História - UNIT ON-LINE
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Pedro Abelardo de Santana Introdução ao Estudo Histórico Jouberto Uchôa de Mendonça Reitor Amélia Maria Cerqueira Uchôa Vice-Reitora Jouberto Uchôa de Mendonça Junior Pró-Reitoria Administrativa - PROAD Ihanmark Damasceno dos Santos Pró-Reitoria Acadêmica - PROAC Domingos Sávio Alcântara Machado Pró-Reitoria Adjunta de Graduação - PAGR Temisson José dos Santos Pró-Reitoria Adjunta de Pós-Graduação e Pesquisa - PAPGP Gilton Kennedy Sousa Fraga Pró-Reitoria Adjunta de Assuntos Comunitários e Extensão - PAACE Jane Luci Ornelas Freire Gerente do Núcleo de Educação a Distância - Nead Andrea Karla Ferreira Nunes Coordenadora Pedagógica de Projetos - Nead Lucas Cerqueira do Vale Coordenador de Tecnologias Educacionais - Nead Equipe de Elaboração e Produção de Conteúdos Midiáticos: Alexandre Meneses Chagas - Supervisor Ancéjo Santana Resende - Corretor Claudivan da Silva Santana - Diagramador Edivan Santos Guimarães - Diagramador Geová da Silva Borges Junior - Ilustrador Márcia Maria da Silva Santos - Corretora Matheus Oliveira dos Santos Monique Lara Farias Alves - Webdesign Pedro Antonio Dantas P. Nou - Webdesign Rebecca Wanderley N. Agra Silva - Design Rodrigo Sangiovanni Lima - Assessor Walmir Oliveira Santos Júnior - Ilustrador Redação: Núcleo de Educação a Distância - Nead Av. Murilo Dantas, 300 - Farolândia Prédio da Reitoria - Sala 40 CEP: 49.032-490 - Aracaju / SE Tel.: (79) 3218-2186 E-mail: [email protected] Site: www.ead.unit.br Impressão: Gráfica Gutemberg Telefone: (79) 3218-2154 E-mail: [email protected] Site: www.unit.br S232i Santana, Pedro Abelardo de Introdução ao estudo histórico / Pedro Abelardo de Santana. – Aracaju : Gráf. UNIT, 2010. 144 p.: il. Inclui bibliografia 1. História – estudo e ensino. I. Titulo UniversidadeTiradentes (UNIT) Núcleo de Educação à Distância - NEAD CDU : 94 Copyright © Universidade Tiradentes Apresentação Prezado(a) estudante, A modernidade anda cada vez mais atrelada ao tempo, e a educação não pode ficar para trás. Prova disso são as nossas disciplinas on-line, que possibilitam a você estudar com o maior conforto e comodidade possível, sem perder a qualidade do conteúdo. Por meio do nosso programa de disciplinas on-line você pode ter acesso ao conhecimento de forma rápida, prática e eficiente, como deve ser a sua forma de comunicação e interação com o mundo na modernidade. Fóruns on-line, chats, podcasts, livespace, vídeos, MSN, tudo é válido para o seu aprendizado. Mesmo com tantas opções, a Universidade Tiradentes optou por criar a coleção de livros Série Biblioibliográfica Unit como mais uma opção de acesso ao conheonhecimento. Escrita por nossos professores, a obra contém ntém todo o conteúdo da disciplina que você está cursando ando na modalidade EAD e representa, sobretudo, a nossa preocupação em garantir o seu acesso ao conhecimento, onde quer que você esteja. Desejo a você bom aprendizado e muito sucesso! Professor Jouberto Uchôa de Mendonça Reitor da Universidade Tiradentes Sumário Parte I: A Natureza do Conhecimento Histórico ................. 11 Tema 1: História: Trajetória e Definições.............................. 13 1.1 Criação do método ....................................................... 13 1.2 Trabalho do historiador ................................................ 22 1.3 Relação entre passado e presente .............................. 30 1.4 História como ciência ................................................... 36 Tema 2: História: Construção, Fato e Utilidade ................... 45 2.1 Construção da história ................................................. 45 2.2 Fatos históricos............................................................. 54 2.3 Utilidade do passado.................................................... 61 2.4 Função da história ........................................................ 68 Parte II: A produção e a Divulgação do Conhecimento Histórico ................................................................... 77 Tema 3: História: Método Científico e Teorias ..................... 79 3.1 Século da história ......................................................... 79 3.2 Escola metódica ........................................................... 87 3.3 Marxismo e história ...................................................... 93 3.4 História dos Annales .................................................. 100 Tema 4: História: Fontes, Escrita, Pesquisa, Ensino ......... 111 4.1 Fontes.......................................................................... 111 4.2 Acontecimento e estrutura ........................................ 120 4.3 Pesquisa histórica ....................................................... 126 4.4 Ensino de história ....................................................... 134 Referências ............................................................................ 142 Concepção da Disciplina Ementa Investigar os avanços e recuos do conhecimento histórico desde o seu surgimento na Antiguidade até a atualidade. Discutir algumas especificidades do saber histórico, como a sua construção e os usos sociais do passado. Refletir sobre as escolas históricas, a produção do conhecimento histórico, a escrita e o ensino. Objetivos Geral Conhecer o método de produção do saber histórico e discutir os seus avanços e recuos ao longo do tempo. Específicos • Discutir o que é História e o que é memória e a relação entre ambas; • Refletir sobre as várias modalidades do tempo histórico; • Examinar algumas fontes e discutir o que é fato histórico; • Refletir sobre a escrita histórica, a pesquisa e o ensino de história; • Exercitar a capacidade de ler, compreender e analisar criticamente as literaturas históricas; • Conhecer e debater criticamente as teorias que embasam o conhecimento da História; • Exercitar a leitura e a interpretação das fontes históricas, como passo inicial da produção do conhecimento; Refletir sobre a função educativa dos lugares da História. Orientação para Estudo A disciplina propõe orientá-lo em seus procedimentos de estudo e na produção de trabalhos científicos, possibilitando que você desenvolva em seus trabalhos pesquisas, o rigor metodológico e espírito crítico necessários ao estudo. Tendo em vista que a experiência de estudar a distância é algo novo, é importante que você observe algumas orientações: • Cuide do seu tempo de estudo! Defina um horário regular para acessar todo o conteúdo da sua disciplina disponível neste material impresso e no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Organize-se de tal forma para que você possa dedicar tempo suficiente para leitura e reflexão; • Esforce-se para alcançar os objetivos propostos na disciplina; • Utilize-se dos recursos técnicos e humanos que estão ao seu dispor para buscar esclarecimentos e para aprofundar as suas reflexões. Estamos nos referindo ao contato permanente com o professor e com os colegas a partir dos fóruns, chats e encontros presencias. Além dos recursos disponíveis no Ambiente Virtual de Aprendizagem – AVA. Para que sua trajetória no curso ocorra de forma tranquila, você deve realizar as atividades propostas e estar sempre em contato com o professor, além de acessar o AVA. Para se estudar num curso a distância deve-se ter a clareza que a área da Educação a Distância pauta-se na autonomia, responsabilidade, cooperação e colaboração por parte dos envolvidos, o que requer uma nova postura do aluno e uma nova forma de concepção de educação. Por isso, você contará com o apoio das equipes pedagógica e técnica envolvidas na operacionalização do curso, além dos recursos tecnológicos que contribuirão na mediação entre você e o professor. A NATUREZA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO Parte I 1 História: Trajetória e Definições A disciplina Introdução ao Estudo Histórico tem por finalidade dar familiaridade ao aluno iniciante de História em relação às especificidades do saber histórico. Que conteúdos estudar nesta disciplina? Isso dependerá de uma escolha do professor, pois é vasta a quantidade de saberes necessários aos estudantes de História. Nossa opção privilegia a metodologia, a noção de tempo e a função da história. Neste tema os assuntos abordados versarão sobre o fazer histórico da Antiguidade aos tempos atuais, enfocando algumas questões específicas como o pensamento do historiador, a cientificidade de sua produção, a escolha dos fatos e os diferentes usos do passado pelas sociedades humanas. 