Capítulo etnográfico - Grupo Design, Escola e Arte
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Capítulo etnográfico - Grupo Design, Escola e Arte
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS INSTITUTO DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA CURSO DE BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS MARÍLIA FLOÔR KOSBY “AQUI NÓS CULTUAMOS TODAS AS DOÇURAS”: A CONTRIBUIÇÃO NEGRA PARA A TRADIÇÃO DOCEIRA DE PELOTAS Pelotas, março de 2007 1 MARÍLIA FLOÔR KOSBY “AQUI NÓS CULTUAMOS TODAS AS DOÇURAS”: A CONTRIBUIÇÃO NEGRA PARA A TRADIÇÃO DOCEIRA DE PELOTAS Monografia apresentada como requisito para a conclusão do curso de Bacharelado em Ciências Sociais do Instituto de Sociologia e política da Universidade Federal de Pelotas. Orientador(a): Profª. Drª. Flávia Maria Silva Rieth Pelotas, março de 2007. 1 2 Sumário 1. Introdução ...............................................................................04 2. Capítulo I: Os doces como oferendas para os orixás..............13 3. Capítulo II: Mel e dendê: o agrado e a força............................31 4. Conclusão ...............................................................................44 5. Referências bibliográficas .......................................................48 6. Anexos .....................................................................................50 6. 1. Anexo: Roteiro das entrevistas .............................................51 6. 2. Anexo: Imagens ....................................................................52 2 3 Lista de imagens Imagem 1: Quarto-de-santo com oferendas, no primeiro batuque observado......... 18 Imagem 4:Oferendas no quarto-de-santo em dia de batuque em homenagem....... 23 Imagem 5: Doces para Oxum em festa para Xangô........................................................................................................................24 Imagem 6: Quindins para Oxum em festa de homenagem a Iansã.........................24 Imagem 7: Pai-de-santo e quatro novos devotos dando abertura à cerimônia de iniciação....................................................................................................................28 Imagem 8: Filha de Iemanjá prestes a receber o axé de sangue.......................................................................................................................30 Imagem 9: Filhos-de-santo “batendo cabeça” para o babalorixá dono da terreira, em dia de batuque....................................................................................................31 Imagem 10: Respectivamente azeite de dendê e mel depositados no quarto-de-santo em dia de batuque de “quatro pés".................................................41 3 4 1. Introdução Este estudo etnográfico busca analisar a presença dos doces nas celebrações religiosas de cunho afro-brasileiro, visando compreender os significados que fundamentam a prática de oferecê-los aos orixás nos rituais e cerimônias de Nação1. Coloca-se como um desdobramento das pesquisas para o Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces tradicionais pelotenses2, cuja problemática transita pela tradição doceira de Pelotas, que faz a cidade reconhecida nacionalmente como a “capital do doce”. O conceito de bem cultural de natureza imaterial norteia esta investigação, conforme o seguinte trecho: (...) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada pela Unesco em 17 de outubro de 2003.) Especificamente, a questão étnica se apresenta como uma dimensão importante para o presente estudo, buscando trazer à luz as diversas matrizes 1 Nação é a mesma religião conhecida como Batuque. Segundo Ari Oro, “Batuque é um termo genérico aplicado aos ritmos produzidos à base de percussão por freqüentadores de cultos cujos elementos mitológicos, axiológicos, lingüísticos e ritualísticos são de origem africana. Batuque é uma religião que cultua doze orixás e divide-se em “lados” ou “nações”...” Neste estudo utilizarei o termo “batuque” para referir-me especificamente às festas da religião citada por Oro, visto que meus informantes referem-se à mesma como “Nação”. O que não descarta o uso daquele termo como sinônimo deste. 2 Metodologia formulada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o INCR é o instrumento de pesquisa utilizado no registro dos modos de fazer dos doces tradicionais pelotenses, focando-os como patrimônio imaterial. Equipe de pesquisadores do INRC – produção de doces tradicionais pelotenses: Flávia Maria Silva Rieth (Coodenadora/Pesquisadora), Fábio Vergara Cerqueira (Pesquisador), Maria Letícia Mazzuchi Ferreira (Pesquisadora), Rogério Reus Gonçalves da Rosa (Pesquisador), Mario Osorio Magalhães (Consultor em história), Francisca Ferreira Michelon (Consultora em imagem), Aline Martins da Silva (Bolsista pesquisadora), Marcos Antônio Aristimunha Ferreira (Bolsista pesquisador), Tiago Lemões da Silva (Bolsista pesquisador), Marília Floor Kosby (Bolsista pesquisadora). 4 5 culturais que dão cor, forma e sabor à tradição dos doces de pelotas3 - seja nas singulares técnicas culinárias, no uso de certos ingredientes ou ainda nos diferentes significados que atribuem à comida. E etnia, neste estudo, nada tem a ver com critérios biológicos (como a cor da pele) comumente utilizados na tentativa de classificar os diferentes grupos humanos, mas sim com relações de afirmação de identidade calcadas na diversidade cultural, identificação de crenças e visões de mundo que fazem com que o sujeito sinta-se membro de uma comunidade simbólica, que não é igual a outra; etnia, então, manteria uma ligação direta com a alteridade, uma relação de concomitância, a existência de uma etnia não é cristalizada mas “flutuante”, se dá pelo contraste. Extraído do Diccionario Akal de Etnología e Antropología, o seguinte trecho mostra como de certa forma o conceito de etnia foi se modificando historicamente, deixando de ser uma “entidad discreta dotada de una cultura, de una lengua, de una psicologia específicas”, muitas vezes uma criação colonial autoritária, instrumento de dominação política, econômica e ideológica, para após algumas revisões críticas configurar-se como um ...”significante flotante” por excelência, la etnia no es nada em si, sino lo que hacen los unos o los otros. Por eso, escapando del uso al que estaba reservada por la administración colonial y la antropologia, puede aplicarse ahora a contenidos sociales muy heterogêneos. (BONTE Y IZARD, 1996) Quanto à etnia negra, representada neste âmbito por brasileiros, descendentes de africanos, que partilham, adaptam e reinventam o patrimônio cultural afro-brasileiro4, o discurso recorrente a que se tinha acesso pelas entrevistas, transportava as investigações ao período de opulência da Pelotas urbana do séc.XIX, quando requinte e lazer – possibilitados pela alta cotação do charque e curta duração das safras das charqueadas - permeavam de tal forma o ethos pelotense, que sua análise tornou-se indispensável aos estudos referentes à cultura e história dessa sociedade. Esse cenário sócio-cultural, Mário Osório Magalhães enfoca em seu livro “Opulência e cultura na Província de São Pedro do 3 A palavra “pelotas”, nesta expressão, começa com letra minúscula por referir-se a uma denominação genérica do bem imaterial inventariado, no caso, tipos de doces produzidos particularmente na região da cidade de Pelotas. Configuração sugerida pela equipe de pesquisadores do INRC - produção de doces tradicionais pelotenses. 4 Rituais, alimentos, música, arte e tudo o que “possa formar e determinar um elenco substancial de motivos e de realizações do ser africano no Brasil e do ser afro-brasileiro” (LODY, 2006) 5 6 Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890), citando-o também no texto “Pelotas, capital nacional do doce”: O culto às letras e às artes e, até mais do que isto, o requinte social, ficaram como marcas genéricas, como emblemas dessa civilização. (...) Acabaram por atingir uma importância inestimável, nessa sociedade, o comportamento educado, as boas maneiras, os hábitos e costumes europeus, tendo por palco o interior dos sobrados, dos casarões suntuosos, por ocasião das festas, das comemorações, dos saraus, dos banquetes. (...) Enfim, era uma elite de emergentes, de novos áulicos, novos barões, novos bacharéis que, à maneira dos parentes lusitanos e dos senhores de engenho do Nordeste açucareiro, buscava adoçar corpo e espírito, neste Brasil de clima europeu, com licores (os “finos líquidos”) e desserts; que se deliciava em quindins, babas de moça, fatias de Braga, camafeus, trouxas de amêndoas, pastéis de Santa Clara...” (MAGALHÃES, 2004) Nestas intervenções com doceiras e pessoas envolvidas na produção de doces pelotenses, a referência aos tempos das charqueadas e dos escravos, dos casarões e suas suntuosas festas, dava o tom do discurso, não considerando a contribuição da etnia negra para a tradição doceira da cidade. As narrativas percorriam um nítido e único caminho ao ambiente das ricas cozinhas das sinhás, senhoras das charqueadas e dos palacetes, onde o trabalho escravo das mucamas tratava de executar as incrementadas receitas ditadas por quem detinha os livros e a liberdade de escrevê-los. O relato de uma doceira entrevistada para o INRC – produção de doces tradicionais pelotenses – demonstra esta invisibilidade da contribuição negra no discurso recorrente sobre a tradição dos doces na região de Pelotas: Mas eu acho que o negro não entrou aí com nada. Entrou com o trabalho de mexer os tachos. Com isso ele entrou, porque as sinhazinhas andavam sempre bonitonas. Então, quem fazia tudo era a negrada; iam para a beira dos tachos e dê-lhe a mexer tacho! (CONCEIÇÃO5). Depois de muitas vezes ouvir narrativas como a acima apresentada, buscouse indagar sobre a contribuição dos negros para os próprios sujeitos a quem nos referíamos. A primeira informante, uma mãe-de-santo, apontou outras perspectivas para a investigação, a partir do seguinte relato: 5 Os nomes atribuídos aos informantes são fictícios. 6 7 Conta a lenda que uma escrava desejava muito engravidar e não conseguia, então prometeu a Oxum que lhe daria uma quantia de cem quindins caso tivesse um filho... Mas só sabe contar essa história o negro que é de religião” (MIGUELINA) Colhida a frase emblemática, pelas mãos dos negros de religião6 ingressei na esfera dos rituais e das crenças afro-brasileiras, universo dos iaôs7, dos pais e mães-de-santo, nos batuques ou terreiras8 de Nação, onde alimento e comida são elementos litúrgicos fundamentais, afirmados no dizer de que o “bom batuqueiro se faz na cozinha”, não no salão das festas, onde na sua dança, seu orixá cavalga9. Nestes termos, a tríade negritude, comida e religião circunscreve este estudo, contextualizado entre terreiras e cozinhas. A aproximação com a mitologia que rege os fundamentos da religião dos orixás mostrou-se imprescindível, a fim de identificar estruturas que orientam as ações dos atores em questão - as crenças, os rituais e celebrações dos devotos de Nação. Assim, segundo Reginaldo Prandi: [Os mitos dos orixás]... Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubas, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. (PRANDI, 2001) Optei pelo uso do método etnográfico, no intuito de “apreender o ponto de vista do nativo”, expresso nas suas narrativas e práticas. Este “apreender o ponto de vista do nativo, seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo”, palavras de Malinowski, seria, para o autor, a premissa necessária a relativização dos dados etnográficos, condição na qual o antropólogo pensa as particularidades da cultura do nativo e do pesquisador a partir da diferença, ao contrário do que acarretaria em um estudo julgado etnocêntrico, quando os valores e crenças do pesquisador são vistos como um parâmetro a partir do qual ele orienta suas análises, suas interpretações. 6 A expressão “de religião” é utilizada por muitos informantes para identificar as pessoas iniciadas na Nação. Filha ou filho-de-santo. Categoria inferior as de pais e mães-de-santo. 8 “Terreira”, além de ser o nome dado às festas de outra religião, a Umbanda, é um termo utilizado pelos informantes para se referirem aos templos afro-religiosos onde ocorrem os batuques. Na maioria das terreiras visitadas por ocasião desta pesquisa são realizadas cerimônias referentes aos dois cultos – Umbanda e Nação – porém em condições temporais e espaciais rigidamente distintas. Mas, este tema, apesar de relevante na configuração das crenças religiosas afro-brasileiras, não cabe às discussões deste momento. 9 “Cavalo-de-santo” é uma denominação para o iniciado que empresta seu corpo ao transe. 