário, enquanto o contrato estiver em vigor.
Ou, na definição de CANÇADO, são os que “representam a contraprestação
remuneratória do valor correspondente à obrigação contratada, durante o tempo
de vigência do contrato”333
Os compensatórios são os juros, que deve o mutuário ao mutuante
depois que o contrato não mais vigorar. É o mesmo que os juros contratuais,
diferenciando-se apenas em virtude da vigência ou não do contrato. Seguindo a
linha do autor mencionado, tem-se que estes juros “são os mesmos juros
contratuais, só que passam a ser remuneratórios do capital retido pelo mutuário,
após o vencimento da obrigação.”334 Esses também, por vezes nomeados como
“comissão de permanência”.
Simplificando: os juros contratuais e compensatórios serão aqui tratados
331
MORAIS, José Salvador de. O tabelamento constitucional dos juros e a lei de usura vigente ante as
operações bancárias. In Revista dos Tribunais nº 635. São Paulo: Setembro de 1988. P.151-155.
332
CANÇADO, Romualdo Wilson. Juros. Correção Monetária. Danos financeiros irreparáveis: uma abordagem
jurídico-econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 26.
333
Idem, ibidem.
334
Idem, ibidem.
2
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235
como o mesmo juro, já que nunca, em hipótese nenhuma, poderão se acumular,
e porque têm a mesma taxa, sendo um a continuidade cronológica do outro,
tendo como divisor de águas a vigência ou não do contrato.
Mas então o que são “juros reais” que nos diz a Constituição?
Os juros reais são simplesmente os juros remuneratórios
(contratuais/compensatórios - porque independe se está na vigência do contrato
ou não). A expressão “reais” acrescido aos juros serve para retirar da limitação
taxativa o instituto da correção monetária. Isto porque o vulgo costuma confundir
“juros” e “correção monetária” como uma coisa só. Não são.
Viu-se que, os juros são acréscimos patrimoniais. Ou são remuneração
ao mutuante ou pena ao mutuário. A correção monetária não é acréscimo. É
reposição do valor nominal do capital ao valor real. É um percentual que se
acresce ao principal para atualizar o poder de compra deste capital.
Assim, quis a Constituição que, mesmo havendo um índice inflacionário,
demasiadamente alto, o mutuante jamais sairá perdendo capital, eis que, no
mínimo, não se pode impor qualquer limite para a atualização monetária, como
não se pode para a inflação.
PARTE II - TESES JURISTAS
ASPECTOS GERAIS
A discussão travada se fez sobre alguns pontos específicos da norma.
O pensadores contrários à aplicabilidade do dispositivo alegaram que, a posição
deste, como parágrafo, equivaleria a sujeitá-lo ao caput, que chamava a lei
complementar. Alegaram mais, que, gramaticalmente, o caput, que imprescindia
de complemento legislativo, sujeitava o parágrafo às suas ineficácias. Também
foi controvertida a definição de “juros reais”, que estava incerto no parágrafo
guerreado.
Cada tópico abaixo trará, como dito, os argumentos da tese em
questão, seguido da contestação feita pela corrente de entendimento oposto, e,
ao final, um juízo de valor do autor do presente trabalho.
ARGUMENTO TOPOGRÁFICO
O cerne do argumento é simples: o caput do artigo 192 diz que, o
Sistema Financeiro Nacional “será regulado em lei complementar”, e, como o
parágrafo terceiro seria uma espécie de “parte integrante” e “sujeito” ao caput, a
limitação também ficaria à espera de uma lei complementar.
Vejamos agora os argumentos dos doutrinadores contrários à limitação,
que vão abeberar-se desta linha de hermenêutica.
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AS RAZÕES DOS JURISTAS
O parecer nº SR-70335 da Consultoria Geral da República, assinado pelo
próprio presidente da República, à época José Sarney, bem define o argumento.
Esse parecer foi justamente o objeto de postulação de declaração de
inconstitucionalidade, da ADIN nº 4/DF. Segue:
“Ninguém pode conceber que um inciso ou um parágrafo pudesse ser
destacado do artigo e posto em vigor imediatamente, enquanto o
conjunto da reforma de um sistema orgânico ficasse aguardando a lei
complementar.
[...]
Sabemos que o parágrafo de artigo é, tecnicamente, o desdobramento
do enunciado principal com a finalidade de ordená-lo inteligentemente,
ou excepcionar a disposição principal. Ordenando ou excepcionando,
sempre se refere ao “caput.”336
Assim a linha dos contrários à limitação. Explicam que há um
condicionamento inerente do parágrafo ao inciso. O parágrafo não existe sem o
caput. E, como, no caso em tela, o caput faz alusão à vindoura lei complementar,
condicionando sua eficácia, contido também estaria o parágrafo 3º, devido a sua
sujeição à cabeça do artigo.
AS CONTESTAÇÕES DOS LEGALISTAS
Contrariamente, os “legalistas” afirmam que o parágrafo em discussão,
possui normatividade autônoma, independentemente, da posição topográfica do
mandamento. Pode-se ilustrar a crítica com o conhecido texto do
constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA a respeito:
“Pronunciamo-nos, pela imprensa, a favor de sua aplicabilidade
imediata, porque se trata de uma norma autônoma, não subordinada à
lei prevista no caput do artigo. [...]
Se o texto, em causa, fosse um inciso do artigo, embora com
normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a
estabelecer a lei complementar. Mas, tendo sido organizado num
parágrafo, com normatividade autônoma, sem referir-se a qualquer
previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata. O
dispositivo, aliás, tem autonomia de artigo, mas a preocupação, muitas
e muitas vezes revelada ao longo da elaboração constitucional, no
sentido de que a Carta Magna de 1988 não aparecesse com demasiado
número de artigos, levou a Relatoria do texto a reduzir artigos a
335
Parecer da Consultoria-Geral da República de nº SR-70, de lavra do Consultor-Geral da República SAULO
RAMOS e assinado pelo então Excelentíssimo Senhor Presidente da República JOSÉ SARNEY. Reproduzido,
na íntegra, no relatório do inteiro teor do acórdão da ADIN nº 04/DF, p. 04 – 25.
336
Idem.
2
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237
parágrafos e uns e outros, não raro, a incisos. Isso, no caso em exame,
não prejudica a eficácia do texto.”337
O voto vencido do Ministro do Supremo Tribunal Federal PAULO BROSSARD,
abordou a questão, levando-a às últimas conseqüências. Para ele, pouco importa se
houve boa ou má técnica; importa a supremacia da materialidade do direito sobre a sua
formalidade. Segue trecho:
“Mas vamos supor que tecnicamente o parágrafo devesse ser artigo e
que sob o ponto de vista de técnica legislativa ele seja censurável. O
intérprete deve guiar-se pelo enunciado da norma ou a ele sobrepor
esta ou aquela regra da arte de bem redigir as leis? Parece-me que,
seja qual for a mácula que tecnicamente a norma possa apresentar, o
exegeta deve dar à norma constitucional a sua medida e dela extrair o
resultado inequivocadamente desejado.
[...]
Mas quando ele fosse censurável à luz da arte de redigir leis, nem por
isso o intérprete poderia deixar de aplicá-lo.”338
A crítica é, portanto, no sentido de que a situação topográfica da norma é
irrelevante no que tange à sua aplicabilidade. Relegam a discussão do posicionamento do
mandamento à matéria de técnica legislativa, livrando o conteúdo e imperatividade da
norma de qualquer impedimento associado à localização da mesma.
CONCLUSÕES
A teoria da sujeição absoluta do parágrafo ao caput, inclusive com o
eclipse de direitos e desconsideração de obrigações, unicamente em virtude da
posição da norma ora estudada, parece não proceder.
Entendemos assim, em primeiro, porque cremos ser a forma um
simples meio para a consecução do material [fim]. Se a intenção do legislador foi
a de dar imediata vigência e eficácia ao dispositivo consubstanciado no § 3º do
artigo 192, parece-nos de pouco ou nenhuma relevância que, o conteúdo
normativo tenha, por capa formal, um parágrafo ou um artigo. É norma de
qualquer maneira e deve ser obedecida.
Em segundo, porque o referido parágrafo remete à lei complementar a
definição do crime de usura, em todas as suas modalidades. Silencia a respeito
da primeira parte, que tabela os juros. Ora, fosse a intenção do legislador
condicionar a eficácia do § 3º à legislação complementar, por que teria se dado
ao trabalho de repetir a necessidade de tal legislação quanto à segunda parte do
parágrafo? É sabido que, em termos de lei, não se presume a repetição
desmotivada. E se há motivo para a colocação da expressão “nos termos que a
lei determinar”, é que na segunda parte ela – a lei complementar – é necessária;
337
338
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros. 1997. p. 758.
Voto vencido do Ministro PAULO BROSSARD na ADIN nº 04/D.F. p. 190 – 226.
2
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ipso facto, na primeira parte, não.
ARGUMENTO GRAMATICAL
Esta foi mais uma arma do parecer nº SR-70, que buscou elucidar a
questão, oferecendo uma simplista solução, unicamente se verificando a
regência verbal, e outros elementos gramaticais.
AS RAZÕES DOS JURISTAS
Incorreu em sério erro o hermeneuta constitucional, autor do parecer.
Acabou esta interpretação por fortalecer a corrente favorável à limitação. Isto
será demonstrado após colocar-se os argumentos do parecer:
“Vamos, porém, examinar gramaticalmente o artigo 192.
No ‘caput’ diz que o sistema financeiro nacional será regulado em lei
complementar, que ‘disporá, inclusive, sobre...’.
Não há, pois, dúvida de que os incisos do ‘caput’ dependem de lei
complementar. [...]
Continuemos, porém, a interpretação gramatical do artigo 192. O § 1º,
referindo-se à autorização dos incisos I e II, sobre os quais a lei
complementar disporá, declara que será inegociável, etc.
O § 2º dispõe que os recursos financeiros serão...
E, finalmente, o § 3º declara que as taxas de juros ‘não poderão
superar...’
Todos estes verbos no futuro harmonizam-se com a regência do
‘caput’, quando diz que a lei complementar disporá. É precisamente a
sucessão lógica, de que fala VICENTE RAÓ, ‘unindo o sentido de cada
parágrafo ao do parágrafo anterior e o de todos os parágrafos ao do
texto principal do artigo’.” 339
Excepcionalmente, não será trazida a contestação dos legalistas quanto
à proposta gramatical dos juristas, por pensarmos que não se faz necessária,
por demasiadamente simples de ser contestada.
CONCLUSÕES
Entendemos que o busílis da questão é buscar o real sentido na norma,
importando pouco a maneira como ela nos é colocada.
Os legisladores compreendiam a língua portuguesa. Como sugerido
pelo próprio parecer da Consultoria Geral da República, vamos unir o caput do
artigo ao parágrafo 3º, separando apenas pelo sinal de barra (/). Assim teremos:
“O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade,
339
Parecer SR-70. Vide nota nº 18.
2
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será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: / as taxas de
juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta
ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a
12% ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de
usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos em que a lei
determinar.” (grifou-se o que importava para a análise da regência e continuísmo
da primeira oração, demonstrando a incompatibilidade entre o ordenado do
caput e o disposto no parágrafo).
Assim, ressaltando o aspecto da continuidade, para se demonstrar a
incompatibilidade, temos:
“O sistema financeiro nacional [...] será regulado em lei complementar,
que disporá, inclusive, sobre: / as taxas de juros reais, [...] não poderão ser
superiores a 12% ao ano;”340
Pergunte a qualquer criança devidamente alfabetizada, e ela
responderá que à frase falta sentido. Falta um elemento, que poderia ser
preenchido pela palavra “QUE”, antes da limitação propriamente dita. Poderia,
mas não foi. Esse é o “que” da questão.
Desse modo, cai por terra, completamente espancada, a teoria da
sujeição gramatical do parágrafo à cabeça do artigo, pelos seus próprios
fundamentos. Compreende-se, então, porque esta interpretação, apesar de
pouco relevante, passou a engrossar as fileiras dos que pregam a limitação dos
juros.
ARGUMENTO DA INSUFICIÊNCIA LEGISLATIVA
Este é, provavelmente, o ponto em que mais se apegam os partidários
da liberdade usurária, em termos de argumento hermenêutico.
Pregam os que assim pensam que a expressão “juros reais”, contida no
parágrafo estudado, é nova e indefinida do mundo jurídico, e que, por isso, não
pode o dispositivo ser aplicado devido ao seu principal elemento estar carecedor
de definição legal.
Assim, com expressão indefinida, fica a eficácia do parágrafo
condicionada a lei complementar futura, que dê sentido aos “juros reais”.
AS RAZÕES DOS JURISTAS
O parecer SR-70, foi o que primeiro semeou a discórdia e começou a
discussão. Apesar de ter sido tímida a abordagem deste ponto, no parecer
vestibular da controvérsia, logo os pareceristas da Febraban se apaixonaram
pela teoria, e a exploraram às últimas conseqüências. Veja-se o exemplo de
HELY LOPES MEIRELLES:
“O que são taxas de juros reais? O legislador constituinte não o disse,
340
Essa operação gramatical também pode ser encontrada na monografia de SÉRGIO BORCHARDT.
2
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desde logo. Apenas referiu-se a alguns elementos que devem ser
considerados, e descontados como despesas financeiras à efetivação
do crédito. [...].”341
Mas ninguém é tão duro em afirmar a dificuldade da conceituação de
juros como IVES GANDRA DA SILVA MARTINS:
“Não há conceito jurídico de juros reais. A matéria deve ser investigada
na Economia, que doutrinariamente, também, não oferta um contexto
definitivo sobre a matéria.
Em 1982, fui relator nacional pelo Brasil, no ‘XXXVI Congresso da
International Fiscal Association’, em Montreal, no Canadá, [...]
As conclusões finais do debate, terminaram por espelhar a falta de um
perfil definitivo sobre os juros, tendo em alguns dos tópicos tal aspecto
sido realçado. [...]
[...]
Enfim, não obstante escrevendo e estudando sobre a matéria há mais
de 20 anos e participando de Congressos Nacionais e Internacionais a
respeito do assunto, não vislumbrei ainda um conceito jurídico definitivo
sobre os juros independente da adjetivação que se lhe possa dar de
juros reais, nominais, positivos, negativos, expurgados, etc.[...]”342
Ou seja, resumindo toda a argumentação acima, tem-se que o problema
da conceituação de “juros reais”, para ele, reside na impossibilidade da
mensuração absoluta da desvalorização da moeda em relação aos bens.
AS CONTESTAÇÕES DOS LEGALISTAS
Agora vejamos as defesas da posição contrária, que sustenta, neste
particular, que a expressão “juros reais” tem conformação na ordem jurídica, e
que, apesar de não haver conceituação expressa, é conceito vulgar, conhecido
por todos, ipso facto, desnecessária seria qualquer definição legal.
GABRIEL WEDY, ao refutar o pensamento de que os juros reais são
indefinidos, cita doutrina especializada em conceitos em normas jurídicas, para
assegurar a auto-aplicabilidade do dispositivo estudado:
“Nada mais simples é do que conceituar ‘juros reais’. São eles os juros
nominais deflacionados no período do crédito, ou que excedam a taxa
inflacionária do mesmo período.[...]”343
FERNANDO GASPARIAN, o próprio legislador constitucional, em carne
e osso, autor da “emenda gasparian”, que mais tarde se tornou o parágrafo § 3º
341
Parecer da lavra do eminente doutrinador HELY LOPES MEIRELLES, e que foi reproduzido no voto do
Ministro Relator da ADIN 04/DF SYDNEY SANCHES, p. 92 – 98.
342
Parecer da lavra do eminente doutrinador IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, e que foi reproduzido no
voto do Ministro Relator da ADIN 04/DF SYDNEY SANCHES, p. 118 – 127.
343
WEDY, Gabriel. Opus cit. P. 71 – 73.
2
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da Constituição Federal, criticou duramente o autor do parecer SR-70, que não
reconhecia aplicabilidade imediata do parágrafo em questão:
“Não é preciso ser jurista para entender o mal-amarrado sofisma do
advogado. O que o caput pede é lei complementar que, na obediência
dos incisos que se seguem, reestruture todo o Sistema Financeiro
Nacional. O § 3º que, na realidade, deveria ser um artigo a parte, é, em
si mesmo, conclusivo, impondo aplicação imediata. O que se pode
complementar ou regulamentar de um mandamento tão explícito?”344
Traz-se a ponderação de CELSO DE OLIVEIRA, para quem, mesmo
que indefinido fosse o termo, ainda assim, ao Estado-Juiz não é lícito esquivarse de reconhecer a aplicabilidade:
“É o caso da ‘taxa de juros reais’ inscrita no § 3º do art. 192 da
Constituição, que tem jurídico indeterminado, e que, por isso mesmo,
deve o juiz concretizar-lhe o conceito, que isto constitui característica da
função constitucional.
