as fontes ínfimas da historiografia. remissões para a tradição oral

Transcrição

as fontes ínfimas da historiografia. remissões para a tradição oral
AS FONTES ÍNFIMAS DA HISTORIOGRAFIA.
REMISSÕES PARA A TRADIÇÃO ORAL
EM TEXTOS DE MATRIZ AFONSINA *
ISABEL
DE
BARROS DIAS
Universidade Aberta e CEIL (UNL-FCSH)
——
É
SABIDO QUE A cultura medieval classificou as fontes que manejou de acordo com
uma escala de valoração que começava nos textos bíblicos, considerados como os
mais autorizados, e descia até aos apócrifos, mais duvidosos. Ironicamente, o decreto
conhecido como Pseudo-Gelásio, elemento de referência deste sistema, é ele próprio uma
falsificação. No entanto, este documento foi acreditado e respeitado. Por conseguinte, devemos
considerá-lo pela dimensão que teve como Autoridade norteadora do discurso medieval.
A escala de valoração de fontes específica da Estoria de Espanna afonsina já foi estudada, tendo-se verificado a importância dada aos diferentes testemunhos no processo de
composição textual. De acordo com estas pesquisas1, esta escala começaria com o Toledano e respectivas glosas, prosseguia com a articulação (ou não) com a informação reportada pelo Chronicon Mundi de Lucas de Tui e só então se completava o relato com outras
fontes, ou eruditas, ou cantares e lendas, e se procurava harmonizar toda a informação.
São estes os dois grandes contextos, um mais geral, o outro mais particular, que temos
de ter presentes ao abordar e reflectir um pouco sobre aquelas fontes que frequentemente
são classificadas como «desacreditadas» e «desvalorizadas», com base em algumas observações bastante hostis existentes na historiografia afonsina (sobretudo na versão crítica da
EE) e, consequentemente, em textos posteriores, seus derivados. Estas acusações são realmente bastante violentas e dirigem-se contra testemunhos da tradição oral, «cantares» e
«gestas», mimoseados com interpelações como a seguinte:
Algunos dizen en sus cantares de gesta que fue este Bernaldo fijo de doña Trabor hermana
de Carlos el Grande rrey de Francia, […]. Mas esto non podrie ser. Et por esto, non son
* A argumentação apresentada no presente artigo decorre de um estudo mais amplo, em publicação.
1. Ver Catalán (1992, cap. I: 5 e cap. II: 2) e Fernández-Ordóñez (1993, 1993-94, 1999: 117 e 2000a: 75).
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de creer todas las cosas que los omnes dizen en sus cantares, ca la verdat es segunt que
vos auemos ya dicho, segunt que fallamos en las estorias verdaderas, las que fizieron
los omnes sabyos (V.Crit1: 461).
Apesar do indiscutível carácter crítico destas observações, penso que elas merecem ser
objecto de uma reflexão que vá um pouco além da leitura de superfície que se limita a
concluir que os cantares e gestas eram menosprezados por Afonso X e seus colaboradores.
O primeiro passo desta reflexão consiste na obrigatória visão de conjunto, o que nos
permite perceber qual é a distribuição deste tipo de objecções. O resultado revela que as
interpelações contra cantares e gestas se concentram em momentos muito concretos. No
caso do trecho que vai desde o início da Reconquista cristã até ao reinado de Afonso VI,
a grande maioria das ocorrências coincide no excerto que narra a história de Bernardo do
Carpio, segue-se o momento da morte de Fernando I e as subsequentes lutas fratricidas
e, em menor escala, a passagem sobre a morte do infante Garcia. Torna-se assim evidente
que nem tudo o que foi recolhido da tradição épica e romanesca foi objecto de crítica por
parte da Estoria de Espanna.
Na sequência desta primeira constatação, o passo que se segue é a verificação do contexto
em que as observações críticas são produzidas e, em particular, o assunto alvo das críticas.
No caso da história de Bernardo do Carpio, as invectivas dirigem-se contra a chamada
«versão francesa» deste relato2. Esta parcialidade já foi notada e assinalada em diversos
estudos3. Porém, além da animosidade geral contra as informações desta versão francesa,
a crítica mais feroz4 indica-nos o que está aqui verdadeiramente em causa: a necessidade
de contrariar a ideia de que foi Carlos Magno quem libertou o caminho de Santiago e que
2. Defourneaux (1949) identifica os principais elementos que caracterizam esta versão francesa ou carolíngia. Para uma ideia geral sobre as diferenças entre versões, no que à história de Bernardo do Carpio se refere, Fernández-Ordóñez (1993: 152 e sgts. e 178-185) analisa a reforma profunda realizada pela versão crítica. Veja-se também
Catalán (1997: 213-216 e 270-271 e 2000: 22-29 e 67-75) ou Pattison (1983: 11-22).