1.1 CRIAÇÃO DO MÉTODO Iniciaremos a nossa discussão sobre os estudos históricos com uma afirmação do filósofo Collingwwod. Na obra A ideia de história, ele diz que a história serve para o autoconhecimento humano. Argumentando que por não termos meios de prever o 14 Introdução ao Estudo Histórico futuro, só podemos conhecer o que o homem fez, por isso, ele explica que o valor da história está então em nos ensinar. O que o homem tem feito e, deste modo, o que o homem é. Diante da afirmativa fica evidenciada a importância do conhecimento histórico e a necessidade de dominar os seus métodos. 1 Para conhecer mais este assunto leia: História: HERÓDOTO. estudo crítico por Vitor de Azevedo. São Paulo: Ediouro, 2001. p 9-42; e BLOCH, M. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2001. p.15-34. O método histórico: Heródoto O discurso histórico ainda em vigor na sociedade atual teve o seu início na Antiguidade entre os gregos. É consenso entre os estudiosos que o primeiro historiador cuja obra sobreviveu aos nossos dias foi Heródoto1. Mas, quem foi Heródoto e quais as características de sua obra? Heródoto foi um geógrafo e historiador grego, nascido no século V a.C. (485–420 a.C.) em Halicarnasso (hoje Bodrum, na Turquia). É considerado por muitos como o pai da História, por ser autor de uma obra com o nome de História. O livro narra a invasão da Grécia pelos persas no século V a.C. A originalidade do seu texto consiste em relatar os acontecimentos a partir do uso de testemunhas. Estátua de Heródoto, historiador da antiguidade, século V a. C. considerado o pai da História. Fonte: http://pt.wikipedia.org Tema I | História: trajetória e definições 15 Heródoto inaugura o gênero da história com testemunhas, ou como dizemos hoje, com fontes. As fontes utilizadas pelo autor para compor a narração da guerra entre gregos e persas foram os rapsodos (o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando), soldados e os sátrapas (governadores das províncias persas). Outra característica importante da sua obra é que ela é fruto das viagens do autor pelo Egito, Fenícia, Babilônia e Pérsia. Isso o transforma em um geógrafo e, para alguns, numa espécie de antropólogo moderno, pois nestas viagens fazia a observação de sociedades e lugares. História é a narrativa minuciosa das invasões médicas. É uma história universal, pois visa contar a história do mundo conhecido à época, com destaque para a guerra entre gregos e asiáticos. Faz também a descrição geográfica, étnica, costumes, religião dos lugares e povos visitados pelo autor. A obra tem muitos méritos, mas não está isenta de críticas. Os estudiosos apontam entre os seus defeitos a credulidade no maravilhoso, ou seja, a crença em milagres ou na participação de seres sobrenaturais nos acontecimentos humanos, o excesso de elementos anedóticos, a ausência de julgamentos, pois o autor se limita a narrar os acontecimentos e deixar o julgamento para os leitores, e inexatidões. Entre as críticas positivas está o fato de o autor não fazer panegírico, isto é, um discurso que exalta as qualidades de uma pessoa. A proposta de Heródoto é fazer o relato simples e veraz. Se compararmos Heródoto com Tucídides, outro historiador grego da Antiguidade, século V a.C, perceberemos que aquele é um cronista atento e minucioso, faz incursões pelo extraordinário e maravilhoso. Os equívocos presentes na obra de Heródoto devem-se aos erros de informantes, intérpretes e guias. Uma diferença da obra de Tucídides é a concepção de que a ação humana é resultado do caráter e da situação do indivíduo, 16 Introdução ao Estudo Histórico portanto, ele abandona a explicação das ações humanas a partir do fantástico. Esta é uma de suas críticas ao seu antecessor. Estátua de Tucídides, historiador grego do século V antes de Cristo. Fonte: http://pt.wikipedia.org Antes de Heródoto existiam outras formas de contar a história. Por exemplo, Cadmos antes do século V a.C. reuniu a tradição oral misturada à fantasia mitológica, mas Heródoto marcou o fim deste estilo de transportar a epopeia para a historiografia. Antes dele existiam os logógrafos que recolhiam notícias recheadas de idealizações. Heródoto foi o primeiro a fazer a narrativa singela de fatos reais. Entretanto, nem todos seguiram o seu exemplo, um milênio após a invenção do seu método histórico, o bispo e teólogo francês Bossuet (1627-1704), já no século XVII, fala na providência divina interferindo nos acontecimentos históricos. O método histórico no século XX: Marc Bloch Para entendermos a visão de história na atualidade, recorramos a análise da obra Apologia da história feita por Jacques Le Goff. Desde Heródoto até o século XX, a história passou por avanços e recuos. Por volta dos anos 1930, Marc Bloch estabeleceu um método e defendeu a história como uma ciência. O autor tem como ponto de partida uma pergunta sobre a legitimidade da história ou sua serventia, a qual responde dizendo que a história distrai, “tem seus gozos estéticos próprios” e que “Evitemos retirar de nossa ciência sua parte de poesia”. Esta é uma das suas legitimidades, mas não é a única. A distração da história e a sua Tema I | História: trajetória e definições 17 aproximação com a arte não tira o seu caráter científico, não a transforma em ficção. Ela tem métodos que devem ser conhecidos por todos os que pretendem enveredar por seus caminhos. A visão moderna de história valoriza o fundamento científico positivista, mas critica a estrita observância dos fatos que despreza a interpretação. Critica a história que mutila o homem, Marc Bloch foi fuzilado pelos alemães em 1944 por fazer parte da resistência francesa à II Guerra. Fonte: http://laviedesbetes.files.wordpress.com visualizando-o apenas no seu aspecto político ou econômico, e se interessa pelo homem integral, fazendo uma história do corpo, da sensibilidade, da mentalidade e não apenas ideias e atos. Não há questionamentos ao fato de que a história começou a sua maturidade com o início da crítica dos documentos de arquivos. O auge deste movimento foi o século XIX, quando surgiram métodos para a divulgação destes procedimentos. Mas atualmente tal método foi aperfeiçoado, em muitos aspectos foi superado. A aproximação com as ciências sociais, especialmente a sociologia, contribuiu para tal superação. Mas, Marc Bloch não abandona o acontecimento e o individual. Daí uma das diferenças entre história e sociologia. Após sofrer várias críticas, a história avançou muito em seus métodos e nas últimas décadas aconteceu a sua ampliação e aprofundamento. Como fruto destas transformações ela passou a tratar de novos problemas, novas abordagens e novos objetos. 