Busco a lição de J. C. Barbosa Moreira ao dizer que, ‘todo conceito
jurídico indeterminado é passível de concretização pelo juiz, como o é o
conceito de bons costumes, como é o conceito de ordem pública e
tantos outros com os quais estamos habituados a lidar em nossa tarefa
cotidiana’(J. C. Barbosa Moreira, ob. e loc. cits.)”345
Analisando todos os argumentos dos pareceristas da Febraban,
BROSSARD passa a aniquilá-los, nos seguintes termos:
“Juro real, para mim, é o juro, é a remuneração do capital, nada mais.
Como a correção monetária não é juro e não é remuneração do capital
não afeta o juro de 12%. Nem deve interferir nele. É uma verba
autônoma. [...]
Como se vê, não há necessidade de ser prêmio Nobel para saber o que
seja juro real e para que se aplique a norma constitucional, que é
taxativa e imperativa. [...]
Alega-se que a execução do disposto no § 3º em causa supõe a prévia
definição do juro legal. [...] Mas eu lembraria que o legislador não
definiu o que é juro e nenhuma instituição financeira deixou de
cobrar juros por ignorar a sua definição legal ... [...] Não há quem
não saiba o que seja juro real.” 346 (Grifou-se)
Adiante, na declaração deste voto, o ilustríssimo Ministro PAULO
344
GASPARIAN, Fernando. A luta contra a usura – o limite constitucional dos juros anuais de 12% está
em vigor. s.l.: Graal, 1991.
345
OLIVEIRA,
Celso
de.
Juros
bancários
limitados
nos
tribunais
brasileiros.
Internet:
www.direitobancario.com.br.
346
Voto de PAULO BROSSARD em ADIN nº 04/DF. Vide nota nº 23.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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BROSSARD passa a ironizar o parecer de IVES GANDRA DA SILVA
MARTINS:
“Não há quem não saiba o que seja juro real, salvo, naturalmente, os
que não saibam o que seja juro, como os participantes do XXXV
Congresso da International Fiscal Association que, em 1.982, reuniu em
Montreal algumas sumidades mundiais[...]
Pois, a despeito da incerteza conceitual do juro e sem que fosse
editada nenhuma lei complementar que o definisse, o juro
continuou a ser cobrado como se o seu conceito tivesse a
transparência do cristal.
Aliás, suponho que a esse congresso de notáveis, nenhum mutuário
teria comparecido, pois se o tivesse teria quebrado a unanimidade, não
comungando das incertezas e das dúvidas dos sábios. Donde seria
lícito concluir que, mutuários não vão a certames destinados a definir
juros e os doutores que deles participam não são mutuários...
Repito, não há quem não saiba o que seja juro e juro real, a que se
refere a Constituição. Basta não freqüentar congressos internacionais.
[...].”347
CONCLUSÕES
Deve-se levar em conta que, ultimamente, tem se acordado para um
importante aspecto da nova Constituição Federal, qual seja, a pragmatização de
suas normas de conteúdo ideológico, de tendências sociais e aparentemente
programáticas.
Esse é o pensamento, já maduro, dos constitucionalistas norteamericanos. Para eles, a constituição pode ser aplicada em qualquer particular,
para a defesa de qualquer interesse. Especialmente os sociais.
Aqui, esse ideário está se desenvolvendo, mas seu futuro é certo.
Quanto mais buscarmos assegurar nossos direitos sociais, mais aplicabilidade a
Constituição terá. Mesmo seus termos mais genéricos servem para fundamentar
um interesse justo, e que, não tenha previsão legal específica.
RUY BARBOSA, já nos havia acordado para essa nova hermenêutica
constitucional:
“Não existem em uma Constituição, cláusulas a que se deva atribuir
meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm
força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular
aos seus órgãos.”348
Já quanto ao juiz, a derradeira voz da lei, este jamais poderá, sob
nenhum pretexto, deixar de dar sentido à sua voz, a lei. O juiz precisa dar à lei
uma tônica de justiça, e não de legalismo puro. LUIZ LIMA LANGARO, ao se
347
348
Idem, ibidem.
WEDY, Gabriel. Opus cit. p.68.
2
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referir à importante missão do juiz, não olvida do sentido da justiça, do qual se
encarrega o magistrado:
“Clássica se tornou a citação de Aristóteles: ‘Ir ao juiz é ir à justiça;
porque o juiz representa a justiça viva e personificada. Dá-se ao juiz o
nome de mediador... pois o juiz ocupa o meio entre as partes. O juiz
iguala as partes’ (Ética a Nicómano, 4 ed., Buenos Aires, 1952).
[...]
...É a mesma imagem usada no direito romano por Cícero, quando,
genialmente, dizia: ‘pode o magistrado se dizer a lei a falar e a lei se
dizer o magistrado em mudez’ (De Legibus, 3, 2)”349
Pois bem, ainda hoje, mais de dez anos, depois que o magistrado mudo
foi promulgado, os interesses continuam a calar a lei, que nada mais quer dizer
senão justiça, em forma de direito para os economicamente espoliados, e
censura, aos economicamente espoliadores.
Nessa ordem de idéias, não se pode vedar a aplicabilidade de um
dispositivo tão claro e conciso como o § 3º do artigo 192. Não há nada, ali, que o
exegeta não possa interpretar e entender. O termo “juros reais” simplesmente
não pode deixar de ser interpretado pelo Juiz.
Ademais, vários outros termos de difícil solução tiveram suas
conceituações jurisprudencial e doutrinariamente construídos, para que
pudessem ser, objetivamente, aplicados. São exemplos: “domicílio real” (art. 846
do CC), “valor real” (art. 1438 do CC), etc.
Passemos agora a analisar a questão de maneira mais legalista. Vamos
considerar ad argumentandum que a expressão “juros reais” constitua uma
lacuna na Lei Maior.
Segundo MARIA HELENA DINIZ, lacuna é “um estado incompleto do
sistema. Ou, como nos diz Binder, há lacuna quando uma exigência do direito,
fundamentada objetivamente pelas circunstâncias sociais, não encontra
satisfação na ordem jurídica.”350
Então, supremos que o termo “juros reais” seja vago, impreciso, de
difícil definição. Primeiro teremos que recorrer ao ordenamento jurídico, para só
então afirmarmos que existe uma lacuna.
O Código Civil Brasileiro, apesar de mencionar juro ou juros em nada
menos do que 33 artigos (são eles: arts. 178, 432, 441, 734, 736, 751, 761, 763,
805, 846, 902, 909, 944, 976, 993, 1.061, 1.062, 1.063, 1.064, 1.075, 1.179,
1.234, 1.262, 1.263, 1.303,1.311, 1.339, 1.450, 1.497, 1.530, 1.536, 1.544,
1.693), em nenhum deles explica ou define expressamente o que sejam juros.
Silenciando o ordenamento, MARIA HELENA DINIZ nos ensina que
devemos investigar uma solução para o caso concreto, através de alguns
instrumentos, positivados no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. O
primeiro dos instrumentos é a analogia. Esta, segundo a mesma autora, “...
349
350
LANGARO, Luiz Lima. Curso de deontologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1996. P .74 – 76.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1995. P. 398.
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consiste em aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico
por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas
semelhante ao caso não contemplado.” 351
Pensamos ser, absolutamente, possível solucionar esta lacuna
utilizando unicamente a analogia, que é o primeiro dos instrumentos que o
julgador deve lançar mão. Isto pelo seguinte: embora o Código Civil não defina
juros, ele o usa como elemento de obrigação, configurando fruto civil.
Se a Constituição não contemplou a definição de “juros legais” e se este
não é explicado ou definido pelo ordenamento, no mínimo, não se pode negar
que há norma para caso semelhante. Essa norma é o artigo 1.262 do Código
Civil. Explica-se, como o que a Constituição trata, quando da limitação dos juros,
é justamente dos juros aplicados aos contratos de mútuo com instituições
financeiras. Não se pode negar que o artigo 1.262 do Código Civil trata de caso
muito semelhante.
Como os contratos de mútuo, que são realizados sob a égide do art.
1.262 do CC, aplicam os juros como remunerações do capital mutuado,
excluindo-se destes juros a correção monetária, é certo dizer que esse mesmo
conceito pode ser aplicado aos juros reais de que fala a CF/88. Fica, assim,
colmatada a “lacuna”.
Assim, tendo feito uso de todo este mecanismo teórico, ativando
conceitos de integração do direito, ou da necessidade do magistrado dar sentido
à lei, cremos que não se pode dizer que a locução “juros reais” não pode ser
definida, portanto aplicada.
De qualquer maneira, para nós, juros reais são os rendimentos devidos
pelo mutuário, ao mutuante, em virtude de empréstimo de dinheiro por
determinado tempo. Deste conceito exclui-se a correção monetária, que é
simples correção do valor do capital mutuado, tendo em vista a depreciação
deste com relação aos bens em geral, durante o tempo contratado para o mútuo.
ARGUMENTO-SOLUÇÃO
ANTERIOR (LEI 4.595/64)
DA
SOBREVIDA
DA
LEGISLAÇÃO
Os contrários à limitação dos juros, após enunciar todos os argumentos
acima demonstrados e contestados, dão uma solução para o impasse da
inaplicabilidade do § 3º da CF/88. Esta solução seria a sobrevida de uma
legislação anterior à Constituição. A principal lei, que usam como parâmetro para
a orientação a se dar à limitação dos juros é a Lei nº 4.595 de 31.12.64 (Lei da
Reforma Bancária). A lei dispõe, em seu artigo 4º:
“Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes
estabelecidas pelo Presidente da República:
[...]
IX – limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos,
351
Idem, 409 – 410.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e
serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco
Central do Brasil, assegurando taxas favorecidas aos financiamentos
que se destinem a promover: [...]”
Com base, portanto, neste dispositivo legal, que alguns entendem estar
em pleno vigor, competiria ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a fixação da
taxa máxima de juros, em detrimento do tabelamento constitucional.
AS RAZÕES DOS JURISTAS
Comecemos por citar a opinião de HELY LOPES MEIRELLES:
“... Enquanto a futura lei, ali preconizada, não for elaborada e entrar em
vigor, permanecem as atuais que, direta ou indiretamente não se
contraponham ao esboço traçado pelo legislador constituinte.”352
Já o pensamento da CAIO TÁCITO é bem mais explícito:
“O Banco Central do Brasil, como a Comissão Monetária Nacional,
estão investidos, por força de lei, de poder normativo sobre o mercado
de capitais. As normas baixadas no exercício dessa completência
condicionam a atividade das instituições financeiras, submetidas ao
dever jurídico de sua observância.” 353
AS CONTESTAÇÕES DOS LEGALISTAS
Os partidários da limitação combatem essa intenção, argumentando
que, o fenômeno da recepção da Lei da Reforma Bancária não se aplica, visto
que, tal lei, no que tange à limitação dos juros, é incompatível com a Carta
Magna de 1988, em dois aspectos: quanto à limitação em si, e quanto à
delegação de função própria de um Poder da República a outro Poder.
Como bem investigado por LUPINACCI, a Lei de Reforma Bancária já
nasceu irregular, em virtude da inobservância de requisitos Constitucionais para
a sua “aprovação”. Explica-se.
A Constituição, então, em vigor, era a de 1946. Esta estabelecia como
de competência da União a legislação acerca de direito civil, comercial,
financeiro e instituições de crédito (art. 5º, inc. XV, alíneas a, b e k). O artigo 149
da CF/46 ainda previa que a regulamentação da atividade dos Bancos e
instituições análogas seria feita por meio de lei. O Congresso Nacional era o
detentor da competência para legislar acerca das matérias de interesse da
União, conforme art. 37 da CF/46. Essa Constituição ainda vedava
352
353
Parecer da lavra de HELY LOPES MEIRELLES. Vide nota nº 27.
Parecer da lavra de CAIO TÁCITO. Vide nota nº 20.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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expressamente a delegação de atribuição entre os poderes [art. 36, § 2º].
Em que pese a CF/46 ter sido “ratificada” pelo Regime Militar, e a
clareza matinal do art. 36, § 2º, “[...]o Congresso Nacional substabeleceu seus
poderes ao empreender a Reforma Bancária, legando-os ao Conselho Monetário
Nacional. Tal investidura, ou melhor impostura operou-se, no tocante à matéria
de juros principalmente pelos arts. 4º, IX da Lei nº4.595/64 e art. 29, VI, da Lei nº
4.728/65.” 354
Daí, portanto, o vício insanável de delegação espúria, incompatível com
os dispositivos Constitucionais supramencionados. Mesmo assim, como sempre,
“[...] setores da doutrina pretenderam justificar o expediente mediante teorias
extravagantes”355 . Seja como for, certo é que a competência atribuída ao
Conselho Monetário Nacional nasceu tão juridicamente morto quanto a lei de
Reforma Bancária.
BROSSARD, em seu voto vencido, conclui pela incompatibilidade
material entre a Constituição de 1988 e a lei de Reforma Bancária:
“Pois bem, foi exatamente isto que a Constituição quis enfrentar e
enfrentou para mudar, voltando à inspiração de 46. Mas não se limitou a
remontar àquela Lei Suprema. Foi além. Não se contentou em dizer que
a usura seria combatida em todas as suas modalidades, nos termos da
lei, como a de 46. Proclamou que o juro máximo permitido seria o de
12% ao ano, e o que excedesse a essa taxa, fosse a que título fosse, de
maneira direta ou oblíqua, seria considerada usura, e esta, seria punida
na forma pela lei estabelecida..”356
CONCLUSÕES
Esses, em síntese, os argumentos contrários à vigência da lei nº
4.595/64, seja sob a égide da Constituição de 1946, seja sob a de 1988.
Analisemos o disposto na letra da lei em questão:
“Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes
estabelecidas pelo Presidente da República:
[...]
IX – limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos,
comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e
serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco
Central do Brasil, assegurando taxas favorecidas aos financiamentos
que se destinem a promover: [...]”
O ponto central reside na expressão “limitar as taxas de juros”. Isto
354
355
356
LUPINACCI, Ronaldo Ausone. Opus cit. P. 43 – 51.
Idem, ibidem.
Voto de PAULO BROSSARD em ADIN nº 04/DF. Vide nota nº 23.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
247
porque devemos concluir se, nesta parte, o dispositivo revogou a Lei de Usura,
cujo mandamento é o seguinte:
“Art. 1º . É vedado, e será punido nos termos desta Lei, estipular em
quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal.”
A taxa legal a que se refere a Lei de Usura é o disposto no artigo 1.062
do Código Civil, e que é de 12%. Logo, pela Lei de Usura, anterior à Lei da
Reforma Bancária, é vedado estipular juros superiores a 12%. O Conselho
Monetário Nacional pode, todavia, limitar estes juros, sempre que necessário.
Mas “limitar” significa “liberar” a percentagem acima do já definido na Lei de
Usura?
Segundo AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, limitar
significa: “1. Determinar os limites de, ou servir de limite a. 2. Restringir,
diminuir.”357
Qual definição aplicar? Para resolver este problema pensamos ser
simples a solução. A primeira (1) se aplica aos casos em que não há
presentemente uma limitação já efetiva, de maneira que o sujeito limita
originariamente, e discricionariamente a coisa limitante; a segunda (2) se aplica
aos casos em que já há uma limitação pré-existente. Aí, ao sujeito limitador,
cabe restringir a coisa dentro dos limite já existentes.
Por isso, pensamos que a competência para a limitação dos juros, pelo
CMN, está, de qualquer maneira, sujeito ao teto máximo de 12%, traçado pela
legislação anterior, qual seja, a Lei de Usura.
Mas independentemente dessa ordem de idéias puramente conceitual,
o fato é que nos parece que o inc. IX do art. 4º da Lei da Reforma Bancária
padece de um grave mal. O vício da delegação espúria mencionado por
LUPINACCI, e explicado acima.
Mais atualmente, quando se confronta o disposto no inc. IX do art. 4º da
Lei da Reforma Bancária, com o disposto na CF/88, art. 192, § 3º, observa-se
uma completa contradição entre a lei ordinária e a Carta Magna.
