Sem título-1
Transcrição
Sem título-1
L LIVROS Os primeiros passos Rosa Freire d’Aguiar organiza coletânea que reúne os primeiros textos de Celso Furtado, em seus anos de formação, com cartas, reportagens, trabalhos universitários, diário de guerra e outras anotações que permitem vislumbrar as primeiras referências e influências de um dos principais pensadores brasileiros. Confira a entrevista que ela concedeu à Rumos, em que também fala sobre o lançamento da versão definitiva da Obra Autobiográfica, que também revisou. R Centro Celso Furtado/Carlos Will umos – Como nasceu a ideia de reunir os escritos de Celso Furtado em seus primeiros anos de formação, alguns ainda inéditos e feitos em sua juventude? Rosa – Estou trabalhando com os arquivos do Celso há algum tempo e, até pelo fato de várias teses serem construídas buscando pistas sobre o seu pensamento, achei que seria hora de publicar um material mais inicial dele, seus primeiros textos. Tenho impressão de que já tem nesses textos muitas questões trabalhadas mais à frente, que podem confirmar ou não as pistas que alguns pesquisadores estavam dando. A ideia era publicar estudos que ele fez nos primeiros anos, portanto, marquei o ano de 1948 como limite, que é quando ele volta com a tese de doutorado; e descobri um texto sobre liberalismo econômico de 1938, que ele escreveu no início da faculdade, ainda com 18 anos. Considerei esse trabalho muito significativo, pois ali já tem várias indicações do trabalho acadêmico que ele vai fazer, como a preferência pelo método comparativo, usado a vida inteira, e o interesse pelas questões internacionais. Decidi, a partir desses marcos, fixar os anos de 1938 e 1948, e tem um pouco de tudo deste período. Rumos – Os textos mostram um Celso multifacetado, interessado por vários campos do conhecimento... Rosa – Sabia que retrataria várias vertentes porque ele de fato tentou várias coisas. Como qualquer um de nós, com 18 anos pensamos um monte de coisas, tentamos, e depois vemos que temos mais jeito para uma coisa e outra; é uma época em que vivemos assim. A ideia é um pouco essa, mostrar as várias pistas que o Celso pensou. Tem textos como jornalista, embora não fosse exatamente o que ele queria para o futuro; depois, quando entra para o serviço público – e aí sim, ele expressa um deslumbramento, fica muito interessado em administração, programação, organização. Já é uma linha que vai dar lá longe no planejamento, um dos eixos em torno dos quais ele mais trabalhou. Rumos – Também há cartas, que fazem uma espécie de registro afetivo desses anos de juventude do economista. Por que escolheu registrar essas cartas no livro e como foi o processo para coletá-las? Rosa – Eu trouxe as cartas porque são muito saborosas, as car- tas sempre são. E elas também dão uma ideia perfeitamente do que estava acontecendo no mundo, mais até que nos textos do Celso. As cartas eram uma coisa muito direta do que ele estava sentindo naquele momento. As que eu acho mais interessantes, como material, são as da França do pósguerra. Há uma sociedade profundamente humilhada, depois de quatro anos ocupada pelos nazistas, com uma pequena parte resistindo, mas uma grande parte absolutamente amorfa, ao mesmo tempo querendo guardar uma França antiga, de direita. As cartas trazem uma visão estrangeira, mas muito boa. O panorama que trata do pósguerra é muito fiel ao que os teóricos da França retratam sobre aquela época. O material não estava todo reunido em um só lugar, descobri cada uma dessas coisas aos poucos. Ele tinha os cadernos, sempre foi de escrever à mão nos cadernos. Algumas cartas, por exemplo, eu tinha a original; outras são rascunhos de cartas enviadas; algumas eu tenho as duas versões. Alguns eu tinha aqui em casa, mas muito pouco. Eu descobri todo esse material em um apartamentinho que tínhamos no Alto da Boa Vista, que continha arquivos dele de antes de 1964. Quando o Celso morreu, esvaziei o apartamento, trouxe toda a papelada e fiz uma espécie de mergulho. Mergulhei fundo em todos esses arquivos e fiz uma pré-seleção, separei em caixas. Consegui comparar algumas versões de rascunho e várias cartas originais, e eram a mesma coisa. O modo dele trabalhar era esse: fazia um rascunho no caderno, depois copiava no papel de carta e enviava. Rumos – O que esse conjunto de materiais revela sobre o Celso? Rosa – Depois de reunir e escrever, quando acabei de ler este livro fiquei com a sensação de que obra de adolescência e juventude tem que ser lida como tal, nela própria, tem valor em si. Eu mesma me flagrei tentando descobrir nesse material o Celso do futuro. Mas acho que é bobagem, não é por aí. Não dá para ler esses textos com as categorias futuras que você vai ter do autor. Não necessariamente precisa fazer uma leitura retrospectiva por meio de obras futuras que você tem do autor. Por exemplo, ele tentou o caminho de crítico musical e não foi adiante. Passam a ser apenas uma curiosidade aquelas observações que faz sobre Heitor Villa-Lobos. Depois ele tentou