18 Introdução ao Estudo Histórico Superando a ideia convencional de que a história é o estudo do passado humano, Marc Bloch traz a noção de que a história é busca e que o seu objeto de estudo são os homens no tempo. Esta noção é inovadora porque fala dos homens no plural, superando a história dos homens ilustres. E também fala na compreensão do presente pelo passado e do passado pelo presente. Em outras palavras, o passado não é recuperado pelo presente, mas o conhecimento que temos dele é fruto de interpretações, questionamentos e silenciamentos. Bloch também atenta para um elemento importante na investigação histórica, o fato de os documentos e testemunhos do passado só falarem quando sabemos interrogá-los. Neste caso, percebemos a importância da imaginação e do questionamento do pesquisador. Nesta questão do método, ele também diz que o historiador deveria relatar os problemas enfrentados durante a sua investigação como as ausências de testemunhos ou as respostas não encontradas para algumas questões. Desta forma, o leitor conheceria as fontes do historiador e o caminho que ele percorreu até chegar as suas conclusões. Por fim, uma lição valorosa que aprendemos com o mestre Bloch é que o papel da história é compreender e não julgar o passado. Enquanto sujeitos, podemos até nos indignarmos com um fato do passado, mas como estudiosos nossa tarefa consiste em entender e explicar a conjuntura em que os acontecimentos se deram. Tema I | História: trajetória e definições 19 Texto Complementar LIVRO I (CLIO) DE HERÓDOTO. Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros. I — Os Persas mais esclarecidos atribuem aos Fenícios a causa dessas inimizades. Dizem eles que esse povo, tendo vindo do litoral da Eritréia para as costas do nosso país, empreendeu longas viagens marítimas, logo depois de haver-se estabelecido no país que ainda hoje habita, transportando mercadorias do Egito e da Assíria para várias regiões, inclusive para Argos. Esta cidade era, então, a mais importante de todas as do país conhecido atualmente pelo nome de Grécia. Acrescentam que alguns fenícios, ali desembarcando, puseram-se a vender mercadorias, e que cinco ou seis dias após sua chegada, quase concluída a venda, grande número de mulheres dirigiu-se à beira-mar. Entre elas estava a filha do rei. Esta princesa, filha de Inaco, chamava-se Io, nome por que era conhecida pelos Gregos. Quando as mulheres, postadas junto aos barcos, compravam objetos de sua preferência, os fenícios, incitando uns aos outros, atiraram-se sobre elas. A maior parte delas logrou fugir, mas Io foi capturada, juntamente com algumas de suas companheiras. Os fenícios conduziramnas para bordo e fizeram-se à vela em direção ao Egito. II — Eis como, segundo os Persas — nisto pouco de acordo com os Fenícios — Io veio parar no Egito. Essa questão foi o início de todas as outras. Acrescentam os Persas que, 20 Introdução ao Estudo Histórico pouco depois, alguns gregos, cujos nomes não gravaram, vieram a Tiro, na Fenícia, e raptaram Europa, filha do rei. Eram, sem dúvida, Cretenses. Ficaram, assim, quites os dois povos, mas os Gregos tornaram-se depois culpados de uma segunda ofensa. Dirigiram-se num grande navio a Aea, na Cólquida, sobre o Faso, e, ultimados os negócios que ali os levaram, arrebataram Medéia, filha do rei, e tendo esse príncipe enviado um embaixador à Grécia para exigir a entrega da filha e a reparação da injúria, responderam-lhe que, como os Colquidenses não haviam dado nenhuma satisfação pelo rapto de Io, eles não o dariam absolutamente pelo de Medéia. III — Dizem ainda os Persas que na geração seguinte, Páris, filho de Príamo, tendo ouvido falar no caso, quis também raptar e possuir uma mulher grega, persuadido de que se outros não foram punidos, não o seria também. Raptou, então, Helena; mas os Gregos resolveram, antes de qualquer outra iniciativa, enviar embaixadores para exigir a devolução de Helena e pedir satisfações. Os Troianos, além de invocar aos Gregos o rapto de Medéia, ainda os censuraram por exigirem satisfações, uma vez que eles não as tinham dado aos outros e nem entregue a pessoa reclamada. IV — Até então, não houvera de uma parte e de outra mais do que raptos; mas depois do acontecido, os Gregos, julgando-se ofendidos em sua honra, fizeram guerra à Ásia, antes que os asiáticos a declarassem à Europa. Ora, conquanto lícito não seja raptar mulheres, dizem os Persas, é loucura vingar-se de um rapto. Manda o bom senso não fazer caso disso, pois sem o seu próprio consentimento decerto não teriam as mulheres sido raptadas. Asseguram os Persas que, embora asiáticos, ainda não haviam tido conhecimento de casos semelhantes, naquela parte do mundo. Entretanto, os Gregos, por causa de uma mulher lacedemônia, equiparam uma frota numerosa, desembarcaram Tema I | História: trajetória e definições 21 na Ásia e destruíram o reino de Príamo. Desde essa época, os Persas passaram a encarar os Gregos como inimigos, pois julgam que a Ásia lhes pertence tanto quanto as nações bárbaras que ocupam, enquanto consideram a Europa e a Grécia como formando um continente à parte. V — Tal é a maneira pela qual os Persas narram esses acontecimentos. À tomada de Tróia atribuem eles a causa do seu ódio aos Gregos. No que concerne a Io, os Fenícios não estão de acordo com os Persas. Dizem não ter havido rapto; que apenas a conduziram ao Egito com o seu próprio consentimento. Vendo-se grávida, a princesa, receando a cólera dos pais, entrou em entendimento com o comandante do navio fenício, em Argos, com ele partindo, a fim de ocultar sua desonra. Eis aí como Persas e Fenícios narram os fatos. Quanto a mim, não pretendo absolutamente decidir se as coisas se passaram dessa ou de outra maneira; e depois de ter narrado o que conheço sobre o primeiro autor das injúrias feitas aos Gregos, prossigo minha história, na qual tratarei tanto dos pequenos Estados como dos grandes. Os outrora florescentes, encontram-se hoje, na sua maioria, em completa decadência, e os que florescem hoje, eram outrora bem pouca coisa. Persuadido da instabilidade da ventura humana, estou decidido a falar igualmente de uns e de outros. VI — Creso era lídio por nascimento, filho de Aliata e rei das nações banhadas pelo Hális, no seu curso. Este rio, corre do sul, atravessa os países dos Sírios e dos Paflagônios, e desemboca ao norte, no Ponto Euxino. Pelo que me é dado saber, foi o príncipe o primeiro bárbaro a forçar uma parte da Grécia a lhe pagar tributo e não ter-se aliado com a outra. Submeteu os Iônios, os Eólios e os Dórios estabeledos na Ásia, e fez aliança com os Lacedemônios. Antes do seu reinado, todos os gregos eram livres. A expedição dos Cimerianos contra a Jônia, anterior a 22 Introdução ao Estudo Histórico Creso, não fez mais do que arruinar as cidades, pois não passou de incursão seguida de pilhagem. FONTE: Heródoto (484 a.C. - 425 a.C.). História. Traduzido por Pierre Henri Larcher (1726–1812). Versão para eBook, eBooksBrasil. 2006. Para Refletir • Junte-se aos seus colegas e discutam no fórum do AVA a partir da leitura do tema: • O que você entendeu sobre o método histórico inventado por Heródoto? • O que você entendeu sobre o fazer histórico na atualidade? 1.2 TRABALHO DO HISTORIADOR O objetivo deste conteúdo é falar do trabalho do historiador enquanto um procedimento científico. Destacaremos de que forma o pesquisador faz uma observação direta ou indireta do passado e mencionaremos a importância das fontes, elementos fundamentais para a credibilidade da história. 