Ainda sob o prisma sistemático da Constituição, há mais um aspecto há
ser analisado, que é o artigo 25 do ato das disposições Constitucionais
transitórias (ADCT), o qual dispõe que todos os “dispositivos legais que atribuam
ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela
Constituição ao Congresso Nacional” ficariam revogados 180 dias após a
promulgação da Constituição. Destarte, como promulgação se deu em 05 de
outubro de 1988, o prazo de existência da delegação da competência do CMN
para “limitar” os juros, expirou em 03 de abril de 1989.
Ocorre que, como bem analisa SÉRGIO BORCHARDT, esta
determinação constitucional vem sendo postergada, por meio de medidas
provisórias (a MP original foi a de nº 45 de 1989). São os tecnocratas do Estado
usando todas as suas armas contra a Constituição, que deveria guardar, e
357
Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
2
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contra o povo, que deveriam defender:
“Atinge-se o estado democrático, porque, por discordância unicamente
econômica, deixa-se de cumprir a Lei Maior, repita-se promulgada pela
Assembléia Nacional Constituinte, investida de poderes pelo povo,
titular de todo o poder, a quem o eleito simplesmente representa e não
substitui, como às vezes parecem pensar os eleitos em geral neste
país..” 358
Cremos, que as leis, que sucessivamente prorrogaram o prazo
Constitucional (as medidas provisórias, que, segundo doutrina do autorizado
JOSÉ AFONSO DA SILVA, “podem ser adotadas pelo Presidente da República
em caso de urgência ...”359) são inconstitucionais, por ofenderem frontalmente
princípios da Lei Maior.
Por tudo o que foi trazido à apreciação, pensamos que não pode ter
“sobrevida” uma lei tão contrária às aspirações sociais da Constituição de 1988.
Aliás, nunca poderia ter tido uma vida de eficácia, devido ao exposto acerca da
integração Lei de Usura – Lei da Reforma Bancária, em detrimento da súmula
596 do STF, a qual ainda não é vinculante.
PARTE III - DAS TESES LEGALISTAS
ASPECTOS GERAIS
Agora proceder-se-á ao exame das teses, que sustentam a
aplicabilidade imediata do contido no § 3º, do artigo 192, da CF/88. Insugindo-se
contra esta ordem de idéias, os contrários à limitação apresentam suas
contestações, que aqui, serão transcritas. Os favoráveis à limitação encontram
em RUI BARBOSA um argumento de peso, quando o “jurista do século”
classifica, baseado na doutrina constitucional americana, as normas deste plano
em self-executing e non self-executing360.
Para facilitar a apreciação das teses de um modo lógico e didático,
assim como foi feito com os argumentos do contrários à limitação dos juros, fica
dividido em três principais e definidas teses, que não se confundem entre si.
Agora se fará o estudo da primeira tese dos favoráveis à limitação.
Argumento da mens legislatoris
Este primeiro argumento se baseia na análise da vontade do legislador
constituinte, quando da elaboração do parágrafo 3º, do artigo 192, da
Constituição Federal de 1988.
A primeira discussão neste prisma, e que já foi objeto de rápida reflexão
358
BORCHARDT, Sérgio. Opus cit. P. 26 – 27.
SILVA, José Afonso da. Opus cit. P. 503.
360
“Self-executing” é termo proveniente do direito constitucional norte-americano, e utilizado por Ruy Barbosa,
quando da análise das normas constitucionais auto-aplicáveis no direito brasileiro, e significa “auto-executável”
ou “auto-aplicável”, e “non self-executin”, “não auto-executável”.
2
359
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249
noutro tópico, é a vontade do autor do parágrafo, ou seja, o legislador
constituinte em carne e osso, que já deixou bem clara sua intenção, inclusive
escrevendo livro acerca do assunto. Este legislador é Fernando Gasparian, e a
obra é “A luta contra a usura”361.
AS RAZÕES DOS LEGALISTAS
Vejamos o que dizem os adeptos desta interpretação, nas palavras do
autor da petição inicial que impulsionou o Poder Judiciário à apreciação da
aplicabilidade do parágrafo estudado, e que ficou consubstanciada na Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 04, do Distrito Federal:
“Diante de uma questão de ordem levantada no momento das votações
das emendas retro referidas pelo constituinte Francisco Dornelles
acerca da não auto-aplicabilidade do dispositivo em tela, o Deputado
Vivaldo Barbosa sustentou em plenário a sua auto-aplicação, verbis:
‘Sr. Presidente, está cristalino, no § 3º, que as taxas de juros reais não
poderão ser superiores a 12% ao ano. Qualquer cobrança superior a
12% era contra o texto constitucional ... o § 3º, tem redação cristalina,
límpida e autônoma dos incisos e do caput do artigo’.”362
Acerca dessa manifestação do legislador, GABRIEL WEDY é incisivo,
quando prega que “Torna-se impossível negar autonomia e eficácia plena ao
disposto no § 3º do art. 192, sob pena de incorrermos no ‘crasso pecado
exegético’, de contrariar a verdadeira intenção do legislador, quando investido no
soberano poder constituinte, tendo em vista a total independência que tem o
parágrafo do caput do artigo.”363
AS CONTESTAÇÕES DOS JURISTAS
Como vem sendo conduzido o trabalho até aqui, vejamos como
constestam este argumento os contrários à limitação, acerca desta vontade
constituinte.
Foi no voto do Ministro do STF, CELSO DE MELLO, que encontramos
os argumentos mais expressivos contra os pensamentos acima expostos.
Vejamos suas palavras:
“Os condicionamentos hermenêuticos impostos pela exacerbação da
vontade do legislador constituinte, e da intenção que o animava em
determinado momento histórico, reduziriam – como já pude assinalar –
de modo extremamente inconveniente, a interpretação constitucional, a
361
GASPARIAN, Fernando. Opus cit.
Petição Inicial da lavra do ilustre advogado PAULO MATTA MACHADO, e que foi reproduzido no relatório
da ADIN 04/DF, p. 04 – 25.
363
W EDY, Gabriel. Opus cit. p. 70.
2
362
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250
uma ‘dimensão voluntarista’ (J. C. Gomes Canotilho, op. cit,., p. 167),
que se revela de todo incompatível com o verdadeiro significado da
constituição, que, sendo, no magistério da doutrina, ‘um complexo
normativo aberto a uma interpretação pluralista dos seus vários
destinatários’ (Canotilho, op. loc. cit.), jamais poderá ficar subordinada à
rigidez imobilizante de seu sentido ou de seus objetivos, o que
certamente derivaria da preconizada indagação da intencionalidade
subjetiva dos ‘framers’, ou seja, da pesquisa da vontade originária dos
próprios autores do instrumento constitucional.” 364
CONCLUSÕES
Realmente, parece não ser possível, como quer GABRIEL WEDY, darse peso absoluto à intenção real do verdadeiro legislador. Em contrapartida,
dissociamo-nos também da abstração absoluta.
É que as leis, sejam de que hierarquia forem, têm, de fato, uma vida
autônoma. Elas nascem no cérebro de determinado legislador, mas, quando
publicadas, adquirem vida própria. Ocorre que essas leis, justamente por
nascerem de onde nascem, refletem as imperfeições humanas. A lei não é
perfeita, como seu criador também não é. Devido a este fato, a imperfeição,
cremos ter a intenção do verdadeiro legislador um peso relativo, mas cremos
haver outros elementos, que não a vontade do Sr. FERNANDO GASPARIAN,
para se chegar a vontade do legislador, abstratamente considerado.
O primeiro destes, é a objetividade do texto. É sabido que as normas
“programáticas” trazem em seu bojo toda uma gama de expressões de sentido
amplo, e de difícil interpretação pragmática. Esse, aliás, é o caso do caput do
artigo 192 da Constituição.
Neste tipo de norma, é ululante a preferência, pelo legislador, do uso do
subjetivismo, em detrimento do objetivismo. Expressões como “desenvolvimento
equilibrado do país” e “interesses da coletividade” são da mais difícil
conformação prática. Já nas normas de aplicabilidade imediata, o que se dá é
o oposto: o legislador evita inserir elementos axiológicos. Prefere os termos
técnicos e práticos. É o caso do § 3º do artigo supramencionado.
O legislador foi direto ao ponto. Disse o que queria dizer. Não se
cobrarão taxas de juros reais acima de 12 por cento. Nem mediante artifícios
burladores (como se fazia no tempo da Lei de Usura). A objetividade do
legislador é gritante.
Outro ponto, que nos indica a intenção imediatista do legislador é a
remissão da punição da usura à lei complementar. Se quisesse o legislador a
complementação da primeira parte do parágrafo, o teria feito, no final, quanto às
duas partes. Já se fosse o caso do caput do artigo 192 demandar a
complementação de todos os seus incisos e parágrafos, não haveria a
necessidade de o legislador ter feito a remissão, que fez na segunda parte do §
364
Voto do Ministro CELSO DE MELLO na ADIN nº 04/D.F. p. 174 – 189.
2
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251
3º.
E é por todas estas razões, que não se excluem, ao contrário, se
reforçam, e não apenas em virtude do originalismo (a vontade do legislador
enquanto pessoa), é que se conclui que, de fato, a mens legislatoris era (e ainda
é) a da aplicabilidade imediata do § 3º , do artigo 192, da CF/88.
ARGUMENTO
PROIBITÓRIO
DA
AUTO-APLICABILIDADE
DE
MANDAMENTO
Tendo RUI BARBOSA como elemento norteador, os partidários da
limitação trazem as lições de nosso Águia de Haya, o qual, por sua vez, após
aprofundado estudo da tradição constitucional norte-americana, distingue as
normas constitucionais em dois tipos: as self executing rules e as non self
executing rules. As primeiras, por conterem em si elementos suficientes,
aplicam-se, imediatamente, per se. As segundas, não.
AS RAZÕES DOS LEGALISTAS
O causídico do PDT, PAULO MATTA MACHADO, quando da defesa da
ADIN nº 04/ D.F., nos traz as palavras imortais de RUY BARBOSA:
“Entre os textos constitucionais executáveis sem o concurso de
legislação aplicativa sobressaem os de caráter proibitório.
[...]
No proibir que se faça alguma coisa não há nada que exija ulterior
acção da lei. A acção ulterior da lei poderá vir a ser necessária, a fim de
castigar as infracções da regra proibitiva. Isto, porém, é coisa
totalmente diversa da proibição em si mesma. ‘There is nothing in
forbidding a thing to be done which requires future action. Future action
may be necessary to punish a violation of the prohibition; but that is a
matter totally different from the prohibition itself’. (Groves v. Slaughter.
15 Peters 457. 10. L. Ed. 803).”365
O Ministro CARLOS VELLOSO, voto vencido na ADIN nº 04/D.F., em
suas razões, também partilha da mesma conclusão:
“O § 3º do art 192 da Constituição, Senhor Presidente, contém, sem
dúvida, uma vedação. E contém, de outro lado, um direito, ou, noutras
palavras, ele confere, também, um direito, um direito aos que operam
no mercado financeiro. Em trabalho doutrinário que escreveu sobre a
taxa de juros do § 3º do art. 192 da Constituição, lecionou o
Desembargador Régis Fernandes de Oliveira:
‘Percebe-se, claramente, que a norma constitucional gerou um direito
exercitável no círculo do sistema financeiro, criador de uma limitação.
Está ela plenamente delimitada no corpo da norma constitucional,
365
Petição inicial da ADIN nº 04.
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independentemente de qualquer lei ou norma jurídica posterior. [...].”366
AS CONTESTAÇÕES DOS JURISTAS
Em sentido contrário a estas teses, tem-se a opinião do Ministro CELSO
DE MELLO que, em seu voto, após citar as orientações expostas acima, e
concluir que há um “gradualismo eficacial de normas constitucionais” e que há
normas que não contêm em si elementos jurídicos necessários para a eficácia
“mínima”, assim declarou:
“É, precisamente, o que ocorre com o preceito inscrito no § 3º, do art.
192, da Constituição Federal, que configura, na clássica acepção das
regras constitucionais de eficácia limitada, uma estrutura jurídica sem
suficiente densidade normativa. Sem a legislação integrativa da vontade
do constituinte, normas consitucionais – como a de que ora se trata –
‘não produzirão efeitos positivos’ e nem mostrar-se-ão aplicáveis em
plenitude, pois ‘Não receberam [...] do constituinte normatividade
suficiente para sua aplicação imediata’ (Maria Helena Diniz, op. cit., p.
101). Reclamam, em caráter necessário, atos de mediação legislativa,
para que lhes complementem o próprio conteúdo normativo.”367
CONCLUSÕES
Discordamos expressamente da interpretação do Ministro acima
mencionado. Não cremos que o parágrafo em questão não contenha em si a
densidade normativa para a plenitude dos seus efeitos.
Citando a mesma doutrina utilizada pelo Ministro aludido, de autoria de
MARIA HELENA DINIZ, chegamos a conclusão diversa:
“Há um escalonamento na intangibilidade e nos efeitos dos preceitos
constitucionais, pois a Constituição contem normas com eficácia
absoluta, plena e relativa. Todas têm juridicidade, mas seria uma utopia
considerar que têm a mesma eficácia, pois o seu grau eficacial é
variável. Logo, não há norma constitucional destituída de eficácia.
Todas as disposições constitucionais têm a possibilidade de produzir, à
sua maneira, concretamente, os efeitos jurídicos por elas visados.” 368
Aplicando a teoria da autora ao dispositivo constitucional, cremos que
esse produz, “à sua maneira” os efeitos concretos visados pelo legislador. E o
efeito não é senão a limitação dos juros em doze por cento.
Ademais, o conteúdo mandamental do tal parágrafo é negativo. Manda
que não se faça determinada coisa. De fato, conforme RUY BARBOSA e a
366
367
368
Voto do Ministro CARLOS VELLOSO na ADIN nº 04/D.F. p. 165 – 173.
Voto de CELSO DE MELLO em ADIN nº 04/DF. Vide nota nº 67.
DINIZ, Maria Helena apud voto do Ministro CARLOS VELLOSO, em ADIN nº 04/DF. Vide nota nº 62.
2
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[h2] Comentário:
253
doutrina norte-americana, não há dúvida quanto à aplicabilidade do dispositivo.
Mas estamos mais para CARLOS VELLOSO e CELSO ANTONIO
BANDEIRA DE MELLO, do que para os norte-americanos, neste particular,
porque os juristas pátrios transcendem o elemento único da negatividade como
divisor de águas absoluto, para fazer-nos encarar a aplicabilidade com os olhos
dúplices da intersubjetividade.
Parece-nos, realmente, que há, no caso do parágrafo estudado, uma
limitação objetiva a uma coisa, o que, por si só, já é imperativa, justamente por
ser objetiva. Pensamos haver aí a densidade normativa em virtude de o limite ter
todos os elementos a ele pertinente. O que se vai limitar (juros reais), o quantum
(12 %) e contra quem (todos).
E, por último, há a criação de direito em favor do sujeito passivo da
coisa limitada, que é o sofrido mutuário. Este, conforme CELSO ANTONIO
BANDEIRA DE MELLO, tem um direito plenamente exercitável.
É bem como o caso do artigo 1.262 do Código Civil. Quando este artigo
dispõe que “é permitido [...] fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras
coisas fungíveis.” ele está, em verdade, criando um permissivo legal para a
estipulação de juros. Também cria um direito ao credor de exigir esta “coisa”
criada, e uma imposição ao tomador do empréstimo de implementar esta
exigência. É a mesma criação tríplice do parágrafo constitucional estudado.
Observe-se, porém, que, nem o § 3º da CF/88, nem o art. 1.262 do
Código Civil criaram o instituto do juro. Este antecedia à incidência legal. O que
as lei fizeram foi criar regulamentação acerca deste fato. O Código Civil criou a
exigibilidade da prestação, e a CF/88, a limitação deste juro.
ARGUMENTO-SOLUÇÃO
ANTERIOR (LEI 22.626/33)
DA
SOBREVIDA
DA
LEGISLAÇÃO
Em contraposição à alegada sobrevida da Lei da Reforma Bancária, os
partidários da limitação dos juros trazem a sua legislação, a Lei de Usura, como
em pleno vigor, em detrimento da outra lei, que seria natimorta.
