Esboço de sumário para a Revista Guavira nº 11
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Esboço de sumário para a Revista Guavira nº 11
ISSN 1980-1858 GUAVIRA LETRAS Programa de Pós-Graduação em Letras UFMS/Campus de Três Lagoas Guavira Letras Três Lagoas v.11 n.1 p. 1-198 ago./dez. 2010 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Reitora Célia Maria da Silva Oliveira Vice-Reitor João Ricardo Filgueiras Tognini Pró-Reitor de Pós-graduação Dercir Pedro de Oliveira Diretor do Campus de Três Lagoas José Antônio Menoni Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras Kelcilene Grácia Rodrigues GUAVIRA LETRAS Revista do Mestrado em Letras da UFMS Conselho Editorial Eneida Maria de Souza (UFMG) João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis) José Luiz Fiorin (USP) Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD) Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara) Maria José Faria Coracini (UNICAMP) Márcia Teixeira Nogueira (UFCE) Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG) Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal) Roberto Leiser Baronas (UNEMAT) Sheila Dias Maciel (UFMT) Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM) Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS) Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália) Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre) Comissão Editorial Kelcilene Grácia Rodrigues Rauer Ribeiro Rodrigues Taísa Peres de Oliveira Vitória Regina Spanghero Ferreira Claudionor Messias da Silva (Apoio Técnico) Diagramação Comissão Editorial © Copyrigth 2010 – os autores Guavira Letras / Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 1 (2005)- . – Três Lagoas, MS. Semestral Descrição baseada no: v. 11 (ago./dez/ 2010) Tema especial: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales ISSN: 1980-1858 Organização deste volume: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales Pareceristas deste número: Alex Beigui (UFRN) Amador Ribeiro Neto (UFPB) Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado (UFMS/Três Lagoas) Antonio Rodrigues Belon (UFMS/Três Lagoas) Danglei de Castro Pereira (UEMS) Éverton Barbosa Correia (UFMS/Três Lagoas) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) José Batista de Sales (UFMS/Três Lagoas) Kelcilene Grácia Rodrigues (UFMS/Três Lagoas) Luciano Justino (UEPB) Luiz Eduardo Meneses de Oliveira (UFS) Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/Corumbá) Ravel Giordano Paz (UEG) Ricardo de Souza Carvalho (USP) Rosana Cristina Zanelatto dos Santos (UFMS/Campo Grande) Sílvio Roberto de Oliveira (UNEB) Wagner Corsino Enedino (UFMS/ Três Lagoas) Todos os direitos reservados Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Programa de Pós-Graduação em Letras Câmpus de Três Lagoas – Três Lagoas/MS CEP: 79610-011 Fone: +55 (67) 3509-3425 Portal: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira [email protected] Guavira no11 Sumário O TEXTO POÉTICO: COMPARATIVISMO, FONTES PRIMÁRIAS E OUTRAS SEMIOSES THE POETIC TEXT: COMPARATIVISM, PRIMARY SOURCES AND OTHERS SEMIOSIS 6 APRESENTAÇÃO ARTIGOS/ ARTICLES O poeta romântico e as velhinhas The romantic poet and the litlle old ladies Alexandre Bebiano de Almeida – USP 8-18 Gonçalves Dias, o índio e a liberdade Gonçalves Dias, the indigenous and the liberty Wilton José Marques – UFSCar 19-29 Cesário Verde e Pissarro: retratos da modernidade no século XIX Cesário Verde and Pissarro: portraits of modernity in the nineteenth century Célia Regina Lessa Aleixo – UEM Thomas Bonnici – UEM 30-41 As viagens de Manuel Bandeira pela cidade de Ouro Preto Manuel bandeira’s trips in the city of Ouro Preto Ilca Vieira de Oliveira – UNIMONTES 42-51 A molecada, o menino, o poeta e o balão The kids, the boy, the poet and the balloon Wilson José Flores Júnior – UFRJ 52-60 Joaquim Cardozo, leitor de Manuel Bandeira Joaquim Cardozo, reader of Manuel Bandeira 3verton Barbosa Correia – UFMS 61-70 O mito prometeico na trajetória de Murilo Mendes The prometheus’ myth in the poetic trajectory by Murilo Mendes Wanderlan da Silva Alves – UNESP/ São José do Rio Preto Diego de Jesus Rosa Codinhoto – UNESP/ São José do Rio Preto 71-85 Drummond: biografia, realismo e modernidade Drummond: biography, realism and modernity Albertina Vicantini – PUC/GO Maria Elizete de Azevedo Fayad – UEG 86-93 Os “Sete Poemas Portugueses”, de Ferreira Gullar: “portugueses”? “Sete Poemas Portugueses”, by Ferreira Gullar: “portugueses”? Odil José de Oliveira Filho – UNESP/Assis 94-101 Poesia de conflito nos anos 70: Paulo Leminski e os sinais excêntricos de seu neorromantismo Poetry of conflict in the 70’s: Paulo Leminski and signs of his neoromantism Robson Coelho Tinoco – UnB 102-119 Yves Bonnefoy e a imagem, com uma nota sobre Raoul Ubac Yves Bonnefoy and the image, with a note about Raoul Ubac Pablo Simpson - Université de Yaoundé I 120-129 3|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O casamento de texto e imagem nos primeiros livros de William Blake The marriage of text and image in the first books of William Blake Enéias Farias Tavares – UFSM 130-138 Poesia e pintura abstrata: a música das cores Poetry and abstract painting: the music of colours Jacineide Travassos – Universo 139-148 A poética do espetáculo The poetics of spectacle Suilei Monteiro Giavara – UNESP/Assis Ana Maria Domingues de Oliveira – UNESP/Assis 149-160 Elementos da experiência nacional de expressão rural reinterpretados na forma literária Elements of the experience of expression national rural reinterpreted in the literary form Maria Suely da Costa – UEPB 161-172 RESENHAS/ REVIEWS Fábulas farsas por André Teixeira Cordeiro – FAM/FCS 174-177 Objeto algum por Alexandre de Melo Andrade – FABAN 178-179 DISSERTAÇÕES/MASTER DISSERTATIONS 181-183 4|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 APRESENTAÇÃO Com o número 11, a Revista Guavira vem contemplar a leitura de poemas por meio de fontes primárias, quer tomemos o trabalho com cartas, diários, biografias, periódicos, ou ainda, outras linguagens, a exemplo da pintura e da música. Sendo assim, o próprio entendimento do fenômeno poético sofre alteração, na medida em que o texto passa a ser lido em face de outra matriz discursiva, não necessariamente de natureza verbal. Por isso, é fácil identificar neste volume a atualização do adágio clássico segundo o qual há um vínculo intrínseco entre a poesia e a pintura. Aliás, em alguns casos, a apreciação do texto poético foi feita em função do plano pictórico, como é o caso de artigos como “Cesário Verde e Pissarro: retratos da modernidade no século XIX”, “Yves Bonnefoy e a imagem, com uma nota sobre Raoul Ubac”, “Poesia e pintura abstrata: a música das cores” ou “Texto e imagem nos primeiros livros de Willian Blake”. Por outro lado, é preciso ressaltar a incidência de cartas como suporte de apoio para a leitura de poemas, o que foi quase uma constante na apresentação dos trabalhos. Isto tanto pode ser aplicado a autores clássicos, como é o caso da leitura comparativa entre Victor Hugo e Charles Baudelaire em “O poeta romântico e as velhinhas”; Ou ainda, a leitura de Gonçalves Dias, que contextualiza a obra do nosso indianista no vivo diálogo com seus contemporâneos no “Gonçalves Dias, o índio e a liberdade”; ou mesmo de autores pouco conhecidos e que pedem revisão da historiografia literária como acontece com o artigo “Joaquim Cardozo, leitor de Manuel Bandeira”. A propósito, Manuel Bandeira foi o autor aqui mais freqüentado, fosse pelo filtro da memória individual ou coletiva, como se identifica nos artigos “As viagens de Manuel Bandeira pela cidade de Ouro Preto” ou “A molecada, o menino, o poeta e o balão”. Neste particular, é preciso destacar o aparecimento da memória como chave de leitura de nossos clássicos modernos, o que também se verifica nos artigos “O mito prometeico na trajetória de Murilo Mendes” e “Drummond: biografia, realismo e modernidade”. Conviria destacar ainda o aparecimento de poetas contemporâneos também permeáveis por indicações memorialísticas que concorrem para a configuração do sujeito poético, como foi o caso de Ferreira Gullar e de Paulo Leminski. O volume incorporou artigos cujo recorte temático apontava para a dinamização da leitura do fenômeno poético, fosse através da correlação entre retórica, imagem e subjetividade poética, a exemplo do artigo “A poética do espetáculo” ou pela retomada da discussão sobre nacionalidade através da cultura popular, tal como consta em “Elementos da experiência nacional de expressão rural reinterpretados na forma literária.” Com isso, franqueamos ao público uma amostragem de interpretações movidas por certa perspectiva de leitura que se insinua como tendência nos estudos de poetas ou da poesia em geral, pelo que nos sentimos gratos e parcialmente realizados. Éverton Barbosa Correia Kelcilene Grácia-Rodritgues José Batista de Sales 5|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 ARTIGOS 6|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O POETA ROMÂNTICO E AS VELHINHAS Alexandre Bebiano de ALMEIDA1 Où va-t-il ce navire ? Il va, de jour vêtu, A l’avenir divin et pur, à la vertu, A la science qu’on voit luire A la mort des fléaux, à l’oubli généreux, A l’abondance, au calme, au rire, à l’homme heureux. Hugo, « Vingtième siècle » Chaque jour vers l’enfer nous descendons d’un pas Baudelaire, « Au lecteur » RESUMO: Este artigo visa discutir as relações entre romantismo e modernidade mediante uma análise comparativa de dois poemas: “Fantasmas”, de Hugo e “As Velhinhas”, de Baudelaire. A comparação tem como objetivo abordar o legado romântico para a modernidade. Os dois poemas possuem um forte cunho narrativo e participam do projeto romântico de revelar o papel importante desempenhado pelo poeta – e pela poesia – junto às sociedades modernas. Mas, expostas as afinidades que unem esses poemas, examinaremos os elementos que os diferenciam. Veremos assim que “As Velhinhas” parecem propor uma crítica a certas fantasias românticas presentes no poema de Hugo. PALAVRAS-CHAVE: Baudelaire. Hugo. Modernidade. Romantismo. Introdução A correspondência de Baudelaire pode guardar certas curiosidades. No mês de junho de 1858, o poeta respondeu a uma crônica, “Os homens de amanhã”, publicado no Figaro (1993, v. 1, p. 500-1).2 Neste artigo, um dos autores do jornal, Jean Rousseau, traça um retrato virulento do poeta: para ele, Baudelaire seria a encarnação de Daniel Jovart, uma das personagens do romance satírico Les Jeunes-Frances, de Théophile Gautier: a personagem teria fugido das páginas de literatura para viver na realidade sob o nome de... Baudelaire. Mas isso seria justamente “a imprudência” de seu plano de fuga: “ao escapar do livro de Gautier, ele pensou somente em adotar um outro nome, quando somente adotando uma outra carreira poderia anular as suspeitas sobre si” (ROUSSEAU, 1858, p. 3). À semelhança de seu avatar, Baudelaire seria um desses jovens escrevinhadores de poucos escrúpulos, prontos para realizar qualquer atitude para obter sucesso literário, até mesmo “o atentado à paz pública, que acarretam de agora em diante, para os volumes condenáveis, a deportação perpétua desde o cais Voltaire” (1858, p. 3). Da carta-resposta de Baudelaire ao diretor do Figaro pode-se decerto deduzir o que mais o teria incomodado neste retrato: ele era comparado aqui a um discípulo que faz pouco de seus antigos mestres. Tal como diz Jean Rousseau: “Ele cresceu no seio do romantismo, é a eles que deve tudo o que sabe. Mas o senhor Baudelaire passa agora sua vida a falar mal do 1 2 USP – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Letras Modernas. São Paulo – SP – Brasil – 05508-900 – E-mail: [email protected]. As traduções presentes no texto são de responsabilidade do autor. 7|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 romantismo”. De acordo com o cronista, Baudelaire teria respondido assim a alguém que fazia referência ao autor das Contemplações: “Hugo! Quem é esse... Hugo? Será que alguém conhece esse... Hugo?” (ROUSSEAU, 1858, p. 3). A declaração parece ferir o poeta das Flores do mal; em sua carta, ele responde que esse comentário satírico não é somente uma “prova de estupidez”, mas uma “monstruosidade” que sua boca jamais poderia pronunciar. E conclui: “meu coração está pleno de reconhecimento e de amor para com os homens ilustres que me acolheram com sua amizade e com seus conselhos” (1858, p. 4). A carta de Baudelaire foi publicada no Figaro em 13 de junho de 1858, acompanhada de uma réplica irônica de Jean Rousseau. Nesta, o cronista insistia que tinha ouvido ele próprio as frases venenosas a respeito de Hugo e rogava ao autor das Flores do mal: “Que ele procure bem nas suas lembranças. Ele pronunciou essas palavras memoráveis bem publicamente, em pleno café ‘Le divan Pelletier’, há quatro anos” (1858, p. 4). Tudo somado, a quem devemos dar crédito aqui? Ao cronista polemista de nítido caráter conservador? Ou ao poeta de temperamento ambíguo? E pode-se lembrar que em sua correspondência Baudelaire não hesita chamar Hugo de “néscio” e satirizar suas obras3, admitindo ainda que conhece a “arte de mentir” no momento em que as resenha publicamente4. Vamos encontrar novamente o nome de Hugo nas cartas de Baudelaire em setembro de 1859, um ano após a polêmica no Figaro. Dessa vez, Baudelaire lhe pede um prefácio para um livro sobre Gautier. A resposta de Hugo é conhecida e se tornará célebre: o poeta das Flores do mal avança; ele realiza um passo adiante na literatura francesa; seus poemas criam um “frisson novo” (HUGO, 2007, p. 297). É certo que a carta-prefácio pode ser considerada, em boa parte, uma espécie de benevolência do artista maduro, do “grande homem”, para com o estreante. Na carta de 1859, Baudelaire escreve a Hugo: “Senhor, preciso muito de você, e invoco sua bondade. (...) Quero ser protegido. Publicarei humildemente o que o senhor se der o trabalho de me escrever” (1993, v. 1, p. 596-7). Os propósitos desse pedido não devem soar confusos para os estudiosos de hoje. O próprio Baudelaire explica ao editor de seu livro, Poulet-Malassis, seu interesse: “Você compreende que essa carta, se ela for importante, pode facilitar a venda do livro” (1993, v. 1, p. 604). As relações de favor entre o artista maduro e o estreante tornam-se bem nítidas aqui; na abertura dessa carta, de 1º de setembro de 1859, o poeta explica a seu editor que o autor das Contemplações não se negaria a redigir a nota, porque Baudelaire não somente lhe tinha dedicado dois poemas, mas também havia escrito um deles “à maneira de Hugo” 5. A correspondência, bem como as relações que Baudelaire e Hugo mantiveram, foram objeto de vários estudos6. No entanto, as relações literárias entre os dois autores podem 3 Em novembro de 1865, Baudelaire escreve a sua mãe, a senhora Aupick: “Caso você queira ler seu [de Hugo] último volume (Canções de ruas e bosques), enviar-lhe-ei imediatamente. Como de hábito, enorme sucesso, como venda. Frustração de todas as pessoas espirituosas após a sua leitura.” (1993, v. 2, p. 541, grifos do próprio autor) 4 “Esse livro [Os Miseráveis] é imundo e inepto. A propósito dele, demonstrei que conhecia a arte de mentir. Ele [Hugo] me escreveu uma carta absolutamente ridícula para me agradecer. Isso prova que um grande homem pode ser um néscio” (BAUDELAIRE, 1993, v. 2, p. 541) 5 “Ele não pode, acredito, me recusá-la. Dediquei-lhe dois fantasmas parisienses, e a verdade é que no segundo trecho tentei imitar seu estilo” (BAUDELAIRE, 1993, v. 1, p. 604) 6 Um resumo das relações entre os dois escritores se acha no verbete “Victor Hugo” do Dictionnaire Baudelaire, de Claude Pichois e Jean-Paul Avice (2002, p. 227-233). As relações entre Baudelaire e Hugo foram objeto de análises exaustivas de Léon Cellier (1970) e Micheline Rosenfeld (1981). Para a modernidade dos dois poetas, pode-se consultar também Pierre Brunel (2004). Dentre os estudiosos brasileiros, podem-se citar os trabalhos da professora Glória Carneiro do Amaral (2003; 2007), bem como a dissertação de mestrado 8|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 despertar inúmeras discussões. De que maneira compreender os elogios de Baudelaire à poesia de Hugo? E pode-se lembrar um trecho das “Reflexões sobre alguns dos meus contemporâneos”, de 1861: “Ignoro em que mundo Victor Hugo comeu previamente o dicionário da língua que foi chamado a proclamar; mas vejo que o léxico francês, no momento em que sai de sua boca, torna-se um mundo, um universo colorido, melodioso e movente” (1975, v. 2, p. 133). Por outro lado, de que maneira compreender o desprezo expresso por Baudelaire em seus Diários íntimos para com a poesia de Hugo? “Hugo Sacerdote mantém sempre a fronte inclinada; - inclinada demais para não ver nada, exceto seu umbigo” (1975, v. 1, p. 665). Enfim, de que maneira compreender essas manifestações de amor e desprezo de Baudelaire para com a poesia de Hugo? Neste artigo vamos tentar explicar essas ambiguidades pelo contraditório legado que o romantismo deixa para a modernidade, afinal, é o que admite Baudelaire em seu “Salão de 1859”: “O Romantismo é uma graça, celeste ou infernal, a que devemos estigmas eternos” (1975, vol. 2, p. 645; citado por PAIXÃO, 2010, p. 15). Dois poemas Para tornar mais claro esse problema, vamos comparar aqui dois poemas de Hugo e Baudelaire: “Fantasmas” (1964, p. 666-671) e “As Velhinhas” (1975, p. 89-91). A escolha dos poemas não é casual; “As Velhinhas” foram dedicadas a Hugo e seriam como que uma “imitação” do estilo hugoano; Baudelaire admite isso na carta, de setembro de 1859, em que lhe envia o manuscrito do poema7. Não existe aqui, é certo, uma referência expressa a “Fantasmas”. Pode-se lembrar, contudo, que “As velhinhas” retomam torneios próprios ao poema de Hugo (1975, v. 1, 1016): Hélas ! que j’en ai vu mourir de jeunes filles !8 (Hugo) Ah ! que j’en ai suivi de ce petites vieilles !9 (Baudelaire) E até mesmo a organização sintática empregada em “Fantasmas” pode se repetir no poema de Baudelaire: de Grace Alves Paixão (2010); ambas as autoras insistem nos aspectos modernos da obra poética de Victor Hugo, na esteira das análises de Jean-Pierre Richard (1970). A modernidade presente nas composições românticas, especialmente na obra de Chateaubriand, foi também objeto de estudo de Maria Cecília de Moraes Pinto (1992). 7 Em 15 de setembro de 1859, “As velhinhas” foi publicado, juntamente com os “Os sete velhos” [Les sept vieillards], na Revue contemporaine, sob o título de Fantasmas parisienses. Nesta primeira publicação não existe ainda a dedicatória a Hugo. Na carta de 23 (?) de setembro de 1859, endereçada a Hugo, Baudelaire lhe oferece os manuscritos dos dois poemas e a dedicatória: “Os versos que anexo a esta carta estão presentes há muito tempo na minha cabeça. O segundo trecho [“ As Velhinhas] foi feito com o propósito de imitá-lo (ria de minha fatuidade, eu mesmo dou risada) após ter relido algumas peças de seus livros, em que uma caridade tão magnífica se mistura a uma familiaridade tão tocante. (...)” (1993, v. 1, p. 598). As informações bibliográficas, bem como as comparações entre os versos de “As Velhinhas” e “Os Fantasmas”, são de Claude Pichois (1975, v. 1, 1016). As traduções em nota de pé de página atentam para o conteúdo literal, e não para a métrica ou a sonoridade dos versos. 8 “Ai de mim! Como vi morrer tantas jovens!” 9 “Ah! Como segui tantas dessas velhinhas!” 9|Página Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 (...) - L’une était rose et blanche ; L’autre semblait (...) ; L’autre, faible, appuyait (...), (...) Toutes fragiles fleurs, sitôt mortes que nées !10 (Hugo) L’une, par sa patrie au malheur exercée, L’autre (...), L’autre (...), Toutes auraient pu faire un fleuve avec leurs pleurs !11 (Baudelaire) Os dois poemas são longos e possuem nítido cunho narrativo. “Fantasmas” se compõe de 30 estrofes, todas compostas de 5 versos. Essas 30 estrofes compõe 6 segmentos de dimensões desiguais: a primeira parte possui 3 estrofes; a segunda, 7; a terceira, 12; a quarta, 2; a quinta, 4; e a última, 2. A estrofe possui uma regularidade métrica: ela se compõe de quatro versos de doze sílabas, e um verso conclusivo de oito sílabas, respeitando um sistema de rimas ABAAB. Eis aqui a estrofe inicial do poema: Hélas ! que j´en ai vu mourir de jeunes filles! C´est le destin. Il faut une proie au trépas. Il faut que l´herbe tombe au tranchant des faucilles; Il faut que dans le bal les folâtres quadrilles Foulent des roses sous leurs pas.12 O esquema métrico, composto de quatro alexandrinos arrematados por um octossílabo, assim como o esquema regular de rimas, garante uma sonoridade bem marcada e imprime à estrofe certa unidade. Com efeito, os aspectos sonoros se refletem na unidade sintática da estrofe, que não vai jamais se encavalgar sobre a seguinte. A única exceção à regra seria a segunda estrofe do quinto segmento, na qual o poeta descreve a jovem despertando para a festa dos mortos: neste momento, o poeta rompe, por meio da sintaxe de seus versos, a forte unidade sugerida pelo esquema sonoro: (...) Et si, dans la tombe où nous l´avons laissée, Quelque fête des morts la réveilles glacée Par une belle nuit d´hiver, Un spectre, au rire affreux, à sa morne toilette Préside au lieu de mère, et lui dit: Il est temps !13 O poema de Baudelaire é composto, por sua vez, de 21 estrofes, todas compostas de 4 10 “(...) – Uma era rosa e branca; / Outra parecia (...); / Outra, frágil, apoiava (...); / (...) Todas delicadas flores, mortas tão logo nascidas!” 11 “Uma, entregue ao sofrimento por sua pátria; / Outra (...); / Outra (...); / Todas poderiam ter feito um rio com suas lágrimas!” 12 “Ai de mim! Como vi morrer tantas jovens! / É o destino. É necessário uma vítima para a morte. / É necessário que a erva morra no corte das foices; / É necessário que as quadrilhas festivas no baile / pisem as rosas sob seus passos.” 13 “E se, na cova onde a deixamos, / Alguma festa dos mortos a desperta lívida / Durante uma bela noite de inverno, // Um espectro, de riso tenebroso, sua monótona toalete / Conduz no lugar de mãe, e lhe diz: é chegada a hora!” 10 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 versos. Essas estrofes vão compor 4 segmentos de dimensões desiguais: a primeira parte possui 9 estrofes; a segunda, 3; a terceira, 3; e a quarta, 6. À semelhança de “Fantasmas”, o poema de Baudelaire possui uma clara organização métrica; a estrofe se compõe de quatro versos alexandrinos, respeitando o sistema de rimas ABAB. Vejamos a inicial: Dans les plis sinuex des vieilles capitales, Où tout, même l´horreur, tourne aux enchantements, Je guette, obéissant à mes humeurs fatales, Des êtres singuliers, décrepits et chamants. 14 À semelhança de “Fantasmas”, a sonoridade desse poema é fortemente marcada pelo esquema regular de versos e rimas, mas essa sonoridade não parece imprimir aqui nenhum constrangimento à dicção ou à sintaxe do poeta, que parece experimentar mais liberdade em sua composição: assim, não são poucas as estrofes que se encavalgam, oferecendo uma tremenda liberdade de expressão para o eu - lírico: Ils trottent, tous pareils à des marionnettes, Se traînent, comme font les animaux blessés, Ou dansent, sans vouloir danser, pauvres sonnettes Où se pend un Démon sans pitié! Tout cassés Qu´ils sont, ils ont des yeux perçants comme une vrille, Luisants commes ces trous où l´eau dort dans la nuit ;15 Os dois poemas possuem, como já dissemos, um forte caráter narrativo. “Fantasmas” começa com uma declaração que poderíamos aproximar da abertura de uma narrativa oral: “Hélas ! que j´en ai vu mourir de jeunes filles ! / C´est le destin. (...)” [Ai de mim! Como vi morrer tantas jovens! É o destino. (...)]. Podem-se reconhecer nesses versos que iniciam o poema as entonações de um contador de histórias, as pausas de sua voz, mas também os gestos que dramatizam a mensagem: “Que j´en ai vu mourir! – l´une était rose et blanche / L´autre semblait ouïr de célestes accords ;” [Como vi tantas morrerem! – Uma era rosa e branca; / Outra parecia escutar acordes celestiais]. Nesta abertura, o poeta declara não só haver visto muitas jovens morrerem – “Doux fantômes!” [Doces fantasmas], mas também que os fantasmas dessas jovens o acompanham: “c´est lá, quand je rêve dans l´ombre / qu´ils viennent tour-à-tour m´entendre et me parler” [é neste momento, quando sonho sob a sombra / que eles vêm, cada um por sua vez, me escutar e me falar]. Tomado por uma dessas lembranças, o poeta decide contar a história de uma jovem espanhola que, ao receber uma corrente de ar fria na saída de um baile, se adoenta e vem a falecer aos quinze anos de idade. No segmento final, o poeta adota a voz do moralista com o propósito de apresentar o valor edificante de sua narrativa: Vous toutes qu`à ses jeux le bal riant convie, Pensez à l´espagnole éteinte sans retour, 14 “Nas dobras sinuosas das velhas capitais, / Onde tudo, mesmo o horror, torna-se sedução, / Espiono, obedecendo a meus fatais humores, / Seres singulares, decrépitos e encantadores.” 15 “Eles trotam, à maneira de marionetes; / Arrastam-se, como fazem os animais feridos; / Ou dançam, mesmo sem querer dançar, pobres sinetas / onde se pende um Demônio impiedoso! Bem que desarticulados / como são, possuem olhos agudos como uma verruma / Luzentes como esses buracos onde durante a noite a água dorme;” 11 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Jeunes filles! Joyeuse, et d´une main ravie Elle allait moissonant les roses de la vie, Beauté, plaisir, jeunesse, amour!16 Pode-se concluir que o poema seria o desenvolvimento de uma tópica retórica: “lembra que és mortal”, e que ele não teme assim o tom didático. Nesta estrofe, o poeta adota a voz do homem maduro para dirigir um apelo às jovens que se entregam aos prazeres dos bailes: jovens, cuidai com zelo de vossa vidas, porque a indesejada das gentes pode chegar a qualquer momento! Lembrai-vos, portanto, sempre da jovem espanhola: “Elle aimait trop le bal, c’est ce qui l’a tuée” [Ela amava demais o baile, foi isso o que a matou]. O poema de Baudelaire descreve, não a condição das jovens em meio aos bailes elegantes, mas a das senhoras idosas pela cidade de Paris. Não há aqui uma abertura de cunho narrativo, à semelhança daquela que há nas estrofes iniciais do poema de Hugo. Isso não quer dizer que o poeta de “As velhinhas” não se sirva da entonação para descrever sua história ou que não se dirija diretamente a seu leitor: “Avez-vous observé que maints cercuils de vieilles / Sont presque aussi petis que celui d´un enfant?” [Você já observou que a maioria dos caixões das velhas / São quase tão pequenos quanto o de uma criança?]. Ocorre que a imaginação do poeta não é despertada pela memória como acontecia em “Fantasmas” (“Alors je songe et je me souviens...” [Então começo a sonhar e me lembro...], dizem os versos de Hugo), mas sim pela visão concreta das senhoras idosas pelas ruas de Paris: “Ah! que j´en ai suivi de ces petites vieilles !” [Ah! Como segui tantas dessas velhinhas!], exclama o poema de Baudelaire. Noutras palavras, os fantasmas não são mais seres mortos de que podemos contar histórias, mas seres vivos com os quais nos deparamos todos os dias nas ruas da cidade. Et lorsque j´entrevois un fantôme débile Traversant de Paris le fourmillant tableau, Il me semble toujours que cet être fragile S´en va doucement vers un nouveau berceau;17 Pode-se dizer que a experiência do choque vivido nas grandes cidades se encontra de certa maneira condensado nessa visão do poeta: “Toutes m´enivrent!” [Todas me embriagam!].18 Este não esconde que goza de um prazer no momento em que acompanha essas senhoras pelas ruas da cidade: “Je goûte à votre insu des plaisirs clandestins” [Experimento, sem que saibais, prazeres clandestinos]. Graças à visão dessas senhoras, ele pode gozar a experiência de se afastar de sua rotina e de seus próprios desejos, para reviver as paixões dessas velhas mulheres: Sombres ou lumineux, je vis vos jours perdus; Mon coeur multiplié jouit de tous vos vices! Mon âme resplendit de toutes vos vertus !19 16 “Vós todas que a seus jogos o baile sorridente convida / Lembrai-vos da espanhola que se extinguiu, sem volta, / Jovens mulheres! Alegre, e com uma mão feliz, / Ela ia colhendo as rosas da vida, / Beleza, prazer, juventude, amor!” 17 “E quando entrevejo um fantasma frágil / atravessando o formigante cenário de Paris, / parece-me sempre que esse ser frágil / está partindo suavemente para um novo berço;” 18 Num ensaio que se tornou célebre, “Sur quelques thèmes baudelairiens”, Walter Benjamin (2000) chamava a atenção para o papel que o choque e o excitamento desempenham na poesia de Baudelaire. 19 “Sombrios ou luminosos, vivo vossos dias perdidos; / Meu coração multiplicado goza de todos vossos vícios! Minha alma resplandece de todas vossas virtudes!” 12 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Mas esse sentimento de compaixão não teme o emprego de palavras cruéis para descrever a condição pobre dessas senhoras e tornar mais forte seu estado de precariedade: Sous des jupons troués ou sous de froids tissus Ils rampent, flagellés par les bises iniques, Frémissant au fracas roulant des omnibus, 20 O mal anunciado a todo o momento pela visão dessas senhoras é o destino que os cidadãos temem, aviltam e ignoram, visto que não há mais espaço no dia-a-dia da cidade para essa gente deforme: Peureuses, le dos bas, vous côtoyez les murs; Et nul ne vous salue, étranges destinées ! Débris d´humanité pour l´éternité mûrs !21 Essas velhas senhoras seriam, nesse sentido, a mais pura expressão de um desajuste entre os habitantes da cidade22: quem teria a coragem – ou a perversidade – de olhar frente a frente esses fantasmas e saudar esses “seres singulares, decrépitos e encantadores”, a não ser o poeta por meio de seus versos? Conclusão A leitura desses dois poemas pode esclarecer decerto as linhas de força que separam o 20 “Sob saias rotas ou frios tecidos / Elas rastejam, flageladas pelos ventos iníquos, / Estremecendo ao barulho que rola dos ônibus,” 21 “Medrosas, a costa curvada, andais rente aos muros; / E ninguém vos saúda, estranhas destinadas! Restos de humanidade prontos para a eternidade!” 22 Sem muita ginástica hermenêutica, o poema pode ser lido como uma alusão ao tratamento dispensado pelo governo de Napoleão III às mulheres que perderam seus maridos ou filhos, exilados, deportados ou mortos durante a Segunda República francesa. O tema forma um dos motivos dos poemas reunidos no livro-manifesto de Hugo contra “Napoleão, o pequeno”: Os Castigos [Les châtiments], de 1852: “A cause de cet homme, empereur éphémère, / Le fils n’a plus de père et l’enfant plus d’espoir, / La veuve à genoux pleure et sanglotte, et la mère / N’est plus qu’un spectre assis sous un long voile noire” [Por causa desse homem, imperador efêmero, / o filho não possui mais pai e a criança esperança, / A viúva, de joelhos, chora e geme, e a mãe / é apenas um espectro sentado sob um longo véu escuro] (HUGO, 1967, v. II, p. 94). De resto, a dedicatória a um dos mais importantes exilados constitui um elemento significativo para a compreensão de “As Velhinhas”; um historiador contemporâneo, investigando a atividade política de Hugo durante o Império, pode declarar: “Como julgar a dívida da República para com os Miseráveis? Ainda mais que, em virtude do próprio exílio, a única menção ao nome de Hugo adquire neste momento um aspecto militante. Em 1865, as conferências dadas por Dumas são suspensas porque ele tinha falado do exilado (...)”. (ROSA, 2004, p. 44) O tema da anistia e do retorno dos exilados era evocado na carta em que Baudelaire envia o poema manuscrito a Hugo. Em 15 de agosto de 1859, o Império havia decretado a anistia de seus adversários exilados, mas Hugo responde, por meio de uma nota, que não voltaria para a França: “Fiel ao engajamento que tomei diante de minha consciência, partilharei até o fim o exílio da liberdade. Quando a liberdade retornar, retornarei” (1993, v. 2, p. 1037). Na carta de setembro de 1859, Baudelaire elogia a postura de Hugo em face da política imperial: “Quando sua nota chegou, ficamos consolados. Sabia que os poetas valem os Napoleões, e que Victor Hugo não podia ser menor que Chateaubriand.” (1993, v. 2, p. 598, grifos do autor) Para Baudelaire crítico da ideologia da burguesa e do governo estabelecido por Napoleão III, é possível consultar os livros de Richard Burton (1991) e Dolf Oehler (1999). 13 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 romantismo da modernidade. Os dois textos possuem, como já vimos, um forte caráter narrativo, subordinando-se ao projeto romântico de descrever a cidade e seus contrastes: o primeiro evoca a história de uma jovem que vem a falecer por causa de uma corrente de frio na despedida de um baile, ao passo que o segundo descreve a vida das senhoras idosas por Paris. Mas, se o poema de Hugo aborda o tema da juventude por meio da memória, o poema de Baudelaire prefere representar diretamente a triste condição das velhinhas na cidade. E mais: se o poema de Hugo adota o tom do moralista para compor seu poema de certo conteúdo edificante, o poema de Baudelaire não teme adotar a perspectiva de um perverso para acentuar os desajustes de nossa sociedade: “Ah! que j’en suivi de ces petites vieilles!” [Ah! Como segui tantas dessas velhinhas!]; “Toutes m’enivrent!” [Todas me embriagam!]. Tudo somado, pode-se concluir que “As velhinhas” não se limitam apenas a imitar “Fantasmas”; o poema de Baudelaire parece realizar, mais propriamente, uma crítica velada a certas fantasias românticas que marcam o poema de Hugo.23 Pode-se lembrar, nesse sentido, a conclusão de “Fantasmas”, especialmente os versos em que o poeta se dirige aos jovens moças entusiasmadas pelos bailes e lhes recomenda prudência, visto que a morte pode chegar a qualquer momento. O tom didático desses versos se vincula a aspectos importantes do movimento romântico tal como ele foi concebido por Hugo: esses versos mostram o comprometimento do poeta, empenhado nas questões sociais de nossa sociedade. Assim é que, em meio a um poema onde o eu-lírico conta suas lembranças de uma espanhola morta na flor da idade, há lugar para uma advertência às jovens sobre os perigos dos bailes: “Elle aimait trop le bal, c’est ce qui l’a tuée.” [Ela amava demais o baile, foi isso o que a matou]. Ora, o prosaísmo e mesmo a comicidade desses versos de conteúdo “social”, uma espécie de campanha pública sobre os perigos dos bailes para as jovens - não era decerto estranho a Baudelaire; é o que se pode deduzir de uma de suas cartas, de 18 de fevereiro de 1860, na qual discute com o crítico e escritor Armand Fraisse um artigo escrito por este sobre A Legenda dos séculos, de Hugo: No artigo sobre Hugo, parece que você estava intimidado, incomodado. Você não distinguiu de maneira clara a quantidade de beleza eterna que existe em Hugo das superstições cômicas introduzidas nele pelos acontecimentos, isto é, a estupidez ou sabedoria moderna, a fé no progresso, a salvação do gênero humano pelos balões etc. (BAUDELAIRE, 1993, v. 1, p. 675) 24 23 O tema dos desvios – ou das traições – da imitação para com o original está presente na própria carta em que Baudelaire reconhece “As Velhinhas” como uma cópia do estilo hugoano: “O segundo trecho [‘As Velhinhas’] foi feito com o propósito de imitá-lo (ria de minha fatuidade, eu mesmo dou risada) (...). Algumas vezes vi nas galerias de pintura miseráveis aprendizes que copiavam as obras dos mestres. Bem ou mal feitas, colocavam algumas vezes em suas imitações, sem que eles próprios se dessem conta, alguma coisa de sua própria natureza, grande ou trivial. Isso será talvez (talvez!) a licença para minha audácia.” (1993, v. 1, p. 598) 24 “A salvação do gênero humano pelos balões”: Baudelaire alude aqui ao poema “Vingtième siècle” [Século Vinte], que faz parte do livro La Légende des siècles, de Hugo. Nesse longo poema (722 versos), composto de dois segmentos intitulados “Pleine Mer” [Pleno mar] e “Plein ciel” [Pleno céu], Hugo faz um elogio do balão dirigível, como símbolo do progresso alcançado por nossa sociedade. Eis aqui a última estrofe do poema: “Nef magique et supreme ! (...) Elle a cette divine et chaste fonction / De composer là-haut l’unique nation, / À la fois dernière et première, / De promener l’essor dans le rayonnement, / Et de faire planer, ivre de firmament, / La liberté dans la lumière.” [Nave mágica e suprema! (...) Ela possui esta divina e casta função / de compor lá no alto a única nação, / a um só tempo última e primeira, / de conduzir o vôo pelos raios de sol, / e de fazer planar, ébrio de firmamento, / a liberdade na luz.” (HUGO, 1950, p. 732) 14 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 A citação demonstra o desacordo entre a sensibilidade romântica e a moderna. O poema de Hugo seria por demais irregular: haveria uma mistura desordenada de elementos poéticos (“a beleza eternal”) e prosaicos (“a estupidez ou sabedoria moderna”, “a fé no progresso”, “a salvação do gênero humano” pelas campanhas públicas). Para Baudelaire, na origem dessa irregularidade se acha a crença romântica de que a nossa sociedade avança para um estado de bem-estar geral e de que a arte deve contribuir para essa marcha, uma crença partilhada por Hugo e expressa muitas vezes por ele. Podemos lembrar as máximas do poeta na célebre carta destinada a Baudelaire: “Os passos da Humanidade são os mesmos passos da arte. Então, glória ao Progresso. Pelo progresso sofro neste momento e estou pronto para morrer” (2007, p. 297). Ora, Baudelaire não pode acreditar que o progresso pode beneficiar a expressão artística ou trazer bem-estar para a nossa sociedade; pelo contrário, ele supõe que a crença no progresso seria a causa de muitos dos nossos males: Deixo de lado a questão de saber se, tornando mais delicada a humanidade em virtude dos novos prazeres que lhe oferece, o progresso indefinido não seria sua mais engenhosa e sua mais cruel tortura; se, procedendo por uma obstinada negação de si mesmo, o progresso não seria um modo de suicídio renovado incessantemente e se, encerrado no círculo de fogo da lógica divina, não se assemelharia ao escorpião que mata a si mesmo com seu terrível ferrão, o eterno desideratum que promove o eterno desespero? (BAUDELAIRE, 1975, v. 2, p. 581) Para concluir, digamos que, se Baudelaire admira no autor de “Fantasmas” a força do trabalho poético25, bem como a presença de motivos atuais ou contemporâneos (a cidade, os bailes, as jovens, a espiritualidade, para permanecermos no poema em tela26), ele considera que a poesia de Hugo se acha por demais imbuída de utopia romântica, particularmente de teoria social progressista27, a ponto de tornar seu poema, “Fantasmas”, como vimos, uma espécie de campanha de saúde pública sobre os efeitos nocivos dos bailes para as jovens: “Vous toutes qu`à ses jeux le bal riant convie, / Pensez à l´espagnole éteinte sans retour, / Jeunes filles !” [Vós todas que a seus jogos o baile sorridente convida / lembrai-vos da espanhola que se extinguiu, sem volta, / Jovens mulheres!]. Os aspectos edificantes e ingênuos do poema se manifestam nesse momento em que dirige um apelo mórbido às jovens: “lembrai que morrereis”, sob o pretexto de abordar um importante problema social, a saber, os perigos dos bailes. Ora, os propósitos humanistas dessa poesia são o objeto de uma crítica que não pode acreditar mais na boafé de leitores (e poetas), nem em uma comunhão de sentimentos e interesses entre os indivíduos que compõem nossa sociedade28. Para 25 Desde seu “Salão de 1846”, Baudelaire observa o virtuosismo do poeta: “Victor Hugo deixa ver em todas as suas composições, líricas e dramáticas, um sistema de alinhamento e de contrastes uniformes. A própria excentricidade aparece nele sob formas simétricas. Ele conhece a fundo e emprega friamente todos os tons da rima, todos os recursos da antítese, todas as artimanhas da aposição. Trata-se de um compositor de decadência ou de transição, que se serve de seus instrumentos com uma destreza verdadeiramente admirável e curiosa.” (1975, v. 2, p. 431) 26 No “Salão de 1846”, Baudelaire reconhece que um dos traços distintivos do romantismo é a incorporação de temas atuais e modernos à forma artística: “Para mim, o romantismo é a expressão mais recente, a mais atual do belo”. E conclui: “Quem diz romantismo, diz arte moderna, isto é, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração ao infinito, expressos por todos os meios que as artes possuem” (1975, v. 2, p. 420). 27 Para o papel que as teorias sociais progressistas desempenharam no romantismo, é possível consultar o sugestivo livro de Elias Tomé Saliba: As Utopias românticas (1991). 28 A questão do papel moral das obras de arte – as criações artísticas devem conter uma função moralizante ou pedagógica? – percorre a crítica de Baudelaire e merece aí tratamentos discordantes. A questão aparece em sua 15 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Baudelaire, o poeta moderno deve desconfiar da transparência da linguagem e, até mesmo, dos indivíduos; assim, num dos projetos de prefácio para as Flores do mal, ele admite o papel inútil que os argumentos sadios podem desempenhar de agora em diante: “aqueles que sabem me adivinham, e para aqueles que não podem ou não querem compreender, acumularia explicações sem nenhum resultado” (1975, v. 2, p. 182). LE POETE ROMANTIQUE ET LES PETITES VIEILLES RESUME: Cet article aborde les rapports entre le romantisme et la modernité par une comparaison entre deux poèmes : « Fantômes », de Victor Hugo et « Les Petites vieilles », de Baudelaire. La comparaison vise illuminer les questions relatives à l’héritage romantique dans la modernité. Les deux poèmes ont des aspects narratifs et ils se soumettent au projet romantique de décrire la ville et ses questions sociales. Une fois exposées les afinnités entre les deux poèmes, nous allons examiner les éléments qui les distinguent. Nous verrons ainsi que le poème de Baudelaire semble faire une critique moderne à certains fantasmes romantiques qui marquent le poème de Hugo. MOTS-CLES : Baudelaire. Hugo. Romantisme. Modernite. THE ROMANTIC POET AND THE LITLLE OLD LADIES ABSTRACT: The text approaches the romanticism and the modernity by a comparison between two poems: “Phantoms”, by Victor Hugo, and “The Little old ladies”, by Baudelaire. The comparison aims to illuminate the romantic inheritance in modernity. Both poems have a narrative aspect and they follow the romantic project of describing the city and its social questions. Once the affinities between both poems are explained, we are going to examine the elements which distinguish them. We will see that the Baudelaire's poem seems to make a modern critique of the romantic fantasies which mark Hugo's poem. resenha de Madame Bovary, de 1857: “Muitos críticos disseram: esta obra (...) não contém uma só personagem que represente a moral, que seja a voz da consciência do autor. Onde está a personagem proverbial e legendária, encarregada de explicar a fábula e dirigir a inteligência do leitor? (...) Absurdo! (...) Uma obra de arte verdadeira não tem necessidade de requisitório. A lógica da obra basta para todas as postulações morais, e cabe ao leitor tirar as conclusões da conclusão.” (1975, v. 2, p. 81-2). Em outro ensaio, de 1851, “Os dramas e os romances honestos” [Les Drames et les romans honnêtes], Baudelaire realiza um elogio dos romances de Balzac e declara que o artista deve descrever os costumes de nossa época sem meias tintas, e cabe ao leitor tirar a moral dessa obra de arte: “De fato, é preciso pintar os vícios tais como eles são, ou não vê-los. E se o leitor não conhece em si próprio um guia filosófico e religioso para acompanhá-lo na leitura do livro, tanto pior para ele.” (1975, v. 2, p. 42) Pode-se concluir que Baudelaire não tolera uma literatura cujo propósito seja moral ou edificante; assim, seu “Salão de 1846” ria “da literatura Marion de Lorme, que consiste em pregar as virtudes dos assassinos e das prostitutas” (1975, v. 2, p. 42). Isso dito, o prefácio para o livro de Pierre Dupont, Cantos e canções [Chants et chansons], de 1851, demonstra um ponto de vista bem diferente sobre o tema; Baudelaire critica aqui “a pueril utopia defendida pela escola da ‘arte pela arte’” (1975, v. 2, p. 27); realiza um elogio das canções populares e socialistas de Dupont, e associa a expressão artística contemporânea a um conteúdo moral: “a arte se tornou desde agora inseparável da moral e da utilidade” (1975, v. 2, p. 27). Um outro ponto de vista sobre o assunto aparece no ensaio sobre Victor Hugo (“Reflexões sobre alguns de meus contemporâneos”, de 1861); neste ensaio, embora continue a reconhecer o “moralismo” de Hugo, Baudelaire declara: “Não se trata aqui [na obra de Hugo] dessa moral pregadora que, pelo seu ar pedante, pelo seu tom didático, pode arruinar os mais belos trechos de poesia, mas de uma moral inspirada que desliza, invisível, para o interior do material poético, como os fluidos imponderáveis para toda a máquina do mundo. A moral não entra nesta arte na qualidade de fim; ela se mistura e se confunde aqui com a arte como a vida ela própria. O poeta é moralista sem querer, pela abundância e plenitude da natureza.” (1975, v. 2, p. 137) O trecho ressoa como um claro exemplo do reconhecimento por Baudelaire da “beleza eterna que existe em Hugo” (BAUDELAIRE, 1993, v. 1, p. 675). 16 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 KEYWORDS: Baudelaire. Hugo. Romanticism. Modernity. REFERÊNCIAS AMARAL, G C. do. Rêve Parisien em sequência literária. Alea, estudos neolatinos. Rio de Janeiro, v.9, n.2, p. 263-275, Jul./Dez. 2007. ______. Victor Hugo e Baudelaire: Afetos Controversos. Lettres Françaises, Araraquara, n. 5, p. 61-75, 2003. BAUDELAIRE, C. Correspondance. 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Essa leitura intenta mostrar a existência de um diálogo entre a representação literária do índio brasileiro e o conceito de homem natural de Jean Jacques Rousseau. Para além do viés nacionalista, tal diálogo explicita a consciência do poeta em relação ao seu papel no Romantismo brasileiro e, ao mesmo tempo, confere um traço universal à sua obra poética. PALAVRAS-CHAVE: Gonçalves Dias. Indianismo, “O canto do guerreiro”. O poeta e o indianismo De maneira geral, o projeto literário do indianismo romântico preocupou-se, segundo Antonio Candido, com a equiparação qualitativa entre o índio e o conquistador, “realçando ou inventando aspectos do seu comportamento que pudessem fazê-lo ombrear com este – no cavalheirismo, na generosidade, na poesia” (1981, p. 20). No caso de Gonçalves Dias, pode-se dizer que o seu indianismo, parente próximo do medievalismo coimbrão, também faz parte do todo ideológico que movia o Romantismo brasileiro, mas não era motivado apenas pela necessidade de uma literatura nacional, era-o também pela preocupação etnográfica com os destinos da população indígena. No final de 1849 e início de 1850, em artigo publicado em duas partes nos primeiros números da revista Guanabara, em que comenta as Reflexões sobre os anais históricos do Maranhão, obra de Bernardo Pereira de Berredo,30 Gonçalves Dias assim define o índio: “Imprevidência, resignação e heroicidade, eis o índio. (...) Tudo isto é índio, tudo isto é nosso; e tudo isto está como perdido para muitos anos”. (DIAS, 1849, p.29) Além de explicitar o heroísmo indígena, o poeta condena tanto a sua escravidão quanto a sua destruição: Sim, a escravidão dos índios foi um grande erro, e a sua destruição foi e será uma grande calamidade. Convinha que alguém nos revelasse até que ponto este erro foi injusto e monstruoso, até onde chegaram essas calamidades no passado, até onde chegarão no futuro: eis a história. (DIAS, 1849, p. 30) Por fim, acreditando numa dívida histórica para com esses primeiros brasileiros, Gonçalves Dias explicita a necessidade de se reconstruir, notadamente por meio da poesia, o “mundo perdido” dos indígenas: Convinha também que nos descrevesse os seus costumes, que nos instruísse nos seus usos e na sua religião, que nos reconstruísse todo esse mundo perdido, que nos iniciasse nos mistérios do passado como caminho do futuro, para que saibamos 29 (UFSCar) Universidade Federal de São Carlos - Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) Departamento de Letras (DL), São Carlos – SP – Brasil – 13565-905. E-mail: [email protected]. 30 Bernardo Pereira de Berredo e Castro, fidalgo da Casa Real e Capitão de Cavalaria, foi o governador do Maranhão entre 1718 e 1722. Segundo o historiador Mário M. Meireles, Berredo ficou mais conhecido como autor dos Anais históricos do Estado do Maranhão do que propriamente como governador, uma vez que seu governo foi caracterizado por desmandos e arbitrariedades. (MEIRELES, 1960, pp. 153-154) 18 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 donde viemos e para onde vamos, convinha enfim que o poeta se lembrasse de tudo isso, porque tudo isto é poesia; a poesia é a vida do povo, como a política é o seu organismo. Que imenso trabalho não seria este! Mas também quantas lições para a política, quantas verdades para a história; quantas belezas para a poesia. (DIAS, 1849, p. 30) Se, por um lado, o tom engajado do trecho anterior demonstra as preocupações etnográficas de Gonçalves Dias, por outro, deve-se ter em mente que o “imenso trabalho”, a que o poeta se referiu e que efetivamente realizou, deu-se na esfera do poético e como tal deve ser entendido. No entanto, apesar de Antonio Candido afirmar que: o indianismo, longe de ficar desmerecido pela imprecisão etnográfica, vale justamente pelo caráter convencional; pela possibilidade de enriquecer processos literários europeus com um temário e imagens exóticas, incorporadas desse modo à nossa sensibilidade [e que] o índio de Gonçalves Dias não é mais autêntico do que o de Magalhães (...) pela circunstância de ser mais índio, mas por ser mais poético, (1981, p. 85) a preocupação etnográfica, no caso do poeta maranhense, não pode ser de todo desprezada, pois a representação literária do índio gonçalvino é resultante do amalgamento de dois índios: um “simbólico”, construído na esteira da tradição exótica da literatura européia, e outro “real”, fruto das pesquisas de campo realizadas pelo poeta. Além dessa relação dialética que, dependendo do poema, pode fazer com que a balança da representação penda ora para um lado ora para outro, a novidade da poesia de Gonçalves Dias pode ainda ser complementada pela mudança de perspectiva no tratamento da voz indianista. Ao contrário das obras árcades de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, em que os indígenas desempenham um papel secundário e de subserviência ao colonizador luso, um outro traço original da poesia de Gonçalves Dias está na concessão de uma “voz poética” própria ao índio, tendo em vista que o mesmo, por não ter sido contaminado pelos males da civilização, é simbolicamente superior ao europeu. Sugerindo uma retomada do mito do bom selvagem, essa nova poesia, afirma o crítico Luiz Roncari, “deveria ser feita da perspectiva dos índios, já que ética e culturalmente estariam mais aptos a julgar o branco europeu que este a eles”, e como o poeta possuía uma formação européia, o seu talento, complementa o crítico, “residia na capacidade de colocar à disposição dessa nova visão tudo o que aprendera de melhor: a cultura européia e sua tradição poética” (1995, p. 366). Em outras palavras, a representação do indígena na produção poética de Gonçalves Dias passa necessariamente pela compreensão do processo educativo de seu próprio olhar sobre o Brasil. Ao estudo, às vezes in loco, da vida indiana, deve-se agregar dois outros fatores essenciais para o entendimento do olhar gonçalvino: a viagem à Europa 31 e o testemunho do viajante estrangeiro sobre o Brasil. Funcionando como duplo substrato, tanto a 31 É interessante notar como a prática do ir lá para poder entender o aqui funda uma tradição nas das letras nacionais. Exemplo notável disso, que ocorre nos primórdios do Modernismo brasileiro, é o testemunho de Paulo Prado no prefácio de Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, em que o autor de Retrato do Brasil explica a gênese da poesia oswaldiana: “A poesia ‘pau-brasil’ é o ovo de Colombo – esse ovo, como dizia um inventor meu amigo, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto do atelier do Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à terra confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Este fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau-brasil’”. (PRADO in ANDRADE, 1990, p 57) 19 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 primeira quanto o segundo atestam a influência do viés externo que, ao possibilitar o estabelecimento de comparações entre realidades tão diversas, permitiu ao poeta entender que o mal-estar da diferença em relação à Europa seria, na verdade, condição indispensável para a fabulação da identidade local. Demonstrando, por um lado, uma fina sintonia com o Romantismo europeu na medida em que foi experiência paradigmática dos principais expoentes da literatura romântica ocidental, a viagem permite o estabelecimento de comparações inevitáveis entre as diversas realidades culturais, uma vez que: “afastados de nosso país – argumenta Chateaubriand em O gênio do cristianismo – é que mais sentimos o instinto que mais nos prende” (1945, p.163). No primeiro momento em que viveu em Portugal (1838-1845), Gonçalves Dias pôde perceber que é no conhecimento da experiência do “outro” que se compreende o “eu”; é na imersão do Romantismo europeu que o poeta descobre a necessidade de representação da cultura americana. Em carta reveladora a Teófilo Leal, de março de 1844, Gonçalves Dias comunica ao amigo o desejo de: compor um Poema [Os Timbiras?] – é por agora – ‘a minha obra’. Quero fazer uma cousa exclusivamente americana – exclusivamente nossa – e eu o farei talvez. Já que todo o mundo hoje se mete a inovar – também eu pretendo inovar – inovarei – criarei alguma cousa que, espero Deus, os nossos não esquecerão. (1964, p. 30) Por outro lado, o testemunho do olhar estrangeiro tornou-se aval necessário para o próprio conhecimento do Brasil. Comentando, por exemplo, uma famosa passagem do “Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”, em que Gonçalves de Magalhães recorre ao testemunho insuspeito dos viajantes europeus sobre o Brasil, Flora Süssekind observa que, ao contrário do que sugere o final do texto de Magalhães, isto é, que por meio do relato dos estrangeiros as belezas do Brasil se tornaram conhecidas na Europa, as “páginas sublimes” dos viajantes revelaram o país não apenas à Europa, mas principalmente aos poetas brasileiros (1990, pp. 46-45). Por sua feita, Gonçalves Dias, ao balizar seu olhar na perspectiva de quem olha de “fora”, pôde, a exemplo do estrangeiro, ver o Brasil como se fosse pela primeira vez. Tal perspectiva se confirma quando o próprio poeta alerta o leitor numa nota de rodapé que acompanha o poema “O canto do guerreiro” e que, por sua vez, serve como uma espécie de guia de entendimento para os poemas indianistas: “Estes cantos, afirma Gonçalves Dias, para serem compreendidos precisam ser confrontados com as relações de viagens, que nos deixaram os primeiros descobridores do Brasil e os viajantes Portugueses, Franceses e Alemães, que depois deles se seguiram” (1944, p.26). A busca de um tema nacional A despeito do intuito de “verdade observada” que marcaram a feitura dos vários livros sobre o Brasil, nos quais se apoiou Gonçalves Dias para a elaboração de sua poesia indianista, pode-se dizer que, de modo geral, a imagem do selvagem americano, atribuída ao olhar estrangeiro, foi construída de maneira dúbia, oscilando entre o horror da barbárie de seus costumes como a antropofagia, e a louvação exagerada de sua inocência e bondade naturais. O próprio Caminha, no início de sua famosa carta a D. Manuel, afirma que “aqui não há de por mais do que aquilo que vi e me pareceu” (1963, p. 28), refere-se à inocência dos nativos em relação à nudez: 20 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. (1963, p. 32) Além dos testemunhos dos viajantes europeus, outra imagem do indígena americano, que muito contribuirá para a sua própria disseminação no imaginário europeu, encontra-se nos Ensaios (1580), de Montaigne. Sobretudo, em “Dos canibais”. Nesse texto, o pensador francês além de, num primeiro momento, preocupar-se com a relativização do próprio conceito de bárbaro – “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos [americanos]; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra” (2000, p.195) –, num segundo momento, preocupa-se em explicitar a superioridade destes em relação aos “civilizados”, conduzindo-os à esfera mitológica da idade do ouro: Esses povos – afirma Montaigne – não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos, não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia (2000, p.196). Essa primeira visão relativizada do índio, delineada por Montaigne, produzirá uma grande influência no pensamento filosófico francês, atingindo seu apogeu notadamente na obra de Rousseau. No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), o filósofo iluminista afirma que o aparecimento da propriedade foi a causa primordial da degradação do homem. Desse modo, contrastando com o civilizado, Rousseau louva a vida do homem em seu estado natural já que ali ele poderá encontrar no “instinto” todo o necessário para viver. Para o filósofo, a superioridade do homem natural reside justamente no fato de este não ter sua existência condicionada por qualquer espécie de relação moral, isto é, sendo um ser amoral, ele desconhece o que é ser bom ou mau, vivendo, por conseqüência, num estado de mais felicidade, uma vez que conservaria consigo a simplicidade do estado original. O grande legado da influência desse discurso de Rousseau foi a definitiva instauração no universo literário ocidental do mito do selvagem livre e feliz. A sua vida simples em permanente contato com a natureza confere-lhe uma superioridade própria que se opõe à vida do homem civilizado, organizada em função da propriedade. As repercussões das idéias de Rousseau foram profundas no imaginário romântico, e o conceito do “bom selvagem” logo se disseminou na literatura, repercutindo de modo direto, por exemplo, na obra de Chateaubriand. Além de realizar uma apologia estética e sentimental da religiosidade cristã com o seu O gênio do cristianismo, Chateaubriand, com os livros Atala e Les Natchez, acabou por dar vida própria ao indianismo. Referindo-se especificamente à Atala, o crítico Antonio Salles Campos afirma que “o certo é que Atala marcou a entrada do índio na grande literatura européia, e recriou o exotismo americano, introduzindo-lhe um novo colorido e uma nova e vibrante sensibilidade” (1945, p.109). Chateaubriand contribuiu decisivamente para conferir um status temático ao indianismo que, aceito e avalizado pelo 21 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Romantismo europeu, veio se adequar perfeitamente às necessidades de auto-afirmação da literatura brasileira. De Chateaubriand a Gonçalves Dias foi um pulo. Como primeiro indício dessa ligação basta lembrar que a epígrafe que abre as “Poesias Americanas” nos Primeiros cantos - “Le infortunes d´um obscur habitant des bois auraient-elles moins de droits à nos pleurs que celles des autres hommens?” (DIAS, 1944, p.19) - foi retirada justamente de Les Natchez. Antônio Salles Campos chega até mesmo a sugerir que esse livro do romântico francês foi “a faísca esplêndida que acendeu as faculdades imaginativas do poeta brasileiro nas suas criações indianistas” (1945, p.116). Insistindo nessa influência, o mesmo crítico afirma: “as ‘Poesias Americanas’ (...) ligam-se ao Romantismo europeu por intermédio de Chateaubriand, mas encontraram no Brasil o estímulo trazido pelo surto nacionalista que sucedeu à Independência, com a conseqüente reabilitação do aborígine” (1945, p. 117). O índio e a liberdade Além de contribuir para o delineamento do instinto de nacionalidade na literatura brasileira, a originalidade da poesia indianista de Gonçalves Dias é resultante não somente da inversão de perspectiva da voz poética como também da adequação dos processos literários europeus à sensibilidade local. Dessa forma, compreender como isso se deu inicialmente em “O canto do guerreiro” é, na verdade, começar a compreender como o conceito de “bom selvagem” dialoga com o herói indígena de Gonçalves Dias. O canto do guerreiro32 I Aqui na floresta Dos ventos batida, Façanhas de bravos Não geram escravos, Que estimem a vida Sem guerra e lidar. — Ouvi-me, Guerreiros, — Ouvi meu cantar. II Valente na guerra Quem há, como eu sou? Quem vibra o tacape33 Com mais valentia, Quem golpes daria Fatais, como eu dou? — Guerreiros, ouvi-me; — Quem há, como eu sou? III 32 33 Devido à importância das notas que acompanham o texto de Gonçalves Dias, resolvi reproduzi-las integralmente (N.A.) e também, quando julguei necessário, acrescentei entre colchetes informações complementares. Tacape – arma ofensiva, espécie de maça contundente, usada na guerra e nos sacrifícios. (N.A.) 22 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Quem guia nos ares A frecha implumada. Ferindo uma presa, Com tanta certeza Na altura arrojada Onde eu a mandar? — Guerreiros, ouvi-me, — Ouvi meu cantar. IV Quem tantos imigos34 Em guerras preou? Quem canta seus feitos Com mais energia, Quem golpes daria Fatais, como eu dou? — Guerreiros, ouvi-me: — Quem há, como eu sou? V Na caça ou na lide, Quem há que me afronte?! A onça raivosa Meus passos conhece, O imigo estremece, E a ave medrosa Se esconde no céu. — Quem há mais valente, — Mais destro do que eu? VI Se as matas estrujo Co’os sons do Boré35, Mil arcos se encurvam, Mil setas lá voam, Mil gritos reboam, Mil homens de pé Eis surgem , respondem Aos sons do Boré! — Quem é mais valente, — Mais forte quem é? VII Lá vão pelas matas; Não fazem ruído: O vento gemendo, E as matas tremendo E o triste carpido Duma ave a cantar, 34 Imigo – Segundo Manuel Bandeira, “geralmente se pensa que “imigo” é forma poética de “inimigo” com síncope de ni; mas Leite de Vasconcelos ensina (Opúsculos, 1928, Vol. I, pg. 236) ‘que é palavra da prosa antiga, formada pelo povo (a par de imiigo e imigo, como se vê em documentos antigos) e não pelos poetas’ ”. 35 Boré – instrumento músico de guerra, pouco menor que o Figli [instrumento de sopro, feito de metal com bocal, chaves e tubos cônicos dobrado sobre si mesmo]; - dá apenas algumas notas, porém mais ásperas, e talvez mais fortes, que as da trompa. (N.A.) 23 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 São eles — guerreiros, Que faço avançar. VIII E o Piaga36se ruge No seu Maracá37, A morte lá paira Nos ares frechados, Os campos juncados De mortos são já: Mil homens viveram, Mil homens são lá. IX. E então se de novo Eu toco o Boré, Qual fonte que salta De rocha empinada, Que vai marulhosa, Fremente e queixosa, Que a raiva apagada De todo não é, Tal eles se escoam Aos sons do Boré. — Guerreiros, dizei-me, — Tão forte quem é? (DIAS, 1944, pp. 23-27) Servindo-se da melhor tradição poética peninsular, Gonçalves Dias compõe “O canto do guerreiro” em redondilha menor. A escolha desse verso de origem medieval atesta a influência direta do Romantismo português na sua formação, pois, como se sabe, o resgate da Idade Média constituiu-se num importante eixo programático do universo romântico luso. Em Portugal, a revalorização da “medida velha”, que, até mesmo, culminou com a republicação, na década de 1840, do Cancioneiro geral, de Garcia de Resende, foi largamente difundida tanto pelo jornal literário O panorama, dirigido por Alexandre Herculano, quanto pela revista Crônica literária da nova academia dramática que contava entre seus colaboradores com José Freire de Serpa Pimentel a quem, inclusive, Gonçalves Dias dedicou o poema “O vate”. Além de usar a redondilha menor em seu texto, Gonçalves Dias organiza-o em nove estrofes que, por sua vez, se dividem em seis estrofes de oito versos, uma de nove, uma de dez e uma de doze versos. A variação do número dos versos nas estrofes de “O canto do guerreiro”, assim como a variação da métrica em “O canto do piaga” e em “O canto do índio”, é uma característica peculiar do poeta que, na verdade, procura sempre adequar o seu texto a uma necessidade de expressão própria. Aliás, no prólogo que abre os Primeiros cantos, Gonçalves Dias deixa isso claro ao afirmar que muitas de suas poesias “não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo regras de mera convenção; adaptei todos os ritmos da 36 Piagé – piaches – piayes ou piaga (que mais se conforma à nossa pronúncia), era ao mesmo tempo o Sacerdote e o Médico, o Augure e o Cantor dos indígenas do Brasil e d’outras partes da América. (N.A.) 37 Maracá – entre os Índios, o instrumento sagrado, como o Psaltério entre os Helenos, ou o Órgão entre os Cristãos; era uma cabaça crivada, cheia de pedras ou búzios, e atravessada por um hastil ornado de penas multicolores, que lhe servia de cabo. O antigo viajante Roloux Baro [?] testemunha da veneração que os índios lhe tributavam, chamava-a “Le diable porté dans une calebasse” – o diabo dentro d’uma cabaça. A esta palavra vão alguns modernos buscar a etimologia da palavra – América. (N.A.) 24 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 metrificação portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir” (1944, p. 17). Portanto, como se depreende das próprias palavras do poeta, será a sobrevalorização do ritmo que explicará um dos segredos de sua poesia. E “o ritmo, ensina-nos Antonio Candido, é uma realidade profunda da vida e da sociedade; quando o homem imprime ritmo à sua palavra, para obter efeito estético, está criando um elemento que liga esta palavra ao mundo natural e social” (1993, p. 45). Em “O canto do guerreiro”, tal ligação se mostra perfeita, pois o tom envolvente do texto casa-se naturalmente com a reafirmação constante da liderança do guerreiro. O complexo rítmico desse poema é dado pela predominância do anapesto, isto é, uma seqüência ternária de sílabas composta por uma forte e duas fracas, e que, para Manuel Bandeira, “é curioso notar que onde há movimento belicoso ou sentimento de orgulho, indignação, revolta, surge freqüentemente o ritmo ternário do anapesto” que, dessa feita, torna-se “em Gonçalves Dias a célula rítmica de toda a sua poesia de inspiração indianista” (BANDEIRA in DIAS, 1998, p.57). Ancorando-se no ritmo anapéstico, Gonçalves Dias confere voz a um guerreiro que louva sua dupla capacidade de liderança e bravura em relação tanto aos seus pares quanto aos seus inimigos. Desse modo e dominando o espaço que o circunda, isto é, “a floresta / Dos ventos batida”, o eu-lírico, num primeiro instante, explicita pela voz plural da terceira pessoa não apenas a sua própria condição de livre, conquistada e mantida se preciso o for pela guerra, mas, amplificando o alcance de tal condição, estende-a a todos os guerreiros de sua tribo: “Façanhas de bravos / Não geram escravos, / Que estimem a vida / Sem guerra e lidar”. Num segundo momento, afirmando o seu status de líder, conclama os mesmos guerreiros a escutarem seu canto: “— Ouvi-me, Guerreiros / — Ouvi meu cantar”. Aliás, esse “chamamento” direto, sempre em primeira pessoa, que está presente em quase todas as estrofes, excetuando a sétima e a oitava em que narra um combate, funciona no poema como refrão, cuja função é a de justamente reafirmar constantemente a sua liderança. Nas quatro estrofes seguintes, realçando a sua condição de líder, o eu-lírico, tomando para si o discurso, lançando desafios por meio de perguntas abruptas aos guerreiros que o escutam atentos e que, de antemão, sabem de sua valentia, descreve as suas destrezas, seja para a guerra, “Valente na guerra / Quem há, como eu sou?”, situação extrema em que o seu domínio do tacape mortal é superior ao de qualquer oponente, “Quem vibra o tacape / Com mais valentia!”; seja para louvar a pontaria certeira de sua flecha, “Quem guia nos ares / A frecha implumada (...) Onde eu a mandar?”; seja para cantar seus próprios feitos, comprovados pelo grande número de inimigos abatidos, “Quem tantos imigos / Em guerras preou? / Quem canta seus feitos / Com mais energia,”; seja para demonstrar que até mesmo os animais têm medo de sua astúcia, já que reconhecem, assim como os inimigos, o seu caráter superior, “A onça raivosa / Meus passos conhece, / O imigo estremece, / E a ave medrosa / Se esconde no céu.”. Após louvar as suas próprias habilidades, nas três estrofes seguintes, isto é, a sexta, sétima e oitava, o eu-lírico procura salientar não somente as suas características de chefe como também evidenciar a enorme influência que exerce sobre os seus guerreiros que, sempre alertas para o combate, aguardam o seu sinal de comando. Pelo som do boré, sinal cifrado de guerra, ele explicita a pronta resposta de seus homens, “Eis surgem, respondem / Aos sons do Boré!”, que silenciosos avançam implacavelmente sobre os inimigos. A perfeita comunhão entre os guerreiros e a natureza, “Lá vão pelas matas; / Não fazem ruído:”, é fator determinante na surpresa do ataque, “São eles — guerreiros, /Que faço avançar”. E 25 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 abençoados pelo Piaga que ruge o seu maracá, levam a morte cruel aos inimigos, “Nos ares frechados, / Os campos juncados / De mortos são já”. O poder do chefe sobre seus guerreiros é de tal maneira inquestionável que, na última estrofe do poema, e a despeito de não estar ainda de todo saciada a sede de luta de seus homens, “Que a raiva apagada / De todo não é!”, o combate é simplesmente interrompido. O que determina isso é a vontade do chefe e, ao mesmo tempo em que os seus liderados recuam, “Tal eles se escoam / Aos sons do Boré.”, ele se define superior, lançando uma pergunta que tem uma resposta que todos já sabem: “— Guerreiros, dizei-me, / — Tão forte quem é?”