2 Saiba este mais assunto BLOCH, M. sobre lendo: Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.69-87. O olhar do historiador O objeto de estudo do historiador não é mais o passado humano, mas “os homens no tempo2”. Esta definição leva em Tema I | História: trajetória e definições 23 consideração que o passado não chega puro até o presente, porque os pesquisadores do presente lançam questões sobre o passado. Assim, o acesso do historiador ao seu objeto de estudo se dá a partir do distanciamento. Isto ocorre porque diferente de outros cientistas, o historiador não presencia a maioria dos eventos que estuda, portanto, para ele é impossível constatar os fatos que estuda. Por este raciocínio, quem se ocupa do presente produziria um conhecimento direto, e, quem se ocupa do passado produziria um conhecimento indireto. Esta é a crítica que muitas vezes é feita à História. Entretanto, a observação direta do presente é um artifício. A capacidade de observarmos o que ocorre a nossa volta é limitada. Tomemos o exemplo de um general no teatro da guerra. Ele só pode parcialmente observar diretamente o que ocorre a sua volta, o restante das notícias que chegam as suas mãos depende da observação dos seus tenentes e outros comandantes que preparam os seus relatórios. Vemos que, mesmo em relação a fatos da nossa época, dependemos de outros informantes para termos acesso a eles. Esta situação não difere da posição do historiador. Este também depende dos testemunhos de quem presenciou os eventos passados. Do ponto de vista da observação dos acontecimentos, a situação de quem observa o presente ou o passado remoto é similar, isto é, não consegue observar tudo o que ocorre a sua volta. Fonte: http://batalhamedieval.queroumforum.com 24 Introdução ao Estudo Histórico A observação do passado seria tão indireta? Se analisarmos bem, a resposta é não. O pesquisador que defende a necessidade de presenciar os fatos está imbuído de uma concepção de história específica. É, portanto, a História Política, predominante no final do século XIX e início do XX, baseada na descrição dos acontecimentos, grandes acontecimentos, que mais carece da observação direta. Da mesma forma, o uso dos testemunhos escritos e não-escritos permite a observação direta do passado, para a concepção de história que busca o entendimento contextual. Ao recorrer aos documentos, objetos ou outros testemunhos, o historiador está tendo um acesso direto ao passado. Percebemos que o conhecimento histórico necessita de vestígios, também chamados de fontes, testemunhos ou registros. A observação direta ou indireta do passado implica em presenciar ou não os acontecimentos. A diferença entre a investigação do mais remoto ou do mais recente é apenas de grau. Se no presente alguém não fizer os registros necessários dos acontecimentos, ou se a memória de quem presenciar um evento não for confiável, fica impossível após algum tempo recuperar tais informações com precisão. Sabemos que o passado é imutável, mas o seu conhecimento é progressivo. Nos séculos XIX e XX, graças à arqueologia, muitas civilizações, antes ignoradas, passaram a ser conhecidas. Cidades, línguas, religiões até então desconhecidas foram descobertas. Mas a nossa capacidade de conhecer o passado não é ilimitada. Só conhecemos aquilo que o passado nos permite saber. Para certas épocas, o pensamento, as atividades quotidianas entre outras, não são possíveis de serem recuperadas. Às vezes, o passado é um mundo sem indivíduos, exatamente porque eles não deixaram suas memórias. Portanto, o pesquisador quando necessário for deve honestamente confessar a sua ignorância. Tema I | História: trajetória e definições 25 Os testemunhos Os testemunhos do passado que chegam aos historiadores podem ser classificados como voluntários ou involuntários. Livros, cartas, biografias, diários, podem ilustrar esta primeira categoria de documentos. Ou seja, aqueles produzidos para servirem de prova, para informar ao leitor. Estes têm a vantagem de oferecer um enquadramento cronológico preciso. Porém, às vezes, não é a informação contida nestas fontes que interessa ao pesquisador, mas exatamente o que elas deixam de falar, as entrelinhas, demandando a curiosidade e a astúcia do investigador. Vaso grego. Exemplo de testemunho do passado usado como fonte pelo historiador. p Fonte: http://calcanhar.wordpress.com Fon O segundo caso, os documentos involuntários, como os restos de cozinha descartados, moedas, inscrições, artefatos e determinados tipos de documentos escritos, podem servir como testemunhos de um modo de vida. São involuntários porque sua produção não visou informar à opinião pública ou aos historiadores futuros. Eles poderiam ser tratados como mais confiáveis, por serem produzidos à revelia e não trazer uma mensagem préestabelecida. Não que existam documentos mais verdadeiros que outros, porém, a preferência do pesquisador recai sobre as fontes menos carregadas, mensagens intencionais. Por mais claro que seja o documento, ele só fala quando sabemos interrogá-lo. Quem se especializa no estudo da Idade Média ou da Pré-história sabe precisamente o que perguntar a cada documento da época. A observação passiva não é produtiva. É necessário que se façam perguntas aos documentos para se obter respostas. Sem essa inquirição o historiador não aparece, sua existência seria desnecessária. 26 Introdução ao Estudo Histórico À disposição do historiador existe uma diversidade de testemunhos históricos. Vai muito além do texto escrito, “tudo o que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”, diz Marc Bloch (2001, p. 79). As fontes não se limitam aos textos escritos oficiais como apregoavam os positivistas. A ausência de estudos sobre determinados temas ou épocas, às vezes, não se deve à falta de testemunhos, mas à falta de investigação, de pesquisa. Não existe uma fonte específica para cada problema histórico. A profundidade dos fatos só pode ser atingida com o maior número possível de testemunhos. Assim, textos, pinturas, fotografias e outros testemunhos, podem e devem ser usados conjuntamente. Qualquer estudo histórico torna-se mais rico, mais confiável se estiver alicerçado em várias fontes. Onde e como encontrar os documentos? Marc Bloch (2001, p. 82) dá uma pista: Reunir os documentos que estima necessários é uma das tarefas mais difíceis do historiador. De fato ele não conseguiria realizá-la sem a ajuda de guias diversos: inventários de arquivos ou de bibliotecas, catálogos de museus, repertórios bibliográficos de toda sorte. Os testemunhos necessários ao historiador comumente não estão acessíveis. A dificuldade de acessá-los é um dos problemas da profissão. A negligência de uns pode causar a perda ou a destruição dos documentos. A paixão pelo sigilo de outros faz com que inúmeros documentos de ordens religiosas, de instituições bancárias, de famílias etc. sejam interditos ao grande público. A acessibilidade ou a inacessibilidade aos registros é o que interfere no conhecimento ou esquecimento de uma época, de um contexto, de uma geração inteira, até de um povo. Tema I | História: trajetória e definições 27 Texto Complementar A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO HISTÓRICA [Mas tem mais.] A observação do passado, mesmo de um passado muito recuado, será com certeza sempre “indireta” a esse ponto? Vemos muito bem por que razões a impressão desse distanciamento entre o objeto do conhecimento e o pesquisador impôs-se com tanta força a tantos teóricos da história. É que pensavam antes de tudo em uma história de acontecimentos, até mesmo de episódios: quero dizer, aqueles que, certo ou errado -não é o momento de examinar -, dão extrema importância a retraçar exatamente os atos, palavras ou atitudes de alguns personagens, agrupados em uma cena de duração relativamente curta, em que se concentram, como na tragédia clássica, todas as forças da crise do momento: jornada revolucionária, combate, entrevista diplomática. Conta-se que, em 2 de setembro de 1792, a cabeça da princesa Lamballe havia desfilado na ponta de um chuço sob as janelas da família real. É verdade isso? É falso? O sr. Pierre Caron, que escreveu sobre os Massacres um livro de admirável probidade, não ousa se pronunciar. Se lhe houvesse sido dado contemplar, ele próprio, de uma das torres do Templo, o terrível cortejo, teria seguramente a que se ater. Pelo menos supondo que, tendo preservado, como podemos acreditar, nessas circunstâncias todo seu sangue-frio de