AS RAZÕES DOS LEGALISTAS
Lembramos que, as razões que eivam a Lei nº 4.595/64 – o vício de
delegação quando da promulgação desta lei; a incompatibilidade com o preceito
constitucional; a incompatibilidade com o princípio constitucional da isonomia; a
aberração legal no que tange ao artigo 25 do ADCT – não estão, em nenhum
grau, presentes na Lei de Usura. Muito pelo contrário, esta representa,
exatamente, o que quis o legislador constitucional, e ela é que deve viver, em
detrimento da moribunda Lei da Reforma Bancária.
Por isso, o argumento dos “legalistas” seria no sentido de que se há
legislação anterior capaz de ser recepcionada pela CF/88, esta somente poderia
ser a Lei de Usura, vez que além de não viciada, em nada contrasta com a nova
ordem Constitucional.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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AS CONTESTAÇÕES DOS JURISTAS
A defesa dos contrários à limitação e à vigência da Lei de Usura é que
esta teria sido revogada pela Lei da Reforma Bancária, por entenderem que o
verbo “limitar”, contido artigo 4º, inciso IX, da segunda lei, teria sub-rogado a
limitação dos juros contida na primeira lei.
CONCLUSÕES
A impugnação ao entendimento dos “juristas”, bem como os
pormenores das razões pelas quais pensamos que a Lei 4.595 de 1964 não
pode subsistir, foi exposta anteriormente. Pelas razões lá demonstradas, cremos
que a Lei de Usura foi realmente a única recepcionada pela CF/88, e que esta
não havia sido revogada pela natimorta Lei da Reforma Bancária.
Mas pensadores há que vão além. JOSÉ AFONSO DA SILVA, por
exemplo, diz que a tipificação penal – à qual faz remissão a segunda parte do
parágrafo – existe e está em pleno vigor, agora revigorada pela invocação
constitucional. Esta lei é próprio Dec. Nº 22.626/33 ou a Lei de Usura, conforme
as palavras do referido autor, acerca da remissão a lei complementar que faz o §
3º, do art. 192: “Neste particular, parece-nos que, a velha lei de usura
(Dec.22.626/33) ainda está em vigor.”369
Apesar de comungarmos deste entendimento que poderia levar a pecha
de radical, deixamos de fulcrar nossas razões, em virtude de ser tópico que foge
ao objeto de estudo do presente trabalho.
CONCLUSÃO GERAL
A História, a lógica comum, os fatos sociais, mesmo os números
econômicos, e, notadamente, a hermenêutica jurídica, tudo nos atrela à inegável
conclusão pela existência e necessidade da limitação das taxas de juros no
Brasil.
A História, porque, como se viu, o mundo e o Brasil sempre lutaram,
salvo o período do liberalismo, acirradamente, contra a usura, e ultimamente,
essa tendência vem ganhando um caráter de unanimidade. Isso se vê mesmo
nas opiniões dos doutores contrários à limitação usurária. Mesmo no parecer do
Banco Central.
É a lógica comum, porque desde os tempos de Aristóteles, se encara o
juro de maneira pejorativa, e tanto mais quanto mais altos forem. Isto porque não
é natural a justificativa do rendimento, proveniente do próprio dinheiro, e em
detrimento da produção e do trabalho.
Os próprios números econômicos demonstram, e com grande impacto,
a situação escandalosa que vive o Brasil, hoje. É certamente o paraíso dos juros:
369
SILVA, José Afonso da. Opus cit. p. 758.
2
Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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A soma dos lucros líquidos dos Bancos nacionais – excluído o lucro dos
estrangeiros – atingiu a impressionante soma de R$ 4.785.831.000,00 (quatro
BILHÕES, setecentos e oitenta e cinco milhões e oitocentos e trinta e um
mil reais)370 .
Compare-se, ainda, a taxa de juros do Brasil com a de outros países:
México: 6,42%; Cingapura: 2,91%; Japão: 0,52%; Áustria: 1,83%; Alemanha:
1,93%; Reino Unido: 1,99%; Estados Unidos: 3,05%; Itália: 3,38%; Dinamarca:
4,17%; França: 4,65%; Suécia: 6,58%; Espanha: 6,79%; Argentina: 9,05%;
Chile: 9,42%; BRASIL: 30,41%371 .
No que tange ao direito propriamente dito, e à hermenêutica jurídica,
mesmo em seus mais altos graus de técnica e formalidade, estes referendam a
limitação sem sombra de dúvida.
Seja pela sobrevida da Lei de Usura, seja pela morte tardia da Lei da
Reforma Bancária, seja por ser o § 3º do art. 192 da CF/88 um imperativo
negativo, portanto self-executing, seja pelo mesmo dispositivo criar direito e
relação intersubjetiva, seja pela visão histórica, seja pela mens legislatoris, seja
pela interpretação gramatical, seja pela interpretação sistemática, seja por qual
artifício que se quiser lançar mão para escapar à limitação, isto simplesmente
não pode ser conseguido. O legislador constituinte conseguiu cristalizar a
limitação na Carta Magna de maneira indelével.
Apesar do resultado da ADIN nº 04, em que o STF decidiu não ser o
dispositivo constitucional auto-aplicável, serão os juízes de primeira instância e
os Tribunais Estaduais, que farão valer a norma renegada pelo “guardião da
Constituição”.
Serão os aplicadores do direito, sob a égide dos doutrinadores da
verdade, não dos juros, que darão vida efetiva e cinética ao § 3º, que por
enquanto é forçado a hibernar, e a ter uma vida apenas potencial.
Finalmente, para concluir este trabalho, não podemos deixar de
mencionar os nomes dos quatro Ministros que, de maneira verdadeiramente
impertérrita, não se deixaram impressionar pelos pareceristas do juro, nem pelas
artimanhas dos bancos, mantendo sempre suas imparcialidades diante deste
difícil, mas acertado posicionamento, o qual mantem até hoje.
E, como não poderia deixar de ser, fechamos o trabalho com as
palavras deste último Ministro, publicadas no jornal Zero Hora:
“A minha melancólica e inútil indagação é no sentido de saber quem vai
responder pelos danos à nação causados por esta política de satanás.
Quem vai responder pelas dores do desemprego de milhões de
pessoas, nos campos e nas cidades, pelas concordatas e falências de
empresas respeitáveis, devoradas pela usura oficializada, que imperou
e ainda impera sob a proteção do poder público.”372
370
Tabela publicada no Jornal GAZETA MERCANTIL, em 18, 19 e 20 de fevereiro de 2.000.
Fonte: The Economist/FMI/IBGE/BC/Paulo Nogueira Batista Júnior – Transcrito de VEJA, edição de 27 de
setembro de 1995, p. 116. Idêntico em obra citada de SÉRGIO BORCHARDT.
372
W EDY, Gabriel. Opus cit. p. 77 – 78.
2
371
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256
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORCHARDT, Sérgio. O limite dos juros no Brasil após a Constituição Federal de 1988.
Internet: www.direitobancario.com.br.
CANÇADO, Romualdo Wilson. Juros. Correção Monetária. Danos financeiros irreparáveis:
uma abordagem jurídico-econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1995.
GASPARIAN, Fernando. A luta contra a usura – o limite constitucional dos juros anuais de
12% está em vigor. s.l.: Graal, 1991.
LANGARO, Luiz Lima. Curso de deontologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1996.
LUPINACCI, Ronaldo Ausone. Limite da taxa de juros no Brasil.Leme: LED, 1999.
MATTOS E SILVA, Bruno. Anatocismo legalizado: medida provisória beneficia as já
poderosas instituições financeiras. In Internet: http://jus.com.br/doutrina/mp1963.html.
MORAIS, José Salvador de. O tabelamento constitucional dos juros e a lei de usura vigente ante
as operações bancárias In Revista dos Tribunais nº 635. São Paulo: Setembro de 1988. P.151155.
NICOLAU JUNIOR, Mauro. Norma constitucional de limitação de juros é auto-aplicável ou
meramente programática? Internet: www.direitobancario.com.br.
OLIVEIRA, Celso de. Juros bancários limitados nos tribunais brasileiros. Internet:
www.direitobancario.com.br.
PARIZATTO, João Roberto. Multas e juros no direito brasileiro. Ouro Fino: EDIPA. 1999.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros. 1997.
WEDY, Gabriel, O limite constitucional dos juros reais. Porto Alegre: Síntese, 1997.
ZUNINO NETO, Nelson. O limite legal à taxa de juros.
Internet http://jus.com.br/doutrina/juros1.html.
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Revista Jurídica Mater Dei – Volume 2 – Número 2 – jan./jun. 2002 – semestral
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EUTANÁSIA : SUICÍDIO OU DIREITO DE MORRER ?
MARCIA REGINA OCHÔA SENDESKI
ESPECIALISTA EM FILOSOFIA PELAS FACULDADES INTEGRADAS DE PALMAS-PR
– FACIPAL - SERVIDORA DO TRT DA 9ª REGIÃO, LOTADA NA VARA DO TRABALHO
DE PATO BRANCO-PR.
RESUMO – O artigo trata da atual e polêmica problemática da “eutanásia”,
propondo análise filosófica que leve em consideração as debilidades humanas,
bem assim a capacidade racional do ser humano perante elas, ou seja,
verificando-se a “valia da vida”, o respeito à autonomia enquanto direito de todo
ser humano e a consciência e competência para exercer tal direito. Analisa o
texto, ainda, a quem cabe julgar quais são os melhores interesses de alguém
que se encontra enfermo e cogita a possibilidade de praticar a eutanásia,
estabelecendo a necessidade de um Estado democrático respeitar a
individualidade e a liberdade de cada um decidir seu próprio fim, porém, sem
relegar a segundo plano o respeito à vida.
EUTHANASIA: SUICIDE OR RIGHT TO DIE? – ABSTRACT - This article deals
with the current and controversial problematic of euthanasia, and proposes a
philosophical analysis that takes into consideration human debilities as well as
the reasoning capacity of the human being before them, that is, checking the
“value of life”, the respect to autonomy while a right of all human being and the
conscience and ability to exert such right. The text still analyzes to whom it is
appropriated to judge which are the best interests of someone who is infirm and
cogitates about the possibility of practicing the euthanasia, and establishes the
necessity of a democratic State to respect the individuality and the freedom of
each one to decide his/her proper end; however, without relegating the respect to
life to a lower degree.
INTRODUÇÃO
Através do suicídio, o homem, por autoridade própria, “atenta”
deliberadamente contra a sua existência. Denomina-se, também, como desgraça
ou ruína proporcionada ao próprio indivíduo por falta de bom senso.
No entanto, na atualidade, questiona-se e discute-se largamente o
direito que o homem possui de encurtar seu sofrimento, ainda que isso se
restrinja ao plano físico.
Nesse passo, no presente trabalho, delimitam-se alguns prós e contras
que são de relevante importância, quando da análise e julgamento relativamente
à prática da eutanásia.
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SOBRE A EUTANÁSIA
A palavra eutanásia resulta das palavras gregas eu e thanatos que
significam “boa morte”. A eutanásia, então, busca findar a vida de alguém
visando seu bem, o fim de sua agonia.
Ora, uma das maiores preocupações do homem, ao longo de sua
história, se dá, relativamente, ao seu medo da dor e do sofrimento e à sua busca
pelo prazer. É neste sentido que a eutanásia difere das demais maneiras de
extinguir a própria vida.
Especialmente, na cultura contemporânea ocidental, fortemente
influenciada pelo judaísmo e pelo cristianismo, a proibição de tirar a própria vida
reina quase que absoluta perante a santidade, que se impõe à vida humana.
Mas, de acordo com SINGER (1995, p. 405), sabe-se que, “si nos remontamos a
las raíces de nuestra tradición occidental, encontramos que en la Grecia y Roma
antiguas tenían uma amplia aceptación prácticas como el infanticidio, el suicidio
y la eutanasia”.
O avanço da tecnologia incrementou, enormemente, os aparatos
médicos, no que toca aos interesses primordiais do doente, isto é, a
preocupação do homem com o sofrimento e a dor que sofre ou que possa vir a
sofrer se vê aliviada perante os processos modernos utilizados pela medicina.
Por outro lado, os tratamentos modernos podem aliviar a dor, mas prolongam o
período de sofrimento, enquanto que sua interrupção diminui o tempo da
situação de sofrimento, mas melhora a qualidade de vida do enfermo eis que o
mesmo desvincula-se do desconforto causado pelas reações ocasionadas pelos
medicamentos fortíssimos utilizados, podendo-se vislumbrar com clareza uma
situação de duplo efeito.
Contudo, é necessário que se esclareça a validade que a vida possui
por si mesma - independentemente dela servir interesses de algo ou alguém ou,
ainda, quando dela podemos desfrutar e satisfazer necessidades – para que se
compreenda melhor a obrigação da manutenção da vida que muitas pessoas
impõem-se.
Assim sendo, verifica-se a validade subjetiva de algo, quando ele tem
valor somente para quem o deseja, isto é, sua importância é instrumental eis que
atenderá a satisfação de alguma necessidade, é valiosa apenas por este valor.
De outro lado, verifica-se o valor intrínseco de algo quando independe do desejo
ou da satisfação de alguma necessidade, este algo é valioso por si mesmo,
como bem exemplifica DWORKIN (1998, p. 98): “Queremos ver uno de los
autorretratos de Rembrandt porque es maravilloso, y no decimos que sea
maravilloso porque queramos verlo”.
Neste momento, observa-se que, quando vista como intrinsecamente
valiosa, a vida torna-se sagrada, simplesmente pelo fato de existir e por isso
muitas pessoas a defendem e protegem, por acreditarem ser uma desgraça que
uma vida, obra de arte da natureza tão valiosa por si mesma, seja desperdiçada
pelos atos humanos.
Como uma obra de arte, que não deve ser destruída por seu valor
2
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intrínseco, a vida humana, obra de arte da natureza, é, igualmente, inviolável por
sua própria virtude e existência. A arte reflete a história de uma cultura; a vida de
todos os animais, indistintamente, reflete a história da criação da natureza,
entendida como divina. Por conseguinte, considera-se um sacrilégio, algo
intrinsecamente mal, a destruição da vida, seja religiosa, seja secularmente.
Melhor ainda, avaliar subjetivamente uma vida não é o mesmo que valorá-la
intrinsecamente; sendo assim, findá-la prematura e tragicamente é uma
lamentável destruição, muito pior que uma possível destruição da arte ou da
história transformada, através dos tempos, pela própria vida humana, indo, deste
modo, além da validade que uma pessoa dá à sua própria vida; é a validade da
vida humana em si mesma.
A incompreensão da própria criação horroriza o homem no tocante à
destruição intencional da vida, eis que, se vê incapacitado de identificar se o
homem se desenvolve e realiza uma história social e cultural por obra e graça
divina ou meramente evolutiva.
Os defensores da prática da eutanásia apelam à compaixão pelos
doentes incuráveis e sofredores de dores insuportáveis, bem como ao respeito à
autonomia do ser humano. Porém, qual é a decisão correta ? Para responder tal
questionamento, imprescindível faz-se analisar quem deveria decidir e julgar a
prática da eutanásia (vida ou morte), baseada em que condições e exigências e
como deveria ser procedida a revisão da decisão tomada.
Em primeiro plano, pode-se observar uma situação em que o doente
possui plena consciência e competência para decidir e controlar o momento e a
forma de sua morte. Em seguida, verificam-se casos em que o enfermo
encontra-se inconsciente, cabendo ao médico analisar as condições de vida
possíveis a este ser humano e sentenciar a manutenção, ou não, desta vida.
Finalmente, pode-se averiguar, ainda, casos nos quais o doente encontra-se em
um estado de consciência, porém, é um ser incompetente para manter sua
próprias necessidades ou funções.
Nesse passo, é importante respeitar e compreender três questões
fundamentais acerca da opção pela morte, quais sejam: a autonomia, os
melhores interesses e a santidade da vida.
Relativamente à autonomia, pode-se dizer que os defensores da
eutanásia recorrem, fundamentalmente, a este princípio para validar a decisão,
afirmando que a autonomia é um dos principais direitos do ser humano, isto é, é
o direito e a liberdade do homem de definir, por si mesmo, seu destino. Porém, a
autonomia é invocada igualmente pelos opositores à eutanásia, pois, segundo
eles, se liberada e legalizada, pessoas que ainda querem continuar vivendo
seriam privadas. Assim sendo, seria necessário que a eutanásia somente fosse
posta em prática em casos, nos quais, o indivíduo consciente tenha expressado
claramente, mesmo que no decorrer de sua vida (caso de doentes
inconscientes), seu desejo de morrer caso seja afetado por uma doença
incurável e causadora de grande sofrimento e, ainda, que este desejo seja isento
da culpa que o enfermo sente ao ver os altos custos de seu tratamento e a
angústia e sofrimento dos parentes e amigos que lhe dão atenção.