. A defesa da liberdade Comparando a representação indianista entre os românticos e os árcades, Antonio Candido (1981) vê nos últimos uma tendência de dar generalidade ao detalhe concreto, enquanto nos primeiros o indianismo denota uma tendência para particularizar os grandes temas, as grandes atitudes de que se nutriam a literatura ocidental, inserindo-as na realidade local, tratando-as como próprias de uma tradição brasileira. Em “O canto do guerreiro”, o “grande tema” predominante, imprescindível à afirmação local, é a defesa da liberdade, como forma de legitimação do status de independência política em relação a Portugal. No poema, o problema da liberdade aparece às avessas, isto é, através da louvação do caráter belicoso do indígena, condição necessária para a manutenção e representação da própria liberdade. Ao lado do piaga (pajé), o guerreiro ocupa um lugar importante no imaginário indígena. Enquanto o primeiro, observa o crítico Fritz Ackermann “é o representante do mundo sobrenatural”, o segundo “é o representante do mundo físico” (1964, p.91). Ambos têm suas funções demarcadas por ações que são reconhecidas e, sobretudo, respeitadas pelos seus pares. Dentro dessa perspectiva, e a seu modo inserindo-se também no movimento ideológico de contraposição ao colonizador, o caráter heróico de “O canto do guerreiro” está garantido pela defesa intransigente da liberdade, que, por sua vez, é validada tanto pela valentia do índio em relação aos inimigos quanto pela sua destreza na caça, enfim, por uma coragem superior que é demonstrada por meio de atos que, ao longo do poema, vão sendo de tal maneira intensificados que, ao fim e ao cabo, estão plenamente entranhados na memória dos ouvintes. Partindo-se aqui da crença de que a força poética de Gonçalves Dias é resultante de sua capacidade de incorporar o detalhe local à perspectiva romântica européia, pode-se creditar esse apego à liberdade, que permeia o eu-lírico de “O canto do guerreiro”, à influência direta do mito do “bom selvagem”. Como se sabe, em Rousseau, a noção de liberdade ocupa um lugar central no seu pensamento político-social; diferenciando o homem dos animais, o filósofo francês, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, afirma que: em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade, (...). A natureza manda em todos os 26 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir (2000, p.64). Essa consciência de liberdade no “bom selvagem” rousseauniano para concordar ou resistir é semelhante ao traço distintivo do caráter do selvagem explicitado por Gonçalves Dias na caracterização do índio local. Num famoso estudo etnográfico, Brasil e Oceania, o poeta afirma que “o traço distintivo do caráter do selvagem é o seu amor à independência, e o tédio a todo e qualquer constrangimento. Liberdade e espaço, eis sua vida” (s.d., p.142). Nesse sentido, continua Gonçalves Dias, as qualidades que os selvagens mais respeitavam em seus chefes eram a experiência e a coragem: o mais velho era o mais ouvido, o mais corajoso o melhor obedecido. Os velhos tinham uma autoridade constante, e os chefes guerreiros um poder temporário; mas ainda eram igualmente respeitados um e outro, o velho pelo costume e o chefe pelo temor. Distendido o arco, deposta a maça do combate, o primeiro dos guerreiros no campo da batalha, era ainda o mais glorioso, o mais respeitado no ócio da paz (IDEM, p. 142). Em “O canto do guerreiro”, como o nome já o antecipa, há uma preocupação generalizada de se explicitar o papel de liderança do guerreiro: “o chefe pelo temor”. Desse modo, o eu-lírico procura, a todo o momento, destacar a sua coragem em relação aos inimigos e aos seus pares, e assim, ao demarcar através de seu canto a sua destreza no manejo das armas e a sua liderança na batalha, ele está, na verdade, transformando o seu caráter belicoso num valor em si que, além de ser condição necessária à defesa da liberdade, premiava aqueles que “afrontavam a morte, as privações e os trabalhos com indomável coragem”.38 Legitimado pelo refrão, a reafirmação constante da liderança do chefe guerreiro valoriza a importância da guerra no imaginário indígena, já que o combate, observa ainda Gonçalves Dias, “era (...) a maior e a mais enérgica de suas paixões, porque ia nela a vingança” (IDEM, p. 149). Desse modo, para os indígenas, a guerra torna-se um modo legítimo de defender a liberdade, e aqui, na verdade, Gonçalves Dias segue de perto a lição de Montaigne, para quem os indígenas fazem guerras de um modo mais generoso e ela é neles desculpável e bela na medida em que pode ser desculpável e bela essa doença da humanidade, pois não tem entre eles outra causa senão a inveja e a virtude. Não entram em conflito a fim de conquistar novos territórios, porquanto gozam ainda de uma uberdade natural que sem trabalhos e nem fadigas lhes fornece tudo de que necessitam e em tal abundância que não teriam motivo para desejar ampliar suas terras. Têm ademais a felicidade de limitar seus desejos ao que exige a satisfação de suas necessidades naturais, tudo o que as excede lhes parecendo supérfluo (2000, pp. 199-200). 38 No início de Brasil e Oceania, Gonçalves Dias escreve a respeito dos Tupis: “A renhida luta que em todas as partes os Tupis sustentavam contra as tribos do interior, poderia provir de sua índole belicosa, – de suas instituições que consideravam o mais guerreiro como o mais digno de louvor e estima, – reservando todos os prêmios da vida futura para aqueles que sabiam afrontar a morte, as privações e os trabalhos com indomável coragem. É este um ponto de contato que tem entre si todos os povos selvagens, e principalmente os da América Meridional”. (s.d., p. 4) 27 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Em suma, ao destacar tanto o papel social do guerreiro quanto a importância da guerra no mundo indígena, Gonçalves Dias, em seu poema, associa dialeticamente elementos etnológicos à idéia do bom selvagem. Fundindo “real” e “simbólico”, o herói-guerreiro de Gonçalves Dias torna-se, desse modo, superior ao colonizador, na medida em que as ações do primeiro são pautadas, sobretudo, pela defesa da liberdade em si e não pelo interesse econômico. Talvez isso explique o fato de que a fixação da imagem do herói “bom selvagem” em “O canto do guerreiro” não se dê pela descrição física, mas por suas ações belicosas, isto é, pela apresentação de “um personagem que se ergue demonstrando aptidão, por ele mesmo exaltada, de cantar, com entusiasmo arrebatador, o hino de suas proezas” (ACKERMANN, 1964, p.91). Em tempos de independência política, a valorização da liberdade em “O canto do guerreiro” ajustou-se ao discurso nacionalista, no entanto, ao prezar a sua condição de livre, o líder guerreiro não apenas legitima a necessidade da guerra, mas, de certo modo, reaviva na memória um importante aspecto da própria tradição indígena. GONÇALVES DIAS, THE INDIGENOUS AND THE LIBERTY ABSTRACT: This article presents a reading of the poem “O canto do guerreiro” written by Antonio Gonçalves Dias. The aim is to show the existence of a dialogue between the literary‘representation of the Brazilian‘indigenous and the concept of natural man, by Jean Jacques Rousseau. Going beyond a reading upon a romantic nationalism view, such dialogue makes explicit the poet’ conscience of his hole in Brazilian Romanticism and, at same time, gives a universal dimension to his poetic work. KEYWORDS: Gonçalves Dias. Indianism. “O canto do guerreiro”. REFERÊNCIAS ACKERMANN, F. A obra poética de Antônio Gonçalves Dias, São Paulo, Conselho Estadual da Cultura, 1964. ANDRADE, O. Pau-Brasil. 2ª ed., São Paulo, Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990. CAMINHA, P. V. de. Carta a El Rei D. Manuel, Leonardo Arroyo (Introdução, organização do texto, glossário, bibliografia e índices), São Paulo, Dominus, 1963. CAMPOS, A. S. Origens e evolução dos temas da primeira geração de poetas românticos brasileiros. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1945. CANDIDO, A. O estudo analítico do poema. São Paulo, FFLCH/USP, 1993, CHATEAUBRIAND, F.R. de. O gênio do cristianismo, 8ª ed. Porto, Lello & Irmãos Editores, 1945. DIAS, A. G. Obras poéticas de Antônio Gonçalves Dias, Edição crítica de Manuel Bandeira, São Paulo, Nacional, v. 1, 1944. ______. Gonçalves Dias: poesia e prosa completas. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1998. ______. Brasil e Oceania. Paris/Rio de Janeiro, Garnier, s.d. ______. 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Guavira no11 CESÁRIO VERDE E PISSARRO: RETRATOS DA MODERNIDADE NO SÉCULO XIX Celia Regina Lessa ALEIXO39 Prof. Dr. Thomas BONNICI40 RESUMO: Discute-se a imagem da modernidade retratada por Camille Pissarro, nos quadros Boulevard Montmartre Tarde, Dia Chuvoso e Efeito Noturno e por Cesário Verde nos poemas Cristalizações e Num bairro moderno. O objetivo desse ensaio é fazer um contraponto entre o olhar de Cesário sobre o homem e a mulher operários na Portugal de seu tempo, exemplarmente retratados nos referidos poemas, e a visão de Pissarro sobre a agitação dos bulevares parisienses, arquétipos da modernidade que então se instalava. A metodologia de investigação baseia-se em textos teóricos que discutem a modernidade no século XIX, desenvolvidos por Berman e Bresciani, bem como textos que analisam as correspondências entre poesia e pintura, desenvolvidos por Joly, Praz, Bosi, Manguel, entre outros. Os resultados mostram que, tendo em mente o período de produção e as transformações sociais que ocorriam na época, uma analogia entre as obras de Verde e Pissarro é perfeitamente possível. Conclui-se que a singularidade das imagens que emanam das obras não está na reprodução da realidade, mas em sua sugestão por meio das impressões dos dois artistas. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Cesário Verde. Pissarro. Introdução A relação entre poesia e pintura tem sido objeto de interesse de estudiosos das artes há séculos. Um percurso histórico na tentativa de encontrar as raízes de tal relação nos remete aos séculos VI e V a.C., período em que se acredita ter vivido o poeta Simónides de Céos, autor da máxima – ‘pintura é poesia muda e a poesia é pintura falante’. Esse paralelo é reiterado por Platão na República e por Aristóteles que, em sua Poética, já falava das afinidades entre as duas artes no que tange ao objeto de imitação, sendo os meios de imitação utilizados, fator que as diferencia “a pintura usa as cores e as formas; a poesia usa a linguagem, o ritmo e a harmonia” (AGUIAR e SILVA, 1990, p. 163). A analogia entre poesia e pintura foi reformulada por vários autores ao longo da história, ora colocando-as em pé de igualdade, ora tratando uma ou outra como forma de expressão artística superior – visões bastante influenciadas pelas constantes transformações sociais, econômicas e culturais, cujo reflexo no campo das artes é inegável. A compreensão de como se dá essa analogia entre as duas artes já foi abordada por vários estudiosos. A idéia de artes irmãs está tão enraizada na mente humana desde a antiguidade remota que deve nela haver algo mais profundo que a mera especulação, algo que apaixona e que se recusa a ser levianamente negligenciado. Poder-se-ia mesmo dizer que, com sondar essa misteriosa relação, os homens julgam poder chegar mais perto de todo o fenômeno da inspiração artística (PRAZ, 1982, p. 1). 39 UEM – Universidade Estadual de Maringá – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras – Maringá – Paraná - Brasil – CEP 87020-900 - [email protected] 40 UEM– Universidade Estadual de Maringá – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras – Maringá – Paraná - Brasil – CEP 87020-900 [email protected] 29 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Partindo do pressuposto que literatura e pintura possuem pontos de identificação, esse ensaio propõe uma leitura das imagens da modernidade retratadas nos poemas Cristalizações e Num bairro Moderno, de Cesário Verde e das pinturas Boulevard Montmartre Tarde, Dia Chuvoso e Efeito Noturno, de Camille Pissarro. Ambos artistas vivenciaram as transformações sociais e os conflitos decorrentes do triunfo do capitalismo no século XIX – período em que a modernidade se desenvolveu a todo vapor. O século XIX destacou-se pelas transformações e a expansão sem precedentes na economia industrial e a conseqüente explosão demográfica nas cidades. As ruas tornaram-se palco do espetáculo urbano, lugar das multidões, se transformando em um dos temas daquele período – a rua é do povo, da massa, das multidões, do trabalho, da sobrevivência, dos encontros, dos protestos, da política. Em Paris, o projeto de reurbanização e a implantação dos bulevares cruzando de ponta a ponta o coração da velha Paris medieval transformou-se no arquétipo da vida moderna. Em Portugal, apesar da revolução dos meios de transporte (estradas de ferro, aquisição de locomotivas, navegação a vapor, etc.) a economia continuava sustentada pela agricultura. Nesse contexto, Cesário Verde e Pissarro conseguiram captar as conexões do indivíduo moderno com o ambiente urbano em flagrantes de momentos da vida social, cada qual apreendendo e representando em sua arte as transformações ocorridas nos ambientes urbanos em Portugal e na França no século XIX. De um lado temos a visão do poeta que consegue captar instantes fugidios da realidade do ambiente citadino de Lisboa, revelando-nos a miséria, sofrimento e a dificuldade do homem em integrar-se àquele ambiente. Os versos de Cesário são de tal modo rico em sons, ritmos, cores e sensações, que fazem emergir um cenário típico de um quadro. De outro lado, Camille Pissarro, o pintor Impressionista, ressaltando a modernidade, fascinado com as novas cidades e os amplos espaços dos bulevares. O pintor retrata o cotidiano das ruas, um de seus principais temas, em busca de novos ângulos, a fim de retratá-la em diferentes perspectivas. Pissarro e Cesário lançaram seus olhares sobre as multidões nas ruas, captaram suas impressões desse turbilhão da vida moderna e representaram os homens em seu cotidiano – pincel e pena retratando as transformações sociais do século XIX. Literatura e pintura: ecos da modernidade em artes irmãs Cesário Verde (1855-1886) e Pissarro (1830-1903) viveram no período em que a modernidade se estabelecia, criando no homem uma profunda dicotomia – as pessoas compartilhavam o sentimento de viverem em uma era revolucionária, caracterizada pelo desencadeamento de convulsões na vida pessoal, social e política e, ao mesmo tempo, ainda se lembravam do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não é moderno por inteiro. As transformações espaciais que mudaram as zonas urbanas influenciaram sobremaneira a vida dos cidadãos. O crescimento populacional misturou nas ruas homens e mulheres movimentando-se num ir e vir ininterrupto em meio a uma multidão desconhecida. Nesse panorama os bulevares parisienses, implantados por Georges Eugène Haussmann, então no cargo de prefeito da cidade de Paris por um mandato de Napoleão III, são considerados arquetípicos da modernidade. A obra revolucionária mudou o panorama da cidade, visto as amplas avenidas permitirem uma melhora na circulação do tráfego, à custa do deslocamento de milhares de pessoas, da destruição de edifícios antigos e de bairros inteiros. 30 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 [os bulevares] estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, em todos os níveis, e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas construções. Pacificariam massas, empregando dezenas de trabalhadores [...] em obras municipais de longo prazo, as quais por sua vez gerariam milhares de novos empregos no setor privado (BERMAN, 1994, p. 146). A construção de bulevares com seus postes de iluminação a gás mantinham a movimentação de pessoas ininterruptamente, compondo um espetáculo inquietante no qual “milhares de pessoas deslocando-se para o desempenho do ato cotidiano da vida das grandes cidades compõem um espetáculo que, na época, incitou ao fascínio e ao terror” (BRESCIANI, 1994, p. 10). Em meio ao intenso tráfego da cidade, o pedestre é o arquétipo do homem moderno, sendo ambos, o espaço e o homem, fonte de ‘inspiração’ para o artista observador – revelando conflitos e divisões de classe, transformando-se em palco de novos problemas sociais que surgiam com a consolidação do capitalismo moderno. A inovação dos bulevares parisienses não foi copiada em Portugal, conquanto as largas avenidas da capital francesa se tornaram símbolos de uma época, arquétipo do crescimento desenfreado das cidades, da modernidade. Embora Pissarro e Cesário tenham retratado ambientes diferentes, Paris e Lisboa respectivamente, percebe-se que ambos abordaram, através de suas deambulações, um tema maior, qual seja, o crescimento intenso das cidades europeias, transpondo para sua arte flagrantes do cotidiano através de um olhar perspicaz sobre as transformações que então se operavam nos ambientes urbanos. A importância da maneira como esse panorama foi representado por Cesário e Pissarro na poesia e na pintura ultrapassa o valor estético de suas obras. Ambos vivenciaram as transformações urbanas em seus países representando, por meio de palavras e imagens, suas impressões do real, levando-nos a perceber a estreita relação entre as duas artes. Se a natureza e os frutos do acaso são passíveis de interpretação, de tradução em palavras comuns, do vocabulário absolutamente artificial que construímos a partir de vários sons e rabiscos, então talvez esses sons e rabiscos permitam, em troca, a construção de um acaso ecoado e de uma natureza espelhada, um mundo paralelo de palavras e imagens mediante o qual podemos reconhecer a experiência do mundo que chamamos de real (MANGUEL, 2001, p. 22-23). Bosi (1989) pondera a respeito do papel social da arte, haja vista tratar-se de uma atividade do homem na tentativa de se relacionar com o mundo, em constante mutação, e consigo mesmo. Fazer, conhecer e exprimir são, segundo o autor, os três momentos pelos quais passam o processo artístico. A arte é fazer, na medida em que o homem transforma a matéria fornecida pela natureza e pela cultura. É conhecimento na medida em que o modo de compor de um artista é influenciado pelo período cultural em que vive, representando a realidade através de técnicas existentes, podendo recriá-las, acrescentando-lhes sua criatividade. É expressão – exteriorização de uma imagem criada e elaborada pelo artista. Segundo o autor, “a expressão e o seu significado formam-se em um processo de mútuas atrações. E os graus de transparência dessas relações são diversos. Raro é o fenômeno evidente por si mesmo” (BOSI, 1989, p. 54). Dessa forma, a análise de imagens e sentidos que emanam de um texto, seja ele um poema ou uma pintura, não é reflexo direto da realidade que o circunda, como uma fotografia que capta um dado momento registrando-o em imagem. Decifrar os possíveis significados de 31 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 um texto literário ou de uma pintura não se reduz a um relato de impressões que possam causar no leitor, faz-se necessário um estudo do contexto de produção da obra de arte, obedecendo a critérios estabelecidos por críticos, fruto de exaustivos estudos sobre o assunto. O reconhecimento de equivalentes de realidade na obra de arte implica em cautela por parte do analista cujo trabalho consiste em “decifrar significações que a ‘naturalidade’ aparente das mensagens visuais implica” (JOLY, 2001, p. 43). Reduzir a experiência estética a um pensamento particular é um hábito preconceituoso, pois contribui para separar o campo das artes do da ciência, sob a crença de que o hábito da análise mata o prazer estético. Para Joly (2001) a análise pautada em critérios científicos é trabalho que, apesar de demandar tempo e não poder ser feito com base em “achismos”, ajuda na compreensão da obra. Sua prática pode, a posteriori, aumentar o prazer estético e comunicativo das obras, pois aguça o sentido da observação e o olhar, aumenta os conhecimentos e, desse modo, permite captar mais informações (no sentido amplo do termo) na recepção espontânea das obras (JOLY, 2001, p. 47). Captar representações do real em arte é tarefa que exige espírito crítico, visto a passagem do tempo ter exercido transformações que influenciaram, entre outras esferas sociais, o campo das artes, não mais entendidas pelo princípio aristotélico de imitação da natureza. O decifrar de possíveis significados daquilo que foi expresso em forma de arte, seja por um escritor, seja por um pintor, em dado momento histórico é um processo mediado pela palavra que “[...] transita, ora questionando, ora elucidando, e sempre recriando formas e conteúdos para traduzir o ver e o sentir do artista, suscitados em uma determinada cultura e relacionados a um período de sua história” (BORGES, 2009, p. 69). Pissarro: impressões da modernidade Um dos ícones da pintura Impressionista, Camille Pissarro nasceu em julho de 1830 nas Antilhas, no seio de uma família que se opunha ao seu dom artístico que desde cedo se manifestara e que o levaria para a França onde seguiria a carreira de pintor. O contato com as obras dos grandes mestres da pintura francesa da época (Delacroix, Coubert e Corot), ao chegar à capital francesa em 1855, o influenciaria a abandonar os estudos nas escolas de arte para pintar ao ar livre. Em 1866 estabeleceu-se com a família em Pontoise, uma aldeia perto de Paris, onde pintava quase sempre ao ar livre, mostrando sua interpretação intuitiva às vistas, colinas e prados que circundavam a região. Sua atividade artística o levou a ter contato com outros jovens artistas de seu tempo, entre eles, Cézanne,Monet, Manet, Sisley, Renoir e Degas, com os quais se reunia para discutirem suas atitudes acerca da pintura – todos eles afastados do academicismo, mais tarde rotulados de pintores Impressionistas A pintura Impressionista não se preocupa em representar na tela uma visão objetiva e estática da realidade, pelo contrário, se propõe a representar o efeito que objetos do mundo exterior despertam nos sentidos do artista, que se esforça para transpor para a tela sua visão particular do mundo, em constante transformação, daí a maneira de representarem as formas das coisas pela luz e não através de linhas definidas. Para Pissarro, o ideal Impressionista foi uma opção definitiva em sua obra, uma causa – o despontar de uma nova civilização, a ser pesquisada com o espírito de investigação, paciência e resolução. Em seus últimos anos de vida, acometido por uma infecção crônica nos olhos, Pissarro pintou paisagens e vistas 32 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 urbanas, abrigado do frio e do vento parisienses, da janela de um quarto que alugou, em fevereiro de 1867, no Hôtel de Russie (esquina do Boulevard des Italiens com a Rue Drouot). Da janela do quarto desse hotel ele produziu uma série de pinturas do Boulevard Montmartre em diferentes fases do dia. Montmartre, bairro boêmio de Paris que, devido a sua posição estratégica, foi centro de comandos militares, transformando-se, por volta de 1860, num ponto de encontro importante de artistas e intelectuais. A vida noturna do local era animada por bailarinas, modelos e pintores que se misturavam à multidão de habitantes no ir e vir da vida cotidiana parisiense. Nas duas telas que analisamos nesse ensaio, Pissarro capta instantes dessa multidão em movimento, onde diferentes tipos se misturam em meio à massa, perdendo a nitidez de seus contornos – são as impressões de um artista sobre a vitalidade da vida parisiense. Boulevard Montmartre, Tarde, Dia Chuvoso Boulevard Montmartre, Efeito Noturno Além do dinamismo, as ruas de Paris atraíam Pissarro pela variação constante do colorido, intensificado na tela Boulevard Montmartre, Tarde, Dia Chuvoso pelo véu brilhante deixado pela chuva, numa gama variada de vibrações e modulações óticas. A agitação da vida moderna é captada pelo pintor que retrata a massa de pessoas indo e vindo ao longo do movimentado bulevar, que afunila no final da tela dando-nos a sensação da extensão e infinitude daquela movimentação. Os prédios padronizados da Paris reformada por Haussmann, as carruagens que, com a pavimentação das ruas podiam se movimentar mais rapidamente, e a fumaça das fábricas, misturada ao céu acinzentado do dia chuvoso, cercam a multidão de caminhantes em seu cotidiano – retrato da incessante movimentação que a partir daquele período caracterizaria as grandes cidades, sendo Paris o arquétipo da cidade moderna de então. Na segunda tela, Boulevard Montmartre, Efeito Noturno, Pissarro pintou o mesmo bulevar sob o efeito das luzes artificiais que iluminavam a cidade à noite. O jogo evocativo das luzes mostra outra dimensão de Paris, iluminada pelos postes e prédios – centro da boemia, reduto de artistas freqüentadores dos famosos cafés parisienses. Nas duas telas Pissarro capta um instante daquela multidão em constante movimento, registrando as tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz (solar ou artificial) cuja incidência modifica as cores da cidade, dando impressões diferentes durante o dia ou à noite. 33 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 As figuras não têm contornos nítidos e as sombras são luminosas e coloridas tal como é a impressão visual que nos causam. As cores e tonalidades utilizadas pelo pintor não são obtidas pela mistura das tintas na paleta, ao contrário, são puras e dissociadas em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final – característica da pintura Impressionista, a mistura de cores deixa de ser técnica para se óptica. Ao pintar o mesmo cenário em diferentes momentos do dia, Pissarro consegue captar a essência da modernidade, o turbilhão da vida na cidade que nunca dorme. A vida cotidiana é o grande espetáculo cujos personagens (freqüentadores dos bulevares) variam conforme o período do dia: o movimento dos trabalhadores povoa os bulevares durante o dia e à noite os artistas, as prostitutas, os jogadores, entre outros notívagos, ocupam os cafés e os bulevares, onde a vida cultural é intensa. Figuras fugidias, indecifráveis para além de sua forma exterior, só se deixam surpreender por um momento no cruzar de olhares que dificilmente voltarão a se encontrar. Permanecer incógnito, dissolvido no movimento ondulante desse viver coletivo, ter suspensa a identidade individual, substituída pela condição de habitante de um grande aglomerado urbano, ser parte de uma potência indiscernível e temida, perder, enfim, parcela dos atributos humanos e assemelhar-se a espectros [...] (BRESCIANI, 1994, p. 11). Pissarro consegue retratar o ritmo frenético do bulevar em constante movimentação, seja sob a luz do sol, seja sob a luz da lua e dos postes de iluminação. O olhar do pintor sobre a multidão de pessoas que se esbarram sem se perceberem – qualquer semelhança com as multidões das grandes cidades da contemporaneidade não é mera coincidência – nos dá uma visão de quão importante é o papel da arte no entendimento das transformações sociais nas diferentes épocas da história. Cesário Verde: poesia-pintura “A mim o que me rodeia é o que me preocupa” (Cesário Verde) Cesário Verde foi o poeta caminhante a vagar pela cidade e pelo campo, “abrindo à poesia as portas da vida, e nela entraram os ruídos, os cheiros e a linguagem das ruas alargando o campo da poesia à representação pictórica das pessoas e coisas do cotidiano” (COELHO, 1961, p. 51). Nascido em Lisboa em 1855, José Joaquim Cesário Verde, filho de um comerciante bem sucedido, fora preparado desde cedo para suceder o pai nos negócios da família, debatendo-se entre a atividade comercial, que nunca abandonou, e sua irreprimível vocação poética. Segundo Maria Ema Tarracha Ferreira, na introdução da versão portuguesa de O livro de Cesário Verde, “esse dualismo entre o comerciante e o poeta, que o faria evitar os literatos, por ser comerciante, e o isolava da classe comercial, por se sentir poeta talvez explique seu caráter misantropo e o sentimento de solidão que permeia seus poemas”. Apesar de refletir em sua poesia o perfeito domínio da língua portuguesa e uma precisão vocabular riquíssima, Cesário não foi intelectual, nem literato, nem bacharel. Seu gosto pelas Letras o levou, em 1873, ao ingresso no Curso Superior de Letras (o qual não concluiu), onde fez uma sólida amizade com António de Silva Pinto e começou a publicar 34 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 poemas no Diário de Notícias e, posteriormente, em outros periódicos. Em 1881 participou do “Grupo do Leão” (referência ao restaurante Leão de Ouro, onde se reuniam escritores e pintores). Seu projeto de publicar um livro não foi levado a cabo durante seu curto período de vida, sendo sua produção literária marcada pela incompreensão de seus contemporâneos e pela crítica ácida de intelectuais de renome, como Ramalho Ortigão e Teófilo Braga, levandoo a declarar sua decepção frente ao não reconhecimento de seus escritos. Cesário Verde morreu em 1866, aos 31 anos da mesma tuberculose que anos antes tirara a vida de sua irmã e de seu irmão. No ano seguinte a sua morte António da Silva Pinto publica O livro de Cesário Verde, reunindo os trinta e sete poemas deixados pelo poeta. Além de ser reconhecido como precursor de várias tendências de vanguarda e do Modernismo em Portugal, outro aspecto que torna a poesia de Cesário peculiar é a afinidade que guarda com a pintura – ele é o “poeta pintor”, atento à vida cotidiana e comum de onde colhia flagrantes do dia-a-dia, valorizando o simples e o prosaico, como acontece com a pintura impressionista. Coutinho (1990) faz algumas considerações acerca do chamado Impressionismo literário, em contraponto com o Realismo: A reprodução da realidade, de maneira impessoal, objetiva, exata, minuciosa, constituía a norma realista; para o impressionista, a realidade ainda persiste como foco de interesse, mas, ao contrário, o que pretende é registrar a impressão que a realidade provoca no espírito do artista, no momento mesmo em que se dá a impressão. O mais importante do Impressionismo é o instantâneo e único, tal como aparece ao olho do observador. Não é o objeto, mas as sensações e emoções que ele desperta, num dado instante, no espírito do observador, que é por ele reproduzido caprichosa e vagamente (COUTINHO, 1990, p. 223). A poesia de Cesário se adéqua a tal definição, na medida em que o poeta não se propõe a reproduzir a realidade que o cerca, mas a sugerir, por meio de impressões, as mudanças que marcaram a sociedade portuguesa de seu tempo. Num Bairro e Moderno Cristalizações se configuram como painéis que retratam um aspecto marcante da modernidade, na medida em que seus ‘protagonistas’ são trabalhadores em luta por sobrevivência, numa sociedade capitalista em crescente expansão. O poema Num Bairro Moderno datado de 1878, é ambientado em uma rua de Lisboa, por onde um trabalhador caminha para seu emprego quando se depara com uma verdureira franzina carregando seu cesto de legumes e verduras. Logo nas primeiras estrofes temos a demarcação do tempo e do cenário: manhã de um dia ensolarado, num bairro cujas casas refletem certo requinte e as ruas ares de modernidade: Dez horas da manhã; os transparentes Matizam uma casa apalaçada; Pelos jardins estancam-se os nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamizada [...] Abriram-se, nalguns, as persianas, E dum ou doutro, em quartos estucados, Ou entre a rama dos papéis pintados, Reluzem, num almoço, as porcelanas. [...] Como é saudável ter seu aconchego, E sua vida fácil! (VERDE, s/d, p.64, grifo nosso). 35 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 A forma como o cenário é descrito parece assemelhar-se com uma pintura impressionista, onde as cores claras predominam, reforçando a ideia de luminosidade típica das manhãs ensolaradas, por onde olhar do caminhante nos conduz, partindo do ambiente externo das ruas macadamizadas para o interior das habitações apalaçadas. O aconchego do casario se contrapõe ao desconforto que o acomete, seja porque seu trabalho não o satisfaz, seja porque sua condição não lhe permite usufruir de tal conforto. A partir da quarta estrofe do poema o olhar do observador se afunila ainda mais, se concentrando numa vendedora de legumes que ele passa a examinar. Essa figura feminina não lhe chama a atenção pelos atrativos físicos, mas sim por sua fragilidade e condição social – oprimida até mesmo pelo criado de uma das casas por onde passa: E rota, pequenina, azafamada, Notei de costas uma rapariga, [...] esguelhada, feia, E pendurando seus bracinhos brancos Do patamar responde-lhe um criado: “Se te convém, despacha; não converses. Eu não dou mais.” E muito descansado, Atira um cobre lívido, oxidado, Que vem bater nas faces duns alperces. (VERDE, s/d, p. 65, grifo nosso). Através da escolha vocabular (‘rota, pequenina, azafamada, esguelhada, feia’) o poeta nos transmite quão grande é o abismo entre as classes menos favorecidas, na figura da vendedora, e a burguesia que habita o casario daquela vizinhança, cuja indiferença às classes oprimidas é personificada pelo criado que a humilha. A verdureira com seu cesto de frutas e legumes parece destoar daquele bairro moderno, marcando a oposição entre a simplicidade das coisas do campo e o ambiente urbano. Agora o observador vislumbra a figura feminina com seu pesado cesto de vegetais sob o ponto de vista de um artista. Ele faz associações entre as formas e cores dos vegetais com partes do corpo da mulher: Se eu transformasse os simples vegetais, [...] num ser humano que se mova e exista Cheio de proporções carnais?! [...] E eu recompunha por anatomia, Um novo corpo orgânico, [...] achava os tons e as formas. Descobria Uma cabeça numa melancia, E nuns repolhos seios injectados Azeitonas [...] são tranças dum cabelo [...] Os nabos – ossos nus [...] E os cachos de uvas – os rosários de olhos. Há colos, ombros, bocas, um semblante Nas posições de certos frutos [...] Um melão, que me lembrou um ventre [...] Vi nos legumes carnes tentadoras [...] Sangue na ginja escarlate Bons corações pulsando no tomate E dedos hirtos, rubros, nas cenouras (VERDE, s/d, p. 65-66) 36 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Ao enxergar partes do corpo humano nos vegetais, o poeta parece fundir a imagem da mulher com sua ocupação profissional - reflexo da importância que a sociedade dá à aparência em detrimento da essência do ser humano – como se seu ofício de verdureira eliminasse a mulher, tomando o lugar de sua alma, dispersa naquele ambiente burguês do qual não fazia parte. Esse momento em que o caminhante se pretende artista é interrompido pelo grito da mulher a lhe pedir ajuda para erguer seu cesto, pedido que ele atende prontamente: Eu acerquei-me dela, sem desprezo; E, pelas duas asas a quebrar, Nós levantamos todo aquele peso Que ao chão de pedra resistia preso, Com um enorme esforço muscular “Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!” E recebi, naquela despedida, As forças, a alegria, a plenitude, Que brotam dum excesso de virtude [...] (VERDE, s/d, p. 67) Ao ajudar a mulher a levantar o pesado cesto, seu fardo diário, o observador se dá conta das dificuldades que ela enfrenta com disposição, o que provoca uma mudança em seu estado de espírito – outrora entediado a caminhar pelo bairro moderno marcado pela superficialidade da ‘vida fácil’ e aconchegante da burguesia, ele percebe a grandeza daquela ‘personagem’ que, contrastada com seu corpo franzino, assume a grandeza de um gigante: E pitoresca e audaz, na sua chita, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, Duma desgraça alegre que me incita, [...] E como as grossas pernas de um gigante, Sem tronco, mas atléticas, inteiras [...] (VERDE, s/d, p.68) Ao lançar o olhar para uma vendedora de verduras que mistura fragilidade e grandeza, em oposição à superficialidade da vida burguesa, Cesário opera uma mudança de perspectiva, trazendo à tona desigualdades sociais, que antes não se constituíam em assunto para a poesia. Nesse aspecto, há uma aproximação temática entre o poema Num Bairro Moderno e Cristalizações publicado em 1879, no qual Cesário Verde focaliza a árdua vida dos calceteiros (homens que trabalham na pavimentação das ruas) de Lisboa. As marcas de tempo dadas pela passagem das estações do ano enfatizam quão pesado e infindável é o trabalho daqueles que quebram as pedras que se constituirão em paralelepípedos para pavimentar as ruas. O poema se abre com descrições que indicam ser primavera: “Faz frio. Mas depois duns dias de aguaceiros,/ Vibra uma imensa claridade crua [...] e o descoberto sol abafa e cria!/ A frialdade exige movimento; / E as poças de água como em chão vidrento,/ Reflectem a molhada casaria” (VERDE, s/d, p.69). Nesse contexto, o poeta focaliza os calceteiros que trabalham “De cócoras, em linha [...] com lentidão, terrosos e grosseiros” (VERDE, s/d, p. 69), adjetivos que qualificam a penosa situação em que se encontravam os trabalhadores em fila, cercados e oprimidos pela fileira de casas que se estendem pela longa rua. Paralelamente ao trabalho dos calceteiros, o 37 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 poeta aborda, na terceira estrofe, as peixeiras, que com seus gritos dão brilho aquele ambiente terroso onde se encontram os calceteiros, também terrosos: “Disseminadas, gritam as peixeiras;/ Luzem, aquecem na manhã bonita,/ Uns barracões de gente pobrezita” (VERDE, s/d, p.70). O som alegre das peixeiras se contrapõe ao barulho ensurdecedor provocado pelo bater do ferro nas pedras “Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!/ [...] E o ferro e a pedra – que união sonora! – Retinem alto pelo espaço fora, [...] (VERDE, s/d, p. 70). O verso que abre a quinta estrofe indica uma possível mudança nas condições do tempo, que se poderia tomar como a transição da primavera para o verão: “Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,/ Cuja coluna nunca se endireita, Partem penedos; cruzam-se estilhaços” (VERDE, s/d, p.70). A mudança do tempo não altera a rotina dos trabalhadores, submetidos a horas extensivas de trabalho, numa rotina que nunca se altera. A sétima e oitava estrofes também trazem marcas de tempo, através de descrições de cenários típicos de outono, quando as árvores perdem as folhas “E nesse mês rude, que não consente as flores, / as árvores despidas. Sóbrias cores!” e do inverno rigoroso, estação que influencia sobremaneira a vida das pessoas. “Eu julgo-me no Norte, ao frio – o grande agente! – Carros de mão, que chiam carregados, conduzem saibro, vagarosamente” (VERDE, s/d, p.70-71). O objeto de trabalho toma o lugar do homem que com ele se confunde perdendo sua essência humana – quem carrega os carros de mão que conduzem saibro e que chiam? Na nona estrofe há uma sugestão de retorno à primavera, simbolizando as mudanças cíclicas que ocorrem na natureza que, apesar de implicar em passagem de tempo e conseqüente envelhecimento do homem, trazem para o eu - lírico ar de renovação: [...] Em arco, sem as nuvens flutuantes, O céu renova a tinta corredia; [...] E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos, Eu tudo encontro alegremente exato. Lavo, refresco, limpo os meus sentidos [...] (VERDE, s/d, p. 70). A alegria que se manifesta no estado de espírito do eu - lírico é interrompida quando ele volta seu olhar para o rosto do trabalhador, até agora considerado na coletividade: Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo; Dois assobiam, altas as marretas Possantes, grossas, temperadas de aço; E um gordo, o mestre, com um ar ralaço E manso, tira o nível das valetas Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! Que vida tão custosa! Que diabo! (VERDE, s/d, p. 71-72). A diferença entre o trabalho do calceteiro e do mestre de obras é marcada pela adjetivação a eles atribuída – o calceteiro é o burro de carga, desumanizado e zoomorfizado pelo trabalho pesado, à semelhança do peso que os burros carregam no lombo, enquanto o mestre de obras ‘gordo e lento’ faz o trabalho mais leve, obedecendo a injusta lógica imposta pelas sociedades capitalistas. Que vida tão custosa! Parece ser essa a exclamação do poeta Cesário a quem o que o rodeia é o que o preocupa. A inclusão dos calceteiros na classe dos sofredores, cuja cruz é simbolizada pelos suspensórios a cruzarem-lhe o peito e cujo único consolo está no vinho no 38 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 qual se refugiam, é a forma por ele encontrada para denunciar as mazelas de uma sociedade que marginaliza as classes menos abastadas: “Povo! No pano cru rasgado das camisas/ Uma bandeira penso que transluz!/ Listrões de vinho lançam-lhe divisas,/ E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!” (VERDE, s/d, p. 72). A monotonia do cenário e a rudeza dos calceteiros é quebrada pela aparição de uma atriz que surge bruscamente da escuridão da madrugada: “fina de feições, o queixo hostil, distinto, furtiva a tiritar em suas peles de volta do teatro”, desviando por um momento o olhar do observador que se volta novamente para os trabalhadores que a ela se opõem em aparência e condição “bovinos, másculos, ossudos,/ Encaram-na sanguínea, brutamente[...]” (VERDE, s/d, p. 73). Como uma tentação imposta àqueles homens brutos vindos de várias partes do país para trabalhar na construção das ruas “[...] filhos das lezírias [...] / os das planícies [...] Os das montanhas [...]” (VERDE, s/d, p. 72). A fina atriz atravessa a rua com seus “pezinhos de cabra” (à semelhança de uma tentação do diabo), aguçando os sentidos daqueles homens rudes a quem ela é indiferente. O funcionário do comércio, a vendedora de verduras, os calceteiros, a peixeira, a atriz de fino trato... tipos que surgem nos ambientes urbanos e que Cesário soube captar com seu olhar de artista, compondo com eles sua poesia-pintura – cenas da modernidade do século XIX. Considerações finais Concluímos, com base na análise das obras de Cesário Verde e Pissarro, que uma analogia entre suas obras é perfeitamente possível se o leitor tem em mente o período de produção e as transformações sociais que ocorriam na sociedade de então. As imagens que emanam das obras dos dois artistas são singulares, não porque reproduzam uma realidade, mas porque a sugerem por meio de suas impressões. Fazer uma imagem é primeiro olhar, escolher, aprender. Não se trata da reprodução de uma experiência visual, mas da reconstrução de uma estrutura modelo, que tomará a forma de representação mais bem adaptada aos objetivos que estabelecemos para nós (mapa geográfico, diagrama ou pintura ‘realista’, ‘impressionista’, etc. (JOLY, 1996, p. 60). Pissarro e Cesário captaram instantes representativos de um meio urbano que se transformava a todo instante. Embora ambos tenham retratado a cidade e suas ruas, arquétipos da modernidade, a realidade de Lisboa onde Cesário se situa cria um ponto de observação distinto daquele do centro da Europa (Paris) onde está Pissarro. O pintor poeta, da janela de um quarto de hotel, lançou seu olhar sobre uma multidão que se aglomerava nas ruas, enfatizando a coletividade, no seu ir e vir diário. Cesário, apesar de lançar seu olhar em tudo o que lhe cerca, parece focalizar o que lhe incomoda e causa indignação – seus protagonistas (a vendedora de verduras e os calceteiros) são figuras que surgem na modernidade com a expansão das zonas urbanas, fazendo da poesia um instrumento para chamar a atenção para as esferas sociais menos favorecidas. Compreendemos que decifrar todos os possíveis significados de uma obra, seja poesia ou pintura, seria por demais pretensioso, visto sabermos não ser possível esgotar significados, nem mesmo por meio de uma análise minuciosa e exaustiva. Dessa forma, ao nos propormos uma leitura da imagem da modernidade que emana dos textos de Pissarro e Cesário, estamos 39 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 pautados no que Joly (2001) pondera ao afirmar que a interpretação de uma imagem não significa dominar sua significação, porém apreender a sua mensagem ao desvendar o que nela se encerra. Um olhar crítico sobre os poemas de Cesário e as telas de Pissarro, nos leva a perceber a intertextualidade que eles guardam entre si. O poeta pelo uso das figuras de linguagem e adjetivações expressivas e o pintor com os recursos dos traços, da luz e das cores, construíram paisagens típicas da modernidade do século XIX. Como negar tal correspondência? CESÁRIO VERDE AND PISSARRO: PORTRAITS OF MODERNITY IN THE NINETEENTH CENTURY ABSTRACT: This essay analizes the representation of modernity portrayed by Camille Pissarro, in the paintings Boulevard Montmartre Tarde, Dia Chuvoso and Efeito Noturno and by Cesário Verde in the poems Cristalizações and Num bairro moderno. The purpose of this essay is to compare Cesário’s view of the female and male workers in Portugal, through the poems above mentioned, and Pissarro’s view of the excitement of the Parisian boulevards, archetype of the modernity that was starting at the time. The methodology of analysis is based on theoretical texts that discuss the modernity in the nineteenth century, written by Berman and Bresciani, as well as texts that analize the relation between poetry and painting, developed by Joly, Praz, Bosi and Manguel, among others. The results show that, having in mind the period both artists produced and the social transformations happening at the time, an analogy between the work of Pissarro and Verde is totally possible. We conclude that the images emanated from their work are singular, not because they reproduce the reality, but by the way it is suggested through the impressions of both artists. KEYWORDS: Modernity. Cesário Verde. Pissarro REFERÊNCIAS AGUIAR E SILVA, V. M. de. Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 1990. BECKET, W. The story of painting. United States: DK Publishing, 1994. BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1982. BORGES, M. C. F. A literatura e a imagem configuradas na arte clássica: análise do Rapto de Perséfone. Acta Scientiarum, Maringá, v. 31, n.1, p.61-69, 2009. BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, Sem Ano. BRESCIANI, M. S. M. 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Guavira no11 AS VIAGENS DE MANUEL BANDEIRA PELA CIDADE DE OURO PRETO Ilca Vieira de OLIVEIRA41 RESUMO: Este texto apresenta um estudo sobre as imagens da cidade de Ouro Preto nos poemas “Ouro Preto” e “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, de Lira dos cinqüenta anos (1940), “Minha Gente, salvemos Ouro Preto”, de Opus 10 (1952), e na crônica “Guignard”, de 26/10/1960, de Manuel Bandeira, observando como o eu lírico viaja pela história e pela paisagem de Minas e, recria, poeticamente, as impressões que tem dos espaços e dos monumentos artísticos e culturais dessa cidade barroca. Em nossa reflexão trataremos das imagens da cidade a partir das viagens reais e imaginárias do poeta, por isso, tomaremos também como objeto de nossa reflexão o texto Guia de Ouro Preto, de 1938. PALAVRAS-CHAVE: Manuel Bandeira. Viagens. Ouro Preto. Cidades de Minas. PATRIMÔNIO Duas riquezas: Minas e o vocábulo. (Carlos Drummond de Andrade) A viagem dos poetas modernistas às cidades de Minas como os “descobridores do passado colonial” teve início em 1919 com o jovem Mário de Andrade em visita ao poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, em Mariana. Nessa viagem, ele também manteve contato com as construções antigas da cidade de Ouro Preto. Alphonsus de Guimaraens, em carta ao seu filho João Alphonsus, faz o seguinte comentário sobre a visita que recebeu de Mário: Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de S. Paulo, que veio apenas para conhecer-me, conforme disse. É doutor em ciências filosóficas. Leu e copiou várias poesias minhas (principalmente as francesas), e admirou o teu soneto oferecido ao Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês, todo o “Corvo”, de Poe. Viaja para fazer futuras conferências e visitou todos os templos desta cidade. A verdade é que, para quem vive, como eu, isolado – uma visita dessas deixa profunda impressão. (GUIMARAENS, apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 356) Sobre essa visita, Mário de Andrade escreve um artigo publicado em A Cigarra, de São Paulo, em agosto de 1920, que traz o olhar de um sujeito preocupado com a valorização dos elementos artísticos e culturais do país, principalmente em se tratando da produção literária, fazendo a seguinte indagação: “Não haverá no Brasil um editor que lhe agasalhe os poemas, tirando-os da escuridão?” (ANDRADE, apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 358)42. Como se vê pela pergunta de Mário, o que faltava era a valorização e divulgação desse poeta completamente desconhecido pelos brasileiros. Nesse sentido, Mário faz um apelo aos 41 UNIMONTES - Universidade Estadual de Montes Claros - Centro de Ciências Humanas - Departamento de Comunicação e Letras - Montes Claros - MG. Brasil – 39.400-470- [email protected] e [email protected]. 42 ANDRADE, Mário de., BANDEIRA, Manuel. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974. 41 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 editores do país para que possam tirar da escuridão os poemas desse autor que se encontrava distante dos grandes centros culturais do país, Rio de Janeiro e São Paulo, continuando com as suas indagações da seguinte maneira: “Não existirá a piedade dum novo bandeirante que vá descobrir nas Minas Gerais essa minas de diamantes castiços e lapidados, e deslumbre os da nossa raça com tesoiros que Alphonsus guarda junto de si? Onde? quando o abre-te Sésamo dessa gruta encantada?....” (ANDRADE, apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 358, itálico no texto original) Mário foi o primeiro bandeirante modernista que veio explorar essa gruta encantada que existe nas cidades barrocas. Em 1924, depois da Semana de Arte Moderna, com a viagem da caravana dos paulistas Mário, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e do poeta francosuiço Blaise Cendrars a São João del Rei e Tiradentes, pode-se ver que outros bandeirantes teriam se juntado a Mário na busca de metais preciosos. A arte dessas cidades de Minas provocou um efeito em todo o grupo que, ao retornar para São Paulo, passou a se preocupar com a valorização das cidades históricas e do patrimônio cultural do país. Como resultado da descoberta do século 18 pelos modernistas paulistas, temos várias produções artísticas e críticas como, por exemplo, a pintora Tarsila do Amaral que produziu desenhos inspirados na plástica local e Oswald de Andrade que compôs vários poemas para Pau Brasil, de 1925. Sobre a visita dos modernistas às cidades de Minas e a repercussão que ela teve para esses intelectuais, o crítico Rui Mourão faz a seguinte exposição: No retorno a São Paulo, a preocupação com a valorização das cidades históricas passou a ser incluída nas linhas programáticas dos jovens revolucionários. Eles identificavam, naquela arte de dois séculos atrás, a autenticidade de inventiva que desejavam alcançar. Essa descoberta os inseria numa tradição. Com a retaguarda daquela forma protegida, sentiam-se mais seguros e mais bem plantados. E o trabalho para divulgar o patrimônio barroco e difundir informações sobre ele não terminaria mais. Através de artigos e constantes referências, procurava-se trazer, para o desfrute dos contemporâneos, valores que não podiam continuar ignorados, exilados ou esquecidos no passado. Na obra de Francisco Lisboa e outros, brilhava a chispa da genialidade. O acervo que as chamadas cidades históricas reuniam representava prodigioso conjunto de arte que a cultura de tradição portuguesa deixara nestas paragens. (MOURÃO, 1994. p. 39-40) No início de 1919, ano em que Mário de Andrade esteve em Mariana para visitar o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, o poeta Manuel Bandeira – que também tem papel importante na Semana de Arte Moderna e no modernismo brasileiro – encontrava-se em Juiz de Fora e escreveu um artigo “A academia e Alphonsus de Guimaraens” para o Correio de Minas, jornal daquela cidade, em 19 de janeiro, mostrando que seria uma honra a Academia ter esse poeta como sucessor de Bilac. Mas essa não seria a vez de um escritor mineiro ocupar a cadeira do poeta parnasiano, mas sim do escritor paulista Amadeu Amaral. Muitos anos depois, em 1953, Bandeira ainda retoma a frustrada candidatura desse escritor à Academia Brasileira de Letras e continua a defender esse poeta simbolista por reconhecer a importância da sua poesia para a literatura brasileira, chegando a comparar a sua grandeza poética à do escritor francês Mallarmé43. 43 O texto de Manuel Bandeira de 1953 chama-se “Alphonsus de Guimaraens”. Bandeira, em carta escrita para Mário de Andrade com data de 12/10/1941, entre as notícias que dá ao amigo, pede um conselho sobre a antologia dos simbolistas e pós-parnasianos que estava em fase de preparação para o Ministério de Educação. Apresentamos fragmento do texto: “O Capanema mandou me chamar e reclamou a antologia dos simbolistas e pós-parnasianos. Tenho que fazer! Dê-me um conselho: não acha que é pena misturar simbolistas e pós- 42 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O poeta Bandeira, ao longo de sua vida, manteve contato com vários intelectuais mineiros, correspondendo-se com alguns deles por vários anos. Nota-se que suas viagens por Minas não se restringiram às leituras da poética árcade e simbolista que demonstra conhecer muito bem em seu exercício de crítico e poeta; elas são, de fato, viagens reais que o poeta fez como pesquisador para conhecer e recolher informações para compor o livro-guia de Ouro Preto. Em carta de 26/7/1937 para Mário de Andrade, o poeta Bandeira, quando retorna de São Paulo para o Rio, informa ao amigo que a viagem de volta correu bem melhor que a de ida e, no fim do relato, confessa: “Agora vou me atirar ao Guia de Ouro Preto. Estou com preguiça e com medo. Mas com amor também. Amor e medo...” (ANDRADE; BANDEIRA, 2001, p. 638). Mário não faz nenhum comentário sobre essa carta que Bandeira a ele enviara, pois, em toda a correspondência dos dois, não localizamos novas informações sobre a escrita desse livro-guia44. As informações que encontramos sobre a atuação de Bandeira como sujeito que teve acesso aos documentos históricos e artísticos de Ouro Preto estão presentes em sua produção de ensaísta e cronista. Na crônica “Uma revista”, de 9/9/1937, o poeta revela o seu lado crítico de investigador da história do passado colonial de Minas Gerais, com comentários sobre o texto de abertura “Roteiro Lírico de Ouro Preto”, de Afonso Arinos de Melo e Franco, publicado no boletim “Lanterna Verde, nº 5”. Após ler esse texto de abertura, Bandeira ressalta que “informações preciosas” ali presentes mereciam ser revistas45. parnasianos? Já li e reli com cuidado o Cruz e Sousa e estou seguro da minha escolha. Mas o Alphonsus de Guimaraens me atrapalha: é mais difícil de apanhar e limitar numa seleção. Você quer me apontar o que lhe parece melhor – o que lhe pareçam dez coisas que não devem ser esquecidas? P’ra comparar com o que separei. Meu critério você conhece: não o mais belo ou forte ou perfeito. – Ou tudo junto equilibradamente”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 656). Em carta de 26/10/1941, Bandeira acusa recebimento da carta de Mário do dia 17 e reclama que o amigo não o ajudou no pedido feito anteriormente. Vejamos o comentário de Bandeira: “Mas estou safado de você não me ajudar no caso de Alphonsus de Guimaraens. Que diabo, você já andou lendo e estudando e tomando apontamentos sobre o homem. Faça uma releitura rápida. Não é preciso ler os sonetos, pois o que me está embaraçando são as poesias mais longas, não os sonetos, dos quais já fiz a minha escolha. Insisto com você, porque fiz igual pedido ao Carlos Drummond e a resposta dele me atrapalhou ainda mais: só em duas coisas (uma delas “Ismália”) concordamos”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 657) Na correspondência dos dois, não encontramos essa carta do dia 17 que Bandeira responde a Mário. Com certeza, o documento não foi localizado pelo organizador Marco Antonio de Moraes. 44 Em carta de 20/9/1937 para Mário, Bandeira dá notícias da viagem de Cândido Portinari para Minas: “Ontem partiu o Candinho para Minas. Maria e Olga, Santa Rosa e Glorinha também foram. Candinho foi ver de perto os trabalhos de minas e siderurgia para fazer um dos painéis do futuro Ministério. Passarão lá uma semana. Iam a Sabará, Ouro Preto e Mariana. O Brodosquinho poderá fazer observações precisas sobre as pinturas de Ouro Preto e Mariana”. (ANDRADE; BANDEIRA, 2001. p. 639-640) Entretanto, em toda a correspondência, não existe mais nada sobre o trabalho realizado para a escrita desse guia sobre Ouro Preto. 45 Para esclarecer melhor a informação exposta, apresentamos fragmento da crônica de Manuel Bandeira. Vejamos: “Arinos repete que o palácio da Penitenciária foi riscado por D. Luís da Cunha Meneses. Parece que não. O Sr. Augusto de Lima Júnior, contaram-me, descobriu ultimamente em Portugal que o risco veio de lá. Descobertas líquidas e que ainda não aparecem no “Roteiro” são que o risco do Carmo é obra de Manuel Francisco Lisboa, arquiteto português, suposto pai do Aleijadinho, e que das mãos deste último são as talhas dos altares laterais de São João e de Nossa Senhora da Piedade. Uma e outra coisa constam dos livros de termos das liberações das mesas da Ordem do Carmo: a primeira no livro 1.º, pág. 107; a segunda no livro 2.º, pág. 70. Devemos essas descobertas a pesquisas mandadas efetuar pelo Serviço de Defesa do Patrimônio Artístico e Histórico, criado pelo Ministro Capanema e dirigido por Rodrigo M. F. de Andrade. Arinos me acusa de leviano por eu achar meio sem graça os amores do Dr. Gonzaga com Maria Dorotéia. E me emprestou o livro de Tomás Brandão, Marília de Dirceu, para eu mudar de idéia. Ainda não tive tempo de ler o livro, e por isso continuo na minha leviandade de achar aqueles amores do ouvidor bordando vestidinhos para Marília um caso daquilo que a neo-gnomonia chama “mozarlismo lacrimejante”. (ANDRADE; BANDEIRA, 1986, p. 234) 43 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Manuel Bandeira fez um trabalho intenso de pesquisa para o Serviço de Patrimônio, em 1937-1938, para escrever o livro-guia da cidade, iniciando, assim, uma biografia de Ouro Preto que encanta os seus leitores-viajantes, pois ao material recolhido pelo pesquisador, comprometido com os fatos históricos, foi concedido tratamento “especial” na visão do artista46. O estudo “Viagem a Ouro Preto”, de Lourival Gomes Machado, é um texto que traz comentários sobre esse livro de Bandeira. Vejamos o texto a seguir: Bandeira dispõe da paciência meticulosa do pesquisador honesto e pôde, assim, reunir todos os dados úteis conhecidos em 1938, mas ninguém esquecerá que Manuel Bandeira é dos grandes da poesia nacional e, desse modo, talvez mesmo sem o querer, deixou filtrar, entre duas datas e localização de um altar, a gotinha de sua infinita sensibilidade. O seu trabalho, com as ilustrações de Luís Jardim, nada tem de baedeker cacete para ter tudo de passeio ameno, na melhor companhia deste mundo. (MACHADO, 2003, p. 178-179) Nesse estudo, o crítico descreve a sua experiência de viajante que em 1948 visita a cidade de Ouro Preto, informando aos desavisados que desejam visitar a cidade pela primeira vez e têm em mãos o Guia turístico de Bandeira que os passeios pela cidade não são tão saborosos como explicita a sensibilidade desse poeta, principalmente porque a geografia da cidade não ajuda o visitante que encontrará uma cidade barroca diante de si, com todos os seus contrastes. Diante de toda a discussão até aqui exposta, perguntamos-nos: por que motivo o diretor do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco de Andrade, pede ao poeta Manuel Bandeira para escrever um Guia de Ouro Preto? Como bem sabemos, no contexto em que esse guia foi publicado, a cidade barroca de Ouro Preto passava por um processo de “restauração” como objeto material, pois os intelectuais mineiros da época estavam empenhados para que ela fosse reconhecida como Monumento Nacional, fato esse, ocorrido em 1936, com o decreto de nº 756-A, assinado pelo presidente Getúlio Vargas. Com tal ato público, a cidade Ouro Preto adquire o status de “cidade mítica”, “inventada” pelo poder público. O poder público passa a investir na preservação do patrimônio histórico e artístico do País e realiza vários projetos de “salvamento” dessas cidades históricas de Minas, principalmente porque, segundo Rui Mourão, o Ministro Gustavo Capanema era entrosado com os modernistas e tinha como chefe de Gabinete o poeta Carlos Drummond de Andrade. Rui Mourão ainda ressalta que, em 1937, esse ministro resolveu encomendar a Mário de Andrade um projeto para a proteção do patrimônio histórico e artístico, trazendo-nos um esclarecimento importante sobre essa época e o projeto de preservação dessas cidades: O projeto de Mário, abrangente e arrojado, contemplava o universo inteiro dos bens culturais. Na primeira fase de trabalho que se implantaria, porém, como se tornou lugar comum observar, fez-se opção por cuidar preferencialmente dos monumentos arquitetônicos e urbanísticos. Isso aconteceu porque o órgão criado, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade, dispondo de parcos recursos e insuficiente quadro de pessoal, não se 46 Em 1938, Bandeira é nomeado pelo Ministro Gustavo Capanema professor de Literatura do Colégio Pedro II e membro do Conselho Consultivo do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Com ilustrações de Luís Jardim e Joanita Blank, o Guia de Ouro Preto teve a primeira edição sob a chancela do Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1938. Manuel Bandeira elaborou o livro atendendo ao pedido de Rodrigo M. F. de Andrade, diretor do SPHAN. 44 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 achava em condições de abrir muitas frentes de trabalho. Deve ter pesado, também, o fato de que a parte urbana das cidades históricas e as construções aí existentes haviam sido o primeiro motivo de encantamento dos modernistas. Sobre elas é que se concentrava, naqueles anos, o interesse de estudo e divulgação. (MOURÃO, 1994. p. 41-42) O Guia de Ouro Preto está dentro desse projeto modernista de resgatar e divulgar os monumentos históricos e artísticos do Brasil. O poeta-viajante se coloca na perspectiva de um turista que, com a sua máquina, tenta fotografar a paisagem que se descortina diante de seus olhos, percorrendo os espaços mais recônditos da cidade barroca e mergulha numa gruta encantada. O poeta, de posse de documentação sobre a cidade e seus monumentos, constrói uma série de itinerários para o turista que deseja visitar a cidade. Esse itinerário, que começa pela “História” de Ouro Preto, surgida com a chegada dos bandeirantes, também expõe informações importantes, com várias descrições sobre a fundação da primitiva Vila Rica, focalizando o período de construção de seus monumentos religiosos e civis até o instante em que a cidade recebe o título de Monumento Nacional. No poema “Ouro Preto”, que abre o livro Lira dos cinquenta anos (1940), Bandeira descreve, poeticamente, o instante da chegada dos bandeirantes em busca de ouro e pedras preciosas, a exploração e opulência dos anos de glória e a decadência da cidade: Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada Ribeirão trepidante e de cada recosto De montanha o metal rolou na cascalhada Para o fausto d’El-Rei, para a glória do imposto. (BANDEIRA, 1986a, p. 140) Sobre esse livro, o crítico Jorge Miguel afirma: “Não se pode pretender estabelecer uma característica aos poemas que compõem o 6º livro de Bandeira. Pode-se dizer que novas experiências formais continuam” (MIGUEL, 1988, p. 44). Sobre o soneto “Ouro Preto”, diz que esse “guarda a forma ainda tradicional, não só a rigidez dos 14 versos em dois quartetos e dois tercetos, com a presença de versos alexandrinos (doze sílabas) (...) – soneto de abertura – parece sugerir o retorno ao Parnasianismo”. (MIGUEL, 1988, p. 44-45) A partir do comentário desse crítico, é importante esclarecermos aqui que, nesse momento de composição, o poeta Bandeira mantivera contato estreito com a produção dos poetas do século XVIII e a história de Ouro Preto. Com isso, o eu lírico faz uma pintura interior de Ouro Preto e o que se revela diante dos olhos do leitor não é a paisagem montanhosa e o conjunto arquitetônico com a sua opulência barroca, mas os contrastes da linguagem barroca que já aparecem no primeiro verso, com o “ouro branco/ouro preto”, e o próprio adjetivo podre, contrastando com o “ouro” que é um metal precioso, o que configura um tom irônico. A vogal /o/, que nos lembra o oco e o vazio, ressoa por todos os versos do poema e remete-nos ao vazio e às destruições das montanhas que foram exploradas de maneira desenfreada. A cidade tem o seu momento de glória; com a extração dos metais preciosos, atinge a sua opulência, mas terá a sua decadência por causa da ganância dos homens e dos altos impostos que eram cobrados pela Coroa portuguesa. De leitor do passado histórico da cidade no cap. 1, o poeta passa a descrever, no cap. 2, “As impressões dos viajantes estrangeiros” que apresentaram visões sobre Vila Rica no século XIX, quais sejam: João Antônio Antonil, Jonh Mawe, Auguste Saint-Hilaire, Jonh Luccock, Walsh, Georg Gardner, Castelnau, Milliet de Saint-Adolphe e Richard Francis 45 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Burton. É nessa parte do Guia de Ouro Preto que Bandeira resolve o seu impasse com Afonso Arinos sobre as liras de Gonzaga, corrigindo informações equivocadas de viajantes sobre Marília ao informar que ela não se casou. Vejamos: “Tomás Brandão restabeleceu a verdade em sua obra Marília de Dirceu, provando ter havido confusão de Marília com sua irmã Emerciana” (BANDEIRA, 2000, p. 31)47. O “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, de Lira dos cinquenta anos (1940), expressa uma diferença formal em relação ao soneto de abertura do livro, “Ouro Preto”, que parece ainda trazer o “penumbrismo” que Norma Goldstein (1983) estuda nos seus três primeiros livros: A cinza das horas (1917), Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924). Nesse poema, Manuel Bandeira retoma o tema do amor tão bem explorado pela lira árcade, contudo o próprio título do texto já provoca certa dissonância, pois o haicai fora retirado de uma “falsa lira de Gonzaga”. Assim, o poeta nega o lirismo, expondo uma antilira, mas não com a intensidade de quem combate, em Libertinagem, todas as formas de lirismo que se encontram no poema “Poética”, no qual o eu combatente expressa: “Estou farto do lirismo comedido/Do lirismo bem comportado/Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor./Estou farto do lirismo namorador”. (BANDEIRA, 1986e, p. 98) No cap. 3, “Ouro Preto, a cidade que não mudou”, Bandeira faz uma avaliação da cidade e esclarece: “Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta é São José del-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto” (BANDEIRA, 2000, p. 34). Apesar desse comentário de abertura do capítulo, Bandeira, na sequência de seu texto, trata da mudança sofrida pela cidade ao longo dos anos. Com um olhar crítico de um biógrafo, não deixa de observar que o conjunto arquitetônico sofreu alterações com o tempo, pois novas casas foram construídas com um estilo diferente do colonial, é o neocolonial. No fim do capítulo, faz uma comparação de Ouro Preto com Olinda e Salvador e assegura que essa cidade mineira não perdeu as feições do passado com o progresso que tudo transforma. A visão que a voz narradora expõe da cidade no Guia não é a mesma que a voz lírica expressa no soneto “Ouro Preto”, pois inicia o segundo quarteto com indagações, explicitando um momento de reflexão: Que resta do esplendor de outrora? Quase nada: Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto. Esta agência postal era a Casa de Entrada... Este escombro foi um solar... Cinzas e desgosto! (BANDEIRA, 1986a, p. 140) A atitude contemplativa é perceptível no poema. E o poeta não precisa ter a mesma visão do pesquisador a serviço do Estado, que cumpre o seu papel de preservar e divulgar os monumentos históricos e artísticos. Nesse clima meditativo, o eu lírico interroga e, ao mesmo tempo, já responde, reconhece que a cidade não possui o mesmo “esplendor de outrora”, a riqueza do ouro branco e preto que se contrapõe aos elementos que metaforizam as ruínas e a morte nos “templos que são fantasmas ao sol-posto”, nos “escombros” e nas “cinzas e desgosto”, restando apenas o pó. O poeta Manuel Bandeira faz um mergulho na realidade, refletindo, a partir dela, sobre a própria condição da cidade. Nesse aspecto, aprofunda o tema 47 Como podemos ver, no momento da escrita do Guia, Bandeira já demonstra outra visão em relação ao lirismo de Gonzaga e, pelas informações que apresenta no texto, confirma a leitura do texto de Tomás Brandão sobre Marília, sugerida por Afonso Arinos. 