cientista, houvesse, além disso, por uma justa desconfiança de sua memória, tomado cuidado de anotar imediatamente suas observações. Em tal caso, sem nenhuma dúvida, o historiador se sente, em relação à boa testemunha de um fato presente, em uma posição algo humilhante. Fica como que no fim de uma fila na qual os avisos são transmitidos, desde a frente, de fileira em fileira. Não é um lugar 28 Introdução ao Estudo Histórico muito bom para se ser informado com segurança. Assim, um tempo atrás, presenciei, durante uma troca de guarda noturna, passar, ao longo da fila, o grito: “Atenção! Buracos [de obus] à esquerda!” O último homem recebeu-o sob a forma “Para a esquerda”, deu um passo nesse sentido e foi tragado. (...) Ora, assim também muitos outros vestígios do passado nos oferecem um acesso do mesmíssimo nível. É o caso, em sua quase totalidade, da imensa massa de testemunhos nãoescritos, e até de um bom número de escritos. Se os mais conhecidos teóricos de nossos métodos não tivessem manifestado tão espantosa e soberba indiferença em relação às técnicas próprias da arqueologia, se tivessem sido, na ordem documentária, obcecados pelo relato, ao passo que na ordem dos fatos, pelo acontecimento, sem dúvida os veríamos menos prontos a nos jogar para uma observação eternamente dependente. Nos túmulos reais de Ur, na Caldéia, encontraram-se contas de colar feitas de amazonita. Como as jazidas mais próximas dessa pedra situam-se no coração da Índia ou nos arredores do lago Baikal, parece se impor a conclusão de que, a partir do terceiro milênio antes de nossa era, as cidades do Baixo Eufrates mantinham relações de troca com terras extremamente longínquas. A indução pode parecer boa ou frágil. Qualquer juízo que se faça sobre ela, trata-se inegavelmente de uma indução do tipo mais clássico; fundamenta-se na constatação de um fato e a palavra de outro em nada interfere nisso. Mas os documentos materiais não são, longe disso, os únicos a possuir esse privilégio de poderem ser apreendidos de primeira mão. Do mesmo modo o sílex, talhado outrora pelo artesão da idade da pedra,] um traço de linguagem, uma regra de direito incorporada em um texto, um rito fixado por um livro de cerimônias ou representado sobre uma estela são realidades que nós próprios captamos e que exploramos por um esforço de inteligência estritamente pessoal. [Nenhum outro Tema I | História: trajetória e definições 29 cérebro humano precisa ser convocado para isso, como intermediário. Não é absolutamente verdade, para retomar a comparação de ainda há pouco, que o historiador seja necessariamente reduzido a só saber o que acontece em seu laboratório por meio de relatos de um estranho. Ele só chega depois de concluído o experimento, sempre. Mas, se as circunstâncias o permitirem, o experimento terá deixado resíduos, os quais não é impossível que perceba com os próprios olhos.] Fonte: BLOCH, M. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.70-73. Para Refletir • Reflita e debata com seus colegas no fórum do AVA os questionamentos a seguir: • O que você entendeu sobre a ideia de que a observação direta do presente é um artifício? • Como explicar a afirmativa de que o conhecimento histórico é progressivo? • Como você entendeu a comparação entre a situação de um historiador e a de um guarda noturno? 30 Introdução ao Estudo Histórico 1.3 RELAÇÃO ENTRE PASSADO E PRESENTE Qual é o passado que interessa à história? Existe alguma relação entre passado e presente? A primeira pergunta Marc Bloch (2001, p.41) responde afirmando que é aquele em que há predomínio das ações humanas. Seu esclarecimento para a segunda pergunta é que ambos, passado e presente se influenciam. Preservar a memória das ações humanas é uma prática muito antiga, assim como é antiga a palavra história. Desde o século V antes de Cristo ela já era empregada com o sentido que tem hoje - investigação das ações dos homens através de testemunhos (fontes, registros etc.). Mas, diferentemente da historia construída pelos antigos, para a história contemporânea não é somente a ação individual que interessa. Sua preocupação é mais ampla, tem a ver com a coletividade. Não procuramos mais destacar apenas os atos dos heróis como se fazia no passado, pelo contrário, as ações, as crenças, o comportamento dos indivíduos devem ser levados em consideração e estudados. O objeto de estudo do historiador, segundo o pensador francês Marc Bloch é a investigação dos “homens” através do tempo. Não se trata apenas do passado, mas da relação entre passado e presente e vice-versa. Considerar que a história estuda “o passado humano” implicaria dizer que, o presente não influencia o passado e este chegaria intacto até nós. Existem alguns fenômenos naturais que são vistos numa perspectiva histórica como as erupções vulcânicas, os avanços e recuos do mar etc. Porém, só são de domínio da história os acontecimentos nos quais existe a prevalência do homem, quando ele é agente ou paciente. Outras ciências estudam os acontecimentos que não são frutos da ação humana como a geologia, a geomorfologia, a astronomia, etc. Tema I | História: trajetória e definições 31 Os homens são percebidos pela História através de diversificados testemunhos, entre eles, vestígios na paisagem, textos escritos, monumentos, cultura material e imaterial entre outros. Procede-se a análise desses registros de forma precisa e também com o uso da imaginação, da sugestão. O conhecimento histórico não é atingido apenas por meio da ciência, dos dados exatos, é necessária uma dose de arte, de interpretação. Para ilustrar este caso, basta pensar como se faz a análise de uma fotografia, de uma pintura. Martinho Lutero. Autor da Reforma Protestante que dividiu o cristianismo. É tarefa do historiador compreender a sua época, as suas ideias e a aceitação delas. Fonte: http://www.ielpa.org O papel do pesquisador é analisar os acontecimentos, ele não deve apenas listar os fatos cronologicamente, mas deve situá-los dentro de um contexto. Por exemplo, se falamos de Martinho Lutero e da reforma protestante no século XVI, temos que situar os fatos ante aos problemas sociais, culturais e econômicos da época, as relações entre a religião e a política, enfim, o contexto. Diz Marc Bloch (2001, p. 58): “devemos considerar o conhecimento do mais antigo como necessário ou supérfluo para a compreensão do mais recente?”. Esta questão é fundamental para entendermos que relação há entre o passado e o presente. 32 Introdução ao Estudo Histórico Alguns estudiosos procuravam “explicar o mais próximo pelo mais distante”, esclarecer o presente pelo mais antigo. Neste caso, a origem seria o começo ou a causa dos acontecimentos? É um proceder problemático, pois onde localizar a origem? Onde buscar a origem do feudalismo: em Roma ou na Germânia? Na maior parte dos eventos históricos a localização desse ponto inicial é algo impreciso, inalcançável. Fazer uso desse expediente, geralmente, redunda na justificação ou condenação do passado. Mas o julgamento é inimigo da história. Cabe a esta entender, compreender e não louvar ou condenar o que os homens do passado fizeram. Em suma, não devemos esquecer que os fenômenos históricos também são explicados pelo seu momento. Castelo de Bodian, Inglaterra. Simboliza o Feudalismo e ilustra a pergunta sobre onde encontrar a sua origem, em Roma, na Germania. Fonte: http://www.historiadomundo.com.br Outros historiadores agiam de forma contrária, eram adeptos do “presentismo”, isto é, viam os acontecimentos do presente como se fossem desligados do passado, como se em algum momento surgisse uma barreira separando o presente do Tema I | História: trajetória e definições 33 passado. Mas, o que é o presente? É um instante que, mal nasce, já morre. Então, a separação entre passado e presente é