2
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No tocante à questão dos melhores interesses da pessoa doente,
esclarece-se que, muitas outras pessoas julgam como má a opção pela morte
deste doente, porque acreditam que a morte em si é um mal, mesmo que
deliberadamente, agindo, assim, de forma paternalista ao pensarem que
conhecem melhor que o próprio doente o que é melhor para ele.
Entretanto, também pode-se interpretar como um benefício o fato de
deixar que alguém morra ou de proporcionar-lhe a morte, eis que as
circunstâncias não são normais, mas sim marcadas por dor e sofrimento
(SINGER 1995, p. 410).
Com relação à terceira questão, a da santidade da vida, observa-se que
a indagação é feita no sentido de que a eutanásia seria ofensa ao valor
intrínseco da vida, mesmo que respeitasse a autonomia e atendesse aos
melhores interesses do indivíduo, defendendo que a vida deve ser mantida,
apesar de suportar dor e sofrimento, até que se acabe naturalmente. Caso
contrário estaria sendo negado o valor ‘cósmico’ da vida, ou seja, o homem
estaria insultando a doação da vida efetuada por Deus. Esta convicção da
santidade da vida é o mais forte fundamento opositor à eutanásia.
Com efeito, é menos mau manter a vida de alguém, mesmo que afetada
por imenso sofrimento, e mais tarde descobrir, com clareza de evidências, que
ela teria desejado a morte em tal circunstância, que encurtá-la e mais tarde
certificar-se que esta pessoa teria preferido aguardar seu fim natural, mesmo
que marcada por dor e sofrimento.
Em verdade, o que o homem teme com a morte é o esquecimento. A
humanidade vive à sombra da morte, como bem esclarece DWORKIN (1998, p.
259). A morte é o início do nada e, ao mesmo tempo, o fim de tudo, então toda a
gente espera que sua morte tenha a mesma dignidade que havia buscado em
toda sua vida. É o contexto da vida do ser humano que está sendo posto em
voga no momento de se decidir por manter a vida ou antecipar o fim. E é através
deste contexto que se compreende que o homem busca, durante toda a sua
existência, uma vida boa, sem saber ao certo o que é que busca como bom para
sua vida, além de atormentar-se ao se deparar com interesses antagônicos e ter
que optar por um deles como melhor para si. Neste momento o indivíduo deve,
necessariamente, estar isento de qualquer influência e fundamentar-se
unicamente na razão para decidir e acertar a melhor opção.
Por conseguinte, cumpre-se definir se e quando a morte satisfaz os
melhores interesses de alguém. Primeiro deve-se reparar se a pessoa está
pronta para morrer em determinado momento, ou seja, se não há mais nada de
importância para ela que esteja pendente, expressando um sentido de que sua
vida teve valor porque se lhe possibilitou fazer e sentir algo, ou quer viver
enquanto algum sentido ainda lhe reste, deste modo a morte parecerá menos
trágica; por outro lado, algumas pessoas, prevendo sofrimentos futuros,
preferem não permanecer com vida até tal ocorrência (por estas mesmas
razões, pessoas deixam familiares e entes queridos morrerem). Assim como se
elege o melhor modo de se viver, torna-se de suma importância, também, eleger
a melhor morte, pois a dignidade da pessoa está atrelada ao seu auto-respeito.
2
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Como se pode observar, DWORKIN (1998, p. 279) afirma que:
“Por conseguinte, tenemos tanto razones de beneficencia como razones
de autonomía que explican por qué el estado no debería imponer
ninguna concepción general y uniforme mediante una norma imperativa,
sino que debería alentar a que los individuos adoptaran decisiones com
respecto a su futuro por sí mismos y de la mejor manera que puedan.
Explica también por qué, si no han realizado alguna previsión, el
derecho debería, em la medida em que sea posible, dejar las decisiones
en manos de sus parientes o de otras personas cercanas a ellos, cuyo
sentido de lo que constituyen sus mejores intereses –formados por um
conocimiento íntimo de todo aquello que determina um dónde se
encuentran sus mejores intereses- es probablemente mucho más
razonable que cualquier outro juicio universal, teórico y abstracto
emitido em los edificios del gobierno, donde maniobran los grupos de
intereses y se realizan las transaciones políticas.”
No entanto, quando se admite que a razão humana tem o mesmo valor
e importância que a inteligência natural, a eutanásia perde sua carga de
imoralidade e insulto à santidade da vida, pelo contrário, estará, deste modo,
sustentando tal valor, pois o importante é que a vida conduza-se e mantenha-se
de uma forma digna e boa, ou se termine. Não se pode supor que o homem, em
nome da santidade da vida, sacrifique sua existência em meio a sofrimento e
dor.
Deve-se considerar, além de tudo o mais, a autonomia e os melhores
interesses, bem como o valor intrínseco da vida das pessoas afetadas por
demência, verificando-se seu atual estado e sua capacidade, mas também a
história da vida da pessoa que se converteu em demente.
O respeito à autonomia se deve ao fato de que somente a própria
pessoa é capaz de definir o que é melhor para si. Porém, o demente não possui
esta capacidade. Sendo assim, tal decisão caberia ao médico que o acompanha
ou àquela pessoa que cuida o doente habitualmente. Em nenhum dos casos
deve-se agir de forma paternalista, decidindo simplesmente o que se crê melhor
para o enfermo, mas verificando a história de vida desta pessoa defendendo a
decisão que ela tomaria se tivesse autonomia, consciência e competência para
tanto.
De resto, deve-se expor o ponto de vista da dignidade, aqui entendida
simplesmente como um direito que as pessoas possuem de não sofrer
indignidade, isto é: [...] a não ser tratadas de manera que em sus culturas o
comunidades se entiende como muestra de carencia de respeto (DWORKIN,
1998, p. 305), o que causaria um imenso sofrimento mental nas pessoas. A
indignidade rouba o auto-respeito, o amor próprio do indivíduo, podendo, até
mesmo, fazê-lo sofrer mais com tal fato do que com a própria doença.
Respeitar a dignidade da vida da pessoa é reconhecer e confirmar seus
interesses críticos. DWORKIN (1998, p. 309) ressalta a importância do princípio
2
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Kantiano, que rege que deve-se agir: [...] de tal maneira que uses a humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente, como meio (KANT, 1986, p.
69), isto é, não negar a importância das vidas em si mesmas. O fato que
constrange a pessoa demente afeta sua vida como um todo, mas não lhe tira
seu valor intrínseco.
Como se observa, o ser humano busca uma vida digna e, se
atormentado por intenso padecimento, deseja buscar em uma morte rápida um
fim digno, condizente com a vida que procurou levar.
A decisão acerca da eutanásia preocupa muito porque é uma decisão
que afeta a dignidade da vida de cada um dos seres humanos; sendo tal decisão
contrária à vontade de um indivíduo sequer, é o bastante para que se
compreenda que deve ser uma decisão pessoal, não coagida por regimes
jurídicos, muito embora estes regimes salvaguardem as pessoas vulneráveis da
sociedade do abuso e do homicídio injustificado. Segundo NOGUEIRA (1995, p.
57): “O problema da eutanásia é tão polêmico quanto delicado, pois pode
ensejar abusos que desprestigiem a classe média, assim como práticas que
contrariem a própria natureza da boa morte ou piedosa.”
A legalização, ou não, da eutanásia confere um caráter autônomo ao
Estado na deliberação acerca da preservação ou destruição da vida das
pessoas, na defesa dos “melhores interesses” do paciente, enquanto que a
liberdade é prerrogativa essencial do auto-respeito. Uma sociedade democrática,
por sua vez, deve respeitar a liberdade de cada cidadão, decidir por si mesmo,
de cada um eleger a forma de vida (ou de morte) que crê mais digna, criando e
respeitando seus próprios valores.
CONCLUSÃO
Convém ressaltar que, assim como não é mansa e pacífica a
problemática, que envolve o suicídio, tampouco o é a questão da eutanásia, eis
que o debate torna-se ainda mais acirrado por enfocar, como questão principal, a
necessidade de diferenciar o “morrer” do “deixar morrer”, o dar a morte a si
próprio, do facilitar a morte de outra pessoa. De um lado, discute-se o direito que
um cidadão possui de antecipar sua morte, de optar pelo seu fim no momento
em que sua vida deixou de ter dignidade e utilidade e que o sofrimento físico
chegou a um limite insuportável (ou tem-se como certo que chegará
brevemente), apela-se, também aqui, à santidade da vida humana defendendose que esta vida não deve ser sacrificada com o sofrimento. De outro lado,
recorre-se ao valor intrínseco da vida, defendendo-se que, por ser sagrada, a
vida deve seguir seu curso natural, seja com prazeres e deleites, seja com
sacrifícios, dores e sofrimentos, até que a natureza encarregue-se de findá-la no
momento em que ocorrer naturalmente.
Em derradeiro, comporta-se lançar um questionamento tão complexo
quanto os motivos que podem levar uma pessoa ao suicídio: cabe à sociedade,
enquanto detentora da força moral, legislar e dirigir racionalmente os seus
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membros julgando quais são os melhores interesses de cada um, bem como sua
autonomia para optar pela antecipação da própria morte (de um modo
paternalista e considerando conduta culposa do indivíduo, que elege por si só o
suicídio), ou este é um assunto que diz respeito tão somente à pessoa que sofre
qualquer tipo de tormento, a ponto de desejar não estar mais neste mundo da
forma como ele existe e acontece ou que simplesmente não quer mais existir e
fazer parte de tal sociedade?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
• B.S.V. Eutanásia ou suicídio assistido. Disponível em: http://www.jornalismo.com/6bioet.htm
Acesso em: 17 mai. 2001.
• DWORKIN, Ronald. El dominio de la vida. Uma discusión acerca del aborto, la eutanásia y
la libertad individual. Barcelona: Editorial Ariel S. A., 1998.
• KANT, Emmanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1986.
• KOVÁCS,
Maria
Júlia.
Morrer
com
dignidade.
Disponível
em:
http://www.cfm.org.br/revista/bio1v6/autodireito.htm Acesso em: 17 mai. 2001.
• NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da vida. Aborto – Eutanásia – Pena de Morte – Suicídio
– Violência/Linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995.
• SINGER, Peter. Compêndio de Ética. Madrid: Alianza, 1995.
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DESAFIOS PARA A PRODUÇÃO DO
CONHECIMENTO NO ÂMBITO DO DIREITO
ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS
PROFESSORA COLABORADORA NO CURSO DE DIREITO DA UEPG - MESTRANDA
EM DIREITO PELA PUC-PR - ADVOGADA NO PARANÁ.
RESUMO – O texto aborda a produção do conhecimento e suas dificuldades no âmbito
do Direito, afirmando que o Direito está em crise, pois passou a ser um modo de
legitimação do poder, produzindo dominação. A partir daí, a autora questiona o papel do
jurista na atualidade, asseverando ser necessária uma mudança de postura frente ao
Direito e à realidade social, pela qual seja esboçado um “novo Direito”, capaz de cumprir
a função de pacificação social e de justiça para todos. O texto aponta o desafio de uma
concepção de Direito que possa contribuir para a construção de uma “sociedade
solidária”, papel para o qual o ensino jurídico (na graduação e pós-graduação) é
fundamental.
CHALLENGES FOR KNOWLEDGE PRODUCTION IN THE REALM OF LAW –
ABSTRACT – The text approaches the production of knowledge and its
difficulties in the realm of Law and affirms that Law is in crisis for it has turned to
be a way of legitimation of power, producing domination. From this, the author
questions the role of the jurist in the present time and assures to be necessary a
posture change concerning Law and social reality, by which a “new Law” could
be sketched, capable of fulfilling the function of social pacification and justice for
all. The text points out to the challenge of a conception of Law that can contribute
to the construction of a “sympathetic society”, a function to which legal education
(in graduation and post-graduation) is basic.
INTRODUÇÃO
A análise da produção do conhecimento, no âmbito do direito, revelanos que estamos em meio a uma crise. Quando usamos o termo crise, sem
dúvida, o relacionamos à desordem, ao caos. Crise significa que o estado
anterior das coisas está ruindo e a modificação em curso não é clara, no sentido
de revelar onde se irá. Vive-se um momento de incerteza e insegurança.
O direito está em crise assim como a ciência moderna. BOAVENTURA
DE SOUSA SANTOS373 denomina esse momento de ‘intervalar’ assim como a
sociedade atual, eis que é um momento de transição paradigmática.
Realmente, segundo o mesmo autor, “deixou de ser possível conceber
estratégias emancipatórias genuínas, no âmbito do paradigma dominante, já
que, todas elas, estão condenadas a transformar-se em outras tantas estratégias
373
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Vol.
1, São Paulo, Cortez, 2000.
2
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regulatórias.”374
Isso significa que o direito passou a ser um modo de legitimação do
conhecimento/poder, de forma a produzir dominação. Dessa maneira, a
emancipação produzida pelo conhecimento (oriundo da ciência) rendeu-se à
regulação, eis que, como as demais ciências sociais, o direito adotou para si o
modelo epistemológico das ciências naturais, tentando prever o comportamento
e controlá-lo através das leis editadas.
Se também no direito os modelos anteriores revelaram-se ineficazes, é
necessário pensar um ‘novo direito’, capaz de cumprir a promessa de
pacificação social e de justiça para todos. Este é o desafio que se mostra
atualmente.
Com a modernidade, surgiu a idéia de que, a globalização ou
massificação seria benéfica, na medida em que, haveria igualdade de
oportunidade às pessoas (consumo, trabalho, lazer, etc). Porém, a globalização
(ou localismo globalizado375 ) demonstra-se falha, pois o mito das sociedades
homogêneas e estáveis requerem culturas simples, claras e comuns a todos, o
que na prática não ocorre.
Ao contrário, em nosso próprio país, vivemos uma situação de
diversidade cultural, O desrespeito às diferenças sociais e culturais, a
marginalização de formas alternativas de conhecimento e o desprezo aos
costumes locais contribuem para o divórcio entre lei e realidade.
No direito, ainda vivemos resquícios do pensamento positivista e do
aprisionamento do direito, conforme propunha KANT e sua teoria pura, o que
tem contribuído ainda mais para o enclausuramento do direito e sua ineficácia.
Sobre o abandono da neutralidade, CARMIEM LUCIA SILVEIRA
RAMOS376 afirma:
Assumida a ficção deste modo de ver o direito, reconhecida sua
necessária funcionalização ao contexto histérico de uma determinada época,
embora mantida a sua estrutura formal racionalista—liberal na organização do
sistema, não ficou esta isenta de criticas, como ocorre com a denominada e
antes referida descodificação, entendida como o ocaso dos códigos, com sua
pretensão de monossistema, passando para o polissistema, com a gradativa
conquista de espaços pelas leis especiais, centradas na constituição (...) Tratase de um repensar o direito no contexto de uma ordem capaz de vincular lei e
realidade.
O direito não pode separar-se da realidade. Nasce da sociedade e para
ela volta-se, quanto maior a concretude mais eficácia terá.
Mas, pergunta-se, como é possível aproximar-se o direito da realidade
atual?
Acreditamos que, a utilização do senso comum como paradigma
374
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Ob Cit. p. 16.
termo utilizado por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
376
RAMOS. Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In:
FACHIN, Litiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro, Renovar,
1998. p. l3/l4.
2
375
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267
também no âmbito do direito contribuirá de forma considerável para esse fim.
Por senso comum, designou-se “todas as formas de conhecimento que
não correspondessem aos critérios epistemológicos estabelecidos pela ciência
para si própria.”377
Conforme ensina MICHELE TARUFFO378 , “em sentido geral, a noção de
senso comum é tão difusa quanto indeterminada e imprecisa. Ela é
extremamente difícil de definir, inclusive por suas numerosas conotações
filosóficas, sociológicas e até mesmo antropológicas, de modo que não é
possível elaborar uma sua definição com a pretensão a ser satisfatória.
No direito, ainda segundo MLCHFLE TARUFFO379, o senso comum está
presente no raciocínio do juiz, utilizado na interpretação e aplicação das normas
que constituem o fundamento jurídico da decisão, no reconhecimento dos fatos,
que embasam a ação e apreciação da prova (o juiz afere de maneira subjetiva
se uma testemunha é mais credível, se estava trêmula, se parecia nervosa...),
entre outros. Ou seja, o juiz recorre a noções e critérios de caráter extra ou
metajurídico quando sai do mundo da cultura jurídica e extrai elementos do senso comum, o que é visto com dúvidas e incertezas, acreditando-se que haverá
um maior risco de erro.