7 7 8 O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, em sua obra “O Trabalho do Antropólogo”, refere-se à relativização como “uma atitude epistêmica, eminentemente antropológica, graças a qual o pesquisador logra escapar da ameaça do etnocentrismo – essa forma habitual de ver o mundo que circunda o leigo, cuja maneira de olhar e de ouvir não foram disciplinadas pela antropologia.” (OLIVEIRA, 2006) Na introdução de seu trabalho sobre os “Argonautas do Pacífico Ocidental” Malinowski expressa a importância que atribui à observação participante como um meio para que o antropólogo atinja esta apreensão dos significados que os sujeitos investigados atribuem aos acontecimentos de sua vida em sociedade: “Se todas as conclusões forem baseadas única e exclusivamente no relato de informantes ou, então, inferidas de documentos objetivos, será logicamente impossível suplementa-las com dados de comportamento real. (...) Em outras palavras, há uma série de fenômenos de suma importância que de forma alguma podem ser registrados apenas com o auxílio de questionários o documentos estatísticos, mas devem ser observados em sua plena realidade. A esses fenômenos podemos dar o nome de os imponderáveis da vida real.” (MALINOWSKI, 1984) Pertinente à discussão que se desdobra a partir das referências a Malinowski, e seguindo a reflexão de Cardoso de Oliveira –– na qual faz referência ao que acredita serem as duas “idéias-valor”10 que marcam a metodologia da antropologia enquanto disciplina e o fazer do antropólogo, efetivado na etnografia quais sejam, “a observação participante” e a “relativização”: Neste sentido, os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de observação muito peculiar – isto é, peculiar à antropologia -, por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender – a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade. Ao tentar penetrar em formas de vida que lhes são estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto, uma vez que desta vivência – só assegurada pela observação participante “estando lá” – passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina. (OLIVEIRA, 2006) Os “nativos”, os “outros”, nesta pesquisa, identificam-se como o povo-desanto11; e os interlocutores, indicados como profundos conhecedores dos 10 “Idéia-valor” é uma expressão formulada pelo antropólogo francês Louis Dumont, para referir-se a “idéias que possuem uma carga valorativa muito grande” (OLIVEIRA, 2006). 11 De forma bastante restrita, pode-se dizer que povo-de-santo é o conjunto das pessoas iniciadas na Nação. No entanto, a esfera cultural que fornece subsídios ao culto desta religião toca a parcelas da população que não 8 9 fundamentos da religião, são sete sacerdotes, cinco iniciados e um tamboreiro12 também iniciado na Nação, cujo contato – a partir de entrevistas semi-estruturadas permitiu a coleta dos dados de campo, aliadas a observação participante de quatro batuques (em quatro templos diferentes), a visita a outras duas terreiras (em dias comuns, sem festas) e de um Aribibó, ritual de iniciação – totalizando um universo de sete terreiras observadas. Em todos estavam presentes membros de uma rede restrita de famílias-de-santo13, pessoas que acompanhei e com quem dialoguei durante o período de três meses (de setembro a dezembro do ano de 2006). No capítulo I será descrita uma festa de batuque, a primeira da qual participei. Numa descrição inicial, mais centrada nas vestes, nos enfeites dos devotos e do ambiente, realiza-se o traçado daquilo que chamo de palco do culto aos orixás. Discorrer sobre cores e perfumes, sobre atabaques e danças, mostra-se imprescindível porque descreve todo um cenário que se arma para a manifestação dos orixás. Ou seja, permite que se vislumbre o universo de significação dos doces para a etnia negra. A opção por presenciar estas cerimônias, bem como o rito de iniciação, dá-se pelo caráter aglutinador e não-rotineiro de sua realização, ao que Roberto da Matta, em “Carnavais, Malandros e Heróis”, chamou de acontecimentos feitos do “extraordinário construído pela e para a sociedade”, marcado por alguns princípios, dentre os quais aquele que pontua “a separação nítida entre um domínio do mundo cotidiano e outro: o universo dos acontecimentos extra-ordinários. A passagem de um domínio a outro é marcada por modificações no comportamento, e tais mudanças criam as condições para que eles sejam percebidos como especiais. Este é o subuniverso das festas e das solenidades.” (DA MATTA, 1997) Além disso, apenas a elementar condição de serem tidas como rituais já situa estas manifestações no terreno daquilo que se deseja perene, no âmbito daqueles aspectos que o povo-de-santo pretende dispor fora da dimensão temporal e formalmente ingressam no culto, como o compromisso, por exemplo, de um filho-de-santo, mas partilham de crenças religiosas com estes. 12 A figura do tamboreiro aqui se apresenta como de grande relevância, são eles as pessoas que evocam os orixás nos rituais, todo ritual deve ter um tamboreiro, é o som executado por eles que chama o deus. Relata um devoto: “é começar a soar o atabaque que o corpo da gente já fica meio balançado”. Os tamboreiros circulam por diferentes festas, diversos rituais de diferentes templos e até em diferentes localidades do país, trazendo uma significativa bagagem de experiências acerca da ritualística afro-religiosa. 13 Grupo de iniciados formado por um pai ou mãe-de-santo e seus filhos-de-santo. 9 10 espacial, dramatizações, que, ainda conforme Da Matta, permitem “tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte de seus ideais eternos”. Assim, a presença em batuques, observando as danças, as rezas, os trajes, o comportamento ritual dos devotos, a disposição das oferendas, pôs-me em contato com uma situação que se apresenta como um catalisador dos elementos centrais para os quais as crenças cultivadas na Nação dirigem seus fundamentos, norteando as demais ações no seio dos grupos envolvidos nestes cultos (as famílias-de-santo e o próprio povo-de-santo). Da Matta, ainda em “Carnavais, Malandros e Heróis”, reforça o porquê da importância destes momentos repletos de regulamentações, regras e comportamentos pré-determinados na análise antropológica: “... o domínio dos ritos e das fórmulas paradigmáticas que inventam e sustentam personagens culturais é a esfera daquilo que gostaríamos que estivesse situado ao longo ou mesmo fora do tempo. Daí porque os rituais servem, sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e construir seu caráter. É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores.” ( DA MATTA, 1997) O batuque, a festa, foi onde definitivamente cruzei as fronteiras para o território afro-religioso e estabeleci os primeiros contatos da rede de informantes que se tramou para esta pesquisa. Os doces, objetos deste estudo, não se encontravam exatamente no salão, mas em um lugar bastante privilegiado, em se tratando desse tipo de cerimônia: o quarto-de-santo14.Com permissão para fotografar a presença de doces pelotenses na celebração, fui apresentada ao quarto dos orixás. O registro fotográfico foi outra técnica que me proporcionou relevante contato com o ambiente das terreiras. Por trás das lentes, com o intuito de captar a disposição dos doces oferendados, nas festas ou nos rituais mais privados, torneime, então, para os sujeitos investigados, um veículo de divulgação das suas manifestações, retendo a imagem de momentos marcantes do seu calendário de celebrações. A princípio, presumia que a câmera pudesse constranger os participantes das noturnas cerimônias. Pelo contrário, para meu estranhamento, sua 14 Cômodo da casa do sacerdote ou de iniciado pronto para ter seus santos em casa, no qual ficam seus orixás e onde são dispostas as oferendas. No caso de um iniciado que tem filhos-de-santo, nessa peça também ficam os santos de alguns destes. Nos templos que visitei o quarto-de-santo se dispunha de frente para o salão das festas. 10 11 acolhida tornou clara a intenção de estampar para além do círculo de sociabilidade da religião, o colorido e a fartura de suas festas, a altivez de seus quartos-de-santo, a destreza do bailado de seus cavalos-de-santo. Nos batuques, o principal foco de meus registros, como já disse, foi a ambientação da festa, que é mais aberta ao público, recebendo convidados de outros templos, com os quais a família-de-santo anfitriã compartilhará desde o salão e as rezas, as comidas e alguns dos doces dispostos nos aposentos dos orixás. São os batuques as noites de gala do povo-desanto, eventos que coroam toda uma rotina de devoção e culto constante dos filhos aos seus pais15. Além dos batuques, no primeiro capítulo é feita a descrição de um ritual de iniciação, chamado Aribibó. É nessa ocasião que se começa o processo de preparação do iaô para seu orixá (consumado em ritual posterior, o Assentamento de Obori), portanto, a forma como o santo é “feito” é que lhe dará as características temperamentais que o acompanharão durante toda jornada de guarda da vida de seu filho. O que orientou minhas observações foi a relação entre as categorias doce e amargo reificadas no mel e no azeite de dendê, substâncias que norteiam os pontos cruciais da feitura do orixá dos iniciantes, pois os dois condimentos serão os responsáveis pela atribuição destas matizes comportamentais. O segundo capítulo, denominado “Mel e dendê: o agrado e a força”, apresenta discussões teóricas sobre os significados da comida nos rituais de Nação, bem como sobre a importância dos ritos como privilegiados momentos de análise, por condensarem aspectos da realidade social que o grupo investigado considera relevantes, muitas vezes, como no caso dos rituais religiosos, servindo para delimitar as posições daquilo que é sagrado e do que é profano. É neste capítulo também que, a partir das referências de alguns autores, apresenta-se a religiosidade como um importante fator de elaboração etnocultural dos valores e crenças afrobrasileiros. Além destas observações, no capítulo II desenrola-se a análise teórica acerca do englobamento do amargo pelo doce, e seus reflexos na construção de categorias hierárquicas entre os orixás. No caso da cerimônia de iniciação que assisti, o doce do mel predominou, não se despejou sequer um pingo de azeite em ocasião alguma. 15 A pessoa que tem determinado seu orixá anjo-da-guarda através do jogo de búzios, pode-se dizer filho de tal santo. Ex: “Eu sou filho de Xangô.” 11 12 Penetrar no universo dos batuques, festas onde os corpos só cansam quando cessam os tambores; mundo de rituais metódicos, tantas cores, múltiplos cheiros e apurados sabores, como é o cotidiano de cerimônias das famílias-de-santo, é a oportunidade de vislumbrar um viés da atmosfera composta pelos significados que a doçura assume na vida dos pelotenses, na articulação com uma conceituação e hierarquização de relações sociais que transcende a esfera da cidade, habitando as estruturas construídas nas imbricações entre indivíduos e coletividade. Além do mais, buscar analisar a contribuição negra para a tradição doceira de Pelotas, a partir do estudo etnográfico de crenças rituais religiosos – sejam festas ou ritos de iniciação – compreende o esforço em demonstrar como o povo-de-santo organiza sua realidade, situando o que é sagrado e o que é profano, e buscando cotidianamente a harmonia individual e coletiva com estas duas esferas. Para tanto, permeiam os rituais, as rezas, os toques de tambor, as ervas, o sangue, as frentes e, por fim, os doces, o axé em forma de agrado, a mais requintada oferenda. 12 13 2. Capítulo I Os doces como oferendas para os orixás. Muito azul, de um azul radiante, que pintava desde o suntuoso vestido até as pequenas flores que enfeitavam suas unhas. Todos os tons meticulosamente combinando, o prateado das pulseiras, o negro da pele e os azuis da maquiagem, das vestes e da guia16 que adornava seu colo. Era filha de Iemanjá17, Rainha do Mar, a minha primeira entrevistada, que à meia-noite de um sábado de setembro prestou-se a primordial tarefa de transpor-me para dentro de uma terreira em dia de batuque. Estranhamento. Vigoroso, apresentou-se de tal forma que todas as certezas e pré-noções a respeito do que viria a presenciar, pareceram esmaecidas num espaço qualquer de minha percepção. Talvez tenham sido as cores – imaginara encontrar alguém vestida com roupas comuns, brancas, como nas manifestações públicas que estava acostumada a assistir, uma associação com o predomínio das vestes alvas usadas em outros tipos de cultos de influência africana, como a umbanda. Talvez o contraste entre minhas expectativas e a atmosfera excepcional que envolvia a figura da informante, trazendo-me a impressão de rumar para um território distante, de minha experiência e imaginação, tenha me despertado do impassível repouso em que se acomodaram meu olhar, meu ouvir. Era mágico o aprumo no seu trajar, porque fascinante e fora do comum: o vestido armado, descia até um pouco além dos joelhos, deixando ver-se por baixo uma espécie de bombacha de rendas também azuis; na cabeça, completando a aura de capricho e aprumo, largas tiras do mesmo tecido do vestido faziam as vezes de tiara. Fui reconhecer a influência no estilo das vestes, quando em posteriores vezes deparei-me com as imagens dos orixás em seus trajes tradicionais. No entanto, meu estranhamento não era tão íntimo, podia perceber a surpresa no olhar dos vizinhos da iaô. Talvez ninguém, além dela, tivesse noção do que significava saber que na festa daquela noite, em gestos e movimentos 16 Colar feito de contas coloridas que se referem à cor dos santos donos da cabeça e do corpo de cada devoto. Pode haver a inclusão de outros materiais na elaboração da guia, há quem adorne o fio de náilon com dentes de animais ou conchas, mas as miçangas coloridas compradas em lojas de aviamentos são predominantes. 