D. Leonor de Portugal: Empreendedora da Misericórdia
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D. Leonor de Portugal: Empreendedora da Misericórdia
| D. LEONOR | 34 | JUBILEU DA MISERICÓRDIA | 2016 D. LEONOR DE PORTUGAL: EMPREENDEDORA DA MISERICÓRDIA A fundadora da Misericórdia de Lisboa foi uma das mais notáveis rainhas portuguesas pela sua obra e pelo importante legado que deixou às gerações seguintes, conseguindo colocar em prática as catorze obras de misericórdia, num exemplo de inovação e de empreendedorismo na era de Quinhentos. Texto de Alexandra de Aboim Barahona Brito Rebelo [DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE EMPREENDEDORISMO E ECONOMIA SOCIAL_SCML] E m pleno ano do Jubileu da Misericórdia proclamado pelo Papa Francisco, este é um tempo de misericórdia. Não deveriam ser todos tempos de misericórdia? “Não devemos esperar que os feridos nos batam à porta, devemos acolhê-los, abraçá-los e curá-los. Fazê-los sentir amados.”1 Foi esta a misericórdia, amplamente praticada pela rainha D. Leonor, que esteve na base da fundação da Misericórdia de Lisboa e de outras obras de grande vulto, realizadas não só num espírito de dedicação aos menos afortunados, mas também num espírito de apoio à cultura, através de ações de mecenato nas artes e nas letras, que tiveram início no século xv e que perduram até aos nossos dias. A infanta D. Leonor, também Leonor de Portugal, Leonor de Lencastre, Leonor de Avis ou Leonor de Viseu, foi uma infanta portuguesa nascida em Beja, em 1458, e falecida em Lisboa no Paço de Xabregas, em 1525. Filha do infante D. Fernando e da infanta D. Beatriz de Portugal, duques de Viseu, foi rainha de Portugal pelo casamento com o seu primo D. João II, de cognome o Príncipe Perfeito2. De fisionomia suave, olhos azuis e cabelos JOSÉ MALHOA, Rainha D. Leonor, 1926, óleo sobre tela, 205x137,5. Cm. Inv 1. Museu José Malhoa. Imagem gentilmente cedida pela Direção Regional de Cultura do Centro / Museu José Malhoa 1. Cfr. Il Nome di Dio è Misericordia – Andrea Tornielli – Edizioni Pimme Spa, Milano 2. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda. 35 | D. LEONOR | PATRONA DAS ARTES, DA CIÊNCIA E DA MEDICINA, D. LEONOR DE PORTUGAL FOI UMA DAS MAIS NOTÁVEIS RAINHAS PORTUGUESAS DE TODOS OS TEMPOS” louros, herdados de sua bisavó, D. Filipa de Lencastre, foi considerada “a mais perfeita Raynha que nasceo no Reyno de Portugal”3 pelo seu biógrafo, Frei Jorge de São Paulo. Descendente da Ínclita Geração, assim denominada por Camões de geração notável, sua mãe era filha do infante D. João. Por parte de seu pai, sobrinho do infante D. Henrique, o Navegador, era neta do rei D. Duarte, autor do “Leal Conselheiro”, cujos ensinamentos estiveram presentes na educação da época. Considerado como um primeiro ensaio de filosofia em língua portuguesa e versando sobre as doutrinas da ética e da moral, tendo a lealdade como foco central, o “Leal Conselheiro” surgiu numa época de expansão marítima e económica. Quando do nascimento de D. Leonor, faziam parte da geografia de Portugal os arquipélagos da Madeira e dos Açores. O cabo Bojador tinha finalmente sido “dobrado”: a sua passagem foi um dos importantes marcos da navegação portuguesa que derrubou velhos mitos e abriu caminho para os grandes descobrimentos, por “mares nunca de antes navegados”4. É no reinado de D. João II e de sua mulher D. Leonor que decorrem as negociações para o Tratado de Tordesilhas, para repartir terras descobertas e a descobrir fora da Europa, dividindo o mundo ao meio. Celebrado entre os reinos de Portugal e de Espanha, o tratado trouxe o Brasil para o domínio de Portugal e abriu caminho para expedições em direção à Índia5. Com D. Manuel I é dada importância à diplomacia e a novas descobertas. A exploração marítima prossegue assim com Pedro Álvares Cabral e a descoberta do Brasil, e Vasco da Gama com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, onde então foi aclamado o primeiro vice-rei. No exercício da diplomacia e durante o reinado de D. Manuel I é enviada uma embaixada ao Papa Leão x, que desfilou pelas ruas de Roma, em março de 1514. Marcada pelo exotismo e pela riqueza dos presentes, tinha como objetivo reiterar obediência e apresentar propostas para o fortalecimento da Igreja católica. “Chefiada por Tristão da Cunha e secretariada por Garcia de Resende, a embaixada era composta por mais de cem pessoas, com presentes magníficos: pedrarias, tecidos e joias, um cavalo persa, uma onça de caça e um elefante que executava diversas habilidades.”6 Era este o ambiente que se vivia na era de Quinhentos, no reinado do “Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar, em África, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”7, contemporâneo de sua irmã, a rainha D. Leonor de Portugal. Uma era de prosperidade, de inovação e de políticas empreendedoras, em todos os domínios. Este período do Renascimento, marcado por transformações na sociedade, na economia e na cultura, foi uma transição com profundos efeitos nas artes, na filosofia e nas ciências, teve em Itália a sua maior expressão, mas depressa se difundiu pelo resto da Europa. A arte atingiu perfeição e equilíbrio com Piero della Francesca, Botticelli, Rafael, Michelangelo, Leonardo da Vinci e muitos outros. O pensamento político teve uma inspiração decisiva para a construção do Estado moderno em “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel. 3. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa. 4. Os Lusíadas, canto 1, Luís de Camões, Alvarenga 5. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda. 6. Cfr. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/embaixada-de-d-manuel-i-ao-papa-leao-x/ 7. Direção-Geral do Património Cultural - http://www.patrimoniocultural.pt/ 36 | JUBILEU DA MISERICÓRDIA | 2016 Em Portugal, a influência do Renascimento estendeu-se até finais do século xvi e, como principal potência naval pioneira na exploração marítima, floresceu com as navegações para o Oriente. Os contactos comerciais e o intercâmbio cultural intensificaram-se. Lucros imensos fizeram crescer a burguesia e enriquecer a nobreza, permitindo novos luxos, o cultivo do espírito e o avanço de ciências como a astronomia, a cartografia, a matemática e a medicina. Nomes bem conhecidos como Garcia de Resende, Luís de Camões, Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Damião de Góis, mudaram os tempos. Patrona das artes, da ciência e da medicina, D. Leonor de Portugal foi uma das mais notáveis rainhas portuguesas de todos os tempos, pela sua vasta obra e pelo importante legado que deixou às gerações seguintes, tendo posto em prática as obras de misericórdia. De extraordinário cariz empreendedor, o projeto de fundação da Misericórdia D. LEONOR CONTINUARÁ A SER INCONTORNAVELMENTE A RAINHA DAS MISERICÓRDIAS…”, COM TODAS AS CARATERÍSTICAS FUNDAMENTAIS QUE DEFINEM OS ATUAIS EMPREENDEDORES” de Lisboa e o impulso para a criação de novas misericórdias com uma mesma missão representam, na prática, importantes pilares de um espírito inovador, bem representativo daquele período histórico. Com origem na instituição da Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia, com cem irmãos, “todos de boa fama e sãa consciência e onesta vida, mansos e humildosos a todo o serviço”8 surge, durante a regência da rainha 8. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa 37 | D. LEONOR | RESULTADO DE UM CONSTANTE EMPENHO CARITATIVO, AS OBRAS DE D. LEONOR SÃO EMPREENDIMENTOS QUE SURGIRAM DA SUA VONTADE DE CRIAR, BASEADOS NO IDEAL CRISTÃO E NAS BOAS OBRAS, COM A SIMPLICIDADE DA INOVAÇÃO” D. Leonor, em 15 de agosto de 1498, a Misericórdia de Lisboa, em local conhecido pelo nome de Nossa Senhora da Terra Solta, na capela de Nossa Senhora da Piedade da Sé Catedral de Lisboa. A confraria, orientada pelos princípios estabelecidos no Compromisso da Misericórdia para apoio aos mais desfavorecidos, tinha como objetivo realizar as 14 obras de misericórdia, sete materiais e sete espirituais. Obras pelas quais vamos ao encontro das necessidades do próximo. Instruir, aconselhar, consolar, corrigir os que erram, perdoar as injúrias, suportar com paciência as fraquezas do próximo e rogar a Deus por vivos e defuntos são obras de misericórdia espirituais. As corporais: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, assistir aos doentes, visitar os presos e enterrar os defuntos9. O Compromisso foi aprovado pelo rei D. Manuel I e confirmado pelo Papa Alexandre VI, Rodrigo Borgia. Em 1534, a sede da confraria estava na Igreja da Conceição Velha, onde se manteve até 1755, sendo depois transferida para São Roque, pertença da Companhia de Jesus. Numa expressão mais profunda do ideal cristão, que se traduzia no exercício das suas obras, inspirado no amor e na entreajuda, o “espírito do Compromisso defendia a ideia de todos os homens serem filhos do mesmo Deus criador, portanto unidos pela vivência de irmãos de sangue”10, princípio defendido pela coroa portuguesa, o que não deixa de ser revolucionário para a época. Participante ativa nos desígnios caritativos do reino, D. Leonor, princesa e rainha de Portugal, pela sua vida exemplar e na prática constante da misericórdia e das suas obras, “alcançou de alguns historiadores o epíteto de ‘Princesa Perfeitíssima’, inspirado no cognome do rei seu marido, a cuja altura sempre se soube manter para o juízo da história”11. Patrocinadora da “primeira edição impressa sob égide real”12, do seu mecenato beneficiaram as artes e a cultura religiosa, com traduções de obras e edições impressas. A rainha apoiou escritores, músicos, ourives, pintores, escultores, arquitetos e tantos outros. Fundadora das misericórdias, da Misericórdia de Lisboa e, alguns anos depois, daquela que seria a segunda misericórdia do reino, a Misericórdia de Óbidos, da sua obra fazem parte, entre outros: os banhos das caldas, com a criação do hospital-balnear, junto do qual foi construída a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, e o desenvolvimento da cidade com o mesmo nome, Caldas da Rainha. Também, o Convento e a Igreja da Madre de Deus, o Convento da Anunciada, a Igreja de Nossa Senhora da Merceana, a Igreja de Santo Elói no Porto, as Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha e as sete merceeiras no Convento de Santo Agostinho. “Virtude e Misericórdias descobrem-se e multiplicam-se graças a D. Leonor, pelo que continua a ser conveniente, quase ‘obrigatório’, percorrer o caminho que conduz da descoberta da Misericórdia à invenção das Misericórdias com a ajuda da rainha. Afinal, D. Leonor continuará a 9. Cfr. Catecismo da Igreja Católica – § 2447, www.vatican.va e Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus. 10. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa 11. D. Leonor, Princesa Perfeitíssima – João Ameal – Livraria Tavares Martins, Porto. 12. De princesa a rainha-velha, Leonor de Lencastre – Isabel dos Guimarães Sá, Círculo de Leitores. 38 | JUBILEU DA MISERICÓRDIA | 2016 ser incontornavelmente a Rainha das Misericórdias…”13, com todas as caraterísticas fundamentais que definem os atuais empreendedores. De facto, entrecruzando com os modernos conceitos de empreendedorismo, chegamos às caraterísticas dos empreendedores de sucesso: “iniciativa; orientação para a realização e compromisso com os demais” (McClelland, 1987); “sendo função do empreendedor reformar ou revolucionar o padrão da produção, explorando uma invenção” (Schumpeter, 1952), e introduzindo uma inovação, como “instrumento específico do empreendedor” (Drucker, 1987). Resultado de um constante empenho caritativo, as obras de D. Leonor são empreendimentos que surgiram da sua vontade de criar, baseados no ideal cristão e nas boas obras, com a simplicidade da inovação, que a sua imensa fortuna permitiu, com o apoio de seu irmão El-Rei D. Manuel I, para “abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual!”14, e nos mundos de todos os tempos. “Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. (…). É tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos.”15 BIBLIOGRAFIA AMEAL, João. D. Leonor Princesa Perfeitíssima, Livraria Tavares Martins, Porto. AMORIM, Maria de Lourdes. D. Leonor de Lencastre, Grande Senhora do Renascimento, Editora Ésquilo. DRUCKER, Peter Ferdinand. Inovação e espírito empreendedor, 1987. McCLELLAND, David. Characteristics of Successufull Entrepreneurs, 1987. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – http://antt. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/embaixada-de-d- Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de -manuel-i-ao-papa-leao-x/) Roma, Servo dos Servos de Deus. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda. SÁ, Isabel dos Guimarães. De princesa a rainha-velha, Leonor de Lencastre, Círculo de Leitores. CAMÕES, LUÍS. Os Lusíadas, canto 1, Alvarenga. SCHUMPETER, Joseph. Can capitalism survive?, 1952. CARDOSO, Eurico. Dona Leonor de Lencastre, Rainha SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Misericórdia de Lis- de Portugal, a sua vida e a sua obra, Edição de autor. Catecismo da Igreja Católica – Terceira parte - A vida boa. Quinhentos anos de história – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa. de Cristo – Segunda secção – Os dez mandamentos SOUSA, Ivo Carneiro de. Da Descoberta da Miseri- – Capítulo segundo – “Amarás o teu próximo como a córdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), Granito ti mesmo”, Artigo 7- Sétimo - VI. O amor aos pobres Editores e Livreiros, Lda. – Porto. - § 2447 http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html Comunidade Intermunicipal do Oeste http://www.oestecim.pt Direção-Geral do Património Cultural – http:// www.patrimoniocultural.pt/ TORNIELLI, Andrea. Il Nome di Dio è Misericordia, Edizioni Pimme Spa, Milano. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – www.scml.pt 13. Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), Ivo Carneiro de Sousa, Granito Editores e Livreiros, Lda. Porto – p. 5 14. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus. 15. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus 39