Porém, acreditamos que esta visão decorre de uma postura positivista
de que a lei deve ser cumprida e não contém falhas, revelando um preconceito
ao senso comum porque não científico.
Mas, se o direito atual não vem correspondendo ao seu papel, é
necessário dispensar o direito e ousar novas alternativas. O recurso a meios
simples e populares, desde a linguagem forense mais clara e acessível, à
redução de custos judiciais e à tentativa de conciliação das partes, em locais
próprios e propícios ao acordo, entre outras medidas, são válidos na medida que
melhor compreendidos pelos consumidores do serviços judiciários, e por isso
com maiores chances de êxito.
Se o processo tem um escopo social, voltado á educação da população
e conscientização dos seus direitos e dos outros, o primeiro passo é analisar o
público alvo e adaptar o discurso jurídico de modo a se fazer compreender.
Outra razão para a adoção do senso comum e de alternativas antes
desprezadas, surge do fato inevitável do juiz encontrar-se, em meio a problemas
novos, e no ponto de encontro de tendências diferentes e conflitantes, para as
quais, muitas vezes, a lei não oferece resposta. Como é sabido, cabe ao juiz a
tarefa de resolver tais conflitos, pois não pode deixar de sentenciar.
Nessa função, uma alternativa viável é o recurso à autopoiese, na
medida em que o próprio sistema fornecerá a solução, realimentando-se da
doutrina, lei e jurisprudência.
Como alerta TERESA ARRUDA ALVLM WAMBIER380, não se trata nem
377
SOUSA SANTOS. Boaventura de Ob Ctt, p 247.
TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Texto extniído de da
inaugural proferida na UFPR em 05.03.01.
379
TARUFFO. Michele. Ob. Cit.. p.7/9.
380
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Fungibilidade de “meios”: uma outra dimensão do princípio da fungibilidade. In Aspectos polémicos e atuais dos recursos civeis e de outras formas de impugnação às
2
378
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de pregar e tampouco legitimar soluções tomadas à margem do ordenamento
jurídico. Trata-se, isto sim, de enxergar como possíveis, e como mais
convenientes em determinados casos, soluções tomadas não com base na letra
da lei, mas com base no sistema: lei, doutrina, jurisprudência, manejados
criativamente.”
O desafio, que enfrentamos é conceber o direito, que poderá contribuir
para a formação de uma sociedade solidária. O direito pode ajudar nessa tarefa,
eis que os operadores do direito são fruto da sociedade e, quanto mais
acostumados ao exercício da solidariedade, durante seu processo de formação,
na mesma proporção atuarão na sua vida profissional.
Acreditamos que, os cursos jurídicos, desde a graduação e pós
graduação — de modo especial, uma vez que destina-se à formação de
educadores — desempenham papel fundamental na produção do conhecimento
jurídico.
Atualmente, a função do jurista tem sido de reprodução do Direito
‘dado’, e não construção de um novo Direito. Conforme afirma ROSALICE
FIDALGO PINHEIRO381 “a idéia que herdamos da modernidade é de que ao
jurista caberia apenas a interpretar e aplicar as normas que lhe são dadas. Sua
atividade estaria restrita a uma mera subsunção, pela qual ele deveria encaixar
os fatos ás previsões normativas, dadas pelo ordenamento jurídico.”
Esta postura tem se mostrado insuficiente, na sociedade, na medida em
que nossos juristas têm se revelado incapazes de acompanhar o
desenvolvimento da sociedade e seus reclamos. A autora acima referida conclui
que “a função do jurista é essencialmente valorativa, impondo-lhe um desafio
neste final de século: não se trata apenas de criticar o Direito vigente, mas de
construí-lo, através de uma ação transformadora. Muito mais do que aplicar e
interpretar as normas, cabe-lhes questioná-las, e se necessário, desviar de sua
aplicação, quando em contradição com os valores fundamentais do homem.”382
Verificamos, então, a necessidade de se reinventar um compromisso
com uma emancipação autêntica, capaz de revelar um senso comum
emancipatório. Esse compromisso está, inevitavelmente, ligado a necessidade
de reinventar o Direito, face o seu papel que pode acabar de vez com a
emancipação, servindo-se de forma opressora, uma justiça para os excluídos e
marginalizados (pobres, negros, mulheres, crianças...)
O Direito pode se converter em uma das melhores vias de acesso da
população na participação ativa na sociedade e nos destinos do país,
transformando a sociedade e atingindo o bem comum. O abandono da ‘pureza’
do direito enquanto ‘forma de alienação’ e o resgate do senso comum enquanto
alternativas válidas, genuínas e pragmáticas — compreensíveis e queridas pela
população — podem constituir uma forma de atingir esse fim.
decisões judiciais. Coord. Teresa Arruda Ahtm W ambter e Nelson Nery Jr., São Paulo, Revista dos Tribunais,
2001, p. 1090.
381
PINHEIRO. Rosalice Fidalgo. Ensino jurídico na graduação: ainda como nossos pais? Modelo, conformismo
e repetição na metodologia do ensino jurídica In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito
civil contemporâneo. Rio de Janeiro, Renovar, 1998. p.2I2/213.
382
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Ob. Cit. - p. 215.
2
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A produção do conhecimento no âmbito do Direito deve nortear-se
desta forma sob pena de converter-se em falácia e nova forma de regulação.
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CAMINHOS E DESCAMINHOS DA SOCIOLOGIA
GUILHERME GERMANO TÉLLES BAUER
PROFESSOR DE SOCIOLOGIA JURÍDICA NA FACULDADE DE DIREITO TUIUTI E NO
CESCAGE. DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA UNIVERSIDADE DE
HEIDELBERG (ALEMANHA)
RESUMO - O texto aborda duas questões principais : primeiro desvendar as
principais causas que contribuíram para a desconfiança em torno do
conhecimento e validade científica da Sociologia. Segundo, demonstrar que o
saber sociológico, apesar dos seus deslizes, pode desempenhar um papel
importante no discernimento da realidade social, contribuindo para sua
transformação.
WAYS AND UNWAYS OF SOCIOLOGY – ABSTRACT - The essay studies two
main issues: first, to unravel the principal causes that have contributed to the
suspicion about Sociology’s knowledge and scientific worthiness. Second, to
demonstrate that sociologic knowledge, in spite of its flaws, might perform an
important role in the understanding of social reality, contributing to its
transformation.
“De mãos dadas com o decair da perspectiva histórica, cresce a
incapacidade de discernimento na Sociologia. Esta se mostra cada vez
mais incapaz de analisar a ordem social existente. (...) Ninguém mais
pode ignorar que a abstração esta se sobrepondo à própria realidade
histórica. Lutas políticas, opressão e mudanças históricas não estão
sendo mais consideradas; repelidas para um segundo plano de um
pensar preponderantemente acadêmico, não fazem mais parte das
categorias sociológicas”. Barrington Moore (1958)
“A maior parte dos debates que ‘fazem as manchetes’ intelectuais de
hoje, nas ciências sociais e mesmo na área de humanidades, é dotada
de forte carga sociológica. Os autores da sociologia foram os pioneiros
em discussões sobre o pós-modernismo, a sociedade pós-industrial e
da informação, a globalização, a transformação da vida cotidiana, do
gênero e da sexualidade, a natureza mutável do trabalho e da família, a
‘subclasse’ e a etnia. (...) A sociologia deveria afiar o seu gume de
vanguarda, à medida que o neoliberalismo desaparece na amplidão,
juntamente com o socialismo ortodoxo”. Anthony Giddens (1996)
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INTRODUÇÃO
Dúvidas e questionamentos sobre a serventia ou necessidade da
Sociologia e/ou da Sociologia Jurídica num curso de Direito, que parecem
persistentemente continuar povoando cabeças de alunos (quando não também
de colegas professores juristas), quase dez anos após a obrigatoriedade de sua
inclusão no currículo, constitui um dos fatores motivadores do presente texto.
Não que se pretenda aqui buscar demonstrar sua pertinência, justificando a
presença do “corpo estranho” da Sociologia na área do ensino jurídico brasileiro.
Esta tem sido tarefa convincentemente desempenhada com muita propriedade
por inúmeros teóricos e pesquisadores, desde pelo menos os trabalhos pioneiros
de Miranda Rosa, Cláudio e Solange Souto, seguidos dos de Joaquim de Arruda
Falcão Neto, José Eduardo Faria, Celso Campilongo, Eduardo de Arruda Jr.,
Eliane Junqueira, Luciano Oliveira, entre tantos outros.
O intuito aqui é bem mais modesto: pretende-se tão somente apontar
para aquilo que pode ter originado o ceticismo, quando não a desconfiança em
relação ao papel e pretensões da Sociologia em suas tentativas de desvendar a
vivência dos homens em sociedade. Acreditamos que as reflexões de uma
sociologia, entendida como análise e avaliação crítica da realidade social, pode
ser de utilidade, contribuindo com seus enfoques, dados e informações, não
apenas para um melhor discernimento da realidade em que vivemos, e desse
modo podendo fornecer aos operadores do Direito, pontos de referência que
possam auxilia-los em suas opções e decisões, 383 mas também em nossas
atuações enquanto cidadãos. Talvez assim, contribuindo para demonstrar a
necessidade de uma melhor aceitação da validade dessa área do saber como
parte do conhecimento acadêmico jurídico.
SOBRE AS ORIGENS DO CETICISMO EM TORNO DO SABER
SOCIOLÓGICO
O ceticismo existente sobre o saber sociológico, questionando-se a
pertinência do conhecimento científico da Sociologia ou da sua validade
enquanto ciência, e, portanto, da relevância dos eventuais resultados de seus
estudos e pesquisas, não constitui novidade para ninguém, pois vem
acompanhando-a desde seus primórdios. Por um lado, esse ceticismo tem sua
origem nos permanentes desencontros entre as várias correntes em que se
subdivide a Sociologia, dada às diferenças na fundamentação teórico filosófica,
383
A observação de Boaventura de Souza Santos em relação aos magistrados, de procurar-se dotá-los “de
conhecimentos culturais, sociológicos e econômicos que os esclareçam sobre suas próprias opções pessoais e
sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem, com vista a possibilitar-lhes um certo
distanciamento crítico e uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício de suas funções num a
sociedade cada vez mais complexa e dinâmica” (Pela Mão de Alice, o social e o político na pós-modernidade,
5ª ed., 1999, São Paulo, Cortez Editora , p. 174) é condizente ao que queremos dizer em relação à
necessidade de “outros” conhecimentos aos operadores do Direito, ultrapassando o que Eliane JUNQUEIRA
(Geléia Geral, In:: Duas Reflexões sobre a Sociologia Jurídica, 2000, Rio de Janeiro: Cadernos do Instituto
Direito e Sociedade, p. 19) denominou de “ensino tecnicista e dogmático do Direito”.
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nos enfoques metodológicos e nas áreas temáticas de pesquisa específicas de
cada uma. Apesar das incessantes tentativas de implantá-la como disciplina
institucionalizada unificada 384 até a década de 60, a preexistente tendência para
a dissensão no campo sociológico, acentuou-se drástica e irremediavelmente a
partir dos anos 60. As várias “escolas” passaram a digladiarem-se cada vez mais
entre si, questionando-se a validade científica do saber uma da outra,
fragmentando-se ainda mais fortemente o conhecimento sociológico. 385
Por outro lado, as dúvidas sobre a Sociologia, são também resultantes
dos desacertos e equívocos iniciais da sua fundamentação e da sua trajetória, a
partir de seu surgimento no decorrer do século XIX, buscando estabelecer-se e
ser reconhecida como ciência.
A Sociologia, quando começa a emergir, o faz ofuscada pela
imponência do saber científico das ciências naturais, que no decorrer dos
séculos XVIII/XIX parecia haver alcançado seu apogeu, aumentando a confiança
do homem em desvendar, controlar e dominar a natureza através do
conhecimento e da razão científica. A enorme difusão das ciências da natureza,
os extraordinários avanços científicos e tecnológicos, com suas aplicações
práticas, revolucionando a vida e o conhecimento dos homens, transformou o
saber científico em um novo demiurgo, como que fazendo coincidir a verdade
com exatidão científica, desocupando cada vez mais o lugar das certezas
religiosas, dos dogmatismos e tradições até então prevalecentes, preenchendo-o
com a razão científica. Estabeleceu-se ali, como pressuposto básico, que
apenas o conhecimento exato e verificável seria científico, substituindo desse
modo, inclusive, a própria autoridade da Igreja, até então predominante, não
apenas como fonte de explicação, mas também de consolo para os homens.
Tudo passava a ser explicado e controlado através da ciência. A partir dessa
visão, considerava-se que só se poderia conhecer cientificamente aquilo que se
mede, compara e experimenta. Fundamento do método científico, portanto, seria
a experimentação alimentada com dados comparativos e fórmulas matemáticas.
É nesse contexto que emerge a Sociologia, aspirando constituir-se
como forma de saber específico e sistemático sobre a vivência social dos
homens, buscando ultrapassar o conhecimento baseado meramente no senso
comum. A Sociologia em gestação como ciência da sociedade, representa a
tentativa de encontrar respostas a problemas e necessidades historicamente
determinados. Surge como produto e resultado da necessidade da própria
sociedade de se entender a si mesma, de enfrentar as amplas, profundas e
aceleradas transformações que estavam revolvendo e afetando drasticamente
as relações e condições sociais prevalecentes nos países que vinham sofrendo
os efeitos da Revolução Industrial. Mas esse saber, para ser reconhecido e
aceito como válido, deveria estar fundamentado em conhecimentos científicos
384
Ressalte-se que, apesar das dificuldades de consenso e profundas diferenças sobre o que seria ou deveria
fazer a Sociologia, os principais iniciadores e porta-vozes da Sociologia como disciplina institucionalizada, entre
outros Durkheim, Simmel, Weber, e mais tarde, sobretudo Parsons, buscaram transformá-la num campo
unificado, “estruturado como um empreendimento coerente delimitado por fronteiras claras e defensáveis”
(LEVINE, Donald N. - Visões da Tradição Sociológica, 1997, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 249).
385
LEVINE, Op. cit., p. 241-293.
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indiscutíveis, como os que pautavam as ciências da natureza.
Dada a reconhecida complexidade dos fenômenos humanos e sociais,
resultantes de fatores os mais diversos e interligados entre si, sejam de ordem
econômica, política, cultural, geo-climática, etc., dificilmente mensuráveis ou
passíveis de controle e identificação, tal como ocorre com os fenômenos
observados, medidos e analisados na natureza, desde o início, a Sociologia veio
enfrentando enormes dificuldades na tentativa de firmar-se como saber científico
dotado de validade e autonomia própria.
Como os pressupostos e os instrumentos das ciências naturais,
constituíam o fundamento do conhecimento científico, os iniciadores da
Sociologia, ansiosos em garantir-lhe um status de cientificidade, buscaram, “de
carona”, utilizar e adequar métodos e técnicas oriundos das ciências da natureza
para analisar a vivência social dos homens, tentando estabelecer regras fixas
nos inter-relacionamentos entre os elementos constitutivos da sociedade.
Considerou-se que a sociedade humana seria regulada também por leis naturais
invariáveis, independentes da vontade e da ação humana, tendendo a uma
harmonia semelhante, supunha-se, à encontrada na natureza. Auguste Comte,
apontado como o pai da Sociologia, tinha como meta criar uma ciência
naturalista da sociedade, buscando explicar o passado, o presente e predizer o
futuro dos homens. Para tanto, recorreu a métodos de investigação da natureza,
utilizados na física, química e biologia, tais como a observação, comparação e
experimentação. Na verdade aspirava a muito mais. Tentou criar através da
Sociologia, um instrumento não apenas de discernimento analítico da sociedade
industrial burguesa em formação, da qual faz a apologia, mas como um
substitutivo das religiões, como uma espécie de cientismo religioso laico,386
orientador e conformador do comportamento humano. Acreditava piamente que
os conflitos sociais, que vinham eclodindo cada vez mais virulentamente nas
sociedades européias em processo de industrialização, seriam meras
excrescências, que seriam eliminados naturalmente pelos avanços tecnológicos
da industrialização, passando a imperar a “ordem e o progresso”. Como se não
bastasse, propugnava ingênua e arrogantemente erigir a Sociologia em nada
menos que o coroamento final, como o ápice de todas as ciências.