3. Sobre a reestruturação da história de Bernardo do Carpio e a oposição à versão francesa, ver FernándezOrdóñez que sublinha, na esteira de Horrent (1951), que um cantar anti-Roncesvales terá evoluído para um
cantar de Bernardo do Carpio. Este último é preferencialmente recolhido nas histórias latinas do Tudense e do
Toledano e prosificado na EE. Porém, estas obras também teriam conhecido a versão carolíngia (FernándezOrdóñez, 1993: 149, 155, 157). Para uma visão geral das tradições e manipulações cronísticas desta história, ver
Fernández-Ordóñez (1993: 144-157 e 178-185), bem como Catalán (2000: 83 e sgts), que comenta a reacção
nacionalista de Rodrigo de Toledo contra as épicas «francesas», e ainda Franklin (1937).
4. «Agora sabet aqui los que esta estoria oydes que, maguer que los juglares cuentan en sus fablas et
en sus cantares de gesta que Carlos conquirio en España muchas çibdades et muchos castillos, et que ouo y muchas
lides con moros, et que desenbargo el camino françes desde Francia fasta Santiago, esto non puede estar, fueras
tanto que en Cataloña conquirio Barçilona, Geronda et Ausona et Vrgel con sus terminos, e lo al que chufan ende
non es de creer. E asy como oydes, non conquirio el otras çibdades nin otros lugares ningunos en España,
sy non estas tan sola mente que auemos dichas, ca Tarragona, que era destroyda estonçe aquella sazon, como
falla omne en el rregistro del papa Vrban el segundo. (…) Todas estas conquistas fueron fechas de dozientos
años aca, pues non veemos nin fallamos que Carlos ganase ninguna cosa en España, ca byen a quatroçientos años
que el muryo. (…) Pues mas deue omne creer a lo que semeja con guisa et con rrazon et de que falla omne
escriptos et rrecabdo, que non a las fablas de los que cuentan lo que non saben, ca çierta cosa es que sy
quisyer de moros, sy quisyer de cristianos, Carlos con su hueste fue vençido en Rronçes Valles, (…) Pues non
es con guisa que el abryese el camino de Santiago, pues que non paso el puerto de Rronçes Valles. (…) Pero algunos
dyzen que puso el rrey Carlos su amor con el rrey don Alfonso el Casto despues de la batalla de Rronçes Valles,
et que fue en rromeria a Santiago et a San Saluador de Ouiedo (…). Mas esto non es de creer, ca luego que
Carlos fue vençido en Rronçes Valles, (…) luego se fue para tierra de Germania, et y estando, muryo» (V.Crit1:
471-473).
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conquistou extensos territórios em Espanha, constituindo-se o primeiro libertador das
Espanhas do jugo muçulmano. Esta versão dos acontecimentos seria particularmente incómoda, tanto no reinado de Afonso X, como antes, porque a argumentação existente no
excerto em questão já se encontra, nos seus traços gerais, na Historia de Rebus Hispanie
do arcebispo de Toledo (DeRH: 128-130). Com efeito, a França seria vista como um vizinho
poderoso e ameaçador com eventuais aspirações de influência e até de soberania sobre o
território ibérico. O influxo francês que se verificou nos séc. XI-XII e a sua influência já
foram objecto de um estudo de conjunto5. No caso específico do reinado de Afonso X,
podemos relembrar as ameaças de Philippe III, irmão de Blanche, a mulher do infante
Fernando de la Cerda (morto em 1275) por causa do afastamento do seu sobrinho da
sucessão ao trono. Em tempos pouco anteriores, também não teriam sido de somenos as
tensões suscitadas pela questão dos direitos de Branca, esposa de Louis VIII de França
sobre o trono de Castela, uma vez que esta seria mais velha do que Berenguela, que tomou
posse do reino em favor do seu filho, Fernando III, pai de Afonso X (cf. Linehan, 1993:
456-457).
A este contexto de rivalidade dinástica há que somar a linha de teoria política que
advoga a independência das Espanhas face ao Império, nomeadamente por direito de
conquista, argumento que é defendido, entre outros, por Vicente Hispano que contesta
que Carlos Magno tenha alguma vez sido aceite como imperador em Espanha6.