arbitrária, só existe nas nossas cabeças. Alguns pesquisadores pretendiam distanciar-se da época de estudo. Assim, defendiam que a história estudaria a época antiga e os fatos recentes seriam dominados por sociólogos, economistas, jornalistas, etc. Achavam que as mudanças técnicas ocorridas no século XIX distanciaram os homens do passado. Porém, é preciso considerar que, mesmo durante as mudanças rápidas, há permanências, uma geração não esquece totalmente o que aprendeu com a sua antecessora, pois as gerações mantêm contatos e se influenciam. Tal influência não pode ser medida pela distância entre o mais antigo e o mais recente. De acordo com Marc Bloch (2001, p.65), a solidariedade das épocas tem sentido duplo, isto é, a compreensão do presente requer o conhecimento sobre o passado. Através das nossas experiências cotidianas podemos reconstituir o passado, destacando as mudanças e as permanências. Também o presente lança novas questões ao passado, novas interrogações. É assim que se une “o estudo dos mortos ao dos vivos”. Em síntese, é inegável que existe um relacionamento entre o presente e o passado. Nosso papel enquanto indivíduos ou historiadores é perceber essa relação, como ela ocorre. 34 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar A IMPORTÂNCIA DA IMAGINAÇÃO NA HISTÓRIA. Pois o frêmito da vida humana, que exige um duríssimo esforço de imaginação para ser restituído aos velhos textos, é [aqui], diretamente perceptível a nossos sentidos. Li muitas vezes, narrei freqüentemente, relatos de guerras e de batalhas. Conhecia eu verdadeiramente, no sentido pleno do verbo conhecer, conhecia por dentro, antes de ter eu mesmo experimentado a atroz náusea, o que são, para um exército, o cerco, para um povo, a derrota? Antes de ter eu mesmo, durante o verão e o outono de 1918, respirado a alegria da vitória – na expectativa, e decerto espero, de com ela encher uma segunda vez meus pulmões, mas o perfume, ai de mim, não será mais completamente o mesmo -, sabia eu verdadeiramente o que encerra essa bela palavra? Na verdade, conscientemente ou não, é sempre a nossas experiências cotidianas que, para nuançá-las onde se deve, atribuímos matizes novos, em última análise os elementos, que nos servem para reconstituir o passado: os próprios nomes que usamos a fim de caracterizar os estados de alma desaparecidos, as formas sociais evanescidas, que sentido teriam para nós se não houvéssemos antes visto homens viverem? Vale mais [cem vezes] substituir essa impregnação instintiva por uma observação voluntária e controlada. Um grande matemático não será menos grande, suponho, por haver atravessado de olhos fechados o mundo onde vive. Mas o erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as coisas, nem os acontecimentos, [ele] merecerá talvez, como dizia Pirenne, o título de um útil antiquário. E agirá sensatamente renunciando ao de historiador. Além de tudo, a educação da sensibilidade histórica nem sempre está sozinha em questão. Ocorre de, em uma linha dada, o conhecimento do presente ser diretamente ainda mais importante para a compreensão do passado. Tema I | História: trajetória e definições 35 Com efeito, seria um erro grave acreditar que a ordem adotada pelos historiadores em suas investigações deva necessariamente modelar-se por aquela dos acontecimentos. Livres para em seguida restituir à história seu movimento verdadeiro, eles frequentemente têm proveito em começar por lê-la, como dizia Maitland, “as avessas”. Pois a demarche natural de qualquer pesquisa é ir do mais ou do menos mal conhecido ao mais obscuro. Sem dúvida, falta, e muito, para que a luz dos documentos se faça regularmente mais viva à medida que percorremos o fio das eras. Somos incomparavelmente menos informados sobre o século X de nossa era, por exemplo, do que sobre a época de César ou de Augusto. Na maioria dos casos, os períodos mais próximos não coincidem menos nesse aspecto com as zonas de clareza relativa. Acrescentem que, ao proceder, mecanicamente, de trás para frente, corre-se sempre o risco de perder tempo na busca das origens ou das causas de fenômenos que, à luz da experiência, irão revelar-se, talvez, imaginários. Por ter-se omitido de praticar, ali onde se impunha, um método prudentemente regressivo, os mais ilustres dentre nós às vezes se entregaram a estranhos erros. Fonte: BLOCH, M. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 66-67. 36 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • A respeito do objeto de estudo da História, o que ela busca ao se debruçar nos documentos escritos, vestígios na paisagem, instituições. • Escolha um fato histórico de qualquer época e exercite a sua análise considerando o contexto em que ele aconteceu. • Na hora de interpretar os fatos históricos o historiador pode fazer várias opções. Dentre estas, esclareça como você entendeu os seguintes procedimentos: explicar o presente pela origem mais remota; analisar o presente sem nenhuma relação com o passado. • É possível alguém ser historiador e não gostar de olhar ao seu redor, nem de observar os homens, as coisas e os acontecimentos? (ver texto complementar) 1.4 HISTÓRIA COMO CIÊNCIA O que a História tem de ciência e de arte? A História é a mesma desde seu nascimento na Grécia Antiga, no século V a.C. até os dias de hoje? Como se deu a formação deste campo do conhecimento? Serão estas as temáticas discutidas a seguir. No século XX travou-se uma discussão a propósito da história ser uma ciência ou uma arte. Jacques Le Goff sustenta ser ela uma ciência porque precisa de técnicas, de métodos e de ser ensinada. Concordando com as ideias do século anterior, frisa que a história se faz com documentos, mas o documento já é pré-selecionado antes de ser usado pelo historiador. Logo, existe uma parte de subjetividade na produção desse conhecimento. Seria uma ciên- Tema I | História: trajetória e definições 37 cia especial que precisa e muito da 3 Fustel de Coulanges imaginação. Nesse sentido, é também – historiador francês do uma arte. século XIX. Autor de “A Os historiadores do XIX acredihistória antiga”. tavam ser possível a fidelidade aos documentos. Fustel de Coulanges3 dizia que devemos procurar os fatos não na imaginação, nem na lógica, mas nos textos escritos e na falta de textos dever-se-ia pedir as línguas mortas o seu segredo. Ou seja, a fonte predominante era Manuscrito sergipano do século XIX. Era a fonte ideal para a maioria dos historiadores da época. Fonte:http://www.tjse.jus.br o texto escrito e abria-se uma exceção para o uso de outras fontes somente quando não houvesse documentos escritos. Após as limitações impostas ao fazer histórico, observadas neste século, houve renovações. Entre elas, a possibilidade de fazer uso de documentos não escritos. Esta mudança já vinha ocorrendo desde o século XVIII, mas não tinha tanto sucesso entre os historiadores. Trata-se do papel da Arqueologia que ampliou o conhecimento sobre a História Antiga, a Proto-História e a Pré-História, a partir das escavações e do uso dos artefatos encontrados. A Arqueologia influenciou bastante a História devido ao seu interesse pelos estudos globais, urbanos ou rurais, sobre a paisagem, enfim, pela cultura material. Começou a emergir reflexões sobre os motivos das ausências de documentos, possibilitando o estudo de temas silenciados como feitiçaria, loucura, festas, literatura popular, camponeses, etc. Antes os 38 Introdução ao Estudo Histórico historiadores davam maior atenção à história política, destacando os feitos dos “grandes” homens. O fazer histórico se modificou profundamente. Contra a ideia de uma verdade histórica, insurge-se Paul Veyne4 4 Paul Veyne - historiador da segunda metade do século XX. Fundamenta-se na psicologia, sociologia e na antropologia. dizendo que fazer história é