17 No jogo de búzios a ialorixá ou o babalorixá – pessoas que já receberam o “axé de búzios”, ou seja, a permissão de consultar o oráculo - determina qual é o orixá que rege a cabeça do consulente. Segundo Pai Cabral de Oxalá, Iemanjá é simbolizada pela cor azul, mas gosta do prateado das escamas dos peixes e dos reflexos da luz na água. 13 14 “milenares”, dançariam seus deuses – os doze orixás cultuados na Nação: Bará, Ogum, Iansã (ou Oiá), Xangô, Odé, Otim, Obá, Ossaim, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá. Foi pôr os pés descalços no templo que logo presenciei descortinar-se o palco multicolorido do povo-de-santo. A graça em se vestir e enfeitar-se já não era agora uma característica reservada à minha acompanhante. Além das pessoas, todo o grande salão estava em traje de festa; e o cheiro das comidas dos santos que enlevava o ar, entregava-se a quem chegasse, como mais um apelo sensorial que o batuque oferecia. As comidas-de-santo são servidas aos presentes durante a festa e devem ser degustadas conforme algumas regras – no caso do amalá, pirão de farinha de mandioca com carne de peito cozida, mostarda cozida, mais seis18 bananas e uma maçã partida em quatro, prato preferido de Xangô, deve-se comer agachado e com os dedos, aliás, não se utilizam talheres para comer as comidas-de-santo. Nem todas as pessoas seguem os gestos rituais porque muitos convidados não são iniciados na religião, desconhecendo-os; no entanto, por recomendação de meus acompanhantes, temerosos de qualquer gafe ou falha quanto às boas maneiras, obedeci aos procedimentos. Em datas ulteriores, já em outros batuques, não presenciei a execução dos mesmos rituais, o que caracteriza uma certa maleabilidade quanto ao rigor nessas expressões, fundada no tipo de moralidade que orienta a relação entre devoto de Nação e seus deuses, no qual os padrões éticos de certo ou errado são estabelecidos na relação íntima e pessoal entre o filho-de-santo e seu orixá; como no exemplo do pai-de-santo que me acompanhava na festa: “Eu não vou comer agachado porque doem meus joelhos, tenho certeza que meu pai Oxalá não vai ficar brabo por isso, ele quer me ver bem. (Roque)” . O brio em ornamentar o corpo é apenas um aspecto de todo o cenário elaborado para cultuar, louvar e enaltecer os deuses, pois é na ocupação19 que o orixá se manifesta. É no deixar-se cavalgar por seu orixá que o cavalo-de-santo 18 No caso de o Amalá ser oferecido a Xangô Agandjú, o Xangô em sua qualidade jovem, são utilizadas 12 bananas. Nos relatos, o orixá homenageado foi Xangô Agodô, o mais velho. A maçã é partida em quatro partes para que o orixá possa compartilhá-la com suas três mulheres: Obá, Iansã e Oxum. 19 Ocupação é o termo popular utilizado para designar o padrão de transe que ocorre na Nação. Segundo Reginaldo Prandi, “a divindade se apropria do corpo e da mente do iniciado, num modelo de transe inconsciente bem diferente daquele do Kardecismo, em que o médium, mesmo em transe, deve sempre permanecer atento à presença do espírito.” 14 15 mostra o porquê de tamanho zelo: porque todos dançam, giram e balançam às rezas que os atabaques puxam, mas é só quando os deuses marcam seu passo que a euforia se expande nas saudações, nos aplausos, nos gritos efusivos em nome dos pais e mães, que então desfilam sua divindade pelo salão20. Seguindo a perspectiva de Roger Bastide, é interessante pontuar que, na Nação, como em diversas outras religiões afro-americanas, os deuses descem para, por alguns momentos, habitarem o corpo de seus fies, diferentemente das religiões ocidentais onde o fiel deve elevarse até Deus21. Portanto, sem a pretensão de voltar-me para uma discussão de territorialidade, mas num nível estrutural, valho-me mais do conceito de “área cultural”, o que permite supor que para os “batuqueiros” assim como para os devotos dos orixás na África, nas Antilhas, na Guiana, tornar-se, em transe, cavalo de seu orixá, seria como proporcionar-lhe a sensação de liberdade e opulência que o cavalo proporcionou ao negro escravo do Rio Grande do Sul (bem como ao gaúcho dono de estância), a possibilidade de mesmo estando entre os mortais, não prenderem-se ao chão, estarem constantemente a cima, olhando por sobre os homens. A metáfora cavalo-de-santo, em voga não só na Nação, mas nos cultos de influência afro disseminados por alguns países da América e África, presta-se a significar que os orixás mesmo quando descem, o fazem com magnificência, tocam o profano com altivez. Os orixás donos do templo eram Oxum e Xangô – os donos das cabeças dos pais-de-santo anfitriões – mas a data, dia 30 de setembro, era aniversário do último, portanto, a casa estava toda enfeitada de vermelho e branco, com pequenas imagens de cada um dos doze santos dispostas pelo salão e miniaturas de suas ferramentas símbolo penduradas no teto. Os trajes predominavam naquelas duas cores, mesmo que muitos devotos optassem por usar tons referentes a seus orixás pais. Conforme alguns entrevistados, toda essa pompa não se restringe à rede de informantes com a qual tive contato, mas caracteriza a Nação no contexto pelotense: 20 Em posteriores ocasiões, já em visita a outros templos, pude observar o aglomerar de pessoas à porta do salão para ver Ogum e Iansã relembrarem na sua dança a passagem mítica do duelo com suas espadas – muitas destas pessoas não faziam parte da família-de-santo, mas traziam rosas vermelhas em devoção à orixá guerreira, charmosa e apaixonada, a dona da sensualidade. 21 LEAL, 1997 15 16 Isso é original daqui... A religião daqui é meio caprichosa. Porque em Porto Alegre as roupas do pessoal são bem mais simples. Em qualquer outro lugar. Aqui, cada um procura botar mais coisas. (Sebastião: pai-desanto) O santo é simples, nós é que enfeitamos. O santo come numa tigela de barro, nós é que botamos cristal. Ele não exige cristais, ouro e prata. Nada, ele é simples. No alguidar de barro tu fazes tudo e ele te responde. Não está no luxo, está no capricho... Pelotas quer sempre mostrar a pompa, na cultura, em tudo. (Cristóvão: pai-de-santo) Mesmo que tudo chamasse minha atenção, o objeto que me trazia até o batuque eram os doces. Foi à procura destes, que cheguei ao quarto-de-santo, o espaço mais sagrado da casa, os aposentos dos orixás. As cores novamente se prestam a descrever a onipresença de todos os deuses no cômodo, nenhuma cor de qualquer flor ou qualquer fruta estava ali por acaso, cada uma marcava a presença de oferendas para o santo que representam. Imagem 1: Quarto-de-santo com oferendas, no primeiro batuque observado. Bairro Cohab Tablada, Pelotas, 30/09/06. Acervo Marília Floôr Kosby. A pequena peça – sem portas, nem janelas, apenas com um vão que dava à frente do salão - estava repleta de oferendas: flores, frutas e as frentes dos orixás – estas últimas são as comidas prediletas de cada santo, bem cozidas e caprichosamente preparadas, oferecidas em recipientes adequados, com toda pompa, na frente de suas imagens; fazendo referência à intimidade, ao aconchego 16 17 do lar, é o universo socialmente elaborado, permitindo a integração de coisas que estavam separadas. O axé22 materializado na comida está sempre presente no quarto-de-santo, mesmo quando não há festa, é a garantia de zelo constante do pai (orixá) pelos seus filhos. Além das frentes, e em maior número, havia pudins, bolos, balas e, finalmente, alguns dos considerados doces tradicionais pelotenses: uma bandeja adornada de ninhos, camafeus e bem-casados era guardada por uma guia verde, branca e amarela e um pote com figos em calda. Segundo o pai-de-santo anfitrião, a elaboração do quarto-de-santo resume-se da seguinte forma: Na verdade, o doce é para isso: a gente oferece para o orixá aquilo que a gente quer também na vida da gente, é harmonia, é paz, é tranqüilidade. Como a fruta é prosperidade, a flor. Então, fruta, flor e doce é isso: prosperidade, harmonia, tranqüilidade e fartura. (BATISTA, pai-de-santo) Templo de Nação Jeje com Igexá23, nesta casa o batuque é uma festa em que a fartura – representada na comida e na beleza do ambiente - deve ser compartilhada. Todos os agrados, tudo que se oferece, se oferece no sentido de aproximar cada vez mais deus e devoto; e o elemento que faz este papel é a comida, cozida, feita dos melhores ingredientes, escolhidos com minúcia, picados delicadamente e dispostos da forma mais agradável possível aos olhos e ao paladar. A comensalidade vai unir homens, deuses e natureza: ... a festa deles [dos orixás] é compartilhar com o povo. Na verdade, a festa que a gente faz para os orixás e oferece para o povo, é para os orixás compartilharem com a gente aquela fartura. O que fica para os orixás é o axé, aqueles doces que tu viste no quarto de santo são repartidos com o pessoal da casa. Tu comes a noite inteira. (BATISTA, pai-de-santo) Além disso, reciprocidade é um princípio sempre presente no discurso do sacerdote: tudo que se oferece representa o que se quer em retribuição. Os doces, 22 A palavra axé vem do dialeto iorubá, de origem sudanesa, e significa força, a energia vital que gere o mundo, refere-se à energia que emana do panteão africano. Toda comida ou presente que se dá para o orixá também é chamado de axé. É um termo genérico para designar força. 23 Como já citado anteriormente, a Nação se divide em “lados” ou “nações”. Conforme Oro, historicamente as mais representativas do Rio Grande do Sul seriam: Oyó, Jeje e Igexá – representadas por escravos Sudaneses – e Cabinda e Nagô, de origem Bantu. Como em solo brasileiro, nas senzalas, os povos africanos passaram a dividir o mesmo território, o mesmo aconteceu com as diferenças nos fundamentos de suas crenças. Então, muitos templos se denominam mistos, outros puros – o que segundo alguns autores é mais uma maneira de demarcar as diferenças que existem nos fundamentos de sua casa, fundamentos estes herdados de seu respectivo pai ou mãe-de-santo. 17 18 junto com as frutas, neste caso, ultrapassam o sentido do alimento enquanto fonte de energia, não se quer mais apenas a presença do deus, mas agradá-lo, acarinhálo. Com raras exceções, todo batuque sucede um ritual de sacrifício, o corte, como é genericamente denominado o procedimento ritual de sangrar animais para que seja dado ao orixá o componente material vital a sua existência, significado no sangue – é o elemento da natureza humana, ou animal, subjetivado, trazido a representar o pulsar abstrato de uma vida divina. O axé trazido pelo sangue cru, quente e selvagem do sacrifício de animais e por algumas plantas, permite que se dê vida ao orixá, que ele tenha energia para se manifestar – é a natureza do mundo real em sua forma ainda não culturalmente elaborada. Mesmo as frentes, com toda sua minuciosa elaboração e cozimento, carregam ainda a conotação de alimento, de uma necessidade básica – um alimento culturalmente elaborado, como já foi dito, para que o orixá mantenha-se forte sem deixar de ser bem acolhido pelos seus filhos. Mas os doces, as flores e as frutas ultrapassam as conotações sugeridas pelas comidas e pelo sangue, trazem intrínsecas categorias de classificação mais complexas: Todo ritual que nós fizermos, seja no dia do corte ou no dia do toque, sempre tem flor, fruta e doce. Não na mesma quantidade. Aqui na minha casa, desde uma obrigação pequena até uma obrigação maior, sempre tem que ter pelo menos um galhinho de flor, umas frutinhas e nem que seja um bolo ou uma compota, um axé doce – porque é prosperidade, é alegria e é 24 fartura, é doçura. Não interessa o tamanho da obrigação . (BATISTA, paide-santo) Quando se fala em comida põem-se os doces em um patamar de civilidade ainda maior, porque “são um agrado a mais, são um presente”, agregam em seu significado todas as características associadas à harmonia, à sociabilidade, ao prazer de estar junto e de comer junto; transpõem o caráter natural porque respondem a acordos de comunhão e trocas, não só chamam ou evocam os deuses, mas os presenteiam – só oferece doce quem quer ganhar alegria, felicidade, carinho; só agrada quem quer ser agradado. 24 Obrigação é todo o ritual no qual o iniciado dá axé aos orixás ou a um orixá específico. 18 19 Outros relatos, de iniciados de Nação Cabinda – considerada a predominante em Pelotas – deixam muito clara essa separação das categorias, classificando os doces como um presente, um agrado, algo situado nitidamente fora da esfera restrita da alimentação: ...