Justifica-se assim plenamente uma violenta tomada de posição contra uma versão da
história manifestamente contrária aos interesses coevos.
No que se refere às invectivas contra romances e cantares existentes nos trechos sobre
a morte do infante Garcia, a morte do rei Fernando I e as guerras fratricidas, é possível
atribuir algumas a um sentimento de decoro ou de pudor, como será o caso na morte do
infante Garcia ou na do rei Fernando I. Com efeito, o excesso de violência e de confusão
seriam atentatórios da dignidade de personagens cuja memória deveria ser poupada a
detalhes menos convenientes7. Nas restantes situações, as críticas desvalorizam os cantares,
seja porque a sua versão difere da reportada pela historiografia escrita, seja porque se
trata de relatos que colidem com a lógica social (caso das dignidades do filho bastardo de
Fernando I) ou com o encadeamento lógico dos acontecimentos (cf. trecho sobre as lutas
fratricidas). Neste quadro, devemos recordar que as preocupações com o decoro narrativo e com a sequência dos acontecimentos são características gerais da versão crítica, estudadas e assinaladas (sobretudo por Fernández-Ordóñez, 1993 e Campa, 2009). Por
5. Defourneaux (1949) estuda a significativa presença francesa na Península Ibérica desde finais do século
até meados do séc. XII, nos seus múltiplos âmbitos: religioso (influência de Cluny; nomeação de bispos franceses), aristocrático (presença de aristocratas franceses nas cortes; casamentos de duas filhas de Afonso VI com
nobres franceses) e no quotidiano (colonos, cruzados, peregrinos).
6. Sobre esta questão, no quadro de um estudo sobre a ideia de império em Castela, ver Gil (1995, sobretudo 17-18), O’Callagan (1996: 46) ou Herbers (2003: 173-175). Sobre as ideias expressas na obra jurídica afonsina, ver Fernández-Ordóñez (2000b: 268 e sgts). Sobre as posições das primeiras crónicas hispanas sobre Carlos
Magno e o império, ver Martin (1997: 1-42).
7. Veja-se como tanto o Chronicon Mundi de Lucas de Tui como o De Rebus Hispanie de Rodrigo Jiménez
de Rada são sucintos no que se refere às Partições e apresentam a morte do soberano em paz e quase com um halo
de santidade.
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conseguinte, não podemos considera-las indícios específicos de uma especial antipatia contra
relatos da tradição oral.
Verifica-se assim que as diversas invectivas contra cantares e romances encontram justificação, seja no quadro dos interesses políticos gerais e particulares do reinado de Afonso X,
seja nas características já apontadas para a sua historiografia, em particular para a versão
crítica, nomeadamente preocupações com a verosimilhança, com a lógica narrativa e com
o decoro inerente à imagem modelar de algumas figuras históricas8.
Chegamos assim a um ponto em que se torna imperioso colocar uma questão de fundo:
as invectivas contra os romances e cantares de gesta aqui em questão serão mesmo expressão
de uma antipatia visceral contra uma forma textual vista como sendo de valor ínfimo?
Para nos encaminharmos para uma resposta possível, temos ainda de tomar outra perspectiva e perguntar se as objecções ocorrem só contra romances e cantares de gesta? A
resposta a esta pergunta é negativa, pois também encontramos invectivas em momentos
que não têm nada que ver com romances ou cantares de gesta. O caso mais flagrante
reporta-se à questão da disputa entre as dioceses de Sevilha e Toledo:
Lo que dizen algunos que el arçobispo Julian Pomer et el rrey don Pelayo leuaron el arca
de las rreliquias et los libros de los santos de Toledo para Esturias, esto non podrie ser, ca
(…). Et entendetlo agora, et digo vos que (…). Otrosy algunos dizen que la primaçia de
España que fue primeramente en Seuilla, et despues que fue mudada de allí a la yglesia
de Toledo. Et esto otrosy non puede ser, ca en el dizisesto conçilio de Toledo (…) Et por
esto paresçe bien que si la iglesia de Seuilla fuera mayor que la de Toledo, non pasaria de
la iglesia mayor el arçobispado a la iglesia menor. Mas los escritores son muchos, et
cuentanlo de muchas guisas, porque la verdat de la estoria es a las vezes dubdosa,
et por ende el que lee meta mientes commo de las mejores escripturas tome lo que deue
prouar et leer. Pero fallamos que San Esidro touo la primaçia en España, et las veçes del
apostoligo (V.Crit1: 371-372).