Contrapondo-se aos arroubos comteanos, Émile Durkheim, buscando
dar à ciência em gestação um arcabouço científico definitivo, ultrapassou por
certo o conteúdo filosófico teológico de Comte, mas não alcançou reconhecer
outra alternativa para a análise sociológica, senão manter seu método analítico
derivado das ciências naturais para estabelecer regras metodológicas
adequadas para entender e interpretar os fatos sociais, 387 estendendo, como ele
diz, “o racionalismo científico à conduta humana”. Enfim, de um modo geral, as
mais influentes escolas sociológicas européias e, sobretudo norte-americanas,
386
O Brasil, por sinal, foi um dos países, onde a “filosofia positiva” conteana, encontrou um grande número de
adeptos entre as chamadas elites, sobretudo nos meios militares, expressados parcialmente no próprio ideário
republicano.
387
Ver sobretudo DURKHEIM, Émile -“As regras do Método Sociológico”, Coleção Os Pensadores, 1983,
São Paulo, Abril, escrito originalmente em 1895 .
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continuaram persistindo na utilização de preceitos oriundos das ciências naturais
no decorrer das primeiras décadas do século XX.388 Continuou-se insistindo na
prevalência do empirismo metodológico, nas especialidades temáticas
desvinculadas do contexto social global, na aceitação, quando não na defesa
acrítica do status quo,389 deixando transparecer, ainda vez ou outra, a mesma
petulante arrogância em relação a outros saberes, sobretudo na área de
humanas.
Uma exceção a essas tendências foi a Sociologia desenvolvida por Max
Weber,390 por certo das mais criativas e promissoras tentativas de explicação
sociológica, cujo método analítico baseava-se em tentar compreender a
motivação da ação social dos homens, recorrendo não às ciências naturais, mas
à história, à economia, à cultura e religião e ao Direito, como campos de ação
dos homens, buscando dar sentido ao seu agir social. A vasta, mas incompleta
obra de Weber, pode ser considerada como complementar ao pensamento
marxista – enriquecendo-o - na medida em que buscou uma compreensão mais
ampla dos fatores que levaram ao surgimento da sociedade industrial burguesa,
ultrapassando o reducionismo economicista 391 típico dos epígonos marxistas da
época. Todavia, com atuação acadêmica reduzida e intermitente, não alcançou
forjar uma escola com seguidores (como foi o caso de Durkheim e outros) ou
influir então nas tendências prevalecentes.
Algumas outras vertentes européias (francesa, italiana e alemã
principalmente), voltou-se no início do século 20 para um marxismo, muitas
vezes mediado pelo hegelianismo, como fundamentação teórica da análise
sociológica, buscando ultrapassar os impasses e limites da sociologia tradicional,
procurando analisar os fenômenos sociais como decorrentes da totalidade dos
processos e estruturas histórico-econômicas e políticas, sem, contudo alcançar
romper com as desconfianças prevalecentes nos meios acadêmicos,
permanecendo suas influências circunscritas em grande parte aos próprios
círculos de iniciados.392 Os esforços desenvolvidos nos anos 20 até o início dos
anos 30 pelos integrantes da Escola de Frankfurt, servem de exemplo, pois não
tiveram inicialmente maiores impactos fora dos seus próprios muros, inclusive
388
Crítica contundente aos paradigmas dominantes na modernidade, derivados do modelo de racionalidade
científica provenientes das ciências naturais, buscando substituí-lo por um novo e emergente paradigma
embasado no conhecimento-emancipação é explorado na obra de Boaventura de Sousa Santos, sobretudo em
A Crítica da Razão Indolente, Contra o Desperdício da Experiência, 2000, São Paulo, Cortez Editora.
389
A crítica de MOORE, Barrington – Strategie in der Sozialwissenschaft, in: Zur Geschichte der politischen
Gewalt, 1968, Frankfurt am Main, Edition Suhrkamp, escrita originalmente em 1958, sobre os “descaminhos”
empiristas da Sociologia, sobretudo norte-americana, continua atual, mantendo sua validade.
390
A importância de Max W eber para o saber, metodologia e sistematização sociológica, seria mais
plenamente reconhecida e valorizada somente no pós-guerra, principalmente desde a década de 1960. Sobre
a relevância do pensamento sociológico weberiano, ver DIGGINS, John Patrick – Max W eber, a Política e o
Espírito da Tragédia, 1999, Rio de Janeiro, Record; ARON, Raymond – Etapas do Pensamento Sociológico;
GINER, Salvador – Historia del Pensamiento Social, 9ª ed., 1999, Ariel, Barcelona, pg. 613-617 .
391
Ver sobretudo WEBER, Max A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, In: Max Weber, 1985, Coleção
Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural. A complementaridade é abordada por GIDDENS, Antony- Política,
Sociologia e Teoria Social, Encontros com o Pensamento social clássico e contemporâneo, 1998, São Paulo,
UNESP.
392
Suas restritas influências no meio acadêmico, seriam rompidas somente no decorrer do final dos anos 1960
a meados dos anos 80 .
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em função de sua transferência forçada e prematura para os Estados Unidos, ao
buscar refugio no exílio fora da Alemanha nazista.393 Sua fama e influência
ocorreriam apenas a partir dos anos 60, em função, sobretudo, da recepção e
divulgação de seus estudos e análises da realidade social pelo movimento
estudantil.
SOBRE O CRESCIMENTO E RADICALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA
Até os anos 60 a Sociologia permaneceria, sobretudo na Europa, ainda
relegada a um segundo plano no âmbito universitário, como que escondida nas
salas dos fundos de departamentos obscuros, tratada tão somente por alguns
iniciados mais excêntricos, muitos dos quais cultivando a fama de impenitentes
críticos da sociedade de classes. Desde meados daquela década, começa a
transformar-se mais e mais em modismo, sobretudo nos países ocidentais
metropolitanos e também em alguns países periféricos (especialmente na
América Latina), ascendendo a um dos cursos mais procurados pelos
estudantes, sendo que seus expoentes mais críticos, até então não levados
muito a sério fora de seu meio, passam a serem requisitados a opinarem sobre
tudo e todos, transformando-se em gurus da moda. As estantes das livrarias
ostentam e ofertam volumes crescentes de obras sociológicas, principalmente
com cunho histórico e político-econômico. Ocorre um boom da Sociologia. Esse
interesse, contudo, não duraria muito. Desde o final dos anos 80 refluiria
novamente de forma acentuada. Qual a razão dessas oscilações?
O interesse intermitente pela Sociologia tem sido em grande parte
suscitado pela abertura que ela pode de fato nos dar, independentemente das
presunções comteanas, para a compreensão da realidade social em sua
totalidade presente, vinculada ao passado e fornecendo elementos indicativos de
possíveis desdobramentos no futuro. Ou seja, ela não apenas parece, mas pode
oferecer respostas plausíveis aos temas candentes que afligem o homem
moderno. Para entendermos melhor esse seu papel, vale buscarmos situa-la no
contexto em que atingiu seu auge, auxiliando-nos a compreender também o
novo conteúdo da desconfiança com a qual ela é hoje encarada.
Nos anos 60 as sociedades ocidentais deparavam-se com um crescente
mal estar, uma profunda e generalizada insatisfação com seus valores, normas e
instituições, criticando-se suas praticas econômicas, políticas e sociais.
Questionava-se o status quo, a legitimidade das ações governamentais, o
establishment. Era o tempo da Guerra do Vietnã, em que um pequeno, pobre e
subdesenvolvido país enfrentava vitoriosamente a nação mais rica e poderosa
da terra. Era o tempo em que proliferavam as ditaduras militares na América
Latina e descobriam-se os experimentos na área educacional e de saúde em
Cuba, o heroísmo de seus revolucionários, com o Che pleiteando o alastramento
da Revolução via movimentos de guerrilha no 3° Mundo. A China era sacudida
pela “Revolução Cultural”, derrubando mitos, pedestais e autoridades. Os
393
Sobre a Escola de Frankfurt, ver o estudo de W IGGERSHAUS, Klaus – Die Frankfurter Schule, Geschichte,
Theoretische Entwicklung, Politische Bedeutung,1988 Munique, DTW Wissenschaft.
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exemplos vinham dos países pobres e subdesenvolvidos, que estavam
elaborando teorias explicativas convincentes sobre as causas do
desenvolvimento dos países ricos e do subdesenvolvimento dos países
periféricos, decorrentes das relações de dependência.394 Aos jovens, tudo
parecia ser possível de ser alcançado (“a imaginação no poder”), coincidindo
com a contestação radical ao establishment nos maiores centros universitários
ocidentais, atingindo seu ponto alto com os estudantes franceses de Nanterre e
Paris, fazendo a França parar em maio de 68. Como num rastilho de pólvora, o
movimento estudantil, em boa medida encabeçada por estudantes de sociologia,
395
espalhava-se mundo afora, empunhando a bandeira da luta contra o status
quo, fosse da própria universidade ou da sociedade como um todo.
Apontava-se para o autoritarismo prevalecente na sociedade, nas
universidades e no seio das famílias. Queria-se entender e transformar a
sociedade, o Estado, as relações sociais em crise. A Sociologia, absorvendo de
forma eclética os saberes de outras áreas do conhecimento como economia e
história, vinha discutindo ha tempos esses temas, emergindo desse modo como
o único saber que poderia fornecer amplos conhecimentos e explicações sobre o
que estava ocorrendo: sobre o funcionamento da sociedade, sobre os interesses
que movem o Estado e a economia e os inter-relacionamentos sociais,
desnudando suas raízes. Sendo uma época de contestação, de questionamento
do status quo, ocorria uma notável insatisfação e desconfiança com o conteúdo
e aplicação das ciências em geral. Questionava-se não somente a relevância
social delas, como também seu grau de utilidade, ou melhor, em beneficio de
quem esta ou aquela ciência estava sendo praticada. Como a religião, apontada
como caminho e fundamento de orientação para a vida, perdia sua força e
influência, sobretudo entre os jovens rebeldes, do mesmo modo que a filosofia e
a educação clássica, com suas concepções idealistas do mundo, tinham suas
interpretações da realidade desacreditadas, encaradas com desconfiança,
quando não com desdém, é nesse vácuo que a sociologia, assumindo um viés
crítico, iria entrar, transformando-se como numa espécie de panacéia, um
receituário “definitivo” para desvendar e enfrentar os problemas sócioeconômicos e políticos que caracterizavam as repressivas e injustas sociedades
de classe. E de fato, as manifestações mais eloqüentes e convincentes de crítica
à universidade e à própria sociedade, tanto na França, nos EUA, Alemanha,
como também na Polônia e Tchecoslováquia, partiam justamente dos
departamentos de Sociologia.396 Os instrumentos e elementos da crítica eram
buscados, sobretudo na Sociologia, que, via H. Marcuse,397 redescobria Marx,
394
O enfoque ou teoria da dependência elaborada na América Latina obteve enorme influência nos debates
travados nas universidades européias e norte-americanas, sobretudo na década de 70. Sobretudo os textos de
Theotônio dos Santos, Rui Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso, serviam amplamente de embasamento
teórico para as discussões e elaboração de textos e teses. F.H. Cardoso, um dos mais importantes teóricos da
dependência, foi então, não por acaso, escolhido por duas vezes para presidir a Associação Internacional de
Sociologia.
395
Ver RÜEGG, Walter – Soziologie, 1969, Frankfurt am Main , Fischer Bücherei – Funk-Kolleg, p.: 13.
396
RÜEGG, Op.cit., p. 13-21.
397
A influência de Herbert Marcuse, filósofo egresso da Escola de Frankfurt, no movimento estudantil norte
americano e europeu foi enorme, graças, sobretudo aos textos Ideologia da Sociedade Industrial (1982, Rio de
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assimilando e adequando os enfoques do marxismo, integrando-o a analise
crítica da sociedade, e à própria Sociologia. 398 Acreditava-se que a Sociologia
reformulada, passando a analisar a totalidade das formações sociais, forneceria
a chave não apenas para a sua compreensão, mas também de sua
transformação.
Porém, a aspirada e esperada Revolução não chegou e sequer as
sociedades e economias capitalistas acabaram em crise. Ao contrário, os rearranjos do sistema econômico mundial, possibilitaram uma nova fase de
acumulação – a globalização 399 - que, se por um lado, contribuiu para a
derrocada do comunismo realmente existente e o drástico agravamento dos
problemas do subdesenvolvimento nos países periféricos, criou riquezas e
contradições inimagináveis nos países centrais, esvaziando e colocando em
crise as formas tradicionais de mobilização e contestação. Nesse meio tempo, a
Sociologia iria perder novamente seu élan, mas adquirindo e mantendo sua nova
fama, agora de contestadora impenitente, mesmo que sem muito fôlego. Ou
seja, a Sociologia, que passara a assumir um papel de ator político, intervindo e
atuando na realidade social, não teve como corresponder a essa pretensão.400
Seria mesmo esse o seu papel? Até que ponto não estaria, desse modo,
reassumindo os infantilismos das pretensões comteanas? Ou correndo o risco
de transformar-se, na verdade, num instrumento de manipulação social e
política, como o utilizado nos regimes totalitários? Enfim, a Sociologia, como o
rei nu, encontra-se ainda hoje em permanente crise existencial.401
SOBRE O PAPEL, FUNÇÃO E IMPORTÂNCIA DA SOCIOLOGIA
Entre o final dos anos 60 até meados da década de 80, criou-se, uma
enorme expectativa, indevida, como sabemos hoje, em torno do saber
sociológico, que poderia proporcionar, supunha-se, os esclarecimentos
almejados, tanto em torno da sociedade como um todo, como se alçando a um
novo papel, uma espécie de ciência para crises, pela qual as manifestações de
crise seriam abordadas, compreendidas, controladas ou, para alguns, até
acirradas. Almejava-se a elaboração de uma teoria social que projetasse novas
formas de ordenamento social. E como a Sociologia recorre usualmente a outras
áreas do saber, ela passaria a fornecer conhecimentos não abordados
normalmente nas áreas específicas da economia, ciência política, história,
Janeiro, Zahar) e Repressive Toleranz (In: WOLF, Robert P., MOORE, Barrington e MARCUSE, Herbert – Kritik
der reinen Toleranz, 1966, Frankfurt am Main, Edition Suhrkamp), lidos e discutidos avidamente.
398
Exemplar dessa tendência, no âmbito da Sociologia na Alemanha Federal são os textos contidos em
SCHÄFERS, Bernhardt – Thesen zur Kritik der Soziologie, 1969, Frankfurt am Main, Edition Suhrkamp 324.
399
Ver, sobretudo CHESNAIS, François – A Globalização e o Curso do Capitalismo de fim de século,
Economia e Sociedade nº5, dezembro1995, Campinas; como também BECK, Ulrich – Was ist Globalisierung
? , 1997, Frankfurt am Main, Edition Zweite Moderne – Suhrkamp.
400
Max W eber, quase no final de sua vida (1919 e 1921), tratou em dois textos fundamentais a questão da
diferença entre ciência como profissão e política como profissão (WEBER, Max – Ciência e Política: duas
vocações, 1970, São Paulo, Cultrix) e que podem servir como parâmetro para o que estamos expondo.
401
O diagnóstico do sociólogo Randall Collins (citado por LEVINE, Op. cit., p.:256) é taxativo: “Perdemos toda a
coesão como disciplina, estamos nos desintegrando em um conglomerado de especialidades, seguindo cada
uma seu próprio caminho e nenhuma delas mostrando um respeito muito grande pelas outras”.
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educação, direito, etc., complementando-os (Conte novamente?).
Na verdade, por maior importância que queiramos dar ao conhecimento
sociológico, que interpretamos como um saber essencialmente crítico402, e que
consideramos, independentemente de seus deslizes, efetivamente como
fundamental para apreender e analisar a realidade social, a Sociologia constituise em uma das áreas do conhecimento social, emparelhando-se ao lado de
outros saberes, se bem que os absorvendo e integrando-os em sua análise,
contribuindo desse modo, aí sim, para o conhecimento e interpretação da ação
do homem na História, na Política e na Economia (e naturalmente, no próprio
Direito).
De fato, a Sociologia busca fornecer subsídios e instrumentos
adequados para entender e interpretar a sociedade, suas instituições, os
relacionamentos e conflitos que advém da vivência social dos homens, visando
enriquecer o conhecimento e incentivando a percepção e sensibilidade social.