é que dá para dividir as frentes. Tem as frentes para festa e tem a comida. Quando tu estás só dando comida para o orixá, não tem doce. Agora, quando tu vais fazer uma frente de presente, uma bandeja de presente, tem doce... É um agrado. Tu enfeitas, botas tudo o que o orixá gosta. Eu sou do Oxalá: eu boto cocada, boto coco, boto uva branca, tudo na bandeja. Mas se eu for fazer só uma frente, é só canjica branca. (SEBASTIÃO, filho-de-santo) A frente para a obrigação é uma, e a frente para o teu orixá é outra. O doce 25 é o agrado... Se tem obrigação, se é quatro pés , vão todas as frentes, mais simples, básicas. (CRISTÓVÃO, pai-de-santo) Os doces? Agora, os rituais estão de um jeito que se faz em quase todo batuque. (BÁRBARA, mãe-de-santo). O fato de considerarem-se membros de um outro lado da Nação não transgride o sentido que os informantes dão às categorias em questão, apenas mostra algumas diferenças nos fundamentos da religião. É importante fazer esta observação porque Batista foi o único entrevistado que não era de Cabinda. Mas em todas as nações ou “lados” é costumeiro os batuques sofrerem uma diferenciação quanto às oferendas: há a festa de “quatro pés”, onde geralmente não se encontram doces no quarto-de-santo, em seguida o “batuque dos peixes” (nos quais são oferecidas apenas carnes destes animais), e por último, no dia de encerramento das obrigações, o “batuque de terminação”, também chamado de “batuque dos doces”. Além destes, há também a chamada “quinzena dos doces”, batuques realizados sem que tenham sido feitos cortes de animais. Quando há toque de aniversário para algum orixá, ou quando se faz algum serviço26, os doces também predominam entre as oferendas: Geralmente, nos fins dos batuques se dá [os doces] – é a quinzena dos doces, como se diz. A princípio saem os salgados, as carnes de galinha, carne de cabrito; se tem, carne de carneiro; se tem, carne de porco, que é do Odé, quer dizer que é o princípio do batuque. O amalá também: dá o amalá no prato, conforme as condições das pessoas, e dá o amalá na gamela. (BÁRBARA, mãe-de-santo) O quindim é para muita coisa, para dinheiro, para engravidar. É para a doçura do corpo... O doce de figo é para Ossanha. Se tu queres fazer para 25 Festa de “quatro pés” é um batuque realizado quando há a obrigação de corte de animais com quatro patas. Serviços são oferendas, elaboradas para que os orixás respondam a pedidos específicos feitos pelos iniciados, ou encomendados por clientes não iniciados. 26 19 20 dinheiro, fazes uma bandeja de pipoca - com um pouquinho de miãmiã, se tem, se não tem, vai só a pipoca mesmo... Podes levar num verde, na ponta de um cruzeiro para ele trazer dinheiro.. Tem que ser doce... (BÁRBARA, mãe-de-santo) ...em algumas casas fazem com compota, se eu fosse fazer, faria com o figo cristalizado, aquele que vem com açúcar na volta. Porque o açúcar cristalizado é da Iansã, a mulher do movimento; e o figo é do Ossanha, que é o dono da erva e da caminhada. (CARMO, filha-de-santo) Imagem 2: Oferendas no quarto-de-santo em dia de batuque de quatro pés. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. Imagem 3: Oferendas no quarto-de-santo em dia de “batuque de terminação”. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. 20 21 Imagem 4:oferendas no quarto-de-santo em dia de batuque em homenagem a Iansã. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. Geralmente “todo reino tem uma doceira”27 que fica encarregada de coordenar o serão dos doces, período no qual são preparadas estas oferendas, na própria cozinha da casa-de-santo. Na ocasião de não haver uma doceira na famíliade-santo, que se encarregue desta tarefa, os doces são comprados no comércio local – o que, em se tratando da cidade de Pelotas, pode explicar a grande variedade de confeitos encontradas nas oferendas, inclusive os considerados doces tradicionais pelotenses: Quando a encomenda de quindins é muito grande a gente já sabe que é para religião. (Doceira não iniciada na Nação. Fonte: diário de campo) Esses doces estão aí porque são os nossos doces, são os doces tradicionais aqui de Pelotas. Se fosse em outro lugar ou outra época, seriam só algumas papinhas coloridas... Por isso, os mais usados são os doces de frutas. (ROQUE, pai-de-santo que me acompanhou no primeiro batuque – fonte: diário de campo.) Se tu fores a Porto Alegre, as coisas não são assim, é tudo mais simples. A gente aqui em Pelotas é que gosta de enfeitar com doce. Quem é que não gosta de ganhar uma bandeja de doces?... Coisa bem linda é uma bandeja com ninhos! (BÁRBARA, mãe-de-santo entrevistada – fonte: diário de campo) Ainda no batuque de aniversário de Xangô - protagonizando o colorido do quarto-de-santo, o doce lembrado pela lenda citada na introdução deste estudo, e por muitos informantes considerado um híbrido culinário representativo das fusões culinárias luso/africanas em solo brasileiro: combinação da mistura de ovos e açúcar 27 O termo “reino” refere-se ao grupo de iniciados que se institui numa certa família-de-santo, coordenada por um pai ou mãe-de-santo, que por conseqüência tem o orixá dono de sua cabeça como o Pai ou Mãe de seu reino. 21 22 com o coco ralado, os quindins davam o tom amarelo para a doçura das oferendas28. Da cor do ouro e feitos de ovos, são os doces consagrados à Oxum, deusa da gestação, da fertilidade e da riqueza. Ao ver as fotografias do quarto-desanto no batuque de setembro, o pai-de-santo da casa afirma: Então, aquele dia tinha muito doce de Oxum porque, não adianta, o doce é dela. Todos os orixás têm seus doces, mas ela é que gosta mesmo. O bolo, a confeitaria, é da Oxum. Não é que os outros não gostem, mas por mais que tu te esforces, automaticamente, é ela que ganha mais. É natural. Às vezes tu programas um bolo para cada um, e quando tu vês chega alguém com outro bolo para Oxum, quindins para ela... É uma coisa natural. (Batista: pai-de-santo) Imagem 5: Doces para Oxum em festa para Xangô. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. Imagem 6: Quindins para Oxum em festa de homenagem a Iansã. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. . No percurso de entrevistas, batuques e visitas a templos, já em novembro, abrem-se as portas de uma casa de santo para que eu pudesse acompanhar um ritual de iniciação, o qual seria como um batismo de novos iniciados na Nação, assegurando seu compromisso com uma série de obrigações necessárias à garantia de firmeza nos laços que, com o ritual, passam a ser estabelecidos entre o devoto e seu orixá, e entre o devoto e sua nova família, a família-de-santo. Numa casa patroneada por Oxalá, em cerimônia privada e com sua lista de convidados restrita aos padrinhos dos novos batizados e alguns de seus respectivos filhos-de-santo, longe dos palcos coloridos e dos suntuosos vestidos, onde a cor branca predominava em todos os trajes, enfeites e adornos, assisti ao Aribibó29 de quatro 28 Segundo Paula Pinto e Silva, em “Farinha, feijão e carne-seca”, a permeabilidade do caráter português, negro e indígena, pode ser representado também na flexibilidade alimentar: “Nessa mistura de processos e sabores, o exótico se torna familiar e passa a fazer parte de uma nova tradição. Assim, quem diria, o ‘quindim do reino’, feito com quinze gemas de ovos e manteiga lavada, ganhou coco, cravo e canela e continuou a chamar-se quindim, mas agora ‘de iaiá’. 29 A obrigação de Aribibó só é realizada por pessoas para as quais já tenham sido jogados os búzios e que já tenham feito a lavagem do eledá (cabeça) com Mieró, ou seja, um banho com ervas litúrgicas referentes ao 22 23 novos filhos-de-santo do sacerdote do templo - dois deles deram a serem regidas suas cabeças para Xangô e dois para Iemanjá.30 Todo o processo de iniciação de um iaô é determinado pelo oráculo, que encerra um conjunto de respostas possíveis, encontradas no passado mítico dos orixás31, e reveladas a partir do jogo de búzios – o babalorixá ou a ialorixá joga estas conchas sobre sua mesa ornamentada por uma guia imperial, moedas, pedras, imagens de santos, amuletos, talismãs e campainhas (sininhos), então, a disposição de como os búzios caíram é que será interpretada como a resposta divina. Este ritual é que irá designar que tipo de rito32 formalizará a relação do novo devoto com a Nação, assim como os pormenores do desenrolar cerimonial – dentre outras determinações, quantos e quais animais sacrificados, e quantas etapas ou rituais diferentes serão necessários para que seja efetuada a interligação da tríade que Armando Vallado, em “Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil, sistematiza como sendo composta pelo “criador (Oxalá e seus prepostos, dentre eles, Iemanjá); o elemento divino criado (o homem) e o componente divino da criatura (o orixá pessoal)”. São estes os elementos que o rito de iniciação na Nação tem por fim interligar, numa elaboração pragmática da cosmogonia nagô33: Oxalá, segundo a mitologia, criou os seres humanos, que, por meio dos ritos iniciáticos irão consolidar sua constituição sagrada – montada no orixá pessoal - em busca equilibrar-se com sua existência no orum (em iorubá, mundo sagrado dos orixás) e no Ayê (mundo dos homens, profano). santo dono da cabeça do iniciado, sendo, às vezes, usadas também as ervas referentes ao orixá dono do templo no qual aquele se inicia. 30 Através dos búzios, jogados pelo babalorixá ou ialorixá dono do templo, o iniciado descobre qual orixá rege sua cabeça. 31 Segundo Reginaldo Prandi: “Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria acontecido antes. Identificar no passado mítico o acontecimento que ocorre no presente é a chave da decifração oracular. Os mitos da tradição oral dos iorubás são organizados em capítulos míticos (odus), os quais, acredita-se, trazem a história que identifica o problema de quem consulta os búzios bem como a sua solução, advinda sempre de algum sacrifício ou oferenda aos orixás. Qualquer pessoa pode pedir conselhos aos búzios, mas só quem os pode jogar é o Bablorixá ou Ialorixá.” 32 O único ritual imprescindível para a iniciação na Nação, além, é claro do jogo de búzios para saber qual orixá é o dono da cabeça do indivíduo, é a chamada “Lavação de eledá (cabeça) com mieró”. Algumas pessoas podem firmar seu vínculo religioso a partir da feitura de uma guia (ou segurança), outras ingressam através do “Aribibó”, espécie de batismo com sangue de pombos e, em alguns casos, de outros tipos de aves; há também o caso de o ritual de iniciação ser o chamado “Assentamento do Obori”, no qual se usam o sangue dos animais ofertados a cada orixá, podendo ser sacrificados desde patos, ovelhas, galinhas, até vacas. Este ritual, segundo Pai Cabral D’Oxalá, “é feito para que seja estabelecida uma ponte entre o orixá e a pessoa e a segurança da cabeça, em caso de alguma necessidade onde seja preciso fazer certas obrigações e a pessoa não possa estar junto.” 33 Nagô é uma outra denominação para o povo iorubá (grupos étnicos vindos, na condição de escravos, da região sudanesa do Golfo da Guiné) cuja ênfase cultural específica deu suporte para as diversas nações de cultos afro-brasileiros. 23 24 A partir de então, a busca por equilíbrio entre sua porção profana e suas qualidades sagradas, orientará os iaôs no cumprimento das obrigações, as quais são geralmente determinadas pelo jogo de búzios, consultados sempre que o filhode-santo ou seu respectivo sacerdote acreditar necessário o reforço de axé, ou quando desejar vencer mais uma etapa na escalada da evolução hierárquica dentro da Nação - sendo o posto mais alto o de pai ou mãe-de-santo, os quais congregam, respectivamente, as categorias de babalorixá ou ialorixá; já que estes últimos não necessariamente precisam ter filhos-de-santo para poderem consultar o oráculo. Depois da iniciação, ou até como o rito de passagem por qual esta se dá, há o ritual de Assentamento de obori, obrigação pragmaticamente semelhante ao Aribibó, mas que a contrário deste deve ser repetido periodicamente (de quatro em quatro anos, ou para sacerdotes, de ano em ano). Obori é uma variação na pronúncia da palavra Ebori, que em iorubá, significa dar ebó (comida) ao ori (cabeça). O termo “cabeça”, na linguagem litúrgica da Nação acarreta os mais variados sentidos referentes às características individuais emocionais e comportamentais, com as quais os antigos iorubás acreditavam cada pessoa nascer. Tendo o ori natureza divina, todos os seres humanos possuem o seu, que no ritual de assentamento, ao ser alimentado e cultuado, ganha representação espiritual e material. Logo na chegada já estavam presentes o pai-de-santo e todos os filhos-desanto da casa que viriam a participar da cerimônia, inclusive os novos iniciados. Vestiam branco e nenhuma das mulheres pisava o chão do quarto-de-santo sem estar usando saia, todos os já iniciados traziam enroladas em volta da cabeça sua trunfa, tecido branco que recebem de seu padrinho ou madrinha quando do ritual de “batismo”. Sobre uma mesa, ao canto, várias comidas do cardápio divino - que durante o dia inteiro foram preparadas – aguardam o momento de entrar em cena e deixar verter de si a vida, irradiar de suas qualidades sensíveis o axé, alento da existência dos homens, das coisas, da religião. Antes da primeira gota de axorô (sangue) cair sobre o eledá (cabeça, no sentido denotativo) do devoto e regar as regiões vitais de seu corpo, as frentes de cada orixá já estão prontas, as comidas já foram oferecidas. Antes de dar qualquer passo em direção ao início da cerimônia, ou melhor, pode-se dizer, dando início ao ritual, uma das filhas-de-santo molha um alguidar de barro com mel e outro com azeite de dendê, para que sejam dispostos aos Barás, 24 25 respectivamente, Agelú e Lodê34, na casa deles, dentro do quarto-de-santo. Os mitos explicam essa prioridade em saudar Bará: ele é o mensageiro, que tudo sabe, tudo ouve e tudo transmite. Sem seus serviços os homens e os outros orixás não conseguem se comunicar, é preciso que ele receba sua oferenda para que qualquer mudança ocorra, para que qualquer movimento seja feito, portanto, sempre que se demanda um orixá é imprescindível que se interpele antes o Bará. Por conhecer todos os caminhos, todas as magias, Bará pode tudo e trabalha para todos.35 A próxima etapa é a evocação de rezas pelo pai-de-santo, alternadas por pedidos de segurança, saúde, prosperidade, de “tudo de bom”, sempre ao som de um pequeno sino, que o sacerdote faz tremer. Nesse momento os quatro novos filhos-de-santo já estão deitados de bruços, com as cabeças voltadas para o quarto dos orixás (onde estão as frentes, frutas, flores e as comidas citadas acima) seus corpos estão completamente cobertos por tecidos brancos, é quando o tambor começa a soar. O agudo badalar da campainha não cessa em circunstância alguma, como se o som produzido fosse um tênue elo entre Aiê e Orum, a impressão que se tem é de que se o instrumento parar, a corrente de energia e pensamento que faz a ponte entre profano e sagrado, se esvai, se quebra, e deuses e homens desprendem as mãos que o ritual vinha a unir. 34 Conforme Prandi, “cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações, que no Brasil são chamadas qualidades... Assim, cada orixá se multiplica em vários, criando-se uma diversidade de devoções, cada qual com um repertório específico de ritos, cantos, danças, paramentos, cores, preferências alimentares, cujo sentido pode ser encontrado nos mitos.” Na Nação, por exemplo, essas qualidades também são chamadas de “classes” e também são instituídas conforme sua biografia mítica (idade, aventuras, glorificação, deificação...), sendo cada pessoa descendente de um orixá-qualidade; Bará, por exemplo, se divide em: Elegbá, Lodê, Lanã, Adague, Agelú. Este último, segundo os entrevistados, é sua qualidade de criança, é a passagem em que Bará faz serviços para os orixás de mar. Bará Lodê, nas palavras de uma interlocutora, é o mais temperamental de todos, fica na rua e não tolera as mulheres. 