Neste momento, não podemos remeter para cantares de gesta... Trata-se, como já foi
demonstrado, do eco de disputas diocesanas9. Porém, o que nos interessa constatar é a
veemência das invectivas, que, apesar de não atingirem o grau mais elevado, se assemelham
às produzidas contra romances e cantares…
Um último elemento de importância para esta reflexão pode extrair-se do uso da
expressão «algunos dicen», que nos surge com frequência na proximidade de passagens
onde são produzidas invectivas contra os cantares de gesta. A utilização desta expressão
remete a fonte utilizada para o anonimato, o que só pode ser entendido como um elemento
de descrédito, pois uma fonte apócrifa é, necessariamente, uma fonte de menor valor. Além
disso, quando esta expressão é usada perto de excertos onde foi produzido um comentário
crítico contra as origens romancísticas ou épicas dessa passagem, a associação da referência
8. Sobre a importância dos princípios do decoro e da exemplaridade como motores para várias das alterações
realizadas pelo autor da versão crítica, no quadro da lenda de Mainete, ver Fernández Ordóñez (1997) e (1993:
176-177). Ver também Catalán (2000: 30, n. 12 e 566) sobre o decoro na integração da lenda dos Sete Infantes de
Salas pela historiografia.
9. Sobre as rivalidades e as lutas de poder entre as igrejas de Toledo e Sevilha, e respectivos esforços com
vista à obtenção de prestígio e, consequentemente, legitimidade, ver Linehan (1993: 327-405) e Martin (nomeadamente a síntese em 2001: 281-289).
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anónima à tradição oral é inevitável, inclusivamente porque também se encontra, em algumas
destas passagens, a fórmula «algunos dicen en sus cantares».
Porém, se compararmos as ocorrências das expressões «algunos dicen» com os trechos
equivalentes de outras versões da Estoria de Espanna, verificamos que aí é muitas vezes
referida uma fonte que temos de considerar como de autoridade no contexto da historiografia afonsina: Lucas de Tui10. Por exemplo:
PCG (mão E2b)
Versão Crítica
En todo esto venie aun Carlos por el ualle que
dixiemos, et quando vio venir los suyos fuyendo
la montanna ayuso, tanxo vna bozina que se el
traye. Et algunos de los suyos que fuxieron et
andauan erradios, acogieronse a el al son de la
bozina, et aun los que guardauan la çaga, por
miedo de Bernaldo et de Marssil, ca oyeron dezir
que venien por el puerto dAspa et de Secola para
ferir en la çaga, acogieronse otrosi a el. Pero dize
el arçobispo don Rodrigo que Bernaldo siempre
souo en la delantera o los franceses fueron
vençudos asi como dixiemos. Mas dize don
Lucas de Tuy que en la çaga firieron el et Marsil
(PCG, II: 353b-354a).
En todo esto vinie avn Carlos por el val que
dixiemos, et quando vyo venir fuyendo los suyos
la montaña ayuso, taño vna bozina que se el
traye. Et algunos de los suyos que fuxieran et
andauan errados, acogieronse a el al son de la
bozina, et avn aquellos que guardauan la çaga
por miedo de Bernaldo et de Marsyl, ca oyeron
decir que vinien por el puerto de Aspa et el de
Seola para feryr en la çaga, mas non fue nada,
ca Bernaldo syenpre estudo en la delantera donde
los françeses fueron feridos et astragados et
vençidos, asy commo dixiemos. Mas algunos
dizen que en la çaga firieron el et el rrey Marsyl,
mas non fue verdat (V.Crit1: 467).
O confronto com o Chronicon mundi confirma-nos a correcção da remissão da PCG:
Transierat iam quidem Carolus in primo suorum agmine Alpes Rocideuallis dimissa in posteriores parte exercitus manu robustorum ob custodiam, qui, Bernaldo, postposito Dei timore,
super eos cum Sarracenis accerrime incursante, interfecti sunt (Chr. Mun: 235-236).
A conclusão é evidente: estamos perante uma estratégia retórica de minimização de
informações existentes numa fonte geralmente apresentada como credível, mas que, neste
ponto concreto, interessa desvalorizar porque reporta uma tradição incómoda que se
quer contrariar. Isto verifica-se mesmo apesar de Lucas de Tui recolher a chamada «versão
francesa» da história de Bernardo do Carpio de modo já bastante selectivo, escolhendo o
que se adequa aos seus propósitos de exaltação da Igreja de Santiago, a que associa a de
Oviedo11, e ignorando elementos mais «quentes» reportados na sua fonte, o Pseudo-Turpin12.