questionar o conhecimento produzido, ou seja, é reavaliar o que foi escrito pelas gerações anteriores, sabendo identificar as crenças, as visões de mundo, as opções políticas etc., impregnadas nesses textos. O método da crítica documental interna e externa (este assunto será detalhado no tema “O século da História), inaugurado no século XIX, sofreu alterações. A crítica externa que visava saber se o documento era verdadeiro ou falso, tomou outro sentido, porque o documento falso passou a ser considerado também como histórico, por informar sobre a época e as razões da sua falsificação. A crítica interna que procurava a autoria, a sinceridade e a exatidão do documento, passou a preocupar-se com o contexto de produção dos documentos. Como nenhum documento é inocente, na crítica do documento o pesquisador desmistifica o documento, ou seja, analisa o momento e a pessoa que produziu. História da história Até tomar a configuração que tem hoje, o fazer histórico passou por várias transformações. Desde o seu nascimento na Grécia Antiga com Heródoto, passando pela época medieval e moderna, muitos foram os avanços e recuos. Tema I | História: trajetória e definições Heródoto5, que viveu no século V a.C., é considerado o pai da Histó- 39 5 Heródoto – 484 -420 a.C., historiador grego ria porque fundamentava seu trabalho considerado o pai da nos testemunhos (hoje diríamos fon- história. tes). Utilizava o testemunho pessoal, registrando o que via e ouvia em suas 6 Tucídides – historiador viagens. Era um método que dava grego nascido em 455 conta do passado recente. Tucídides6, a.C.? Autor de História da outro historiador da época, falava da guerra do Peloponeso. necessidade de fazer a crítica dos testemunhos (não acreditar cegamente 7 Políbio – historiador nos relatos dos depoentes). É acusado, grego já sob o domínio inclusive, de alterar os depoimentos romano. para adequar ao que ele considerava correto. O pensador antigo Políbio7 agregou outras contribuições à História com suas investigações das causas, a proposta de uma história geral, sintética e comparativa. Políbio fazia uma história que buscava a verdade. Concebida como “mestra da vida”, servia para os homens não repetirem os erros de seus antepassados. Os primeiros cristãos dos séculos IV ao VI, também deram algumas contribuições à História. Entre elas, o enquadramento cronológico (a divisão em períodos) e a citação fiel dos documentos, com o intuito de não alterar os documentos. Durante a Idade Média, apesar de diminuir o interesse pela produção e o ensino da História, continuou o esforço histórico representado pelo acúmulo e preservação de documentos nas igrejas e mosteiros, obra dos monges copistas. Graças aos homens medievais temos preservados documentos e obras da Antiguidade. 40 Introdução ao Estudo Histórico Monge copista. Era o responsável pelo ensino medieval e pela preservação dos livros. Fonte: http://www.pedagogiaespirita.org A partir do Renascimento a História ganha novas concepções e técnicas como a crítica dos documentos com ajuda da filologia, a laicização (abordando temas não religiosos), a eliminação de mitos e lendas. Começa a haver uma relação entre história e erudição. Os “eruditos” eram especialistas em antiguidades. As antiguidades eram os objetos da cultura material pertencentes ao mundo antigo, considerados importantes para se conhecer a época. Essa prática foi importante porque dos utensílios também se extraíam informações para o conhecimento das sociedades passadas. No caso dos períodos sem escrita (proto-história) foi um avanço significativo. História e erudição caminhavam separadas, quando se encontraram houve um avanço no conhecimento do mundo antigo e medieval. As inovações persistiram. Entre os séculos XV e XVI, surge a história profana, sem fábulas e sem aspectos sobrenaturais; estudos eruditos sobre numismática, filologia (línguas mortas), dicionários e a noção de século. No século XVII assistimos ao Tema I 41 | História: trajetória e definições avanço da erudição e certo eclipse da História. Os monges bolandistas8, 8 Monges bolandistas – religiosos da França nessa época, aprimoram a crítica de especializados em documentos (diplomas) para identificar estudar dos sua veracidade ou falsidade. Durante o santos. a vida século XVIII predomina o Racionalismo filosófico com Voltaire, dando origem a uma filosofia da história com explicação racional dos acontecimentos. As ideias da época rejeitam a Providência (Deus como motor da História) e a procura de causas naturais. A História passou a ser estendida a todos os aspectos da sociedade e a todas as civilizações. Aparecem na França as primeiras instituições (arquivos e museus) dedicadas ao passado. Até o século XIX a História acumulou estas contribuições. Neste século ocorreu a atualização e a difusão da crítica documental entre historiadores, antes utilizada apenas por eruditas. Deu-se também ênfase no ensino universitário e nas publicações, na criação de arquivos nacionais e de revistas nacionais de história em várias nações europeias. Neste cenário, a Prússia (hoje Alemanha) se destacou com a instalação do ensino de história nas universidades, com a criação de institutos de pesquisa e com a publicação de coleções de documentos. 42 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar A MENTALIDADE HISTÓRICA: OS HOMENS E O PASSADO Anteriormente citei alguns exemplos do modo como os homens constroem e reconstroem o seu passado. É, em geral, o lugar que o passado ocupa nas sociedades o que aqui me interessa. Adoto, neste ensaio, a expressão ‘cultura histórica’, usada por Bernard Guenée (1980). Sob este termo, Guenée reúne a bagagem profissional do historiador, sua biblioteca de obras históricas, o público e a audiência dos historiadores. Acrescento-lhes a relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado. Minha concepção não está muito afastada daquilo a que os anglo-saxônicos chamam historical mindedness. Conheço os riscos desta reflexão: considerar unidade uma realidade complexa e estruturada em classes ou, pelo menos, em categorias sociais distintas por seus interesses e cultura, ou supor um ‘espírito do tempo’ (Zeitgeist), isto é, um inconsciente coletivo, o que são abstrações perigosas. No entanto, os inquéritos e os questionários usados nas sociedades ‘desenvolvidas’ de hoje mostram que é possível abordar os sentimentos da opinião pública de um país a respeito de seu passado, assim como sobre outros fenômenos e problemas (cf. Lecuir, 1981). Como estes inquéritos são impossíveis no que se refere ao passado, esforçar-me-ei por caracterizar – sem dissimular o aspecto arbitrário e simplificador deste procedimento – a atitude dominante de algumas sociedades históricas perante seu passado e sua história. Considerarei os historiadores os principais interpretes da opinião coletiva, procurando distinguir suas idéias pessoais da mentalidade coletiva. Sei bem que ainda continuo a confundir passado com história na memória coletiva. Devo, pois, dar algumas explicações suplementares que tornam mais precisas as minhas idéias sobre a história. Tema I | História: trajetória e definições 43 A história da história não se deve preocupar apenas com a produção histórica profissional, mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica, ou melhor, a mentalidade histórica de uma época. Um estudo dos manuais escolares de história é um aspecto privilegiado, mas esses manuais praticamente só passam a existir depois do século XIX. O estudo da literatura e da arte pode esclarecer este ponto. O lugar que Carlos Magno ocupa nas canções de gesta, o nascimento do romance no século XII e o fato de ter assumido a forma de romance histórico (argumento antigo, cf. Nouvelle Revue Française, nº 238, Le Roman Historique, 1972), a importância das obras