46 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 da morte e da destruição, revelando que os monumentos que vão representar a memória material e imaterial do nosso país estão ameaçadas pelo próprio tempo que tudo destrói, estando a decadência e a morte ligadas à transitoriedade das coisas no tempo. No cap. 4, “As duas grandes sombras de Vila Rica”, o poeta viaja para o passado com um olhar que privilegia homens que fizeram parte da história de Ouro Preto, mas não tiveram o mesmo lugar de destaque na história, por isso seleciona duas personagens que considera mais relevantes, Tiradentes e Aleijadinho. Não se detém nos poetas letrados, tais como Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga, porque esses já possuíam um lugar na sociedade, ou seja, “eram homens requintados, letrados, a quem a vida corria fácil”, todavia valoriza o alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes) pelo seu papel na conspiração de 1789 e artista Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho) pela sua importância cultural, principalmente na construção de igrejas e esculturas. Como se vê, a morte é retomada através da referência a essas “duas sombras”. No poema “Ouro Preto”, esses mortos são evocados nos dois tercetos seguintes: O bandeirante decaiu – é funcionário. Último sabedor da crônica estupenda, Chico Diogo escarnece o último visionário. E avulta apenas, quando a noite de mansinho Vem, na pedra-sabão lavrada como renda, – Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho! (BANDEIRA, 1986a, p. 140) No cap. 5, “Passeios a pé no Centro”, o poeta convida o turista a fazer um passeio pelos bairros da cidade, deixando bem claro que cada bairro tem a sua beleza e a sua diferença em relação ao outro, até mesmo pela sua própria história de fundação. A partir do instante em que o passeio se inicia, o poeta vai percorrendo as ruas, as praças, as ladeiras, os largos e as pontes. Nesse percurso a pé, vai entrando nas igrejas, nos palácios, nas casas de poetas e em sobrados e hotéis. Com o seu olho-câmera, vai chamando a atenção do turista para os detalhes das construções. Já no cap. 6, “Passeios de Automóvel”, o poeta sai do centro da cidade de Ouro Preto e vai conhecer os bairros mais distantes, a mina de ouro de Passagem, Cachoeira do Campo, Ouro Branco e Itatiaia, o Itacolomi e as cidades de Mariana e Congonhas do Campo. Nos capítulos 7, “Monumentos Religiosos”, e 8, “Monumentos Civis” Bandeira revela mais ainda a preocupação que tinham os modernistas em valorizar e divulgar os objetos materiais e imateriais da cidade como um Monumento Nacional, pois os monumentos religiosos e civis são representados, desde as suas construções, cada um sendo descrito como objeto importante para cada cidade e também para o patrimônio histórico e artístico nacional. E, para finalizar o seu Guia de Ouro Preto, Bandeira indica as “estradas” para os viajantes que desejam conhecer essa cidade encantada. Em 1938, podia-se ir a Ouro Preto por estrada de ferro ou por estrada de rodagem; hoje, somente por estrada de rodagem. No poema “Minha gente, salvemos Ouro Preto”, de Opus 10 (1952), o poeta Bandeira descreve, de forma imagética e pictórica, o tema da destruição da cidade de Ouro Preto. Ao fazer uma revisão sobre a poética de Bandeira, em 1986, o crítico Giovanni Pontiero faz o seguinte comentário sobre Opus 10: os poemas desta nova coletânea são caracterizados por uma maior simplicidade e força de expressão. Movimentando-se livremente do epigrama satírico à grave meditação, Bandeira agora parece capaz de transformar tudo ao seu redor em 47 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 poesia, não importando o lugar-comum ou o trivial aparente. (PONTIERO, 1986, p. 206) O poeta apresenta um cenário cotidiano de maneira meditava, faz uma reflexão sobre a condição humana ao colocar em cena a cidade que se encontra em estado de destruição e revela o elemento responsável pelos danos desse monumento-nacional, pedindo, na primeira estrofe, ajuda: “As chuvas de verão ameaçaram derruir Ouro Preto./Ouro Preto, a avozinha, vacila./Meus amigos, meus inimigos,/Salvemos Ouro Preto”. (BANDEIRA, 1986a, p. 197) O poema apresenta elementos imagéticos e pictóricos, pois ele se constrói a partir da memória do poeta que evoca eventos do passado ao mesmo tempo em que conjuga elementos do coletivo. O tom lírico está expresso na subjetividade que o eu expõe à condição do outro, entretanto explicita um tom memorialista, já que o passado histórico da cidade é retomado através do tom narrativo que se configura na linguagem dos versos longos e nos encadeamentos que existem em todas as estrofes. O poeta, como um sujeito crítico e engajado, está comprometido com o mundo no qual se encontra inserido, por isso não se revela como um simples “retratista” da cidademonumento, mas como quem medita sobre a condição da cidade que fora atingida pelas “chuvas de verão” e pede ajuda a todos os “homens do Brasil”. No entanto, é com um tom irônico que expõe o seu desejo salvacionista, criticando a sociedade brasileira que não se importa com a conservação de Ouro Preto e com os pobres. Vejamos, nos versos a seguir, o tom do sujeito diante do objeto de contemplação: Bem sei que monumentos veneráveis Não correm perigo. Mas Ouro Preto não é só o Palácio dos Governadores, A casa dos Contos, A Casa da Câmara, Os templos, Os chafarizes, Os nobres sobrados da Rua Direita. Ouro Preto são também os casebres de taipa de sopapo Aguentando-se uns aos outros ladeira abaixo, O casario do Vira-Saia, Que está vira-não-vira enxurro, E é a isso que precisamos acudir urgentemente! (BANDEIRA, 1986a, p. 198) Ao transfigurar essa realidade cotidiana que é a da cidade que se encontra em estado de destruição, o poeta expõe uma visão consciente e um sentimento de “antitotalitarismo e antiburocratismo”. Giovanni Pontiero, ao discutir esses sentimentos perceptíveis na poética de Bandeira, aponta que, nesse poema, existe uma “súplica desapaixonada pela conservação de Ouro Preto e pelo amparo social às pessoas simples, cujas casas miseráveis são ameaçadas de destruição pelas chuvas torrenciais” (PONTIERO, 1986, p. 211). Com base nesse comentário do crítico, é importante ressaltarmos que, nesse momento de composição de Opus 10, o poeta expressa a mesma visão crítica em relação à conservação da cidade, antes explorada no poema “Ouro Preto” de Lira dos cinquenta anos, de 1940, o que parece revelar que, em 1952, o poeta esteve bem mais afastado do seu objeto de contemplação. No poema, os contrastes são explorados através de vários elementos metafóricos. De um lado, há os “ricos do Brasil”, as “Grã-finas cariocas e paulistas” e, de outro, os pobres que 48 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 vivem nos “casebres de taipa e sopapos”. O poeta, como alguém que medita sobre a condição humana, conclama a todas as “Gentes de minha terra!” que “Salvemos Ouro Preto” e, com essa voz lírica, mostra as contradições do Brasil. Na crônica “Ouro Preto remoçada”, de 26/10/1960, Manuel Bandeira irá reproduzir um acontecimento do cotidiano, a inauguração de uma nova sede de uma galeria de arte no Rio de Janeiro, fazendo-se revelar, nessa narrativa, o que o escritor, embora atendo-se à realidade, explicita uma visão opinativa sobre as pinturas da exposição. Esse poeta tece elogios ao pintor Alberto da Veiga Guignard, mas a crônica não se resume somente a isso, pois o escritor aproveita o momento para fazer uma reflexão sobre Ouro Preto que estava sendo retratada na “exposição do esplêndido Guignard”. Nessa crônica, por ocasião da exposição de Guignard, Manuel Bandeira ainda demonstra a sua preocupação com a preservação do patrimônio de Minas: Havia muito tempo que eu não via Guignard, Guignard de repente sumiu do Rio, enfurnou em Minas, montando escola em Belo Horizonte, ensinando as mineirinhas bonitas a pintar, (...) e quem mais ganhou com a presença de Guignard foi Ouro Preto, que hoje está definitivamente tombada na obra do pintor (o tombamento oficial não será talvez suficiente para poupar a velha cidade-monumento-nacional, pois nem a zelosa DPHAN nem o clamor de alguns poucos interessados nas relíquias do nosso passado histórico e artístico têm conseguido impedir que continue a abalar a estrutura do casario a circulação do tráfego pesado). (BANDEIRA, 1986c, p. 57) E o poeta mostra-se um conhecedor profundo dos problemas do cotidiano ao opinar sobre questões tão importantes que, muitas vezes, não são relevantes para a maioria das pessoas. O tom irônico do poeta, no poema “Minha gente salvemos Ouro Preto”, não deixa de existir nessa crônica, mas o poeta consegue fazer uma outra leitura da velha cidade histórica e, a partir da pintura de Guignard, revela um tom lírico e nostálgico que vale ser citado na conclusão do nosso texto: Nesta exposição são numerosas as telas que fixam o encanto da paisagem ouropretana, e eu fiquei com inveja de Alfredo Lage, feliz possuidor de certo quadrinho que me fez grandes saudades da Ladeira Vira-Saia. A Ouro Preto de Guignard não é triste, Guignard remoça Ouro Preto, sem no entanto a descaracterizar. Gosto de Ouro Preto de Guignard. (BANDEIRA, 1986c, p. 57) MANUEL BANDEIRA'S TRIPS IN THE CITY OF OURO PRETO ABSTRACT: This text presents a study on the images of the city of Ouro Preto in the poems "Ouro Preto" and “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga”, Lira dos cinqüenta anos (1940), “Minha Gente, salvemos Ouro Preto”, from Opus 10 (1952), and chronicle "Guignard" from October 26th 1960, by Manuel Bandeira, observing the way the lyrical I travels through history and landscapes of Minas Gerais and poetically recreates the impressions he has of spaces, cultural and artistic monuments of this baroque city. In our work we will deal with the images of the city from the real and imaginary travels of the poet. Therefore, we will also take as the object of our reflection the work Guia de Ouro Preto, 1938. KEYWORDS: Manuel Bandeira. Trips. Ouro Preto. Minas Gerais cities. 49 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 REFERÊNCIAS ANDRADE, C. D. de. A paixão medida [1980]. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 2002. ANDRADE, M. de; BANDEIRA, M. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org. introdução e notas de Marcos Antonio de Moraes. 2. ed. São Paulo: Edusp, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2001. (Coleção Correspondência de Mário de Andrade, 1). ANDRADE, M. de; BANDEIRA, M. Itinerários. Cartas de Mário de Andrade e Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens filho. São Paulo: Duas Cidades, 1974. ANDRADE, O. Pau Brasil. 2. ed. São Paulo: Globo, 2003. BANDEIRA, M. 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RESUMO: O ritmo dissoluto é, como sublinha Manuel Bandeira, o primeiro dos livros que ele escreverá no Curvelo, lugar onde o autor afirma ter “redescoberto os caminhos da infância”. Essa afirmação encontra eco nos poemas reunidos no livro, alguns dos quais têm a infância como tema. Entre esses, destaca-se “Na rua do Sabão” que expressa as adversidades que o menino José enfrenta para confeccionar e “dar vida” a seu balão. No poema, uma combinação intricada de proximidade e distanciamento, identificação e distinção, celebração e melancolia obrigam a repensar os sentidos que a expressão bandeiriana adquire em seus poemas, sobretudo no que tange a certo consenso em torno da suposta “humildade”, vista como traço distintivo de seu estilo. Palavras-chave: Poesia brasileira moderna. Manuel Bandeira. Infância. O ritmo dissoluto é o primeiro livro que Manuel Bandeira comporá sob a “atmosfera da Rua do Curvelo”, onde passou a morar após a morte do pai, em 1920, por influência de Ribeiro Couto, também morador da rua. O trecho de Itinerário de Pasárgada no qual o poeta faz referência à rua é um dos mais conhecidos do livro: A Rua do Curvelo ensinou-me muitas coisas. Couto foi avisada testemunha disso e sabe que o elemento de humilde quotidiano que começou desde então a se fazer sentir em minha poesia não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do Curvelo. A morte de meu pai e a minha residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933 acabaram de amadurecer o poeta que sou. [...] Sem ele eu me sentia definitivamente só. E era só que teria de enfrentar a pobreza e a morte. Quanto ao morro do Curvelo, o meu apartamento, o andar mais alto de um casarão em ruína, era, pelo lado dos fundos, posto de observação da pobreza mais dura e mais valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada sem lei nem rei que infestava minhas janelas [...]. Não sei se exagero dizendo que foi na Rua do Curvelo que reaprendi os caminhos da infância. (BANDEIRA, 1966, p.63-64). O trecho é bastante sugestivo, seja pelo relato tão despojadamente pessoal, quanto pelo procedimento recorrente em Bandeira de vincular muito diretamente aspectos técnicos, estruturais e temáticos de sua poesia a passagens de sua biografia. É certo, contudo, que no mesmo Itinerário e em outros momentos de sua produção ele traçará toda uma linha de reconhecimentos e influências que o vinculará ao cerne da tradição literária ocidental e da literatura moderna49. Esse jogo de encobrimentos e desvelamentos, que ora expõe sem peias a vida e ora reafirma o trabalho técnico do poeta, não constitui propriamente uma incoerência, 48 Doutorando - UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Letras - Departamento de Ciência da Literatura - Rio de Janeiro - RJ - Brasil – 21941-901 - [email protected]. 49 Como referência, considere-se a seguinte citação: “[...] Ribeiro Couto e eu sabíamos de cor diversas passagens desses poemas, e creio talvez poder confessar ter sido Cendrars quem levantou em mim o gosto da poesia do cotidiano” (EULÁLIO, 2001, p.460). Não se trata, obviamente, de discutir qual a mais “verdadeira” (se o Curvelo, se Cendrars), nem em que medida o poeta estaria sendo “sincero” ou não. Também não é necessário discutir se as afirmações se contradizem ou se complementam; a diferença de ênfase já é suficiente, pois o que importa é notar que o modo como Bandeira representa a si mesmo e à sua formação enquanto poeta não é unívoco; daí a necessidade de considerar suas declarações com o devido cuidado e distanciamento, problematizando-as em face das questões colocadas pelos poemas. 51 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 mas, sem dúvida, revela uma tensão dialeticamente fecunda que reponta em vários momentos da produção bandeiriana. Veja-se, por exemplo, o início da crônica “Trinca do Curvelo”: No baralho, a trinca são três cartas de mesmo valor. A semântica da molecada alargou o conteúdo da palavra e fê-la sinônima de baderna de bairro [...]. É o conjunto da molecada do bairro, que a gente vê a todas as horas batendo bola na rua, empinando pipas, estalando os tecos da buraca, abatendo os pardais a bodoque... (Às vezes se atiram a distantes excursões donde regressam com uma jaca enorme. Nesses dias, é, na rua, jaca por todo lado, uma orgia de jaca – enervante como todas as orgias). Mas há a trinca de rua: a trinca do Curvelo em oposição à trinca do Cassiano. Se atendesse à nomenclatura atual, teria que dizer a trinca de Hermenegildo de Barros, o que soa tão engraçado como antítese, aproximando a mais alta magistratura togada desse mundozinho irresponsável dos piores malandros da terra... Os piores malandros da terra. O microcosmo da política. Salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo – até de partir as vidraças das minhas janelas! Mentir é com eles. Contar vantagem nem se fala. Valentes até na hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando homens vão todos dar assassinos, jogadores, passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só com a saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes. (BANDEIRA, 2006, p.149). Primeiramente, salta à vista a empatia do poeta pelos meninos, que, de tão enfática, chega mesmo a resvalar em certo pieguismo (”Acabam lutando pela vida, só com saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes”). De qualquer modo, há um movimento de identificação, no qual o cronista procura se colocar no lugar da “molecada do bairro”, buscando, a partir de suas suposições e impressões, compreender seu comportamento. No entanto, essa identificação não é simples nem imediata. Ao contrário, aparece repleta de ambivalências (“mundozinho irresponsável”, “valentes até na hora de fugir” etc.). Tal como ocorre no Itinerário, na crônica há algo da biografia que permanece velado; mas esse encobrimento, apesar de perceptível, é ofuscado pela clareza e pelo aparente despojamento com que outros elementos da mesma biografia são expressos50. Nos trechos citados, o desejo de aderir imediatamente à vida e certo distanciamento aristocrático parecem combinar-se, de forma que, mesmo sinceramente interessado pela vida dos meninos, o cronista mantém-se distante, olhando-os de uma perspectiva que mistura, por um lado, certa irritação de alguém, por assim dizer, “civilizado” frente à “barbárie” da “horda” de moleques (“uma orgia de jaca – enervante como todas as orgias”; “salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo”) e, por outro, a benevolência (“Pois nada disso...”) de quem se sente, em alguma medida, superior, podendo, por isso, olhar para tudo 50 Em um ensaio sobre as relações entre história, genealogia e subjetividade na poesia de João Cabral de Melo Neto, Éverton Barbosa Correia afirma que “a história manipulada interessa na medida em que servir ao seu discurso e se constituir como índice de sua condição de estar no mundo” 50. E mais, “deslocado de um lugar que foi efetivamente seu, de experiências fundamentais que se esfumaram”, o poeta, “na medida em que esse espaço esboroa”, irmana-se “ao exército de anônimos que perambulam pelas ruas” 50. Consideradas as devidas peculiaridades de cada um dos poetas, o ponto de vista defendido pelo crítico oferece um campo fértil de exploração das ambivalências constitutivas das subjetividades líricas em sua relação com a genealogia familiar, por um lado, e a história brasileira, por outro, o que, no caso de Bandeira, permitiria repensar o sentido da “humildade” bandeiriana e dos modos como a biografia, por assim dizer, ditada pelo poeta definiu a recepção de sua obra. (CORREIA, 2008, p. 183-206). 52 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 com um distanciamento meio bonachão, calcado numa pretensa compreensão da atitude dos meninos, o que suaviza todo o quadro51. A esse respeito ainda, considere-se um trecho da “Cronologia” da vida de Bandeira, organizada por ele mesmo para a primeira edição de Estrela da vida inteira: 1896/1902 A família muda-se do Recife para o Rio, indo residir na travessa Piauí, depois na rua Senador Furtado, depois em Laranjeiras. Durante seis anos mora na casa de Laranjeiras. Não brinca com os moleques da rua mas toma contato com esta e com a gente humilde como uma espécie de intermediário entre sua e os fornecedores, vendeiros, açougueiros, quitandeiros e padeiros. O futuro filólogo Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis, é seu companheiro de conversas sobre literatura. (BANDEIRA, 1993, p.19) O autor sublinha que não brincava com “os moleques da rua”, expressão que, como se sabe, continua soando muito problemática: é comumente usada para desqualificar, mas não deixa de ser também um modo espontâneo, coloquial de se referir a meninos. Embora não brincasse com os vizinhos, afirma que era uma espécie de intermediário entre a mãe, mais resguardada e distante do universo popular à sua volta, e os trabalhadores cotidianos que abasteciam a casa. É curioso observar que essa ideia é muito próxima do modo como o autor às vezes se vê como poeta: um intermediário entre a literatura (a cultura erudita/letrada) e a vida popular. Além disso, há na figura do intermediário uma espécie de auto-elogio, uma vez que sugere certa capacidade de realizar algo que, num país de longa tradição colonial e escravista, baseada no mandonismo e no favor, toca o impossível e permanece sendo uma das aspirações mais fortes e, ainda, um dos fracassos mais dolorosos seja da literatura, do pensamento social ou da política de esquerda: aproximar-se do (às vezes fantasmagórico, às vezes onírico) popular, criando uma ponte entre a riqueza e a pobreza, entre o poder e o povo, entre a cultura erudita e a popular. Claro, ele era apenas intermediário entre a mãe e os vendedores, em nenhum momento sugere que estivesse realizando alguma grande intervenção social. Mas a escolha da cena e das palavras que a descrevem possuem certa ênfase, como que sugerindo uma qualidade não ordinária, ou mais, especial e distintiva do modo de ser do poeta. Há também um evidente contraste entre “os moleques da rua” e “o futuro filólogo Sousa da Silveira, vizinho de Machado de Assis” que era, esse sim, seu “companheiro de conversas sobre literatura”. Bandeira não era como a molecada da vizinhança, uma vez que se distingue deles tanto pelos costumes e tradição familiares quanto pelo contato e convívio com gente culta, potencialmente importante, bem relacionada e interessada em literatura. A distância entre o menino Manuel e os moleques não poderia ser maior; mas, como sempre, não se pode negar o interesse e certa empatia do poeta pela “gente humilde”. Retomando o que foi afirmado acima, num país onde a classe dominante sempre desfez das classes populares, não deixa de ser um diferencial que conta a favor de Bandeira, ainda que o autor faça questão de reafirmar seu lastro aristocrático. 51 Como já foi sugerido, a oscilação em questão liga-se a uma ambivalência ao mesmo tempo pessoal e histórica: o esfacelamento do modo de vida patriarcal, o rebaixamento dessa experiência frente à “modernização” do país, além de certo despeito aristocrático dos “destronados” convivendo intimamente com o gosto e as esperanças do progresso (Cf. SCHWARZ, 1997). É claro que os desdobramentos das diversas implicações dessa afirmação demandam um trabalho específico, que ainda está em desenvolvimento. 53 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Deste ponto de vista, a luminosidade do interesse e da empatia, sobretudo em meio tão hostil e árido às aproximações entre classes como é o Brasil, bem como a própria dificuldade dos leitores de Bandeira de “ir além” do que fez o poeta, parecem apontar para alguns motivos que enfraqueceram a percepção das tensões e ambivalências que são constitutivas de seu ponto de vista e que marcam profundamente alguns de seus poemas mais conhecidos, entre eles, “Na rua do sabão”. Na rua do sabão Cai cai balão Cai cai balão Na Rua do Sabão! O que custou arranjar aquele balãozinho de papel! Quem fez foi o filho da lavadeira. Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito. Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os gomos oblongos... Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame. Ei-lo agora que sobe, – pequena coisa tocante na escuridão do céu. Levou tempo para criar fôlego. Bambeava, tremia todo e mudava de cor. A molecada da Rua do Sabão Gritava com maldade: Cai cai balão! Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das mãos que o tenteavam. E foi subindo.... para longe.... serenamente... Como se o enchesse o soprinho tísico do José. Cai cai balão! A molecada salteou-o com atiradeiras assobios apupos pedradas. Cai cai balão! Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais. Ele foi subindo... muito serenamente... para muito longe... Não caiu na Rua do Sabão. Caiu muito longe... Caiu no mar, – nas águas puras do mar alto. O primeiro elemento do poema é a citação dos versos iniciais de uma cantiga popular junina conhecida por todos. A escolha – que também justifica o título – ajuda a construir alguns dos elementos chave, recorrentes no poema. A começar pela atmosfera espontânea e pela empatia que tende a produzir no leitor, também conhecedor da mesma cantiga, que pode se sentir tentado a continuar a cantiga a partir dos versos citados ou a descobrir o que o poeta 54 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 pretende com ela. Quanto à cantiga, considerando-se a ordem que aparece no poema, existem duas variações devidamente documentadas52, cada uma conferindo aos versos escolhidos por Bandeira uma coloração ligeiramente diferente: Versão 1 Cai, cai balão Cai, cai balão Na rua do Sabão. Não cai não, não cai não, não cai não Cai aqui na minha mão. Versão 2 Cai, cai balão Cai, cai balão Na rua do Sabão. Não vou lá, não vou lá, não vou lá, Tenho medo de apanhá. A versão 1 soa mais ingênua, parece apenas dar voz ao desejo de uma criança que gostaria de que o balão caísse ao alcance de sua mão. Nesse sentido, teria algo de conjuração, tentando, por meio da repetição coordenada de ritmos e sons, trazer magicamente o balão para perto. Embora seja cantada mais constantemente às vésperas e durante as festas juninas, a cantiga é impregnada por certa melancolia de fundo; é alegre, cantada frequentemente em grupo, mas soa solitária (uma criança desejando, de longe, um benefício do destino a lhe presentear com o balão) ou rixosa (um grupo de crianças disputando o balão, ou considerando o animismo que perfaz os versos, a preferência do balão. Aliás, essa segunda possibilidade encontra na versão 2 uma certa confirmação: aquele que canta está longe, entendeu onde o balão cairá, mas decidir não ir atrás dele porque tem “medo de apanhá”. Certamente, não é novidade para ninguém que as crianças disputam, às ingenuamente, às vezes violentamente, objetos como balões e pipas. E, frequentemente, não há nessa disputa espaço para os menos “qualificados” que são facilmente superados pela molecada mais acostumada à rua e a seus obstáculos: organizam-se melhor, sabem o melhor caminho para chegar a algum lugar, sabem enfrentar muros, terrenos, mato etc. Em uma análise do poema, o crítico Marcus Mazzari53 afirma que os versos iniciais, na medida em que se repetem várias vezes, compõem leitmotiv do poema que, estranhamente, “exprime a tendência contrária ao acontecimento que está sendo celebrado”: a insistência e a vitória do José em fazer seu balão ganhar força e ascender ao céu. Derivando um pouco essa observação, parece possível afirmar que essa repetição insistente configura o pano de fundo onde as situações apreendidas no poema se desenvolvem como hostil ele mesmo, o que confere o tom melancólico que atravessa o texto todo. Estamos longe da simples celebração e da alegria da vitória portanto. Considerando as versões em face do poema, a melancolia solitária é elemento importante, mas, em Bandeira, ligeiramente deslocada: é atributo do menino que constrói e solta o balão e não das crianças que acompanham a queda do objeto desejado. Mas a rixa é 52 MARQUES, 2003, p.113-114. 53 MAZZARI, 2002. 55 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 direta e muito evidente, configurando no poema um dos modos como os conflitos se resolvem entre os mais pobres em ambiente social onde impera o favor, como notou o crítico Edu Teruki Otsuka a propósito de Memórias de um sargento de milícias. Propondo uma releitura do romance de Manuel Antonio de Almeida, a partir de considerações a respeito daquele que é o ensaio mais importante sobre o livro, a “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido, Otsuka considera que a leitura que se rotinizou após a publicação da referida análise acabou por enfatizar a ideia de malandragem como uma espécie “traço cultural do brasileiro”, deixando de lado as determinações histórico-sociais que seriam, em seu ponto de vista, a “contribuição decisiva do ensaio de Candido para a crítica literária materialista” 54. Tendo isso em mente, Edu Otsuka argumenta que [...] além de transitarem livremente entre as esferas da ordem e da desordem, os personagens apresentam, de maneira sistemática, comportamentos fortemente marcados por traços mais ou menos assemelhados, como a maledicência, a zombaria, o achincalhe, a rivalidade e sobretudo a vingança; assim, os relacionamentos interpessoais que predominam no universo social da Memórias configuram uma estrutura peculiar, sendo governados por uma inclinação geral, comum aos personagens, a que se poderia chamar de espírito rixoso.55 Tal espírito se caracterizaria pela intenção de “sobrepor a própria pessoa aos outros”, ainda que de modo apenas momentâneo. Nesse sentido, as situações de contenda que brotam ao acaso na narrativa ofereceriam ocasião aos personagens para atingir “uma supremacia qualquer” 56 (expressão que o autor empresta de Machado de Assis), numa “multiplicação de disputas por picuinhas” 57. Por isso, “nas disputas vigentes nas Memórias, o objetivo disputado parece menos importante do que o dano moral infligido ao oponente, de tal modo que a satisfação não decorre tanto da eficácia em alcançar o objetivo, mas sim da capacidade de humilhar o adversário” 58. Situando a discussão no quadro histórico do Brasil oitocentista, no qual a estrutura social escravista “estabelecia distinções hierárquicas rígidas, em que a afirmação da desigualdade se tornava um imperativo para a definição das posições sociais”, uma vez que a inserção social “dependia menos da situação objetiva do que das relações estabelecidas com algum proprietário ou outra instância de poder” 59. Assim, “na falta de proteção de um poderoso”, a rixa representaria para os pobres a única possibilidade de “afirmar uma supremacia (um pouco na realidade e muito na imaginação), em vista da obtenção do sentimento de superioridade e de certo prestígio em relação aos demais” 60. Voltando ao poema de Bandeira, é evidente que o quadro histórico não é o mesmo das Memórias, mas é fato também que o progresso à brasileira se deu, em grande medida, a partir de múltiplas formas de “reprodução moderna do atraso” 61, tanto que, ainda hoje, não deve 54 OTSUKA, 2007, p.107. 55 OTSUKA, 2007, p. 112. 56 OTSUKA, 2007, p. 113. 57 OTSUKA, 2007, p. 115. 58 OTSUKA, 2007, p. 118. 59 OTSUKA, 2007, p. 119. 60 OTSUKA, 2007, p. 121. 61 A expressão, como se sabe, é de Roberto Schwarz. Citando um conhecido comentário de Paulo Arantes ao texto de Schwarz, “como não há transformação radical entre passado rural e presente urbano, onde se esperava conflito e desintegração, há promiscuidade entre tradicional e o moderno que o prolonga” (ARANTES, 1992, 56 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 soar estranho à maioria das pessoas o cenário de disputas e rixas descrito por Otsuka. A rixa, enquanto tentativa de angariar uma superioridade imediata qualquer, é, por definição destrutiva, pois tende a lançar-se contra tudo e todos que, próximos do sujeito, parecem caminhar em direção a uma superação qualquer, seja a conquista de outra posição social, uma realização que, à princípio, não seria para “gente como nós”, ou, ainda menor, para algo que não seria “para você”. José compartilha com a molecada a mesma situação de pobreza, mas, diferentemente dos meninos da rua do Sabão, é fraco e tísico. O balão, assim, é uma espécie de acinte, de ousadia que precisa ser eliminada por aqueles que se sentem momentaneamente destituídos de sua “superioridade”. Neste ponto, sem dúvida, o eu-lírico se solidariza com o esforço do menino, identifica-se com ele, com suas dificuldades e com sua “ousadia”, vendo, no quadro geral, um conjunto de adversidades que sufocam a iniciativa criadora. A esse respeito, aliás, vale notar a diferença nas caracterizações do José e da “molecada”. É fato que predicados como menino tísico, filho da lavandeira, “um que trabalha na composição do jornal e tosse muito” não chegam a especificar o menino, que permanece em grande medida indefinido, fazendo a voz lírica soar como a de um observador distanciado. Mas é fato que a enunciação no presente traz o leitor para a cena e para seu espaço familiar: a alguém da vizinhança, as indicações bastariam para especificar o menino. No entanto, além disso, há um momento de explicitação bastante coloquial do nome do menino acompanhado de um elemento muito sugestivo e nada ornamental: “como se o enchesse o soprinho tísico do José”. O uso do diminutivo, do nome próprio antecedido de artigo definido, além da menção de que sofria de tuberculose são índices de uma profunda empatia da parte do poeta que admira os esforços do menino e torce por ele, não sendo exagero imaginar certa identificação do poeta com o menino e dos objetos produzidos a custo e com amor por cada um, o poema e o balão. Essa identificação é reforçada pelo forte contraste que há entre a caracterização do José e da “molecada da rua do Sabão”. Além de não ser apresentada nenhuma características que pudesse identificá-los, são todos enfaixados pelo genérico e, como já dissemos, costumeiramente pejorativo “molecada”. Surge como um bando, uma horda de pequenos bárbaros, cujo único objetivo é destruir a possibilidade de sucesso de José e de seu balão. Aqui não há nada que aproxime o sujeito lírico da molecada que surge ao longo do poema como maldosa, hostil, cruel e potencialmente violenta, uma vez que sua ação não se limita a gritar para o balão cair, mas desenvolve-se em “atiradeiras/ assobios/ apupos/ pedradas”. Ou seja, não se limita ao espaço da fantasia mas converte-se em ação direta voltada à destruição. Analisando a sonoridade do poema, Marcus Mazzari 62 nota que o movimento de ascensão do balão é, “no âmbito da composição lírica”, “antecipado pelo ritmo dos versos imediatamente anteriores, moldado em segmentos regidos por formas verbais em crescente expansão, como se observa em ‘entesou’, ‘enfunou-se’ (expansão pelo acréscimo da partícula reflexiva) e, por fim, terceiro e mais longo segmento rítmico do verso: ‘e arrancou das mãos que o tenteavam’”. Além disso, o predomínio de sons anasalados nesses versos e as formas verbais no perfeito criam um efeito de expansão, de movimento ascensional “em consonância com as reticências, ou pontos de suspensão, que os configuram visualmente”. p.56). Observando esse processo a partir do presente, há um instigante ensaio de André Bueno, recentemente publicado, que discute o esgotamento e a derrota de certas ideias, aspirações e promessas criadas e projetadas pela literatura, pelo pensamento social e mesmo pela política, sobretudo desde o final do séc. XIX até meados do séc. XX, a respeito do futuro do Brasil (BUENO, 2009, p.7-37). 62 MAZZARI, 2002. 57 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 A essas correspondências, em especial à “brandura do anasalamento”, “opõe-se drasticamente a verticalização dos versos referentes à ‘molecada’”, nos quais dominam, “em contraste com a brandura do anasalamento anterior, aliterações oclusivas” (/t/, /d/, /b/ e /p/), reforçando no nível da sonoridade, como é “próprio a essas consoantes”, “a sensação de choque”, de resistência à ascensão do balão. Aspecto sonoro que novamente predominará no “verso seguinte – separado porém por nova ocorrência do leitmotiv ‘Cai cai balão!’ – também apoiado em expressivas aliterações oclusivas e tendendo com toda a intencionalidade para a fala prosaica” (“um senhor advertiu...”). Nos dois casos, o sentido sugerido seria o mesmo: configurar as diversas resistências à ascensão do balão. Aliás, afastando-se neste ponto da análise do crítico que tende a ler o poema em chave conciliatória, é bastante significativo o surgimento quase non-sense, em meio às ações das crianças, da intromissão brusca e deslocada da autoridade pública e da burocracia, com a imagem do homem advertindo “que os balões são proibidos pelas posturas municipais”. A regulação pública vem marcada apenas pela repressão e não pelo estabelecimento de um espaço onde pudessem conviver as diferenças, como se poderia desejar ou supor. Mais do que “ensinar” aos meninos as regras da vida em sociedade ou garantir o bem-estar coletivo, a fala se reduz à castração que, sem o sentido que lhe conferiria o contexto civil, aparece como deslocada, autoritária, apenas como um ato de “estraga prazer”, ou melhor, de despeito e arrogância de classe 63. Configurando mais um dos sentidos e dos tipos de resistência que o pequeno balão precisa superar em sua ascensão. Voltando à análise de Mazzari, o crítico nota com precisão que a estrutura ternária da cantiga é incorporada ao poema, fundando sua “unidade formal” e “emoldurando também o referido jogo de contrastes. A ocorrência de tal estrutura ternária, manifesta já no leitmotiv do "Cai cai balão", pode ser apontada ainda nos versos que falam da ascensão do balão e da periclitante fase inicial, apresentando, ambos os momentos, três verbos que contrastam os aspectos perfeito e imperfeito. Também os semi-versos, organizados como que a sugerir, inclusive pelos pontos de suspensão, o movimento horizontal-expansivo, estruturam-se, da mesma forma que a verticalização brusca dos semi-versos "assobios / apupos / pedradas", em ritmo ternário. E assim também o término da história, com a tríplice ocorrência do verbo "caiu", primeiro pela negativa: "Não caiu na Rua do Sabão" e, em seguida, na afirmação que se faz no verso de fecho. Mas também este apóia-se em três segmentos, os quais vão atualizando com precisão crescente a notícia da queda do balão, com o seu momento culminante no ondulamento rítmico marcado pelo extraordinário contraste entre a abertura e alteamento do /a/ assonante "nas águas do mar álto" e a vogal que se fecha e alonga na palavra (ligeiro obscurecimento na claridade do verso) que traz por fim o sentido de pureza à narrativa lírica de Bandeira: "Caiu muito longe... Caiu no mar - nas águas puras do mar alto." A retomada negativa do leitmotiv e o contraste entre a “abertura e alteamento”do /a/, assonante em “nas águas puras do mar alto”, e o fechamento e alongamento do /u/ que, ao mesmo tempo, obscurece o verso e traz “o sentido de pureza”, mais uma vez fazem surgir, em meio à “claridade do verso”, um momento obscuro que, segundo o ponto de vista aqui 63 Apenas uma nota: o cultivo sistemático do ódio e de múltiplas formas de preconceito nas últimas eleições presidenciais revela as alturas e a insanidade a que a arrogância de classe chega entre nós. A explicitação por parte de alguns jovens na internet da barbárie encenada em parte da imprensa e das campanhas políticas só tornou o fato óbvio e incontornável. 58 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 defendido, liga-se à visão melancólica, não-triunfalista e também cindida e ambivalente que define o ponto de vista do eu-lírico. No entanto, nada disso impediu que o balão caísse nas “águas puras do mar alto”, imagem evidentemente afirmativa de superação das limitações do menino. Posta em contexto, contudo, à afirmação humanizadora contrapõe-se o risco iminente de desumanização, tanto pela violência física quanto simbólica que se encenam. Observando bem, o balão escapa por muito pouco. Trata-se de um momento “mágico”, epifânico até, um pequeno “milagre” que afirma a capacidade de enfrentar diversos tipos de adversidade e superá-las. Mas, dada sua excepcionalidade, é também um momento frágil, pois aparece cercado de riscos, que poderiam, facilmente, ter levado ao fracasso a investida do menino tísico. É uma imagem afirmativa, sem dúvida, mas fraturada em agônica tensão. Tanto que não há qualquer triunfalismo, ao contrário. O tom do poema aproxima-se muito mais de um otimismo melancólico do que de uma celebração de vitória. É um momento fugaz, um flash, um instante luminoso captado pelo poeta e que anuncia possibilidades de superação em sua fragilidade de circunstância passageira, pontual e, talvez, única, definindo uma expressão particular que se condensa na forma literária. Dessa forma, a tensão não se encerra completamente com a vitória momentânea do menino, do balão e do poeta. Forçando um pouco a comparação, há algo aqui da rosa feia e frágil de Drummond, que “furou o tédio, o asfalto e o ódio”. Trata-se, por assim, dizer, da condensação lírica de um momento frágil de superação. Daí a melancolia que percorre os versos, definindo-lhes o tom e contrapondo-se, como já foi dito, a qualquer efusão triunfalista que o evento poderia inspirar. Na verdade, a própria distância que separa José e o eu-lírico (“Caiu muito longe”) das “águas puras do mar alto” é outro índice desse mesmo sentimento. Em síntese, não se trata de negar as possibilidades de superação, nem tampouco a força humanizadora dos versos ou a ternura e simplicidade que deles emana. Trata-se, antes, de afirmar que tais aspectos comportam um intrincado jogo de tensões, possibilidades e ambivalências que os torna mais complexos e menos conciliatórios do que, em parte, convencionou-se afirmar. THE KIDS, THE BOY, THE POET AND THE BALLOON ABSTRACT: O ritmo dissoluto is the first of the books written by Manuel Bandeira in Curvelo, where the author claims to have “rediscovered the ways of childhood”. This statement is echoed in the poems collected in the book, some of whom have childhood as a theme. Among these, there is "Na rua do Sabão" which expresses the odds that the boy José for making faces and "give life" to his balloon. In the poem, an intricate combination of closeness and distance, identification and distinction, celebration and melancholy conclusion to rethink the way that the expression bandeiriana acquires in his poems, especially regarding the degree of consensus about the supposed "humility", seen as a element that would define your style. KEYWORDS: Brazilian modern poetry. Manuel Bandeira. Childhood. REFERÊNCIAS ARANTES, P. E. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. BANDEIRA, M. Crônicas da província do Brasil. São Paulo: Cosac & Naif, 2006. _________. Itinerário de Pasárgada. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966. 59 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 BANDEIRA, M. Poesia completa e prosa. 4.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. BUENO, A. Memórias do futuro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. CORREIA, É. B. Subjetividade, história e genealogia em João Cabral. Revista Brasileira, n.57, p. 183-206, out., nov., dez. 2008. EULÁLIO, A. A aventura brasileira de Blaise Cendrars. 2.ed. São Paulo: Imprensa Oficial: Edusp: Fapesp, 2001. MARQUES, P. Musicalidades na poesia de Manuel Bandeira. Dissertação. Campinas: Unicamp, 2003. MAZZARI, M. Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira. 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Guavira no11 JOAQUIM CARDOZO, LEITOR DE MANUEL BANDEIRA Éverton Barbosa CORREIA1 RESUMO: Embora Joaquim Cardozo tivesse sua produção poética reconhecida pelos seus pares, a exemplo do que aconteceu com Drummond – que prefaciou um livro seu – e com João Cabral – que editou outro -, o seu lugar na história literária permanece um tanto esfumado. Modernista tardio e tangencial, o poeta não chega a compor a geração de 45, apesar de ter seu primeiro livro publicado em 1947. Lendo o poema “Luz na galeria”, dedicado a Manuel Bandeira e publicado no livro Mundos paralelos (1970), intenta-se demonstrar como Joaquim Cardozo se inscreve na tradição lírica moderna através do diálogo que estabelece com o outro pernambucano, desde os anos 1920, quando publica seus primeiros poemas, cuja repercussão se estende por toda sua obra. Como apoio à revisão historiográfica, será considerada a correspondência de Manuel Bandeira. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Cardozo. Manuel Bandeira. Poesia brasileira moderna. Historiografia literária. Nos idos de 1925, Gilberto Freyre foi encarregado de organizar a edição centenária do Diário de Pernambuco ainda muito moço, a considerar seu nascimento em 1900. Daí surgiu o libelo intitulado Livro do Nordeste, haja vista que a publicação acabou tomando uma proporção maior do que a esperada. Pois seu organizador reuniu em torno de si alguns nomes que deram sustentação ao volume com colaborações luminosas, a exemplo das de Oliveira Lima, de Vicente do Rego Monteiro e dos poetas que nos interessam mais imediatamente, que são Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo. A informação se faz tanto mais curiosa quanto mais considerarmos que àquela época o Nordeste ainda não estava formalizado e que o volume serviu de índice para sua demarcação, uma vez que o limite estabelecido para a região foi o das assinaturas daquele periódico encontradas. Conforme o exposto, um jornal passou a ser o elemento de definição da geografia e não só veículo de informação a circular pelo seu espaço. Além do mais, interessa lembrar que aqueles seus colaboradores automaticamente passaram a subscrever o discurso regional, na medida em que colaboraram com o “Álbum do Diário”, o que se aplica a Manuel Bandeira com o “Evocação do Recife” - feito de encomenda para aquele evento literário – e também a Joaquim Cardozo que naquela circunstância figura como crítico da poesia bandeiriana. Naquela publicação, constam lado a lado o poema de Bandeira e a crítica de Cardozo, intitulada: “Manuel Bandeira: um poeta pernambucano”. Como se vê, “pernambucano” então soava como adjetivo de valoração e de emancipação, quando grupos reivindicavam uma identificação mais específica e que ultrapassasse a vaga demarcação vigente de “Norte” para tudo que estivesse ao norte da capital da república, situada no Rio de Janeiro. Cumpre ainda lembrar que àquelas alturas Manuel Bandeira tinha publicado apenas Cinza das horas (1917), Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924) e ainda não era, portanto, a celebridade que veio se consagrar posteriormente por ocasião de sua entrada na Academia Brasileira de Letras e da repercussão alcançada pelo movimento modernista. Lembre-se, ainda, que os meios de comunicação eram bastante precários àquela época e o próprio modernismo não tinha ainda se convertido em moda a ser seguida, estando à sua testa Graça Aranha e Paulo Prado, os mais velhos e mais institucionalizados combatentes do movimento, que até conseguiram adeptos em Pernambuco – a exemplo de Joaquim Inojosa -, 1 UFMS – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - Programa de Pós-Graduação em Letras – Três Lagoas – MS – Brasil – 79603- 011. E-mail: [email protected] 61 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 mas sem a força e sem a tonalidade que adquirira em São Paulo. A leitura de “Os sapos” na Semana de Arte Moderna de 1922 não teve, portanto, o alcance que via de regra lhe é imputado pelas histórias literárias, como refere com acuidade Nicolau Sevcenko (1992, p. 272-273), quando especifica: “Chalaças, chufas e remoques à parte, os poetas não eram protagonistas do espetáculo. [...] Assim, a grande projeção do festival foi, sem dúvida nenhuma, o jovem maestro Villa-Lobos, prodígio da arte moderna brasileira. [...] Os anúncios mesmo da Semana de Arte Moderna na imprensa destacavam sempre, em primeiro lugar e associados, o nome dele e o de Guiomar Novaes.” Quando, na verdade, a entrada dos poetas na Semana tenha se devido muito mais à proximidade com Paulo Prado – filho do Conselheiro Antonio Prado, responsável pela construção do Teatro Municipal -, que fazia das dependências daquele teatro um local de encontro para seus convivas, quando não de reuniões do Partido Republicano Paulista. Diante disso, é possível inferir que a poesia entrou na Semana, mais ou menos, como Pilatos no Credo, o que rendeu protestos inclusive da própria Guiomar Novaes, alegando o caráter exclusivista daquelas manifestações, que não consideravam a tradição que ela executava tão bem, a exemplo de Chopin. Por outro lado, a despeito de Manuel Bandeira e Ribeiro Couto um tanto tangencialmente fazerem parte do círculo apreciado por Paulo Prado e terem sido convidados para participar da Semana, lá eles não pisaram. Da parte de Manuel Bandeira que há muito havia saído de sua cidade natal e via sob suspeita a reunião daqueles rapazes ricos (BANDEIRA, 2001a, p. 124), a quem Mário de Andrade se irmanara, havia ainda certa desconfiança dos propósitos e da figura de Graça Aranha, a exemplo de quando diz: “O Graça não é amigo de ninguém. É um organizador de grupos, e dentro dos grupos cabalista de facções”. (BANDEIRA, 2001a, p. 138). Claro está que Graça Aranha figurava como um dos principais pivôs do modernismo naquele momento, inclusive pelas boas relações que mantinha com os Prado. Se voltarmos aos idos de 1925, àquelas alturas Mário de Andrade já tinha se convertido em amigo de Manuel Bandeira e cada um, a seu modo, mudado de posição em relação ao modernismo. Ficando Mário mais para dentro e Bandeira mais para fora, confidenciando ao amigo: “Essa história de modernismo está mesmo extremamente aporrinhante. Sabe meu sentir íntimo? É que o grupo precisa ser espatifado porque não há nele real espírito de camaradagem.” (BANDEIRA, 2001a, p. 208). A informação nos ajuda sobretudo se pensarmos na escrita um tanto deslocada do poema “Evocação do Recife”, a partir do qual Manuel Bandeira parecia se reconciliar com o seu passado, reintegrando-se à paisagem recifense. Simultaneamente, o poema situava-o em contexto num momento em que ele estava no limbo, longe de Recife, fora de São Paulo e ainda não integrado de todo à vida literária fluminense, onde morava num apartamento sublocado. Se sua vivência no Rio de Janeiro não lhe oferecia uma vida remediada, ao menos conferia ao poeta a veleidade de se transformar num poeta nacional antes que a morte lhe batesse à porta. Mas como não podia esperar muito, devido aos problemas de saúde que o acometiam, qual o problema em colaborar com a publicação comemorativa? A princípio o poeta resistiu à idéia do proponente, alegando haver uma distância razoável entre poesia e bolo de aniversário, mas acabou cedendo ao capricho do organizador do Livro do Nordeste, para orgulho deste e felicidade geral da nação (FONSECA, 2002, p. 56-57). Aparadas as arestas, o “Evocação do Recife” foi publicado sob a encomenda de Gilberto Freyre, abrindo caminho para colaborações entre os 62 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 dois recifenses e oferecendo a possibilidade de Joaquim Cardozo sistematizar a admiração pelo seu confrade na crítica que o volume enfeixa. A apreciação que Joaquim Cardozo faz no Livro do Nordeste da trinca de livros que Bandeira tinha publicado até então se volta para aspectos que hoje podem soar extemporâneos, mas se deve tão somente à efetividade discursiva que se constituía em paralelo à produção poética. Se hoje podemos visualizar a imagem de Bandeira acabada em todos os seus contornos, não era assim naquela época e, por isso, aquela crítica nos interessa sobremodo, uma vez que oferece a obra do poeta em sua viva pulsação, bem como o olhar do seu crítico de primeira hora. Ali (CARDOZO, 2007, p. 499-506) Cinza das horas já é visto sob o escopo soturno de quem está esperando pela morte anunciada e a pique de acontecer; em Carnaval vemos um palhaço sombrio que ao invés de festejar a vida, esconde-se por trás de uma máscara cotidiana e sem remédio, que não encontra avesso e através do qual espelha os outros que se fantasiam no carnaval; O ritmo dissoluto concorre para a derrisão a que a vida está fadada e que já está inscrita nos objetos literários com que o poeta lida, seja um poeta parnasiano ou Camões. Segundo o crítico, em Cinza das horas o que se observa é uma poesia de angustiado, cuja consolação sem termo não demora em se esfumar, tornando-o melancólico, a quem a lembrança de menino atua como nota dominante, nem sempre satisfeita como impulso alentador. Desamparado e esquecido, o poeta se volta com repugnância para o passado, onde não há espaço para sua fala nem para sua companhia, fazendo-o odiar a solidão e o silêncio. Daí resulta uma poesia difícil de se alegrar, aludindo à mágoa que o atormenta e que ele carrega, convertida, por sua vez, numa relação pouco usual com a natureza. Para o crítico, aquele já existente desejo de alegria ganha fôlego em Carnaval, onde é identificável uma maior liberdade formal e também temática, com o arrefecimento de uma visão material do amor em contraposição ao seu desalento. Em vez de fazer o carnaval de um momento de explosão programada, o poeta deixa ao sabor do imprevisto as sensações mais brutas e primitivas. Daí o seu caráter fragmentário e analítico, mediado pela complexidade do cotidiano. Trata-se, portanto, de um carnaval da vida interior, onde a máscara dos outros é iluminada pela sua face sombria, com um forte desejo ser alegre. Seguindo o seu raciocino, em O ritmo dissoluto há a retomada do sentimento infantil, já assinalado por ocasião de Cinza das horas, cujo retorno adquire outra feição, liberta de amarras e infundindo nova sensibilidade. Projetado na sensibilidade infantil, o poeta se permite deslocar o olhar dirigido e grave dos adultos, por isso, acaba atingindo um nível de intimidade com as coisas de que fala, porque as explora com o olhar de quem está descobrindo a natureza de cada uma delas através de um olhar táctil, que desloca o sentido das coisas previsíveis e até se aproxima dos “Dadas”. Isso não descarta, todavia, um prazer intelectual que é resultante de sua fina intuição, mas antes faz combinar o exercício de intelecção com a surpresa virginal da descoberta que os seus olhos nos oferecem, como depuração de uma super-infância que nos arrasta a um estado de supra-consciência. Esta breve apresentação da crítica de Joaquim Cardozo visa à consideração do primeiro registro de sua sistematização da leitura de Manuel Bandeira, levando em conta os seus posteriores desdobramentos em versos. Diante disso, se ainda hoje uma apreciação dessas nos causa certa surpresa, que dizer então lá pelos idos de 1925? Até mesmo o poeta Manuel Bandeira ficou surpreso com o impacto que seus versos produziram e, por extensão, muito agradecido pela crítica que Joaquim Cardozo lhe devotara, como consta em carta endereçada a Gilberto Freyre logo após o recebimento do exemplar do Livro do Nordeste, com o poema publicado junto à crítica de Cardozo. 63 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “passei toda a tarde com Mário metido no álbum do Diário. Feito menino que ganhou um livro muito bonito. [...] Do texto só li o artigo de Joaquim Cardozo e duas páginas sobre o seu século de vida social. [...] O artigo do Cardozo... Aquele sacana me deixou o coração numa podreira. Me conte alguma coisa dele. É o mesmo de quem você fala no capítulo da pintura? Você me faz o favor de dar a ele este exemplar do meu livro? Gilberto, como vocês me trataram carinhosamente como ficou bonita a colocação dos meus versos. Mário de Andrade achou muito bom o estudo do Cardozo.” (BANDEIRA, 2008, p. 198-199) Afora o que se possa depreender da relação entre o missivista e seu destinatário que se desenvolve a partir daí - sob o olhar perscrutador de Mário de Andrade -, também fica evidenciado que Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo não se conheciam. Trata-se, portanto, de um caso raro de encontro entre duas dicções poéticas autênticas que se admiram e se alimentam mutuamente. A admiração de Manuel Bandeira pela poesia de Joaquim Cardozo só viria se revelar por ocasião da Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos (1946). Naquela coleção constava uma quantidade de autores reconhecidos noutras áreas, tais como: Afonso Arinos de Melo Franco, Aníbal Machado, Aurélio Buarque de Holanda, Di Cavalcanti, Francisco de Assis Barbosa, Gilberto Freyre, Maria Clara Machado, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Tristão de Athayde. De igual modo, havia também uma série de poetas inéditos, que se irmanavam a Joaquim Cardozo, a exemplo de Ismael Nery, Luís Aranha, Odilo Costa Filho, Paulo Mendes Campos, Pedro Dantas e Pedro Nava. De Joaquim Cardozo mesmo ali foram coligidos os seguintes poemas: “Velhas ruas”, “Olinda”, “Perdão”, “Chuvas de Caju”, “Figuras do vento” e “Os anjos da paz”, ou seja, todos vieram a constar no livro Poemas, lançado pela editora Agir no ano seguinte, com o prefácio de Carlos Drummond de Andrade. Curioso mesmo é a explicação que o organizador do volume deixa no seu prefácio, cuja amostragem vem a seguir: “Não procurem a expressão nos dicionários, porque não a encontram. Pelo dicionário, bissexto só há o ano, e é o que tem um dia a mais, o que ocorre de quatro em quatro anos. Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil. [...] Em suma, bissexto é todo poeta que só entra em estado de graça de raro em raro [...] Poetas sem livros de versos, bissextos pela escassez de sua produção: essa é a doutrina.” (BANDEIRA, 1946, p.5) Em contrapartida e à revelia da explicação, os admiradores de Joaquim Cardozo que se manifestaram por ocasião de publicação de sua Poesia completa e prosa (2007), fizeram questão de marcar posição diante da classificação extemporânea que lhe fizera o seu confrade Manuel Bandeira ao taxá-lo de bissexto. Ocorre que Bandeira não teve a intenção de diminuir nenhum daqueles poetas ali reunidos, e sim dar alguma notoriedade àqueles poetas que só chegavam ao público com dificuldade, em parte até por vontade própria ou idiossincrasias de ofício, como era o caso de Joaquim Cardozo. O fato é que muitos daqueles poetas ali reunidos não tinham sido publicados em livro até então, a exemplo de Cardozo, conforme Bandeira também explicou em carta ao amigo em comum que era João Cabral de Melo Neto, ao participar-lhe da situação literária no Brasil, como se vê. Outro dia encontrei na rua com o Joaquim Cardoso, que me disse terem os versos dele sido mandados a você para as suas edições. Com os poemas do Cardoso e os da Clarice Lispector a sua coleção adquire de saída uma grande classe. Estou 64 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 interessadíssimo no seu empreendimento. Sugiro para depois o Prudente, o Nava e o Aníbal Machado, enfim, os grandes bissextos. Digo bissextos bem abusivamente, porque o Prudente e o Cardoso não são bissextos senão na atitude esquiva e se os pus na minha antologia foi porque se não o fizesse ninguém poderia ler os poemas deles. (BANDEIRA, 2001b, p.49-50) A carta escrita em 25/11/1947 tinha o propósito de definir como ficaria o título e a portada do livro Mafuá do malungo, editado por João Cabral e vindo a lume no ano seguinte. Nesta mesma carta, consta ainda a quadra de dedicatória a João Cabral, feita por Manuel Bandeira e que veio a constar no frontispício daquela publicação. Depois da transcrição da quadra, é que Bandeira inicia o texto supracitado, respondendo ao incômodo de João Cabral por ter convidado a Joaquim Cardozo e a Drummond para publicarem pela sua prensa manual, mas sem resposta até aquele momento. Bandeira, então, conforta o amigo, descrevendo o episódio com Cardozo, que veio a publicar os Poemas pernmbucanos sob o selo do Livro inconsútil. A atitude esquiva à publicação foi uma nota dominante na produção poética de Joaquim Cardozo, o que explica em parte a irregularidade de suas publicações e até, poderíamos dizer, o seu lugar impreciso na história literária, dado o caráter rarefeito de sua repercussão. Se a princípio Joaquim Cardozo teve um reconhecimento precoce no Recife do primeiro quarto de século – mesmo sem ter sido publicado em livro -, logo depois se instaura um lapso de duas décadas - de 1920 a 1940 -, tal como se depreende do texto de Souza Barros quando aprecia a relação entre “Joaquim Cardozo e o ‘Cenáculo da Lafaiete’” no seu livro A década de 20 em Pernambuco (BARROS, 1972, p. 223). “Foi sem dúvida Cardozo o mais perfeito contumaz, do ponto de vista de uma continuidade, e o mais influente membro da confraria. Pode-se mesmo dizer que o grupo tomou saliência e uma determinada importância pela presença de Cardozo. Sabia, apesar de retraído, levantar debates, trazendo questões interessantes para os bate-papos, pois era o mais informado, acompanhando com interesse o que se passava na Europa, lendo e tendo assinaturas de revistas estrangeiras. Teria razão Rachel de Queiroz, que passou pelo Recife no início da década de 30 e freqüentou o ‘cenáculo’. Ao relembrar aqueles tempos, anos mais tarde, já aqui no Rio, disse ao próprio Cardozo ‘que o conhecera ali, na Lafaiete, rodeado de admiradores, deixando-se adorar como a um Deus’” Tendo saído de Recife em 1939, fixar-se-ia no Rio de Janeiro, quando se integra ao ambiente cultural fluminense e passa a reviver a cidade natal sob o filtro da memória, ao que a obra de Manuel Bandeira serve de ótimo esteio. Assim, o crítico de primeira hora do poeta de Pasárgada encontraria naquela poesia a justa medida para sua rememoração do passado, que ele amplia e redimensiona para além do âmbito familiar. Vale ainda lembrar que, mesmo residente no Recife, Joaquim Cardozo sempre utilizou a paisagem pernambucana nos seus versos, mas depois que sai de lá, obviamente, tal referência ganha outra dimensão, porque outro é o sentido da memória para quem está exilado involuntariamente, como era o caso. Memória que penetra o espaço urbano e o rural – como sempre havia sido desde antes de sua partida -, atravessa também os séculos anteriores ao século XX e se faz por meio de uma sensibilidade personalíssima como é a de Joaquim Cardozo. E se tal cruzamento entre o individual e o coletivo se dá quando da observação da matéria brasileira, seja entendida em sua extração nacional (fluminense) ou regional (pernambucana), não vai ser diferente quando o “poeta do Capibaribe” – como João Cabral o alcunhou na dedicatória de O cão sem plumas – se volta para a imagem de Manuel Bandeira na condição de fazedor de versos. 65 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O primeiro momento em que podemos aventar um diálogo poético explícito entre Cardozo e Bandeira é com o poema “Arquitetura nascente e permanente”, que constitui parte significativa do livro Signo estrelado (1960). Depois disso, encontramos no livro Mundos paralelos (1970) o poema “Luz na galeria”, com a seguinte dedicatória “A Manuel Bandeira: homenagem minha e de uma rua”. E entre os seus dispersos, a que os organizadores da edição da sua Poesia completa e prosa pela Aguilar cunharam Outros poemas está o “Para Manuel Bandeira”, recheado de referências à vida e à obra que se juntam no complexo de poesia que identificamos singelamente no autor de Cinza das horas. Diante do quadro esboçado, algumas razões me inclinaram a analisar o “Luz na galeria”: o fato de ter sido publicado em livro e em vida do autor; assim como ter Manuel Bandeira convertido em personagem aureolado pelo universo recifense, através de um enredo cotejado por Joaquim Cardozo ( 2007, p. 290-292). Luz na galeria A Manuel Bandeira: homenagem minha e de uma rua. I Num tempo muito cedo em minha vida Várias vezes visitei Tia Rosinha Na sua casa da Rua da União O vento vinha do mar sobre os sobrados antigos Do velho Recife: passava sobre a confluência Dos dois rios da cidade – de águas tão diferentes! E vinha balouçar-se nos ramos das “Casuarinas” Da Escola Normal: balouçar-se e... plangentes. - Os bicos das aves que haviam no vento Bicavam o liso reboco das casas da rua, E nele abriam pequenos orifícios... Nele, naquele reboco, liso e vidrado como se fosse de louça. Pela calçada da Assembléia Ao longo da Rua arborizada de “Carolinas” Sempre de grandes frutos carregadas, - Frutos cor de batina de padre franciscano – Passavam as normalistas, Os estudantes passampassavam, no Ginásio Pernambucano. - Na paz recifense da tarde presente/perene, e quieta, Havia um pressentimento de que ali, Alguns anos atrás, também passara um poeta. II Num sobrado da Rua da União, Entre as ruas do Príncipe e Riachuelo, Desfiaram-se as minhas primeiras horas de trabalho; Era defronte do pequeno jardim do Senado - Jardim de um canteiro somente – do qual um meu amigo, - Excelente mentiroso – e, ali, alto empregado, Era o “Jardineiro”. Nesse trecho de rua moravam lindas moças morenas, Lindas moças muito brancas moravam... Da prancheta em que desenhava, no primeiro andar, Vi-as de longe, nos seus vestidos claros e leves, Num passo tranqüilo, conduzindo e ondulante, Quase sempre na direção da Rua da Aurora. 66 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Para esta rua saía, às quatro da tarde, Com os meus companheiros de trabalho; - Rua do Sol, pela manhã, e, à tarde, de sombra; Rua da Margem do Rio, de calçadas prediletas... -Tinha-se a impressão de conosco, às vezes, Conosco, ao nosso lado, ia também um poeta. III No trecho que termina na Rua Formosa, Numa de suas casas, a Rua da União me foi moradia; Era uma casa de corredor independente, Daquelas que conservam em mistério a sala de visitas; - Tinha/tem um sótão com janela para a rua, De onde se viam as palmeiras da Igreja dos ingleses. Uma noite me chamaram: alguém me procurava; Desci a escada do sótão, fui até o corredor; Diante de mim, sorrindo, Estava um poeta: Manuel Bandeira; Estava o presente, o pressentido – duas vezes – naquela Rua. Falou-me de Nicolas Lenau, de Maurice de Guérin, De Gonçalves Dias, de Antonio Nobre, de... de... de... E vi, e contemplei/compreendi - Através dele: um – um por um - todos os que vivem em poesia. - Estava o presente, o pressentido. Na/da Rua da União passou/saiu para o mundo Um grande poeta: Manuel Bandeira. O livro Mundos paralelos, de Joaquim Cardozo, reúne uma quantidade considerável de poemas narrativos, entre os quais podemos destacar o poema dedicado a Manuel Bandeira. Poema narrativo que é portador de uma estrutura própria – dividida em três partes -, que é tributária da história que conta e que passa pelo crivo da personagem que a enreda: Manuel Bandeira. Por conseguinte, todos os conflitos ali dimensionados sob o filtro da sensibilidade do poeta de Pasárgada são convertidos em expressão do sujeito poético. Neste poema, Manuel Bandeira aparece como uma espécie de assombração que carrega e encarna o passado, cuja vitalidade reivindica sua presença que se qualifica pelo conjunto de elementos que remontam à experiência decorrente de sua lembrança. Assim, sua memória se consubstancia e se cruza com a memória coletiva que traz a reboque de sua experiência sensível e circunstante. E aqui já dispomos de um ponto de contato entre o melancólico Manuel Bandeira destacado na crítica de Joaquim Cardozo intitulada “Manuel Bandeira: um poeta pernambucano” e a melancolia que o poema enseja através da persona de Manuel Bandeira descrita entre calçadas e arbustos na Rua da União. A narrativa do poema se divide em três partes, cuja divisão é indicada pela narração que o poema apresenta e que traz três repercussões distintas da imagem de Manuel Bandeira. Na primeira, há apenas a sugestão de que por ali passara o poeta; na segunda, já há a impressão de que num tempo passado, contiguamente andava o poeta, ao lado de seus sequazes; e na terceira, finalmente, o pressentido se faz presente. Ou seja, a figura do poeta se materializa, não pela sua presença, mas pela presença das coisas que o revelavam e que estão presentes na sua poesia, trazendo consigo uma porção do poeta ou, ao menos, parte das sensações que ele nos legou e nos fez acreditar serem legítimas. Não por uma suposta verdade 67 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 imanente ali depositada, mas porque adquiriram sentido após a sua intervenção e só por causa dela, com sua sensibilidade arrevesada e indômita. A presença do poeta, portanto, é resultante de um conjunto de sensações que ele nos impingiu, um tanto circunstancialmente, e que aparecem redivivas por terem sido revividas por outros, especularmente, recifrando o sentido que lhes foi conferido antes, por aquele que já passara por ali, e parece estar vivo nos passos de quem anda por aquelas mesmas calçadas ou, ao menos, pesa como uma velha sensação decantada daquelas ruas. Trata-se, por conseguinte, de uma sensação decalcada da experiência sensível do homem Manuel Bandeira que é transmitida de longe em longe por algum dos seus eventuais leitores contumazes daquele mesmo espaço. A experiência vivida e sentida por Joaquim Cardozo é reduplicada na direção de outros leitores de Bandeira e evocada deste mesmo poeta, com o propósito de ampliar o sentido nele, com ele e através dele. Quer dizer, o entendimento da obra de Manuel Bandeira é atualizado concretamente por uma sensação que é aspirada de sua vivência. Com isso, mais do que apontar um procedimento poético caracteristicamente bandeiriano ou indicar a matéria recorrente impressa nas suas composições, o que se destaca do poema de Joaquim Cardozo é uma sensação de algo irremediavelmente perdido que se desprende da figura, da paisagem e do estilo que atribuímos a Manuel Bandeira. Não se veja aí, pois, uma outra “Evocação do Recife”, porque não é a cidade aureolada de história, guerras e literatura que interessa. Antes é o espírito da cidade radiografado em miniatura no quadrilátero que Manuel Bandeira elegeu como sua Tróada, qual seja, o cruzamento da Rua da União, com a Rua do Sol, atravessando por sua vez a Rua do Príncipe e a do Riachuelo em direção à Rua da Aurora ou à Rua Formosa. É a limitação espacial que permite uma apreciação mais analítica da cidade, decifrada em elementos muito particulares que dão a ver certa compreensão de urbanidade e o conjunto de sensações que atravessaram o poeta nascido em 1886 e que trespassam ainda aquele outro vindo à luz em 1897. Embora não esteja nítida a proximidade dos poetas nos manuais de literatura, o quadro de experiência deles junto à cidade é muito parecido, quer consideremos a vivência do Recife ou o cordão de personagens que dali se desprende e que vai de árvores a normalistas. As árvores – tal como as ruas – são particularizadas, produzindo o mesmo efeito de ampliar a impressão que causa pela aproximação do sujeito narrador do poema. Sujeito que se faz objeto da narração no qual identificamos o reflexo de Manuel Bandeira através das “Casuarinas” e “Carolinas”. Ou seja, por se tornar tão familiar àquelas ruas, a ponto de podermos identificar-lhes suas árvores, o espaço se torna tão próprio ao novo observador quanto o foi para Manuel Bandeira. Tão intenso e efetivo é o efeito de reduplicação da imagem de Manuel Bandeira na imagem que Joaquim Cardozo reivindica para si no poema, que podemos identificá-los metaforicamente como incrustados nos rios da cidade que enformam o verso 6, a saber: “ Dos dois rios da cidade – de águas tão diferentes.” A cidade que é cortada por rios, também é cortada e recortada pelos poetas, de maneira que o corte desferido primeiramente por um é reduplicado pelo segundo que amplia em intensidade e profundidade o corte primeiro, razão de existir do segundo. Sem um, não haveria o outro. Havendo um, o outro se torna legítimo e até necessário. O sentido do poema de Cardozo só ganha relevo porque existe o de Bandeira. O “Evocação do Recife” conduz à compreensão da cidade para a Rua da União, passando por vários lados e reminiscências da cidade. Este poema de Cardozo começa e acaba em volta da Rua da União. O sentido da obra de Cardozo ganha substância e se tonifica na medida em que reconhecemos uma tradição que ele cava e sedimenta com Manuel Bandeira. Não como um 68 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 patrono ou um símbolo pelo qual sua poesia navega, mas por ser portadora de uma matéria semelhante que se desdobra numa sensibilidade igualmente singular. É a singularidade de Bandeira que abre espaço para a singularidade de Cardozo, que é outra: de outra natureza, de outra tonalidade e de estilo completamente outro, porque muito próprio. Tão próprio quanto o de Bandeira, embora seja de outra propriedade. Assim, a obra de Joaquim Cardozo ganha recurso, não porque imite ou se valha de procedimentos bandeirianos explícitos, e sim porque reconhece uma grande voz poética que o antecedera e que é portadora de um timbre muito peculiar. Ouvindo a impostação da voz do outro, Cardozo encontra um veio através do qual sua voz também pode ser impostada, sem encobrir ou sobrepor a projeção do canto alheio. Ao contrário, ouvindo as duas vozes é perfeitamente audível o canto entoado em torno de ruas que identificam os poetas e com as quais os timbres se confundem, ilustrando a cidade que acolhe a ambos, de vozes distintas. Com as vozes em sintonia, cria-se uma imagem do Recife urbano que é tributário da intervenção dos poetas. O mais curioso da narração que o poema carrega é que há uma matéria comum que evoca uma sensação supostamente tragada de experiências similares. Sensação que pode ser ilustrada pela perspectiva de Joaquim Cardozo que vê a mesma cena desenhada nos poemas de Manuel Bandeira, embora a descrição de Bandeira seja animada por outros traços, decorrentes de outra angulação, que se cruza com a de Joaquim Cardozo, tal como vemos na descrição da segunda parte de seu poema: “Da prancheta em que desenhava, no primeiro andar,/ Vi-as de longe, nos seus vestidos claros e leves,/ Num passo tranqüilo, conduzindo e ondulante,/ Quase sempre na direção da Rua da Aurora.” Decerto foi uma dessas moças de vestidos claros e leves que Manuel Bandeira viu nuinha no banho, tendo seu primeiro alumbramento. Pela idade com que saiu do Recife e a posição infantil que ocupava na sua cidade, Manuel Bandeira nunca poderia olhar as moças recifenses de cima, tal como o engenheiro do alto de seu escritório. Por outro lado, a visão da mulher em Manuel Bandeira via de regra vai ser mais carnal e menos metafórica do que em Joaquim Cardozo. Aqui, neste poema, parece haver uma síntese entre a perspectiva usualmente identificável na poesia de um e de outro, através da qual percebemos uma tonalidade densamente alegórica, em que a carnalidade do escopo que visualiza o feminino é sobreposto a seu caráter representativo, que metonimizado aparece nos seus vestidos, na sua brancura, na sua morenice ou na sua lindeza. Não deixa de ser apropriada a imagem da mulher, apesar de à primeira vista parecer apresentar um quadro disforme e incongruente, como é toda sensação viva e palpável, porque radicalmente contraditória, como é tudo que se queira a alguns palmos da realidade. Assim, o pressentido se faz presente pela reduplicação da imagem projetada anteriormente numa metaforização a meio caminho da alegoria. Isso tanto vale para a imagem da mulher que Joaquim Cardozo explora ou do espaço urbano recifense, onde aquela mulher passeia. Quando circunstanciada no ambiente daquela cidade, a imagem da mulher ganha uma coloração que concorre para o entendimento da paisagem ao seu redor e de seu valor representativo. Teremos dado um passo além na compreensão desta composição se considerarmos o encontro que se dá entre o sujeito lírico e Manuel Bandeira na Rua da União, onde o seu busto está afixado como indica o poema. Somente porque tal encontro acontece é que podemos visualizar a ampliação da imagem de Manuel Bandeira, que se desdobra pelo próprio reconhecimento do seu busto e pela sensação que acomete o sujeito lírico após tal reconhecimento, tornando palpável aquilo que fora anteriormente pressentido: a presença de Manuel Bandeira naquela rua. A presença 69 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 física do busto do poeta desencadeia uma série de sensações ali engatilhadas e que, aparentadas às sensações provocadas pela poesia bandeiriana, faz com que revivamos sua poesia através do caráter representativo que ela adquiriu, quer seja ilustrado pelo seu busto ou pela poesia que Joaquim Cardozo busca e realiza. A melancolia de Joaquim Cardozo ganha força porque é projetada na de Manuel Bandeira, onde sua densa angústia se alimenta, repercutindo a melancolia do outro e intensificando a sua, que já vale por si só e se acentua pelo reconhecimento da perda do outro, também melancólico. Esta melancolia da melancolia produz um efeito devastador, conforme o qual o sentido da perda não encontra correspondente substitutivo. Antes conduz a uma transcendência vazada e sem fundo, onde não há reconciliação possível (MERQUIOR, 1996, p. 29-33). O encontro com Manuel Bandeira é antes de tudo e de mais nada o encontro com o vazio cantado por um poeta pernambucano que ecoa no outro o seu sem-sentido que tenta desesperadamente se agarrar às coisas circunstantes para lhes conferir um sentido provável, embora saiba nem sempre tangível. Sentido que só é identificável nas coisas a que os poetas tentam se plasmar, seja um busto ou a poesia do confrade. O pressentido vazio ali se faz presente, pela existência do outro, num lugar em que o sujeito poético parece ganhar fixidez e que justifica sua existência dispersa nos despojos de sua lembrança, para a qual a demarcação do espaço se lhe oferece como alento possível, também a pique de se esfumar. “Da Rua da União para o mundo” vem a ser, portanto, uma fórmula para universalizar algo perdido no tempo que se convenciona através do espaço ocupado por um e outro poeta, ou pela reverberação de uma poesia que se justifica pelo reconhecimento que lhe foi devotado e que ela suscita, inclusive através do busto de seu autor. A tentativa desesperada de demarcar um espaço próprio e contíguo à poesia de ambos os autores deve-se sobretudo a uma desconfiança sábia, porque quase certa, de que haverá o esboroamento da experiência dali decorrente e que junto a ela se vai também parte da compreensão da poesia, a poesia mesma. É a certeza de que a poesia não tem valimento, sequer para redimir seu sujeito, que motiva e anima a escrita de Joaquim Cardozo, espelhada na de Manuel Bandeira, que era portador de uma consciência assombrosa da gratuidade do seu fazer, que podemos apelidar de ceticismo ou coisa semelhante. Mas que só vale devido ao que está gravado em versos, nos seus versos e nos versos do outro, curtido e repercutido. JOAQUIM CARDOZO, READER OF MANUEL BANDEIRA ABSTRACT: Although Joaquim Cardozo has been recognized by their peers, as happened with Drummond – who prefaced one of his book – and with João Cabral – that edited another-, his place in literary history remains somewhat blur. Late and tangential modernist, the poet does not enough to compose the generation of 45, despite having her first book published in 1947. Reading the poema "Luz na Galeria", dedicated to Manuel Bandeira and published in the book Mundos paralelos (1970), sues itself demonstrate how Joaquim Cardozo ties in modern lyric tradition through the dialogue with that other poet, since the 1920s, when he publishes his first poems, whose impact extends throughout his work. Supporting the historiographical revision, it is considered the letters of Manuel Bandeira. KEYWORDS: Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, Modern Brazilian Poetry, Literary Historiographic. 