10. Fernández-Ordóñez (1993: 171) refere, entre as características da versão crítica, substituições sistemáticas da fórmula «Pero dize don Lucas de Tui…» por «Algunos dizen que…».
11. Lucas de Tui terá inventado que a tradição da peregrinação de Carlos Magno não foi só a Compostela
(como terá tirado da sua fonte, o Pseudo-Turpin; cf. Defourneaux, 1949: 311), mas também a Oviedo. Sobre a conjugação de tradições Leonesas, Ovetenses e Compostelanas por Lucas de Tui, ver Herbers (2003).
12. Sobre o Pseudo-Turpin, que corresponde ao Livro IV do Liber Sancti Iacobi do Codex Calixtinus, onde
se descrevem as campanhas de Carlos Magno em Espanha, ver Díaz y Díaz (1988) que estuda a génese da obra,
seus contextos, versões e fontes, e ainda reflecte sobre o papel desta obra como estímulo às peregrinações jacobeias e suas relações com a França, especialmente Cluni e Saint-Denis. Catalán (2000: 69-70) aborda a questão do
conhecimento do Pseudo-Turpin por Lucas de Tui, as intenções políticas (na confluência de interesses franceses
e compostelanos) e o contexto histórico da obra (Catalán, 2000: 160-238 e 791-860).
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Referimo-nos especialmente à versão segundo a qual Carlos Magno teria entrado em
Espanha a pedido do apóstolo Santiago, tendo conquistado e ocupado toda a Península e
procedido à sua distribuição entre os seus homens.
Assim, independentemente da versão francesa poder ter existido na tradição oral dos
cantares de gesta, há que notar que a mesma ou partes da mesma também constavam em
textos aceites como sendo de autoridade, de acordo com a hierarquia geral das fontes e,
em particular, da Estoria de Espanna. Com efeito, Lucas de Tui é, em algumas passagens,
nomeado entre as autoridades que se contrapõem aos cantares:
Dizen aqui el arçobispo don Rrodrigo de Toledo, e don Lucas de Tuy, e Pero Marchos
cardenal de Santiago, que en su salud antes que enfermase el rrey don Ferrando (…), et
commo quier que esta sea la verdat que estos onrrados omes dizen, fallamos en otros lugares,
e en el cantar que dizen del rrey don Fernando que en el castillo de Cabeçon, yazendo el
doliente, partió los rregnos (…) (V.Crit2: 417).
De acordo com esta passagem, Lucas de Tui seria mais um entre os «omnes sabyos»
que fizeram as «estorias verdaderas» (ex. V.Crit1: 461, entre outras) e não um dos «que
non saben» (ex. V.Crit1: 473)…
O Liber Sancti Iacobi, apesar de tratar-se de uma falsificação, como já foi demonstrado, também foi uma obra de referência e teve uma divulgação e uma aceitação consideráveis13. Entre os textos que absorveram as informações do Pseudo-Turpin conta-se ainda
uma outra fonte importante da historiografia afonsina, o Speculum historiale de Vincent
de Beauvais que não hesita em integrar as passagens mais desfavoráveis a Espanha e mais
exaltantes da acção de Carlos Magno14, numa estratégia que vai entroncar na glorificação
da linhagem dos Capetos15.
Perante os dados aduzidos, creio que podemos defender que as invectivas existentes
nos textos afonsinos e, especialmente, na versão crítica contra os romances e cantares de
gesta não se dirigem especialmente contra esta forma textual, ou contra as tradições orais
em geral. Dirigem-se sobretudo contra questões políticas e éticas de importância no
momento.
Se as tradições orais fossem desconsideradas nunca se teria verificado a sua incorporação na historiografia afonsina da maneira como se verificou. Apesar de ficar aquém do
que sucedeu em textos posteriores, é inegável o aumento relativo do espaço textual que,
na produção afonsina, decorre de tradições épicas e romanescas, não sendo produzida qualquer observação crítica a respeito da maior parte dos casos. Concordante com esta prática
é ainda a exortação existente nas Siete Partidas, onde se recomenda a audição de cantares
13. Sobre a importância do Pseudo-Turpin e das suas traduções em França, ver Spiegel (1995, cap. 2: 55-98).
14. No livro XXV do SH encontramos o pedido de Santiago a Carlos Magno para que liberte as Espanhas
(cap. 6) e, no mesmo cap., que Carlos Magno conquistou «Tota terra Hyspanorum». A distribuição das terras tem
lugar no cap. 17 («Tunc Karolus terras divisit Hyspanie pugnatoribus suis»).