35 Bará é também chamado de Exu, no Candomblé. Segundo Reginaldo Prandi, esse orixá teve sua imagem muito controvertida em razão do sincretismo com o catolicismo, no qual foi identificado com o diabo, já que muitos dos negros praticantes da religião dos orixás também eram católicos. Desde as primeiras aproximações dos colonizadores europeus com os iorubás, Bará ou Exu foi associado a figuras demoníacas pelos cristãos, por ter como símbolos imagens fálicas, já que é patrono da cópula e da reprodução humana. Pela perspectiva católica, Bará deve ser homenageado primeiro para evitar confusões, desregramento na cerimônia, isso porque além de garantir a continuidade pela reprodução, ele também tem poder sobre a transformação, podendo romper com a tradição, o que se traduziu num estereotipado caráter instável, turbulendo e interesseiro. 25 26 Imagem 7: Pai-de-santo e quatro novos devotos dando abertura à cerimônia de iniciação. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006 Depois de feitas as orações (ou, tirados os axés de reza), os corpos são descobertos e os devotos ficam em pé para que, agora ao som dos toques específicos de cada um dos doze orixás, recebam o pacote de axé respectivo a cada santo. Pacote, ou serviço de limpeza, é uma etapa do ritual no qual o pai-de-santo esfrega no corpo das pessoas saquinhos contendo a comida de cada santo ou outros elementos litúrgicos – um a um os iniciados dão um passo à frente para que o axé seja passado em seu corpo, de cima para baixo, na frente e nas costas e por último ao longo do interior de seus braços. Por exemplo, ao tocar para Iemanjá ele passa um pacote com canjica branca e salsinha, para Oxum, canjica amarela, para Ogum um ramo de varinhas de marmelo, e assim sucessivamente, obedecendo a ordem cronológica dos axés de reza – cânticos que o Babalorixá ou a Ialorixá deve proferir sempre que chama algum dos orixás, e que durante o ritual seguem o ritmo ininterrupto da campainha. Depois de passado o pacote as comidas são depositadas em bacias de louça forradas com folhas de mamona e colocadas no quarto-de-santo novamente. Finda a primeira etapa do ritual, em preparação para o sacrifício, são trazidas para o quarto-de-santo duas bacias de louça com a canjica branca de Iemanjá e ornamentada com uma vela, uma quartinha, alguns mereguinhos brancos, flores azuis e a guia da mesma cor. As bacias em tons de azul e branco ficam dispostas no chão do quarto prontas a serem tingidas de vermelho pelo axorô das aves (sangue). 26 27 O mesmo fim têm as duas gamelas de madeira com o amalá de Xangô, também postas no quarto. Os tambores soam junto ao tilintar do sino. “Lalupo!” é a saudação, que acompanhando a reza de Bará, dá início ao sacrifício dos dois primeiros galos vermelhos – um sangrará no alguidar com mel e o outro no com dendê. O pai-desanto respinga um pouco de sangue nas mãos dos iniciados, algumas penas fazem uma coroa36 em torno do interior dos alguidares onde o sangue é despejado, e o que restou dos animais é levado para o salão ao lado onde serão limpos e preparados como refeição para o fim da noite de cerimônias. O mesmo acontecerá com todas as outras aves sacrificadas durante o ritual, desde pombas até as galinhas. Algumas filhas-de-santo ficam responsáveis exclusivamente pela elaboração da comida a ser preparada no decorrer do ritual; constituído basicamente de carne de galináceos cozida ou frita e pirão de farinha de mandioca bem temperados, o prato será apreciado pelos participantes e convidados da cerimônia quando do término desta – sem talheres e sentados no chão do quarto-de-santo. Além dos frangos, galos e galinhas, são oferendados também pombos, dos quais as carnes serão também fritas ou cozidas e dedicadas aos santos em seu aposento. No entanto, o apetite dos deuses não segue à risca as preferências de seus filhos, isso porque o alimento sagrado destinado aos orixás não toca a boca do devoto - enche seus olhos, instiga seu olfato e seu paladar, ou ao contrário, pode causar aversão quando cru ou torrado demais, mas “o que é do santo é do santo!”37. Agraciado o Bará, passa-se ao sacrifício votivo aos outros dois orixás (Iemanjá e Xangô). O primeiro eledá é de Xangô Agandjú, para ele cortam-se um galo branco e um casal de pombos também brancos. Sentada no chão, de frente do quarto-de-santo e com as pernas estendidas, a iniciada tem o cabelo, nuca, pés e mãos untados com Banha de Ori, uma espécie de manteiga vegetal; descansando sobre suas pernas, uma gamela de madeira com o amalá de seu Pai Xangô e, no ori (representado pelo centro da cabeça) a guia vermelha e branca, emblema sagrado, 36 A essa coroa de penas é dado o nome de “ebó de penas”. Ebó, em língua iorubá, significa comida, oferenda. Qualquer animal sacrificado tem partes do seu corpo que são consideradas iguarias, as chamadas inhalas, membros importantes de sua anatomia, algumas vísceras ou órgãos vitais, pelos quais durante seu ciclo vital o sangue, condutor de axé, circulou abundantemente. No caso dos pombos foram separados a ponta do pescoço, a ponta das asas, o coração, a moela, os ovários, os testículos, o fígado e os pés sem o couro e sem as unhas (estes são oferecidos crus). Já dos galináceos, as inhalas divididas foram: a moela, a ponta das asas e do pescoço, o fígado, o coração, os testículos do galo e os ovários das galinhas crus e os pés, sem couro e sem unhas. 37 27 28 símbolo de sua iniciação, docemente umedecida com mel, assim como também seu rosto e nuca. O axorô derramado, então, ruboriza seu eledá primeiramente, depois molha o conteúdo da gamela e por fim colore sua nuca, açucarando-se de mel. Imagem 8: Filha de Iemanjá prestes a receber o axé de sangue. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. O axé de reza não cessa, nem o tambor, tampouco o sino. O próximo axorô penderá dos pombos, o Aribibó na sua essência é um ritual feito apenas com estes animais, mas nada impede que o laço entre orixá e iniciado, entre pai e filho, seja reforçado pelo sacrifício de outras espécies – axé nunca é demais, desde que do tipo que o santo gosta, no local e ocasião convenientes. Após apresentada a cabeça da iniciada aos pombos ainda vivos, o sangue do primeiro animal toca seus pés, suas mãos e ori. Já o axorô do outro pombo virá a assinalar de vermelho o rosto da mulher, no qual sobre o mel são coladas algumas plumas retiradas do peito do animal. Também com as plumas e algumas penas é feito o ebó de penas ao redor do ori dos iniciados – mais um aperitivo para o santo. Preparado o alimento do deus, a madrinha envolve a cabeça de sua afilhada com uma trunfa, enquanto o tamboreiro tira o axé de reza de Iemanjá, Mãe da primeira. A dinda cerca o corpo da noviça, fazendo movimentos em cruz com uma vela acesa, a qual encandeou sua chama durante todo o ritual, às mãos atentas de 28 29 uma criança, menor de sete anos, que assistia a cerimônia. De Aribibó pronto, a nova iniciada levanta e “bate cabeça”38 para a madrinha e para seu babalorixá. Imagem 9: Filhos-de-santo “batendo cabeça” para o babalorixá dono da terreira, em dia de batuque. Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. Extingue-se a chama da vela. A cerimônia já teve a luz que precisava para que tudo corresse bem. Xangô Agandjú já comeu. Existe. Mantém-se. O Pai da iaô quer chegar, seu Pai quer dançar, ele pode dançar, ele tem força. Renasce um anjoda-guarda39. Desperta de seu repouso divino, trazendo memórias ao encalço, a memória de um povo que sacralizou sua história, dedicando aos deuses seus passos, suas canções, a sua comida. Comeu Xangô Agandjú, comeu Xangô Agodô e comeram as Iemanjás dos outros iniciados – o ritual se repetiu com poucas alterações (nas cores dos animais) nos Aribibós seguintes. Mais três guardiões despertam, e despertam com doçura, com candura. Nenhum provou sequer uma gota de amargo dendê, foram todos afagados com mel. 38 O gesto de “bater cabeça” é uma saudação feita em sinal de respeito ao orixá dono da cabeça do iniciado. Mesmo pessoas que não sejam iniciadas na religião podem cumprir com este gesto a fim de mostrar sua devoção ao santo. Homens batem cabeça de bruços e mulheres, de lado. 39 O orixá que acompanha cada pessoa. 29 30 Sendo assim, na construção deste panorama de minhas impressões, como denominei tal capítulo, descrição de minhas observações, conversas e experiências de campo, não poderia deixar de pontuar a inegável celebração da alegria nas festas e cerimônias do povo-de-santo, esta emoção incontida das terreiras - que já tocou antes os sentidos de pesquisadores como Raul Lody. Emoção instigada, simbólica e pragmaticamente cultivada, num ambiente onde azedumes e amargores são, na maioria das vezes, meros figurantes, ofuscados e englobados pela ternura, pelo contentamento: “Alegria e sagrado andam inseparáveis nessas mundovisões dos terreiros e em outras organizações afro-brasileiras... Alegria é fé expressiva e sensorial. Comidas, sons, danças roupas, diversos materiais – texturas, cores, formatos, combinações – e a própria natureza, fenômenos meteorológicos, juntos compõem um imaginário que busca atender ao homem, homem feliz, homem comprometido com essa alegria que incorpora a plenitude do sagrado.” (LODY, 2006) Como esta observação, também as demais descrições feitas neste capítulo, sugerem a existência de uma hierarquização do mel sobre o dendê, das doçuras sobre as amarguras, do requinte sobre o ordinário. Tal englobamento do amargo pelo doce (aqui opostos, mas complementares) e todas as conotações que estas qualidades sensíveis acarretam para a análise da elaboração dos significados que o povo-de-santo atribui à doçura, prestam-se no segundo capítulo, a esmiuçar teoricamente a contribuição negra para a tradição doceira de Pelotas. Toma-se para isso, a Nação enquanto um contexto cultural/religioso, que oferece seu patrimônio imaterial – intangível e manifestado nas suas festas, cerimônias, mitos, valores e formas de pensar transmitidos oralmente e recriados coletivamente no decorrer do tempo - como um elemento de estruturação significativo ao perpetuação dessa tradição. 30 31 3. Capítulo II “Mel e dendê: o agrado e a força” “O elemento mais marcante da nossa raça é a religião, a religiosidade” (Jerônimo, tamboreiro entrevistado). Em meio a cadernos de culinária e memórias da história pelotense – tão precisas em descrever a suntuosidade das famílias de charqueadores e a crueldade de práticas escravocratas, obscurantes do legítimo legado afro-brasileiro para a cultura local - foi como nestas primeiras linhas que o negro pelotense delineou parte de sua trajetória na tradição doceira da cidade, trazendo a religião dos orixás como um emblema da negritude, um aparato de mecanismos simbólicos e materiais afirmativos de sua identidade: 40 “... a história confere aos terreiros uma espécie de autoridade criativa que remete à memória remota africana e, ao mesmo tempo, constrói uma memória próxima, afro-brasileira.” (LODY, 2006) As terreiras, coordenadas por fundamentos religiosos, tentam manter e dinamizar esse rico conjunto de expressões, idiomas, hierarquias, gastronomia, dança, música, enfim, os mais diversos tipos de manifestações artísticas, políticas e religiosas da cultura africana – que por volta da década de 1970 ganharam o prefixo afro. Apesar deste termo muitas vezes conotar um ideal de pureza étnica, neste trabalho as cosmovisões fundadas na cultura africana recebem um olhar relativizado pelas incorporações de signos advindos de matizes culturais diferentes, sejam cores, sabores, ou divindades. De um ponto de vista comparativo, Peter Fry, em prefácio ao livro “O povo do santo” de Raul Lody, formula uma esclarecedora dissertação sobre o que venho a apresentar neste estudo como a substância contrastante e aglutinadora dos valores afro-brasileiros, a religiosidade, com sua noção de “deus enquanto um emblema etnocultural”: “Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, existe uma ‘cultura negra’, compartilhada apenas por pessoas que se definem como AfricanAmericans. Ser negro nos Estados Unidos é reclamar descendência de pelo menos um antepassado negro (lá, oficialmente, não há mulatos) e 40 Os termos “terreiro” e “terreira” têm o mesmo significado, neste contexto. Utilizo o segundo porque é a denominação de que se valem meus informantes. 