70 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 REFERÊNCIAS BANDEIRA, M. Antologia do poetas brasileiros bissextos contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1946. _____________.Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2001a. _____________. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001b. _____________. “Correspondência de Gilberto Freyre a Manuel Bandeira” in: VICENTE, S M. Cartas provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. 2007. 591 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008. _____________. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. BARROS, S. A década de 20 em Pernambuco. Rio de Janeiro: Editora Paralelo, 1972. CARDOZO, J. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; Recife: Massangana, 2007. FONSECA, E. N. da. Alumbramentos e perplexidades: vivências bandeirianas. São Paulo: Arx, 2002. FREYRE, G. (org.). Livro do Nordeste. Recife: Arquivo Público Estadual, 1979. MERQUIOR, J. G. Uma canção de Cardozo. Razão do poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 17-35 SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 71 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O MITO PROMETÉICO NA TRAJETÓRIA POÉTICA DE MURILO MENDES Wanderlan da Silva ALVES1 Diego de Jesus Rosa CODINHOTO2 RESUMO: Neste artigo, estudamos a recorrência do mito de Prometeu na poesia de Murilo Mendes. O poeta, a partir da incorporação da Mitologia em sua criação poética, invoca tais mitos, ora referenciando-os ora atualizando-os, em uma poesia que se faz moderna, por meio da tensão dialética entre passado/presente, imaginação/realidade, tradição/modernidade. PALAVRAS-CHAVE: Murilo Mendes. Mito de Prometeu. Poesia Brasileira. Poesia modernista. Em sua obra, Murilo Mendes recorre diversas vezes à Mitologia 3 para compor seus poemas, mas constrói uma poesia que não despreza os aspectos do mundo real e da Modernidade. Em sua poética, elementos histórico-culturais associados à arte podem manifestar aspectos da relação do homem com o cosmo e criar um campo crítico de reflexão sobre o fazer artístico. Desse modo, o poeta toma o mito ora como narrativa sagrada contada por um rapsodo, ora como representação de verdades profundas da mente, particularizando-o e atualizando-o. Embora Murilo Mendes nunca tenha seguido explicitamente programas estéticos (tão em voga no contexto histórico-social e artístico em que o poeta escreveu sua obra, entre as primeiras décadas do século XX e o começo da década de 1970), chama-nos a atenção o fato de o mito prometéico aparecer no decorrer de toda a sua obra poética. De certo modo, tal mito, mais que mera referência à Mitologia Greco-romana, prestase, na poesia de Murilo Mendes, à representação e à identificação simbólica da própria relação do poeta com o lírico, de modo que o mito de Prometeu se associa à concepção de sujeito presente na sua poética e, ainda, ao ideal de poesia que está presente em toda a produção literária desse poeta. Os textos de Murilo Mendes que resgatam o mito prometéico são os seguintes: “Novíssimo Prometeu”, “Amor – Vida”, “Botafogo”, “Natureza”, “A Noite de Junho”, “O Fósforo” e “Hans Magnus Enzensberger”, que aparecem nessa mesma ordem, em sua obra completa (MENDES, 1994), e, como veremos, estão distribuídos ao longo das quase quatro décadas pelas quais se estende a sua produção literária. Propomo-nos, então, analisar como se dá a atualização e a particularização do mito de Prometeu na obra do poeta, buscando compreender qual a importância desse mito na poesia do autor e qual (ais) a(s) função (ões) que ele assume na relação poeta-mundo e em seu plano artístico. 1 Doutorando pela UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - São José do Rio Preto - SP – 15054-000. E-mail: [email protected] 2 Mestrando pela UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - São José do Rio Preto - SP – 15054-000. E-mail: [email protected] 3 O termo “Mitologia”, empregado aqui, engloba todo o universo mitológico. Faremos a referência necessária quando tratarmos de alguma mitologia específica, como a grega ou a romana, por exemplo. 72 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Prometeu revisitado A retomada que Murilo Mendes faz de várias Mitologias, ao longo de sua obra poética, poderia ser analisada sob diversos focos. Escolher o mito de Prometeu é uma maneira de investigar a ênfase dada ao humano na poesia muriliana, já que Prometeu, tanto na versão mítica quanto na visão moderna que se tem desse mito, representa toda a humanidade. Além disso, é uma maneira de apontar e ratificar o importante papel da Mitologia Greco-romana como fonte constitutiva não só da literatura muriliana, mas também de toda a cultura ocidental. Dessa forma, a partir de apropriações, estilizações, paródias e paráfrases, o poeta retoma o mito prometéico, valorizando-o por meio de figurações textuais afins ao contexto do homem moderno, o que resulta numa maneira de refletir sobre a própria relação do homem no literário e com o literário, a partir da sua herança cultural. Murilo Mendes empreende, pois, uma poesia (re) criadora, que integra Mitologia, História e Poesia, o que já nos permite apontar o projeto literário do poeta de uma poesia totalizadora. Em sua obra, o mito prometéico é retomado pela primeira vez em “Novíssimo Prometeu” (MENDES, 1994, p. 237), poema do livro O Visionário (1930-1933), pertencente ao que alguns críticos chamaram de primeira fase do poeta, ainda fortemente influenciada pelo Surrealismo, mas que já apresenta um consistente trabalho com a realidade tornada lírica, de uma poesia pautada no mundo substantivo, sempre em busca de manter a coerência entre o “eu” e o mundo. Em “Novíssimo Prometeu”, o título já nos propõe uma atualização do mito, pois se declara a fonte (Prometeu), porém modifica-se e determina-se sua condição. Antecipa-se, então, a noção de que não se faz uma mera alusão à Mitologia Greco-romana, mas, sim, procura-se, ao mesmo tempo, enriquecer tanto a criação artística moderna de Murilo Mendes quanto a própria literatura clássica com algo que a torne “novíssima”, o que, no contexto da poesia de muriliana, pode significar atual, perfeitamente adaptada ao poeta moderno. Já observamos (ALVES, 2006) que o ideal de inovação muitas vezes se presentifica, na poesia de Murilo Mendes, a partir dos títulos de alguns de seus poemas, como “Novíssimo Job”, Novíssimo Jacob” e “Novíssimo Orfeu”, todos eles relacionados a personagens de alguma Mitologia. Parece haver, então, no emprego que faz dos mitos em sua poesia, o objetivo de apresentar uma Mitologia atualizada e de acordo com seu projeto poético. No poema “Novíssimo Prometeu”, os primeiros versos já colocam o mito como ponto de partida, e o eu-lírico é incorporado pelo sujeito mitológico, pois o “eu” afirma: “Eu quis acender o espírito da vida,/ Quis refundir meu próprio molde,/ quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos”, o que consiste numa estilização de uma fala do Prometeu mítico, que também diz “eu quis cometer meu crime! Eu o quis conscientemente, não o nego! Para acudir aos mortais” (Ésquilo, 1987, p. 119). Essa referência direta ao mito demonstra a consciência poética de Murilo Mendes no emprego do mito de Prometeu e acentua o propósito do eu-lírico do poema de levar à humanidade o “espírito da vida”, o fogo, cuja simbologia aponta não apenas para o caráter de iluminação, de sabedoria e de vida, mas também para o papel que ele teve na história da humanidade, uma vez que possibilitou a ela sair de sua condição passiva, determinada pela natureza, pelos “deuses”, rumo a seu próprio mundo, dominando os seres vivos, os metais e o próprio homem – “a verdade do seres, dos elementos” –, via confrontos, batalhas e guerras. Além disso, podemos observar, no verso “Quis refundir meu próprio molde”, a intenção do sujeito lírico (o eu) de fundir-se com o herói mitológico referido, uma vez que o próprio eu-lírico declara querer refundir a si mesmo, mas, agora, consciente de seu poder e de seus defeitos. Nesse sentido, pode-se perceber uma tentativa do eu-poético de 73 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 moldar-se ao mito de Prometeu, porém transformando tal mito em um outro, diferente, uma vez que se soma ao mito grego (agora novíssimo), promovendo a fusão do mito com o eulírico (inserido na história) e, consequentemente, da experiência de Premeteu com a própria história do eu-lírico. Desse modo, o eu-lírico, com o desejo de tornar-se outro, torna-se o Prometeu de seu tempo. Mas o que há de novo em “Novíssimo Prometeu”? “Prometeu é o símbolo da humanidade. Seu destino simboliza a história essencial do gênero humano” (DIEL, 1991, p. 233). Porém a associação estabelecida entre Prometeu e o “eu”, nesse poema, é de ruptura. Enquanto, no mito grego, Prometeu se rebela contra os deuses para salvar a humanidade, pois o fogo do Olimpo representa a sabedoria, o eu-lírico do poema, por sua vez, se personifica em Prometeu e, embora esteja ciente de seu dever de obediência, rebela-se contra “Deus”, “o papa”, “a família”, enfim, contra todos. Desta maneira, o novíssimo Prometeu vai além e tenta rebelar-se contra o próprio mito (e o seu destino: o castigo eterno) e contra si mesmo. Sabe que, no mundo moderno, o fogo dos deuses não existe mais, por isso pretende dar seu próprio molde ao espírito da vida, o que confirma seu desejo de sabedoria. O eu-lírico torna, pois, a humanidade consciente de sua realidade e ressalta, ainda, que aspira à onipotência, porque ele tanto quer criar, despertar, moldar a humanidade, quanto a quer “à sua imagem e semelhança”, afirmando “Quis refundir meu próprio molde”, verso cujo possessivo nos leva, por um lado, à sua atitude ativa, é ele quem vai moldar, e, por outro lado, à noção de que ele é o modelo, isto é, o molde. No entanto, essa assunção de poder transformador exige, como consequência, que o homem/Prometeu atualizado assuma, também, a responsabilidade por tudo que seu ato vier a provocar. Temos, então, um eu-lírico que invoca a sabedoria contida na experiência do mito de Prometeu para tomar, ao rebelar-se inclusive contra si mesmo, um posicionamento crítico do “eu”, que acompanha toda a poesia de Murilo Mendes. Em atitude de ruptura, como valor eufórico, o poema “Novíssimo Prometeu” assume que “o pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra” (BAKHTIN, 1981, p. 73), o que possibilita o diálogo com a narrativa mítica da tradição e, ainda, a torna atualizada pela perspectiva adotada no poema. O intuito de alcançar uma poesia integradora é uma tônica em Murilo Mendes e aponta o desejo criativo de sua poesia, que procura relacionar tempos, formas e planos, acentuando o papel dinâmico de sua poética, que retoma o passado (histórico, mítico, cultural), dando-lhe seu próprio tom, ou “molde”, posição que manifesta, inclusive, uma concepção de literário como construção, arte de linguagem, cujo processo de elaboração se dá, basicamente, por deslocamento e condensação, o que, segundo Bosi (2001), situa Murilo Mendes entre os poetas modernos que representam a máxima poesia brasileira da segunda metade do século XX. É relevante, também, no estudo do poema em questão, analisar a própria simbologia do nome “Prometeu”, que, segundo Diel, (1991), significa o pensamento previdente, aquele que reflete antes de agir, e, para Salis (2003), é aquele que vai em direção ao mito. A associação do nome “Prometeu” à sua simbologia nos mostra a atualização do mito, no poema muriliano, e a relação que o eu-lírico estabelece com o social, o que se apresenta, em “Novíssimo Prometeu”, por meio da relação tensa entre o “eu” e o poder, tanto representado por entidades espirituais quanto institucionais – “Me rebelei contra Deus,/ Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,/ Contra minha família” –, e, ainda, por elementos sentimentais – “contra meu amor”. Como tais poderes são ideologicamente construídos, presentificá-los, no poema, negando-os, não só retoma, do contexto mitológico, a coragem de Prometeu, mas 74 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 resulta, também, numa poesia crítica em relação à própria História, que, normalmente, se faz pela ótica da tradição institucional dos vencedores. Segundo Trintin (1978, p. 20), na poesia muriliana, isso corresponde “à dialética de um projeto que detém e revela a realidade [...], uma busca incessante da situação da poesia em relação ao mundo”. Essa revolta instalada no poema acentua-se, gradativamente, numa tentativa de apagamentos ideológicos, institucionais, estabelecidos no poema, como se percebe, nas rebeliões “contra o trabalho,/ Depois contra a preguiça,/ Depois contra [si] mesmo,/ Contra [suas] três dimensões”. Nessas construções paralelas, os elementos contra os quais o “eu” se rebela são cada vez mais próximos de si e até pertencentes a si, o que nos faz acreditar, inicialmente, que correspondem às suas três dimensões. Ocorre, porém, que, ao final da primeira estrofe, não há um encerramento do período por meio do ponto-final esperado; ao contrário, aparecem os dois-pontos, que contribuem para acentuar ainda mais a tensão instalada pela rebeldia do “eu-Prometeu” na estrofe inicial do texto. A influência mitológica sob a qual se constrói o poema nos ajuda a interpretar essas três dimensões. Quando relacionadas a Prometeu, elas correspondem à criação, à sedução e ao castigo prometéicos, pois, segundo Salis (2003), ao punir Prometeu, Zeus lhe afirma que uma desgraça nunca virá só, ela virá tripla, o que se justifica, se observarmos que são três os castigos dados a Prometeu, no mito grego, a saber: Prometeu é acorrentado ao Cáucaso; a humanidade perde a imortalidade; e essa mesma humanidade perde a vida abundante, farta e sem custos que, até então, possuía. Pode-se, ainda, associar as três dimensões mencionadas no poema às relações eu-poeta-mundo ou eu-mundo-fé, haja vista que os três representam o nobre, o bom e o belo, elementos espirituais que estabelecem a ponte entre o plano terreno e o plano superior, em geral, na tradição da cultura ocidental. Nesse sentido, a própria descrição que Ésquilo (1987) faz do acorrentamento de Prometeu ao Cáucaso, Prometeu de braços abertos, o que nos dá a imagem de uma cruz, corrobora nossa interpretação, uma vez que, além de revelar as três dimensões empíricas de qualquer corpo material, representa o corpo físico do eu-lírico, o que configura a rebelião radical do “eu” contra a própria condição física do ser. Essa radicalização revela o “lirismo de exame de mundo” muriliano (TRINTIN, 1978, p. 8) e manifesta, ainda, uma das propostas da poesia moderna, que é “ser libertária num mundo de ossatura exposta” (BARBOSA, 2000, p. 36). Podemos, por fim, associar essa dimensão tripla do “eu” à escrita do poema, uma vez que, ao utilizar-se de textos anteriores, podemos falar nas três dimensões do espaço textual, ou seja, o sujeito da escrita, o destinatário e os textos anteriores (KRISTEVA, 1974) aos quais ele se relaciona. Retomemos o poema. Vimos que sua primeira estrofe caracteriza-se pela ânsia e pela angústia do “eu”. A segunda, por sua vez, traz-nos o testemunho desse “eu”, que observa, preso ao Pão de Açúcar, “esquadrilhas de aviões”, “o fígado [bicado]”, “as filhas do mar”, “madrugadas e tardes”. Observarmos que as duas estrofes apresentam dez versos, aspecto que as aproxima. No entanto, o “eu” porta-se de forma bem distinta em cada uma delas, e isso as distancia. Os versos da primeira aparecem na voz ativa, tendo por sujeito agente, expresso ou elíptico, o “eu”. Isso resulta numa atitude restrita, finita e internalizada, porém marcada pela ação. Nota-se, também, que os processos verbais dessa estrofe estão no pretérito perfeito do indicativo, o que evidencia o papel ativo dos atos passados desse “eu” e se reforça, por sua atitude de rebelião (versos 4 a 9) e de negação de si mesmo (verso 10). Já a segunda estrofe põe o “eu” em posição passiva, seja como complemento verbal, logo alvo da ação praticada pelos sujeitos “ditador do mundo” e “esquadrilhas de avião” (versos 12 a 14), seja como sujeito que tem sua ação positiva anulada pela semântica dos verbos, pela negatividade em 75 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “Vomito” e pela passividade em “Contemplo” e “Vejo”. Ressalte-se, contudo, que, a partir do décimo sexto verso, os verbos passam para o presente, o que cria espaço para a atitude de comentário que vem no último verso do poema (“não posso pedir perdão”). A condição do eu-lírico, no poema, situa, também, o poeta em face do lírico na Modernidade. Isolado, sem um espaço que lhe ofereça a liberdade e a privacidade necessárias para a contemplação descomprometida e desinteressada do mundo, também sem interlocutores garantidos nesse universo, o poeta não tem com quem comunicar-se plenamente. Nesse contexto, esse contemplador que, deslocado, observa o mundo à sua volta, não é o basbaque deslumbrado, não se vê absorvido pelo moderno nem o recebe de modo eufórico. Em seu isolamento, ele é, também, um melancólico. É esse estado de constante reflexão, típico do melancólico, que situa o sujeito, no poema, aquele que vê criticamente o mundo – “Pureza e simplicidade da vida!” – e rumina sua condição de sujeito-parte desse mesmo universo, dia após dia. Em certo sentido, lamenta, ainda, o fato de que, mesmo em épocas distintas, sem qualquer ligação cronológica nem causal perceptível, passado (mítico) e presente (do poema) se identificam, talvez pelo caráter de violência e de barbárie de ambos e pela impossibilidade de vivência plena pelo sujeito, em ambos os momentos, diante dos poderes institucionalizados que regem seu universo (tanto no passado mítico quanto no presente histórico). Não poder pedir perdão insinua, então, a condição do poeta-Prometeu moderno, impossibilitado de retornar ao passado – a tradição/o mito –, mas sem perspectivas seguras de futuro. Se, por um lado, essa atitude é altiva, por outro, é de lamento, porque a impossibilidade de pedir perdão inviabiliza o retorno à tradição e ao lugar de acolhida com que o Poeta (com maiúscula, também de modo mitificado) contava no passado. Não é difícil, aqui, notar certa proximidade (irônica) possível entre a condição do eu-lírico de “Novíssimo Prometeu” e a do sujeito de “A perda da auréola”, poema em prosa de Baudelaire (1977), em que o poeta ironiza a dupla condição do poeta moderno, por um lado, livre, homem comum, e, por outro, destituído da segurança que a condição aurática (perdida) lhe garantia. Ambos atualizam a imagem do poeta que sobrevive, mas perde os rastros (a sabedoria da tradição mítica), a aura, e isso o isola. Podemos inferir que há, então, nesse poema, uma tentativa de salvar o mito do esquecimento, por tratar-se, talvez, de um bem cujo valor simbólico só é recuperado no momento em que o passado mobilizado é reconhecido, como propunha Benjamin (1985) acerca do conceito de história. No poema, tal reconhecimento se dá na incorporação do mito de Prometeu ao presente, mesmo sob a condição de que Prometeu precisa ser outro: novíssimo. Observando-se, agora, as duas estrofes do poema, percebe-se que ele se desenvolve associando passado (mitológico) e presente (realidade/ mito atualizado). Vê-se que o “eu” só aparece explicitamente uma vez, é disfarçado em elipses (versos 2 a 10) e passa à segunda estrofe fragmentado, impotente para realizar qualquer ato. A ironia se manifesta porque é o “eu-Prometeu” que é aniquilado no “Cáucaso do Pão de Açúcar”, ao lado do Cristo Redentor, comparado ao próprio Cristo – os dois de braços abertos4, presos (acorrentados), “lá em cima”, olhando do alto, enfrentando o suplício para beneficiar os homens. Tomando-se, então, o poema como reescrita do mito, compreendemos o texto muriliano como uma cosmovisão que aproxima o mundo do homem e o homem do homem. Nessa mesma linha, se tomamos a segunda estrofe como reescrita e consequência da primeira, entendemos que ela só podia 4 Nota-se, aqui, a invocação, mesmo que indireta, da tradição judaico-cristã, também mitológica, ao comparar o Cristo Redentor à situação presente do eu-lírico no presente do poema. 76 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 mesmo apresentar dez versos, como a que a antecede, uma vez que ela funciona como espelho da anterior, no que se refere ao número de versos, ou seja, se a primeira apresenta dez versos e, como já mostramos, uma estrutura ativa, logo positiva, a segunda também apresenta dez versos, porém uma estrutura passiva, portanto negativa, o que nos permite propor que cada verso da segunda estrofe neutraliza o verso correspondente da primeira. Dessa maneira, se concretiza a neutralização e a fragmentação formal do “eu”, antes instigado a agir para elevar o homem; e, agora, impotente. Desse modo, Murilo Mendes nos apresenta uma concepção de poesia que acerta o passo com a estética moderna do seu tempo, pois a fragmentação do eu poético foi uma das grandes propostas dos “ismos” do início do século XX. Com a História, o poeta recupera valores, sem opor-se ao espírito novo, e sustenta as razões de fazer arte (MAIMONE, 1994), recolhendo, organizando e ampliando a significação de fragmentos deixados pela humanidade. O poema “Novíssimo Prometeu” está no livro O Visionário (1930-1933), o qual apresenta uma tendência surrealista fortemente marcada. Ligado à primeira fase da obra muriliana, seu caráter onírico já se deixa ver no título. Esse aspecto se acentua por meio da imagística que dá base à sua metáfora agressiva e crítica. Seguindo a linha de Ricoeur (1992), para quem o elemento visual constitui o princípio da metáfora, por ser a base em que se funda a reestruturação semântica dos elementos sobrepostos, podemos afirmar que Murilo Mendes se vale, fundamentalmente, da metáfora semântica como tipo de metaforização que estabelece a imagística do poema “Novíssimo Prometeu”. Esse tipo de metáfora se caracteriza pela aproximação ou sobreposição dos elementos envolvidos, sem que haja estrutura linguística que os ordene rigorosamente (ALVES, 2007). Para o poema em questão, essa imagística parte da tragédia de Ésquilo e estabelece imagens ousadas, atribuindo, desse modo, dramaticidade à lírica, de maneira que o onírico e o alucinatório ocasionam uma reflexão sobre a realidade do/no poema, interpenetrando o real, o mitológico e o espiritual, o que constitui o processo muriliano de dizer e criar o mundo (BARBOSA, 2000). Além disso, o onírico e o alucinatório incitam Prometeu a desafiar o espírito e deixarse mover pelos desejos humanos (“as filhas do mar vestidas de maiô, cantando sambas”), o que, relacionado ao mito, cujo complemento envolve, também, Epimeteu e Pandora, revela a sedução que leva Prometeu, consciente, a sucumbir, tornando-se vítima da imaginação exaltada. Segundo Diel (1991, p. 227), “a exaltação imaginativa (Pandora) [aqui, todo o feminino] é a consequência legal (vontade de Zeus) da intelectualização revoltada”. A partir disso, percebemos que a revolta humana, em sua tentativa de elevar-se a qualquer custo, faz com que o homem desafie seu próprio espírito e atue não pela razão e pelo respeito à espiritualidade, mas pelo instinto. Além disso, a referência ao mar, no poema, leva-nos outra vez ao mito, pois o Oceano é uma das personagens da tragédia de Ésquilo e, sendo irmão de Zeus, o reinado deste também o beneficiou. Na verdade, o titã Prometeu colaborou para a obtenção desse(s) reinado(s), possibilitando que águas, terras e infernos coubessem, respectivamente, a Posêidon, Zeus e Hades. É exatamente por causa dessa cumplicidade que, em relação a Prometeu, “o Oceano será sempre seu amigo fiel” (ÉSQUILO, 1987, p. 120), o que aumenta a importância de sua presença no poema “Novíssimo Prometeu”, ao lado de Prometeu, num gesto solidário, em que o mar compartilha com Prometeu as dores deste, com o qual mantém o vínculo, por meio da contemplação. E o único espaço à contemplação, nesse contexto, é o deslocamento, a prisão, o exílio. Então, a consciência do passado perdido torna ainda mais dolorosa sua experiência, já que o deixa inconsolável, numa relação de incomunicabilidade com o mundo. Seu lugar é uma espécie de exílio conquistado, e, nesse contexto, quem já não tem nenhuma pátria encontra no poético seu lugar de resistência e no 77 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 escrever um modo de elaborar seus padecimentos (ADORNO, 1993). Ao chegar aos três últimos versos, percebe-se que a estilização do mito feita pelo poeta realça seu trabalho de singularização sobre a passagem mitológica. Enquanto nas tragédias perdidas de Ésquilo, contava-se a reconciliação entre Zeus e Prometeu – depois de um longo exercício de poder, Zeus institui o Reino da Justiça e liberta Prometeu –, ao “Novíssimo Prometeu” resta apenas a ânsia de salvar-se, vendo a vida “lá embaixo” transcorrer simples e cotidiana, impedido de redimir-se e de realizar, plenamente, qualquer ação transformadora, uma vez que este Prometeu moderno, novíssimo, não tem a quem pedir perdão. Observe-se, todavia, que esse posicionamento está de acordo com a própria atitude prometéica valorizada no poema, uma vez que o mito de Prometeu conta a história do despertar da consciência humana e, num sentido profundo, conforme Diel (1991), apresenta as consequências da intelectualização que questiona os valores espirituais e sofre, em virtude disso, a tendência ao esquecimento do sentido da vida (e dos sentidos e valores da tradição), a qual, no entanto, transcorre normalmente. Dessa forma, a personagem que participa da intriga adquire, ao mesmo tempo, a condição de ator e espectador, agindo sobre o mundo e sofrendo o que o destino5 lhe impõe. É por essa razão que Prometeu tornou-se símbolo da resistência a um sofrimento intenso e da força que resiste à opressão, pois acredita que é no desejo que está a predição, portanto crê que o que deseja (“quis”, como diz o eu-lírico) acontecerá. No poema, por não abandonar seus propósitos, Prometeu comete a falta e não pode escapar da punição, uma vez que “a falta carrega consigo seu próprio castigo, formando uma unidade” (DIEL, 1991, p. 230), o que se confirma pelo fato de que, no mito grego, é Hefesto, símbolo da inteligência, quem acorrenta Prometeu, que também é símbolo da inteligência. Desse modo, “o intelecto revoltado, por solicitação do espírito, é punido pelo próprio intelecto: carrega a punição em si mesmo, inflige a si mesmo o castigo” (DIEL, 1991, p. 230) e condena-se à pequenez do homem, soberbo, que não pode (e talvez não queira mesmo) pedir perdão. E a permanência dessa condição já se presentifica no decorrer do poema, cuja nasalidade consonântica em seu ritmo provoca um tom lamurioso e triste que perpassa o caráter onírico do texto, acentuando o clima negativo. Observamos, então, a própria relação do homem com o mito, nesse poema. Se, em um momento, Prometeu foi visto como um deus derrotado, aqui, mesmo permanecendo preso ao Cáucaso/Pão de Açúcar, mantém a crença de que os mortais podem buscar seu próprio destino. Se se vê a derrota no castigo, é uma derrota que traz/trouxe novas perspectivas e que põe o homem em relevo (GINZBURG, 1989). Em “Novíssimo Prometeu”, o mito grego, mesmo estilizado, é retomado na íntegra, todos os seus elementos estão presentes, e é essa reutilização do mitológico que o revaloriza, renovando-o, de maneira que o antigo e o novo se refletem um no outro, reconhecem-se um no outro; morte, temporalidade e história são reabilitadas, num processo que funde sentidos e sentidos e torna possível a leitura (GAGNEBIN, 1994). Aliás, o fogo, elemento prometéico, é, em seu aspecto mitológico, profundamente ambivalente, posto que destrói e renova, simultaneamente, o mundo. Percebe-se, pois, que, ao recontar o mito, o poeta assume a posição de rapsodo e reinstaura sua autoridade, valorizando o papel da autoria e buscando o caráter sagrado (perdido) de sua atuação, destruindo e renovando o mito de Prometeu. Assim como se dava com o rapsodo, o “eu”, identificado com a instância autoral, no poema, colocase na condição de quem testemunhou o fato que conta ou o escutou diretamente dos deuses, 5 Uma vez, Zeus; outra vez, as instituições ou as próprias dimensões limitadoras de um “eu” que deseja mais do que a sabedoria. 78 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 alguém que, portanto, é também um previdente (ou ainda “pré-vidente”, aquele que vê antes dos demais); logo, também um Prometeu. É exatamente essa identificação com o Prometeu do mito grego que nos leva à próxima ocorrência do mito prometéico na obra muriliana. Ela se dá no poema “Amor – Vida” (MENDES, 1994, p. 285), do livro A Poesia em Pânico (1936-1937). É necessário, aqui, observar que, ainda que o mito de Prometeu esteja presente em vários momentos da obra de Murilo Mendes, sua retomada nem sempre segue completamente a narrativa grega. Na verdade, é apenas em “Novíssimo Prometeu” que o mito possui força de tema, ou seja, que constitui o todo textual e mantém-se em unidade, ao passo que, nas demais ocorrências, aparece, apenas, como motivo, isto é, como elemento que suscita a significação do original, criando efeitos de sentido para o poema, sem que, contudo, seja fundador do todo textual. Em “Amor – Vida”, o título pode ser relacionado ao caráter prometéico de valorização da vida humana, sinal de amor e de busca de elevação do homem, o que lhe permitiria alcançar a vida plena, e leva-nos a considerar que se instala um paralelismo, segundo o qual “amor” e “vida” são elementos que se interpenetram e complementam-se. E essa é uma acepção que toma o mito, também, como representação de uma verdade profunda da mente (TÁVOLA, 1985), haja vista o fato de que, no texto, a relação “amor-vida” é universalizada não apenas pelo paralelismo mencionado, mas também pela relação que o texto (e, mesmo, a obra poética de Murilo Mendes como um todo) estabelece com outras culturas e Mitologias. Observa-se, nesse poema, em seus três primeiros versos, que o “eu” se identifica com Cristo, e essa relação perpassa quase todo o poema, à exceção dos versos 4, 5 e 9. A influência prometéica, por sua vez, torna-se nítida no quarto e no quinto versos, em que lemos “Eu fui o poeta que distribui os dons/ E que não recebe coisa alguma”, uma vez que esses versos aludem à atitude de Prometeu que, levando o fogo à humanidade, levou-lhe as condições básicas para tornar-se independente. Nota-se, também, que a alusão ao Cristianismo permanece, na distribuição dos dons do Espírito Santo. Isso se justifica porque, na Modernidade, Prometeu é associado ao próprio Cristo, como Deus sobrevivente que se preocupa com o homem. No nono verso, “Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu”, apesar da presença explícita de semas ligados ao Cristianismo, veiculados pela oposição entre “inferno” e “céu”, o fogo nos exige algumas considerações, por ser altamente simbólico no mito prometéico e, aqui, ambíguo, já que pode ser associado às duas Mitologias. Enquanto, num primeiro momento, o verso marca a revolta desse “eu” que nunca foi reconhecido por seus atos em prol da humanidade, numa configuração profunda, é de fundamental importância, uma vez que sua significação se estende desde o humano, em sua alma errante, até o Espírito divino. Dessa forma, o fogo não só celebra a conciliação de contrários, tão valorizada e cultivada por Murilo Mendes, mas representa a força capaz de regenerar periodicamente os seres. Desse modo, sua relação se dá tanto com o divino quanto com o demoníaco, algo importante para a compreensão de Prometeu. Por um lado, ressalta o intuito de tirar o homem de sua cegueira e dar-lhe a capacidade de ver e compreender o mundo. Aliás, em Ésquilo, isso fica explícito, pois Prometeu afirma, soberbamente: “Antes de mim, eles [os homens] viam, mas viam mal; e ouviam, mas não compreendiam” (ÉSQUILO, 1987, p. 123). Por outro lado, sua atitude de desafio aos deuses e seu interesse em tornar o homem, também, um deus refletem uma rebeldia e uma altivez que adquirem um tom profano, porque tiram dos deuses a (suposta) superioridade. Nesse sentido, faz com que o homem não precise mais deles, o que altera a própria cosmogonia, visto que a humanidade passa a ser fruto de si mesma, gestora de seu próprio destino, algo que nem 79 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 mesmo os deuses podiam controlar, conforme já havia observado o Prometeu grego (ÉSQUILO, 1987), segundo o qual o próprio Zeus deveria, posteriormente, procurá-lo para saber sobre seu futuro, porque, de acordo com Prometeu, Zeus é regido, sua vontade é, para ele, a justiça. Na iminência de imprevistos golpes, a cólera indomável de Zeus haveria de se aplacar, e ele haveria de procurar a amizade de Prometeu. De certa forma, essa rebeldia é a forma por meio da qual os seres mais se assemelham aos deuses, uma vez que, desse modo, aceitam participar do jogo de poderes que envolve os seres divinos, em condição de igualdade. Nesse caso, a punição a Prometeu e, por extensão, à humanidade, é resultado do descuido do intelecto para com o espírito, mesmo fator que alimenta a altivez que faz o eu-lírico preferir o inferno ao céu, em “Amor – Vida”. No poema em questão, o amor se manifesta na voz de Prometeu, como um ser vivo. Em atitude prometéica, o eu-lírico assume que não se arrependeu de seus atos, mesmo tendo recebido a punição. Esse é, na verdade, um aspecto recorrente no que se refere às representações de Prometeu nos poemas de Murilo Mendes analisados até agora. Seu altruísmo e sua altivez são elementos que colocam tanto o homem quanto o poeta frente à complexidade da vida, à materialidade das coisas e à sua projeção da experiência vivencial, num “estado de veemência perante a vida, seu absurdo enigma, sua infinitude de tempo e espaço – dimensões irreveladas desse universo-esfinge que se propõe à ‘numerosa comunidade do desespero’, dos lúcidos poetas” (ARAÚJO, 1972, p. 41). De certo modo, a complexidade do “eu” presentificada nesse poema segue a tendência da poética muriliana, diante de um mundo desconjuntado, marcado pelo caos, cuja única possibilidade de regeneração que o poeta vê está na tentativa de resgate de valores absolutos. Não é menor a perplexidade do “eu-Prometeu” em sua relação com o mundo no próximo poema da obra de Murilo Mendes em que aparece a figura prometéica. “Botafogo” (MENDES, 1994, p. 280), texto do livro Os Quatro Elementos (1935), também nos instiga, já pelo título, pois, além de reafirmar sua identidade com a primeira fase do autor, na qual é intensa a presença do Rio de Janeiro, assim como ocorre em “Novíssimo Prometeu”, da mesma fase, esse título também nos leva a uma segmentação interessante. Há, em “Botafogo”, não só uma referência a um bairro da cidade do Rio de Janeiro, mas também o resultado de uma composição por justaposição formada por “bota” (verbo, no sentido de “pôr”) e “fogo”. É significativa a sugestão de “pôr fogo”, logo “dar vida” ou “destruir”, em face de um mundo caótico, que provoca, constantemente, o sofrimento do “eu”. Essa é, inclusive, uma atitude transgressora, à altura do caráter transformador, ao mesmo tempo, sublime e perverso, de Prometeu. No poema “Botafogo”, o mito grego presentifica-se no quarto verso, em que lemos “Um aeroplano bica a pedra amorosamente”, uma estilização que não nos impede de reconhecer o texto mítico. Percebe-se, também, que o poema estabelece uma relação de intratextualidade com “Novíssimo Prometeu”, pela presença do aeroplano como figurativização do abutre, e pelo primeiro e terceiro versos, que retomam tanto o mar (sereias6, peixes, etc.) quanto o cenário do Pão de Açúcar. Essa relação torna-se ainda mais forte, se observarmos que a inversão na ordem da sentença que inicia o poema, isto é, o uso de verbo seguido de sujeito, institui um ritmo que impele o leitor a não parar no ponto-final que indica o fim do período. Com isso, organiza-se, no poema, outro ato de fala, que nos permite fazer mais um corte na leitura dos primeiros versos, suspendendo-a no ponto-final e 6 Além disso, nota-se mais uma invocação mitológica, ainda no primeiro verso: as sereias estão, neste verso, no mesmo paradigma de peixes, algas, etc. 80 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 iniciando-a, novamente, no quarto verso, seguindo, desse modo, a sintaxe textual; ou, então, lendo os quatro primeiros versos aos pares – “Desfilam algas sereias peixes e galeras/ E legiões de homens desde a pré-história// Diante do Pão de Açúcar impassível./ Um aeroplano bica a pedra amorosamente”. Essa leitura se justifica pelo que já dissemos e reforça-se ao notarmos que o segundo verso termina por um complemento de lugar, e os complementos adverbiais, em português, tendem a aparecer no final da sentença. Essa segunda leitura não apenas reafirma a intratextualidade já mencionada, mas também recupera plenamente o espaço presente em “Novíssimo Prometeu”, para, então, inovar. Em “Botafogo”, o aeroplano não bica o fígado de Prometeu, bica a própria pedra, o Cáucaso/Pão de Açúcar, o que torna a situação ainda mais dramática, dando-lhe um tom irônico, já que o faz “amorosamente”. Tal oxímoro ressalta a intensidade da agressão, que tanto está presente no poema quanto é mobilizada pela recuperação do mito grego. É importante observar, pois, a significação que a pedra adquire no contexto do poema “Botafogo” e do mito grego de Prometeu. De acordo com a Mitologia Grega (BULFINCH, 1965), diante das terríveis condições que reinavam na terra, Zeus resolveu destruir seus habitantes e fazer surgir uma nova raça. Conta-se que apenas Deucalião e Pirra encontraram refúgio e sobreviveram. Orientados pelos deuses, os dois deveriam repovoar a terra, jogando os ossos de sua mãe (Terra) ao solo, ou seja, atirariam pedras ao chão. Ao serem atiradas, essas pedras iam adquirindo forma humana e tornavam-se homens (as atiradas por Deucalião) ou mulheres (as atiradas por Pirra). Considerando-se que Deucalião e Pirra descendem de Prometeu, a pedra que é “agredida amorosamente”, no poema, se relaciona tanto a Prometeu, quanto à própria humanidade, cuja filiação prometéica perpassa todos os tempos. Esse aspecto caracteriza a poética plural, multifacetada, diversificada e totalizante de Murilo Mendes. Corresponde, também, ao que o poeta diz em sua “Microdefinição do Autor”, na qual afirma que dentro de si discutem “um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador” (MENDES, 1994, p. 45), isto é, admite ser atraído pelo finito e pelo infinito, pelas dissonâncias da História e pelo giro das imagens, o que vem confirmar nossa interpretação e enriquecer o trabalho do poeta, que se utiliza de diversas Mitologias, empregando, inclusive, arquétipos universais, por vezes aceitos como característicos do próprio ser humano. A propósito do uso das imagens, que o poeta admite valorizar – o que verificamos com uma leitura rápida de seu(s) poema(s) –, sua recorrência também é significativa. Segundo Trintin (1978, p. 45), na poesia muriliana, “o pensamento poético que é gerado pela imaginação criadora [...] não explica nem interpreta a realidade, lança luzes sobre ela, mostrando-a por nexos analógicos, metafóricos ou alegóricos”. De certo modo, faz-se, portanto, pelo fragmento, o que, mais uma vez, situa seu trabalho no contexto da Modernidade. Nesse sentido, a “imaginação”, que é a criação de imagens, está na base de sua linguagem literária. Verifica-se, pois, que a textualização calcada na metáfora semântica contribui para garantir a relação entre o texto mítico e o poema, em sua obra, uma vez que reestrutura, semanticamente, os elementos envolvidos na metaforização, na medida em que renova o signo, sem, no entanto, tirar a integridade dos signos que constituíram a metáfora. Tal procedimento constrói o elo que mantém as semelhanças entre o Prometeu grego e o muriliano. Dessa forma, o poeta usa o poder criador da linguagem para chegar ao mito, ao sagrado, ao cosmológico. “Natureza” (MENDES, 1994, p. 377), poema de Mundo Enigma (1942), no qual o mito de Prometeu aparece de forma indireta, porém constituindo a base figurativa do texto, apresenta uma relação com “Botafogo”, porque também emprega o texto mítico, atualizando81 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 o, metaforicamente, por meio da imagem. Além disso, da mesma forma que, neste texto tínhamos a pedra, naquele temos a montanha – logo, pedra também –, que recupera o contexto mitológico, atribuindo-lhe novos sentidos. Em “Natureza”, temos, novamente, a perplexidade do “eu” ante o “Prometeuhumanidade”, “montanhas lavadas”, o qual, apesar de resistir ao tempo, está petrificado, ou seja, não evoluiu do estado primordial e, por isso mesmo, permanece preso, impotente. Além dessa impotência, o “Prometeu-montanha” está degradado (“montanhas ‘lavadas’”), ou seja, não traz mais consigo o princípio e o objetivo de elevação do ser humano que portava na origem mítica. A “montanha lavada” é uma pedra sem identidade, sem elementos que a singularizem, “insípida”. Sua relação com o mito recupera, basicamente, o sofrimento, uma vez que o bicar do abutre é incessante. Impotente, esse Prometeu está envilecido e, por ser “montanha”, está impossibilitado de elevar-se, pois está preso à terra. Desse modo, o intelecto permanece distante do espírito e, enquanto não se fizer a comunhão “intelecto-espírito”, esse Prometeu se verá aniquilado por seu próprio ato. E o caráter totalizador da poesia muriliana universaliza a angústia prometéica de estar preso ao Cáucaso, iconizando-a na própria natureza e expandindo, dessa forma, a negatividade para todo o espaço representado. Há que ressaltar que a imaginação, ou seja, a criação de imagens que, de certa forma, metaforiza o mito de Prometeu, no poema, vai ao encontro da concepção muriliana de poesia híbrida, que relaciona várias formas de expressão, como poesia, pintura, e escultura, e calcase na expectativa criadora que busca ampliar a consciência humana. Além disso, por meio de metaforizações que fundem elementos sócio-históricos e mitológicos, o poeta manifesta a corrupção humana e seu distanciamento, cada vez maior, dos valores espirituais. Essa percepção do sujeito, representado pelo eu-lírico, em “Natureza”, revela um posicionamento em prol de uma arte criadora e combinatória, cuja função básica é transfigurar a realidade, por meio de uma poesia que leva a metáfora às últimas consequências. Tal recurso lhe permite ressignificar não só a linguagem literária, mas o próprio mito grego, trazido, perfeitamente, para a Modernidade, época em que as angústias prometéicas permanecem, mas são figurativizadas em elementos da própria Modernidade – aviões, guerras, ditadores, etc. Cabe, pois, observar que a figura de Prometeu, nos poemas de Murilo Mendes, sofre, por vezes, um processo de coisificação, aparecendo como pedra, montanha, etc., por meio de objetos, elementos da natureza, metonímia, fragmentos ou releituras do mito, etc. Essa criação em mosaico, com a supressão de passagens intermediárias entre os textos envolvidos na intertextualidade, institui uma atmosfera menos lógica, “e, dentro do pensamento utópico do poeta, ela pode representar a antecipação de um estado em que os conhecimentos científico e poético possam caminhar juntos” (MOURA, 1995, p. 30). Também do livro Mundo Enigma (1942) é o poema “A Noite de Junho” (MENDES, 1994, p. 382-383), no qual aparece, outra vez, o mito de Prometeu. Nesse poema, o mito prometéico é retomado por metonímia, a partir do motivo da orfandade. Nele, o “eu” revela: “Bem cedo me fiz órfão/ Para que todos possam bicar meu coração/ E o coqueiro dê violetas”. Nele, o eu-lírico compara-se a Prometeu, que, após ter roubado o fogo, foi rejeitado por Zeus e, a partir de então, padeceu seu sofrimento diário preso ao Cáucaso. A crítica já associou esses versos à biografia do autor, que perdeu a mãe muito cedo, com apenas um ano de idade. Tais versos representariam, então, sua cosmogonia. No poema, porém, há que observar que, mais que recuperar o mito, o “eu” presentifica-o, de modo a transferir para si o sofrimento de Prometeu e torná-lo atual, colocando-o, mesmo, como meta a ser alcançada por todos, como se explicita pela oração adverbial de finalidade, “Para que todos possam bicar meu pobre coração”. Tomam-se, desse modo, os outros (“todos”) como a humanidade rebelde e 82 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 independente que vira as costas a quem dela necessita (o “eu”), no caso, Prometeu “acorrentado-órfão”, que, em razão de seu estado, se vê impotente e necessita de ajuda, mas nada obtém dos que o rodeiam, além das sofridas bicadas, o que também pode identificar-se com a condição do próprio poeta, situado na Modernidade, a qual já não oferece lugar para o poeta. O pessimismo do eu-lírico, nesse poema, manifesta a visão crítica da poesia de Murilo Mendes diante de questões que afligem a humanidade de seu tempo. Como sabemos, Mundo Enigma (1942) surge numa época cuja tensão tornou-se presente em toda a literatura mundial (as guerras mundiais). Vemos, então, que, no poema “A noite de Junho”, o sofrimento prometéico é intensificado ainda mais, porque não é apenas físico, mas incide na interioridade (tanto física quanto figurada) do ser, no “coração”. Esse sofrimento é tão profundo, marcante e significativo, que resulta no onírico verso “E o coqueiro dê violetas”. Mas é exatamente o estado alucinatório que intensifica a relação entre o órfão Prometeu e o poeta, e o que permite a este estabelecer aproximações e obter associações entre figuras aparentemente impossíveis, como coqueiros que dão violetas, mas que, segundo Friedrich (1978), obtêm uma carga semântica forte e suficientemente lógica dentro do mundo individual criado pelas imagens poéticas do poeta moderno. Nota-se, pois, que a presença do “Prometeu-criador” é fundamental à concepção de poesia em Murilo Mendes e, ao longo de sua obra, é buscada de várias formas, quase que obsessivamente. Tal reiteração suscita o simbolismo mítico na subjetividade de seus poemas, pela retomada tanto da face elevada quanto da face negativa associadas à tradição prometéica. Essa concepção, altamente simbólica e significativa, que, no fundo, perpassa todos os textos até agora vistos, é a base de sustentação do próximo poema em que aparece o tema prometéico na obra muriliana. Poema em prosa, “O Fósforo” (MENDES, 1994, p. 1007), do livro Poliedro (1965-1966), está na seção “Microlição de Coisas”. Sua consciência simbólica, figurativa, aparece já no início do texto, em que se afirma que, ao acender um fósforo, se acende Prometeu, ou seja, que a presença de qualquer luz mobiliza, para o “eu”, toda a tradição prometéica, retomada, positivamente, como elemento purificador, “a liquidação dos falsos deuses”. Luciana Estegagno Picchio (apud Sócio, 2001, p. 20) diz que “Murilo interessa-se por tudo que é novo em arte e literatura. E o novo não é necessariamente o de hoje. [...] Os quatro setores de Poliedro levam [...] o canto de um poeta que [...] procura comunicar [...] temas universais, eternos.” O fósforo aparece, então, como identidade prometéica representativa da crença regeneradora de sua força, como possibilidade de elevação que sobrevive e que, “quando chamado e provocado, polêmico est[á], esclarecendo tudo.” Dessa forma, o poeta identifica sua poesia com o ideal prometéico, já que constrói uma obra cuja “poesia liberdade” é constantemente proposta, o que lhe permite exprimir-se acerca dos acontecimentos contemporâneos que a rodeiam. E, da mesma forma que Prometeu, o “eu-Prometeu” também se revela altivo e rebelde o suficiente para colocar-se contra a ordem negativa vigente, contra o Fascismo, cujas aspas em “‘ordem’ facista”, como aparece no poema “O fósforo”, sugerem sua visão de desordem e incômodo com o sistema autoritário e, mesmo, contra o “ditador do mundo”, já apresentado, anteriormente, em “Novíssimo Prometeu”. Observamos que, em “O fósforo”, a força prometéica é representada de forma vigorosa e decidida, distintamente de sua maneira pessimista de alguns poemas anteriores. A crença do eu-lírico no dia do racional, do entendimento universal, de Prometeu totalizado, recupera o sentido mítico de comunhão entre corpo e espírito, que, seguindo a ética apresentada no poema, dá ao homem a possibilidade de elevar-se e recuperar seu caráter 83 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 divino primordial. E o poeta procura representar essa possibilidade, metonimicamente, por meio do fósforo, que é, segundo o eu-lírico, “o portador mais antigo da tradição divina”, ou seja, a representação contemporânea do gesto de Prometeu. Verificamos que o poeta utiliza-se da estrutura mais simples da língua – determinante e determinado, artigo e substantivo –, “o fósforo”, para, logo em seguida, constituir o sintagma “fósforo fogo” e recuperar o mito. Tal procedimento representa, segundo Sócio (2001), a retomada de fenômenos míticos e abstratos, o que possibilita a reestruturação do universo divino que a Modernidade renega. Estamos diante de uma arte formadora, já na própria estrutura linguística, uma vez que mito, linguagem e arte formam uma unidade reveladora da essencialidade, pois a soma “língua e mito” constitui o todo (CASSIRER, 1972), e a nomeação realiza essa totalidade das origens, que o eu-lírico propõe que seja não apenas recuperada, mas cultivada. Para ele, o que merece atenção é o fogo dos ancestrais, a sabedoria e a experiência dotada dessa sabedoria, não as cinzas, sendo o fogo o que se deve guardar, conforme lemos na citação que faz de Jaurès, no poema “O fósforo”. O que se revela, em “O fósforo”, é a relação entre prosa e poesia como possibilidade renovadora da tradição mitológica, construída essencialmente pela metaforização, exemplo de criação, o que se mostra bastante coerente com o ideal prometéico recuperado por Murilo Mendes. Como estamos verificando, o trabalho dialético com os lados opostos do mito, tanto dentro de cada poema quanto na obra como um todo, na poética de Murilo Mendes, contribui para a busca da palavra poética que sintetiza o passado e o presente e leva ao futuro, razão por que ora presenciamos um “eu” altivo e cheio de esperança, ora perplexo e incapaz de tudo. No último poema de sua obra em que verificamos a presença prometéica, “Hans Magnus Enzensberger” (MENDES, 1994, p. 1535), por exemplo, vemos ressaltado o caráter exacerbado do “eu-Prometeu”, sem perspectivas diante de sua contemporaneidade e de sua condição. O Prometeu “Hans Magnus Enzensberger”, do livro Ipotesi (1968), é retomado em um grau máximo de impotência. Ser “de periferia”, estar à margem do Olimpo, da sociedade, do mundo, sem o fogo da sabedoria ou, mesmo, a caixa de fósforos, aponta para um mundo moderno, representado no poema, em que o sagrado e o maravilhoso não têm lugar. Tal situação cria o pior dos mundos, e o “eu” sente-se deslocado, “de periferia”. Essa deformidade é conotada no próprio Prometeu, “frustrado”, sentindo-se “um eco perdido”. Enzensberber é um dos intelectuais europeus mais importantes e polêmicos do pósguerra e seus escritos estão marcados por certo sentimento de impotência (MOURA, 1995). Tal fato é significativo, visto que revela a capacidade do “eu” e, de certo modo, do próprio poeta, de identificar as mazelas de seu universo, para, desse modo, estabelecer contato com o mito grego, numa fusão de tempos, crenças e História, em que o tema de Prometeu é associado à própria condição dos poetas e da poesia na Modernidade, “sós”, no mundo moderno. Então, invocação do mito se faz potencialmente importante por servir de espécie de fuga ou de consolo, pelo fato de o poeta sentir-se desconfortável e, de certa forma, castigado, preso, no mundo moderno em que vive. O mito aparece, no último poema, diretamente nomeado. Ao relacionar uma história mitológica a uma criação pessoal, o poeta obtém, ainda, uma construção nova, que vai além dos elementos míticos retomados, num esquema “chavefechadura”, o que é imprescindível para que o próprio universo de “Prometeu”, retomado nos poemas de Murilo Mendes, (re)signifique, na medida em que habilita a experiência estética através do fragmento, superpondo tempos, o agora da obra ao agora da compreensão da obra, num espaço que torna visíveis os sujeitos da história e a vivência dos sujeitos na historia. 84 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Prometeu: ecos recuperados O mito de Prometeu, relido e transfigurado por Murilo Mendes, apresentado ao longo de toda a sua trajetória poética, aparece pela primeira vez em “Novíssimo Prometeu” (19301933) e pela última em “Hans Magnus Enzensberger” (1968) e é uma das figuras-chave para se entender toda a proposta poética muriliana. Na particularização que o poeta faz do mito grego de Prometeu, torna-o mais próximo de sua contemporaneidade. Murilo Mendes envolve a narrativa mítica ao seu próprio ato de criação, um desafio à sua poética. A relação que se estabelece com a história grega de Prometeu é forte por seu caráter criador, altivo e desafiador. Dessa forma, a recuperação do mito colabora, ainda, para o posicionamento do poeta em face de seu fazer poético e da maneira como ele o concebe, um ato de criação pautado no trabalho, na ação e na construção que lhe possibilitam associar elementos aparentemente díspares e buscar uma unidade que dê à sua poesia uma forma transfiguradora da realidade. Por meio de uma linguagem construída sobre bases metafóricas, Murilo Mendes trabalha de forma que consiga relacionar a temática aos procedimentos artísticos empregados em sua escrita, avançando e construindo, desse modo, uma poesia moderna que dialoga tanto com as propostas do Modernismo Brasileiro quanto com os Novisimi italianos. Seu posicionamento como escritor nos apresenta sua leitura da Modernidade e, mesmo, sua subjetividade, sem deixar para traz a longa História do homem, de sua transformação e de seus estágios, na constante busca pelo progresso e pela evolução, dentro da tradição ocidental. Recorrendo ao mito de Prometeu, o poeta o atualiza, representando-o ora sob uma ótica otimista, ora sob uma impotência e uma negatividade exacerbadas. Podemos, por fim, considerar esta uma característica importante na representação da trajetória prometéica da poética muriliana: a retomada do mito por meio de imagens e de outras linguagens, como a pintura e a escultura, além da citação, se não explícita, mas clara e objetiva, da passagem mítica. Não podemos nos esquecer, no entanto, de que tudo isso é uma questão de predominância, e não uma perspectiva estanque. Enquanto os primeiros poemas estão mais voltados para o ato criador, os últimos intensificam sua relação com a História e com a condição, ao mesmo tempo, múltipla, por sua liberdade de construir seu próprio destino, à maneira Prometéica do homem, e sem perspectiva, dado o caráter de preocupação e angústia do homem do pós-segunda guerra, o que, mais uma vez, aproxima suas representações de Prometeu das do Prometeu mítico grego. Em seu trabalho poético, Murilo Mendes associa uma multiplicidade de idéias, imagens e sensações que originam uma verdadeira dicção lírica, calcada tanto no elemento novo quanto no cotidiano. Para isso, o poeta identifica ao mito prometéico a realidade dentro da qual se discute o sentido da experiência humana do homem ocidental do século XX, especialmente do entreguerras a meados da segunda metade do século. Essa recorrência ao/do mito de Prometeu, em sua poesia, projeta-se numa circularidade que faz o mito grego representar a própria realidade designada em seus poemas e as relações de poder percebidas ou vivenciadas pelo eu-lírico. THE PROMETHEUS’ MYTH IN THE POETIC TRAJECTORY BY MURILO MENDES ABSTRACT: In this article, we study the recurrence of the Prometheus myth in Murilo Mendes’s poetry. The poet, considering that Mythology, to come around senses of this myth, through references and updates, and 85 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 composes a modern poetry, capable of joining both past and present, imagination and reality, tradition and modernity. KEYWORDS: Murilo Mendes. Prometheus myth. Brazilian poetry. Modernist poetry. REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Minima moralia. Trad. Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1993. ALVES, W. S. A linguagem literária do poeta engenheiro: um estudo de Sevilha Andando, de João Cabral de Melo Neto. Espéculo, Madri, v. 36, 2007. ______. Poesia e mito prometéico em Murilo Mendes. 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Dissertação (mestrado em Letras) – Instituto de Letras e Artes, PUC-RS. 87 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 DRUMMOND: BIOGRAFIA, REALISMO E MODERNIDADE Albertina VICENTINI1 Maria Elizete de Azevedo FAYAD2 RESUMO: O texto discute Carlos Drummond de Andrade como um poeta realista moderno, que sempre manteve sua realidade subjetiva e biográfica e o mundo de seu tempo presente histórico – o século XX – como matéria sua poesia; também, sempre manteve a confidência como a sua forma de encorpar essa matéria. Para efetivar esse amálgama, garantiu a modernidade de um eu-lírico em alteridade com o mundo, praticando um realismo em que tudo se relaciona (inclusive o seu autorretrato) com o processo geral da vida e com o processo geral de uma vida específica, imersa num mundo que não pretende seja somente representado, mas funcional. É por isso que Otto Maria Carpeaux, lúcida e paradoxalmente, pôde dizer de sua poesia que ela é uma poesia subjetiva e objetiva ao mesmo tempo. PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Biografia. Realismo. Carlos Drummond de Andrade. O que hipotetizamos é Carlos Drummond de Andrade como um poeta realista moderno, por mais paradoxal que uma afirmativa dessa possa parecer, quando a crítica, de modo geral, desdenha o realismo como uma posição tradicional de qualquer poeta (no mínimo considerado engajado) a favor do autotelismo da poesia moderna. Dizemos isso porque Drummond é um poeta que sempre manteve, explicitamente, as suas duas ou três cidades (Itabira, Belo Horizonte e Rio de Janeiro) e o mundo de seu tempo presente histórico – o século XX – como matéria sua poesia; mas também sempre manteve a autobiografia, a sua realidade interior e biográfica, como forma de encorpar essa matéria. Além disso, e talvez por isso, Otto Maria Carpeaux (2000, p.xxx) disse dele: “A poesia de Carlos Drummond de Andrade, expressão duma alma muito pessoal, é poesia objetiva”. Drummond é, então, um poeta subjetivo e objetivo ao mesmo tempo. Tomemos o seu primeiro livro Alguma Poesia (1974) como exemplo e já se pode ver que o primeiro poema – “Poema de 7 faces” – corrobora essa assertiva do subjetivo e objetivo. O desenho do poeta é uma mescla desses dois pontos de vista, porque é um poema que se abre com a afirmação do que se é (primeira estrofe), um gauche na vida, a que se seguem três estrofes contemplativas, curiosas da paisagem humana e urbana - as casas, o bonde e o homem -, de forma mais ou menos impessoal, objetiva e informativa. Essas estrofes são seguidas por uma súplica bíblica intertextual (“Meu Deus, por que me abandonaste!”), uma assertiva irônica sobre a poesia (“Raimundo e mundo” seriam uma rima meramente “abstrata”), uma ironia trágica ao estado do mundo (“sem solução”), para compor uma última e sétima face, confidencial, invocando o leitor (“eu não devia te dizer”), mas também irônica e sentimental do romantismo – “essa lua e esse conhaque botam a gente comovido como o diabo”. A estilística do poema é ainda mesclada: pelo tom narrativo tradicional oral (“Quando eu nasci, um anjo torto desses”), pelo discurso figurado/metonímico da literatura (“as casas espiam os homens”), pela metonímia modernista paródica oswaldiana (“pernas brancas pretas amarelas, para 1 PUC-GO – Pontifica Universidade Católica - Mestrado em Letras - Departamento de Letras. Goiânia – GO Brasil. 74180-190. E-mail: [email protected] e/ou [email protected]. 2 UEG-GO – Universidade Estadual de Goiás - Faculdade de Letras Cora Coralina - Goiás, GO, Brasil. 74180-190. [email protected]. 88 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 que tanta perna”), pela paródia azevediana (“essa lua e esse conhaque”), pela fala coloquial objetiva (“o homem é sério, simples e forte”), pela fala coloquial corriqueira (“botam a gente comovido como o diabo”). A face, ou as faces, que são sete, cada qual com sua estrofe, é o retrato do conteúdo e forma, das preferências e estilos com que o poeta seguirá sua trajetória poética: coloquialidade, ironia, seriedade, ironia trágica, ironia sentimental, humana, etc. ‘Face’ ainda é expressão, semblante, rosto (identidade, portanto), fachada, cada um dos aspectos com que o eu-poético, doravante, irá trabalhar como matéria e forma literárias. Ao fim do poema, a comoção lírica sobre a matéria, como disposição e tessitura: “Comoção de minha vida”, como já dissera Mário de Andrade. O segundo poema do livro continua o retrato do poeta. “Infância” é um poema autobiográfico e remete à história do indivíduo criança que, no quarto poema, será já um adulto que pertence a uma coletividade maior, a nação – “também já fui brasileiro como vocês”. Depois, seguem restos de namoro juvenil (“Toada do amor”), observação da vida rotineira do trabalho à sua volta (“Construção”) e “Europa, França e Bahia” – geografia e mundo que nunca foram conhecidos a não ser pelos livros que o eu-poético, num gesto ainda autobiográfico, leu e que estende ao hino que é de todos dessa terra que tem palmeiras (“Canção do Exílio”). Locais das Minas Gerais antigas e da Minas do presente são descritos (Sabará, Belo Horizonte, Caeté, São João Del Rei, Itabira), Nova Friburgo esquecida e a cidade grande aparece, afinal, sob o impacto do seu mundo - “fios nervos faíscas”, poluição, rixas, paisagem, violência, assassinatos, vigarices no coração do poeta comovido, mas assustado/perplexo. Aparecem então as nostalgias da terra (de viúva) e um “Natal” cujas ações e orações são diferentes, e que iniciam o poeta em sua vida na cidade grande, que mantém a hegemonia cultural frente à identidade tímida e provinciana dos poetas hierárquica e humorísticamente classificados em municipais, estaduais e federais (“Política literária”). Daí a pouco, encontra o poeta a sua “Pedra no meio do caminho” (sobre a qual, mais tarde, voltará para dizer que restara: dos seus “passos caprichosos na vida porque o resto se esfumaça, é que havia uma pedra no meio do caminho”. E que pedra!) e segue dos seus domingos rotineiros à vivência da cidade na sua política barata e hipócrita (“Política”), na sua vida burguesa (“Sweethome”), no seu trabalho (“Jornal”), na sua solidão de poeta melancólico frente à futilidade das “Notas Sociais”. Dessa forma, num insight de solução raimundiana, vem-lhe a vontade de se matar – “Foi no Rio .... a cidade sou eu” – quando compara os “pobres jardins ... do sertão”, as “cidadezinhas quaisquer” do interior, a sua família e as suas contradições. E resta-lhe a essa altura ser “sobrevivente” – deslocado e gauche - quando afirma, perplexo: “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade/ há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades simples/ os homens não melhoraram e matam-se como percevejos” (“O Sobrevivente”) e “caçam-se como se fosse uma piada” (“Anedota Búlgara”). Não só ele é uma contradição, um deslocado. O mundo está deslocado, o poeta encontra o tempo presente de “homens partidos”. Novas lembranças do mundo deixado atrás, no tempo e no espaço – retrato na parede -, e o tempo presente reaparece na Revolução de 30. E resta outra vez o poeta com a poesia e explica: “Meu verso é minha consolação”, compensação, cachaça, vício. Verso às vezes irônico, mas “sempre triste”, porque o poeta chora. Ah! Porque é filho de fazendeiro (e coronel de escravos, patriarcal) e porque tem uma “sen-si-bi-li- 89 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 da-de” que o faz vacilar (“no elevador, penso na roça; na roça, no elevador”). “Quem me fez assim foi minha gente e minha terra!”, assume. O livro termina, e o que se tem, de fato, é um retrato do gauche. Um retrato – imagem recorrente na obra de Drummond – que é escrita autobiográfica, mas, ao mesmo tempo, é também objetividade para com a cidade grande, a realidade, o mundo vasto (embora o coração seja mais vasto ainda), o tempo presente e o homem precário (tímido, perplexo) dentro da realidade precária. Vida, tempo e histórias reais. O retrato ou o autorretrato é uma forma de escrita de si – forma autobiográfica - próxima da lírica, que, entre outras características, mantém: a) a de não ser uma livre invenção romanesca; b) a de buscar o conhecimento de si; c) a de ser uma forma que retém uma seleção de elementos, coisas ou acontecimentos em organização mais interdependente que a do diário e menos que a das memórias; d) que tenta captar a essência de uma vida; e) que diz quem se é. Se a sua forma é justaposta - embora coerente e organizada, porque é das partes que se faz o todo – e se efetiva como montagem, essa não só é a forma que Drummond usará ao longo de seus poemas (até Boitempo), mas também é a própria forma da poesia em geral, repartida em pequenos universos a que chamamos poemas. E mais: se ele dispõe retratos de família, o pai, a mãe, o irmão, Itabira, a sua vida inaciana, a sua ida para Belo Horizonte, suas leituras e companheiros, ele coloca, ao lado disso, o mundo que encontrou à sua frente, a forma como ele o viu para assinalar-se quem é: um gauche frente a tudo que, de sua vez, também está deslocado. O retrato drummondiano, assim como o gauche que ele se autoaponta, não são, portanto, só a história de uma vida. Ele é gauche tanto quanto o mundo de certa forma o é. O retrato dele e do mundo são traçados em sua poesia inicial. Mas Alguma poesia é um livro ainda incipiente, embora já mantenha as coordenadas gerais da obra do poeta (o poeta é tautológico de si, persegue por toda a vida poucos temas, não se sabe?). Com Sentimento do Mundo, Rosa do Povo, José, Lição de Coisas (1974) essa tautologia se estende. E, se superficial e vacilante ainda em Alguma Poesia, para frente alcançará uma densidade jamais alcançada na poesia brasileira. O poeta itabirano, gradativamente, vai abrindo seus olhos para o seu tempo histórico (de vida pessoal e de mundo), complexificando a sua intimidade na estruturação da própria vida, na temporalidade medida em tardes, noites, mas também em passado e presente (e futuro), família, gerações, classes, raízes, contradições sociais etc. Mistura a sua biografia na biografia de seu tempo/espaço, longe do mero sensualismo e perto das concepções elaboradas do pensamento que enxerga o mundo e a si no processo da vida, juntando os elos temporais coletivos com os pessoais, com os espaços em que vive e viveu, demonstrando que esse amálgama que ele promove e avalia, e que problematiza a vida (já incluída a sua vida na dos homens de um tempo), é, fundamentalmente, um processo necessário, isto é, longe do arbitrário, da invenção, da fantasia, da crítica partidária, da racionalidade ou da emoção abstratas. As conhecidas assertivas drummondianas dos “ombros que suportam o mundo”, do poeta da “vida presente”, do “vamos de mãos dadas”, do ‘tempo de homens partidos’ ou do retrato de Itabira‘que dói’ na parede são a de um homem que assume a sua vida pessoal autobiografada como história humana de vínculos indissolúveis com o tempo e com o mundo, com os espaços itabiranos e universais, internacionais, conferindo materialidade, concretude e humanismo à sua produção e invenção literárias, através da biografia explícita que nela coloca mesmo que de forma dispersa – do autorretrato às memórias. E nisso vai criando a sua objetividade – com o mundo, o tempo e si-mesmo, como assinalava Carpeaux - e fazendo-se poeta subjetivo, que monta seu autorretrato de gauche, e objetivo (realista) ao mesmo tempo. 