15. Veja-se, no SH, o capítulo intitulado «De reditu regni Francorum ad stirpem Karoli» (SH, XXXI, cap.
126). Veja-se ainda o artigo de Chazan (1999) sobre a obra historiográfica de Guillaume de Nangis que, em finais
do séc. XIII, exaltou São Louis como outro Carlos Magno e defendeu a primazia do rei, do reino e da linhagem
Capeta em oposição aos Staufen. Também sobre a ideia de «redditus ad stirpen» e respectiva funcionalidade para
justificar a legitimidade dos Capetos e a nostalgia do estatuto imperial, nas Grandes Chroniques, ver Spiegel
(1999, cap. 7: 111-137).
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de gesta e de histórias de coragem como incentivo à realização de acções militares gloriosas
(SP, II: 213, Part. II, tít. XXI, Ley XX).
Tal como já foi demonstrado16, a sociedade medieval baseava-se largamente na oralidade, atribuindo grande importância às memórias que perduravam na tradição. Esta
importância distingue-se da valorização erudita das fontes literárias em termos de nível e
de difusão pois enquanto a oralidade estava por todo o lado, a cultura escrita e erudita, e
as respectivas normas, eram apanágio de uma elite. Assim sendo, o valor e a importância
da oralidade tornam-se incontornáveis.
Finalmente, se considerarmos a teoria de géneros mais divulgada do período medieval,
a roda de Virgílio, temos de notar que tanto a historiografia, como a épica são enquadráveis no estilo mais elevado, o gravis stilus na medida em que se reportam às vidas e feitos
de grandes senhores e guerreiros17. Esta proximidade poderá ter facilitado a absorção de
uma forma pela outra, num percurso de convergência onde, em traços gerais, uma linha
historiográfica de base mais erudita opta por absorver (e, naturalmente, procurar domesticar, ou adaptar a seu jeito) uma tradição oral, consuetudinária, a fim de criar uma memória
única do passado.
Não querermos aqui negar que as tradições orais constituiriam uma fonte menos
considerada no quadro da valorização dos testemunhos, no período medieval, em geral
e, em particular, na historiografia afonsina. No entanto, penso que há argumentos que
apontam para a necessidade de contrariar a tendência para a catalogação fácil destes relatos
como testemunhos menosprezados. Pelo que vimos, as críticas que encontramos contra
romances e cantares não seriam necessariamente provocadas por um ódio visceral contra
formas textuais específicas. No entanto, como estes relatos seriam dos menos considerados na hierarquia das fontes, seriam usados como argumento para a minimização de
versões incómodas. Por conseguinte, penso que podemos entender as críticas produzidas
de um modo um pouco diferente do habitual, considerando que os testemunhos romanescos ou épicos não são aduzidos tanto como objecto das invectivas, mas como argumento contra outro tipo de questões. Este relegar para uma fonte oral, mínima na escala
geral dos valores, funcionaria exactamente do mesmo modo que a expressão «algunos
dicen». A mesma versão dos acontecimentos poderia ser referida por cantares de gesta e
por fontes autorizadas. Porém, quando o tema não agrada, ignora-se os testemunhos de
fontes mais consideradas e recorre-se ao que poderíamos qualificar como estratégias retóricas de minimização.
16. Nomeadamente pelos trabalhos de Zumthor (1983, 1984 e 1987) que sublinha a omnipresença da oralidade no mundo medieval e as suas diversas vertentes, mais e menos valorizadas.
17. Ver Faral (1982: p. 86-89). Na Idade Média o esquema conhecido como «Roda de Virgílio» organiza os
elementos dos três estilos de acordo com a dignidade social dos intervenientes da obra e já não de acordo com a
maior ou menor elevação do discurso, como anteriormente. O estilo sublime (gravis stylus) aplica-se às obras que
relatam os feitos dos guerreiros gloriosos, o estilo simples (humilis stylus) é protagonizado pelo pastor e o estilo
temperado (mediocris stylus) centra-se no agricultor. A estes três estilos faz-se corresponder as três obras de
Virgílio: Eneida, Bucólicas e Geórgicas.
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