31 32 participar de um estilo de vida marcadamente diferente dos outros americanos... Resumindo, podemos afirmar que enquanto nos Estados Unidos há um povo e uma cultura negra, no Brasil há um ‘povo do santo’.” (LODY, 2006) No limiar de um Brasil mais urbano, foi a partir dos finais do século XVIII, com a organização social deste povo em famílias-de-santo ou terreiras formadas por escravos, negros libertos e crioulos (como eram chamados os negros nascidos no Brasil), junto ao surgimento de novas lideranças sacerdotais, que os africanos e afro-descendentes começaram a recriar seus espaços simbólicos, religiosos, então, com maior espaço de expressão ritualística. Restabelecidos os templos afroreligiosos, seus santuários e cultos altamente ritualizados, “vieram os sacrifícios e as oferendas, na forma que Bastide viria a chamar a cozinha dos deuses” (COSTA LIMA, 1999). “Nesse tempo foram recriadas muitas das comidas cotidianas dos homens e dos santos. Pois que os santos comem o que os homens comem. E as comidas mais elaboradas das festas, das celebrações votivas. Esse foi o tempo do cozinheiro e da cozinheira escravos, reproduzindo o cardápio basicamente português, mas já substituindo, trocando ingredientes, colorindo os ensopados com o vermelho do dendê... Os santos africanos – os orixás nagôs, os voduns jejes, os inquices congos e angolas – puderam, outra vez, comer suas comidas no Brasil.” (COSTA LIMA, 1999) Portanto, ao tratar de comida - ou melhor, de doces, foco principal desta pesquisa – o povo-de-santo surge como legítimo guardião dos sagrados significados que o alimento, o sabor e o comer representam para os sujeitos envolvidos na Nação, nos batuques. Talvez não houvesse expressão melhor para dar partida nas investigações do que esta frase proferida por um iniciado: “o bom batuqueiro se faz na cozinha”, sobre a qual discorrem alguns interlocutores: Não adianta tu dançares a noite inteira. É na cozinha e no serão... (BÁRBARA, mãe-de-santo) Como é afro, a tendência é a culinária. O forte da nossa religião é a cozinha. Para tudo o que a gente vai fazer – por mais que se usem as ervas – tudo tem que cozinhar. O negro vem com essa cultura da cozinha. (CARMO, iniciada) Nós começamos a nossa vida religiosa na cozinha, aprendendo a fazer as comidas deles - porque cada anjo-de-guarda tem uma comida. Então é ali que a gente aprende, nós começamos na cozinha, eu começo com o meu pessoal na cozinha para depois vir para cá [para o quarto-de-santo]. Porque se tu não fores uma boa cozinheira, tu não vais ter um bom marido, a mulher pega o marido pela barriga. (BENEDITO, pai-de-santo ) 32 33 O pai-de-santo se faz na cozinha porque para os orixás tudo é cozido, tudo vai para as panelas, tudo é torrado, cozido, refogado. É na cozinha que tu aprendes... Não adianta tu só dançares na roda, tu tens que botar a mão na cozinha. (CRISTÓVÃO, pai-de-santo) Comida e alimentação, então, extrapolam os limites da subsistência física e orgânica para ganhar papel simbólico fundamental nos ritos afro-religiosos. Pois quem come não apenas mecanicamente termina com a fome, mas satisfaz o apetite exclusivamente humano de significar toda e cada ação. Quem compartilha uma refeição não apenas garante a sua sobrevivência e a de outrem, mas se comunica, socializa, alimenta o corpo e ao espírito, demonstra sua civilidade. Como nas palavras de Lilia Moritz Schwarcz, pertinente neste estudo é abordar a comida e suas imbricações com o sagrado “como uma ‘linguagem’ que fala, expressa, produz e reproduz significados, para além de saciar a fome.” Aqui os sabores classificam, hierarquizam, dão sentido às mais variadas existências. “Come-se por inteiro, com o corpo, com a ética, com a moral, com todos os códigos próprios do grupo e do estatuto social de que o indivíduo faz parte. E, assim, a comida intera-se, estabelece-se nas relações mais profundas entre o homem e a cultura... Comer, nos terreiros, é estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e a natureza.” (LODY, 2006) Comer e dar de comer, nas terreiras, são formas rituais de comportamento apontadas pela etnografia que se construiu das vivências experimentadas junto ao povo-de-santo. Por situarem as coisas sagradas e profanas em âmbitos específicos, como já afirmou Durkheim41, os rituais religiosos mostram-se como momentos cruciais para a apreensão das representações coletivas presentes nas crenças e incrustadas por estas condutas regulamentadas, ou seja, permitem ver como determinado grupo estabelece as regras de comportamento frente aos elementos sagrados, sua natureza e relação com o profano. Além de sustentarem grande parte dos fundamentos da Nação, ações como comer, alimentar (os deuses) e compartilhar comida penetram em todos os rituais e cerimônias, signos de tamanha abrangência que acabam por reger situações como de vivacidade e de apatia, de zelo e de desprezo, candura e rispidez, de presença e ausência – seja na relação devoto/deuses seja na relação devotos/devotos. Alimentos, comidas, refeições, e suas qualidades de cruas, cozidas, amargas, doces 41 SEGALEN, 2002. 33 34 ou salgadas seriam, então – seguindo a lógica estruturalista de Claude Lévi-Strauss – constituintes de um campo semântico pelo qual se articulam sistemas de oposição, baseados nas categorias de natureza e cultura distribuídas num contínuo classificatório que percorre um extremo a outro: sangue/frentes/doces. A mesma linearidade se pode vislumbrar na organização cronológica dos batuques, determinada pela ordem de alimentos que se oferecem aos orixás (sangue, frentes, doces): “festa de quatro pés”/batuque dos peixes/ batuque dos doces. Assim como Marcel Mauss, Lévi-Strauss identifica na culinária outro princípio elementar, qual seja o da reciprocidade. Na culinária sagrada dos batuques isso fica evidente; dar, receber e retribuir são as ações cruciais para a garantia do convívio entre deuses e devotos, entre o humano, socializado, e sua parcela divina individual – além disso, ao harmonizar-se com seu anjo-da-guarda, o iniciado adquire os atributos de que carecia para enfrentar a vida em sociedade, quando dá comida sangue ou frentes - recebe axé, a retribuição do deus, em vista da resposta do orixá, o devoto o presenteia com doces, bolos, pudins. E assim se desenha o círculo da reciprocidade de que Mauss falou, pois “não há gratuidade na elaboração de uma comida em âmbito socioreligioso”42, nem no servir, no oferecer. Se alguém quer dar vida ao seu orixá, quer dar energia, corta um animal para ele, passa um axé de sangue, se o iaô anda esquecido, distraído, triste, o seu anjo-da-guarda pode estar precisando de axorô; pedir cuidado, carinho, pedir a companhia constante de seus pais divinos é manter sempre frescas as suas frentes no quarto-de-santo; arranjar quizila43 com o orixá é oferecer a ele algum ingrediente estragado ou fora de suas preferências; o mesmo ocorre entre os devotos, com relação a certos tabus alimentares - ritualizar também é limitar o contato dos homens com o sagrado: “Se eu sei que tem uma filha de Oxum, que a Oxum dela come doce, eu vou largar um epô44 para ela... Ao invés de fazer o axé dela com mel, eu vou fazer com azeite; ao invés de largar o axé dela numa pracinha, vou largar num cruzeiro, numa mata, num barranco ou na frente de um cemitério... Se eu for receber [mal] uma filha de Oxum na minha casa, vou fazer uma panela de batata com asinha para ela, vou estar largando para ela um axé de miséria. (CARMO, iniciada entrevistada) 42 LODY, 2006. Arranjar quizila quer dizer arrumar briga, ofender o orixá. 44 Comida regada com azeite de dendê. 43 34 35 Para Martine Segalen, são exemplos como os anteriores que transformam em ritual, ações cotidianas e mecânicas como a alimentação, pois constituem – somada a “um certo número de operações, gestos, palavras e objetos” - “a crença numa espécie de transcendência”, já que, para a autora, “o rito situa-se definitivamente no ato de acreditar em seu efeito, através das práticas de simbolização.” Isso quer dizer, neste caso, no caso dos rituais e cerimônias da Nação, que toda ação dirigida ao comer ou ao dar de comer implica uma pretensão em causar efeito sobre determinados elementos, configurando-se em “uma ação tradicional eficaz”, como disse Marcel Mauss45. É por isso que “o bom batuqueiro se faz na cozinha”; porque o conhecimento dos ingredientes, condimentos, dos modos-de-fazer das frentes e das comidas oferecidas em serviços ou como presentes, bem como dos tabus interditos, é o princípio litúrgico fundamental para que as respostas sejam dadas, para que as coisas aconteçam: “... a gente faz a comida para evocar o orixá, para botar ele a trabalhar para nós, para fazer um pedido para ele. Na igreja, as pessoas rezam, rezam, fazem uma oração. A gente, da religião afro, faz um axé, bate o sino, para o orixá responder.” (CARMO, filha-de-santo) Seguindo este princípio de eficácia, Mauss ainda acrescenta como princípio básico de um ritual a regularidade, o que, a exemplo do candomblé da Bahia, conforme Vivaldo da Costa Lima, é observável na instituição de regras espaçotemporais para a administração destes sacros saberes culinários, mágicos poderes alimentares: “[Esta comida ritual]... é sempre reproduzida, segundo estritas prescrições rituais de cada nação de santo, por ocasião das festas de seus calendários e nas festas ocasionais, motivadas pelas crises individuais ou de grupo, que implicam, necessariamente, sacrifício e oferendas, portanto em comida.” (COSTA LIMA, 1999) Obviamente, que não se podem descartar rituais como o das rezas, os toques de tambor, as danças e gestos (como o de “bater cabeça”), e todos os ornamentos necessários para que os ritos objetivamente “reúnam o presente e o passado, o indivíduo e a comunidade” (SEGALEN, 2002). Tudo porque a Nação oferece os instrumentos para a construção do cenário onde corre o desenrolar das façanhas 45 SEGALEN, 2002 35 36 míticas dos orixás, histórias de amor, de luta, glória e traições, histórias de deuses que um dia conviveram com os mortais, comeram as mesmas iguarias que estes, provaram das mesmas emoções, na época em que não havia distâncias entre Aiê e Orum; era que durou até o primeiro homem, com suas mãos impuras de profanidades, tocar o imaculável mundo das divindades. Desde então, Olorum, o deus supremo, separou o Céu da Terra: nenhum homem vivo voltaria de Orum, nenhum deus com seus próprios pés à Terra pisaria46. Saudosistas de suas venturas em terras seculares, os orixás fizeram dos homens seus cavalos-de-santo; necessitados de axé, a energia vital que os santos dominam e regem com sabedoria, os mortais passaram a anfitriões desejosos de suas visitas, discípulos atentos dos ensinamentos oraculares. A Terra oferece prazeres nostálgicos a todos os sentidos, mas é pela boca que se faz convite aos deuses para sua estada no mundo dos homens, é pelo paladar que se garante a permanência do hóspede. E o principal, como seus filhos mortais, para existir no Aiê é preciso além de saborear, nutrir-se. Nutrir-se de alimento, de alegria, de carinho, de vaidade, até o limiar do êxtase. Semanticamente, o verbo alimentar tem sua significação relacionada às ações de manter, sustentar, fomentar e até unir.47 Sendo assim, como linguagem, fica clara a plasticidade dos sentidos que esta palavra assume, pois nem sempre virá acompanhada de objetos ou sujeitos relacionados ao ato de ingerir comida simplesmente; nas terreiras isso fica evidente porque não só bocas e estômagos comem, mas mãos, espíritos, almas, pedras, pés, nucas e, fundamentalmente, cabeças. Todo o esforço em descrever o caráter ritualístico da alimentação nos fundamentos religiosos da Nação vem da necessidade de iluminar suas propriedades decodificadoras das crenças, ou das representações coletivas do povo-de-santo, expressadas e transmitidas mitologicamente, como Vivaldo da Costa Lima deixa claro: “Elaboradas, requintadas na forma, no ordenamento do preparo, ou na simplicidade aparente de um despojamento prescrito pelo mito. Vez que atrás de cada oferenda alimentar, está o mito que a prescreve pelas práticas divinatórias” (COSTA LIMA, 1999) 46 47 PRANDI, 2001; pp.526. Mito “E foi inventado o Candomblé.” HOUAISS, 2001. 