90 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Como poeta objetivo, essa mesma problematização de vida (sua e da vida humana), a abordagem do espaço e da história, de sua unidade e interpretação – o local deixando de ser local indeterminado porque o acontecimento deixa de ser irreal -, a sua história sendo a história de um homem concreto, num espaço concreto, real (até pelas tonalidades autobiográficas que aparecem na sua obra), que vive num tempo determinado, num mundo determinado, apontam que o seu material de poesia se aproxima do da prosa narrativa. A poesia, para condensar-se, necessita de certo grau de abstração. Poesia é síntese, não expansão de totalidade de mundo, como se dá na prosa narrativa; da mesma sorte, a modernidade aponta para uma poesia dissonante, hermética, autônoma e não presa aos ditames da História, o que inviabiliza uma poesia realista na modernidade. Como juntar isso, então, em Carlos Drummond? Parece que de duas formas: a substância de seu conteúdo e o eu-lírico que ele promove. A poesia tradicional e seus entendimentos marcaram certa concepção de lírica nas categorias hegelianas da subjetividade, unidade e estado de ânimo do poeta frente a uma situação da realidade (HEGEL, 1976). Tais categorias significavam dizer que, da análise da poesia, deveriam resultar não só a percepção das condições que constituem a subjetividade lírica através das expressões figurativas do poema, mas também a subjetividade (eu poético) do poeta enunciador, numa elucidação permanente (e, pois, idealista) do processo lírico. A poesia de Carlos Drummond, segundo parece, como uma de suas formas, responde contra o idealismo dessa tradição se exercitando numa matéria concreta que acaba por unificar a sua obra sem despojá-la da subjetividade, que aparece de forma nítida, por exemplo, no seu confessionalismo – poesia também subjetiva (claro que se entende ser esta uma dentre as múltiplas respostas que Drummond deu a esse idealismo). Mas não é só isso. Em Drummond encontra-se uma poesia centralizada no acento do gênero prosaico do poeta, prosaico aqui entendido não como tema ou uso da linguagem coloquial - porque a vida prosaica e corriqueira é tema dele e de todos os modernistas de sua época e a coloquialidade uma sua forma expressa –, mas como utilização de categorias da prosa narrativa, categorias da contigüidade e não da equivalência, especialmente aquelas do romance, que garantem caracteres (retratos), ações, tempo, espaço (independentemente se o poema é narrativo ou não), dentro, no caso drummondiano, de um realismo, em que tudo se relaciona (inclusive a própria biografia) com o processo geral da vida. Com a nota de que se relaciona com o processo geral de uma vida específica imersa num mundo que não pretende seja representado, mas também real (porque é parte de um biografia), preso ao tempo “presente” – o século XX. Hipotetizamos, então, que a substância do conteúdo3 que mantém a obra drummondiana é densa o suficiente para o romance e não só para a poesia, embora, no entanto, seja por essa condensada, ritmada e metaforizada enquanto forma desse mesmo conteúdo. Quando Mikhail Bakhtin (1992) discute o romance biográfico e o romance realista de formação, ele alude a certas características importantes do realismo e da matéria do romance. Diz que o enredo do romance biográfico não se baseia em desvios (provas) em relação ao curso típico e normal de uma vida, mas em momentos típicos e fundamentais de qualquer vida humana: o nascimento, a infância, os anos de estudos (...) O tempo biográfico é o processo geral da vida participando da vida do biografado e lhe é circunscrito, não reproduzível e irreversível. (BAKHTIN, 1992, p.232) 3 Estamos nos utilizando aqui da distinção hjelmsleviana de forma e substância do conteúdo e da expressão. 91 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Chamamos a atenção para o fato de que não é do sujeito participando do mundo que se fala aqui, mas do inverso, isto é, “do processo geral da vida participando da vida” do sujeito. Isso significa que a situação, o nascimento, os acontecimentos contemporâneos determinam consubstancialmente a vida, modelam o seu destino (ainda que este crie ou produza sob ela), ou seja, o mundo não é cenário do homem, mas um elemento funcional junto à sua vida que, dessa forma, reveste-o de traços quer positivos, quer negativos que o heroificam, mas também o antiheroificam (tornam-no, no caso drummondiano, um gauche, por exemplo). Segundo isso, pergunta-se: o que, dentre essas afirmações, embora do romance, não se pode aplicar à obra drummondiana quanto à substância de seu conteúdo? Ademais, assim como faz o romance, Drummond oferece ao seu leitor uma imagem total do mundo e da sua vida (seu tempo e seu retrato pessoal) pelo ângulo de uma época considerada em sua integridade. Os acontecimentos representados em sua poesia substituem, em certo sentido, a vida de uma época, ou seja, fornecem um substituto ao todo da realidade, o que também é matéria de romance e não de poesia. Elliot (1922), em seu artigo sobre Hamlet, pressupôs o poema como um correlato objetivo do intelecto, sentimentos, imaginação e emoções do poeta, uma manifestação da necessidade do suporte do real na poesia, ou seja, o poema significa o sujeito indiretamente, através das formas analógicas dos conteúdos que cria, analogia aqui entendida no sentido lato de correlação e não necessariamente de semelhança.. O poeta, nesse sentido, é as formas e a substância do conteúdo que cria. Através das metáforas, das comparações, das repetições, dos paralelismos etc. com que ele aparece em seus poemas (de forma bem multiplicada, portanto, e por isso mesmo distante de uma subjetividade idêntica a si), nós podemos figurar o estado afetivo que ele evoca e perceber a sua própria figuração. Nesse mesmo sentido, e no sentido da contigüidade, diz Jenny (2003): Não somente o enunciado lírico propõe as figurações de uma experiência, mas nelas organiza a sucessão. Da mesma forma que se pode dizer que o gênero narrativo é estruturado por uma sucessão de ações orientadas logicamente e cronologicamente para um fim, também o gênero poético se constrói como uma sucessão de figurações muitas vezes analógicas. [...] Através dela, o poema nos propõe muitas vezes uma transformação. Faz-nos passar de uma figuração de partida a uma figuração final, através de certo número de etapas intermediárias.4 (Grifos do autor) Ao que podemos acrescentar que ler um poema é também acolher as transformações do sujeito ou dos sujeitos (que são múltiplos) que o escreve. E quando o poeta, como Drummond, alude à sua ‘biografia’ e ao seu ‘tempo presente’ em seus poemas, essa figuração final caminha para a sua obra em seu conjunto, e não só para alguns poemas, ou seja, caminha para a objetividade, para o realismo. De outro lado, no entanto, não estaria Drummond, nesse sentido, buscando aquela tradição hegeliana que endossa uma subjetividade única do poeta frente ao mundo, a que aplica seus significados e donde plasma seus estados d’alma? 4 Non seulement l’énoncé lyrique propose des figurations d’une experience, mais il en organize la succession. De même qu’on peut dire que le genre narratif est structuré par une succession d’actions orientées logiquement et chronologiquement vers une fin, le genre poétique se construit comme une succession de figurations, souvent analogiques […] À travers elle, le poème nous propose souvent une transformation. Il nous fait passer d’une figuration de départ à une figuration finale à travers un certain nombre d’étapes intermédiaires. 92 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Cremos que não, porque, para além dessas formas da expressão (do significante) e do conteúdo, há o mundo propriamente referenciado no poema que não se confunde com essas e esse é um dos sentidos que Alfonso Berardinelli (2007) discute em seu artigo “As muitas vozes da poesia moderna” (em alusão ao ensaio de T.S.Elliot sobre “As três vozes da poesia” (1972), escrito em 1953), contrapondo-se à redução de Hugo Friedrich da lírica moderna à forma ( ou estrutura) da dissonância. Embora aceitando a estrutura dissonante como uma das características da lírica contemporânea (o que está correto), para Berardinelli (2007) a teorização de Hugo Friedrich no livro A estrutura da lírica moderna (1978) seria uma “contribuição indireta à teoria da “poésie pure, elaborada na esteira do mais prestigioso sucessor de Mallarmé no século XX, isto é, Paul Valéry” (p.19), e seria, portanto, incompleta e não corresponderia às diferentes vozes da poesia do século. [...] a lírica de que nos fala Friedrich em seu livro basta a si mesma. Não necessita mais do mundo, evita qualquer vínculo com a realidade. Nega-lhe até a existência. Fecha-se numa dimensão absolutamente autônoma. Fantasia ditatorial, transcendência vazia, puro movimento da linguagem, ausência de fins comunicativos, fuga da realidade empírica, fundação de um espaço-tempo sem relações causais e dissociado da psicologia e da história [...] essa poesia se apresenta em seu conjunto como uma criação sem sujeito, uma obra sem autores. (p.21) A incompletude do estudo de Friedrich, segundo o autor, deve-se a alguns ‘esquecimentos’ O primeiro deles se dirige especialmente a Whitmann e a parte da obra de Baudelaire e Rimbaud em algumas de suas peculiaridades que não só a dissonância. Detendo-se mais nas particularidades de Whitmann, ele chama a atenção para o fato de que nesse poeta não se encontram “abstração ou cerebralismo, nem culto da premeditação intelectualista nem impulso da linguagem em direção a uma transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto, do imediato, da experiência comum” (p.23), atitudes que corroborariam a estrutura da lírica moderna de Friedrich. Antes, Whitmann seria o oposto de tudo isso, inclusive responsável por outra estrutura moderna: a enumeração caótica, estudada por Leo Spitzer e por este denominada de literatura como ‘bazar’. Um segundo esquecimento de Friedrich, segundo Berardinelli, seria o da relação palavra e coisa, sujeito e objeto, ser e linguagem, que poetas como Valéry ou os surrealistas pleitearam como “sublimação hiper-subjetiva da escritura”, estranha à lógica e aos significados estabelecidos pela comunicação ordinária, e que relaciona poesia e língua comum, de um lado, e poesia e referência ao real, de outro. Nem todos os poetas defendem esse argumento. Pensando como Elliot, Berardinelli o cita em sua lei geral contra o estranhamento da língua poética em relação à língua prosaica: “é a lei segundo a qual a poesia não pode afastar-se muito da língua cotidiana que nós mesmos falamos ou ouvimos falar” (ELLIOT, apud BERARDINELLI, 2007, p.27), ou seja, uma das vozes da poesia contemporânea contraria a diferença entre linguagem poética e linguagem prosaica. Para a relação palavra-sentido-real ou referência, o mesmo Elliot complementa: Antes de tudo, gostaria de lembrar que a música da poesia não existe independentemente do significado; do contrário, poderia produzir-se uma poesia de grande beleza musical, mas ausente de sentido, como jamais me ocorreu de ler. Nas aparentes exceções há apenas uma diferença de gradação; há poesias em que nos deixamos levar pela música, aceitando o sentido como dado; outras, em que nos fixamos sobretudo no sentido, enquanto, sem que o percebamos, somos comovidos pela música. (ELLIOT, apud BERARDINELLI, 2007, p.27) 93 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Um terceiro esquecimento ligado à matéria do poema seria o das vozes poéticas que se atraem pela prosa, cujos exemplos podem ser a criação de personagens dramáticos, os poemasreportagem de G. Benn, ou os poemas-conversa de Elliot, que são em certo sentido uma crítica formal da estetização da poesia autossuficiente, da fuga da realidade, e a possibilidade de mistura de gêneros literários. Segundo Berardinelli, poderíamos ler na poesia moderna um retorno à realidade: a irrupção do não-formalizado ou do não-formalizável no interior de uma forma poética que se esforça cada vez mais para organizar e dominar esteticamente seus materiais. Os primeiros poemas de Eliot e de Benn demonstram uma capacidade de percepção realista muitas vezes não menor à da prosa contemporânea, de Joyce a Döblin e Celine. (Idem. p.28) E convoca Erich Heller (que defende radicalmente a exposição de crenças através da poesia) para a relação entre o problema dos valores que não se dissociam do problema da realidade: Seja lá o que faça, a poesia não pode senão confirmar a existência de um mundo significativo, mesmo quando denuncie a falta de sentido deste. Poesia significa ordem, mesmo quando lance a denúncia de caos; significa esperança, ainda que com um grito de desespero. A poesia diz respeito à real estatura das coisas; portanto, toda grande poesia é realista.(HELLER, apud BERARDINELLI, 2007, p.31) A poesia moderna, portanto, pode ser realista, isto é, deter-se no mundo, falar a partir dele. E uma das formas poéticas de realizar esse realismo se centraliza no ‘sujeito lírico’ (ou eus-líricos) presentes no poema. Para esse sentido, Michel Collot (2009) trabalha o sujeito lírico da modernidade como um alienado, submisso ao tempo (seu próprio tempo), ao mundo e à linguagem, ou seja, um sujeito lírico fora de si. Para ele, esse lirismo (que vai de encontro ao subjetivismo idealista de Hegel) não é a exceção, mas a regra do homem moderno. Como a tríade tempo-mundo-linguagem que o submete não lhe pertence, a submissão torna-o estranho a si, “por dentro por fora”. Dada essa tripla pertença a uma carne que propriamente não o pertence, o sujeito encarnado não saberá se pertencer completamente. A cega tarefa do corpo e do horizonte o impede de acessar uma plena e inteira consciência de si mesmo. Sua abertura ao mundo e ao outro o torna um estranho “por dentro – por fora”. Ele não pode, então, reaver sua verdade mais íntima pelas vias da reflexão e da introspecção. É fora de si que ele a pode encontrar. Talvez, a e-moção lírica apenas prolongue ou reapresente esse movimento que constantemente porta e deporta o sujeito em direção a seu fora, através do qual ele pode ek-sistir e se exprimir. É apenas saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não como uma identidade, mas como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade, conforme foi bem mostrado por Ricoeur, não para se contemplar em um narcisismo do eu, mas para realizar-se como um outro. (2009, s/p.) ‘Fora de si’ quer dizer, sobretudo, nas palavras de Collot, “ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, a partir daí, ser projetado em direção ao exterior. Esses dois sentidos da expressão me [lhe] parecem constitutivos da emoção lírica: o transporte e a deportação que porta o sujeito ao encontro do que transborda de si e para fora de si.” (COLLOT, 2009, s/p.) A maneira que o sujeito tem de constituir (e constituir-se como sujeito) o poema reside na operação “pela qual o sujeito, ao invés de impor ao mundo seus valores e significados preestabelecidos, aceita “transferir-se às coisas” para descobrir nelas “um milhão de qualidades 94 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 inéditas, das quais ele poderá se apropriar se chegar a formulá-las. O sujeito se perde nelas apenas para se recriar”.(Idem.) Essas idéias de Collot defendem uma poesia materialista, que não sobrevive sem o mundo e não é dicotômica à poesia subjetiva, desde que ela somente pode ser esta se transferida daquele. Anteriormente, aproveitando-nos de Bakhtin, dizíamos que o mundo, para a substância do conteúdo de Carlos Drummond de Andrade, não era cenário do homem, mas um elemento funcional junto à vida que, dessa forma, revestia-se de traços quer positivos, quer negativos que o heroificavam ou anti-heroificavam. E o que é a transferência do mundo à obra do poeta lírico (no caso drummondiano, a transferência do tempo do século XX e da própria biografia dentro dele e que constrói seu realismo) de que fala Collot senão essa funcionalidade? “Abdicando todo significado e representação pré-estabelecida, aceitando estar fora de si na abstração lírica do gesto de escrever, projetando-se na matéria das palavras e das coisas, o poeta se revela a si mesmo e aos outros”, diz Collot. (Idem.) O projetar-se na “matéria das palavras e das coisas” revela, de um lado, a autonomia do significante, que, no entanto, não se debruça sobre si mesmo. Ao contrário, revela-se ao poeta, que o percebe e percebe nele o mundo para o qual se transferiu. Não só o mundo, mas também a palavra e o poeta são um outro. A dimensão é, então, transitiva e “transpessoal”, como diz Collot, porque o poeta não é ele e sua autobiografia, mas ele, o mundo e a linguagem em alteridade: uma característica (realista) do sujeito moderno. O interessante dessa perspectiva, com essa transposição do sujeito-lírico para fora de si, é a desierarquização que sofre a relação sujeito-lírico, mundo e linguagem para a poesia (a nenhum dos três é dado o centro do processo poético) e a possibilidade de, somente objetivando-se, se poder ser subjetivo e singular. O que significa encontrar o homem na sua universalidade, mas através da particularidade que aponta a singularidade, uma reunião que Carlos Drummond, poeta singular, ao ser realista, ou usar das suas particularidades de vida pessoal e de tempo coletivo, constrói para alçar o universalismo moderno no sentido mais humanístico dessa palavra. DRUMONND:BIOGRAPHY, REALISM AND MODERNITY ABSTRACT: This article discusses Carlos Drummond de Andrade as a modern and realistic poet, who always maintained his subjective, biographical reality and the world of his historical present time – the XX century – like a subject of his poetry. He always carried on the confidence as way of reaching this matter. In order to keep this amalgam, the poet guaranteed a moderna lyric for the construction of the persona in alterity with the world. He used to practise a realism in which everything is brought into relation - his self-portrait included - with a general life process and a specific one. It is intended that this world be not only represented but also functional. That is why Otto Maria Carpeaux wisely said that Drummond´s poetry is subjective and objective at the same time. KEYSWORDS: Poetry. Biography. Realism. Carlos Drummond de Andrade. REFERÊNCIAS ANDRADE, C. D. de. Obras Completas. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1974. BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. SP: Martins Fontes, 1992. CARPEAUX, O. M. Introdução: In: Carlos Drummond de Andrade.Obras Completas. Rio de Janeiro: José Aguilar Ed., 2000. 95 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 COLLOT, M. O sujeito lírico fora de si. (Trad. Alberto Pucheu). Disponível em <http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/terceiramargemonline/numero11/xiv.html>. Acesso em 15.10.2009 ELLIOT, T. S. A essência da poesia. Rio de Janeiro: Artenova, 1972. _______. Hamlet and his problems. In: <http://articles.poetryx.com/50/>. Acesso em 30.10.2009. FAYAD, M. E. Poesia e realismo em Rio do Sono de José Godoy Garcia. Goiânia, PUC-Go, 2009. (Dissertação de Mestrado) FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. 2ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991. HEGEL, J. Estética. Poesia. Lisboa: Guimarães Editores, s/d. JENNY, L. Méthods et problémes de la poesie. (Aula) Université de Genève, 2003. Disponível em: <www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/elyrique/>. Acesso em 15.10.2009. 96 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 OS “SETE POEMAS PORTUGUESES”, DE FERREIRA GULLAR: “PORTUGUESES”? Odil José de OLIVEIRA FILHO1 RESUMO: As reflexões aqui propostas tomam, como ponto de partida, o qualificativo “portugueses” dado por Ferreira Gullar ao conjunto de sete poemas que abrem a sua obra A luta corporal, publicada em 1954. O objetivo é chegar a uma leitura contextualizada desse conjunto de poemas, a partir do exame dos possíveis sentidos do qualificativo e, daí, a uma visão de um princípio básico da poética de Ferreira Gullar e de seu lugar na Literatura Brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Ferreira Gullar. A luta corporal (1954). Sete poemas portugueses. Leitura e interpretação. Caminhos não há mas os pés na grama os inventarão. (GULLAR, 2008, p.6) Comecemos por notar que se pode, numa primeira impressão, ser levado a pensar num significado algo provocativo nesse “portugueses” atribuído aos poemas inaugurais de A luta corporal, ainda mais quando se leva em conta o claro propósito de acerto de contas que a obra representava, naquele momento, para o poeta em relação a um modo de compor praticado, meio ingenuamente, em seu trabalho poético inicial, e que precisava ser superado por um escritor já então consciente das prerrogativas da Modernidade. Assim, à primeira vista, os “Sete poemas portugueses” poderiam parecer evocar o mesmo posicionamento crítico assumido pela primeira geração modernista ante as influências portuguesas, tanto na língua, quanto na literatura praticada no Brasil, ainda que, neste caso, empreendido de dentro da própria tradição, por meio de um conjunto de poemas vazados sob formas e metros tradicionais. Sendo inevitável notar-se, na leitura dos poemas, que, na verdade, na retomada de metros fixos como o heptassílabo e o decassílabo e da forma do soneto, o que se opera é uma verdadeira desmontagem de suas estruturas formais, pode-se ser levado a entender que o qualificativo de “portugueses”, dado por Gullar a esses poemas, acaba, em última hipótese, por sugerir uma visão das letras portuguesas como vinculadas ao tradicional, ao ultrapassado, ao não-moderno, como se fosse preciso, ainda em meados do século XX, portanto, superá-las e deixá-las definitivamente para trás. Ocorre que, saído em 1954, o livro (produzido entre os anos de 50 a 53) colhe em cheio as discussões que se faziam, na época, em torno dos rumos a serem seguidos pela poesia brasileira, a partir, principalmente, dos questionamentos feitos às primeiras gerações modernistas pelos chamados “neomodernos” (Tristão de Athayde) da geração de 45. Ainda que não se buscasse, como diz Luiz Carlos da Silva Lessa, regredir ante as conquistas idiomáticas de 22, pretendia-se, isto sim, “um cerceamento dos exageros evidentes da fase inicial” (1976, p.42). Apontava-se mesmo que o modernismo havia levado a uma “decadência da língua literária, no que se refere à beleza expressional”, mesmo que se reconhecesse o 1 UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Departamento de Literatura. Assis – São Paulo – Brasil. CEP: 19.800-000 – e-mail: [email protected]. 97 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 papel renovador de sua “reação sem tréguas contra a gramatiquice” e a “aceitação, ostensiva e corajosa, de uma série de peculiaridades da sintaxe brasileira” (LESSA, 1976, p.141). Tristão de Athayde, por exemplo, saudava os novos poetas de 45 pela “nova preocupação de disciplina filológica” (1956, p.156). Álvaro Lins, por sua vez, dirá mesmo que o que era revolucionário em 1922 era o informe, o desordenado, o caótico, o à-vontade de expressão, a despreocupação quanto ao estilo, e o que deveria ser revolucionário naquele momento seria “o senso da forma, a construção artística, o aperfeiçoamento da arte de escrever, a preocupação do estilo” (1947, p.108-9). No fundo, esse regramento filológico e formalista procurava conter uma tendência modernista vista como de dissolução da língua em favor de uma “língua brasileira” – o que soterrava de vez o projeto de Mário de Andrade de uma sistematização do português falado no Brasil, com sua própria gramática, as suas próprias normas, distintas necessariamente da língua praticada em Portugal. Os postulados dessa verdadeira provocação marioandradiana foram tentados, como se sabe, em sua inacabada obra A gramatiquinha da fala brasileira, publicada, graças aos esforços de Edith Pimentel Pinto, em 1990. Entre as ideias centrais que sustentam sua proposta, Mário diz, por exemplo, o seguinte: Nesse monstrengo político [o Brasil] existe uma língua oficial emprestada e que não representa nem a psicologia, nem as tendências, nem a índole, nem as necessidades nem os ideais do simulacro de povo que se chama o povo brasileiro. Essa língua oficial se chama língua portuguesa e vem feitinha de cinco em cinco anos dos legisladores lusitanos. [...] Escrevem-a [sic] também os escritores, casta hedionda de falsários pedantes que malempregam os dotes de lirismo e de inteligência que possuem. (apud PINTO, 1990, p.321) Abstraídos os arroubos nacionalistas dessas ideias, pode-se depreender também que elas se sustentam, na verdade, numa reivindicação essencial da postura lírica moderna, na medida em que o projeto formal que as impulsiona visa a aproximar a poesia da fala, da vida cotidiana, sem a intermediação falseadora de normas que distanciassem o poeta do mundo. É por isso que, em seu artigo de 1946, Álvaro Lins alertava que a necessidade de “restabelecimento da forma artística e bela”, reivindicada pela geração de 45, não poderia significar simplesmente uma retomada das “fórmulas esgotadas e petrificadas da forma parnasiana”, desmontada pela geração de 22, mas “uma evolução dentro do gosto e do senso estético do nosso tempo” (1947, p.108-9). Tais princípios foram, de fato, assimilados ou intuídos por poucos poetas do tempo. Tratava-se, em síntese, de não abrir mão do legado dos primeiros modernistas, centrado principalmente na luta por aproximar a poesia da vida, sem esquematismos e sem fórmulas prontas, mas também, ao mesmo tempo, tendo de deixar para trás certos recursos expressivos genuinamente modernistas, como o chamado poema-piada (que se amaneirara na mão dos epígonos), e, mesmo, a recorrência aos idealismos da brasilidade. Na ambiência histórica que se abria, após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a internacionalização da cultura, a procura agora era pela construção de uma lírica que aprofundasse as lições da Modernidade – o que não impedia, por exemplo, que os poetas, por necessidade expressiva, voltassem a recorrer ao verso metrificado, como nota Alfredo Bosi, “alternando-o com formas livres herdadas à renovação de 22” (2000, p.104). Entre os poetas que assim procederam, Bosi cita os casos de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e Murilo Mendes – que são, não sem razão, alguns dos responsáveis pela grande poesia moderna praticada, no Brasil, na segunda metade do século passado. 98 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Se assim é, o epíteto “portugueses” atribuído por Gullar aos seus poemas, nesse momento de transição, de rescaldo dessas discussões, pode não ter a ver com uma posição antilusitana pura e simples. Herdeiro da geração de 22, mas também da de 45, a questão só pode ser decidida, de fato, se for possível perceber como ele se colocava diante dessa tradição em que se inseria. Como se sabe, antes de A luta corporal, Gullar lançara, em 1949, ainda em São Luís do Maranhão, um primeiro livro de poemas, tirado às suas próprias expensas e intitulado Um pouco acima do chão – obra que só recentemente permitiu que fosse reeditada e admitida entre as suas obras completas. O motivo dessa renegação de seu livro de juventude deve-se, possivelmente, ao fato de Gullar, em diversos depoimentos sobre o assunto, considerá-lo como excessivamente ingênuo e imaturo, fruto, que era, mais das leituras que fazia naquele tempo – vivendo, como diz Antônio Carlos Secchin, “as condições culturais adversas da província” (2008, p.XIX) – quase tão-somente dos poetas parnasianos brasileiros de final do século XIX. Numa entrevista à revista Poesia Sempre, em 1998, diz Gullar, ironizando, que nessa época, em virtude de sua formação parnasiana, aprendera a versejar tão bem, que passara mesmo a falar em decassílabos... Diz também que, por essa altura, desconhecia completamente os poetas modernos brasileiros, cujos primeiros textos só foram chegar ao Maranhão em finais da década de 40. Confessa, ainda, que, por essa época, estudava e praticava fielmente as lições do Tratado de versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos. Para que se perceba o teor das lições que porventura o poeta apreendia, no Tratado encontravam-se recomendações de Bilac e Guimarães Passos, ao poeta neófito, como, por exemplo, as de que não se preocupasse com a poesia em si e que procurasse, de preferência, surpreender “o segredo do verso” e “assenhorar-se da sua mecânica”. E, mais à frente, aconselhavam: Deve o que começa ensaiar-se no verso mais acessível, que é a redondilha, não procurando combinar ideias, exprimir pensamentos, mas reunindo palavras desconexas, porém que se ajustem, e deem o verso sonoro e cantante, com todos os requisitos exigidos pelos mestres. (...) Senhor uma vez da métrica de um verso, tente o discípulo os outros, sem ordem, mas buscando conhecer e aperfeiçoar-se em todos, até o alexandrino. (BILAC e PASSOS, 1944, p. 73-4) Olhado de hoje, Um pouco acima do chão, em boa parte, confirma o severo julgamento de Gullar sobre o seu livro de juventude, pois o que se encontra dominantemente ali, de fato, é um abnegado discípulo dos mandamentos parnasianos de Bilac. No entanto, nos poemas do terço final do livro, pode-se perceber uma surpreendente mudança de tom e o abandono das formas fixas e do verso metrificado, em favor do verso livre e do tratamento de temas concretos do cotidiano do poeta. É o caso do poema “Viagem diurna à roda do meu quarto”, que traz uma descrição emocionada do quarto do poeta, cujo tema, ao que tudo indica, é tomado à tradição romântica de Byron – e, inevitavelmente, faz com que nos lembremos das “Idéias Íntimas”, de Álvares de Azevedo. Há também tom romântico no poema dedicado à rua da infância (“Rua da Infância”); no entanto, têm outra dicção o poema “A draga velha”, em que se materializa, na imagem da velha draga holandesa abandonada no cais, a própria degradação da paisagem, e o longo poema final, intitulado “Adeus Bizuza”, que lembra Bandeira e já, portanto, uma provável ressonância dos efeitos que a leitura dos poetas modernos brasileiros causavam no então jovem poeta: 99 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O que eu te disse, Bizuza! O meu sonho mais sonhado, Meu desejo mais profundo, já vai ser realizado! - mandei fazer um navio para dar volta ao mundo! Partindo de São Luís, irei direitinho à França (França pura de Flaubert, França imensa de Balzac) Quero visitar a pátria que da outra vez será minha. (GULLAR, 2008, p.527) Tais efeitos, ao que tudo indica, parecem ter sido de profunda iluminação criadora, nos poucos anos que transcorrem entre Um pouco acima do chão e A luta corporal, o qual já traz um artista completamente sintonizado com a poesia moderna praticada no Brasil e, principalmente, com os impasses que ela enfrentava. É surpreendente notar-se a radical reviravolta dada por Gullar entre um livro e outro, abandonando a retórica do parnasiano deslocado da província, para assumir incisivamente a linguagem do poeta moderno, vivendo agora no centro cultural do País – o Rio de Janeiro. Nesse sentido, como vê Alcides Villaça, em A luta corporal, pode-se encontrar um verdadeiro painel das possibilidades históricas abertas à poesia dos anos 50: há aqui algo do difuso neosimbolismo [sic] que não seria estranho a alguns dos poetas da chamada “geração de 45”; logo ali há marcas de um coloquial expandido nas trilhas do modernismo; mais além, o discurso catártico da livre associação faz pensar nos surrealistas; ainda adiante, a sintaxe e a morfologia perdem toda a estabilidade e se estraçalham em signos e simulacros de signos, numa espécie de apostasia da linguagem. (VILLAÇA, 1998, p.89) Pode-se até aventar que essas tendências irradiavam-se para a poesia de Gullar a partir da assimilação de poetas como Manuel Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto – tidos pelo próprio Gullar como mentores de sua incorporação dos modos de compor da poesia da modernidade. Ora, não por coincidência, esses eram os poetas que, na década de 1950, como entende Santiago Kovadloff, “se empenhavam em reabrir e ramificar os caminhos traçados pelos grandes renovadores dos anos 20 e 30” (1979, p.209-10), apontando como o grande predecessor de Ferreira Gullar nesse trabalho a figura de João Cabral de Melo Neto. Como mostra Benedito Nunes (1971, p.33), a poesia de João Cabral erigira-se a partir de uma síntese composta pela assimilação do tom prosaico de Drummond, do relevo plástico das imagens de Joaquim Cardoso e do visionarismo de Murilo Mendes, fazendo-os convergir para o objetivo comum de neutralização do lirismo puro, do lirismo de elevação espiritual idealizante, herdado do Simbolismo, e que se tornara puro maneirismo. Para Nunes, João Cabral seguirá essa tendência fazendo-a crescer “em regime de crise interna”, chegando, numa luta consigo mesma, a problematizar, na “poética negativa” de Psicologia da composição (1947), o próprio alcance da lírica moderna. Talvez seja por ressoar nesse contexto, abrindo, além disso, uma fresta de inovação e radicalização ante o esforço de renovação que se ensaiava, que A luta corporal foi recebido 100 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 com entusiasmo e certo espanto pela opinião crítica do tempo, que reconheceu, possivelmente, na luta expressional do jovem poeta, para atingir uma linguagem própria e descontaminada de maneiras e preceitos, a consecução de um ponto luminoso da poesia moderna brasileira após os grandes poetas de 22. É nessa obra e nesse contexto que devem, pois, ser pensados os sentidos dos “Sete poemas portugueses”, que abrem o livro, com o explícito propósito, como já se disse, de um ajuste de contas com a poesia rimada e metrificada praticada anteriormente e, implicitamente, com toda a maneira ou postura, dada de antemão, na produção da poesia. Numerados de 3 a 9 - o que o próprio Gullar explica pela supressão, por falta de qualidade, diz ele, dos dois poemas iniciais -, os “Sete poemas portugueses” são compostos por dois poemas iniciais que combinam redondilhas maiores e menores (o 3 e o 4); dois sonetos decassílabos (o 5 e o 6); um soneto abortado do último verso (o 7); uma composição em quintilhas decassílabas (o 8); e uma estranha construção final composta de dois quartetos, que segmentam, espacialmente, os terceiros versos no interior de ambas as estrofes (o 9). Quanto à ausência dos dois poemas iniciais, apesar da explicação de Gullar, pode-se entendêla como uma espécie de intervalo significativo entre o trabalho poético anterior, ainda preso à tradição parnasiana, e o do atualidade, de onde emergiria, no primeiro poema do conjunto (mas marcado pelo número 3), a voz poética que se procura e à sua canção: 3 Vagueio campos noturnos Muros soturnos paredes de solidão sufocam minha canção (GULLAR, 2008, p.5) O conjunto dos sete poemas é, de fato, atravessado por esse clima de incerteza e vaguidão, em que a voz poética empreende uma procura da poesia que tem de ser decifrada a cada passo do caminho, para que, enfim, o próprio poeta possa revelar-se (a si mesmo e ao mundo) por meio da poesia que consiga criar – como está dito no poema de número 4: 4 Nada vos oferto além destas mortes de que me alimento Caminhos não há mas os pés na grama os inventarão (GULLAR, 2008, p.5-6) Após a ocorrência dos redondilhos maiores e menores nos dois primeiros poemas, sucedem-se três sonetos em decassílabos (os de número 5, 6 e 7), em meio aos quais o poeta se debate para reter, inutilmente, o rio do discurso poético que lhe escorre por entre as mãos: 5 Prometi-me possuí-la muito embora ela me redimisse ou me cegasse. Busquei-a na catástrofe da aurora e na fonte e no muro onde sua face, 101 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 entre a alucinação e a paz sonora da água e do musgo, solitária nasce. Mas sempre que me acerco vai-se embora como se me temesse ou me odiasse. Assim persigo-a, lúcido e demente. Se por detrás da tarde transparente seus pés vislumbro, logo nos desvãos das nuvens fogem, luminosos e ágeis! Vocabulário e corpo – deuses frágeis – eu colho a ausência que me queima as mãos. (GULLAR, 2008, p.6) A notar, para o que aqui nos interessa, é a tensão existente entre o rígido travejamento raciocinante do decassílabo clássico (conjugando versos heróicos e sáficos) e o caráter aberto e evanescente das imagens, vazadas num andamento prolongado de versos e estrofes, por intermédio de enjambements que acabam por subverter totalmente a estrutura lógica inerente ao soneto tradicional. Essa subversão, que parece ter sido a base do projeto estético dos “Sete poemas portugueses”, encontra seu ponto alto no último deles, o de número 7, cujo tema, cantado ao andamento dos hemistíquios tradicionais do decassílabo clássico, enfrenta, contraditoriamente, o risco máximo (e sempre presente) enfrentado por todo poeta - ainda mais, como é o caso, quando está a empreender a busca do seu próprio canto: o silêncio, a solidão: 7 Neste leito de ausência em que me esqueço desperta o longo rio solitário: se ele cresce de mim, se dele cresço, mal sabe o coração desnecessário. O rio corre e vai sem ter começo nem foz, e o curso, que é constante e vário. Vai nas águas levando, involuntário, luas onde me acordo e me adormeço. Sobre o leito de sal, sou luz e gesso: duplo espelho – o precário no precário. Flore um lado de mim? No outro, ao contrário, de silêncio em silêncio me apodreço. Entre o que é rosa e lodo necessário, passa um rio sem foz e sem começo. (GULLAR, 2008, p.7) O poema de número 8 é composto de quatro quintilhas de decassílabos heroicos – invariância rítmica que já é manifestação formal do tema veiculado: o aprisionamento da voz poética entre os “muros de cal” do poema, como está dito na primeira estrofe: 102 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 8 Quatro muros de cal, pedra soturna, e o silêncio a medrar musgos, na interna face, põe ramos sobre a flor diuturna: tudo que é canto morre à flor externa, que lá dentro só há frieza e furna. (GULLAR, 2008, p.8) Por fim, o último poema é só um fragmento, composto de apenas duas estrofes, que poderiam ser estruturadas com dois quartetos de dez sílabas, não fosse a divisão dos terceiros e quartos versos de ambas as estrofes em dois versos distintos, de seis e quatro sílabas respectivamente, transformando-as, assim, em duas estrofes de cinco versos. Dessa forma, o próprio caráter visual do texto já denuncia a fragmentação – na verdade, sintoma da frustração assumida e sentida pelo poeta, por continuar a fluir obscuro pelo rio do discurso, por não conseguir atingir a beleza que na rosa, espontânea e naturalmente, cintila: 9 Fluo obscuro de mim, enquanto a rosa se entrega ao mundo, estrela tranqüila. Nada sei do que sofro. O mesmo tempo que em mim é frustração nela cintila. E este por sobre nós espelho, lento, bebe ódio em mim; nela, o vermelho. Morro o que sou nos dois. O mesmo vento que impele a rosa é que nos move, espelho! (GULLAR, 2008, p.8) Em linhas gerais, os “Sete poemas portugueses” tematizam essa desalentada frustração por não se conseguir alcançar a poesia necessária, viva, que o poeta anseia por atingir. Apesar de vaga, a aspiração ganha tão forte efeito sugestivo que faz, estranhamente, com que os metros e formas “portugueses”, tradicionais, utilizados trabalhem para realçá-la, e não para a aprisionar. Ou seja, toca-se o indizível, usando-se as formas tradicionais do dizer. Em verdade, a tarefa empreendida por Gullar em A luta corporal de renegação dos modelos poéticos prontos, partindo dos “Sete Poemas portugueses”, chega ao ponto máximo nos últimos poemas do livro, completando um percurso que acaba, afinal, por revelar a coerência interna da obra como um todo, a da luta corporal com a expressão artística, podendo-se entender, portanto, que o sentido do qualificativo dado aos poemas que abrem o livro tem muito mais a ver com a ideia de todo o esquema poético dado, pronto e sistematizado, que não tenha nascido da necessidade sempre viva e presente de dizer a vida – necessidade essa que, na sua ânsia de captar o mundo, pode até mesmo subverter a língua e o verso, ainda que seja para transformá-los em uivo - como ocorre em “Roçzeiral”: 103 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Ai sôflu i luz ta pompa inova’ orbita FUROR tô bicho ‘scuro fogo Rra UILÁN UILÁN, Lavram z’olhares, flamas! CRESPITAM GÂNGLES RÔ MASUAF Rhra Rozal, ROÇAL l’ancêndio MinoMina TAURUS MINÔS rhes chãns sur ma parole – ÇAR (GULLAR, 2008, p.50) Nesse sentido, diz o próprio Gullar, na entrevista à revista Poesia sempre, a respeito de A luta corporal, o seguinte: [...] O livro começa com um ajuste de contas relativamente à poesia rimada e metrificada, como é o caso do soneto. A maneira de construir o poema também já é diferente. Eu quis dizer o seguinte: como nunca mais vou utilizar esse instrumental, tirarei ouro de ouro, colocarei no papel o melhor que posso fazer com isso. E fiz então “Poemas portugueses”, embora os dois primeiros fossem irremediavelmente velhos. No que toca aos outros, creio que consegui realizar meu propósito. E dei a coisa por finda. Mas aí aconteceu algo estranho: depois que deixei de lado aquilo tudo, fiquei sem linguagem e mergulhei numa solidão total. (http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar.) Esse procedimento, de lutar com os materiais expressivos para fazê-los render até o limite - que é, afinal, a luta de todo o artista moderno -, principiado em A luta corporal e tendo como marco inicial esses “Sete poemas portugueses”, parece ter se tornado o fundamento básico do projeto poético de Ferreira Gullar, que, de livro para livro, durante todos esses anos de produção literária, tem reassumido, sempre, essa tarefa de uma luta, sem tréguas, pela expressão sempre nova da vida. Como, aliás, está dito em um de seus últimos textos, publicado em Muitas vozes e intitulado “Não-coisa”: O que o poeta quer dizer no discurso não cabe e se o diz é pra saber o que ainda não sabe. (GULLAR, 2008, p.376) 104 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “SETE POEMAS PORTUGUESES”, BY FERREIRA GULLAR: "PORTUGUESES"? ABSTRACT: The reflections intented in this study have, as a point of departure, the qualifying adjective "portuguese" given by Ferreira Gullar to the group of seven poems that iniciate his work A luta corporal, published in 1954. The aim is to achieve a contextualized reading of this group of poems, by the examination of the eventual meanings of the mentioned qualifying adjective and, from that, to a vision of an elementary ingredient of the poetics of Ferreira Gullar and his place in the Brasilian Literature. KEYWORDS: Ferreira Gullar. A luta corporal (1954). Sete Poemas Portugueses. Reading and comprehension. REFERÊNCIAS ATHAYDE, T. Quadro sintético da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Agir, 1956. BILAC, O.; PASSOS, G. Tratado de versificação. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1944. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GULLAR, F. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. __________. Poesia Sempre 9. Disponível em: <http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar>. Acesso em: 01 abril 2010. KOVADLOFF, S. Ferreira Gullar: o fogo solidário. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.9, p.205-22, 1979. LESSA, L. C. da S. O modernismo brasileiro e a língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Grifo, 1976. LINS, Á. Jornal de crítica. 5ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947. NUNES, B. João Cabral de Melo Neto. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1971. PINTO, E. P. 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Guavira no11 POESIA DE CONFLITO NOS ANOS 70: PAULO LEMINSKI E OS SINAIS EXCÊNTRICOS DE SEU NEORROMANTISMO Robson Coelho TINOCO2 RESUMO: Paulo Leminski respondeu de modo singular, sobretudo na década de 70, aos desafios cada vez mais candentes que a cultura e a nova ordem sociopolítica apresentavam. Desafios lançados, por exemplo, pela Guerra Fria, lutas raciais, Terceiro Mundo, sociedade de informação. Nesse contexto nacional-mundial, Leminski renova a linguagem poética como centro de suas preocupações éticas e projetos estéticos. Sob tal composto ético-estético, neo-romanticamente ressaltam divergências sensíveis, frente ao cânone literário nacional, quanto a entender as fronteiras entre poesia e não-poesia, arte funcional e arte engajada. Ressalta, ainda, a bem-humorada e irônica denúncia dos “novos tempos” e do que o poeta propunha como a procura de uma comunicação mais integrada, criativa e provocativa com as pessoas e com a arte. PALAVRAS-CHAVE: Excentrismo. Poesia. Sociedade entre a dívida externa e a dúvida interna meu coração comercial alterna Paulo Leminski, Caprichos e relaxos As margens de um (des) rumo biográfico Paulo Leminski Filho3 nasceu em Curitiba, Paraná, em 24 de agosto de 1944. Em 1956 ingressa como oblato no Mosteiro de São Bento, São Paulo, onde permaneceu até os 14 anos. Participa, em 1963, do I Congresso Brasileiro de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte e, a partir de 1964, começa a publicar trabalhos, alguns literários, no jornal Última Hora (sucursal de Curitiba). Publica seus primeiros poemas na revista “Invenção”, estabelecendo, dessa maneira, o início de um diálogo bastante fértil, e nem sempre tranqüilo, com a vanguarda concreta paulistana. Em 1966, classifica-se em 1º lugar no II Concurso Popular de Poesia Moderna, promovido pelo Jornal O Estado do Paraná; em 1968 participa do I Concurso Nacional de Contos do Paraná com “Descartes com Lentes”. Meio índio, negro e polonês, judoca faixa-preta e zen, candidato a monge e um dos ídolos da vanguarda pop, sua vida representa, para pessoas como Waly Salomão e Haroldo de Campos, a transição mais perfeita entre as décadas de 70 e 90, período de uma exditadura-pósmoderna-extrapop; o início e o fim do século estão selados nele. Inicia, a partir dos primeiros anos da década de 70, seu aprendizado de violão e publica poemas, ao longo desta década, geralmente em revistas alternativas como a “Qorpo 2 UnB - Universidade de Brasília - Instituto de Letras - Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Brasília, Distrito Federal – Brasil - CEP 70910-900. E-mail: [email protected]. 3 O conjunto de informações bibliográficas foi compilado de Paulo Leminski. (vários autores) 2. ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 1994 e dos ensaios de Kamiquase: http://users.sti.com.br/efres/Leminski/biblio.htm, http://sites.uol.com.br/fredbar e http://users.sti.com.br/elsonf/ensaios13.htm. 106 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Estranho” (depois “Corpo Estranho”), a “Muda” ou a “Código”. Lança, em 1975, em edição particular, sua prosa experimental “Catatau”, assumindo uma linha de romance pós-joyceano. “Catatau” pode ser considerada, cronologicamente, a obra em prosa mais ousada, sobretudo no aspecto formal, produzida no Brasil depois do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa e das “Galáxias”, de Haroldo de Campos. Em 1979 publica poemas com fotos de Jaques Pires, no álbum “Quarenta Clic’s de Curitiba” e, em 1980, também em edição particular, os livros de poemas “Não fosse isso e era menos/Não fosse tanto e era quase”, “Tripas” e “Polonaise”. Essas obras, aliás como de hábito em sua carreira de escritor, não obtiveram muito sucesso de crítica, além de uma recepção, pelo “grande” público, nada além de razoável. Essa fase dita “marginal” do poeta, conhecido basicamente pela vanguarda artística do país e por leitores mais especializados4, começa a dar lugar a uma poesia mais editorial, mas não menos inovadora. Assim, em 1983, tem início a associação do poeta com a editora Brasiliense, o que resulta em uma produção poética, sem dúvidas, mais comercial. Nota-se, também, o declarado sucesso de recepção daquele “grande” público, que se amplia, pela facilidade de conhecimento e aquisição dos livros de Leminski. É a partir desse período que se promove a publicação de “Matsuó Bashô, a lágrima do peixe” e “Cruz e Souza, o negro branco”, ambas obras biográficas. Passa a escrever esporadicamente para a revista “Veja”, assumindo o papel, que nunca lhe caiu bem, de um tipo de rebelde pacífico. Com tal intenção, na década de 70 até meados da de 80, mesmo que representando produções sem maior importância para sua vida de escritor, até pela qualidade e intenção, Leminski escreveu, ainda, textos de novela, “Minha classe gosta, logo, é uma bosta”; texto para cinema, “Roteiro para documentário sobre o Museu David Carneiro”, ou “Drama da fazenda Fortaleza”; ainda, texto para telenovela, como “Outra paixão é um perigo”. O problema poético de Leminski é que, poeta, jamais conseguiu, nem quis, ser artista pacificador. A trajetória de Leminski, com início efetivo na década de 70, foi sintomaticamente dupla: avessa aos chamados “poetas sociais”, que produzem poesia marcada por uma poética engajada (nesse sentido, alguns arcádicos, e Castro Alves a Ferreira Gullar), ou os de função pública poético-burocrática; composta por uma variedade grande de atividades. Em 1983, publicou “Caprichos e relaxos”, livro de poesia que retratava o modus vivendi da década anterior, considerado um dos melhores daquele ano; poesia de espécie underground, com os livros “Não fosse isso e Era Menos” e “Polonaises”; poemas comuns em versinhos bem compostos em “Distraídos Venceremos”. Chamando de romance de “reficção”, em que se misturam doses de suspense, terror e sexo, escreve “Agora é que são elas”; romance experimentalista, “Catatau”, publicado em 1975, em Curitiba, por uma pequena editora, que, no entender de Leminski, é a história de uma espera. O personagem (Cartésius) espera um explicador (Artychewsky). Espera redundância. O leitor espera uma explicação. Espera redundância, tal como o personagem (isomorfismo leitor/personagem). Mas só recebe informações novas. Tal como Cartéssio (CAMPOS, 1991). Escreveu ainda, com alta presença de lirismo, poemas-mensagens para ser “aplicados” no muro, no pôster, na música, na camiseta: coração 4 Observe-se, entretanto, que estudiosos como Alfredo Bosi e Massaud Moisés não citam o poeta em suas obras sobre Literatura Brasileira, nas partes referentes ao modernismo. 107 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 PRA CIMA escrito em baixo FRÁGIL5 veloz como a própria voz elo e duelo entre eu e ela virando e revirando nós6 Com 45 anos, na sua sempre-eterna Curitiba (de onde, na verdade, nunca se afastou sentimentalmente), Leminski falece em 1989, de cirrose hepática. Publica-se nesse ano “A lua foi ao cinema”, história infantil, pela Pau-Brasil, a 2ª edição de “Catatau”, pela Sulinas, RS, “Memória de vida” (homenagem póstuma), pela Fundação Cultural de Curitiba e “Paulo Leminski” (reunião de entrevistas e resenhas), pela Scientia et Labor, de Curitiba; é inaugurado em 24 de agosto, em sua homenagem, o espaço cultural Pedreira Paulo Leminski; em 1990, “Vida”, reunião das biografias de Trótski, Cruz e Souza, Matsuó Bashô e Jesus e “La vie en close”, poemas inéditos, ambos pela Brasiliense; em 1991, “Uma carta uma brasa através / Cartas a Régis Bonvicino”, volume composto por corres-pondências trocadas entre os dois escritores, desde a década de 70, pela Iluminura. O poeta e uma poesia para (re) ocupar espaços novos Leminski abriu as picadas da linguagem para os novos poetas dos anos 70, fossem eles ditos marginais ou construtivos. Traçou, nessa abertura, um arco de ligação entre a poesia concreta e as novas sensibilidades não especializadas, optando por uma linguagem de rendimento comunicativo mais imediato, quer arriscava tudo. Leyla Perrone-Moisés o considera, como todo artista, um tipo de formalista que, todavia, nunca foi poeta de gabinete. Para ela, suas vivências de beatnik caboclo e sua filosofia de malandro zen são aprimoradas no uso preciso da linguagem “até chegar à cifra certa” (apud GÓES e MARINS, 2001). Cumpria bem, sem se prender a nenhuma escola ou fórmula literária, o papelpersonagem de poeta incomodado em um país tricampeão de futebol (“a taça do mundo é nossa, ó brasileiro, não há quem possa...”), saindo de um período ditatorial, ainda às margens da comunidade global em que outros países se nutriam nos novos ventos já tecnológicos e da política pós-guerra. Nas décadas de 50 e 60, acontecera a súbita ascensão do Japão e da Itália como potências exportadoras de manufaturas. Da mesma forma que com as telecomunicações e informática atualmente, estava também em curso uma evolução nos transportes, ao lado da introdução dos plásticos e materiais sintéticos. O Brasil iniciava seus passos globalizadores, na arte e na economia por ex., nesse contexto em que todos os países avançados, e não apenas Japão e Itália, se expandiam aceleradamente. Foram os chamados “anos gloriosos”, até 1973, quando se crescia a 5% ou mais. 5 Caprichos e relaxos, p. 67. Ver Nota 1. 6 La vie en close, p. 54. 108 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Era nessa situação mundial, bipolar e já neoliberal, que os governantes brasileiros procuravam se espelhar, na verdade, sem um direcionamento autônomo. Sem espelhos que usar, samurai e malandro, Leminski sempre ganha a aposta do poema, ou por golpe de lâmina – sua estrutura é cortante –, ou por jogo de cintura – seu conteúdo propõe a idéia antes da afirmação (GÓES e MARINS, op. cit.). Crítico do momento e malandramente, Leminski, reaplicando a “dialética da malandragem”7, busca com suas multiproduções um novo caminho de reconhecimento do país em que vivia. Reconhecimento desde os anos 70 que, frente ao modelo da agora ensaiada “dialética da marginalidade” pressupõe uma nova forma de relacionamento entre as classes sociais. Nesse contexto, não se trata mais de conciliar diferenças, mas de evidenciá-las, recusando-se a assumir “a promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente universo dos excluídos” (ROCHA, 2004). Entenda-se que aqueles anos de arbítrio, que partilhamos com os outros povos da América Latina, não podiam ser considerados como tempos de isolamento cultural. Pelo contrário, coincidem com a explosão de maio de 68 na França, com vários desdobramentos, que atingiria em cheio as formas de conduta individual. Atingiria, ainda, os modos de expressão entre as gerações dos países que sofreram o seu impacto, por exemplo, “no Brasil, a abertura cultural precedeu a abertura política e lhe sobreviveu.” (BOSI, 1996, p. 436) Leminksi possuía uma visão de linha evolutiva da literatura. Considerava que, assim como a técnica ou a ciência que evoluem, o texto, o fazer literário, enfim, o ato de escrever, também deveriam evoluir. Afirma que não se interessava mais pela idéia de literatura como algo pré-estabelecido em si mesmo ou como processo de continuidade literária. Para o poeta era importante que suas “coisas” não tivessem nenhum padrão dessa continuidade com “isso que se chama literatura” (LEMINSKI [vários autores], 1994, p. 18). Colocava-se, e a sua produção, dentro de uma perspectiva histórica, profundamente marcada pela composição joyceana de mundo e de narrativa. Assim, apocalíptico, composto de material pronto para a combustão intelectual e de essência poética romântico-oriental, Leminski foi um marco. Poeta, filósofo, humorista, professor, judoca, artista gráfico, fazedor de quadrinhos, compositor e tradutor de inglês, grego, hebraico, tupi, japonês, latim e russo, foi desses personagens imperdíveis pelos bares de Curitiba e perdidos nos trilhos de uma literatura mercantil, marcada pela luta do bem contra o mal. O conto e a poesia, avalia o poeta, terminaram por representar, no Brasil, a mesma coisa que o Volkswagen representou, pode-se dizer, em termos viários. Esse carro colocou a classe média sobre rodas e aqueles textos deram a todos a ilusão da possibilidade de uma carreira literária que, para Leminski, seria uma coisa bem mais complicada. De espírito profundamente irrequieto e hiperativo, Leminski era um tipo de zenlírico imerso na contemporaneidade das vanguardas multimídias necessitadas de auto-afirmação e reconhecimento. Nesse tipo, transitava impassível por um irregular feixe expressivo de códigos, signos e linguagens, comunicando-se com variadas faixas etárias e processos de informação de massa ou de grupos específicos. Quanto ao sentido de “auto-afirmação e reconhecimento” citado, Haroldo de Campos, em entrevista exclusiva para Ricardo Araújo (1999, p. 79), afirma, sobre a poesia contemporânea (em especial sua experiência com a poesia computadorizada) que 7 Em “Dialética da Malandragem – caracterização das ‘Memórias de um sargento de milícias’”, Antonio Candido apresenta profunda interpretação da vida social brasileira, com base histórica num comércio duplo de interesses estabelecidos entre a ordem e a desordem, entre o permitido e o proibido. 109 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 esse tipo de experiência já estava contido nas premissas históricas da Poesia Concreta. Quando esta foi lançada e elaborada, por volta da década de 50, pretendia-se sair do círculo fechado do beletrismo acadêmico e ligar a poesia às outras manifestações, com o que se fazia, em termos de vanguarda, nas artes plásticas e na música, como também colocar a poesia em sintonia com que havia de mais novo e fundamental na pesquisa científica. Leminski exercitava uma sintaxe que, ao tempo em que era televisiva, descontínua, focada em núcleos de imagens rápidas e bombásticas, era também composta por uma lógica subjetiva e romântica: cantava a pessoa da-modernidade falando da pessoa de-sempre – ser sentimental, por condição existencial. Com facilidade impressionante imprimia ao texto uma circunstância de projeção de slide e, reduzindo-o a algumas palavras, explodia por ele toda a força lírica da emoção de ser apaixonado pela vida, pela criação, pelo ser humano. Cultuando os clássicos, “as obras-mãe em que as outras de diluem”, como dizia, desbravava o desconhecido da função poética não como marginal, mas como intelectual excêntrico, guinado a essa condição pelo seu romantismo pós-lírico (1): A morte, a gente comemora. No meu peito, cai a Roma, que caída embora, nenhum bárbaro doma. ................8 não creio que fosse maior a dor de dante que a dor que este dente de agora em diante sente9 dois namorados olhando o céu chegam à mesma conclusão mesmo que a terra não passe da próxima guerra mesmo assim valeu ...............10 8 La vie en close, p. 78. 9 Caprichos e relaxos, p. 28. 10 Envie meu dicionário, “valeu”, p. 147. 110 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Ao comentar a poesia de Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda avalia que o mundo visível pode fornecer as imagens de que é feita sua poesia, mas essas imagens combinam-se, justapõem-se de modo sempre imprevisto, talvez até mesmo pelo próprio poeta (MELO, 1998). Nesse sentido, considere-se que Leminski legou aquilo que poderíamos chamar de espontaneísmo orientado, atingido através do completo domínio dos meios poéticos e de total predisposição ao poema. É, assim, naquele estranho poder de absorver o visto – processo subjetivo integrando espírito e visão – que vive a contribuição indispensável de Leminski, que não se privou de declarar algumas diretrizes de sua técnica. Segundo Melo (op. cit.), como força ou não de sua expressão, mas ao contrário dos louvores de alguns poetas pelo dilema do “papel em branco”, Leminski propõe a revelação do poema por dentro, e de soltá-lo sem hesitação. O poeta reafirma sua predisposição ao poema, como reação planejada ao que ele vê e sente. Pode se ver(ler)sentir em Leminski, como crítica poética, que, “(...) a palavra escrita é a verdadeira alma do homem que pensa em ocidentês. Ao contrário do que pensa McLuhan, ela vai mais e mais competir com a televisão” (PIGNATARI, 1995, p. 16). É nessa leitura que o poeta reafirma, também, a necessidade do exercício poético incansável: ................. bashô disse: não siga as pegadas dos antigos. procure o que eles procuraram. eles procuraram a poesia, vamos procurá-la. à nossa moda. ................. precisamos tirar a poesia da vertigem/miragem do novo, novo, mais novo, mais, mais... ................. como canta roberto carlos: de que vale tudo isso, se você não está aqui ? ................. desestatizar o poema: desestatizar os veículos (livros, revistas, jornais) e ambientes (sala, galeria, show) 11 O poema leminskiano, ao surgir na linha do parnasiano chic, é para ridicularizar suas possibilidades, engajando-se naquilo que o mesmo Sérgio Buarque de Holanda chamou, em Bandeira, de “rebelião contra as formas convertidas em fórmulas”. Assim, uma dada situação estrutura e compõe a forma que é, na maioria das vezes, realizada por um conjunto de frases bem arquitetadas, ambíguas, opacas, “vestidas” em metros comuns, com uma sonoridade profundamente presente. O poema vai, dessa maneira, rompendo suas frases que aparentemente são rasas, inequívocas, claras. Acrescente-se a essa composição o claro-difuso sentido neo-romântico de um lirismo marginal às imposições das vanguardas, sobretudo as da década de 70. Tal sentido ampliava a 11 Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, trechos da carta 42, pp. 109-117. 111 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 análise do ensaísta, para quem a força poética de Leminski centra-se na necessidade de concentração e reflexão no poético de diversos assuntos, como história, religião etc., como forma de enriquecimento do “material”, da “massa de assuntos”: o esplêndido corcel vê a sombra do chicote e corre, esplendores do cavalo em labirintos de crina .................. e o coração no peito feito um pião dormindo!12 Esterilidades* .................. Tarântula das atrizes O deslize Strip-tease da medula Pras felinas Ophélias Messalinas em férias. .................13 de repente vendi meus filhos a uma família americana .................. só assim eles podem voltar e pegar um sol em copacabana14 Oswald de Andrade, a certa altura do Manifesto Antropófago, anuncia que “... nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós” (TELES, 1991, p. 355). Também oswaldiano, mas ampliando-o, Leminski defendia uma lógica-em-duplicidade: ao mesmo tempo modernista, portanto “alógica”, e individual, “ilógica” pela cartilha do verso / poema bem 12 La vie en close, p. 55. 13 Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, trecho da carta 69, p. 161. *Jules Laforgue, trad. de Paulo Leminksi. 14 Caprichos e relaxos, p. 84. 112 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 composto. Quanto aos primeiros modernistas, considere-se que Leminski não valorizava muito a obra de Mário de Andrade, encontrando nele o que chamou de “algumas das coisas chatas da cultura brasileira: ufanismo, ‘macumba para turistas’ e, principalmente, sentimentalismo barato” (MELO, 1998). Segue, avaliando que gostava do Macunaíma (romance escrito em 7 dias), mas nem tanto. Se insistissem em sua filiação modernista, defenderia Cartesius (já citado como um dos personagens de seu “romance-idéia”, produzido em 7 anos, Catatau) como o herói de caráter demais, cuja “muiraquitã” seria a Europa, o passado, o teorema de Pitágoras. Ainda sobre sua relação com o modernismo e a literatura brasileira que o influenciou, em depoimento de 1978 – como sempre, marcado por boa dose de humor irônico –, Leminski afirma: “Drummond, só uma dose simples para saber que barato que dá. Cabral, por dever de ofício. Oswald, já muito tarde para alterar rumos”. É interessante perceber, que esse “muito tarde” foi dito por um poeta de, apenas, 34 anos. Quanto à questão “Leminski e vanguardas”, deve-se retomar a noção de vanguarda como “desvio da norma”, na reveladora expressão de Viktor Chklósvki. Este sentido de “desvio” pode ser aplicado tanto para vanguardas estéticas quanto para vanguardas que, além do componente estético, são formadas por outros políticos, religiosos etc. Tais vanguardas possuem, em sua composição básica, um forte elemento desviante, que promove desde suas manifestações públicas até mesmo sua condição existencial de grupo(s) social(is). Esse desvio trata, antes, de uma postura frente à norma social vigente (das décadas de 70 e 80), à crítica em relação a um determinado cânone estético. Assim, determinada vanguarda estética representaria um desvio em relação a um “mundo artístico-intelectual”, tal como o definiu Howard S. Becker. No caso de uma vanguarda como a contracultural, com seu ápice na década de 70 – composta por elementos estéticos, industriais, políticos, econômicos, ecológicos, psicofísicos etc. –, o sentido de desvio extrapola o nível de produção de obras, ou pensamentos, e se instaura no dia-a-dia do indivíduo. A contracultura, nesse sentido, pode ser definida como manifestação esteticopsicossocial (RISÉRIO, 1990) em que, e isso é evidente, vida e obra surgem como elementos, por vezes conflitantes, mas inseparáveis, em qualquer situação. No caso de Leminski, aqueles dois desvios agem concomitantemente, estruturando-se um no outro e sua trajetória literária, ou multiartística, é resultado do intercâmbio desse desvio duplo, às vezes até ambíguo. Nesse período se instaura uma espécie de onda neo-romântica, anunciando e oferecendo às pessoas novidades como as drogas alucinógenas, o pacifismo, a ecologia, o orientalismo, o movimento feminista, o pansexualismo etc., como manifestações de um desvio assumido contra o status quo mundial. Leminski, integrado a tudo isto, entrega-se às influências concreto-líricas de Donald Keene e Haroldo de Campos, em que o método ideogrâmico é peça-chave dessa estética vanguardista que se assume como nova fé pelos conceitos e linhas estéticas: SIGNO SIGO NA NOITE O DESTINO SER AQUILO QUE A SOMBRA 113 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 QUIS PARA NOIVO 15 simples como um sim é simples mente a coisa mais simples que ex iste assim ples mente de mim me dispo des (aus) ente16 Como poucos, sobretudo a partir da segunda metade da década de 70, Leminski trabalhou exaustivamente a dicotomia e/ou dialética instaurada entre o sentido do legível e ilegível, de limite e dissolução, erudito e popular, história e filosofia, prosa e poesia, informação e comunicação. Seus poemas haikaicos mesclam uma massa coesa de ficção e erudição conseguindo, como espécie poética de anotações caóticas – previamente arquitetadas –, transformar informação rápida em mensagem profunda. O poeta, com a sofreguidão dos operadores das Bolsas de Valores e a serenidade zen dos monges, explorava os limites das fronteiras fluidamente estabelecidas. Nesses limites as ultrapassava, como quem aposta no desconhecido como a mais ousada forma de revelar, em si e por si, o lirismo entranhado em cada ser humano. Leminski via no dia-a-dia da vida a possibilidade real de (re) acender o romantismo como neologomarca de uma postura mais centrada no sentimental, no espiritual e no indizível das palavras. Ao romper, pacificamente, com o concretismo, o poeta busca a (re) construção de uma nova poesia brasileira como quem tem de começar tudo de novo. E assim faz, na busca da compreensão de que “difícil é descobrir o novo nas coisas recentes” e “que a estátua da liberdade / e a estátua do rigor velem / por nós.” (LEMINSKI e BONVICINO, 1999, p. 10). Ao se aproximar dos parnasianos por seu gosto pelo artifício da estrutura poética e uso de outros recursos (rima e escansão, por ex.), Leminski assume como norma a transformação em novos significados de Figuras de Linguagem, como a antítese. Dessa maneira, compõe sua 15 Caprichos e relaxos, p. 120. 16 La vie en close, p. 27. 