Procura, nesse sentido, incentivar um espírito mais crítico, consciente e não
dogmático, formando cidadãos, senão com engajamento social, ao menos mais
atentos e sensíveis aos problemas e questões existentes na sociedade,
compreendendo o papel do cidadão na manutenção ou ruptura do status quo.
O campo da Sociologia, como aqui entendido, trata dos fenômenos e
acontecimentos sociais, pesquisando e analisando as condições e relações
sociais que emergem e influenciam o comportamento e ação social dos homens.
Nesse sentido, é uma ciência empírica, buscando sistematização, sem deixar de
ser histórica, analisando criticamente a ação social, suas formas e
desdobramentos, os inter-relacionamentos entre os homens e os efeitos desses
inter-relacionamentos sobre a realidade humana passada e presente. Para tanto,
exige um processo analítico permanente da realidade, considerando suas
particularidades, inseridas num contexto histórico global. Ou seja, os fenômenos
sociais não ocorrem isoladamente, de forma independente, como dádivas
divinas. Mas sempre interdependentes de fatores econômicos, políticos, sociais
e culturais. Ao analisar-se a realidade sócio-econômica ou política, não se pode
observá-la estaticamente, congelada no tempo, mas sempre em relação ao
processo histórico de mudança e transformação. Entende-se que o presente é o
devir do passado, um passado que terá de ser reconhecido e analisado, para
melhor conhecer e entender o presente, e até mesmo para poder indicar, como
processos detectados no presente, poderá desenvolver-se ou influir no futuro.
A sociologia propõe-se, portanto, a buscar compreender a sociedade, a
ação dos homens vivendo em sociedade. Busca descobrir semelhanças e
diferenças, contigüidades, causalidades, interação e inter-relações entre fatores
e atores sociais, tentando vislumbrar uma ordem, uma lógica, um sentido no
caos que constitui a vida em sociedade. Apenas a partir dessa compreensão, do
conhecimento da realidade e suas contradições, será possível ao homem poder
atuar, agir sobre o mundo, pois passa a deter os conhecimentos necessários
para sua transformação.
402
Sobre a Sociologia crítica, produto dos ventos de 68, ver acima.
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A busca do conhecimento, o pensar sobre o que ocorre, pressupõe
haver um mínimo de regularidade nos acontecimentos. Que haveria causas,
fatores que impelem, que possibilitam, que adequam os acontecimentos, que
influenciam o agir, a ação humana. Ou seja, que na vivência dos homens em
sociedade ocorrem padrões e uniformidades no comportamento e ação humana,
que se modificam, transformam-se, adequados à interação das pessoas, grupos
e classes sociais (exemplo: as modificações ocorridas no papel e
comportamento das mulheres nos últimos 20 anos) de acordo com novas
necessidades decorrentes de mudanças estruturais e culturais na sociedade403.
As sociedades humanas não são entidades estáticas, organismos
parados no tempo. Sem uma compreensão mais clara de como a sociedade
transforma-se historicamente, como agem os atores sociais, que fatores internos
e externos influenciam suas ações, quais as interdependências sociais e
econômicas existentes, dificilmente iremos poder entender e modificar os
entraves que impedem o caminhar rumo a uma sociedade mais justa, onde
possam prevalecer mais efetivamente os direitos humanos.
Fornecer essa compreensão constitui hoje, como ontem o principal
papel e função da Sociologia. E é nesse sentido que poderá ser de utilidade para
os operadores do Direito, que diferentemente dos sociólogos, de fato intervem
na realidade.
403
Ver nesse sentido, a primeira parte do texto de FUKUYAMA, Francis – A Grande Ruptura, a Natureza
Humana e a Reconstituição da Ordem Social, 2000, Rio de Janeiro, Rocco. Fukuyama aponta para as
transformações profundas nas regras, normas e valores que vem ocorrendo nas sociedades ocidentais
metropolitanas em decorrência da transição da era industrial para a era da informação, ocasionando o que ele
denomina de “grande ruptura”. Apesar de seu deslumbramento apologético da sociedade norte-americana,
Fukuyama consegue distinguir e correlacionar fatores importantes em processo de transformação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O CASAMENTO E O “DESCASAMENTO” CIVIL E RELIGIOSO
GENÍRIO JOÃO FÁVERO
PROFESSOR NA FACULDADE MATER DEI - BACHAREL E LICENCIADO EM
FILOSOFIA PELA FAFI (VIAMÃO-RS) - BACHAREL EM DIREITO PELA PUC-PR CURSO DE TEOLOGIA NO SEMINÁRIO MAIOR DE VIAMÃO-RS - ESPECIALISTA EM
ENSINO TECNOLÓGICO PELO CEFET-PR - PROFESSOR DE FILOSOFIA NO
CEFET.
RESUMO – O texto analisa as origens da dissolução jurídica do matrimônio no
Brasil, em contraste com o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial
emanado do Direito Canônico. O autor estuda as hipóteses de nulidade do
casamento decorrentes do Direito Canônico e do Direito Civil brasileiro.
CIVIL AND RELIGIOUS MARRIAGE AND “UNMARRIAGE” - ABSTRACT –
The essay analyses the judicial dissolution of marriage in Brazil, in contrast with
the matrimonial bond indissolubility principle originated from Canonic Law. The
author studies null marriage hypothesis derived from Canonic Law and brazilian
Civil Law.
Foi num momento especial da vida brasileira, que o casamento civil
deixou de ser indissolúvel, tornando-se dissolúvel, com a introdução da
separação e do divórcio, pela Lei nº 6.515, promulgada em 26 de dezembro de
1977. Foi uma luta de quase 50 anos do senador Nelson Carneiro, hoje, falecido.
As igrejas, em particular, a Católica, sempre posicionaram-se contra a
dissolução do casamento civil e religioso. Num lapso pequeno de tempo, durante
o período militar, a necessidade de dois terços para a aprovação de leis, foi
alterada para a maioria simples de votos: cinqüenta por cento, mais um.
Novamente, Nelson Carneiro, apresentou seu projeto, e desta vez
conseguiu a aprovação: o casamento civil não era mais indissolúvel na maior
nação católica do mundo. Mas, o casamento religioso continua, “até que a morte
os separem”.
A Lei Canônica, contudo, tem exceções, que permitem a “dissolução” do
casamento realizado na igreja. O católico, também, em determinadas ocasiões
poderá “dissolver” seu casamento religioso. A lei tem a sua flexibilidade. Mas, a
Igreja não admite o segundo casamento, pois em sentido “stricto sensu” não há
dissolução ou anulação do casamento religioso. Este é declarado não existente,
isto é, nulo ou inválido. Na Igreja dos Papas ninguém casa duas vezes. Se
declarado nulo o casamento, este não existiu. Pode um casal, já, com vários
filhos ter o seu casamento declarado invalido e casar, agora, validamente. Por
isso não há dissolução do casamento em seu sentido formal.
O Direito Canônico da Igreja dos Papas, permite que o casamento
possa ser declarado nulo ou inexistente, em casos como: impotência, rapto, na
consangüinidade e afinidade em linha reta, em caso de ordens religiosas e nos
diversos vícios de consentimento como:
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Cânon ou artigo, 1095: “São incapazes de contrair matrimônio:
1º - Os que não tem suficiente uso da razão;
2º - Os que tem grave falta de descrição de juízo a respeito dos direitos
e obrigações essenciais do matrimônio, que se devem, mutuamente,
dar e receber;
3º - Os que são incapazes de assumir as obrigações essenciais do
matrimônio, por causas de natureza psíquica.”
Prossegue o Direito Canônico, nos artigos :
1096, Parágrafo 1º - “Para que possa haver consentimento matrimonial,
é necessário que os contraentes não ignorem pelo menos, que o
matrimônio é um consórcio permanente entre homem e mulher,
ordenado à procriação da prole por meio de alguma cooperação
sexual;”
Parágrafo 2º - “Essa ignorância não se presume depois da puberdade.”
1097, Parágrafo 1º - “O erro de pessoas torna inválido o matrimônio.”
1098, “Quem contrai o matrimônio, enganado por dolo, perpetrado para
obter o consentimento matrimonial, a respeito de alguma qualidade da
outra parte, e essa qualidade, por sua natureza, possa perturbar,
gravemente, o consórcio da vida conjugal, contrai, invalidamente.”
1099, “O erro a respeito da unidade, da indissolubilidade ou da
dignidade do matrimônio, contanto que não determine a vontade, não
vicia o consentimento matrimonial.”
1101, Parágrafo 2º - “Contudo, se uma das partes ou ambas, por ato
positivo de vontade, excluem do próprio matrimônio, algum elemento
essencial do matrimônio ou alguma propriedade essencial, contraem,
invalidamente.”
1102, Parágrafo 1º - “Não se pode contrair, validamente, o matrimônio
sob condição de futuro.”
1103, “É inválido o matrimônio contraído por violência ou por medo
grave proveniente de causa externa, ainda que não dirigido para
extorquir o consentimento, quando, para dele se livrar, alguém se veja
obrigado a contrair o matrimônio.”
O artigo 1108, considera válido o matrimônio se for perante pessoa
legitimamente constituída e “além disto perante duas testemunhas”.
São os casos mais freqüentes de declaração de nulidade dum
casamento ou não existente, podendo contrair validamente uma união definitiva.
Como se observa os vícios, que tornam nulos os casamentos religiosos
são os mesmos que acontecem em todas as legislações do mundo.
Portanto há ocasiões, em que os casamentos religiosos, são nulos,
podendo existir a separação de fato e um casamento, válido.
Os principais vícios, que tornam os casamentos religiosos, às vezes,
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com suas exceções específicas, são: o medo, a ameaça, a simulação, a
violência, a idade insuficiente, doença mental, erro de pessoa, ignorância
essencial sobre a natureza do matrimônio.
Se algum vício de consentimento ou condições deprimentes estiverem
presentes, este casamento, na realidade não existiu: pode ser declarado inválido
ou nulo. Nestes casos as partes poderão contrair, validamente, casamento
religioso. Isto acontece, portanto, quando o primeiro ato religioso for declarado
nulo ou inválido, por não existente.
O órgão eclesial competente para isto é o Tribunal Eclesiástico, com
sede em Porto Alegre - RS, para os três Estados da região Sul. Os processos
são encaminhados nas respectivas Dioceses locais, e estas os enviam a este
Tribunal, que é legítimo para analisar e sentenciar sobre casamento religiosos
passíveis de serem declarados nulos ou inexistentes. Portanto não existe a
anulação de casamentos religiosos no direito canônico, mas, somente a
declaração de que não existiram desde o início, por algum dos impedimentos
previstos na legislação canônica.
Não há como vimos separação judicial ou divórcio, como acontece nos
países onde vigoram estas leis.
Há Igrejas, que admitem a separação e o divórcio, e quando isto
acontece, o fazem dentro de seus cânones religiosos ou simplesmente, admitem
o fato, acontecido no civil e procedem a um novo casamento religioso. Cada
crença tem seus privilégios doutrinais ou filosóficos para tanto.
Algumas confissões religiosas partem do princípio da predestinação ou
pré-ciência divina. São razões válidas para as mesmas : Deus já sabia que este
casamento não iria “dar certo” em seus desígnios eternos ou na sua onisciência.
O novo casamento é portanto a busca do par perfeito, que nem sempre, pode
acontecer no primeiro casamento. É uma outra oportunidade de ratificar uma
união querida por Deus.
Na Igreja Católica, a nova união, somente acontece, se a primeira união
for declarada nula, por algum dos motivos previstos no direito canônico, quando
então, há declaração de que a primeira união, não existiu, por ser nula ou
inválida.
Portanto, inicialmente, devemos constatar:
Não há, pelo direito canônico, separação;
Não há divórcio ou desquite;
Não existe a anulação do casamento religioso.
Somente através de uma DECLARAÇÃO DE NULIDADE do ato
religioso, através de processo, é que poderá contrair, validamente, com outro
ato religioso, o seu casamento, válido, e único.
O direito canônico é taxativo em suas exigências, por motivos doutrinais
ou por costumes reiterados e aceitos através dos séculos. Estabelece:
Cânon ou art. 1050: “As propriedades essenciais do matrimônio são a
unidade e a indissolubilidade que, no matrimônio cristão, recebem firmeza
especial em virtude do casamento.”
Art. 1057, Parágrafo 1º: “O matrimônio é produzido pelo consentimento,
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legitimamente, manifestado entre pessoas, juridicamente hábeis. Esse
consentimento não pode ser suprido por nenhum ser humano.”
Parágrafo 2º: “O consentimento matrimonial é ato de vontade pelo qual
o homem e a mulher, por aliança irrevogável, se entregam e se recebe,
mutuamente para constituir o matrimônio.”
Por unidade, entende-se a impossibilidade de uma pessoa ficar ligada,
simultaneamente por dois vínculos conjugais e a impossibilidade de dissolução,
se contraído, validamente. O novo ato religioso, pode acontecer, pela morte de
uma das partes. Há a exclusão da possibilidade de vários vínculos sucessivos,
como no civil, com outras pessoas, após uma anulação juridicamente possível.
Só existe um único casamento na religião católica: um segundo somente existirá
se houver a declaração de nulidade do primeiro, que será declarado inexistente.
No civil, poderá existir vários casamentos válidos.
Mas, existe a possibilidade de declarar nulo o primeiro ato religioso, por
muitas razões previstas nos cânones.
Tanto no civil, como no religioso, o casamento, faz do consentimento, o
único elemento intrínseco e constitutivo dessa união. A nova reformulação da
legislação considera, portanto,
o consentimento, a causa eficiente do
matrimônio, sendo as restantes exigências apenas condições para o mesmo,
como as testemunhas.
Ninguém pode pelo direito natural, ser privado, absolutamente, de poder
contrair o matrimônio. Na lei canônica, como vimos há causas impeditivas de
realização do casamento, como, impotência, os celibatários profissionais
(padres, freiras), quando houver vícios de consentimento, e outras, que
determinam a não consumação de união, tornando a mesma passível de
declaração de nulidade: inexistente.
Sobre a idade canônica para contrair o matrimônio:
O art. 1083, Parágrafo 1º: “O homem antes dos dezesseis anos
completos e a mulher antes dos quatorze, também, completos, não pode contrair
matrimônio válido.”
No direito brasileiro, estabelece-se, respectivamente: 18 anos para o
homem, e 16 anos para a mulher.
o art. ou cânon 1085, no seu Parágrafo 1º, estabelece: “Tenta,
invalidamente, contrair matrimônio, quem está ligado pelo vínculo de matrimônio
anterior, mesmo que este matrimônio, não tenha sido consumado.”
E, no seu Parágrafo 2º, sentencia: “Ainda que o matrimônio anterior
tenha sido nulo ou dissolvido por qualquer causa, não é lícito contrair outro,
antes que conste, legitimamente com certeza a nulidade ou a dissolução do
primeiro”.
O cânon 1089 diz ser inválido o matrimônio, quando a mulher for
raptada, mas, admite-se caso houver consentimento manifesto, posteriormente.
Na linha de consangüinidade, também o casamento é nulo (art. 1091),
bem como descendentes e ascendentes e entre colaterais, até primo-irmãos. A
afinidade em linha reta torna nulo o matrimônio, em qualquer grau (art. 1092).
Isto, entende-se, também ao dito, parentesco legal: entre adotivos.
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DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Em nossa lei existe a separação judicial e o divórcio, regulamentado
pela Lei 6.515 de 26 de dezembro de 1977.
Já no seu artigo 2º, lemos: “A sociedade conjugal termina:
I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio.”
A Igreja Católica opõe-se aos dois últimos itens e determina que o
casamento é indissolúvel. Também, opõe-se à anulação do matrimônio, pois,
somente admite a declaração de nulidade, por não ter existido.
O artigo 145 do Código Civil, estabelece: “É nulo o ato jurídico:
I - quando praticado por pessoa, absolutamente, incapaz;
II - quando o objeto é ilícito ou impossível;
III - quando não revestir forma prescrita;
IV - se preterida formalidade e quando a lei assim o declare ou negar
seu efeito.
Em nosso direito, o matrimônio, pode ser anulado.
O artigo 147 do mesmo Diploma Legal, estabelece:
“É anulável o ato jurídico”: por incapacidade relativa do agente; por vício
resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude.
No direito pátrio, portanto o casamento também inexiste, por ser nulo
em certas circunstâncias. Ao passo que nos cânones, há declaração de
que o casamento não existiu, simplesmente.
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