36 37 Tal importância dada ao estatuto de ritual neste estudo segue o pensamento de Roberto Da Matta: “Creio, ao contrário, que tanto os personagens quanto os rituais são criações sociais, refletindo ambos os problemas e dilemas básicos da formação social que os engendra. O mito e o ritual seriam, deste modo, dramatizações ou maneiras cruciais de chamar a atenção para certos aspectos da realidade social, facetas que, normalmente, estão submersas pelas rotinas, interesses e complicações do cotidiano.” (DA MATTA, 1997) Por isso a observação etnográfica de cerimônias e ritos religiosos deste grupo em particular - “essa elevação de um dado infra-estrutural a coisa social” (DA MATTA, 1997) –, se mostra como a ferramenta capaz de trazer à tona dados empíricos que, ao serem interpretados, permitam identificar as estruturas mentais com que determinados sujeitos operam, tramando, abstratamente, “uma lógica das qualidades sensíveis” (LÉVI-STRAUSS, 1964). Roberto da Matta vê a religiosidade brasileira como fundamentada na relação entre o mundo real e o outro mundo, entre o eu e os deuses, ou seja, na possibilidade de integrar os dois mundos, partindo de linguagem que permite ao povo receber os deuses no seu corpo. Assim, a relação estabelecida entre o filhode-santo e o orixá dono de sua cabeça é pessoal, de afeição, simpatia e lealdade. Compromissos cumpridos a partir da execução contínua dos rituais religiosos, das “obrigações”, sejam elas o ato freqüente de “bater a cabeça”, seja a conservação das frentes, a preparação de batuques de homenagem ao santo aniversariante ou o sacrifício de animais. Estas são as principais formas de reforçar o acordo entre o pai, que zela, e o filho, que faz por merecer. Essa relação de familiaridade, calcada em laços de parentesco, estabelecida na Nação e nas outras religiões de matriz africana é alimentada, ou ainda, alicerçada, no princípio de ancestralidade que molda a integração do sistema de valores comuns nos cultos de origem iorubá. Prandi traz uma passagem que exemplifica de forma objetiva esta crença no poder divino dos ancestrais e a atualidade destes expressa no cotidiano de experiências e construção de identidade: 37 38 “Os iorubás acreditam que homens e mulheres descendam dos orixás, não tendo, pois, uma origem única e comum, como no cristianismo. Cada um herda do orixá de que provém suas marcas e características, propensões e desejos, tudo como está relatado nos mitos. (...) Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem.” (PRANDI, 2001) No entanto, apesar de cada orixá ter sua história e suas características denunciadas pelos relatos míticos, elas só serão legitimamente externalizadas por seus descendentes depois que estes passarem pelos rituais que constituem a “feitura” do santo - como o Aribibó descrito no capítulo etnográfico e o Obori – tais ritos marcam a passagem de uma qualidade de comportamentos e condutas profanas para seu caráter sagrado; certas ações e características da personalidade do devoto passam a ter origem e conotação sacras, ou seja, desvinculam-se do sujeito social e o são atribuídas ao indivíduo isolado de seus vínculos de socialização pela transcendentalidade de suas origens. Mas este indivíduo ideal, livre e independente do restante de seres humanos também livres e independentes, por mais que estreite suas relações éticas na dualidade devoto/deus, não perdeu sua natureza social, ele a deixa entrever porque, segundo Tocqueville48, para se considerarem livres é preciso que os homens creiam. E crer é ao mesmo tempo descrer, é fazer uma escolha, que não é uma escolha individual, pois vale-se daquilo que Talcott Parsons chamou de “integração dos critérios de avaliação”49, apreendidos na socialização, os quais vão operando no sentido da internalização de valores do grupo. Para Louis Dumont, “adotar um valor é hierarquizar, e um certo consenso sobre os valores, uma certa hierarquia das idéias, das coisas e das pessoas é indispensável à vida social.” É, então, a esta adoção de valores que os opostos mel e azeite de dendê vêm prestarem-se a agentes simbolizadores, como já foi dito, segundo a idéia de Lévi-Strauss de categorias empíricas que servem como instrumento de reificação das noções abstratas de uma cultura em particular. O povo-de-santo distingue seus deuses e posiciona-os de forma hierárquica, escolhe características temperamentais e emoções às quais deseja salientar na “feitura” de seus orixás, seleciona seus desejos e os transforma em pedidos, em 48 49 DUMONT, 1992 Idem 38 39 oferendas. Todas estas operações de seleção, escolhas, enfim, são pensadas e instituídas, em nível de estruturas mentais, a partir das “qualidades sensíveis” de que fala Lévi-Strauss, dos alimentos e condimentos, basicamente, mel e dendê, doce e amargo. Imagem 10: Respectivamente azeite de dendê e mel depositados no quarto-de-santo em dia de batuque de "quatro pés". Acervo: Marília Floôr Kosby, 2006. Oxum gosta de ser mimada e divide com Oxalá e Iemanjá a tríade dos chamados “orixás velhos” do panteão africano. Orixás das praias, que gostam do mel e não toleram o amargo azeite de dendê, porque representam a serenidade tão escassa no universo de lutas e violência enfrentado pelos outros orixás, os guerreiros. Assim relata o tamboreiro: Os orixás de frente, de azeite, também recebem doce. Mas os de doce não recebem azeite, azeite para eles é uma ofensa porque são os orixás mães e pais, são os mais delicados. Então, se tu dás azeite para o orixá, bá! Ele se ofende. Tu estás ofendendo o orixá... Porque são os orixás mães e pais, são os mais delicados... Os orixás de doce vão ficar num canto lá em cima, para adoçarem quando a situação estiver muito turbulenta; porque o orixá de frente é muito tempestuoso, muito selvagem, ele é um orixá de guerra. Quando os orixás estavam violentos demais eles iam procurar os velhos, os de mel, porque todo o orixá de praia, que se chama de orixá de doce, tem certo domínio sobre os de azeite – até porque são pais deles. Oxalá e Iemanjá são pais de 90% dos orixás. (JERÔNIMO, tamboreiro) A nítida separação entre os orixás de mel e os de azeite, não apenas traduz a necessidade de classificá-los entre os mais “selvagens” e “turbulentos” ou entre os “delicados” e “serenos” mas, além disso, hierarquiza os pais e os filhos, situa-os uns “no altar” e outros “na frente da batalha”. 39 40 Apesar da nítida oposição, os dois elementos são complementares, um não existe sem o outro, a doçura do mel não seria necessária se não existisse o amargor do dendê, são inseparáveis. Isso reforça a idéia de estrutura apresentada por Louis Dumont: “... um universo puramente estrutural: é o todo que comanda as partes, e esse todo é concebido, muito rigorosamente, como fundado numa oposição. Não há, ademais, outra maneira de definir um todo enquanto distinto de uma simples coleção,...” (DUMONT, 1992 ) Amargor e doçura salientam qualidades valorizadas ou desprezadas pelo grupo. Feminina, faceira e jovial, Oxum é fértil como os grandes rios de água doce. Ela é a patrona da gravidez, protege as crianças até estas aprenderem a falar e divide com Iemanjá o governo da fecundidade. Do ventre de Iemanjá surgiram as estrelas e as nuvens, além da maioria dos orixás; ela rege a educação formal das crianças, é mãe de adolescentes e adultos, é a mãe carinhosa – há o mito de que na divisão de tarefas entre os orixás, quando Olorum criou o universo, a ela foram atribuídas todas as tarefas relacionadas à esfera doméstica50. Oxalá é o patriarca do panteão africano, foi o responsável pela criação da humanidade, foi ele quem modelou os homens no barro. Os dóceis pais dão o suporte, a amabilidade, aos filhos que vão à guerra, que estão na luta em defesa de seus reinos, geralmente do lado de fora do lar, longe do aconchego do quarto-desanto. O doce é sempre esta parte, a da doçura mesmo. Principalmente os orixás de doce, que vêm, pela própria essência do mel, trazer isso para nós. A Oxum é a dona do amor, a dona do mel; então, para ela a gente costuma dar muito doce. Iemanjá é pensamento, então a gente oferece para que tenha sempre os pensamentos tranqüilos, os melhores possíveis. Os Ibejes51 são crianças, então, com certeza vão todos os tipos de doces. (BATISTA, pai-de-santo entrevistado) O doce é a doçura para a vida da pessoa, por isso nós usamos. Nós cultuamos todas as doçuras! Então, as amarguras, os azedumes, a gente não apresenta para eles. (BENEDITO, pai-de-santo entrevistado) 50 Não contente com sua restrição aos trabalhos domésticos, Iemanjá passou a reclamar a seu marido, Oxalá. Reclamou tanto que ele enlouqueceu. Arrependida Iemanjá cuidou do marido até que este sarasse. Olorum, então, atribui-lhe a regência dos pensamentos, da razão. Ela protege os homens da loucura. 51 Ibejis são duas divindades gêmeas, em alguns templos cultuadas como um único orixá. São crianças, e relacionados a tudo que nasce, que germina. 40 41 Da rua, espaço reservado a amargura, Bará52 é o dono; ele guarda a porta das residências, é homem das encruzilhadas e dos caminhos, é o orixá que media as relações entre os homens e os deuses e entre os próprios orixás, é o mensageiro. Ogum é o deus da guerra, protege os militares e os combatentes, é dono do ferro e do aço com que se fabricam as armas, divide com Bará a proteção das entradas dos templos e dos caminhos. Iansã, a mulher do vermelho e do cobre, é guerreira, a senhora do tempo, da tempestade e do vento, tem sabre e espada, é a dona das borboletas, do movimento, é sensual e autoritária – mulher e homem, feminino e masculino, sabe da luta e do amor, conhece da vida e da morte, espanta os temíveis eguns (espíritos dos mortos), varre os caminhos divinos. Xangô é rei, usa coroa, é o deus do raio e do trovão, dono do fogo, tem como símbolo um machado de duas lâminas; apesar de bravo, viril e vaidoso, é conhecido como o justiceiro do panteão africano. Odé/Otim, respectivamente, homem e mulher, regem a caça, orientam os caçadores; ele é guerreiro destemido e indomável, conhecedor das matas. De Otim, o mesmo pode-se dizer, visto que representa o par perfeito de Odé, sua versão feminina. De apática feminilidade, Obá é mulher enérgica, ríspida e forte, terceira mulher de Xangô era a menos hábil nas atividades domésticas e a menos graciosa, no Rio Grande do Sul é sincretizada com Santa Joana D’arc. Detentor dos segredos das plantas litúrgicas e medicinais, Ossaim é o habitante dos lugares abertos; adorador do ar livre, exerce domínio permanente sobre as florestas. Com o corpo marcado pela varíola, ameaçador e sombrio, Xapanã é o médico entre os orixás, tem o poder de curar e causar doenças; na sua dança, traça o tremor dos corpos com dor, dos homens com sofrimento físico.53 Mesmo que a oferenda seja para um orixá guerreiro, daqueles que têm sua bravura e virilidade instigadas pelo dendê, muitos sacerdotes africanistas consideram indispensável que eles sejam acarinhados por doçuras: Sempre que dá, não! É sempre mesmo, sempre tem que botar. Sempre. Embora a pessoa seja do dendê. Se a pessoa for do dendê tu tens que, 52 Existe o Bará Agelú, orixá mais jovem, que presta seus serviços aos orixás de praia, e por isso, também tem essência doce, recebe sempre mel nos axés. 53 Sacerdote de Nação Cabinda e Oyó, Pai Cabral D’Óxalá, em seu livro “Divindades Africanas (1995)”, traça o perfil dos orixás, segundo a mitologia ioruba. Essas histórias mitológicas permearam constantemente os relatos de campo, servindo como instrumento para a compreensão dos fundamento afro-religiosos. No entanto, dependendo do “lado” da Nação ou mesmo da religião, existem diferenças nos relatos míticos. Reginaldo Prandi, em “Mitologia dos Orixás”, traz 301 mitos africanos, muitos deles relacionados a orixás que nem sequer são cultuados no Rio Grande do Sul, mas no Candomblé, no Xangô, no Tambor de Mina ou na Santeria de Cuba. 41 42 igual, botar o mel. Porque é a doçura, é para o santo te dar o doce, para o santo te dar alegria, te dar felicidade. Porque se tu botares o dendê, que é um óleo amargo, a tua vida ser o quê? Então, se bota o dendê e se bota o mel em cima. (BENEDITO, pai-de-santo) Para Iansã a gente costuma dar doce de batata doce, bombom, porque ela também é dona da sedução no amor, então tem um fundo doce nisso também... (BATISTA, pai-de-santo) O doce do mel engloba o amargo do azeite não só nos quartos-de-santo, nas bandejas de presente ou nos serviços, mas nas cerimônias de obrigação também o binômio permeia a ritualística e o discurso do povo-de-santo. Na “feitura” dos orixás, como já foi descrito, mel e dendê, doçura e amargor, complementando-se, dão voz às características que o pai-de-santo quer dar ao deus que está por ser concebido. O embate hierarquizante entre o doce e o amargo, as posições ocupadas pelo mel e o dendê fica claramente observáveis no diálogo entre o pai-de-santo dono do templo de Oxalá e a mãe-de-santo filha de Iemanjá, que havia sido convidada para a cerimônia a fim de batizar, como madrinha, os novos iniciados: Maria: “De Bará a Xapanã, uso mel com dendê.” Roque: “Eu não uso dendê nunca. Só mel. Por causa do Pai Oxalá.” ... Maria: “Chega de mel! Não é porque nós somos da Mãe que nós precisamos de tanto mel! (Fonte: diário de campo) Mais uma vez qualidades concretas e sensíveis, como o doce do mel e o amargo do dendê, trouxeram à tona categorias abstratas, que no caso do Aribibó, vêm informar quais características subjetivas dos novos iniciados devem ser enfatizadas pelos emergentes orixás, já que a iniciação é, além de tudo “... um processo social controlado pelo grupo do terreiro, de enfatização e internalização de determinados padrões de comportamento, de modo a tornar a identidade do filho-de-santo com o orixá que é considerado seu pai o sua mãe como uma ligação íntima e pessoal”. (VALLADO, 2002) Segundo os antigos iorubás, cada ser humano é filho mítico de um orixá, herdando deste características físicas ou até de conduta, de defeitos ou virtudes, gostos e posicionamentos. Potenciais ou experimentadas, tais qualidades serão colocadas em ordem de preferência, hierarquizadas, pelo uso de mel ou dendê nos rituais de corte e, posteriormente, também na preparação de outros tipos de ebós (frentes ou serviços). 