114 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 poética, dentro de uma linha neo-romântica, articulando visão zen-orientalista com uma abordagem tecnicista da poesia concreta: ele articula Bashô e Pound; Bilac e Oswald de Andrade; Buda e Jesus Cristo. O poeta, ao utilizar com rara habilidade e eficiência o mass media, desconfiava da formalidade acadêmica e do que chamava, no rastro da produção concretista, de “lógica aristotélica” da linguagem. Leminski apelava, assim, para a experiência irracional como fonte de conhecimento para o haikai (FRANCHETTI, 1994). Nesse sentido, no haikai de Leminski, que melhor soube adaptá-lo para o português, há uma confluência tanto da ênfase na técnica do ideograma, quanto de um apelo vivencial. Há a preocupação do poeta em radicar o haikai numa prática, assumindo-o como caminho mesmo de vida e o colocando como representação pura da experiência sensorial mais elementar. Ao mesmo tempo em que mantém sua composição poética com declarado virtuosismo técnico e com aprimorada linha intelectual, Leminski estabelece com sua produção uma relação marcada pelo lúdico, por uma expressão de fundo romântico centrada entre a inocência e o deslumbramento pela vida e pelas pessoas. Muitos de seus poemas revelam um inconfundível prazer pelo conteúdo conciso do haikai e uma assumida liberdade, quanto à estrutura, ora pelo uso descompromissado da assonância e da rima, ora utilizando o verso branco e sem medida, ora construindo o poema visualmente, ora reconstruindo a forma/fôrma das letras e palavras e ocupando o espaço disponível da folha. Foi sobretudo com o lirismo dessa poesia livre – liberdade como marca da produção poética da década de 70 –, atribulada e serena que o haikai encontrou, fora da comunidade japonesa, a melhor e mais conhecida realização no Brasil. Assim, haikaimente, a fulminante produção poética de Leminski assimila as conquistas da poesia concreta, articulando-as a uma noção coloquial e humorística do modernismo brasileiro da 1ª fase: SÍ LA BA MIM PA LA VRA SEM F F F I I I M M M 17 se nem for 17 Caprichos e relaxos, p. 135. 115 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 terra se trans for mar18 Mesmo depois da definição do calligrame, por Apollinaire, como poema ideográfico e com a atenção das vanguardas literárias européias do início do século para a ideografia chinesa, ainda é outro o interesse concretista. Ele se funda na radicalidade de uma composição nova, centrada em Fenollosa (2) e suas considerações sobre linguagem e poesia, antevendo-se, de modo sintético mas detalhado, uma abertura extra-ocidental que avança pelo texto além de seu plano das fundamentações estéticas. Nesse contexto, avalia Risério (3), a contracultura propõe um tipo de retorno à natureza, refazendo viagens de Rosseau e Wordsworth em que se estabelece, ainda que utopicamente – considere-se que aquele ecologismo não é o ecologismo de hoje –, o rompimento com um dado modelo de sociedade. O haikai, para Leminski, serve para testar e compor visualidades e sintaxes de montagem, harmonias fônicas em jogos de imagem. O poeta o assume, também, com olhos de contracultural andarilho neo-romântico-metroplitano – olhos de angustiante e isolado amor pela natureza, marcado pela inexorável percepção da escassez dos recursos minerais e materiais: as coisas estão pretas uma chuva de estrelas deixa no papel esta poça de letras19 um pouco de mao em todo poema que ensina quanto menor mais do tamanho da china20 xavante muitos xxxxx avante21 18 Idem, p. 126. 19 Caprichos e relaxos, p. 105. 20 Idem, p. 84. 116 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 muito romântico meu ponto pacífico fica no atlântico22 No Brasil dos anos 70 se percebe a estruturação do Movimento Negro Unificado, a proliferação dos terreiros de umbanda, do ritual católico das missas que admitem algumas intervenções do candomblé. Percebe-se, ainda, o ressurgimento de entidades afrocarnavalescas, o renascimento de uma música popular negromestiça que, entre outros fatores, institui um novo contexto histórico fundamental nas relações sócio-raciais (4). Ao par desses acontecimentos nacionais, vê-se o surgimento, no continente africano, de novas nações negras de língua portuguesa superando o colonialismo e a revitalização do movimento black power e da soul music norte-americanos. Leminski – um excêntrico que não tendia ao desbunde intelectualóide e infrutífero de boa parte de sua geração – não ficou às margens desses “acontecimentos”. Deixando-se absorver por tantas novidades, contraculturalmente, revelou-as por meio de um processo poético neo-romântico miscigenado e antipreconceituoso. Nesse contexto o verso leminskiano, sob uma neo-estética lírico-poética da concisão, do humor, da ambigüidade, da sonoridade, do subjetivismo, absorvido por momento histórico (pós) moderno, nunca perde a espontaneidade e uma orientação bem definida: Meu reino é do outro lado do mundo Meu reino Meu mundo por um cavalo ................. Este mundo Não me deixa reinar Neste reino me resta Ser vagabundo e ruminar ................. Meu reino cavalga este mundo – Logo ele que nunca soube caminhar!23 ................... eu descobri que o frevo tem muito a ver 21 Idem, p. 104. 22 Idem, p. 152. 23 Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, carta 68, p. 173. 117 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 com certo jeito mestiço de ser ................... de ser meio e meio ser sem deixar de ser inteiro e nem por isso desistir de ser completo mistério ...................24 Em La vie en close – que compôs ao longo das décadas de 70-80 e deixou organizado no final de 1988 – Leminski sugere a proximidade de sua morte. Nesse período sofre graves crises hepáticas e como neo-ultra-romântico vítima de um novo Mal du siècle – a angústia da ação vivida no meio da multidão de pessoas mecanicamente insensíveis, angústia movida a drogas e bebidas –, vai se entregando aos “mistérios gozosos” do fim de seu tempo “na esfera” da terra. Em outubro ou novembro daquele ano, escreveu um bilhete-testamento (divulgado pelo Jornal da Tarde) no qual, com a imprevisibilidade constante de sua boêmia assumida, procurou traçar um sentido a sua passagem: Este pode ser meu último texto. Talvez eu repita o destino de Fernando Pessoa, aos 44 anos e do mesmo mal. Nunca estive interessado em envelhecer, eu que sempre amei a juventude. Quero repousar em Curitiba, ao som dos Beatles, com meu kimono de faixa preta. Saio da embriaguez de viver para o sonho de outras esferas. Alice: por toda uma vida. Ana: obrigado pela vida que você me deu. Fortuna: você foi demais pra mim. Áurea, Estrela: vou amar vocês até o fim e depois. O livro é marcado, assim, pela presença fluida da leveza oriental de quem enxerga a vida através das lentes grossas de óculos ocidentais exigindo formalidade e rapidez. Nele, sua poesia traz, em si, essas marcas tatuadas: RUMO AO SUMO Disfarça, tem gente olhando. Uns, olham pro alto, cometas, luas, galáxias. Outros, olham de banda, lunetas, luares, sintaxes. ................... Raros olham para dentro, já que dentro não tem nada. Apenas um peso imenso, a alma, esse conto de fada.25 Com o lançamento de La vie en close, Leminski não chegou ao ato extremo como Torquato Neto, ou Mishima (5), ou como Iessiênin ou Maiakóvski. Ele busca, na verdade, 24 Caprichos e relaxos, p. 16. 25 La vie en close, p. 49. 118 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 além de uma notificação objetiva, datada com extrema lucidez e coragem, a revalidação de um sentido romântico de sua própria vida, em que a função de fugacidade para sua Pasárgada é mantida-roubada dia-a-dia: em um jogo de vai-e-volta espiritual, Leminski opta pela razão e aposta na vitória do sentimento. Assim, vários de seus poemas estão carregados dessas pistas, algumas visíveis, outras camufladas, mal e bem escondidas em cada imagem, em cada espaço vazio, em cada sensação de silêncio e grito – contido e expulso. Não haveria exagero nenhum em comparar a trajetória vigorosa deste multipoeta, rebelde dos anos 70, com a de Jimi Hendrix ou Janis Joplin (ASSUNÇÃO, 1991). O fato é que Leminski, disfarçado em si mesmo, erudito, karateca, alcoólatra e poliglota, não passou incólume àquela geração rebelde dos anos 60. Ele chegou a escrever em um poema que estava se tornando um mestre em disfarces. Essa afirmação revela sua inquietação em “administrar” uma vida – conturbada pela tecnologia e interesses imediatistas – procurando a essência de uma nova existência interpessoal romântica, suave e concreta, perdida entre os museus clássicos e os shoppings center ciberpoéticos da pós-modernidade. À vontade de revigorar a produção poética nacional da década de 70, apoiou sua intenção despreocupada em seguir as idéias da poesia concreta ao longo das trilhas áridas dos anos da década de 60. Assim, sua produção reaplica a, mesmo que questionável, importância de Oswald de Andrade com seu coloquialismo nacional e poemas-piada, poemas-minuto, poemas-pílula. Reaplica o constante e intenso diálogo com a literatura clássica, com os simbolistas e com a poesia beat americana, a fim de tentar estabelecer novos parâmetros para a leitura e compreensão da lírica moderna. Reaplica: a produção literária pela música popular; o uso obsessivo do provérbio, a construção da frase poética densa, inquebrantável e simples; o orientalismo ocidentalizado pelos haikais de Bashô. Reaplica, ainda, as mais variadas filosofias e línguas que compõem o percurso histórico e estético dos ismos europeus do final do século XIX e as vanguardas (com suas pósvanguardas) do século XX. Todos esses desvios, recriando novos caminhos, traçam o conturbado percurso leminskiano. Daí o projeto de Envie meu dicionário (6), como mais um testemunho de fé: textos com a missão de registrar o neo-romantismo de uma produção poética, perdida e encontrada, na modernidade. Esse livro, em que se lê/vê a desconstrução de um período – sobretudo década de 70 e, ainda, a de 80 – pela composição das cartas (e por elas, a alma do poeta), revela-se como tipo de documentação poética. Nela é demonstrada a estruturação do verbo fácil, o derramamento constante de idéias, o carinho entranhado na mensagem, a rispidez fiel de uma fonte precisa, o sentido de estranhamento e a definição de uma poesia construída, essencialmente, pelo diálogo. Poesia que se afirmava na categoria de um empreendimento cultural que se projeta como entidade/identidade de círculos especulativos, de materiais mergulhados na palavra, na sua forma, no seu som. Há um problema, até ingênuo, em taxar Leminski como fundamentalmente um poeta marginal. Tanto quanto, ao rotulá-lo como poeta de “versos normais”, meramente proverbiais, não se percebe seu lirismo em uma estrutura romântica quase clássica – nunca na forma, mas sempre na essência. É ver/ler alguns trechos de suas cartas-ensaios, de seus poemas, e assumir a possibilidade da ampliação da visão para além do esperado, do estabelecido e do proposto como estrutura formal ou/e conceito tradicional. Neles, os anos 70, no Brasil e no mundo, lançam raízes ético-estéticas para além de uma filosofia e gramática livresco-acadêmica; neles, há o ruído de uma poesia amena, árida e sempre plena: ................. 119 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 nossa poesia tem que estar a serviço de uma Utopia ou como v. disse de uma ESPERANÇA é isso que quero dizer quando falo que o poeta para ser poeta tem que ser mais poeta ................. talvez não haja mais tempo para grandes e claros GESTOS INAUGURAIS como a poesia concreta foi a antropofagia foi a tropicália foi agora é tudo assim ninguém sabe as certezas evaporaram que a estátua da liberdade e a estátua do rigor velem por nós amor abraços26 Enfim, materializou sua vida pop-underground-zen na ressignificação do conceito dialético beber-viver, lúcido-excêntrico, oriental-ocidental, solidário-solitário, românticoconcreto. Nessa assumida ressignificação, viveu crises sociais de identidade nacional de um país em surtos de milagres econômicos, ao lado de suas várias crises pessoais. Assim, talvez, ou certamente, a massa desconjuntada de ações da maioria amorfa e comedida de seus sobreviventes contemporâneos, envolvendo-o, o tenha abalado com uma intensidade sempre ferinamente decisiva, que o empurrou ao convívio de seus (poucos) iguais: LIMITES AO LÉU POESIA: “words set to music (Dante via Pound), “uma viagem ao desconhecido”(Maiakóvski), “cernes e medulas”(Ezra Pound), “a fala do infalável”(Goethe), “linguagem voltada para a sua própria materialidade”(Jákobson), “permanente hesitação entre som e sentido”(Paul Valéry), “fundação do ser mediante a palavra”(Heidegger), “a religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor ordem”(Coleridge), “emoção relembrada na tranqüilidade” (Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se faz com palavras, não com idéias” (Mallarmé), “música que se faz com idéias” 26 Envie meu dicionário – carta e alguma crítica, trecho da carta 9, p. 46. 120 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 (Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um fingimento deveras”(Fernando Pessoa), “criticism of life” (Mathew Arnold), “palavra-coisa”(Sartre), “linguagem em estado de pureza selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to inspire”(Bob Dylan), “design de linguagem”(Décio Pignatari), “lo imposible hecho posible” (García Lorca), “aquilo que se perde na tradução” (Robert Frost), “a liberdade da minha linguagem” (Paulo Leminski)...27 Leminski e a poesia como religião moderna: uma poética excêntrica em suas marcas neo-românticas (um conjunto de características) Baseando-se na articulação dos conceitos da Estética da Recepção (ZILBERMAN, 1989; LIMA, 1979), na análise do conceito de romantismo anticapitalista (GUINSBURG, 1993; LÖWY e SAYRE, 1995, 1993; LÖWY, 1990) e na linha epistemológica desenvol-vida por autores como José Guilherme Merquior (1996), o conjunto de características a seguir busca o desvelamento temático28 do sentido de excentricidade romântica na poética de Leminski. Construída por singular composição conteúdo x forma, tal poética representa a literatura nacional no que se expressa por temas contemporâneos, fundados em uma condição hiper-real e metonímica. Essa expressão contemporânea se dá, no entender de Merquior, por meio da articulação com uma, e superando-a, produção moderna de essência surreal e metafórica. Entenda-se que Leminski também traz em sua produção essa “manifestação de articulação” entre o moderno e o contemporâneo. Nesse novo contexto sócio-artístico – década de 70 e ainda a de 80 –, floresce o neo-romantismo de Leminski, considerado como tipo de romântico excêntrico – lembre-se, ainda, século XX afora, de Murilo Mendes, Manoel de Barros, Cora Coralina, entre outros. Neo-românticos excêntricos, às margens de um centro canônico literário estabelecido, esses artistas são, com sua visão crítica, lírica, telúrica, corrosiva e desmascaradora de arte e de mundo, efetivamente os fundadores de uma verdadeira “tradição moderna” nacional. Ao fim dessa análise, seguem algumas características – na linha proposta de um neorromantismo-excêntrico – que podem ser avaliadas como componentes fundamentais da estrutura poética de Leminski29: A presença ausente da mulher amada – símbolo do sentimento perdido / encontrado no vazio do dia-a-dia: este mundo está perdido 27 La vie en close, p. 10. 28 A opção, no presente artigo, é pela apresentação geral desses temas na poética de Leminski, sem considerar questões outras de ordem analítica, como predominância de imagens, alegorias, rimas, substantivações etc. 29 Optou-se, ainda, na maior parte dos exemplos, pela apresentação integral dos poemas. 121 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 disperso entre o escrito e o espírito ruído entre o físico e o químico flui o sentido, líquido viver é grande porque eu sinto tua falta já que arrasto por aí esse falso ainda minha alma torta e a falta faz que vai mas volta no meio da ida e da vinda30 A crítica (com intenção solidária) a condições de existência centradas em uma vida rotineira, sem riscos ou dúvidas: UMA PARTÍCULA UM ÁTOMO UMA MOLÉCULA UMA CÉLULA UMA SÍLABA UMA PALAVRA UM SIGNO UMA ESTRELA UMA KONSTELLAZION UMA GALÁXIA entre o verso e o universo o subverso versus o reverso tem lugar para todo mundo vamos deixar de ser fascistas o concretismo ou significa liberdade dogmáticos ou não significa NADA partidistas bitolados chega de leis limitados basta de normas cada obra agora já sabe o que fazer o que deve ser feito o perfeito e o imperfeito o absoluto e o relativo31 nós A poética da (neo) religiosidade como ofício de crença em um deus brasileiro ativo e presente: 30 La vie en close, p. 43. 31 Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica, trecho da carta 25, p. 73. 122 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 parem eu confesso sou poeta cada manhã que nasce me nasce uma rosa na face parem eu confesso sou poeta só meu amor é meu deus eu sou o seu profeta32 O sentido transmoderno da fugacidade contemporânea para um local ameno (sem sair de onde se está): a quem interessa esse além sem pressa ? a mim este aquém o além a quem interessar possa33 POETRY OF CONFLICT IN THE 70´s: PAULO LEMINSKI AND SIGNS OF HIS NEOROMANTISM ABSTRACT: Paulo Leminski responded in a unique way, especially in the 70´s, the most pressing challenges increasing the culture and the new sociopolitical order presented. Challenges posed, for example, by the Cold War, racial strife, Third World, the information society. In this context national-global Leminski renew poetic language as the center of their ethical and aesthetic projects. Under such compound ethical and aesthetic, neoromantically emphasize major divergence, compared to the national literary canon, as to understand the boundaries between poetry and non-poetry, functional art and activist art. Also emphasizes the humorous and ironic denunciation of the "new times" and proposed that the poet as looking for a more integrated communication, creative and edgy with people and art. 32 Caprichos & relaxos, p. 91. 33 La vie en close, p. 88. 123 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 KEYWORDS: Eccentrism. Poetry. Society. Notas: (1) Os poemas citados foram extraídos de LEMINSKI, P. e BONVICINO, Régis (org.). Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999; LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 2 ed. São Paulo: brasiliense, 1991; LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. 3. ed. São Paulo: brasiliense, 1985. (2) No ensaio de Fenollosa, The chinese written character as a medium for poetry, já se observam análises muito interessantes sobre o jogo de vanguardas que ora se presencia em todo o mundo. (3) Risério, op. cit., p. 12, avalia que “foi dessa maneira que a contracultura abrigou e alimentou o embrião da ecopolítica, embora, naquele momento, nosso ecologismo tenha sido mais uma atitude filosófica do que qualquer outra coisa.” (4) Esse conjunto amplo de fatores foi resultado, basicamente, do chamado milagre brasileiro, promovido pela sucessão de governos autoritários desde a década de 60. Para melhor compreensão do “fenômeno” e suas variantes, consultar: SKIDMORE, Thomas E. Uma história do Brasil. Trad. de Raul Fiker. São Paulo: Paz e Terra, 1998; PRADO Jr., Caio. “Organização social”. In: Formação do Brasil contemporâneo. 21. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. (5) Leminski traduziu Sol & Aço, uma apologia ao suicídio honroso dos samurais, de Yukio Mishima. Não obstante, para alguns críticos mais ácidos de sua obra, essa tradução tenha sido feita por motivos estritamente financeiros, para o poeta esse caminho – o do suicídio – seria sempre um caminho possível e venerável. (6) Esse livro, de 1999, apresenta-se como obra melhorada, com mais ensaios e fac-símiles, em relação à anterior coletânea de cartas, Uma carta uma brasa através, publicada em 1992, pela Iluminuras. REFERÊNCIAS ARAÚJO, R. Poesia visual – vídeo poesia. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 79. ASSUNÇÃO, A. Leminski: dor e rigor em seus últimos poemas. In: Jornal da Tarde. Caderno Artes e Espetáculos. 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In: Folha de São Paulo, Caderno Mais!, edição de 29 de fevereiro de 2004. TELES, G. M. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. Vários autores. Paulo Leminski. Curitiba: EdUFPR, 1994. ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. 125 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 YVES BONNEFOY E A IMAGEM, COM UMA NOTA SOBRE RAOUL UBAC Pablo SIMPSON1 RESUMO: Este ensaio pretende discutir a noção de “imagem” na obra de Yves Bonnefoy a partir do livro L’Arrière-pays, publicado em 1972. A imagem, cuja recusa e aceitação constitui parte da intriga do livro, nos permite considerar uma dimensão do tempo, chamada aqui de “hesitação”, fundamental para a produção crítica e literária do poeta. Trata-se de uma “suspensão do tempo”, conforme afirmaria Yves Bonnefoy, sugerida nas obras pictóricas “por sua espessura de hesitações, de ambigüidades, de contradições”. Tal hesitação se produziria no texto literário através da sugestão de momentos de simultaneidade, mas também através de imagens como a “soleira” ou o “limiar”. São imagens, além disso, que se revelariam como momentos de uma “atestação de si”, cujo valor ético observou em artistas como Raoul Ubac. PALAVRASCHAVE: Yves Bonnefoy. Raoul Uba.Poesia. L’Arrière-pays de Yves Bonnefoy é um livro de imagens. A angústia de um caminho não escolhido, de uma terra distante para além das montanhas, não se diz sem menção a esse lugar. São paisagens como as de Piet Mondrian ou de Nicolas Poussin, sendeiros que se abrem, “um caminho que seria a terra mesma”, como indicariam igualmente a Paysage e a Petit paysage d’Italie vu par une lucarne de Edgar Degas, reproduzidas no livro. Ou, como afirmaria o poeta em Le Nuage rouge de Piet Mondrian, “o crisol onde a terra distante, dissipada, viria readquirir forma”2. Em L’Arrière-pays, Yves Bonnefoy afirma a “necessidade que temos das imagens” e a relação que estabelecem, de maneira geral, com a criação poética. Assim as definiria, como o que aparece nos devaneios a partir das experiências e dos desejos que as “simplificam, ou intensificam, ou transfiguram”. São imagens que se fixam com seus traços: “tudo que parece, apesar de tudo, fazer da visão fugitiva um fato”, interrompendo o fluxo. Fato que diz respeito a um outro lugar “que não o de nossa vida”, e que testemunha “talvez a existência de um outro mundo”. A citação é de Entretiens sur la poésie: As imagens, elas são com certeza o que aparece nos devaneios a partir das experiências já ensaiadas em nossa prática efetiva e os desejos que as simplificam ou intensificam ou transfiguram. Mas são também o enquadramento, a página, a fixidez do traço, tudo o que parece fazer da visão fugitiva um fato apesar de tudo, um fato proveniente de um outro lugar que não a nossa vida, e testemunhando mesmo talvez a existência de um outro mundo. (Entretiens, p. 12) No fim dos anos 1960, Yves Bonnefoy recebeu um convite de Albert Skira para participar da coleção Sentiers de la création, criada alguns anos antes em Genebra. São livros de imagens, em que as imagens se relacionam com o texto literário. Embora elas tenham 1 Leitor de Civilização e Literatura Brasileira na Université de Yaoundé I - Cameroun. E-mail: [email protected]. 2 As referências seguintes das publicações de Yves Bonnefoy foram abreviadas para facilitar a leitura e encontram-se completas na bibliografia final. As traduções, salvo menção, são minhas. As três telas ilustram, respectivamente, as páginas 58-59, 153 e 151 de L’Arrière-pays. 126 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 sempre participado de sua obra ensaística e poética, não apenas com o sentido da crítica de arte freqüente aos poetas franceses, em L’Arrière-pays elas adquirem um lugar central. Imagens não do próprio escritor, como de Roland Barthes ou de Henri Michaux, que ilustraram a mesma coleção. A relação entre texto e imagem não é também uma relação secundária de ilustração3. As imagens são acompanhadas de pequenas frases extraídas do texto, sem menção direta. Em L’Arrière-pays, elas não recebem comentários. Deixam-se enunciar, no entanto, através do texto. Constituem a raiz de seu próprio movimento hesitante, tanto quanto de sua intriga: do narrador-personagem que recusa as imagens à aceitação delas e de si-mesmo. Conforme afirmaria Catherine Beccheti no ensaio “Du rêve de l’image à la parole simplifié”, “entre a representação pictural e a voz hesitante que anuncia a presença, se desdobra todo o espaço da criação poética como Yves Bonnefoy a compreende”4. Em “La présence et l’image”, aula inaugural do curso de poética do Collège de France, em 1981, Yves Bonnefoy investigaria um de seus desdobramentos. A imagem estaria próxima da idéia de ficção. Trata-se, em primeiro lugar, de sua relação com as palavras: “Eu chamarei imagem essa impressão de realidade enfim plenamente encarnada que nos vem, paradoxalmente, das palavras que se desviam da encarnação”5. A imagem é mentira, “por mais sincero que seja o criador de imagens”. Nesse instante, Yves Bonnefoy definiria a poesia como uma negação da imagem, uma transgressão. A imagem seria o “mundo-imagem” que é preciso combater, com vistas à finitude: dialética também do sonho e do aqui, do “eu que sonha” e do “eu que existe”. Toda representação se tornaria um véu que esconde o “verdadeiro real”. “A poesia conhece a sua própria mentira”, diria o poeta, mas através dessa relação com a imagem. Esse é o primeiro sentido (e o negativo) das imagens de L’Arrièrepays: visão “coerente e suficiente”, que “se substitui ao mundo da finitude”6. Mas a imagem comportaria também uma verdade, como afirmou no ensaio “Leurre et vérité des images”7. Assim Florença, esse lugar de conversão para Yves Bonnefoy, é também a educadora ferida que ensina que se pode amar as imagens: (...) Florença tinha sido para ele a educadora ferida, memoriosa, sábia, de que tinha necessidade, que buscava. E ela lhe mostrou, lição jamais recebida até então, que podemos amar as imagens, mesmo que em cada uma reconheçamos o não-ser: tanto é verdade que todas essas obras juntas, elas não são uma anulação recíproca, mas um aprofundamento possível de si-mesmo, e enfim o destino.(L’Arrière-pays, pp. 80-83) 3 Micolet, H. Peinture et littérature chez Yves Bonnefoy: formation de la forme dans L’Arrière-pays, (cf. bibliografia), p. 35. 4 Becchetti, C. “Du rêve de l’image à la parole simplifié”, in Critique, 560-561, jan-fev de 1994, p. 21-46. “Entre la représentation picturale et la voix hésitante qui annonce la présence, se déploie tout l’espace de la création poétique telle qu’Yves Bonnefoy la comprend”, p. 22. 5 Lieux et destins, p. 26. 6 As citações provêm das notas anexas de Yves Bonnefoy ao estudo de Jérôme Thélot, Poétique d'Yves Bonnefoy, Droz (Histoire des idées et critique littéraire), Genève, 1983, pp. 265. 7 Bonnefoy, Y. “Leurre et vérité des images”, entrevista com Françoise Ragot, Alain Irlandes e Daniel Lançon, in Écrits sur l’art et livres avec les artistes, ABM/Flammarion, 1993, pp. 35-78. 127 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Ut pictora poesis Um aprofundamento de si é obtido através das imagens. O poeta não hesitaria em referir a esse lugar de contato da poesia e da pintura. O pintor seria aquele que “permitiria ao poeta melhor compreender a natureza da ilusão”, que tanto a poesia quanto a pintura têm em comum: “é a preocupação do que chamo imagem” 8. A arte italiana revelaria, por um lado, a “felicidade que encontramos nos aspectos do mundo, quando os percebemos como componentes de nosso lugar” 9. É preciso compreender essa dialética de Yves Bonnefoy, para entender a sua recusa a Picasso e a Manet. Este faria com que a arte rompesse com “seu antigo projeto de conhecimento, metafísico ou moral”. Picasso, em Les Demoiselles d’Avignon, tentaria desarticular a pintura como lugar de uma “consciência profunda” 10. No ensaio “Giacometti et Picasso” em Remarques sur le regard, Yves Bonnefoy explicitaria essa contrariedade ao opor o projeto de ambos. É revelador, aliás, que a recusa a Picasso encontre no que caracterizaria como uma “abolição do olhar” um componente da relação das imagens e do “eu”. O auto-retrato, para Picasso, seria um problema, como no Autoportrait de 1906, em que o eu desvia o olhar. Nas duas telas de 1928, Le Peintre et son modèle, Yves Bonnefoy chama a atenção para essa inaptidão do artista de colocar-se “em plena presença” do outro e de si. Numa delas, a modelo com três olhos, que miram o artista, encontra em sua representação apenas dois que observam não a ela, porque voltados “para nós, que estamos fora da cena, como para escapar do pedido que lhe é feito”. Não se afrontariam a intensificação e a inquietude desse olhar: Como melhor significar que o olhar, via através da qual o ser emerge na figura, é o que mais aparece em Picasso, mas também o que ele teme não poder sustentar, o que a sua arte vai ao mesmo tempo guardar em memória e evitar afrontar?11 Alberto Giacometti, por sua vez, como para o poeta Jacques Dupin – “ele persevera nas aparências e escava o real até tornar visível a essência de sua relação, isto é a presença do sagrado” 12 – seria aquele que colocaria em primeiro plano, não o prazer estético, mas a exigência moral 13. Ele atestaria a presença, segundo Bonnefoy, e uma “descoberta de si”, situando-se na contrariedade de Picasso, ao ir direto ao rosto14. Contra a arte lúdica e livre, as “facilidades da virtuose sarcástica” do pintor espanhol, Giacometti, paralisado, se colocaria frente ao “duro fardo da responsabilidade pessoal”, num século que começava com o sentimento da relatividade das culturas, da irrealidade dos valores da tradição ocidental. Daí a 8 Id., p. 44. 9 Id., p. 63. 10 Id., pp. 69 e 71. A análise de Yves Bonnefoy da mesma tela encontra-se também no ensaio Remarques sur le sur le regard: Picasso, Giacometti, Morandi, L’Art en France entre les deux guerres, Calmann-Lévy, 2002, pp. 91-96. 11 Remarques sur le regard, p. 82. 12 cf. Mascarou, A. Les Cahiers de “L’Éphémere” 1967-1972: tracés interrompus, L’Harmattan, 1998, p. 125. 13 Remarques sur le regard, p. 100. 14 Sobre o caminho da representação do rosto, que conjugaria “aparência, essência e intemporalidade”, e as interrogações sobre a ausência de retratos na arte moderna, cf. ainda Bonnefoy, Y. “Le Portrait: sa naissance, sa renaissance” in Campbell, Lorne. Portraits de la Renaissance: la peinture des portraits en Europe aux XIV e, XVe et XVIe siècles, traduit de l’anglais par Dominique Le Bourg, Hazan, 1991. 128 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “esterilidade inquietante” do artista no pós-guerra dos anos 1920. A hesitação é a mesma que caracterizaria a sua invocação na revista L’Éphémère, dirigida por Bonnefoy: por um engajamento na “existência real”, aproximando vida artística e uma sucessão de provações15. A pintura/imagem comportaria, para Yves Bonnefoy, portanto, ilusão e verdade. Com essa dicotomia, o poeta investigaria a Passage du Commerce-Saint-André de Balthus, no ensaio “L’invention de Balthus”, observando as “figuras com mais ausência, as miragens mais perigosas”, mas também um rapaz sob a soleira da porta: “ele significa a presença que veio da ausência”16. E, então, um Balthus oposto ao “rei dos gatos”: oposição entre o que estivera preso aos números, à literalidade, e o outro que se confronta com esse “grande realismo” – a expressão é constitutiva da primeira ensaística de Yves Bonnefoy em L’Improbable – “não figurável na transcendência desse olhar” 17. É importante indicar a dimensão do olhar do pintor ao reencontrar um outro. Hesitação que Yves Bonnefoy colocaria sob o signo do tempo, em seu estudo “Le temps et l’intemporel dans la peinture du Quattrocento” de L’Improbable. Angústia, por vezes, como definiria com relação a Profanação da hóstia de Paolo Ucello, no tremer dos dedos e na fixidez dos olhares, confrontados a um futuro iminente, a uma virtualidade trágica. A Profanação “seria” do tempo, ao dizê-lo em sua “rede de projetos e de inquietações” 18. Trata-se da escolha de um momento da pintura: “espessura de hesitações”, frente à ação próxima. Hesitação do pintor e dos gestos. Há um momento cuja intensidade responderia, segundo Pascal Griener, ao que os gregos chamaram acmé. A análise é do livro Rome 1630 de Yves Bonnefoy, em que o poeta figuraria a contradição entre dois acontecimentos do período do barroco italiano: arte refinada e terror desumano. Contradição que Yves Bonnefoy identifica não apenas na história, nos momentos de decisão e mudança da convicção dos artistas – e que apartaria grandemente o projeto Rome 1630 de Renaissance und Barock de Wölfflin, por uma dimensão também pessoal que é, a cada instante, preservada pelo poeta19. Contradição na obra: do “eu” e do outro. São dois olhares que devem ser confrontados, no instante. E que trazem uma dimensão do acaso, apontada por Griener, ao fazer da história o “jogo misterioso da necessidade com o acaso”, como no título de seu ensaio. Por isso, o interesse de Yves Bonnefoy pela “decisão de ser um pintor”, pelo momento decisivo, que estaria no centro de L’Arrière-pays, na referência a Nicolas Poussin: “Poussin olha, compreende, e decide pintar, mestre do ramo de ouro, onde quer que eles existam, seus grandes Moisés salvo”20. Momento da decisão, dada no instante, e que se encontra também em Rue Traversière, no poema em prosa “La décision d’être peintre”. Nele as palavras ininteligíveis mudam-se no sol que se ergue, bruscamente, aos olhos do artista. E bruscamente, ao contornar um muro, ele recebeu o sol levante no rosto como um grande grito de envolvimento, de abraço, de fumaça, no inacabado da luz. (Rue traversière, p. 100) 15 Mascarou, Alain. Op. Cit., p. 127. 16 L’Improbable, p. 55. 17 Id., ibid. 18 Id., p. 66. 19 Griener, P. “Le jeu mistérieux de la nécessité avec le hasard: Yves Bonnefoy, Rome et l’Âge Baroque” in Bonnefoy, Y. Goya, Baudelaire et la poésie, Goya, Baudelaire et la poésie, La Dogana, Genève, 2004, pp. 85 & 101, respectivamente. 20 L’Arrière-pays, p. 155. 129 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Poesia, viagem, pintura Mas é preciso indicar ainda uma outra dimensão desse encontro, dessa atestação de si. Interrupção que será dada na viagem, lugar de abertura do olhar. Yves Bonnefoy não deixaria de inscrever-se e de indicar essa aproximação entre a viagem e a arte, como Goethe no momento em que encontra os túmulos de Verona, inquirindo as ruínas e figuras que são “aqui na Terra, o que foram e continuam sendo”. Divisando, outrossim, no dia em que chegara à Roma, a data de seu “segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento”21. Esse é o sentido que Yves Bonnefoy sugeriria em seu ensaio sobre Bizâncio, “cidade das imagens”, ao vislumbrar esses instantes, como o canto de um pássaro, possibilitando ao “eu” afrontar, ainda uma vez, “nosso mundo em seus aspectos mais fugitivos”. Mas não sem incluir a cidade na geografia do “arrière-pays”, como indicaria Rémi Labrusse22. A citação é do ensaio “Byzance” de Yves Bonnefoy. (...) e eu de início associei a um desejo em mim que buscava sua pátria, aquele de afrontar nosso mundo em seus aspectos mais fugitivos, aparentemente os menos carregados de ser, para consagrá-los e que eu fosse salvo com eles. É verdade, cada vez que um canto de pássaro ressoou em alguma floresta, fora de mim, cada vez que vim à soleira de um circo de pedra onde é minha ausência que reina, cada vez que o aqui limitado e mortal me pediu assim para romper o selo da recusa moderna do ser, é a irradiação de Bizâncio que por pressentimento, desde que soube o nome da cidade das imagens, acreditei tocar. Tratava-se bem da eternidade esta vez ainda; a nota maior de Bizâncio, percebida em todas as épocas, não tinha parado de vibrar. Mas esta eternidade não se dava mais através da negação do país sensível, ela vinha queimar em suas árvores, era preciso esgotá-la no profundo dessa dispersão onde estamos, porque ela lhe era a substância mesma e o corpo de glória, subitamente. Todas as formas de consumação e, por excelência, a viagem. (L’Improbable, p. 176) A hesitação entre a viagem e a necessidade de fundar um lugar (uma pátria) é, ademais, transferida para a angústia dos pintores que se exilaram ou escolheram uma outra terra, no ensaio “Le peintre dont l’ombre est le voyageur”. E então a pergunta: “O que parece prometer o distante àqueles que conhecem o aqui do mundo?” 23. Tensão, segundo o poeta, entre o imaginário e a evidência da vida. Não é preciso retomar a proximidade dos temas da viagem, do exílio e do sonho, para dizer que eles pertencem à mesma dialética da imagem. Negação/aceitação do aqui, mas também da arte, da escrita, graças a um “ato de fé”. A dimensão da imagem possibilita uma suspensão do tempo. Corresponde a “um pouco de duração”, no aqui de nossa adesão, na finitude. Oposição entre “dois desejos, dois níveis de nosso desejo”. O momento da ação iminente está próximo da representação de cada uma das figuras inscritas na tela, não apenas pelo caráter da ação propriamente, mas pela 21 Goethe, J. W. Viagem à Itália: 1786-1788, trad. de Sérgio Tellaroli, Companhia das Letras, São Paulo, 1999, pp. 50 e 175. 22 Labrusse, R. “Byzance et le thème bizantin”, Yves Bonnefoy: Poésie, peinture et musique, Op. Cit., p. 89. Mais precisamente: “Civilisation orientale et pourtant héritière de Rome, chrétienne et pourtant au contact de l’Islam, elle est donc aussi un point de rencontre privilégié entre la question de l’origine et la question de l’exil: deux grands soucis de la poétique d’Yves Bonnefoy. Que ces soucis soient poursuivis au plan des rêveries profondes du moi, – et c’est l’expérience que le poète désigne sous le nom d’arrière-pays (...)”, p. 84. 23 Rue traversière, p. 160. 130 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 presença/ausência que elas permitem intuir, como o rapaz da tela de Balthus. G. E. Lessing, em seu estudo exemplar sobre a relação entre a poesia e a pintura, o Laocoonte, já havia aprofundado – dentre tantas outras questões, o docere das imagens, como na “educadora ferida” de Bonnefoy; a ilusão da presença (evidentia) de Zêuxis, a que o poeta retornaria diversas vezes, como na narrativa “Les raisins de Zêuxis” de La Vie errante – essa perspectiva da ação. Trata-se da oposição entre a linearidade da razão a qual seria submetida a poesia e a simultaneidade da recepção da pintura. Se as ações constituem o objeto da poesia – e daí a direção rumo a uma teoria da arte dramática como representante da poesia em Lessing, realizando “a utopia da linguagem direta”, segundo Márcio Selligman-Silva – a pintura “devido aos seus signos ou ao meio de sua imitação (...) só pode conectar no espaço, deve renunciar totalmente ao tempo”. “A seqüência temporal é o âmbito do poeta, assim como o espaço é o âmbito do artista” 24. É o mesmo que expressará a poesia de Bonnefoy, repetindo elementos, imagens, dando a impressão de uma continuidade narrativa. Momento decisivo, a partir também de uma melancolia da memória. Memória, aliás, que se diz em poemas que chamou de “pedra”, pedras tumulares, inscrições dirigidas a um leitor. E que falam de um passado irrecuperável em tensão com o presente, como no poema seguinte de Les Planches courbes: Manhãs que tínhamos, Eu retirava as cinzas, ia encher O cântaro, colocava-o sobre o lajedo, Com ele fluía em toda a sala O odor impenetrável da menta. Ó lembrança, Tuas árvores estão em flor perante o céu, Podemos crer que neva, Mas o raio se afasta no caminho, O vento da noite derrama seu excesso de grãos.25 Em Yves Bonnefoy ocorre, portanto, uma variação da proposição de G. E. Lessing. Embora a arte se inscreva no espaço, ela não deixaria de referir a esse tempo da “duração”. Ele é sugerido na obra pictórica “por sua espessura de hesitações, de ambigüidades, de contradições”. Assim pretendeu em seu estudo sobre o Quattrocento em L’Improbable. A pintura se dirigiria à ambigüidade da ação. A poesia, por outro lado, ainda que disponha seus elementos de maneira linear, pode aproximar-se, por vezes, da representação desses instantes decisivos. Momentos de “simultaneidade”, expressos através das imagens recorrentes da soleira, do limiar, no livro Dans le leurre du seuil, nos textos em prosa “Les raisins de Zêuxis” e “Les découvertes de Prague”. A “soleira” ou o “limiar” são alguns dos lugares de predileção de Yves Bonnefoy, em que se “cristaliza uma postura afetiva ou mental”, em contraste, por exemplo, com o “Jardin” de Ronsard, o “Lac” de Lamartine, o “Sorgue” de Char26. A interrupção é o momento em que o “eu” se abre ao espaço, afrontando o outro e a si. O momento decisivo torna-se o centro dessa arte “linear”. Porque mesmo a prosa de Yves 24 Lessing, G. E. Laocoonte ou as fronteiras da Pintura e da Poesia, com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga, introdução, tradução e notas de Márcio Selligman-Silva, Iluminuras, São Paulo, 1998, p. 190 & 211. 25 Bonnefoy, Y. Les Planches courbes, Gallimard, 2001. 26 Maulpoix, J.-M. Le Poète perplexe, José Corti, 2002, p. 65. 131 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Bonnefoy privilegiará essa tensão em que o tempo é menos sucessivo do que simultâneo. Na narrativa “L’Égypte”, a primeira de Rue traversière, por exemplo, as três histórias narradas vêm mesclar-se: o sonho em viagem, seguido do despertar que compreende a notícia da morte da mãe e a visão da menina, e a lembrança da infância, na parte consagrada à personagem Promé té ché. São associações metafóricas, obtidas pelos “brancos” narrativos, pelos saltos e interrupções para cada um dos relatos. Eles separam os acontecimentos mais importantes, tempo que se detém e retoma por meio de intervalos. Subitamente, passa-se a um outro tempo, servindo-se o “eu” apenas de índices temporais imprecisos. Mas é possível estender ainda essa simultaneidade à recepção, conforme indicado por Lessing para a pintura. “L’Égypte” como L’Arrière-pays o fazem através sobreposição de momentos que adquirem sentido senão em referência um ao outro, na iminência de cada uma das ações, alternando relações metafóricas e metonímicas – sobreposição que retoma a oposição entre prosa e poesia. Neles as ações, tão hesitantes, aprofundam, em suas interrupções – em face do “arrière-pays”, tanto quanto do “eu”, do sonho, da escrita, da viagem e das imagens – uma dimensão fundamental do tempo. Raoul Ubac Raoul Ubac é, nesse sentido, um dos artistas prediletos de Yves Bonnefoy. A ele o poeta dedicou três ensaios nas bonitas edições de litogravura elaboradas pela Galerie Maeght para a coleção Derrière le miroir, atrás do espelho: o primeiro deles intitulado “Raoul Ubac”, de 1955, o segundo, “Dos frutos se erguendo do abismo”, de 1964, e “Proximidade do rosto” de 196627. São litogravuras acompanhadas por vezes, no caso de Ubac, também de ensaios dos poetas Francis Ponge ou André Frennaud, em outros números da coleção. As duplicidades da obra teórica de Yves Bonnefoy constituem elementos importantes para entender o seu interesse pelo artista, que ilustrou um de seus livros de poemas, Pierre écrite, em 1965. A crítica do poeta chamaria a atenção para o que existe de amassado e irregular no papel utilizado por Ubac, sobre o qual imprime manchas feitas com ardósias entalhadas, uma delas intitulada “Torso”. 27 Sobre o diálogo entre ambos cf. também Pearre, A. La présence de l'image: Yves Bonnefoy face à neuf artistes plastiques, Rodopi, Amsterdam, 2004, p. 116 e ss, de quem sigo várias observações. Os três ensaios sobre Ubac foram republicados e L’Improbable et autres essais. 132 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 É possível ver nela, com o auxílio do poeta, uma espécie de poder de concentração ou economia expressiva, como no poema citado de Les Planches courbes. Trata-se de um mundo recolhido em seus aspectos essenciais: a pedra, o corpo (tronco sem cabeça), com uma gravidade que Yves Bonnefoy observaria em Ubac, artista austero, taciturno, de imagens enegrecidas28. Para dizer que a pedra gravada se tornaria uma “metáfora do ser”. Pedra gravada no mesmo período em que elabora as ilustrações de Pierre écrite, com a cabeça ausente, além disso, para situar a dificuldade da representação do rosto na modernidade, numa espécie de inquietação com a unidade perdida, sobre a qual teorizaria o poeta29. Raoul Ubac, além disso, ao mesmo tempo em que compartilharia a atração de vários pintores e gravadores por uma espécie de mundo de signos, como Henri Michaux, superaria essa espécie de arte fechada, segundo Yves Bonnefoy, através da veemência expressiva. Contra a idéia de uma pintura voltada para si mesma ou de uma poesia também fechada, concentrada naquilo que existe de arbitrário nos signos e representações – e cujo paradigma seria Mallarmé – o poeta observaria em Ubac uma espécie de abertura. É nesse sentido que afirma que ele “não consentiria à autonomia do grafismo”. Ou ainda: “não aceitou que a 28 “Raoul Ubac” in L’Improbable, p. 57. 29 Pearre, A. Op. Cit., p. 117. 133 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 fascinação da forma pura viesse atrapalhar em sua obra a meditação mais alta daquilo que existe” 30. De algum modo, podemos ver assim em Ubac a oposição hesitante entre um certo sentido elevado, compreendido por esse mundo de signos (elevado também no sentido moral, numa espécie de desejo ascético manifesto pela resistência da pedra), e o mundo material. É essa duplicidade que permite que se possa opor contra o cristal de Valéry, a impressão opaca de sentido, manchada, suja. Como no poema de Yves Bonnefoy dedicado à cantora Kathleen Ferrier, em Hier régnant désert de 1958: “adeus de cristal e de bruma”, “voz mesclada de cor cinza”. Na segunda gravura (sem título, 1974), trata-se novamente de uma espécie de signo gravado. É um grande “c” com estrias, em tons de cinza e preto. Assemelha-se a um grande labirinto aberto por quase todos os lados – labirinto como lugar por excelência da hesitação para Yves Bonnefoy, lugar onde é preciso tomar decisões a cada momento, nenhuma delas totalizadora. A imagem é, de certo modo, um desdobramento da primeira, também ela uma pedra, nesse trabalho continuado, repetido do artista sobre a mesma superfície, como numa evocando uma idéia de artesanato cara ao poeta francês. Ubac se tornaria o artista paysan para Yves Bonnefoy, camponês prudente, sóbrio, próximo da idéia ética de responsabilidade com os outros. Artista que trabalharia com limites, lento, e que, para cada tela, necessitaria elaborar um guache preparatório e um esboço. Com isso talvez se possa observar também nessas estrias ora a imagem de um campo arado, ora a sucessão horizontal de colinas, opondo ainda uma vez o rigor construtivo do signo com as aberturas horizontais, o grande “c” aberto, e a inscrição laboriosa repetida, primitiva. Nessa pedra que resiste ao esforço artístico, muitas vezes partida, como no “Torso” de 1965. Campo arado, para dizer também “lavoura” ou “lavra”, títulos de algumas obras de 30 L’Improbable, p. 58. 134 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Raoul Ubac, e que, de certo modo, acabam por conferir um caráter menos abstrato às imagens. Elas trazem, ademais, uma certa idéia de um renascimento, tempo do cultivo aberto ao futuro, como no vento levando o excesso de grãos do poema de Les Planches Courbes. Com Yves Bonnefoy, ele seria resposta ao campo devastado da guerra, talvez como vislumbrou em Giacometti: nesses dois artistas que saíram do surrealismo (Ubac interrompendo, desde então, a atividade de fotógrafo). Decisão positiva, como observaria o poeta em seu terceiro ensaio sobre o artista, através do símbolo da Vênus de Paestum enterrada e descoberta por um camponês. Como sugere Anja Pearre em La Présence de l’image: Yves Bonnefoy face à neuf artistes plastiques: Assim, as estrias banais adquirem aos olhos do poeta significações acumuladas. Como as ranhuras do arado no corpo da Vênus de Paestum, como os signos do escritor na página branca, essas cifras conseguem por algum momento encarnar a unidade da matéria e do Inteligível que sugere também a obra de Ubac31. Trata-se, além disso, de uma abertura no tempo, na duração. Se há uma melancolia para o viajante que vê nessas manchas impressas a sensação “mais humilde”, sensação descrita várias vezes em L’Arrière-pays: o ruído de uma colher de estanho, por exemplo, ou a visão de uma caixa enferrujada, é possível observar nelas também a idéia de aceitação (aceitação do trabalho), respondendo à dialética visada por Bonnefoy entre um lugar da imagem e a imagem como experiência da vida. Inscreve-se sob o signo da confiança, tão importante para a sua última poesia, desde Dans le leurre du seuil. Seria ele, ademais, o motivo que o afastaria do artista, com sua obsessão pelo negro, pelo obscuro, em contraste com uma poesia cada vez mais solar, mesmo diante da lembrança inquieta da casa natal: E depois se fez dia; e o sol Lançou suas mil flechas de todos os lados, No dormitório onde aqueles que dormiam A cabeça embalava ainda nas rendas Das almofadas de lã azul. Eu não dormia, Tinha demais a idade ainda da esperança, Dedicava minhas palavras às montanhas baixas, Que eu via aproximarem-se através dos vidros. (...) (Planches courbes, pp. 90-93) YVES BONNEFOY AND THE IMAGE, WITH A NOTE ABOUT RAOUL UBAC ABSTRACT: This essay aims to discuss the notion of “image” in Yves Bonnefoy’s work starting from the book L'Arrière-pays, published in 1972. The image, whose refusal and acceptance constitute part of the book’s intrigue, allows us to consider a dimension of time, referred here as “hesitation”, fundamental for the poet’s critical and literary production. It is a “suspension of time”, as stated by Yves Bonnefoy, suggested in the pictorial works “by its thickness of hesitations, ambiguities, contradictions”. Such hesitation would be produced in literary texts through the suggestion of moments of simultaneity, but also through images as the “threshold” or the “border”. They are images that would also be revealed as moments of a “attestation of itself”, whose ethical value he observed in artists as Raoul Ubac. KEYWORDS: Yves Bonnefoy. Raoul Ubac. Poetry. 31 Pearre, A. Op. Cit., p.126. 135 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 BIBLIOGRAFIA DE YVES BONNEFOY Poèmes: Anti-Platon (1947), Du Mouvement et de l’immobilité de Douve (1953), Hier régnant désert (1958), Pierre écrite (1965), Dans le leurre du seuil (1975), compilados por Mercure de France em 1978, reeditados em Poésie/Gallimard, 1982. L’Arrière-pays, Skira, 1972, Poésie/Gallimard, 1992, reeditado em 2003. Rue Traversière et autres récits en rêve, Poésie/Gallimard, 1992. (Reedição de Rue Traversière, Mercure de France, 1977, e de Récits en rêve, Mercure de France, 1987, que trazia à frente, sem ilustrações, o texto de L’Arrière-pays.) Les Planches courbes, Mercure de France, Poésie/Gallimard, 2001. Entretiens sur la poésie (1972-1990), compilado por Mercure de France, 1990 L’Improbable, suivi de Quatre Notes et de Un Rêve fait à Mantoue, Mercure de France, 1959, nouvelle édition corrigée et augmentée, Idées/Gallimard, 1980. Lieux et destins de l’image, un cours de poétique au Collège de France (1981-1993), Éditions du Seuil, 1999. 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Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O CASAMENTO DE TEXTO E IMAGEM NOS PRIMEIROS LIVROS DE WILLIAM BLAKE Enéias Farias TAVARES1 RESUMO: A obra de William Blake se encontra num lugar incomum na arte ocidental. O artista, não apenas pretendendo casar o humano e o divino, a infância e a vida adulta, a percepção física com a capacidade imaginativa, como toda a sua Filosofia dos Opostos demonstra, foi mais longe, conectando poesia e imagens pictóricas em suas iluminuras. Sua opção por uma forma de arte análoga – nem poesia nem pintura, mas poesia e pintura – mostrou-se uma escolha extremamente arriscada. Num período em que ilustradores de obras literárias eram considerados artistas menores – vide caso do francês Gustav Doré e do inglês John Gilbert –, Blake não ofertou apenas ilustrações de obras textuais já consagradas como também promoveu, em sua própria arte, um casamento entre poesia escrita e arte pictórica. Nesse trabalho, pretendemos problematizar a leitura que se tem feito da obra de Blake levando-se em conta apenas o texto e ignorando a importância de suas imagens, buscando assim a validação de uma interpretação mais completa da obra do poeta inglês. Palavras-Chave: William Blake. Pintura. Poesia. Relação Intermidiática Do ponto de vista biográfico, William Blake representa um caso curioso dentro do Romantismo inglês. William Blake nasceu no final de Novembro de 1757, em Londres. Ainda na infância, teve visões de deuses, anjos, demônios e antigos profetas bíblicos, como Ezequiel e Isaías. Crescendo numa paisagem rural, foi alfabetizado pelos próprios pais, numa época em que a educação formal infantil era um luxo pelo qual a família Blake não poderia pagar. Aos catorze anos, começou a trabalhar com o gravador James Basire. No mundo das artes plásticas, as principais influências de Blake foram Durer, Rafael e, em especial, Michelangelo. No mundo da literatura, Blake apreciava Shakespeare, Milton e Spencer. Nessa época, o poeta começou a se interessar por alguns textos sobre ocultismo e misticismo, em especial pelos escritos do alquimista Paracelso. Em 1782, se casou com Catherine Boucher, que seria sua principal ajudante na pintura e na confecção de suas obras. Após a morte do irmão Robert, Blake sonhou que ele aparecera numa visão para o ensinar a unir palavras e imagens numa mesma lâmina. Essa técnica seria conhecida mais tarde como “textos iluminados”, ou simplesmente “iluminuras”, arte usada por ele em todos os trabalhos posteriores à Songs of Innocence (1789). No ano seguinte, Blake e a esposa mudaram-se para o distrito de Lambeth, onde o poeta iria escrever, ilustrar, gravar, imprimir e pintar suas principais obras. French Revolution, The Marriage of Heaven and Hell, America: A prophecy, The Book of Urizen e Songs of Experience, entre outros trabalhos, foram compostos, impressos e vendidos na localidade. Em 1802, Blake retorna à Londres e dedica seu tempo e energia a projetos pessoais, como Milton e Jerusalém. Durante esse período, o poeta também aceitou encomendas de ilustrações para obras literárias do seu interesse como The Book of Job, Paradise Lost e Divine Comedy. Blake morreu em 1827, pobre e considerado um poeta menor, insano e exótico por parte de seus contemporâneos. A obra de Blake encontra-se num lugar incomum na historiografia da arte ocidental. O artista, não apenas pretendendo casar o humano e o divino, a infância e a vida adulta, a percepção física com a capacidade imaginativa, como toda a sua Filosofia dos Opostos 1 Doutorando da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria – Centro de Artes e Letras – Santa Maria – RS – Brasil – 97010-080 - [email protected]. 137 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 demonstra, foi mais longe, conectando sua poesia com as pinturas presentes em suas iluminuras. Sua própria opção por uma forma de arte análoga - nem poesia nem pintura, mas poesia e pintura - se mostrou, como o poeta já devia esperar, uma escolha extremamente arriscada. Num período em que ilustradores de obras literárias eram considerados artistas menores – vide caso do francês Gustav Doré e do inglês John Gilbert –, Blake não ofertou apenas ilustrações de obras textuais já consagradas como também promoveu, em sua própria arte, um casamento entre poesia escrita e arte pictórica. Nesse trabalho, pretendemos problematizar a leitura que se tem feito da obra de Blake levando-se em conta apenas o texto, na maioria dos casos se ignorando as imagens pintadas por ele. Esse problema de interpretação é problemático, sobretudo, em países que não publicam suas iluminuras, apenas os textos das laminas, caso brasileiro. Desse modo, essa pesquisa visa a validação de uma interpretação mais completa da obra do autor, poeta e pintor. *** A estrita relação, na arte de Blake, entre o verso lírico e as imagens das lâminas, relação que arriscamos chamar de indissociável, perpassa toda a obra do autor. Começando por seus trabalhos iniciais, There is no natural religion e All the religions are one, ainda que de uma forma rudimentar, percebemos como o autor intensificou as possibilidades interpretativas de sua obra ao apresentar, lado a lado, versos que ora complementam, ora intensificam, ora aludem, ora se opõe às imagens representadas na mesma lâmina. Como ilustraremos abaixo, essa arte dual inicia de forma pouco marcante nas primeiras obras, embora se adense nas obras posteriores, ou da fase madura de Blake, que começa com Songs of Innocence and Experience e The marriage of heaven and hell. Em sua primeira obra, The is no natural religion, o poeta afirma que apenas o Gênio Poético vê todas as coisas como elas são, infinitas. Todas as religiões derivariam então das diferentes percepções do Gênio Poético de diferentes nações. Se todos os Gênios eram iguais, todas as religiões seriam também iguais. Segundo Northrop Frye, no clássico estudo sobre a obra blakeana Fearful Symmetry, de 1948, a arte de Blake está centrada no princípio de que o mundo material provê uma linguagem universal de imagens e que cada imaginação humana fala essa linguagem com seu próprio sotaque. As religiões seriam então tentativas, fracassadas, de formular diferentes gramáticas para essa linguagem (1990, p. 28). Em All religions are one, obra seguinte, William Blake propõe que o homem só apreenderia a verdadeira existência física por meio de suas capacidades perceptivas, sempre limitadas. Segundo Harold Bloom, na edição comentada de The Poetry and Prose of William Blake, o poeta proporia que para ver o infinito em todas as coisas seria preciso ver com a visão divina. Apenas o Gênio Poético teria essa capacidade (1965, p. 807). Como se pode perceber, mesmo nessas primeiras obras, o jovem artista já problematizava a própria percepção material da existência em oposição a uma capacidade visionária de observar além da aparência físicas das coisas. Como tal temática, tão marcada nos princípios de cada obra conforme a interpretação de Frye e Bloom, se faria presente também nas ilustrações das iluminuras? Na última lâmina de There is no natural religion, temos o princípio “Se Deus se tornar como nós, também poderemos ser como ele”. Na lâmina anterior temos um corpo jogado no chão,como se estivesse morto. Já nessa última lâmina, que apontará para o contexto da próxima obra, temos a nítida imagem de um despertar, ou de uma ressurreição. Mesmo que não física, a percepção do divino no homem e do humano em deus significaria, para Blake, a 138 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 própria revelação apocalíptica que indicaria o caminho do homem para viver em sua completude. Na quinta lâmina de All the religions are one, temos o seguinte princípio: “Todos os homens são iguais na forma exterior. Do mesmo modo (e com a mesma infinita variedade) todos são iguais em seu gênio poético”. Nesse caso, a imagem parece não concordar com o conteúdo textual ao representar na parte de baixo, cordeiros pastando e, acima do texto, um casal olhando para o céu. Mas numa outra acepção, podemos observar que a imagem, aparentemente desconexa em relação ao texto, apenas intensifica o sentido dos versos ao supor que apenas quando deixarmos as preocupações terrestres e vislumbrarmos o eterno, o celestial, é que acessaremos o nosso particular gênio poético. Figura 01, William Blake, There is no natural religion, lâmina 11 Figura 02, William Blake, All the religions are one, lâmina 5 Em sua primeira obra com lâminas coloridas com aquarela, The book of Thel essa relação entre imagem e texto é ainda mais marcante. Dividido em quatro capítulos, o primeiro abre com Thel, uma jovem pastora que, inconformada com a existência terrena, pergunta à Natureza o sentido da vida. O Lírio responde a ela como o tempestuoso Javé do Livro de Jó, mas com um tom delicado e estimulante ao afirmar a perfeição da natureza em seu propósito predeterminado. O segundo canto trás a reposta da Nuvem, que argumenta que sendo o homem alimento de vermes, deve sentir júbilo por ser um componente importante do todo do universo. No terceiro, temos o verme em forma de criança deitada no lírio, incapaz de falar. A terra então fala por ela, dizendo que o universo inteiro alimenta o verme. Thel é então convidada a entrar no túmulo da terra. No quarto canto, dentro de suas profundezas, Thel vê o sofrimento dos mortos. Ela vê a própria cova e os questionamentos que ali estão. São espíritos que dissociados da carne e das percepções físicas, vivem em confusão. A cova então questiona Thel com os famosos versos: 139 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “Por que a Língua impregnada do mel trazido dos ventos? Por que os Ouvidos, ferozes para sugar citações? Por que as Narinas inalando terror, trêmulas, & atemorizadas? Por que um brando freio no vigoroso jovem ardente? Por que uma pequena cortina de carne no leito de nosso Desejo?” O poema termina com a jovem, incapaz de apreender tal conhecimento, fugindo da verdade, da experiência da observação real da existência. Como Bloom ressalta, Thel é o nome grego para Vontade ou Desejo, o que é irônico visto o sofrimento da personagem advir precisamente de sua falta. Tendo por mote o livro de Eclesiastes, capítulo 12, o poema antecede à criação e apresenta a escolha de Thel de nascer e morrer no ciclo vegetativo. Segundo o crítico, a ironia do poema é a voz do túmulo que fala da força dos quatro sentidos e da fraqueza do quinto, o desejo sexual (Ibiden, p. 808). Dessa forma, o poema terminaria, pelo menos se levarmos em conta apenas o texto, em uma cena de total desespero e fuga da realidade física, realidade que é representada no poema pelos sentidos físicos que possibilitariam a Thel acessar a verdadeira percepção da existência. O interessante nesse livro, é que todas as ilustrações de Blake, exceto a última, representam pictoricamente o que os versos narram. Por exemplo, quando Thel conversa com as nuvens, a ilustrações da lâmina quatro apresenta tanto um ser angelical masculino vestido de nuvens quanto o verme em forma infantil que repousa dentro do lírio. A princípio, essa mera ilustração do enredo narrado em versos tornaria a imagem ineficaz enquanto obra de arte autônoma, por estar meramente ilustrando o que já está elucidado nos versos. Entretanto, a ilustração da última lâmina quebra com essa lógica meramente representacional das ilustrações ao representar o que aparentemente nada tem a ver com o texto narrado. Como muito bem aponta Bentley Jr To Thel’s ears, to questioning reason, the voice from the pit is terrifying – but the last image of the book is of three naked babes riding a docile, harnessed serpent. Though Thel is terrified, the babes are not. Thel’s prying intellect cannot understand what is before her. Thel sees the world of spirits which is all around her, but she believes only in a temporal, perishing world. The intellectual text ends in terror, but the design concludes in harmony. (2003, p. 134). Como as palavras do biógrafo indicam, o aparente desespero da protagonista do poema contrasta com a imagem de real harmonia entre as três crianças montando o dorso da serpente. “O texto intelectual finda em terror, embora o design da lâmina conclui em harmonia”. Como mais tarde ficará claro, no contexto blakeano a serpente é sinônimo de conhecimento adquirido ou revelado. Assim, o que termina em desespero para Thel, nos versos do poema, deve significar conhecimento e revelação para o leitor, ao cotejar imagem e texto. Nesse sentido, a publicação um ano mais tarde de The Marriage of Heaven and Hell significaria a grande execução de Blake ao contrastar poesia e pintura, intensificando a percepção dos leitores e observadores por sua sobreposição de sentidos, nesse caso, os sentidos poéticos e pictóricos. 140 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Figura 03, William Blake, The book of Thel, lâmina 04 Figura 04, William Blake, The book of Thel, lâmina 06 Refletindo sobre as palavras de Goethe2 a respeito da necessidade de trevas para se haver luz e sobre a necessidade da luz para se haver trevas, Jean Starobinski alude à obra de Blake, na qual a principal proposição do poeta seria o casamento entre opostos, entre luz e trevas, entre céu e inferno. “Opposition is true friendship”, que de acordo com o crítico, deve ser o grande o aforismo da poesia e da arte pictórica da obra de Blake, toda ela construído sobre opostos. “Por toda parte se encontra a oposição (no interior mesmo do estilo de Blake, ela se torna a oposição implícita entre o simbolizante e o simbolizado), por toda parte reinam a tensão e a luta, mas o conflito se resolve nas grandes formas harmoniosas do círculo, do turbilhão, da espiral.” (1989, p. 115). Essa Filosofia dos Opostos seria posteriormente o próprio tema da obra mais conhecida do poeta, The Marriage of Heaven and Hell, que abre com os versos que definem essa visão antitética da realidade: 2 “Ao longo de sua viagem pela Itália, Goethe meditou sobre a luz e a cor. De volta a Weimar, ele experimenta. Sua primeira publicação sobre o assunto, Beiträge zur Optik, aparecerá em 1791. A idéia central, a que orienta toda a sua teoria, é a de que a cor resulta da polaridade da luz e da escuridão. O princípio da polaridade encontra-se no próprio olho, já que, nos efeitos de contraste sucessivo ou de contraste simultâneo ele produz a cor complementar àquela que lhe é imposta de fora. ‘É a eterna fórmula da vida que se exprime aqui. Ofereçase ao olho o escuro, ele exige a claridade; e exige a escuridão, se aproximamos dele o claro, e é desse modo que demonstra sua vitalidade, seu direito de aprender o objeto produzindo, por sua própria atividade, alguma coisa que é oposta ao objeto.’ Ora, esse princípio de polaridade, que liga a luz e as trevas, o sujeito e o objeto, estende-se ao universo moral: é o princípio mesmo do universo.” (Starobinski, 1989, p. 113). 141 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “Não há progresso sem Contrários. Atração e Repulsão, Razão e Energia, Amor e Ódio são necessários à existência Humana. Desses contrários emana o que o religioso denomina Bem & Mal. Bem é o passivo que obedece à Razão. Mal, o ativo emanando da Energia. Bem é Céu. Mal, Inferno.” Quando se trata de contrários, é impossível ser parcial, defende-se um dos lados da oposição mencionada. No caso de Blake, sua defesa recai sobre a energia, a oposição, o demoníaco. Embora, como Frye aponta, Blake não estabelece a centralidade de um em detrimento da de outro. Antes, o que ele concebe é o choque constante entre os opostos, choque que provoca o crescimento mútuo das duas entidades em conflito. Aqui temos o que os críticos irão denominar de Doutrina dos Contrários, ou de Filosofia dos Opostos, presente tanto na obra poética quanto pictórica do poeta. Tal doutrina é a cerne do título da obra que já propõe a união de duas instâncias completamente antitéticas, e também na própria ilustração da primeira lâmina, na qual um anjo e um demônio se abraçam e se beijam entre nuvens e chamas. A segunda lâmina do poema apresenta Rintrah, personagem criado por Blake para personificar a Ira. Para Bloom, Rintrah funciona como a aparição das personagens Luvah, em The Book of Thel, e Urizen, em Visions of the Daugheter of Albion, obras nas quais personagens simbólicos são rapidamente apresentados, mesmo antes de Blake estar completamente pronto para fazer uso deles. O que sugere que ele pode ter formulado grande parte de sua mitologia alguns anos antes de incorporá-la em sua poesia. Ainda na segunda lâmina, as menções textuais de figuras de oposição são bastante claras. Rosas e espinhos. Abelhas e charnecas estéreis. Entretanto, o que se destaca aqui é a relação completamente problemática entre o texto e a imagem da lâmina. Figura 05, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 01 Figura 06, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 02 142 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Um bom estudo sobre a relação imagem/texto nessa obra é o trabalho de dissertação de mestrado de Andrea Lima Alves, “‘Oposição é verdadeira Amizade’: imagem poética e pictórica no livro O Matrimônio do Céu e do Inferno de William Blake”, que se encontra na Biblioteca de Dissertações e Teses da Unicamp. Como Alves observa (2000, p. 63), a imagem opressiva do texto é quebrada pela forma idílica da ilustração, que parece recriar o momento em que a serpente entrega o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mau à primeira mulher. Reforça essa primeira interpretação a representação da serpente em forma feminina e com uma articulação corporal fisicamente impossível, bem ao gosto da principal influência artística de Blake, Michelangelo, que representa a serpente do mesmo modo num dos afrescos da Capela Sistina. Entretanto se observarmos com mais atenção, perceberemos que a mulher que apanha o fruto está vestida, tendo ao seu lado figuras angelicais que estão deitadas à esquerda da árvore. A mulher vestida remete a um período posterior ao pecado original, no qual homem e mulher estavam nus. Os anjos descansando também corroboram tal interpretação visto terem eles recebido a ordem de guardar o Jardim e estarem agora distantes de sua tarefa. Assim, passamos a relacionar a imagem da lâmina não mais com a Árvore do Conhecimento, mas com a segunda árvore descrita no Gênesis bíblico, a Árvore da Vida. Tais anjos guardiões, agora em nítido descanso, não mais protegem a árvore, tendo sido ela liberada aos homens. Desse modo, a lâmina não mais apresentaria uma imagem de queda ou perdição, e sim faria uma alusão a um apocalipse pessoal, a uma revelação espiritual que estaria prestes a se realizar, quando os homens teriam então a permissão de comer da Árvore da Vida. Como que ilustrando, previamente, a descrição da prancha 14, a imagem já funciona em oposição ao texto da própria lâmina. Sobre essa oposição dos sentidos dissonantes entre texto e imagem na poesia e na arte blakeana, Alves escreve: Aquele intuito da poética de Blake, de expandir a percepção mental de seus leitores – no qual um dos instrumentos é o embate, a batalha da relação entre texto e desenho, em seus livros ilustrados – faz com que as ilustrações não tenham uma relação direta com o texto da prancha que figuram (na maioria das vezes), mas várias ligações complexas com ele. Nós podemos relacionar essa imagem pictórica do “Argumento” com o texto da prancha 14, como dizíamos, assim como com a obra em sua totalidade, ilustrando a ‘realidade’ posterior ao apocalipse que ela prenuncia.” (2000, p. 65) Essa mesma expansão da “percepção mental de seus leitores” se dá no próprio gênero usado por Blake em Marriage, ao contrastar um típico estilo textual, provérbios de sabedoria e moderação, com conselhos que privilegiam exatamente o oposto, o excesso e o deleite da experiência humana. Também a paisagem infernal de Blake é completamente diferente, tanto em texto quanto em imagens, da que veríamos em Dante ou em Milton, ou como a própria tradição medieval imaginou. Diferente do que se esperaria de uma paisagem infernal os provérbios não fazem alusão a demônios, sofrimentos ou martírios. Além disso, o inferno blakeano não é um cenário desolado, em meio às chamas e aos tormentos medievais. Nos provérbios, as alusões são a vários aspectos de vida campesina, contendo apenas duas menções a construções urbanas. Do ponto de vista visual, Blake reforça ainda mais esse contraste. As imagens das lâminas são claras, em tons pastel, verde e azul claro. As poucas figuras nas margens e entre 143 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 as linhas do poema estão dançando, gesticulando, algumas copulando, em nítido sinal de prazer e contentamento. Apenas na última imagem, na prancha 10, temos uma quebra desse cenário idílico, com a presença do nosso narrador, o homem que desceu ao inferno e que anota os provérbios conforme lhe é narrado por um demônio. Também nessa ilustração o cenário muda, fazendo alusão a um aspecto mais soturno, no qual um tom avermelhado escuro faz pesar o horizonte. Temos um terceiro escrivão que observa o demônio, que desenrola o livro infernal, e que dita suas palavras ao primeiro escrivão, extremamente compenetrado com o seu oficio, como o Daniel da Sistina. Figura 07, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 05 Figura 08, William Blake, The marriage of heaven and hell, lâmina 10 Alves destaca que os críticos têm uma predileção por encarar o escrivão da esquerda como uma representação da criação artística por excelência e o da direita como um plagiador. Mas em oposição, ela também menciona que as duas figuras podem estar representando as duas artes articuladas por Blake em sua obra: a palavra e a imagem, na medida em que cada um dos escreventes ouve e vê o que futuramente representará. Portanto, como os exemplos indicam acima, a obra de William Blake está perpassada, desde os primeiros livros até a sua fase mais madura, pela relação precisa e extremamente profícua entre texto e imagem. Do ponto de vista dos estudos intermidiáticos, a interpretação da poesia Blakeana ao lado de sua arte pictórica, permite uma maior acepção artística e estilística de seu ofício. Sobretudo numa cultura visual como a nossa, a poesia de Blake surpreende pela vitalidade com que apresenta o seu eterno embate entre razão e emoção, entre inocência e experiência, entre palavra e imagem. 