literatu- RUMOS – 50 – Setembro/Outubro 2014 ra. Mais tarde, fez Direito, mas percebeu logo que também não era por aí. Alguns caminhos ele percebe que vai abandonar e tem outros que ele descobre tardiamente, como a economia. Ele já estava com interesse em temas econômicos via administração, mas só vai estudar mais tarde, na França. Então, cheguei à conclusão que este conjunto de Anos de Formação: 1938-1948 Rosa Freire d’Aguiar (org.) textos tem um valor em si, e Contraponto e Centro Celso Furtado, não adianta querer julgar 404p., 2014. muito pelo que ele foi no futuro, pegar aquelas categorias de 30 anos depois e jogar retrospectivamente. Mesmo a questão da linguagem: naqueles textos iniciais, ainda na juventude, há uma retórica um pouco exagerada, que o leitor tem que descontar. Por isso, acho que tem valor em si, independe do que ele vai fazer no futuro ou não. No caso dele até bate, mas poderia não bater. Rumos – Mas é possível identificar nas influências da sua formação o “Celso Furtado histórico”? As linhas do pensamento furtadiano estão já presentes aí? Rosa – Em parte, sim. Dez anos na vida de um adulto talvez não mude muito, o que a pessoa pensa aos 35 e o que pensa aos 45. Mas no momento em que você está em plena formação, recebendo estímulos de vários lados, é diferente. É um período em que ele sai de João Pessoa, vem para o Rio, no jornalismo, conhece muita gente. É a descoberta de uma cidade que era capital da República, da sociedade, da vida cultural, é um acúmulo de camadas para formar a pessoa. Isso marca. Tem algumas linhas já muito claras, como a questão do planejamento. Tem um texto, por exemplo, em que ele diz que o planejamento é uma faca de dois gumes, baseado em sua experiência na guerra. Ele viu que a sociedade italiana tinha sido submetida a um controle rígido e planejado pelo estado fascista e ficou muito assustado como o planejamento para a sociedade pode ser perigoso. Logo, diz que o planejamento, no fundo, é apenas uma ferramenta, que pode ser usada para o bem ou para o mal. Isso é um fato que marcou a obra dele inteira, que é que você só faz o planejamento correto se tiver uma moldura democrática. O Estado pode planejar, deve planejar, porém com uma sociedade democrática, que é o que na Itália não houve e deu no que deu. É muito claro no pensamento dele: “A planificação social não é mais do que uma técnica – ela se legitima pelos fins a que serve”. Ela tanto pode servir para um exército em guerra ganhar, como pode servir para degenerar uma sociedade, como foi no fascismo. Esse texto ele escre- veu antes de ser economista, em 1946 quando volta da guerra. Ru m o s – C o n t e - n o s sobre a Obra Autobiográfica, que está sendo lançada em edição definitiva este ano. No que consiste essa revisão? Rosa – O Celso escreveu memórias entre 1985 e 1991, durante seis a sete Obra Autobiográfica - Edição definitiva Celso Furtado anos fez três livros de Companhia das Letras, 633p., 2014. memórias. Em 1997, ajudei a fazer uma edição dos três, separados, e em cada um pusemos um texto de caráter autobiográfico correspondendo à época. Essa trilogia estava esgotada, resolvemos fazer em um volume só, uma revisão que chamamos de edição definitiva. Em geral, a edição definitiva é feita por uma pessoa que tenha autoridade sobre o texto e eu tenho, não só porque fui casada com ele. Isso também, mas é porque tenho os originais aqui em casa e trabalhei em cima dos originais. Além disso, antes de morrer o Celso fez uma edição master, que é quando o próprio autor anota, caso haja, erros (tipográficos, de má compreensão, enfim). Eu tinha essas edições master também dele. Então a nova edição, e outras que também estou fazendo para a Companhia das Letras, são a partir desse material. Na dúvida, vou no texto original (manuscrito, datilografado, digitado no computador, vai depender da época). Além disso, fiz um trabalho também de puxar notas com referências bibliográficas em todas as citações que ele faz a seus próprios textos. Foi uma forma de fazer uma edição anotada. Certamente é um ganho para quem lê. Rumos – E em que sentido os dois livros dialogam, os Anos de Formação e a Obra Autobiográfica? Rosa – Foi uma coincidência as obras saírem no mesmo momento, pois elas dialogam muito. Por exemplo, o Celso em um dado momento diz: “Quando estava na guerra, fiz uma viagem à Iugoslávia”. Nos Anos de Formação, eu tenho a carta que ele escreveu, quando ele viajou. Em outro momento, “Fui trabalhar como jornalista em Ouro Preto” e tenho o texto que ele fez, a reportagem. Não era essa a ideia, mas em um dado momento comecei a perceber que elas se complementavam. É o sexto livro que lançamos por essa coletânea dos Arquivos Celso Furtado, e eles de certa forma também dialogam com outros momentos da Obra Autobiográfica. Por exemplo, fiz um livro em 2009 sobre a saga da Sudene. Ali publiquei vários textos fundadores da Sudene, a que o Celso se refere na obra autobio gráfica. Então, as duas coletâneas se falam. RUMOS – 51 – Setembro/Outubro 2014