42 43 Conceber cavalos-de-santo guerreiros, enérgicos e destemidos para enfrentar as vicissitudes do mundo do trabalho e da vida em sociedade, ou filhos carinhosos, ponderados e sábios que consigam transpor os mesmos obstáculos, é uma escolha baseada nas categorias que os sacerdotes julgarem mais adequadas. Ainda assim o mel nunca é descartado. Mesmo um pai-de-santo filho de Bará, o senhor da rua, relatou-me em entrevista a preferências do povo-de-santo em utilizar o doce como o tom de carinho da linguagem religiosa, a conversa entre homens e deuses: Se coloca doces nas frentes, nas obrigações de todos vai doces. Vai o mel, toda a doçura!... . Porque uma pessoa quando recebe uma bandeja de doces fica feliz, então, os pais também. Uma bandeja de frutas, uma bandeja de doces, e por aí vai. (BENEDITO, pai-de-santo) Se usar mel ou dendê, optar entre docilidade ou virilidade, dentre tantas outras formas de classificação das ações humanas, são maneiras de hierarquizar pessoas, divindades, emoções e comportamentos, o povo-de-santo de Pelotas - em que pesem as peculiaridades de uma cultura religiosa e o olhar antropológico sobre a alteridade - traz nas suas escolhas, elementos simbólicos que figuram na elaboração de uma estrutura social que favorece a existência de uma cultura doceira – vivenciada na reprodução e transformação dos saberes, usos e modos de fazer de determinados doces. 43 44 4. Conclusão Construir uma etnografia sobre a tradição doceira de Pelotas envolvendo terreiras, orixás e oferendas, mel e azeite de dendê, não é apenas exibir as diferentes compilações a que se prestam os doces, seja quanto às ocasiões de seu consumo, seja quanto a seus consumidores. Descrever quartos-de-santo, recontar aventuras mitológicas, traçar o perfil dos deuses afro-brasileiros e sua feitura, revelar os ingredientes das oferendas, fotografar bandejas de doces dispostas num chão sagrado, debruçar-se sobre a análise de um ritual de iniciação religiosa, são esforços empreendidos na tentativa de explicar e compreender por que “o bom batuqueiro se faz na cozinha” ou que tipo valores e crenças sustentam a expressão “nós cultuamos todas as doçuras”. Foram estas, frases trazidas pelos interlocutores à discussão quando das investigações acerca de qual a contribuição da etnia negra na sustentação da notoriedade de Pelotas como “capital nacional do doce”. As terreiras de Nação, com seus batuques e demais rituais foram situadas no foco da observação, primeiramente porque foi como povo-de-santo que os sujeitos investigados se postaram a condição de diferentes, de únicos, foi do conjunto das expressões culturais africanas perpetuadas e cultivadas pela religião que pinçaram os arcabouços com os quais acreditam contribuir para o patrimônio cultural de sua cidade. Segundo, porque a liturgia da Nação, em sua generalidade, é toda voltada para as ações de comer e de alimentar (outrem). Fato que já é, por si mesmo, de significativa relevância simbólica e, consequentemente, analítica, pois desde a preparação dos alimentos até o seu compartilhar, as pessoas lançam mão de expressões culturais, calcadas em esquemas classificatórios abstratos, de captação e ordenação do mundo, como sugeriu Lévi-Strauss em sua abordagem estruturalista. Dentro de um sistema significativo dos usos e costumes, a comida tem ligação direta com a cultura material, precisamente com a subsistência, mas dialoga com o contexto; dialogam a cultura e a culinária, na estrutura que transforma práticas concretas complexas em princípios simples de significação. Em Nação, as obrigações mais importantes e os momentos mais célebres têm como princípio dinâmico o de dar e receber axé, a partir do sangue, das frentes, das ervas e das frutas – força, energia, retribuídas pelos orixás na forma de sua 44 45 constante e harmoniosa presença. Nesse ponto, o axé doce - como a própria denominação diz, e como a observação participante permitiu constatar – provém dos confeitos dedicados a cada orixá: à Oxum são ofertados quindins e doce de pêssego, à Iemanjá, merenguinhos azuis e cocada branca, à Oxalá, merenguinhos brancos; Ossaim gosta de doce de figo, Iansã de bombom, morangos e doce de batata-doce, para Xapanã é um agrado ganhar paçoca de amendoim. Estes são alguns exemplos, mas a determinação de qual tipo de doce será dado a cada deus depende do Babalorixá ou Yalorixá, do jogo de búzios, e, como em tudo na Nação, depende do que se quer ter em retribuição. Oferecer doce de batata para Iansã pode ser apenas um agrado, um carinho, mas presenteá-la com bombons é fazer referência à sensualidade, atributo governado pela orixá. Um quarto-de-santo repleto de doces representa a abundância da terreira, do batuque, é um quarto-de-santo requintado, os orixás desta casa-de-santo além de se alimentarem (com sangue e comidas) são agraciados, acarinhados, porque “o doce celebra, identifica, nomeia, compõe...”(LODY, 2000). Os doces compõem o ambiente colorido, alegre, festivo, do “batuque de terminação”, festa que encerra os trabalhos necessários à alimentação, à subsistência; compõem o ambiente florido, enfeitado e entusiasmado dos batuques de aniversário dos orixás; constroem, junto aos tons de vestes e guias, de frutas e adornos do quarto-de-santo, o cenário para celebração do axé. Uma bandeja de presente para Iemanjá, por exemplo, para ser pomposa, além da canjica branca, pentes, espelhos, perfumes, flores, deve ser ornada de merenguinhos ou cocadas – sem estes últimos, é considerada um presente básico, simples. O requinte das bandejas para Oxum, não é a canjica amarela, nem os espelhinhos, mas os fios de ovos, quindins e ninhos (ver Foto 9, em Anexos). O requinte, o agrado, o mimo, representados nos doces, balas, bolos, rapaduras, bombons, são uma das formas de expressão desse culto, no qual a doçura engloba a força, como na expressão “Axé doce” (que quer dizer “força doce”, “energia doce”). Dentro dos esquemas classificatórios de oposição propostos por Lévi-Strauss, é visto que a doçura, nos “imperativos mentais” existe acompanhada de sua contrária, a amargura, em complementariedade. E no caso da Nação, não só se complementam mas, seguindo Louis Dumont, servem como categorias 45 46 hierarquizantes - a qualidade de ser doce é posicionada acima (no altar) da de ser forte (na frente de batalha). Neste ponto, é que os elemento mel e dendê vem representar essa preponderância da doçura. Os orixás de mel são sábios e dóceis, os de azeite de dendê são brutos e tempestuosos, as frentes dos primeiros são condimentadas de mel, as dos últimos de dendê. Teoricamente, porque, em referência a amabilidade, ao carinho, a docilidade, os orixás de frente, como são chamados os de azeite, também comem mel; não há problema em regar com mel um opeté para Bará (ver Foto 2, em Anexos), mas botar azeite na canjica de Oxalá é o mesmo que insultá-lo. Semelhante é o que ocorre na feitura dos orixás, como foi exposto na etnografia, quando os dois condimentos ditam as características que os iminentes deuses terão. Em ambos os casos o sentido é mesmo: não há interdições a doçura. Relacionar a participação negra em uma tradição doceira à religião, longe de situar posições objetivas na sociedade, como o trabalho escravo ou a dimensão territorial – se os negros contribuíram com o mexer dos tachos ou com a venda de bandejas de doces finos – desvela um esboço do conjunto de categorias, expressas no patrimônio de crenças e visões de mundo cultivados pela Nação, mas que transcendem as terreiras, que transcendem Pelotas ou qualquer outro espaço geográfico, marcando sua presença nas mentalidades, nos esquemas simbólicos de organização das ações humanas. Contudo, este estudo se atém a analisar a tradição doceira de Pelotas, inscrita enquanto patrimônio cultural imaterial, como foi conceituado na introdução do mesmo. Para isso cabe não ignorar o contexto da cidade, suas peculiaridades – como a observação de Gilberto Freyre, de que esta seria uma região “do doce” e não “do açúcar” – do contrário pode-se acabar por realizar uma análise determinista. Fazer uma análise etnográfica, então, dos rituais de Nação, firmando o olhar sobre os usos litúrgicos e significados relacionados à doçura e aos doces – incluindo doces tradicionais pelotenses – resulta em uma compreensão da contribuição negra para a célebre tradição doceira desta cidade como um conjunto dinâmico de representações, de práticas e expressões que permitem a perpetuação e a atualização desse patrimônio. Exatamente pela natureza imaterial de tais bens, é que buscou-se analisar prioritariamente seu caráter simbólico, ao invés de primar por aspectos concretos da constituição dos doces – a sacralização de quindins, 46 47 doces de abóbora, bombons, cocadas, mostrou-se, neste estudo, para fins analíticos, mais significativa do que a origem de suas receitas ou seus diferentes ingredientes. 47 48 5. Referências BONTE, Pierre y IZARD, Michael (org). Diccionario Akal de etnología y antropologia. Ed. Akal: Madri, 1996. COSTA LIMA, Vivaldo da. As dietas africanas no sistema alimentar brasileiro. In: BACELAR, Jéferson; CAROSO, Carlos (org). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. 2 ed. Ed. Pallas, CEAO e CNPQ: Rio de Janeiro/Salvador – BA, 1999. DE OXALÁ, Babalawô-Orixá Cabral. Divindades africanas: África, Brasil, Rio Grande do Sul. Editora e Gráfica da UFPel: Pelotas, 1995. DUMONT, Louis. 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PINTO E SILVA, Paula. Farinha, feijão e carne-seca: Um tripé culinário no Brasil colonial. Ed. Senac: São Paulo, 2005. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Companhia das Letras: São Paulo, 2001. SEGALEN, Martine. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe africana do Brasil. Ed. Pallas: Rio de Janeiro, 2002. 49 50 6. Anexos 50 51 6. 1. Anexo: Roteiro das entrevistas A. Identificação do entrevistado (Nome, idade, sexo, naturalidade, escolaridade, ocupação) B. História de vida B. 1. Identificação da família de origem Referente aos pais: Idade, escolaridade, naturalidade, ocupação, possível migração. B. 2. Identificação do grupo domiciliar Filhos, cônjuge e outros (sexo, idade, escolaridade, ocupação) C. Trajetória religiosa C. 1. Religião (qual nação?) C. 2. Iniciação (sim/não) Referente aos iniciados: motivações que os levaram se iniciar na religião; se desempenham alguma função específica na sua comunidade de culto, qual? D. A comida como oferenda aos orixás D. 1. Oferenda de comidas e sua finalidade D. 2. Oferenda de doces e suas peculiaridades D. 3. O uso de mel e dendê nos rituais. 51 52 6. 2. Anexo: Fotos Foto 1: Comidas dispostas no quarto-de-santo como oferendas. Batuque de “quatro pés”. Casa-de-santo de Ogum. Pelotas,17/11/2006. Acervo Marília Floôr Kosby. Foto 2: Opeté, comida oferecida ao orixá Bará, disposta no quarto-de-santo. Casa-de-santo de Bará. Centro de Pelotas, 17/11/2006. Acervo Marília Floôr Kosby. 52 53 Foto 3: Iniciado, dançando na roda, em batuque de homenagem a Iansã. Casa-de-santo de Oxum. Bairro Porto, Pelotas, 18/11/2006. Acervo Marília Floôr Kosby. Foto 4: Iniciada, dançando em celebração aos orixás, em um “batuque de doces” ou de “terminação”. Casa-de-santo de Iemanjá. Bairro Arco-íris, Pelotas, 02/12/2006. Acervo Marília Floôr Kosby. 53 54 Foto 5: Quarto-de-santo com oferendas: a baixo, um amalá, no centro, um bolo, fios-de-ovos e morangos. Batuque de homenagem a Iansã. Casa-de-santo de Oxum. Bairro Porto, Pelotas, 18/11/06. Acervo Marília Floôr Kosby. Foto 6: Doces dispostos como oferendas no quarto-de-santo, em um “batuque de doces” ou de “terminação”. Casade-santo de Iemanjá. Bairro Arco-írirs, Pelotas, 02/12/06. Acervo Marília Floôr Kosby. 54 55 Foto 7: Iniciados dançando em celebração aos orixás, em um “batuque de doces” ou de “terminação”. Casa-de-santo da Iemanjá. Bairro Arco-íris, Pelotas, 02/12/2006. Acervo Marília Floôr Kosby. Foto 8: Iniciados dançando em celebração aos orixás. Batuque em casa-de-santo de Nação Jeje com Ijexá. Bairro Cohab Tablada, Pelotas, 20/09/2006. Acervo Marília Floôr Kosby. 55 56 Foto 9: Bandeja com quindins, canjica e flores amarelas em oferenda a Oxum. Balneário dos Prazeres, Pelotas-RS. Dia 02/02/2007, comemorações do Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, santa católica sincretizada com Iemanjá. Foto 9: Bandeja com merenguinhos, canjica branca e flores azuis e brancas em oferenda a Iemanjá. Balneário dos Prazeres, Pelotas-RS. Dia 02/02/2007, comemorações do Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, santa católica sincretizada com Iemanjá. 56