144 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 THE MARRIAGE OF TEXT AND IMAGE IN THE FIRST BOOKS OF WLLIAN BLAKE ABSTRACT: William Blake's work has an unusual place in Western art. The English artist, not only looking for to union the human and divine, the childhood and adulthood, the physical perception with the imaginative one, as its entire Philosophy of Contrasts demonstrates, connects poetry with pictures in his Illuminated Books. His own choice of a similar form of art – not poetry or painting, but poetry and painting – was a very risky choice. At a time when illustrators of literary texts were considered minor artists - see French Gustav Doré and English John Gilbert -, Blake not only offering textual illustrations of classical texts as well promoted in his own art, a marriage between poetry writing and pictorial art. In this paper, we will study the necessity of reading Blake’s art taking into account his text and his painted pictures in the validation of a more complete interpretation. KEYWORDS: William Blake. Painting. Poetry. Intermediatic relations REFERÊNCIAS ALVES, Andrea Lima. “Oposição é verdadeira Amizade”: imagem poética e pictórica no livro O Matrimônio do Céu e do Inferno de William Blake, São Paulo. 2001. 203f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. L&PM editores: Porto Alegre, 1989. BENTLEY JR., G. E. The Stranger from Paradise – A biography of William Blake. New Haven and London: Yale University Press, 2003. BLAKE, William. The poetry and prose of William Blake. David V. Erdman (editor) e Harold Bloom (commentary). New York: Doubleday & Company, 1965. FRYE, Northrop. Fearful Symmetry – A Study of William Blake. Princeton University Press: Princeton, 1990. GILLIHAM, D. G. William Blake. Cambridge: Cambridge University Press, 1973. PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. RAINE, Kathleen. William Blake. New York: National Book League, 1951. STAROBINSKI, Jean. 1789 – Os emblemas da razão. Companhia das Letras: São Paulo, 1989. 145 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 POESIA E PINTURA ABSTRATA: A MÚSICA DAS CORES Jacineide TRAVASSOS1 RESUMO: Neste artigo procuramos abordar a evolução da doutrina horaciana da Ut Pictura Poesis, o flerte entre as artes, privilegiando a relação entre o espaço e o tempo através de uma análise comparativa entre a poesia e a pintura abstrata. Ressaltamos as virtualidades das palavras e das cores, investigando a relação imagem-som e imagem-movimento. Concluímos, em nossa análise, que há uma homologia estrutural entre as artes em questão no tocante à espacialidade e temporalidade, sendo esta também uma categoria da música. Os instrumentos teóricos, que adotamos para empreender esse comparativismo, são referentes à crítica de orientação estética, literária e semiótica. PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Pintura. Estética. Semiótica da Cultura. Intersemiose. Introdução Sabemos que para investigar a relação entre linguagem e realidade na poesia e na pintura, temos que alargar o conceito de texto e entendê-lo semioticamente como discurso, processo que abarca todas as artes. O texto, no âmbito semiótico, é fenômeno translinguístico e Jean Molino (1989, p.25), como lingüista, também nos adverte que a base para a resolução da aporia, com respeito à necessidade de se instituir um modelo geral de texto, consiste em atribuir um sentido metafórico e heurístico à sua noção. Pergunta-se Molino: “O historiador de arte em frente a um quadro, o arqueólogo frente a um monumento, o geógrafo frente a uma paisagem, o sociólogo frente a um movimento social estão na mesma posição de um intérprete junto a um texto?” (MOLINO, 1989, p.26). Molino diz ainda que poderíamos, como boa medida, acrescentar que o físico está diante da natureza como diante de um livro escrito, segundo a fórmula de Galileu, em signos matemáticos. Antes de Jean Molino, Iuri Lotman (1996, p. 149) - no início do século XX - ressaltou o talento poliédrico de Lomonossóv, um dos fundadores da semiótica da Cultura, para quem “o elo que une domínios diferentes da vida no planeta é a linguagem” (MACHADO, 2003, p. 24). Segundo Irene Machado (2003), a semiótica da cultura funda, com base no legado de Lomonossóv, o moderno conceito de texto como um novo domínio de idéias científicas onde operam as mais radicais formas de semioses. Os semioticistas russos defendem a concepção do texto como unidade básica da cultura, e não do sistema lingüístico. Nesse sentido, uma dança, uma cerimônia, uma obra de arte e muitos outros produtos e manifestações culturais são considerados texto. Os teóricos que tratam da intersemiose lançam luz sobre as mesmas questões abordadas por Molino. Julio Plaza (1987), autor d’A Tradução Intersemiótica, aponta Jakobson como o primeiro a discriminar os tipos de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica. Esta última que nos interessa particularmente, também denominada transmutação, foi por ele definida como aquela que consiste na interpretação dos signos não 1 Universo - Universidade Salgado de Oliveira - Pós-graduação em Literatura Brasileira e Arte –Recife – PE Brasil - CEP: 51150-001. E-mail: [email protected]. 146 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses. Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 verbais, ou de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema, a pintura e vice-versa. Diz Dominique Maingueneau que: a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários discursos [...]. A prática discursiva se define pela unidade de um conjunto de enunciados, e também é uma prática intersemiótica que integra produções na dependência de outros domínios semióticos (pictural, musical, etc.). ( MAINGUENAU, 1984, p.1-13) Etienne Souriau (1983, p.11-13), em seu livro intitulado A Correspondência das Artes – Elementos de Estética Comparada, partindo de um aforismo de Victor Hugo: “O vento são todos os ventos” cria a paráfrase: “A arte são todas as artes”. Porém, Souriau afirma que a pesquisa, neste domínio, só será interessante se banir e interdisser severamente as metáforas imprecisas, as analogias confusas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem de outra. A respeito desta mesma questão, diz-nos Karel Boullart, professor da Universidade de Gand: As intuições mais corriqueiras a respeito das ‘correspondências’ das artes tendem, em sua maioria, a cair na metáfora. Diz-nos que existem sonetos esculpidos e romances de composição arquitetônica, mas um soneto não é uma escultura e um romance não é uma catedral. Mesmo um poema manifestamente composto, segundo o princípio ‘música antes de mais nada’ (Verlaine) não é música propriamente dita: é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um poema. (BOULLART, 1987, p.72) Acreditamos que Molino, Lomonossóv, I. Lótman, Julio Plaza, Jakobson, Maingueneau, Etiene Souriau e Boullart, implodem o paradigma tradicional do texto legando o critério de textualidade e leitura, não só ao literário, mas também ao vasto domínio das várias linguagens e sistemas de significação. Os teóricos que citamos enfatizam bastante o fato de existir, em cada modalidade textual, qualias diferentes que alteram o seu modo de significar. Daí a necessidade de nos afastarmos das metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, mas conservam sua materialidade artística própria. Em nossa investigação, afirmamos uma correspondência entre a poesia e a pintura, cientes de que há uma identidade de estruturas em uma variedade de meios. A intersemiose, o diálogo entre as artes, seja música, pintura ou cinema etc., jamais trata-se de um anseio eminentemente da arte contemporânea. Muitos o quiseram: Os gregos, Diderot (em carta endereçada a Abbé Batteaux escreveu: “Comparar as belezas de um poeta com as de outro poeta é coisa que já se fez milhares de vezes. Mas congregar as belezas comuns da poesia, da pintura e da música (…) eis o que resta fazer e o que vos aconselho a acrescentar ao vosso Beaux-Arts réduit à un même principe.” 2 os poetas franceses, sobretudo Baudelaire (Les Parfums, les couleurs et les sons se répondent), Rimbaud em Voyelles (A noir, E blanc…), Verlaine (De la musique avant toute chose) e J. K. Huysmans (com seu personagem Des Esseintes), que alegoriza a própria estética no seu romance simbolista A Rebours. Outro exemplo dessa interatividade está em Scriabin n’O Poema do Êxtase (interdiscursividade entre dança, música, cores, perfumes), lembramos ainda o ideário de uma completa fusão entre escultura abstrata e tecnologia de construção expresso por J. J. P. Oud e retomado na arquitetura por Walter Gropius e Le Corbusier. No âmbito das correspondências, 2 DIDEROT apud ASSEZAT, J et TOURNEUX, M (1875). Ouvres Complèts de Diderot. Paris, Garnier. 147 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 sincronização dos sentidos e signos poderíamos citar exaustivamente, se é que já não o fizemos. Ut pictura poesis Como vimos, a noção de parentesco entre as diversas linguagens artísticas constitui um topos revisitado e remineralizado ao longo dos séculos, independente da qualia artística de quem o realiza. A relação texto/tela, também não é uma prática recente, embora pouco explorada ainda nos estudos contemporâneos. Jean Hagstrum (1958) em The Sister Arts of Literary Pictorialism and English Poetry from Dryden to Gray, embora atenha-se à tradição inglesa, retraça a história da interrelação entre a pintura e a poesia partindo de suas origens. Segundo Hagstrum dois nomes apresentam-se como basilares nesta intersemiose: Horácio e Simonides de Cós. Horácio, que criou a expressão Ut Pictura Poesis em sua Ars Poetica, (anos 14 e 15 A.C.) postula: “Ut Pictura Poesis: erit quae, si propius stes, te capiat magis, et quaedam, si longius abstes; hace amat obscurum, volet hacc sub luce videri, iudicis argutum quae non formidat acumen.”( HORÁCIO, 1989, p.73)3 A teoria implícita no axioma horaciano orientou, por séculos, o caminho por onde havia de trilhar as discussões sobre as artes, mantidas sob a custódia das relações entre as representações imagéticas (pintura) e retóricas (poesia) fundadas sob a distinção valorativa: signos naturais e signos artificiais, respectivamente. Como salienta João Alexandre Barbosa (1994, p.11), esta concepção dominou, sobretudo, os períodos clássico e romântico na história da arte e da literatura. As comparações entre poesia e pintura eram mote perpétuo. Plutarco atribui a Simonides de Cós a formulação de que “a pintura é poesia muda e a poesia é uma pintura falante.” Baumgarten adverte que “é próprio da pintura representar o que é composto; e este procedimento é um procedimento poético.” (BAUMGARTEN, 1993, p.26) Gotthold Efrain Lessing (1998) é apontado pelos historiadores da arte como o melhor leitor de Horácio em sua época, pois, na verdade, Lessing o releu dando um grande passo adiante de suas teorias. O seu tratado sobre as artes literárias e pictóricas data de 1766, foi publicado sob o título de Laokoon, ou Os Limites da Pintura e da Poesia. Suas indagações a respeito das artes são apresentadas a partir do famoso conjunto escultórico Laokoon, que representava o sacerdote troiano homônimo e seus dois filhos no momento de suas mortes, sob os encalços de duas serpentes que os enroscam e os mordem. Uma das versões sobre o fato narra que tal castigo deveu-se ao fato de Laokoon haver tocado os preceitos de Apolo. A obra é atribuída ao escritor grego Alexandre de Rodes em co-autoria dos filhos Atenodoro e Apolidoro. Laokoon, aponta Aguinaldo Gonçalves (1994, p.31) em seu Laokoon Revisitado. Relações Homológicas Entre Imagem e Texto, pode ser definido como a “conjunção de várias tendências que se unem para um único propósito”, ou seja, criticar o arqueólogo Johann Joachim Winckelmann em suas Reflexões Sobre a Imitação das Obras Gregas na Pintura e 3 HORÁCIO (1989). “Arte Poética”. In: Crítica e Teoria Literária na Antiguidade. Rio de Janeiro, Ediouro, p.73, tradução de David Jardim Júnior: Um poema é como um quadro: quanto mais perto estiverdes dele, mais vos impressionará, mas deveis ficar a uma boa distância; esse precisa de um canto bastante escuro, mas aquele necessita de luz plena, e resistirá ao cuidado exame do crítico de arte; esse só vos agradará a primeira vez em que for visto, mas aquele vos deleitará tantas vezes quanto seja olhado. 148 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 na Escultura (Gedanken Über die Nachahmung der Grie Chischen Werker der Malerei und Bildhaverkunst, 1755). Podemos inferir, pela sua linha de abordagem, que Winckelmann também se baseia na Arte Poética de Horácio, assim como no Tratado Sobre o Sublime de Longino, privilegiando a obra escultórica como base de seus estudos. Porém seus argumentos revelam frágeis noções e impressionismos sobre a literatura e as artes visuais, sobretudo quando compara o Laokoon com a Eneida de Virgílio e o Filoctetes, de Sófocles. De modo contrário porta-se Lessin (1998, p.145) posto que desloca o comparatismo entre a pintura e a poesia do campo movediço da dicotomia: signos naturais vs. signos artificiais para a questão do espaço e do tempo. Lessing possibilitou-nos pensar as artes pictóricas e poéticas a partir do uso diferenciado de seus meios de expressão: pintura (mímese do visível, dos corpos), poesia (mímese das ações). Enfim, Lessing estabeleceu a pintura como a arte do espaço, por excelência, e a poesia arte do tempo. Embora estas noções representassem um avanço para a época (daí a nossa obrigação de revisitá-las), hoje tornou-se inconcebível tal distinção, seja no campo da física, como bem nos demonstra Einstein, seja no campo das artes, à luz das diversas correntes da filosofia, citamos a Poética do Espaço de Gaston Bachelard como exemplo e, sobretudo sob o prisma da semiótica. Mukarovsky (1990, p.81) critica Lessing por pensar que as artes são limitadas pelo caráter de seus materiais e por acreditar que os artistas não devem tentar ultrapassar os limites impostos por eles. Deste modo, considera que sua idéia base, hoje, encontra-se ultrapassada. A. Gonçalves, ao revisar o Laokoon, credita razão aos argumentos de Mukarovsky. Diz que “se aproximarmos a câmara às conquistas da pintura e da poesia anteriores ao romantismo, notaremos que já para aquela época tal idéia não procedia.” (GONÇALVES, 1994, p.32). Adverte que, da maneira como Lessing conjecturou a respeito da poesia e da pintura, os signos assumem, em sua teoria, um alto grau de superficialidade; são postos apenas quanto imitadores de corpos e ações. Sabemos que as artes não seguem este caminho ao correr dos tempos. Diz Northop Frye que há um grau de razoabilidade incontestável que fale-se do ritmo “quando se desenvolve no tempo, e desenho, quando se distribui no espaço” (FRYE, 1993, p.81). Mas salienta que: [...] todas as artes possuem um aspecto temporal e um espacial, embora estas categorias se desenvolvam de acordo com as possibilidades materiais de cada arte e seu modo de estruturação. Referindo-se à literatura, especificamente, ressalta que as obras literárias também se movem no tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura. (FRYE, 1993, p.81) A Ut Pictura Poesis é comum a muitas épocas. Segundo Mario Praz, em seu texto Literatura e Artes Visuais, “desde os tempos remotos tem havido mútua compreensão e correspondência entre a pintura e a poesia”. (PRAZ, 1982, p.2) Diz-nos que idéias foram expressas por meio de pinturas, não só nos hieróglifos egípcios, como através de uma “longa e assaz copiosa” tradição simbólica, parte da qual foi brilhantemente evocada por Edgar Wind (1958), em seu livro acerca dos mistérios pagãos da Renascença (Pagan Misteries in the Renaissance). No Renascimento, a relação poesia/pintura parecia inevitável, a exemplo do pintor Botticelli e dos poetas Policiano e Ficino, que compunham influenciando-se mutuamente. Muitos poetas, como Ariosto e Aretino, valeram-se de técnicas pictóricas para escrever. Pintores, tais como os simbolistas Gustave Moreau, Rodolph Bresdin, Odilon Redon, o 149 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 expressionista Munch, entre muitos outros, extraíram idéias e imagens dos escritos de poetas e romancistas. Mas, em se tratando de um estudo intersemiótico, devemos afastar-nos das metáforas e analogias imprecisas, cientes que as artes dialogam entre si, porém conservam sua materialidade de linguagem e artística. Poesia e pintura abstrata Vimos que, dentro do enfoque da teoria de Lessing, com base na teoria clássica da mímese, o espaço é o lugar ocupado pelos corpos, pelos elementos estruturais da pintura: ponto, linha, superfície e volume. De acordo com a semiótica, lembramos que o espaço deixa de ser simplesmente um lugar ocupado pelas coisas e ganha força de linguagem. Devemos revisitar a importantíssima teoria de Lessing, mas não podemos aceitar, ao modo de Mukarovsky, Frye e A. Gonçalves, no domínio das artes, a separação rígida das categorias de espaço e tempo. Bem sabemos que a poesia, a literatura, é imagem-som. Assim, temos uma só dimensão espácio-temporal na poesia de Ungaretti: ROSA EM CHAMAS sobre um oceano de campainhas subitamente flutua outra manhã (UNGARETTI, 2003, p.153)4 Vejamos outro exemplo em Guilherme de Almeida: INFÂNCIA Um gosto de amora comida com sol. A vida chamava-se "Agora” (ALMEIDA, 2004, p.26) Em Ungaretti a Imagem “oceano de campainhas” é indicadora de uma grande hiperestesia, pois a água torna-se metaforicamente sonora, ao passo que indica também passagem de tempo: “flutua outra manhã”. No haicai de Guilherme de Almeida, igualmente hiperestésico, a “amora e o sol”, degustados em simultâneo, instauram o movimento do tempo, a captação do instante passado no tempo presente, como bem indica a expressão “chamava-se ‘Agora’”. Guilherme de Almeida tenta captar, pintar ou fotografar o instante da infância passada, ao modo de uma recordação lírica, como a concebeu Emil Staiger (1975, p. 59-60): fusão do passado com o presente e fusão do eu com o outro. Do mesmo modo, em homologia estrutural com a poesia, dá-se com a pintura abstrata. Sendo o ponto índice de uma linha e formador dinâmico de outras figuras na tela, como demonstra-nos Kandinsky, admitimos, também, uma temporalidade na realização da dinâmica interna do quadro: 4 Texto original. ROSE IN FIAME : Su un oceano/ Dis scampanelli/ Repetina/ Un lattra matina 150 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 (Fig.1. Kandisnky, Improvisação Sonhadora)5 Ao estudar semioticamente a tela Improvisação Sonhadora, de Kandisnsky, diz Walda Leite que “o objeto é percebido, não como parte do espaço, mas por sua continuidade”. (LEITE, 1985, p.20) Adverte, ainda, que, desta maneira, o objeto passa a ser signo, pois mantém uma profunda dialética com o tempo, que, no caso, “é criado pela repetição de traços que espacializam a diacronia do movimento”. (LEITE, 1985, p.21) Lembramos também que o elemento temporal pode ser reconhecido através da dimensão longitudinal dos elementos estruturadores do quadro. Leiamos um trecho de O cão Sem Plumas (Paisagem do Capibaribe) de João Cabral de Melo Neto: A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada. O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão Aquele rio era como um cão sem plumas. nada sabia da chuva azul, da fonte cor de rosa, da água do copo de água, da água de cântaro dos peixes de água, 5 1915,óleo sobre tela, pode ser visto em Munique no Staatsgalerie moderner Kunts. 151 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 da brisa na água [...] Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes jamais se abre em peixes. Abre-se em flores pobres e negras como negros. abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros. abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro [...] (MELO NETO, 1994, p.105-106) Cabral, como assinala Secchin (1985, p.77), vai gradualmente combatendo o caráter impositivo da metáfora em um processo contínuo de remineralização da palavra, propõe a imagem do cão como rio, depois atribui ao cão e ao rio o que é próprio de um pano sujo e do pássaro: “plumas”. A ideia de temporalidade já se manifesta no elemento “rio” que se muta e simbiotiza-se, por alusão, com os elementos da paisagem por onde passa. A fanopeia é evidenciada na gradação de cores do poema: azul, cor de rosa e negro. As cores suaves, azulrosa, são signos de uma amenidade que o rio Capibaribe não conhece. Domina o grito social da paisagem de um homem-anfíbio que vive na miséria. A cor que evidencia esse elemento é o negro, esta assinala a vida de lama do homem na lama. O rio-ser-paisagem instaura o sublime negativo. O Cão Sem Plumas assinala o caráter impermanente e mutável do tempo, do sentido das palavras e de todas as coisas, o “rio” não é o solista dessa música das palavras, mas se funde com o ser, com elementos vegetais, minerais e da cultura, antes aparece como um substantivo-caleidoscópico que se repete dando ritmo, sonoridade, instaurando um poemajazz, onde tudo está em tudo. Essa repetição também assinala o poeta não só como um ser engajado, mas como trabalhador das palavras. Podemos dizer, ao modo de Haroldo de Campos, que Cabral é um geômetra engajado. Contemplemos Mondrian: 152 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 (Fig.2. Mondrian, Broadway Boogie-Woogie)6 Segundo Meyer Shapiro (2001, p.73-84), Mondrian, na tela em questão, caminha em direção à nova tendência voltada para a simetria, clareza e a legibilidade de uma arte que se materializa no questionamento e recombinação da sua própria matéria: cores primárias branco, azul, vermelho e amarelo - linhas verticais e horizontais, enfim, ao abstrato, à “pintura pura”, ao neoplasticismo. A relação dessa tela com o abstrato e com a música é evidente, as unidades, verticais e horizontais, de cada conjunto de cores foram meticulosamente recombinadas e embaralhadas, ao modo da palavra “rio” no Cão Sem Plumas de João Cabral de Melo Neto, permanecem o geometrismo das figuras oblongas e quadradas mas sempre caleidoscopicamente recombinadas de modo a instaurar, simultaneamente, ordem e movimento. Vale ressaltar que o uso dos arranjos de cores primárias, na sua fase neoplasticista, estabelece ainda uma ligação com a sua fase neo-impressionista. Ressalto que ao criar suas telas de modo abstrato, Mondrian, como Cabral, não abdica do seu grito social, pois jamais recusa a realidade mas a aparência da realidade. Desse modo, exorta seu espectador a olhar a vida e a tela criticamente, mais uma vez trata-se de um geometrismo engajado O título da tela, Broadway Boogie-Woogie, já insinua um diálogo com a música e a dança, enfim com as categorias do movimento e da temporalidade. Como assinala Meyer Shapiro “[...] mesmo sem sabê-lo, provavelmente pensaríamos em música ao olhar esta tela maravilhosamente viva, colorida e repleta de jazz.” (SHAPIRO, 2001, p.79) Não esqueçamos também que a poesia é a dança das palavras, expressão do pensamento por imagem-som. Conclusão Como atestam os teóricos da literatura, à época do seu surgimento, no século XIX, a literatura comparada que era concebida como subsidiária da historiografia literária punha em relação apenas duas literaturas diferentes e preocupava-se, sobretudo, com a migração de um elemento literário de um campo a outro, ou seja, com as influências que exercia uma literatura 6 Mondrian: Broadway Boogie-Woogie, 1942-43. Coleção, TheMuseum of Modern Art, Nova York. Doação anônima. 153 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 nacional sobre outra. O comparatismo literário mantinha-se, desta forma, sob uma forte base de valor axiológico e resultava em um dado ecumênico falho. Visto que, como assinalou P. Brunel (1990, p.2), Pichois e Rosseau, “a reivindicação nacionalista é condenável pois sendo política, é freqüentemente acompanhada de pretensões a superioridades étnicas.” De início o comparatista prestou-se a julgar a originalidade de cada literatura. No século XX, o conceito de originalidade foi intensamente refutado por teóricos como Tinianov, Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva, entre outros, sendo substituído pela noção de intertextualidade. Sabendo-se, hoje, que a literatura nasce da literatura e que esta trata-se de um único palimpsesto raspado e reescrito sem cessar ao longo dos tempos, a literatura comparada ampliou seu método de abordagem e comprova que a obra literária produz-se em um constante diálogo de textos, por retomadas e trocas. Deste modo, supera a função, a priori, niveladora e internacionalista, convertendo-se em uma disciplina que põe em relação diferentes áreas das ciências e das artes, expandindo-se no vasto domínio das relações intersemióticas. Como chama-nos a atenção Jean Molino, Maingueneau, Boullart, entre outros teóricos que citamos, temos que alargar o conceito de texto, para além de suas propriedades puramente linguísticas, sistematizá-lo enquanto fenômeno traslingüístico, se pretendemos realizar uma exegese eficaz da relação entre as artes. A interdisciplinaridade, no que se reporta ao comparatismo, não é novidade no campo das relações interartísticas – se lembrarmos o já citado estudo de G. E. Lessing com o seu Laokoon, ou os Limites da pintura e da poesia (1766) já tão distante de nós – mas as relações mútuas entre as artes têm sofrido muitas restrições. Há ainda resistências em admitir-se que a comparação dá-se, também, no ultrapassar as similaridades, que o comparatismo pode operarse pelo confronto de elementos, por vezes mesmo, díspares. Tais questões não estão suficientemente avançadas no estado atual dos estudos em pauta e inúmeras pesquisas ainda estão por fazer. O estudo da literatura comparada alcança, atualmente, o terreno das artes que constituem, por si, partes de uma totalidade: a Estética. O comparatista sem deixar de ter a literatura como principal objeto de investigação, deve interrogá-la, entendendo-a não como um sistema fechado em si mesmo, mas na sua implicação com outros códigos, sejam eles picturais, musicais, cinematográficos etc. No estudo da representação literária calcado na abordagem intersemiótica – como o que empreendemos através das poesias e telas abstratas que estudamos – a pesquisa é interessante se banir e transcender, como nos disse Souriau, as metáforas imprecisas que são evocadas ao se transpor arbitrariamente para uma arte a linguagem da outra. É preciso estarmos atentos ao fato de que pode haver similaridade entre a tradução de uma idéia artística em literatura, pintura, música, cinema, etc, mas cada linguagem traz consigo recursos peculiares e trata o assunto de modo específico. As várias artes possuem cada qual seu código artístico, sua evolução individual, de ritmo diferente. Daí a riqueza da comparação entre elas. Temos que ser rigorosos metodologicamente, se objetivamos consistência em um campo que, a princípio, parece ser vago e de difícil acesso. Com base nas análises que fizemos, inferimos que há uma conjunção retórica entre a poesia e a pintura abstrata. Ambas se valem da imagem para instaurar a espacialidade. Afirmamos ainda que o texto poético, através da sequencialidade e da recordação lírica, dialoga com a categoria temporal. A pintura abstrata instaura o tempo por meio do movimento das formas e cores. Fica evidente que as artes em questão, ao agenciarem a temporalidade, assumem um parentesco também com a música. Enfim, poesia é sobretudo imagem-som e pintura abstrata imagem-movimento, ambas música das cores. 154 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 POETRY AND ABSTRACT PAINTING: THE MUSIC OF COLOURS ABSTRACT: In this article we address the evolution of the Horatian doctrine of Ut Pictura Poesis, the flirtation between the arts, focusing on the relationship between space and time through a comparative analysis between poetry and abstract painting. We emphasize the virtues of words and colours, investigating the image-sound and image-movement relation. In conclusion, in our analysis, there is a structural homology between poetry and abstract painting in relation to the spatiality and temporality, which is also a category of music. The theoretical tools we apply to undertake comparative studies are critical guidance regarding aesthetics, literature and semiotics. KEYWORDS: Poetry. Painting. Aesthetics. Semiotics of Culture. Intersemiosis. 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Guavira no11 A POÉTICA DO ESPETÁCULO Suilei Monteiro GIAVARA1 Ana Maria Domingues de OLIVEIRA2 RESUMO: A leitura dos quatro livros de sonetos da poetisa Florbela Espanca (1894 -1930) - Livro de Mágoas (1919), Livro de Sóror Saudade (1923), Charneca em Flor (1931) e Reliquiae (1931) – evidencia a expressividade dramática que ela lhes imprimiu, criando um estilo “derramado” que comove o leitor, bem como uma ambientação propícia à utilização de máscaras poéticas, característica que pode ser vista como dramática. Para tanto, ela usa como recurso poético algumas figuras retóricas, responsáveis pelo referido estilo de sua poética. O embasamento teórico deste trabalho pautou-se em alguns teóricos sobre a lírica e o drama, bem como em alguns estudiosos da Retórica Antiga - como Marcus Fabio Quintiliano e Aristóteles – e em estudos modernos sobre Estilística Literária. Palavras-chave: Florbela Espanca. Retórica. Figuras de Estilo. Máscaras Poéticas. O drama e o dramático De acordo com Aristóteles, o drama é uma poesia feita para ser representada, no entanto tal representação só será dramática se apresentar personagens e ações tensos. Por isso, com o passar do tempo, tal característica – a tensão – fez com que o termo drama passasse a ser usado para caracterizar obras que apresentassem uma situação de crise, incerta, independentemente se destinadas ao palco ou não. Wolfgang Kayser retoma o significado original do termo, afirmando que o drama se constitui sempre que houver personagens envolvidos numa situação comunicativa na qual é desenvolvida uma ação num espaço determinado, referindo-se especificamente à encenação de um fato. Por sua vez, a noção de dramático, “como uma atitude interna e verdadeira essência do mundo poético”, (KAYSER, 1968. p. 274. v.1) é uma forma de apresentar um caráter do pensamento, ou seja, é uma mundividência, um modo de ver o universo. Emil Staiger, por sua vez, acredita que a definição original do termo decorre das peculiaridades desse tipo de texto, por isso assegura que nem toda produção dramática deve ser assim denominada porque é passível de adaptação para o palco, mas, ao contrário disso, é o “espírito dramático”, enquanto concepção de mundo, que contém a raiz desse gênero. Para ele, “o palco foi, realmente, criado segundo o espírito da obra dramática”. (STAIGER, 1997, p. 120) De acordo ainda com este último teórico, uma das características responsáveis pelo “estilo de tensão” do drama é o pathos, traduzido do grego como paixão. Tal característica, já apreciada por Aristóteles como um eficiente meio de conduzir o ânimo dos juízes, relaciona-se com a representação ou o despertar das emoções humanas através de um discurso ou de uma obra poética. Staiger afirma que os gregos relacionavam o pathos com as “paixões humanas”, responsabilizando-o, portanto, pelo estilo de expressão vincada na exaltação emocional. 1 Doutoranda - UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras - Departamento de Literatura – Assis – SP – Brasil - 38304.064 – [email protected]. 2 UNESP, Departamento de Literatura. Assis, SP, Brasil. – [email protected] 157 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Assim, os mesmos gregos não diferenciavam o estilo patético do lírico, pois tanto um quanto o outro têm o seu foco centrado na demonstração dos sentimentos humanos. Segundo Staiger, “o pathos foi assim, não raras vezes considerado como gênero lírico, até certo ponto com razão, pois que o patético e o lírico transformam-se, com freqüência, um no outro [...]” (STAIGER, 1997, p. 121) O pathos, de acordo com Northrop Frye, “mantém estreita relação com o reflexo sensitivo das lágrimas” e quando é “altamente enunciado é capaz de tornar-se um apelo faccioso para a auto-comiseração ou a fala convulsa de pranto” (FRYE, 1973, p. 44-45) – característica que se harmoniza perfeitamente com a expressão patética dos sonetos florbelianos. Os estudiosos aqui citados empregaram a noção de pathos para caracterizar o estilo dramático, entretanto Aristóteles, em Arte Retórica e Arte Poética, e Marco Fábio Quintiliano, em Instituições Oratórias, descrevem esse conceito como um excelente operador argumentativo na tarefa de “comover” os juízes e o público, usando-o inclusive como prova numa determinada causa. A Retórica e o patético Marco Fábio Quintiliano diz que o orador dispõe de três maneiras para exercer a persuasão: através do convencimento da mente por meio de provas ou argumentos lógicos e racionais; ou por meio do apelo à afetividade ou ainda pela sedução do ouvinte pela beleza do estilo. Ressalta, todavia, que os argumentos usados para comover o coração, denominados “psicológicos”, possuem uma força maior por manipularem diretamente a emoção do público ou dos juízes, pois objetivam despertar sentimentos favoráveis dos ouvintes. Assim, esses argumentos, decorrentes da manipulação psicológica exercida pelos oradores sobre o público que os assiste, possuem uma força persuasiva muito maior, pois “saber arrebatar os Juízes; dar-lhes a disposição de Espírito que se quer; acendê-los em cólera, ou enternecê-los até ao ponto de chorarem, isto é muito mais raro”. (QUINTILIANO, v. 1, p. 324) Afirma o retor ainda que esse tipo de argumento, tirado pelo orador “do seu fundo”, constitui um meio poderoso de “mover os ânimos dos juízes, de lhes fazermos tomar a forma e o hábito que quisermos, e de os transformar, [...]”.(QUINTILIANO, v. 1, p. 323) Para ele, o grau de persuasão desse tipo de argumento é tão forte que instiga os juízes a crer no que o orador diz mesmo sem provas e, mais do que isso, leva-os a julgar a causa como se fosse sua. Quintiliano diz ainda que, para mover os afetos nos outros, o orador deve fazer uso de um artifício denominado “representação interior”, que consiste na recriação fantasiosa de coisas ausentes como se estivéssemos a vê-las de fato, ou seja, o orador imagina uma cena em detalhes e, com esse artifício, comove-se primeiro e somente depois transporta a sua emoção para o discurso, tornando-o mais convincente; assim, com os sentidos perturbados e as idéias confundidas, o “juiz ocupado da paixão perde todo o modo de indagar a verdade, é levado da torrente do discurso, e obedece à corrente impetuosa da Eloqüência”. (QUINTILIANO, v. 1, p. 323) Entendemos que tal recurso, usado como manifestação poética, busca traduzir o dinamismo do mundo através de uma linguagem altamente expressiva que estabelece analogias e cria imagens a partir de sua potencialidade sensorial. Diante do que podemos afirmar que a poesia de Florbela Espanca é um dos exemplos mais notáveis 158 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 dessa capacidade sensitiva, revelada através de um estilo ”derramado”, cujas figuras retóricas asseguram a composição de um discurso romanticamente expressivo, além de conferir à sua obra uma dramaticidade bastante evidente. Uma expressão dramática Antonio Candido concorda com a idéia de que a linguagem figurada é uma “inclinação” natural dos seres humanos e não apenas um “enfeite” da expressão, conforme afirmavam os retores. É fato que recorremos às figuras no falar cotidiano, pois, freqüentemente, necessitamos da comparação para esclarecer melhor uma idéia que tenha ficado obscura. No entanto, Candido ressalva que é necessário distinguir a “linguagem figurada espontânea” da “linguagem figurada elaborada”, pois é esta segunda modalidade que faz da poesia um tipo de expressão afastada do uso banal que fazemos da língua. As figuras retóricas são importantes recursos estéticos que contribuem para dar mais expressividade ao texto e, especificamente na poesia de Florbela Espanca, são as responsáveis por sua disposição para o dramático que é a marca registrada do estilo florbeliano. Figuras retóricas dos sonetos florbelianos A) Pintura A Pintura, segundo Quintiliano, é um ornato que permite representar um “objeto” com palavras e, desse modo, materializá-lo diante do auditório. Ainda segundo o mesmo autor, tal figura é importante porque “um discurso, que não passa do ouvido, [...] não faz tanta impressão, nem se apodera plenamente dos corações, como o que pinta os objetos e os põe presentes aos olhos do espírito.” QUINTILIANO, v. 01, p. 656. (grifo nosso) Antonio Candido considera a possibilidade de “representar” a realidade através das palavras o cerne do processo poético. É o que ele denomina de “sugestão sensorial”, processo através do qual “elementos abstratos” ganham legitimidade “quando parecem transpostos para o mundo das formas, ou quando vêm amparados em imagens e seqüências que denotam a força sensorial”. (CANDIDO, 2004, p. 107). No soneto “Último sonho de ‘Sóror Saudade’”, (p.292)3 a seqüência narrativa, percebida não só pelos verbos no pretérito – abriu, despiu, olhou, entrou, rezou – mas também pela forma encadeada como essas ações são organizadas ao longo do soneto, constrói uma cena que se descortina os olhos do leitor e permite visualizar claramente o gesto de Sóror Saudade, que, numa atitude de esperança, despe o seu burel e sai da clausura para “ver” o mundo. No entanto, decepcionada com a feiúra deste e com a nulidade do ser humano, resolve se encarcerar novamente, manifestando, assim, a sua decepção com a vida. 3 Todos os sonetos foram retirados da edição organizada por Maria Lúcia Dal Farra. 159 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Sóror Saudade abriu a sua cela... E, num encanto que ninguém traduz, Despiu o manto negro que era dela, Seu vestido de noiva de Jesus. E a noite escura extasiada ao vê-la, As brancas mãos no peito quase em cruz, Teve um brilhar feérico de estrela Que se esfolhasse em pétalas de luz! Sóror Saudade olhou... Que olhar profundo Que sonha e espera?... Ah! Como é feio o mundo, E os homens vãos – Então devagarinho, Sóror Saudade entrou no seu convento... E, até morrer, rezou, sem um lamento, Por Um que se perdera no caminho!... A força imagética da pintura é intensificada pela utilização de predicativos que pertencem ao campo semântico visual, como, por exemplo, “manto negro”, “noite escura”, “brancas mãos”, ‘brilhar feérico de estrela”, “pétalas de luz”, “olhar profundo”, “feio mundo”.Tais vocábulos oferecem imagens sugestivas que comovem muito mais porque o leitor este é induzido a crer naquilo que vê.. Além disso, Florbela também assume uma postura narrativa ao optar pelo uso da terceira pessoa do singular, característica que, segundo T. S. Eliot, torna a voz do poeta dramática, porque então é como se ela não falasse do “Eu”, pessoa poética eminentemente lírica. No entanto, o princípio lírico é revelado ao leitor que conhece a obra florbeliana e sabe que “Sóror Saudade” é uma das máscaras usadas pela poetisa para se dissimular. B) Prosopopéia, personificação Para Quintiliano, a prosopopéia é uma importante aliada do escritor para mover as paixões, pois “os Juízes se figuram ouvir nelas, não as vozes de homens que choram os males de outro; mas as dos mesmos infelizes, cuja figura, ainda que muda, está excitando a lástima.” Percebemos claramente nestas palavras que esse recurso “cênico”, aplicado a uma determinada situação, contribui para mover a compaixão dos juízes, pois estes não enxergam o orador a falar, mas a própria vítima, como se estes discursos, “[...] quando se fingem ditos pela sua própria boca” fossem iguais àqueles ditos pelos “representantes do teatro”, cuja “pronunciação debaixo da máscara tem mais força para mover as paixões. (QUINTILIANO, v.1, p. 312.) Podemos afirmar, então, que a prosopopéia é uma “dramatização” que permite ao orador, através de suposições, desnudar pensamentos e ações do acusado ou do réu a fim de exagerá-las ou minimizá-las e, desse modo, conseguir a simpatia do auditório, uma vez que nos compadecemos muito mais de alguém que narra o próprio sofrimento. O soneto “Neurastenia” (p.141) é um dos exemplos mais notáveis da utilização dessa figura por Florbela Espanca, pois, através desse artifício, ela permite ao seu “Eu” exteriorizar-se, ir além do universo interior e gritar o seu sentimento “ao mundo”. 160 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 “Sinto hoje a alma cheia de tristeza! Vento... Tenho saudades! Mas de quê?! Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias, Faz na vidraça rendas de Veneza... O vento desgrenhado, chora e reza Por alma dos que estão nas agonias! E flocos de neve, aves brancas, frias, Batem as asas pela Natureza... Chuva... tenho tristeza! Mas por quê?! Um sino dobra em mim, Ave Marias! Ó neve que destino triste o nosso! Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura! Gritem ao mundo inteiro esta amargura, Digam isto que sinto e que não posso!!... Percebemos, logo no primeiro verso, que a oração exclamativa atribui ao texto um tom de desabafo, de dor, agravado ainda mais pela analogia com o “dobre do sino” que reverbera no interior do eu lírico – “em mim” – os seus acordes melancólicos. A partir do terceiro verso, Florbela procede à exteriorização da sua tristeza através da descrição do espaço exterior, representado por uma locução adverbial de lugar – “Lá fora”. No entanto, vale frisar que essa descrição, feita segundo o prisma do eu lírico, demonstra uma simetria perfeita com os seus sentimentos e, desse modo, esse exterior é uma extensão do “Eu”. Sobre essa “atitude dialogante”, Benedito Nunes afirma que o poeta, especificamente o romântico, vê nos objetos a condição de “segunda pessoa – o tu diante do Eu – é o nexo de simpatia que o ligará às coisas, num mundo em que tudo pode ser analogicamente compreendido”. (NUNES, 1993, p. 67) Desse modo, a relação amistosa da poetisa com os elementos personalizados, que funcionam como projeções do eu-lirico, evidencia a solidão e o isolamento a que ela está fadada. O teor apostrofante, explicitado a partir da terceira estrofe, revela um processo de internalização do eu lírico – culminando na sua fusão com os elementos da natureza; o que é reiterado pelo pronome possessivo “nosso”, através do qual a poetisa compara o seu destino ao da neve: “branca e fria”. C) Apóstrofe Nilce Martins assegura que, estruturalmente, tal como o vocativo, a apóstrofe4 é um termo acessório em torno do qual circulam as funções apelativa e fática, responsáveis pela convocação de um interlocutor para interagir na cena comunicativa. Já estilisticamente, ela contribui para o patético da expressão à medida que não permite o distanciamento do leitor, conclamando-o a emitir juízos sobre as verdades disseminadas, pois, conforme afirma Wolfgang Kayser, “à força de ser constantemente 4 Sintaticamente a apóstrofe e o vocativo têm a mesma função, no entanto, é importante ressaltar que a apóstrofe é a denominação dada a partir da utilização do vocativo com função poética, constituindo-se, por isso, uma figura de linguagem. 161 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 interpelado, o respectivo eu vê-se constrangido a resoluções e portanto a juízos”. (KAYSER, 1968, p. 275) Tal procedimento assegura à enunciação um caráter invocatório, que lhe facilita a conclamação do público para assentir com o que está sendo dito. Como técnica poética, Jonathan Culler diz que a prosopopéia é um “ritual poético”, pois “a voz chama a fim de estar chamando. Chama a fim de dramatizar a voz: para intimar imagens de seu poder de modo a estabelecer sua identidade como voz poética e profética.” (CULLER, 1999, p.79). É o que podemos observar no poema “Espera...” (p. 236), em que a poetisa dirige apóstrofes a uma “sombra amiga”, suplicando-lhe reiteradas vezes que não a abandone, usando o poder apelativo que sua própria imagem sugere: – “Sou a dona dos místicos cansaços, / A fantástica e estranha rapariga / Que um dia ficou presa nos teus braços...”, “Teu amor fez de mim um lago triste:”(grifo nosso) e da evocação de um passado de felicidade e de paixão que agora já é desfeito, o que acentua a inconveniência do desprezo do ser amado. Não me digas adeus, ó sombra amiga, Abranda mais o ritmo dos teus passos; Sente o perfume da paixão antiga, Dos nossos bons e cândidos abraços! Sou a dona dos místicos cansaços, E nunca mais me encontras neste mundo!... Que um dia ficou presa nos teus braços... Não vás ainda embora, ó sombra amiga! Teu amor fez de mim um lago triste: Quantas ondas a rir que não ouviste, Quanta canção de ondinas lá no fundo! Espera... espera...ó minha sombra amada... Vê que pra além de mim já não há nada A fantástica e estranha rapariga Cabe lembrar ainda que a sombra só subsiste como reflexo de um ser materialmente visível. Essa definição, embora um tanto óbvia, é bastante interessante se pensarmos na característica narcísica da poesia de Florbela Espanca, pois o narcisista tem consciência do caráter irrealizável da relação com o “Outro”, pois ele ama as qualidades ideais que ele próprio não pôde alcançar, ama uma idéia, uma imagem que, na verdade, é o reflexo de si mesmo. Tal idéia pode ser intuída com a leitura da última estrofe, na qual fica explícito que essa sombra – denominada agora de “minha sombra amada” (grifo nosso) – está fadada ao aniquilamento longe do objeto que lhe atribui o contorno. Assim, o ato de apostrofar ao ente amado, categorizando-o como uma sombra, soa-nos como uma forma dramática de a poetisa dizer-lhe que ela própria é fonte de existência, sem a qual ele não perdura. Além disso, esta técnica poética confere ao texto uma mobilidade quase cênica, permitindo a visualização do contexto em que tais palavras são proferidas, bem como a percepção da intensidade afetiva que une os interlocutores. 162 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 D) Discurso Direto (dialogismo) Massaud Moisés afirma que no gênero dramático “tudo passa como se, em verdade, tivéssemos de imaginar, no diálogo lido, o diálogo travado entre seres de carne e ossos, apontados no texto como virtualidade à espera do chamado à vida” (MOISÉS, 1991. p. 127). Assim, ancorado na verossimilhança, o leitor fantasiosamente reconstrói o contexto e vivifica seres fictícios, instaurando uma suposta realidade. No plano expressivo, portanto, essa estratégia possibilita a atualização do episódio, uma vez que a reprodução direta oferece vivacidade e naturalidade ao enunciado, além de enriquecê-lo com elementos lingüísticos – interjeições, exclamações, reticências, vocativo – que facilitam ao leitor a apreensão dos sentimentos envolvidos no contexto enunciativo. Desse modo, o uso do discurso direto colabora para dinamizar o tom patético de um enunciado à medida que mantém, no discurso citante, as marcas de subjetividade presentes no discurso citado, ou, como assegura Nilce Santana, “sugere-se o enunciado vivo”, tal qual o proferiu ou deveria proferir o enunciador de origem. A poesia florbeliana oferece-nos um leque amplo de exemplos desse recurso. Entretanto, essa técnica aparece primorosamente no soneto “Em busca do Amor” (p. 161), no qual há a descrição minuciosa da trajetória incansável da poetisa à procura desse sentimento. O meu Destino disse-me a chorar: “Pela estrada da Vida vai andando; E, aos que vires passar, interrogando Acerca do Amor que hás de encontrar.” Fui pela estrada a rir e a cantar, As contas do meu sonho desfiando... E noite e dia, à chuva e ao luar, Fui sempre caminhando e perguntando... Mesmo a um velho eu perguntei: “Velhinho, Viste o Amor acaso em teu caminho?” E o velho estremeceu... olhou... e riu... Agora pela estrada, já cansados Voltam todos p’ra trás, desanimados... E eu paro a murmurar: “Ninguém o viu!...” A leitura deste soneto revela uma estrutura eminentemente narrativa, em que a primeira estrofe poder funcionar como uma introdução, pois prepara o leitor para o fato narrado a partir da estrofe seguinte. A segunda e a terceira estrofes contêm o desenvolvimento dessa narrativa, constituindo o momento em que as ações são mais detalhadas até chegar a uma intensidade maior, quando um velho, questionado sobre o Amor, responde apenas com um sorriso reticente. A última estrofe seria o desfecho frustrante para a busca empreendida ao longo do soneto, culminando com a constatação de que, assim como ela, ninguém encontrou o Amor. 163 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Esse pendor narrativo também é corroborado pelo uso de verbos no pretérito perfeito – disse-me, fui, perguntei, viste, estremeceu, olhou, riu – que, segundo Vítor Aguiar, é o “tempo canônico do texto narrativo”. (SILVA, 1991. p. 612) Além disso, a utilização do gerúndio – andando, interrogando, desfiando, caminhando, perguntando – bem como das locuções adverbiais de tempo “noite e dia”, “à chuva e ao luar” e do advérbio “sempre” conferem à ação um aspecto ininterrupto, como se o ato narrado acontecesse permanentemente, sem se prender ao fator tempo. Quintiliano enfatiza essa capacidade que o discurso direto tem de conferir realidade às ações, dizendo que o uso do monólogo e do diálogo no discurso “dá mais peso às paixões” e “faz crível o dito como se a pessoa pensasse interiormente”. (QUINTILIANO, v. 2, p. 144-5) Assim, podemos afirmar que uso desse artifício permite à poetisa dramatizar um conceito abstrato – a busca frustrada do Amor, e isso faz com que o leitor delineie melhor o real significado dessa busca e mensure o sofrimento diante da decepção exposta na última estrofe, mais do que se a poetisa dissesse simplesmente o que sente. E) Hipérbole Quintiliano afirma que a hipérbole é uma “Exageração mentirosa”, que aumenta as coisas muito acima do que elas são, não com a intenção de mentir, mas de dizer o quão grande ela é, mesmo que não haja termos para compará-la. Nos sonetos florbelianos, as hipérboles são importantes expedientes para compor imagens que refletem os seus sonhos de grandeza ou a intensidade do seu sentimento. Mas é em “Ser poeta” (p. 229) que o tom hiperbólico usado pela poetisa auxilia na descrição do que é “ser poeta” como algo grandioso e incomparável: Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! È ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! È ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma e sangue e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente! Como podemos perceber, já no primeiro verso, a tentativa de definição do que é “ser poeta” é ancorada pelos adjetivos flexionados no grau comparativo de superioridade “mais alto” e “maior” em relação aos homens, sugerindo, com essa atitude, que o poeta é uma categoria que está acima da maioria das pessoas. Tal 164 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 definição traduz “a aspiração do infinito”, (NUNES, 1993, p. 52) que é a marca do poeta romântico por excelência. Ainda na primeira estrofe, Florbela evidencia hiperbolicamente mais uma característica de ser poeta, comparando-o a um mendigo, talvez pela característica de ambos serem marginalizados pela sociedade e não possuírem nada além de si mesmos, ou também porque o único legado de ambos é a Dor. Aqui, ressalta ela a capacidade solícita do poeta para a doação, que, mesmo não tendo nada além de seu dom, é capaz de encher o mundo. A partir da segunda estrofe, a poetisa volta a caracterizar o poeta a partir de idéias que sugerem a verve romântica. Conforme Benedito Nunes, “a sensibilidade romântica, [...] separa e une estados opostos – do entusiasmo à melancolia, da nostalgia ao fervor, da exaltação confiante ao desespero –, contém o elemento reflexivo de ilimitação, de inquietude e de insatisfação permanentes de toda experiência conflitiva aguda, que tende a reproduzir-se indefinidamente à custa dos antagonismos insolúveis que a produziram”. (NUNES, 1993, p. 52). Na última estrofe que a poetisa aproxima o fazer poético de algo que é o leitmotiv de sua obra: o Amor. Zina Belodi afirma que em Florbela Espanca o amor “é uma vontade de ir além do humano; é a expressão da sede de transcendência, é expressão da necessidade de ser mais que humano, ser ‘sobre-humano’, é a ânsia de ser mais do que realmente é”. (SILVA, 1987, p. 240) Tais palavras encontram ressonância nas finais da poetisa, que evidenciam o sentimento amoroso como a energia vital que alimenta a sua atividade criadora: “É seres alma e sangue e vida em mim / E dizê-lo cantando a toda a gente!". F) Exclamação, reticência e interrogação A linguagem falada tem à disposição todo um arsenal de recursos rítmicos e melódicos, bem como cênicos, que respaldam a transmissão das emoções do falante com mais clareza. Já a linguagem escrita, por não dispor dos mesmos expedientes, necessita de criar mecanismos que cumpram a função de reconstituir o movimento vivo da elocução oral. Assim, é viável afirmar que a pontuação configura-se como uma importante aliada do escritor, porque cumpre o papel de manifestar no enunciado toda a carga emotiva presente no discurso, assumindo, por isso, um valor psicológico. Quintiliano assegurou que a exclamação é uma figura que nasce “da arte, e entusiasmo do orador” para “fingir” os sentimentos e transportá-los para o discurso, de modo que comovam o público. Segundo este autor, a figura denominada exclamação não recebe este nome em decorrência do sinal gráfico que a acompanha, mas sim pelo seu caráter semântico, ou seja, por ser um recurso que visa exprimir a carga emotiva do falante através da configuração que este dá ao seu discurso. Em “Angústia” (p.146), as exclamações são as responsáveis pelo timbre dramático do soneto, pois repercutem o estado de aflição intensa que obsedia o eu lírico. 165 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Tortura do pensar! Triste lamento! Quem nos dera calar a tua voz! Quem nos dera cá dentro, muito a sós, Estrangular a hidra num momento! E não se quer pensar!... E o pensamento Sempre a morder-nos bem, dentro de nós... Qu’rer apagar no Céu – Ó sonho atroz! – O brilho duma estrela, com o vento!... E não se apaga, não... nada se apaga! Vem sempre rastejando como a vaga... Vem sempre perguntando: “O que te resta?...” Ah! Não ser mais que o vago, o infinito! Ser pedaço de gelo, ser granito, Ser rugido de tigre na floresta! Cabe salientar aqui que Florbela mantém o gosto pelo verso decassílabo heróico, de acordo com o estilo clássico, cuja regularidade imprimia um ritmo bastante uniforme e padronizado ao soneto. Tal informação parece ser crucial aqui, se pensarmos no fato de que o ritmo é um dos componentes essenciais na interpretação do texto poético. Este soneto, entrecortado pelas exclamações e pelas reticências, apresenta um ritmo que é bastante propício à expressão do cunho ofego característico da ansiedade do eu-poético. Além disso, a ocorrência das exclamações em orações nominais, – “Tortura do pensar! Triste lamento! / E não se quer pensar! / Ser rugido de tigre na floresta!”, ou associada a interjeições – “Ó sonho atroz! / Ah! não ser mais que o vago, o infinito!” –, bem como o fato da fluência do verso ser interrompida por apostos ou orações – “Quem nos dera cá dentro, muito a sós, / Sempre a morder-nos bem, dentro de nós... / Qu’rer apagar no céu – Ó sonho atroz! – E não se apaga, não... nada se apaga” – também auxiliam a dar essa configuração patética do texto, pois são recursos que evidenciam, ao mesmo tempo que intensificam, o sentimento de angústia que é o motivo do poema. Outra figura considerada como um importante expediente para o efeito expressivo do enunciado é a reticência, pois, ao abreviar propositadamente a expressão, ela permite subentender o que não foi dito, pois o pensamento este prossegue apesar do silêncio. Assim, essa figura tem, pois, um poder sugestivo e até emotivo, porque pode levar a imaginação para além do texto. Pelo fato de constituir-se através da falta, a reticência dá à elocução um caráter afásico em que os silêncios, importantes componentes significativos, são interpretados de acordo com o contexto em que estão inseridos. Deste modo, este pode ser considerado um meio eficaz para provocar os afetos dos receptores, porque permite ao orador encaminhar o pensamento do modo que lhe aprouver, através dos matizes cálidos e avivados que dá à expressão. O soneto “Évora” (p.269) constitui um bom exemplo do uso desse recurso estético que confere ao texto o teor nostálgico sugerido pela dedicatória, onde a poetisa compara o aspecto soturno e triste da cidade com o seu estado de ânimo. 166 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Ao amigo vindo da luminosa Itália, a minha cidade, como eu soturna e triste... Évora! Ruas ermas sob os céus Cor de violetas roxas... Ruas frades Pedindo em triste penitência a Deus Que nos perdoe as míseras vaidades! Tenho corrido em vão tantas cidades! E só aqui recordo os beijos teus, E só aqui eu sinto que são meus Os sonhos que sonhei noutras idades! Évora!... O teu olhar... o teu perfil... Tua boca sinuosa, um mês de Abril, Que o coração no peito me alvoroça! ... Em cada viela o vulto dum fantasma... E a minh’alma soturna escuta e pasma... E sente-se passar menina-e-moça... Partindo de um procedimento bastante comum na sua poesia, Florbela Espanca inicia o soneto com a descrição de um ambiente exterior – a cidade de Évora – para depois proceder a um processo de internalização que imbrica a descrição desse ambiente às colorações sentimentais que lhe dá o eu lírico. Essa identificação com o espaço nasce, na verdade, do poder apelativo da memória, incitada a partir da segunda estrofe pelos fatos que levam a poetisa a recordar um passado de amor vivido naquele lugar – “E só aqui recordo os beijos teus, / E só aqui sinto que são meus / Os sonhos que sonhei noutras idades!”. Tal atitude culmina com a completa interiorização do eu lírico, que parece ter esquecido de Évora para concentrar-se na transmissão dos seus sentimentos. No entanto, percebemos que essa é uma idéia superficial, porque o vocativo dirigido à cidade, seguido de expressões que enaltecem as qualidades físicas do ser amado, sugerem sinestesicamente uma fusão entre o ambiente e o objeto evocado pela lembrança. O pendor saudosista é reforçado pelo uso sistemático das reticências que, aliadas a expressões nominais e exclamativas, conferem à expressão o teor pesaroso e melancólico, típico de quem sente saudades. Mais do que isso, as reticências possibilitam ao leitor penetrar nos pensamentos da poetisa e, assim, compreender melhor os sintomas deste seu sentimento. Além desses, a interrogação é outro meio eficaz de mover os afetos, porque também permite ao orador controlar as reações do auditório através do discurso. No entanto, esta só será uma figura retórica se for uma indagação meramente enfática ou se for uma afirmação feita em forma de pergunta, pois sua função é trazer à tona a emotividade. No soneto “?” (p.244), essa figura é a responsável por levantar uma série de questionamentos meramente retóricos que evidenciam a alma inquieta do eu lírico. 167 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Quem fez ao sapo o leito carmesim De rosas desfolhadas à noitinha? E quem vestiu de monja a andorinha, E perfumou as sombras do jardim? Quem cinzelou estrelas no jasmim? Quem deu esses cabelos de rainha Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha Alma a sangrar? Quem me criou a mim? Que fez os homens e deu vida aos lobos? Santa Tereza em místicos arroubos! Os monstros? E os profetas? E o luar? Quem nos deu asas para andar de rastros? Quem nos deu olhos para ver os astros – Sem nos dar braços para os alcançar? A interrogação executa essa tarefa de exteriorizar a angústia diante da própria vida, porque espelha uma indagação mais profunda sobre a existência. Tal atitude, de defrontar o leitor com perguntas para as quais ele sabe que não existe resposta, faz com que ele se solidarize com a inquietação evidenciada pelo sujeito poético. De fato, essa idéia parece ser corroborada pela série de perguntas retóricas feitas desde o primeiro verso até o meio da segunda estrofe – “Quem fez o mar?” –, pois percebemos que todas elas se referem a elementos exteriores que traduzem a indefinição da própria poetisa. Os versos 7 e 8 sugerem que todas as indagações são decorrentes da condição de sofredora da poetisa num mundo em que as aparências enganadoras oprimem a sua sensibilidade de “visionária” – “Quem nos deu olhos para ver os astros / - Sem nos dar braços para os alcançar?”. Na última estrofe, de fato, as inquirições parecem indicar a insatisfação de Florbela com a sua condição de poetisa num contexto em que o seu talento não era reconhecido. As asas, elementos capazes de satisfazer o seu anseio de ascensão manifesto reiteradas vezes na sua obra, são vistas aqui como desnecessárias porque ela “anda de rastros”, quando queria voar. THE POETICS OF SPECTACLE ABSTRACT: The reading of the four sonnet books by Florbela Espanca (1894 -1930) – Livro de Mágoas (1919), Livro de Sóror Saudade (1923), Charneca em Flor (1931) and Reliquiae (1931) - highlights the dramatic expressiveness that she imprinted on them, creating a "sheded" style that moves the reader, as well as a favorable atmosfhere to the use of poetic masks, characteristic that can be seen as dramatic. For this, she uses some poetic rhetorical figures, responsible for that style of her poetry. The theoretical basis of this study was the Literary Critic about the lyric and the drama, some specialists of the Old Rhetoric like Marcus Fábio Quintiliano and Aristotle - and modern studies on Literary Stylistic. KEYWORDS: Florbela Espanca. Literary Stylistic, Figures of Speech, Poetic Masks. 168 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. CANDIDO, A. O Estudo Analítico do Poema. 4. ed.. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004. CULLER, J. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. ELIOT, T. S. De Poesia e Poetas. 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A partir de um recorte em prosa e poesia, e com base em um referencial teórico de natureza historiográfica, objetiva-se por em cena um olhar sobre fontes primárias veiculadas no periódico literário Revista do Brasil, de grande circulação nas primeiras décadas do século XX no país. Verificou-se que, em meio à subjetividade lírica, a linguagem se apresenta sob certa concretude, apreendendo a paisagem através de referências diretas de uma realidade regional, aproximando-se ao máximo do registro coloquial, aspecto que na última fase do modernismo funcionou como uma das mais importantes conquistas do texto literário. Uma leitura nos dias atuais desse material, no sentido de compreender os matizes de uma ordem sociocultural brasileira, tende a passar pelo entendimento de que os aspectos da cultura popular, internalizados no texto escrito, são resultantes de um processo cultural possível somente através da continuidade. Trata-se, pois, de uma tradição dinamizada no processo social e reinterpretada na forma literária, sintetizando para a tradição dos estudos brasileiros aspectos de um mundo rural enquanto componente de nacionalidade. PALAVRAS-CHAVE: Cultura popular. Lirismo. Periódico literário. Nacionalidade. Não se distinguem palavras na canção do boiadeiro; nem ele as articula, pois fala do seu gado, com essa linguagem do coração que enternece os animais e os cativa (José de Alencar, O Sertanejo). Aboio não se repete nunca. Cada aboio é uma improvisação. É coisa séria. Velhíssima em uso, respeitada (Câmara Cascudo, Tradições populares da pecuária nordestina). Conforme mostra a historiografia literária152, os primeiros anos do século XX foram constituídos sob uma atmosfera intelectual que iria modelar o pensamento de contemporâneos desse período histórico, sobretudo com relação ao problema da identidade nacional. Por sua vez, as idéias nacionalistas receberam novo impulso na segunda década desse século, tendo uma dimensão complexa a abranger vários campos de poder da sociedade, adquirindo maior ênfase a partir do movimento modernista, com a busca da exaltação nacional pelo retorno às origens do povo brasileiro. Intelectuais, influenciados pelas idéias cientificistas e estéticas importadas da Europa, adotaram posturas diferenciadas, preconizando o mergulho na realidade brasileira para melhor conhecê-la e estudar com profundidade a nossa história, 151 UEPB – Universidade Estadual da Paraíba. Departamento de Letras e Educação. Guarabira – PB – Brasil. CEP: 58.200-000. Email: [email protected] 152 A exemplo de BOSI (1994), COUTINHO (1955) e CANDIDO (1976). 170 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 nossos processos, características e problemas. Foram revalorizados, assim, as figuras do negro, do índio e do caipira com seu folclore regional, a cozinha típica, as crenças, músicas, enfim, uma série de práticas e costumes. As publicações de inspiração nacionalista, surgidas no início do século XX, confirmam esta análise. Um exemplo claro é Revista do Brasil (SP), fundada em 1916. Já em sua 1ª fase (1916-1925), essa revista buscou resgatar os valores da cultura nacional e discutir os principais problemas do País (DE LUCA, 1999). Depois, seguiram expressões como o estudo lingüístico sobre “O Dialeto Caipira" de Amadeu Amaral; o poema “Juca Mulato” de Menotti del Picchia em 1917, e, no mesmo ano, outro fato marcante foi a exposição da pintora Anita Malfatti. A partir da década de 1920, desenvolvemse novas reflexões caracterizadas por um enfoque sociológico da realidade nacional e a busca por um pensamento nacional independente de modelos estrangeiros, integrando-se as novidades formais a temas brasileiros de raízes populares. No contexto dos anos de 1920, a Revista do Brasil, que já gozava de algum prestígio antes, era dirigida por Monteiro Lobato e, sob sua direção, tornava-se o periódico mais importante e influente do meio intelectual e literário da década, uma vez que reunia, entre seus colaboradores, intelectuais de destaque no cenário cultural, os quais utilizavam a própria revista como porta-voz de seus ideais. Landers (1988, p.100) observa que, na Revista do Brasil, “se concentraram os mais importantes nomes do momento e o espírito era essencialmente brasileiro, principalmente depois de 1918 quando Monteiro Lobato compra a revista e assume a sua direção”. A partir de então, a citada revista passa a ser imediatamente um centro intensivo de debates sobre assuntos brasileiros de toda ordem. Em suas páginas é possível identificar uma série de textos imbuídos da “proposta de reconstrução nacional” (MARTINS, 2001, p.68). Um material considerado menor, enquanto esparso, e, no entanto, notável, como são os ensaios, crônicas e poesias publicados em periódicos, esquecidos no tempo, e só recolhidos em livros anos mais tarde, cuja temática revela uma interpretação do Brasil marcada por certo toque de singularidade, transmitida a essa produção escrita e, em seguida, aos leitores dela. Enquanto integrantes desse contexto, merecem referência aos textos de escritores norte-rio-grandenses publicados na Revista do Brasil no início da segunda década do século XX153: o poema “O aboio” (Revista do Brasil, ano V, n. 54, p. 127-131, 1920), de Henrique Castriciano, e a crônica “O aboiador” (Revista do Brasil, ano VI, n. 67, p. 296-298, 1921), de Luís da Câmara Cascudo. O fato de ambos os textos aparecerem publicados em uma revista da região Sudeste do Brasil chama a atenção, em princípio, para dois aspectos: o ambiente e o momento histórico no qual se inserem – São Paulo, início da década de 1920; cenário onde a literatura identificada como pré-modernista (antes 1922) modificara e aproximara, em certo sentido, as relações entre escritor e público, tornando-se, muitas vezes, porta-voz desse público, dos seus anseios, desejos e necessidades. Aproximação também refletida nos procedimentos estilísticos tais como filiação com a oralidade, incorporação de temas 153 A Revista do Brasil (São Paulo) circulou nas primeiras quatro décadas do século XX. O primeiro número data de 1916. Constam no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB / USP) os números editados até a 4ª fase em 1944. Este periódico teve correspondentes nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Neste último, Henrique Castriciano aparece ocupando a função de correspondente local. 171 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 folclóricos, mergulho no regionalismo. As transformações formais aparecem acompanhadas de mudanças no conteúdo das obras, cada vez mais voltadas para temas populares e cotidianos, possibilitando nesse processo uma ampliação e renovação no horizonte de percepção do leitor, ao expor, muitas das vezes, contradições da sociedade, tornando patentes suas fissuras e particularidades. Aspectos esses reveladores das relações da literatura com seu destinatário na dimensão de sua recepção e de seu efeito, nos termos observados por Hans Robert Jauss (1994, p.23), considerando-se que, “tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor”. Conforme indicam os títulos – “O aboio”, “O aboiador” –, ambos os textos estão centrados na paisagem imaginária que habita o universo regional brasileiro tipicamente rural e pecuário cuja figura central é o boi, associado ao homem, à terra, aos costumes e às tradições. Assim, nesse contexto de “sabor da terra”, uma vez inseridos na linha da temática rural e sertaneja em que a figura do boi aparece como elemento-chave, situações da histórica tradição popular acabam por se inscreverem. Estamos falando, neste caso, de práticas humanas e sociais do homem sertanejo que se perpetuam através dos tempos, a exemplo da “festa d’apartação” além de uma série de costumes, crenças e tradições. O texto “O aboio” de Henrique Castriciano, publicado em junho de 1920, é um poema composto por 159 versos de 12 sílabas cada, apresentando ritmos e rimas regulares. Os alexandrinos acentuam a musicalidade dando forma à monótona melodia. Os versos aparecem dispostos em três estrofes, a primeira e a última estrofe com 06 versos cada, e o corpo do poema com os restantes 147 versos. Pela sua regularidade formal, vê-se que se trata de um texto com tendência parnasiano-realista dos fins do século XIX. Esta seria uma das mais fortes tendências a marcar o estilo poético de Henrique Castriciano que “tem a sua própria alma esparsa em rimas e em palavras sonoras. Prosa ou verso parece-nos sempre o requinte, do trabalho acurado e penoso de criar na simplicidade, o grande cunho de emoção e magia” (CASCUDO, 1991, p. 17- 20). O canto alexandrino do poeta potiguar nos faz observar, conforme Antonio Candido, que “As tendências oriundas do naturalismo de 1880-1900, tanto na poesia quanto no romance e na crítica, propiciaram na fase de 1900-1922 um compromisso da literatura com as formas visíveis, concebidas pelo espírito principalmente como encantamento plástico, euforia verbal, regularidade (CANDIDO, 1976, p. 115). No poema de Henrique Castriciano, percebe-se que o aboio, tal qual uma espécie de musa que desperta o canto, vem servir como objeto de descrição. O que sobressalta em meio à subjetividade lírica de “O aboio” é a linguagem que se apresenta sob certa concretude, apreendendo a paisagem através de referências diretas de uma realidade regional (“à beira dos currais”, o “clarão da fogueiras”, a “enxada no chão”... ), e se aproximando ao máximo do registro coloquial, que na fase seguinte do modernismo será a mais importante conquista do texto literário. O tema da saudade, da falta, aparece como índice de um viver marcado pelo sofrimento. O canto insurge como uma alegoria da amargura: “Ah! Como é triste o aboio! ah, como é triste o canto / Sem palavras – tão vago! – a saudade exprimindo” (CASTRICIANO, 1920, p. 127 – versos 1 e 2). 172 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 O poema descreve uma vida caracterizada ora pela fartura, ora pela carência. Condição essa imposta, acima de tudo, por um contexto socioeconômico resultante de um sistema profundamente desigual. Tanto a temática quanto o tom rítmico se inscrevem sob uma certa tensão social, expressa na forma poética, que tende a caracterizar a aparente calma da melodia do aboio. Fica evidente que a vida do vaqueiro cantada no poema está representando, poeticamente, a vida de tantos outros sertanejos: uma vida de sonhos desfeitos e de muita labuta cotidiana, em torno do ciclo do inverno e do verão. “Nessa triste canção, doce como uma prece” (verso 156) que dá forma ao poema, remonta-se um cenário que, a espécie de um ritual, se faz passo a passo. Num primeiro momento, o sertanejo se volta para o céu e canta o lamentoso aboio, dizendo o que outrora dizia o “curvo bisavô” – vendo o gado, o inverno, a fartura, junto à companheira e aos filhos a narrar lendas da Carocha, dias azuis de sossego e alma, o som da viola, as noites de São João e Natal. Num segundo momento, o canto passa a demonstrar dor e sofrimento: “– quanta amargura! – a voz dorida exprime” (verso 80). É o tempo da seca, da fome, de luta e de muita reza (embalde!), do pranto, da fuga, da partida e do Adeus. O texto de Henrique Castriciano se estrutura em função da representação de um mundo rural como depositário do sentido de um Brasil marcado por uma tradição secular. As formas tradicionais populares se destacam nas referências às festas populares, religiosas e folclóricas – São João, Noite de Natal, Festa d’apartação154. Se nas festas de São João e Natal a figura do boi tende a aparecer em meio às manifestações populares de Pastoris, Reisados e Folias de Reis, na Festa d’apartação o boi é também figura central, girando em torno de si uma série de costumes e comemorações que atravessam os tempos, firmando-se na cultura e tradição do povo nordestino. A experiência de contar estórias, enquanto uma marca de oralidade, também é lembrada pelo poeta ao apresentar um eu lírico que, ao cantar, “lhe sai da garganta, o que outr’ora dizia / o curvo bisavô [...]” (versos 58-59), ao ver o gado manso ou arisco no curral. Tal qual seus antepassados, este “Conta que é bom o Inverno e o tempo da Fartura” (verso 61); e, ao pé da fogueira, narra para os filhos pequeninos as lendas da Carocha. Essas passagens caracterizando a transmissão de um certo tipo de conhecimento acabam de ser observadas pelo poeta enquanto ação precípua dos contos populares da tradição oral. Assim, a voz que abóia representa simbolicamente uma voz coletiva, entoando situações culturais secularizadas historicamente pelas três raças, o branco, índio e negro: 41 42 43 44 45 46 Essa dorida voz, de ondulações extranhas, Triste atravéz do espaço e atravéz das montanhas, É a mesma que veio entoando pelos mares As orações de fé da patria portugueza; Que, na lingua tupy, em incertos cantares, Primeiro celebrou a nossa natureza 154 Segundo Luís da Câmara Cascudo, a “apartação” consistia na identificação do gado de cada patrão marcado pelo ferro ou sinal na orelha. Dezenas de vaqueiros passavam semanas recolhendo o gado esparso em serras e tabuleiros. Era o momento de muita correria, brincadeiras, bebida, comida e negócios” (CASCUDO, 1984b, p. 106-107). 173 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 47 Que, depois de soffrer as amarguras do eito, 48 Pobre raça infeliz, nos embalou no leito! “Essa dorida voz” denota um conhecimento enraizado (“É a mesma que veio entoando pelos mares / Que... celebrou a nossa natureza / Que... nos embalou no leito!”), ultrapassando o solo individual. O tom que a rege não é o de um drama pessoal, é bem maior; transcende o indivíduo, tornando-se o canto e expressão de experiências coletivas cuja unidade sugerida entre o português, o nativo brasileiro e o africano mostra uma identidade mestiça da cultura nacional. A temática do poema tende a se constituir por um princípio narrativo que reflete a estrutura de uma ordem social em função do modo de vida do homem sertanejo historicamente recorrente, tal qual o ciclo do inverno e da seca. Nesse contexto, o canto do aboio acaba por destacar a presença do passado no presente, as alegrias e as emoções, as dores, as saudades e os lamentos. O tom maior é regido pelo contraste presente na série de termos antagônicos recorrentes no poema: céu/terra, noite/dia, invernia/estio, fome/fartura, alegria/dor, feliz/infeliz, sorrir/chorar, silencia/diz, vida/morte, morrer/nascer. Outro grupo semântico a dar cor e forma à realidade regional se expressa pela flora (carnaubais, juremas, juazeiro, oiticica, mussambê, jucá, tamarindo, cravo, jasmins, mangericão), pela fauna (graúna, araponga, galo-de-campina, jassanãs, jandaia), ou ainda pela geografia do ambiente (montanhas, montes, serras, encostas, colina, várzeas, clareiras, rio, riacho, lagoa, matas, cascatas, selva e o “solo, entre cardos e pedra”). De modo que, no corpo do poema, estes elementos acabam por concretizar uma interseção entre pensamento, cultura e solo, estabelecendo relações entre texto e contexto pela referência de uma realidade social de expressão rural. Outro aspecto de destaque no poema diz respeito ao próprio “aboio” sobre o qual o poeta indica uma origem e estrutura: o que é o aboio, de onde vem, desde quando, como, o que exprime e quando. Nessa caracterização, é visível a marca de uma tradição em uma prática que se identifica como regional e secular. Segundo o texto, é à tarde, “ao por do sol”, “ao incêndio do poente”, “às horas da trindade”, quando costumeiramente se manifesta o aboio – o canto que “ha seculos”, “em expansões sonoras”, exprime “A lembrança feliz de todas as auroras / E a funda vibração de todas as saudades” (versos 14-15). E o que é este canto sob letra que “ninguem, ninguem conhece”?155. Para o poeta, é cântico vago, é rude litania, é trêmula queixa, é o gemido e o brado de uma raça infeliz, é dorida voz de ondulações estranhas, é cântico sem fim desolado e tremente, é triste canção, doce como uma 155 No Dicionário do Folclore Brasileiro¸ Luís da Câmara Cascudo caracteriza o aboio como: 1) “canto entoado, sem palavras, pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado. Os vaqueiros abóiam quando querem orientar os companheiros dispersos durante as pegas de gado”. 2) “canto em versos, modalidade de origem moura, berbere, da África setentrional; veio para o Brasil possivelmente da ilha da Madeira” (CASCUDO, 2001a, p. 05). No Dicionário musical brasileiro, Mário de Andrade registra: “O Marroeiro (vaqueiro) conduzindo o gado nas estradas, ou movendo com ele nas fazendas, tem por costume cantar. Entoa um arabesco, geralmente livre de forma estrófica, destituído de palavras as mais das vezes, simples vocalizações, interceptadas quando senão quando por palavras interjectivas, ‘boi’, ‘êh’, ‘boiato’, etc.. O ato de cantar assim chamam de aboiar. Ao canto chamam de Aboio (ANDRADE, 1989, p. 1-2. Grifos do autor). 174 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 prece que sai do “seio nu” do sertanejo sob uma modulação que “Si coubesse n’um rythmo, era o do coração!” (verso 159). Desse modo, o aboio exprime não apenas a face externa que os olhos do sertanejo (vaqueiro) enxergam, mas as sensações e as emoções que o mundo exterior (os fenômenos meteorológicos, a terra, o gado, as festas, as crenças etc.) produz nesse filho do sertão, de tal forma que o canto se torna metáfora simbólica da alegria (na lida com o gado), da saudade (na recordação do passado), da prece (a rogar a Deus), e da dor (quando tem que partir). A perspectiva saudosista que reveste o poema tende a aproximar seu autor da postura do folclorista e assim também dos propósitos de um regionalismo tradicional uma vez que se inscreve na tendência de encarar o passado sempre melhor que o presente. A terceira estrofe, antes de indicar o fecho do poema, se caracteriza como uma retomada que, semelhante a uma ondulação rítmica em processo contínuo, nos retorna a alguns versos já anunciados (na 1ª. e 2ª. estrofes), observando particularidades de ritmo e forma do aboio: é o canto “sem palavras”, monótono; é canção de ritmo circular que parece não findar; é prece cuja letra ninguém conhece: 01 Ah! Como é triste o aboio! ah!, como é triste o canto 02 Sem palavras – tão vago – a saudade exprimindo [...] 31 A letra da canção ninguem, ninguem conhece, 32 Mas sabemos que ali chora e geme uma prece 33 Desolada e subtil, cuja modulação 34 Si coubesse n’um ritmo, era o do coração. [...] 155 A voz do sertanejo, ansiando de saudade, 156 Nessa triste canção, doce como uma prece, 157 Cuja lettra ninguem advinha ou conhece, 158 Mas cujo pensamento ungido de emoção, 159 Si coubesse n’um rythmo, era o do coração! Esse canto sem palavras, que muito exprime, aparece na tradição popular como signo da presença do vaqueiro, figura típica das fazendas de gado, cuja marca é ser destemido, corajoso e perseverante, ter paciência e sabedoria. Ao caracterizar o vaqueiro, ou boiadeiro, afirma Câmara Cascudo: É sua função buscar o gado e encaminhá-lo ao seu destino. O vaqueiro dá nome ao boi, sabe como tratá-lo e até conversar com ele. O vaqueiro tem duas características: o aboio e vestimentas; desde a ilha do Marajó até o sul do país, elas o identificam. Em alguns lugares é o vaqueiro; em outros o boiadeiro, mas é sempre o ‘homem que toma conta do boi’, ao lado dos seus grandes amigos, o cavalo e o cão (CASCUDO, 2001a, p. 718. Grifo do autor). É sob o título “O aboiador” a crônica de Câmara Cascudo publicada na Revista do Brasil (1921). A proposta central do texto está em mostrar a cultura da fazenda sertaneja com práticas ligadas à pecuária. Neste registro, o boi, o vaqueiro e o aboio se destacam como signos da cultura tipicamente rural do sertão nordestino. A experiência de exploração pecuária 175 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 sertaneja é sintetizada na descrição em torno de quatro elementos: a fazenda, a apartação, o vaqueiro e o aboio. A narrativa inicia pela referência à fazenda de “terreiro de barro vermelho batido”, apresentada como o espaço próprio para grandes ajuntamentos: “uma multidão de vaqueiros”, “mocinhas de fita à cintura”, “cavalos suados” e “bois enormes, pesados e magníficos como sultões”. Todos eles constituem os figurantes para o dia de festa – a festa da apartação. Tal qual um ritual de fim de colheita em cultos agrários, terminado o inverno, é hora de reunir todo o gado nos currais. O momento é celebrado com música, comida farta e diversão. Conforme registrado por Câmara Cascudo em pesquisa sobre as práticas culturais do sertão referentes ao ciclo do gado, “Nenhuma festa tinha as finalidades práticas das ‘apartações’ do nordeste” (CASCUDO, 2001b, p. 106). Esse era um momento de trabalho, de negócios (vendas e trocas) e também de muito divertimento. Na crônica, tem-se reproduzida a cena lúdica entre o vaqueiro e o animal. Com detalhes, o autor mostra a técnica utilizada para derrubar o boi durante a Apartação, manifestação da qual se originou a vaquejada156. A cena sintetiza uma exibição de força e agilidade dos vaqueiros na ação de derrubar o animal pela cauda: Parou a musica. Dois vaqueiros pularam com varas de ferrão para o curral. Outros, encourados, vermelhos de sol, com os gibões enfeitados de fio de retróz branco, colocaram-se do lado da porteira. Uma novilha appareceu, pulou e n’um salto brusco desatou numa carreira terrivel pelo campo. Os cavallos iam-lhe no piso. O esteira157 conservou-a em linha recta, o outro baixou-se, apanhou a cauda, firmou-se na sella, e n’uma nuvem de pó as patas da novilha ergueram-se para o ar (CASCUDO, 1921, p. 296-297). Outro aspecto apresentado na crônica, dentre as práticas ligadas à tradição cultural do sertanejo, é o momento em que estes se reúnem para a “costumada façanha”: o aboiar. A maior parte do texto, a partir de então, tem por foco o sujeito da ação, o aboiador, cuidadosamente descrito como “o melhor aboiador das cercanias”, função comumente assumida por um negro, observando-se, nesse ponto, a presença histórica do escravo negro nas fazendas de gado: Era Joaquim do Riachão [...]. O preto era baixo, magro, vestia calça de zuarte azul, cinto vermelho e uma camiza de algodãozinho que lhe mostrava o peito descarnado e as claviculas rompendo a pelle. O pescoço fino, cheio de musculos n’uma alto relevo de estatuaria, prendia-lhe a cabeça polygonal, desbastada à largos golpes de camartelo, com o cabello encarapinhado, o rosto chupado, com a arcada zigomatica accusada atravez da epiderme franzina. Completava-o uns olhos claros, tristes, contemplativos como se evocassem silenciosamente a saudade da patria distante, a Africa longinqua dos seus avós (CASCUDO, 1921, p. 297). 156 Folguedo de derrubar boi bastante realizado nos dias atuais no Nordeste. 157 Denominação dada ao cavaleiro que corre à esquerda do boi. 176 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Depois de mostrar uma espécie de rápido ritual feito pelo aboiador (“trepou o moirão da porteira, tirou o seu chapéu, bateu-o na coxa, pô-lo na cabeça e soltou o grito forte, estridente, alto como uma fanfarra gloriosa de clarins em tarde de vitória”), o texto segue dividido em quatro partes, separadas por uma frase tal qual um mote – “O negro aboiava”– a compor momentos. No primeiro, a descrição recai sobre quem e como cantava: era “um rapsodo, o ultimo cantor das terras do sertão”. Seu canto era “potente, sinuoso, dobrado em curvas felinas [...] em tonalidades extranhamente emotivas [...]. Depois descia, quebrava-se... para um smorzado magúado, sentido, bizarro, exdruxulo”. No segundo momento, o foco é dado ao que se cantava: “cantava-se n’aquella tarantella febril, a ancia dolorida de uma raça. Febre, luctas, vibrações, sentimentos, a coragem eterna do trabalho heroico...”. Assim como no poema de Henrique Castriciano, este (aboio) também “era um canto triste, uma melopéa vagamente monotona, que subia aos céos levando envolta em notas a saudade sem fim dos dias que passaram”. Já no terceiro momento, o aboio é caracterizado como “lembrança da terra querida”, agora marcada pelas impressões da seca, da morte do gado, dos rios e açudes secos, do sol ardente. O tom do aboio passa a ser “queixume, esperança, prece e desalento”. Por fim, no quarto momento, o aboio aparece como síntese de “um soluço”. Um impressionante canto triste de lamento “lançado ao sol morimbundo”. A adjetivação numerosa presente no texto revela o esforço de quem deseja apreender, pela escrita, a medida certa desse canto “tristíssimo” de sonoridade “doentia”, recordando “a levada dos retirantes, sem pão, sem lar, sem descanso” a procura de “terras melhores, de um céu mais amigo” (CASCUDO, 1921, p.228). Há nesse momento uma mistura entre vida do retirante e a do negro (exilado da África) de um modo que o limite entre as duas experiências parece não definido. Todo esse aparte a representar o momento em que “o negro aboiava” tende a se caracterizar como uma viagem imaginária embalada pelo ritmo do aboio, que sem palavras, canta a “ancia dolorida de uma raça” e a “dor eterna das gentes do matto” a traduzir o modo de vida do homem do sertão e, assim, a identidade de um grupo metonimicamente expressa na dolência rítmica do aboio “tão forte e tão sonoro, como se fosse a própria alma do sertão que ia cantando...” (CASCUDO, 1921, p.298). Tal como se observa no texto de Henrique Castriciano, a perspectiva de Câmara Cascudo é também de um certo saudosismo. É como se a imagem tradicional do abaioador (“um rapsodo”) e do aboio (canto libertado de escrita) estivesse desaparecendo e eles tivessem de registrar para salvar o que iria se perder no tempo. Esse também é o tom que permeia o texto de Eloy de Souza158 publicado no Livro do Nordeste (nov. 1925, p. 66-67), sob o título “Os ultimos cantadores do Nordeste”. Nesse artigo, o autor percorre suas memórias de infância, lembrando que foi em uma noite de Natal que ouviu cantar pela primeira vez o desafio entre poetas repentistas. A descrição detalhada dos traços físicos dos cantadores (João Birro e Maneol Ciryllo) e a citação de trechos de 158 Eloy Castriciano de Souza, (1873-1959), irmão de Henrique Castriciano, nasceu em Recife e veio ainda criança morar em Macaíba – RN. Exerceu vários cargos públicos dentre os quais Delegado de polícia, Deputado (estadual e federal) e Senador da República. Como jornalista dirigiu e colaborou em jornais, e publicou vários livros (Cf. Personalidades históricas do Rio Grande do Norte, 1999). 177 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 desafios assistidos cuidam em tornar notório o quanto ainda esses elementos estavam presente na memória do autor (jornalista e político), crédulo de que “os poetas, ainda que errantes e vagabundos, são bem mais felizes que os políticos e os poderosos [...], viverão nos versos que improvisaram e se perpetuaram na memória de gerações e gerações” (SOUZA, 1925, p. 66). Dois cantadores são citados no referido texto como exemplos de que alguns adquiriram “tamanha celebridade que em torno de seus nomes se crearam lendas”. O primeiro, o velho repentista Manoel do Riachão, aparece como protagonista de um desafio com uma estranha mulher que tinha pés de pato. Conforme a lenda, na madrugada do terceiro dia de cantoria ininterrupta, o repentista Manoel do Riachão fez aquela figura do satanás desaparecer de repente, deixando apenas o cheiro do enxofre, após cantar o oficio de Nossa Senhora. O segundo cantador é Fabião das Queimadas, um analfabeto “octogenário, cuja faculdade de improvisação ainda tinha naquela idade lampejos de gênio”, devido a se identificar nele, segundo Eloy de Souza (1925, p. 67), não somente “um improvisador expontaneo”, mas, sobretudo, “um improvisador imaginoso [...] Versos que improvisou ha 55 annos elle os reproduz [...], tão fielmente, como si tivessem sido compostos momentos antes”. Os dois exemplos citados, e demoradamente comentados pelo autor no decorrer do texto, funcionam como aportes para o objetivo principal: mostrar que “hoje, a espécie vae rareando, dia a dia”. As causas disso são indicadas pelo próprio Eloy de Souza ao observar que “o ambiente material das terras do Nordeste já não permitte a vida errante e boemia dos cantadores de antanho, tão queridos de toda gente, tão festejado por toda parte, figuras constantes e principaes nos baptisados e casamentos” (SOUZA, 1925, p. 66)159. No final do texto, a citação de versos do poema “o aboio” de Henrique Castriciano tendem a justificar a postura saudosista do autor, para quem Se a poesia dos nossos cantadores já não embelleza a vida do sertão, ainda resta, para encher e povoar de saudade e de sonho a amplidão dos campos sertanejos, as notas plangentes do aboio, o canto do vaqueiro e o canto de uma raça, prece sem palavras que os animaes escutam e comprehendem e os corações recolhem contrictos e comovidos (SOUZA, 1925, p. 67). Ao canto do aboiador rogam-se os méritos de uma representação de efeito emotivo que comove e encanta. Em sua crônica (“O aboaidor”), Câmara Cascudo nos faz ver que a figura do aboiador na cultura sertaneja assume uma função social, histórica e até mística; podendo-se tomar a figura do vaqueiro/aboiador como modelo de herói, no que diz respeito a uma conduta de aspectos positivos: é o herói que, às avessas do cotidiano árduo, faz do canto a sua voz, sua alegria, sua prece, seu choro e seu lamento. Por meio de seu canto, reacende a memória do passado na inspiração do tempo presente, exprimindo uma heróica epopéia cotidiana dos animais e dos homens do sertão. Sua arte “é porventura o mais característico 159 Na década de 1930, quando publica o livro Viajando o Sertão, Câmara Cascudo expõe claramente o fato de o “sertão descaracterizar-se” é de ser natural que o “cantador vá morrendo também”. Processo esse advindo de um ambiente marcado pela modernização, onde se encontram “as rodovias ... as vitrolas.. as meninas [...] usam cabelinho cortado, a boca em bico-de-lacre, o mesmo palavreado das tango-girls do Aéro Club e Natal Club” (CASCUDO, 1984c, p. 46- Grifo do autor). 178 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 dos cantos sertanejos por inimitável e inconfundível” (TRIGUEIROS, 1977, p. 27). Segundo Edilberto Trigueiros, no estudo sobre a língua e folclore do Nordeste, [...] o aboiado é uma toada de grande beleza pela sua plangência e pela emoção que inspira. O vaqueiro o sente profundamente e só ele sabe entoar. Mas o boi também o entende e se abranda à magia de suas modulações. Vaqueiros há, verdadeiros virtuoses na arte de aboiar. O canto embora pareça monótono na sua arrastada plangência comove e encanta (TRIGUEIROS, 1977, p. 27).160 No penúltimo parágrafo de sua crônica, Câmara Cascudo faz referência à relação homem / bicho, isto é, vaqueiro / gado, os quais parecem se entenderem sob a magia melódica do aboio: O gado sahiu do curral, todo elle, bois immensos, touros nervosos, novilhos trafegos, cabisbaixo, pensativo, n’uma fila lenta, n’um mugido doloroso e foi seguindo no rasto do vaqueiro, o trilho sonoro do aboio. Nenhum correu, nenhum se apressou, nenhum d’aquelles animaes rompeu a forma original d’aquella parada (CASCUDO, 1921, p. 298). Libertado de uma escrita, pois “a letra ninguém conhece”, o aboio, sobre o qual os textos dos escritores potiguares versam, se faz sob as mesmas nuanças de tema e ritmo, reafirmando sua marca regional e permanência na cultura popular do sertanejo. Traçando um paralelo entre ambos os textos, nota-se que se referem quase sempre ao mesmo assunto: habilidades do vaqueiro, cavalos, bois, festas, trabalho, fartura etc., como também de seca, fome, morte e fuga, tudo regado à cadência da saudade, da prece e do lamento. Tudo isso numa vibração de mesmo tom. Sob o ritmo de um estilo literário que revela o envolvimento do autor com o mundo em sua volta de onde recolhe elementos para a matéria literária. Assim, tanto a poesia quanto a prosa, neste caso, se revelam sob um sentido pragmático de compreensão de um Brasil pelo viés de aspectos locais, dentro de uma perspectiva de elaboração literária resultante “das sugestões da personalidade e do mundo que possui autonomia de significado; mas que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real, nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele” (CANDIDO, 2002, p. 85). A interiorização das coisas existentes no mundo em volta patenteia em ambos os textos formas impregnadas dos ritmos e do colorido tropical. Bastante reveladores são os verbos de ação, indicando movimento, a caracterizar que o cronista Câmara Cascudo, assim como o poeta Henrique Castriciano, não lida com signos de um mundo meramente abstrato, mas com imagens e acontecimentos de uma realidade perceptível no espaço e no tempo dos sentidos, 160 No livro Viajando o Sertão, Câmara Cascudo observa que em relação ao gado estrangeiro, introduzido pouco a pouco no estado do Rio Grande do Norte, o canto do aboio não tinha o mesmo efeito: “todo esse gado não atende à magia melódica do aboio, à trilha sonora que, outrora, os vaqueiros desenhavam no ar, sugestionando a boiada vagarosa. Touro zebu, caracu, Heresford, não atende aboio nem serve para ser puxado.” (CASCUDO, 1984c, p. 46). 179 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 conforme expresso nas epígrafes desse texto, aproximando mundo exterior e mundo interior – “cujo pensamento ungido de emoção / Se coubesse num ritmo, era o do coração” (H. Castriciano); “... a dolência rítmica do aboio,... como se fosse a própria alma do sertão que ia cantando...” (C. Cascudo). Em um dos livros capitais sobre a cultura brasileira, Literatura oral no Brasil, mais precisamente nos últimos dos 10 capítulos, Câmara Cascudo se dedica às manifestações culturais relacionadas ao “ciclo do boi”, presente nos autos populares e danças dramáticas. Dentre esse conjunto, destaca o Bumba-meu-boi como um dos autos de maior representatividade no Brasil cuja expansão se deveu, inicialmente, ao processo de assimilação de diversos reisados nos fins do século XVIII161. Diante da possibilidade de traçar um paralelo entre o auto Bumba-meu-boi, onde o boi é figura central, e os textos “O aboio” e “O aboiador” dos escritores potiguares, identificamos neles aspectos recorrentes, tais como o trabalho e a festa, o sagrado e o profano, a vida e a morte. Se o vaqueiro e o aboio são elementos integrantes do auto Bumba-meu-boi, por outro lado, o dinheiro, a bebida, a diversão também fazem parte da festa d’Apartação, momento alto para o aboiador com seu aboio. O processo que marca essas manifestações populares é a referência ao cômico, promovendo a liberação do riso, e a vitória sobre o medo, o sofrimento, a seriedade e a dureza do cotidiano. O aboiador tece seu canto em função do culto ao inverno e à fartura, em oposição à seca e à escassez; como também da morte (“ao dilatar-se o Estio”) ao ressurgimento (“nos meses festivais de invernia”), caracterizando o ciclo vital. Assim como em algumas versões do bailado nordestino em que o boi é morto e seu corpo é distribuído entre os participantes, nas festas de vaquejada o boi, uma vez machucado, deve ser sacrificado e distribuído. O colorido de fitas presentes no Bumba-meu-boi também aparece enfeitando a cintura das mocinhas expectadoras das festas d’apartação, representando alegria, mas também em azul, verde, amarelo e branco (cores citadas nos textos), uma metáfora do Brasil representado na sua condição de país pré-burguês, das fazendas, e apresentado em um ambiente urbano modernizante, a exemplo da São Paulo de 1920 onde os textos foram publicados. A presença destes textos em um periódico de circulação nos centros São Paulo e Rio de Janeiro, nos primeiros anos da década de 1920, nos faz concluir que se estes escritores do Rio Grande do Norte estavam em contato com as idéias em discussão nesses centros, à luz dos movimentos de renovação estética, no mínimo contribuíram com essas discussões oferecendo condições específicas de inscrição da cultura popular no debate de temas relacionados à linha que caracteriza o processo moderno nacional. Ou seja, ambos se revelam à procura de uma expressão brasileira, ainda que por meio de parâmetros, de certo modo, conservadores de fim de século, uma vez que nenhum dos dois textos se estrutura sob uma forma moderna. Deste ponto de vista, processa-se a idéia de que o modernismo no Brasil, antes de ser um evento temporariamente localizado na história literária, deve ser analisado como um processo 161 Conforme registrado por Câmara Cascudo, o folguedo Bumba-meu boi, Boi Kalemba, Boi-bumbá ou simplesmente Boi, “é um auto popular formado no norte do Brasil, da Bahia para cima, pela reunião de vários reisados tradicionais, ao redor da dança do Boi” (CASCUDO, 1984a, p. 421). 180 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 contínuo de diálogo com as dominantes que o antecederam162, incluindo-se aí o penumbrismo literário finissecular. Uma leitura nos dias atuais desse material, no sentido de compreender os matizes de uma ordem sociocultural brasileira, deve passar pelo entendimento de que os aspectos da cultura popular, internalizados no texto escrito, são resultantes de um processo cultural possível somente através da continuidade. Trata-se, pois, de uma tradição dinamizada no processo social e reinterpretada na forma literária (seja poética, no caso de Henrique Castriciano, ou prosaica, de Câmara Cascuda), possibilitando o entendimento de uma experiência nacional de expressão rural. Sendo assim, os textos dos escritores norte-riograndenses acabam por sintetizar para a tradição dos estudos brasileiros parte do mundo primitivo e rural do país, trazendo para o centro do sistema literário uma tradição que, até então, reclamava visibilidade, comungando, portanto, da pesquisa e registro da cultura popular, uma questão central dos regionalismos, redescoberta em seguida pelo modernismo como componente de nacionalidade. ELEMENTS OF THE EXPERIENCE OF EXPRESSION NATIONAL RURAL REINTERPRETED IN THE LITERARY FORM ABSTRACT: The article presents a reading of literary texts by authors from Rio Grande do Norte, inserted in a rural and country thematic in which the figure of the bull appears as a key element. From a clipping in prose and poetry, and based on a historiographic theoretical reference, the objective is to stage a look upon primary sources broadcast in the literary periodical Revista do Brasil, with high turnover in the first decades of the twentieth century in the country. It was found that among the lyric subjectivity, language presents itself under certain concreteness in grasping the landscape through direct references of a regional reality, approaching itself the most of colloquial registry, which is an aspect that in the third phase of Modernism it worked as one of the most important conquests of literary text. Nowadays a reading of this material, in order to understand the nuances of a Brazilian sociocultural order tends to pass by the understanding of the aspects of popular culture internalized in the written text and they are the result of a cultural process possible only through continuity. It is, therefore, a tradition in the social process and reinterpreted in literary form, synthesizing to a tradition of Brazilian studies aspects of the countryside as a component of nationality. KEYWORDS: Popular culture. Lyricism. Literary periodical. Nationality. 162 Ao tecer uma explicação conjuntural a respeito dos vários modernismos, Perry Anderson, no texto “Modernidade e revolução”, faz referência a “diferentes temporalidades históricas”. Para ele, pode-se entender melhor o ‘modernismo’ como um campo cultural de força triangulado por três coordenadas decisivas”, identificadas como: academicismo oficial / tradição antiga ainda atuante; tecnologia / inovações incipientes; e proximidade da revolução social. Conforme a proposta analítica de Perry Anderson, considerando as devidas proporções, o modernismo brasileiro também se situa “entre um passado clássico ainda utilizável, um presente técnico ainda indeterminado e um futuro político ainda imprevisível” (ANDERSON, 1986, p. 8-9 – Grifo do autor). 181 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 REFERÊNCIAS ALENCAR, José. O Sertanejo. 5ª. ed., São Paulo, Clube do Livro, 1952. ANDERSON, Perry. Modernidade e revolução. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 14, p. 2-15, fev. 1986. ANDRADE, Mário. Dicionário musical brasileiro. Coordenação Oneyda Alvarenga; Flávia Camargo Toni. 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Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 RESENHAS 183 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 VELOSO, Gil. Fábulas farsas. São Paulo: Opera Prima, 2009. (Resenha) André Teixeira Cordeiro163 Primeiro livro de Gil Veloso, Fábulas Farsas retoma as fábulas de maneira singular: humor, ritmo, invenção da linguagem e força são determinantes nesta obra. As fábulas, numa linguagem coloquial e muito criativa, tratam de questões da sexualidade, da escrita literária, do ser e parecer no mundo acadêmico, de questionamentos do saber livresco, das pseudo-religiosidades, da fama a qualquer preço etc. Gil entrega-se à linguagem como num improviso (muito racional, na verdade) de jazz, a palavra é a sua morada. E as ilustrações, de Wanderlei Lopes, por sua vez, parecem nos introduzir no tempo dos bestiários. Realizadas com técnica que nos remete ao pontilhismo, todas elas em branco sobre fundo preto, dialogam perfeitamente com as fábulas. As ilustrações são como constelações que se entremeiam harmonicamente entre as narrativas. “O puro ofício de viver se cumpre nos bichos”, frase do escritor Guimarães Rosa, é a epígrafe do livro. Apaixonado por animais, o autor dá o tom nesse livro de Gil. Além do interesse por animais, há, também, como em Rosa, a procura lúdica e incessante de um uso especial da linguagem. O autor de Fábulas farsas maneja habilmente as palavras, quer nos dar a conhecer as várias faces delas. Fazendo amplo uso de um processo semelhante ao da colagem / montagem utilizadas pelos poetas e pintores cubistas e surrealistas, Gil reúne palavras, reutiliza expressões, construções conhecidas e encontra sempre uma terceira coisa, algo novo, inesperado, iluminador: “Deus, quando dá asas, cobra”, “À hora da estrela da vida inteira”, “Da jaula de aula caiu fora, mordeu a repressora”. Outras vezes, faz uso de nomes de autores conhecidos e os homenageia, como quando escreveu na fábula “Micuim, o Ácaro”: “Micuim Caiu Ferido no Breu”, provavelmente, uma referência a Caio Fernando Abreu. Torna assim vivo o que disse Wolfgang Kayser: “Todo o existente está ligado misteriosamente, de forma a não existirem fronteiras firmes entre as coisas, e tudo segue um curso permanente, em transformação constante.” (KAYSER, 1970, p. 191, vol. 1) “O cupim e as coisas” é o primeiro encontro do leitor com a escrita de Gil e traz em germe todo o sistema narrativo da obra. A multiplicidade de planos que surgem de forma quase alucinada, os temas e as associações heterogêneas das fábulas seguintes (todas elas verdadeiros poemas em prosa) já estão nesse texto inicial. Baudelaire, segundo BENJAMIN (1989), procurava pelas ruas, bancas de jornais e galerias de Paris os seus poemas. Gil desvenda tensões humanas enveredando por um mundo de animas e plantas. Micro-universos inesperados podem revelar dramas sociais e individuais: Cupim é a pior coisa que pode acontecer a uma coisa; é o câncer das coisas. Certa vez conheci uma coisa que tinha cupins. Coitada, já velha carcomida por dentro; toda oca nas entranhas. Entranha é uma palavra bastante estranha. Cupim é também palavra bastante esquisita. Esquisita é palavra bastante... Bem, basta! (VELOSO, 2009, p. 13) Fala-se de uma coisa, objeto que tem cupins, mas essa construção vai se encaminhando para uma associação com a figura humana: “câncer”, “entranhas”. Ir ao mundo externo é, no fundo, fazer uma viagem externa. E ainda: 163 Faculdade das Américas – FAM; Faculdade Campos Sales - FCS. 184 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Dizem que há, entre eles, reis, rainhas e soldados. Por minha conta acrescento: políticos (cupins da oratória, degradam tudo), banqueiros, juízes, advogados, pastores, cardeais e colaterais, a cúria toda, todo o clero esclerosado e as gentes demais que formam o povo, cupins de auditório, o zé-povinho basicamente. Escravos certamente os há, aos montes; ditadores, generais obrigando a roer a dita dura. Enfim, uma sociedade com seus modelos a definhar. (VELOSO, 2009, p. 13) O leitor é pego sempre de surpresa, da simplicidade de um tema quase inocente o autor enseja uma demolição desmistificadora. Aponta a sua espada para um Deus e seus representantes que apenas condenam, discute política, ética, questiona “uma sociedade com seus modelos a definhar”. Gil desmonta a sintaxe, escava, frequentemente, novos sentidos na massa lingüística dos significantes: “entranha” / “estranha”, “ditadores” / “dita dura”. Procedimentos que nos remetem à escrita lúdica de Guimarães Rosa e, como já mencionamos, à arte combinatória dos surrealistas e cubistas, ao “estado de bagunça” de muitos dos livros de Murilo Mendes. A escrita de Gil confirma o que diz Antonio Candido no ensaio O direito à literatura: “o conteúdo só atua por causa da forma” (CANDIDO: 2004, p. 179). Há uma indissociabilidade, uma necessidade mútua entre significante e significado, forma e conteúdo. De um vocábulo ou construção mais complexa Gil extrai seu texto, porém não se trata de uma escrita cega, muito pelo contrário, o processo é refletido e racional. Nesse processo de corrosão das coisas, que se estende para a sociedade, Gil, ao final, acaba também descobrindo os cupins que dão em gente: “Atenção, não fique muito tempo parado, devoluto, que poderá ser confundido com uma coisa. Pelo que sei, e acredito piamente,o bicho-de- pé, o tal geográfico, é primo parente desses cupins que não dão em gente. Aposto um dedo do pé que é.” (VELOSO, 2009,15) Cada fábula tem como pretexto um animal, na verdade, o rico e multifacetado processo de associações de Gil parece desconhecer um termo. As fábulas se concluem, mas algumas poderiam continuar numa série de outras fábulas sobre o mesmo animal – e mesmo serem adaptadas para a linguagem dos quadrinhos, para o teatro ou uma série de TV. Digo isso porque a linguagem dinâmica de Fábulas Farsas parece dialogar com vários sistemas. Seu ritmo lembra muito a demolidora irreverência de certos grupos de teatro dos anos 70 como o Asdrúbal trouxe o trombone ou a estética de um programa como TV Pirata, transmitido nos anos 80 e 90 pela TV Globo. Sobre a relação com os quadrinhos, cito a epígrafe da fábula “Sou um burro”: “Justo a mim me coube ser eu”, frase retirada das histórias da Mafalda, de autoria do cartunista Quino. Mafalda é uma menina de 7 anos que vive na Argentina dos anos 70 numa época de conflitos políticos e ideológicos. Mesmo com essa idade, ela entende de política, filosofia e literatura. Esse aspecto aparentemente ingênuo, problematizador e também inesperado é um recurso constante na obra de Gil. A depressão, a angústia, a crise existencial são os motores iniciais da maioria das narrativas. Em “O Vaga-lume louva-a-Deus”, o Vaga-lume estava “Aborressentido, triste, a depressão em riste; ignorava o porquê, se o inferno astral [...], a crise da idade [...]; papai do céu, papai-noel, o saco de sempre.” (VELOSO,2009, p. 16) E antes mesmo desse momento limite, o Vaga-lume já tinha passado por situações difíceis na vida e o narrador recorda: “Pobre-lume, já havia atravessado obscuros e turbulentos pedaços, como quando, desempregado, cortaram-lhe a luz por conta de contas não 185 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 pagas. Ainda bem que ao fim do ano arranjou emprego numa árvore de Natal.” (VELOSO, 2009, p. 16) Acompanhamos também a história de amor do Vaga-lume com uma libélula – que não dá nada certo, pois a beldade achou uma chatice o palavreado todo açucarado do moço. Nessa, como em outras das fábulas, a figura feminina parece arrojada e diferenciada e, realmente, Gil não aposta em histórias de amor do tipo foram felizes para sempre. O autor provoca o tempo todo o seu leitor e chega mesmo, em outras fábulas, a conversar com eles sobre o andamento da história, sobre o seu final. Em seguida ao idílio, o Vaga-lume tenta estrear uma peça, “num palco escuro, só com seu fogo estreme iluminado” (VELOSO, 2009, p. 17). Como se pode constatar, trata-se também de uma aposta muito divertida em figuras vaidosas, ridículas mesmo. Nos encontramos nesses personagens de uma forma muito bem humorada e todos nos levam à reflexão. O Vaga-lume acaba por encontrar seu caminho, como também se dá com outras personagens na obra de Gil, passa a dedicar-se à “temperança, ao dito, e nada erudito, conhecimento [...].Quem o vê, meditabundo em luminescências, julga-o louvaa-deus untado de tudo e Tao. Qual nada! É só uma vaga-luz a luminar.” (VELOSO, 2009, p. 21) Na fábula “O Elefante bailarino”, o autor discute os padrões de comportamento: “O pai do elefantinho, seu Helefantudo, entrou repentino no quarto do filho e ficou besta ao vê-lo bailando com sapatilhas, balangandãs, castanholas e tudo. [...] ‘Que porca vergonha!Uma tromba já des’tamanho e prestar-se a esse dom transviado.’ ” (VELOSO, 2009, p. 31) Helefantudo chegou mesmo a destruir o quarto com todos os ícones cultuados pelo adolescente. O fato é trazido de forma divertida e inteligente: “Parecia que um ciclone passara em seu quarto; uma manada sobre seu peito. Adeus Laban, John Fante, Morangos Mofados, pôster da Pina Bausch e a estatueta de Ganesha, que ele, culto, cultuava.” (VELOSO 2009, p. 32) A mãe do elefantinho ameniza a situação e conta a ele um dos sonhos do passado de seu pai: estudar decoração. Mas foi proibido pelo avô do elefantinho e este, durante o jantar, fez ao pai sisudo essa pergunta que desarma pai e leitor: “Durante o jantar, momento ruminante, ousou súbito, sem tromba de dúvida: ‘Pai, responde resoluto de supetão: qual é o seu dharma, sua vocação, seu dom verdadeiro, seu sonho DE-CO-RA-ÇÃO?’ ” ( VELOSO, 2009, p. 33) Helefantudo começou a espirrar mingau de aveia pela tromba e foi parar no hospital. Depois, tudo acabou se acertando como, muitas vezes, na vida também. São vinte e nove narrativas, três delas não são exatamente fábulas. Duas são, na verdade, uma declaração de afeto aos animas, parecem ter um caráter autobiográfico: “Uma cadela”, Chimía, fala de uma cadelinha que o autor deve ter tido na infância e a outra é “De Gatinho, engatinho”, sobre um gato chamado Bertrand. A outra chama-se “Heureca”, que trata de um personagem chamado “Ninguém”, aqui não há nenhuma relação com animais. Ninguém é um ser deprimido, “Mais solitário que Deus”, segundo o narrador. As vinte e seis histórias restantes têm um caráter semelhante ao das outras que tratamos anteriormente – e não muito diferente dessas três que se destacam mais por não serem fábulas. Há um questionamento permanente da vida (“Zangada, escrava exaurida cansada de usança [...], a abelhinha rebeldesvairada sonhava ser rainha: quem dera viver no harém da colméia real, untada em geléia com um enxame de zangões libidinosos.” - “O Beija-flor e a Abelha que não gostava de mel”), de nossos “bons costumes” e valores morais (exaltação da preguiça: “formada e graduada em não fazer absolutamente nada; exímia em minúcias e tudo que requer esforço mínimo.” – “O 186 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 aniversário da Preguiça”), da religiosidade (“Sem sombra de um deus, sem medo, sem mágoa, de culpas & Cia” – “Micuim, o Ácaro”), da sexualidade (“Machos, uns broxam, outros desabrocham” – “O elefante bailarino”), da espetacularização vazia (como o da lagartixa e seu grande sucesso na “música copular brasileira”: “Mi sexo, su sexo / Su sexo, mi sexo [repete até perder o fôlego]. / Eu quero su sexo. Jo quero sucesso. Eu quero sucexo.” – “A lagartixa e o bicho preguiça”). A proposta, de forma geral, prima pela auto-descoberta e aposta-se nas experiências realmente vividas como quando o narrador de “Heureca” diz ao leitor: “Melhor que você descubra sozinho. Caso esteja muito curioso, pergunte pro adulto mais próximo; obeso de saber livresco virar-se-á do avesso tentando explicar.” (VELOSO, 2009, p.56) O tom é divertido quase sempre (chegando ao humor negro), até na hora de falar sobre suicídio. Em “O Peixinho complexado”, o Peixinho “tristíssimo” e ansioso se empanturra de “doces girinos” e pensa em se suicidar mordendo um anzol. Sem a moral clássica da história ao final de suas fábulas e narrativas – daquele tipo MORAL DA HISTÓRIA: ..., Gil une o útil e o agradável sem receio algum. Não teme barreiras, tabus. Segue, apenas, o próprio caminho que lhe apontam sua consciência crítica e o desejo constante de brincar com a alquimia das palavras. Quem disso isso, certamente, deve dizer mais. REFERÊNCIAS BENJAMIN,Walter. Paris do Segundo Império. Obras Escolhidas III. São Paulo:Brasiliense, 1989. CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. KAISER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Arménio Amado, 1970, vol. 1. 187 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 GUIMARÃES, Rodrigo. objeto algum. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. Alexandre de Melo ANDRADE164 A poesia brasileira das últimas décadas tem sido marcada por vários aspectos que sinalizam a desconstrução do todo-construído e a ruptura com as estruturas preestabelecidas. O Concretismo – movimento poético que marcou a literatura brasileira dos anos 50 e 60 –, por meio da desarticulação sintática, do desmembramento morfológico e da valorização do branco da página, já apontava para essa ruptura e essa desconstrução de que nos ocupamos aqui. Rompendo com o padrão frásico da poesia tradicional, o movimento concretista revalorizou o nominalismo e a economia verbal, desnudando o ser-palavra do acúmulo de significados e propondo uma redescoberta do significante. O cenário poético que desabrochou após a revolução concretista apresentou poetas preocupados com o olhar sobre o objeto-em-si e, consequentemente, despidos dos excessos que poderiam causar transbordamento na forma poética. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, pendia para um fazer-poético enxuto, “petrificado”, atingindo os objetos da forma mais substancial possível. Orides Fontela, já nas últimas décadas do século XX, trouxe uma produção poética que prima pelo movimento construção-desconstrução, de forma que a palavra pudesse – conforme também propõe Heidegger – evocar o “sentido primeiro” e resgatar o primitivismo do ser-palavra, oculto pelo historicismo. Rodrigo Guimarães, que vem se destacando no panorama atual da poesia brasileira, apresenta-nos uma poesia que leva a cabo esse movimento de construçãodestrutiva e de destruição-construtiva comum na lírica contemporânea. Nascido em Belo Horizonte – MG, graduado em Psicologia e doutor em Literatura Comparada pela UFMG, é autor de alguns livros de Psicologia e de obras poéticas. Seu livro objeto algum, publicado em 2008 pela 7Letras – Rio de Janeiro, reabsorve todas as tendências da poesia das últimas décadas – inclusive do próprio Concretismo – e lança mão de recursos que insinuam um ludismo revelador. Desconstruindo as camadas de significados e desautomatizando o leitor, Rodrigo chama a atenção para a coisa-em-si. Seu projeto poético liberta os objetos do mundo das associações e do conhecimento teórico, relativizando o empirismo e a captação do real. O título da obra – objeto algum – por si mesmo já causa um deslocamento em relação às ideias preconcebidas. Pela clareza lógica, o que se teria é “algum objeto”; porém, a inversão dos termos transforma o conteúdo em negação do objeto. Temos, então, uma desreferencialidade que empana o olhar lançado sobre os objetos, e que será pertinente em todos os poemas. A primeira parte da obra, intitulada “Sem título”, causa estranhamento justamente porque o título, por ser um centramento das ideias expostas ao longo de um segmento, contraria sua própria função, o que colabora para a desreferencialidade dos objetos. A segunda parte do livro possui o título da obra. Quando falamos em desreferencial, necessariamente tocamos no plano espacial, pois qualquer referencialidade perdida tange a ausência de um elemento espacial centralizador. O exercício da leitura do livro em duas partes antecipa e acentua essa perda de referência: a primeira parte é escrita em versos que transcorrem a página no sentido mesmo a que estamos acostumado a ler livros; a segunda parte, porém, exige 164 Faculdade Bandeirantes - FABAN 188 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 que o leitor vire o livro, de forma que o aspecto vertical da primeira parte seja o aspecto horizontal da segunda. O próprio livro, dessa forma, projeta uma desreferencialidade em relação ao seu leitor e aos vocábulos que escorrem pelas páginas. Salientamos, ainda, que na segunda parte do livro há uma mistura do verso com a prosa, pois as linhas são ocupadas na quase totalidade de sua extensão na folha, havendo, numa mesma linha, espaçamento maior entre algumas expressões – o que insinua a pausa do fim do verso, ainda que se continue a escrever na mesma linha. O parágrafo, o verso e a segmentação são superpostos, causando a impressão de um non-sense poético, de uma falta de apoio que oriente o curso da escrita e da leitura. O poema que abre a primeira parte da obra, intitulado “sem título”, assim se apresenta: e o que se vê centraliza todo o espaço, persiste, sem moldura ou título, cravado em seu axioma de ferro, seu habitat supremo, desqualificando tudo com exata indiferença, como um prego na parede (2008, p. 13) O olhar, conforme o poeta alude nos três primeiros versos, é responsável por centralizar os objetos captados no mundo físico: o olhar ordena, focaliza, centraliza, mira e organiza. Os termos “moldura”, “título” e “prego na parede” fazem referência justamente a esse caráter centralizador do olhar sobre a matéria. Porém, subtraindo a moldura através do uso da preposição “sem” e mais o uso dos prefixos -des (em “desqualificando”) e -in (em “indiferença”), o poeta descentraliza e, por isso, desautomatiza o olhar sobre a matéria. A segunda estrofe do poema “equilíbrio residual”, transcrita abaixo, assim como o aquário desequilibra o mar a gaiola o espaço o espaço o muro o murro o homem o homem o homem. (2008, p. 49) pressupõe justamente o oposto do título, ou seja, o desequilíbrio. Usando termos de implicação – aquário e mar, gaiola e espaço, espaço e muro, murro e homem –, o poeta propõe que a ordem imposta pelo homem ao mundo acentue o próprio desequilíbrio; ou seja, buscando um equilíbrio, causa um desequilíbrio. O último par de elementos (“O homem o homem.”) justamente transpõe para o homem o fator central de desiqulíbrio, já que ele está contra si mesmo ao alterar o espaço em busca de um “equilíbrio”. Todos os poemas de objeto algum usam recursos de forma e conteúdo para a expressão do desreferencial. Os sentidos – viciados pelas convenções organizacionais – 189 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 são reduzidos a uma escala zero pelo próprio (des) processo com que Rodrigo Guimarães apresenta seus versos. Não há dúvida de que o poeta deve ser lido por aqueles que buscam a compreensão dos caminhos (ou descaminhos?) da poesia contemporânea. 190 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 DISSERTAÇÕES 191 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 LIMA, Maria José Batista de. Orides Fontela: Aspectos da Fortuna Crítica. Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientadora: Kelcilene Grácia Rodrigues. Esta dissertação tem como objetivo catalogar a produção crítica sobre a obra de Orides Fontela, considerando a importância da poeta no quadro das tendências que fecham o século XX no Brasil. Para tanto, fez-se necessária uma pesquisa que teve por meta a sistematização bibliográfica da recepção da escritora paulista, por meio da crítica literária que a recebeu e de trabalhos realizados por pesquisadores que atuam na área da historiografia literária. Assim, catalogamos o material bibliográfico e sistematizamos em categorias discursivas a fortuna crítica de Fontela, de que resultou um trabalho dividido em dois capítulos. No primeiro, apresentamos a vida e a obra da escritora, esboçamos as categorias empregadas para sistematizar a bibliografia de Orides Fontela e realizamos uma exposição dos aspectos tratados em textos publicados sobre a escritora. Esperamos que o estudo crítico da recepção da autora seja instrumento para a organização do conhecimento científico no âmbito literário, fornecendo uma fonte para futuras pesquisas acadêmicas sobre Fontela. No segundo capítulo, analisamos poemas dos livros Transposição (1969), Rosácea (1986) e Teia (1996) para comprovar que a metapoesia e o drama existencial são aspectos recorrentes na poesia oridiana, tal como diversos estudos coligidos na fortuna crítica mencionam. NEVES, Fábio Luís Silva. Ficção, História e Ideologia nas reedições críticas de Visconde de Taunay. Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientador: João Luís Pereira Ourique. Esta pesquisa tem por objetivo analisar algumas reedições de obras do Visconde de Taunay surgidas nos anos de transição entre os séculos XX e o XXI, de modo a tanto fornecer ao leitor e ao pesquisador uma leitura crítica destas reedições quanto apresentar uma outra versão histórico-literária do período. Tendo como base de nosso corpus a reedição do conto “Ierecê a Guaná”, de 2000, organizada por Sérgio Medeiros, propomos também a análise de outras duas reedições: a das Memórias, de 2005, também organizada por Medeiros, e a de Inocência, de 2006, dirigida por Hildebrando Campestrini e editada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Partindo da análise de parte da fortuna crítica do Visconde de Taunay, produzida no século passado, e estabelecendo comparações com as manifestações críticas presentes nas reedições mencionadas, constatamos um embate crítico. Para tanto, apresentamos como base do percurso o material histórico sobre o autor, produzido por renomados críticos brasileiros do século XX, e formulações teóricas condizentes com o período em que as reedições se inserem. Ou seja, tais reedições têm proposta distinta da crítica que consagrou por mais de um século o escritor romântico brasileiro: nelas, a ficção é relida como manifestação direta, sem m ediação, da vivência cultural e política do escritor e é indevidamente apropriada como uma fundação simbólica e atemporal que traz como resultado o fato de a ficção ser transformada em ideologia. 192 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 PEREIRA, Rodrigo Andrade. Tormenta e Resignação: Contos de Luiz Vilela configuram um bildungsroman?. Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientador: Rauer Ribeiro Rodrigues. O presente trabalho tem como corpus contos dos três primeiros livros de Luiz Vilela: Tremor de Terra, de 1967, No Bar, de 1968, e Tarde da Noite, de 1970. O que se pretende verificar é a configuração de um “romance de formação”, o Bildungsroman, observável em uma seleção de contos, quando tais contos são colocados em ordem cronológica da idade do herói da narrativa. Verificamos, nestes contos, conflitos internos das personagens que as levam à próxima etapa da sua vida. Primeiramente, fazemos um breve relato dessas três primeiras obras de Vilela e da formação literária do escritor; fazemos ainda comentários sobre a recepção crítica que estes três primeiros livros tiveram. Abordamos, depois, os vários aspectos do romance de formação, desde os seus primórdios, com o Meister, de Goethe. Passamos pelas análises sobre o romance de formação e a problematização do interior da personagem formuladas por Bakhtin; e verificamos os comentários sobre o romance O Tambor, de Günter Grass, que é considerado pela crítica como uma espécie de romance de formação às avessas. A partir desse referencial, mostramos de que modo pode haver relação entre o gênero conto e o gênero romance. O “romance de formação” deve, sinteticamente, ser definido como um romance que abarca a trajetória da personagem desde os primeiros anos, passa pelos momentos em que se revela e aperfeiçoa, e o acompanha ao grau máximo de perfectibilidade, quando se integra, acomodado, à sociedade. Para demonstrar nossa proposição, analisamos contos de Luiz Vilela, traçando a trajetória da personagem, nas etapas da infância, da sexualidade, da adolescência, do amor jovem, da revolta e – na idade adulta – da conformação. RODRIGUES, Valéria Aparecida. Quase de verdade: quatro fábulas de Clarice Lispector (vida, criança e bichos). Dissertação (Mestrado, Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS – Três Lagoas, 2010. Orientador: Edgar Cézar Nolasco dos Santos. Sob a rubrica da crítica biográfica, este texto propõe estabelecer a intrínseca relação entre autor e obra. A partir da leitura das quatro fábulas claricianas, "O mistério do coelho pensante" (1967), "A mulher que matou os peixes" (1968), "A vida íntima de Laura" (1975) e "Quase de verdade" (1978), entre outros procuraremos detectar como ocorre a relação biográfico-cultural na obra voltada para crianças de Clarice Lispector. Nessa relação que envolve vida e obra inscreve-se o "bio" que, por sua vez, desencadeia outras formas possíveis de serem imaginadas e estabelecidas, ainda que metaforicamente, ampliando as possibilidades de compreensão do texto literário como texto da cultura. Entre as formas possíveis de relação, destacamos as "influências metafóricas" ou "amizades literárias", que aproxima escritores e obras, mesmo quando tal relação não tenha acontecido de fato no percurso histórico. Nesse sentido, é oportuno ressaltar que nossa leitura também privilegiará o conceito de amizade, que é essencial 193 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 para esta pesquisa, já que os amigos também se apresentam como marca autoral na obra clariciana. Assim, a leitura das fábulas infantis de Clarice Lispector colabora com os propósitos desta pesquisa, haja vista que elas apresentam-se como o fabulário da própria vida da escritora, uma vez que as histórias da vida real servem de suplemento para a ficção e vice-versa. 194 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS 1 – Apresentação A revista eletrônica Guavira Letras, registrada com ISSN 1980-1858, avaliada como Qualis B3 pela CAPES, é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMS do Câmpus de Três Lagoas. Criada e publicada desde 2005, a Guavira Letras tem por finalidade divulgar produções científicas de pesquisadores de universidades nacionais e estrangeiras. O periódico conta com um Conselho Consultivo, Conselho Editorial e com pareceristas externos especialmente convidados. 2 – Normas para apresentação dos artigos Observando os objetivos da Revista, a Guavira Letras publicará: a) Artigos originais e inéditos; b) Entrevistas originais e inéditas; c) Resenhas inéditas de obras científicas ou literárias editadas ou reeditadas nos últimos dois anos; d) Trabalhos de revisão e/ou de atualização, elaborados por especialistas; e) Resumos de dissertação de mestrado. 3 – Normas para publicação de artigos na Guavira Letras 1 – Arquivo apenas em extensão DOC. 2 – Os artigos deverão ter no mínimo 10 (dez) e no máximo 20 (vinte) páginas e as resenhas no máximo 03 (três) páginas, respeitando-se a seguinte configuração, em papel A4: 1,25cm de margem para parágrafo, com margens esquerda e superior de 3,0cm e direita e inferior de 2,0cm, sem numeração de páginas. 3 – Os trabalhos de pós-graduandos, assim como os de Mestres e Doutores sem vínculo com instituições de ensino ou pesquisa, só serão aceitos se apresentados em co-autoria com o Prof. Orientador. 4 – Os artigos, entrevistas ou resenhas devem ser enviados por e-mail ([email protected]), em programa Word for Windows 6.0 ou compatível, em um arquivo com o título do trabalho e com identificação do proponente e um arquivo com o título do trabalho e sem identificação do proponente. 5 – O Conselho Consultivo, ao qual serão submetidos os textos, poderá sugerir ao autor modificações de estrutura e de conteúdo. Serão devolvidos para correção os trabalhos para as modificações. Nenhuma modificação de conteúdo ou estilo será feita sem o prévio consentimento do autor. É do autor a inteira responsabilidade pelo conteúdo do material enviado. 195 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 6 – Os artigos deverão ter a seguinte estrutura: 6.1 – Elementos pré-textuais: Título e subtítulo: na primeira linha, centralizados, negrito. Fonte: Times New Roman, corpo 13, somente a primeira letra em maiúscula em ambos. Nome do(s) autor(es): duas linhas abaixo do título, alinhado à direita, com o último sobrenome em maiúscula. Ao final do nome do autor (es) indicar, em nota de rodapé: Sigla – Universidade. Faculdade/Instituto – Departamento. Cidade – Estado – País. CEP – e-mail. RESUMO: três linhas abaixo do nome do autor; em português. Colocar a palavra RESUMO em caixa alta, alinhado à esquerda, sem adentramento e seguida de dois pontos. Redigir o texto em parágrafo único, espaço simples, justificado, de, no mínimo, 150 palavras e, no máximo, 200. Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o resumo. O resumo do artigo deve indicar objetivos, referencial teórico utilizado, resultados obtidos e conclusão. PALAVRAS-CHAVE: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do resumo, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada palavra-chave somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Para maior facilidade de localização do trabalho em consultas bibliográficas, o Conselho Editorial sugere que as palavras-chave correspondam a conceitos mais gerais da área do trabalho. 6.2 – Elementos textuais: Texto: O corpo do texto inicia-se duas linhas abaixo das palavras-chave. Fonte: Times New Roman, corpo 12, alinhamento justificado ao longo de todo o texto. Espaçamento: simples entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do texto (tabelas, ilustrações, citações em destaque, etc.). Citações: no corpo do texto, serão de até 3 (três) linhas, entre aspas duplas. Fonte: Times New Roman, corpo 12. Quando maiores do que 5 (cinco) linhas, devem ser destacadas fora do corpo do texto. Fonte: Times New Roman, corpo 10, em espaço simples, com recuo de 4cm à esquerda. Todas as referências das citações ou menções a outros textos deverão ser indicadas, após a citação, com as seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor em caixa alta, vírgula, ano da publicação, abreviatura de página e o número desta. Exemplo: (CANDIDO, 1976, p. 73-88) (NBR 10520/03). Evitar a utilização de idem ou ibidem e Cf. Quando utilizar apud colocar as mesmas informações solicitadas anteriormente para o autor do texto da qual a citação foi retirada. Exemplo: (BOSI, 2003, p. 1-10 apud SILVA, 1998, p. 23). Não esquecer de incluir todos os dados de ambos os autores. Colocar somente as obras consultadas diretamente nas Referências. Notas explicativas: se necessárias, devem ser: colocadas no rodapé da página de ocorrência, numeradas seqüencialmente, com algarismos arábicos, fonte Times New Roman, corpo 10, alinhamento justificadas, mantendo espaço simples dentro da nota e entre as notas, no decorrer do texto. Títulos e subtítulos das seções: Referenciados a critério do autor, devem estar alinhado à esquerda, sem adentramento, em negrito, sem numeração, inclusive Introdução, Conclusão, Referências e elementos pós-textuais, com maiúscula somente para a primeira palavra da seção, fonte: Times New Roman, corpo 12. 196 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, etc., devem ser inseridas no texto, logo após serem citadas, contendo a devida explicação na parte inferior da mesma, numeradas seqüencialmente. Serão referidas, no corpo do texto, de forma abreviada. Exemplo: Fig. 1. Fig. 2, etc 6.3 – Elementos pós-textuais: Colocados logo após o término do artigo. Título: em inglês, centralizado, em itálico e caixa alta. Inserido duas linhas abaixo do final do texto. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. ABSTRACT: Duas linhas abaixo do título. Colocar a palavra ABSTRACT, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta, fonte Times New Roman, corpo 10 para todo o texto, seguida de dois pontos. Redigir o texto em inglês, em parágrafo único, espaço simples e justificado. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. KEYWORDS: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do abstract, em inglês, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Colocar o termo Keywords em caixa baixa. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada Keywords palavra-chave somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. Referências: seguir as normas da ABNT em uso (NBR-6023/02). Duas linhas abaixo das palavras-chave em inglês, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e caixa alta. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e espaço 1,5 entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento justificado, indicando-se as obras de autores citados no corpo do texto. Bibliografia: se considerada imprescindível, deve vir duas linhas abaixo das referências, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e caixa alta. Podem ser indicadas obras consultadas ou recomendadas, não referenciadas no texto. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e espaço 1,5 entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento justificado. 7 – Exemplos de referências (NBR-6023/02): Livros: AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Tradução de Cláudia Pfeiffer et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1998. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1986. CORACINI, M. J.; BERTOLDO, E. S. (Orgs.). O desejo da teoria e a contingência da prática. Campinas: Mercado das Letras, 2003. 197 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no11 Capítulo de livros: PECHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: Orlandi, E. P. (Org). Gestos de leitura: da história no discurso. Tradução de Maria das Graças Lopes Morin do Amaral. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1994. p.15-50. Artigo em periódico: SCLIAR-CABRAL, L.; RODRIGUES, B. B. Discrepâncias entre a pontuação e as pausas. Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, n.26, p.63-77, 1994. Artigo em periódicos on-line: SOUZA, F. C. Formação de bibliotecários para uma sociedade livre. Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, n.11, p.1-13, jun. 2001. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2001. Dissertações e teses: BITENCOURT, C. M. F. Pátria, civilização e trabalho: o ensino nas escolas paulista (19171939). 1988. 256 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. Artigo em jornal: BURKE, Peter. Misturando os idiomas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 2003. Mais!, p.3. Documento eletrônico: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Coordenadoria Geral de Bibliotecas. Grupo de Trabalho Normalização Documentária da UNESP. Normalização Documentária para a produção científica da UNESP: normas para apresentação de referências. São Paulo, 2003. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2004. Trabalho de congresso ou similar (publicado): MARIN, A. J. Educação continuada. In: CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1., 1990. Anais...São Paulo: UNESP, 1990. p.114-8. CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1996, Recife. Anais eletrônicos...Recife: UFPe. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 1997. CD-ROM: KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (Ed.) Enciclopédia e dicionário digital 98. Direção geral de André Koogan Breikman. São Paulo: Delta; Estadão, 1998. 5 CD-ROM. Produzida por Videolar Multimídia. Conselho Editorial da revista Guavira 198 | P á g i n a Guavira Letras: O texto poético, comparativismo, fontes primárias e outras semioses Organizadores: Éverton Barbosa Correia, Kelcilene Grácia Rodrigues e José Batista de Sales. Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Ago.-Dez. 2010. (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).