históricas no teatro de Shakespeare (Driver, 1960) são testemunhas do gosto de algumas sociedade históricas por seu passado. Integrado numa recente exposição de um grande pintor do século XV, Jean Fouquet, Nicole Reynaud mostrou (1981) como, a par do interesse pela história antiga, sinal do Renascimento (miniaturas da Antiquités judaiques, da Histoire ancienne, de Tite-Live), Fouquet manifesta um gosto acentuado pela história moderna (Heures de Étienne Chevalier, Tapisserie de Tormisuy, Grandes Chroniques de France etc.). dever-se-ia acrescentar-lhes o estudo dos nomes próprios, dos guias de peregrinos e turistas, das inscrições, da literatura de divulgação, dos monumentos etc. Marc Ferro (1977) mostrou como o cinema acrescentou à história uma nova fonte fundamental: o filme torna claro, aliás, que o cinema é ‘agente e fonte da história’. Isto é verdadeiro para o conjunto da media, o que bastaria para explicar que a relação dos homens com a história conhece, como a media moderna (comunicação de massa, cinema, radio, televisão), um avanço considerável. É este alargamento da noção de história (no sentido de historiografia) que santo Mazzarino defendeu no grande estudo Il pensiero storico clássico (1966). Fonte: LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. p. 47-49. 44 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • O que significa dizer que a História é um conhecimento subjetivo? • Qual foi a contribuição de Heródoto, Tucídides e Políbio para o nascimento do ofício do historiador? • O fazer histórico conheceu várias transformações, quais delas ocorreram durante a época Iluminista (século XVIII)? • No século XIX a História conheceu um aprimoramento significativo, discuta uma das novidades deste período: RESUMO DO TEMA I Até aqui tratamos de algumas questões iniciais da história. Falamos do método histórico inventado por Heródoto na Antiguidade, que fala na história como investigação e destaca a importância dos testemunhos que viram ou ouviram os acontecimentos. Frisamos os procedimentos do historiador com a observação direta e indireta do passado, destacando que os vestígios por ele investigados sempre lhe dão o acesso direto ao passado. A respeito da relação entre passado e presente, aprendemos que ambos se influenciam e que as questões do presente são indispensáveis para interrogarmos o passado. Metodologicamente não é a investigação das origens que deve motivar o pesquisador. Para entendermos as transformações vivenciadas pela ciência histórica, vimos os avanços e os recuos que a história teve ao longo dos séculos. 2 História: Construção, Fato e Utilidade Nesse tema trataremos da relação entre história e memória, considerando que a história é feita a partir dos fragmentos da memória. Discutiremos a seleção dos fatos históricos na visão de Edward Carr. Abordaremos a utilidade e a função da história, destacando que o passado pode ser construído para servir de modelo padrão ou para ser rejeitado. Ou que a história pode ser construída para o divertimento de todos os públicos, para o esclarecimento e a luta política. 2.1 CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA A história é feita de fragmentos de memórias individuais e coletivas. Elas podem ser manipuladas conscientemente ou não. Ao entender como a História se apropria da memória, o estudante saberá por que a História não é uma verdade absoluta e por que não conhecemos toda a História. É uma lição de como é construído o conhecimento do passado e dos embates enfrentados pelos pesquisadores. 46 Introdução ao Estudo Histórico Aprenda mais sobre o assunto lendo: TEDESCO, J. C. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração. Passo Fundo: UPF; Caxias do Sul: EDUSCS, 2004. p. 35-226. A lembrança O conceito de memória inclui a ideia de “conservação de traços de experiências passadas”. Comporta também a noção de reinvocação de uma realidade e a capacidade de armazenar informações e ter acesso a elas. Quando nos lembramos de algo, não o acessamos da forma como aconteceu, mas de modo reelaborado. Entender o que é memória é fundamental para compreender o que é história. A história se alimenta da memória. Mas como a memória é conservada? A sua conservação não ocorre apenas nas nossas mentes, acontece também através de outros suportes como o papel, os objetos do cotidiano e os meios artísticos etc. Assim, a memória pode ser encontrada na cabeça das pessoas, nos arquivos, nas bibliotecas, nas obras de arte, nos monumentos, nas ruínas, etc. A lembrança é o meio de acesso à memória. No momento de trazer a memória ao presente faz-se o uso da imaginação. Isto acontece porque nossas lembranças são acometidas por falhas e esquecimentos e porque dependendo do que se queira lembrar, podemos dar novos significados aos acontecimentos do passado. Ou seja, uma memória recente como o término de um namoro pode ter um significado, mas passados alguns anos pode ter outra conotação. A memória pode ser individual ou coletiva. Memória coletiva diz respeito às experiências compartilhadas por mais indivíduos, por uma geração, uma comunidade, um grupo. Neste caso, a memória implica no sentimento de identidade, no qual os grupos Tema II | História: construção, fato e utilidade 47 como índios, operários, camponeses, intelectuais, compartilham valores semelhantes. É essa memória que nos faz pertencente a um povo, uma nação. Ao voltar-se nos últimos tempos para a memória, as pesquisas têm contribuído para o avanço da micro-história, na qual, a partir de indícios presentes na memória, se procura práticas e pensamentos. No bojo dos acontecimentos ocorreu a valorização do cotidiano e das pessoas comuns enquanto espaço e tema da história. Segundo o historiador Carlo Ginzburg (apud Tedesco, 2004, p. 40), a memória permite “pesquisar o tempo e a história a partir das coisas mínimas”, como vemos é um rompimento com a história dos grandes acontecimentos. A memória tem a função de interiorizar processos vividos e permitir a utilização deste patrimônio para ser comunicável aos outros. É a representação “pessoal e/ou coletiva da própria história ou da de outrem”. Livro do historiador italiano Carlo Ginzburg leva ao ápice a sua arte historiográfica de perseguir as pistas mais tênues e fazer falar os textos mais diversos. Fonte:http://www.livrariasobrado.com.br Lembranças fragmentadas. Cotidiano. Vasculharmos a memória, encontramos somente fragmentos, resíduos das experiências pessoais ou coletivas. Existem vários tipos de memória: histórica, social, cultural, midiática (dos meios de comunicação). Acredita-se que o estudo da memória permite conhecer o todo pelo fragmento, isto é, a partir da coleta dos depoimentos de várias pessoas é possível construir uma visão sobre acontecimentos, modos de vida etc. 48 Introdução ao Estudo Histórico Além de servir à História, a memória tem funções sociais. Memória é cidadania. Deixar emergir a memória das pessoas simples possibilita deixar aparecer formas de vivências de grupos étnicos e sociais. A sua valorização implica em dar voz a grupos que não aparecem dentro da história. Dentre as características da memória podemos perceber que ela pode ser convergente, contrastada e múltipla. Em outras palavras, convergente no sentido de que as pessoas podem ter lembranças que se completam. Contrastada no sentido de que elas podem se opor. E múltipla quer dizer que as memórias podem ser diferentes e não necessariamente opostas, uns podem ter memórias mais ricas, mais fecundas que outros. É notório o papel da memória como destruidor de generalizações e reduções. Ou seja, ao valorizarmos tempos, subjetividades, contextos, conflitos e ligar lembranças e silêncios, damos novas dimensões à história, que as fontes tradicionais não permitiriam, ou dificultariam este proceder. O estudo das memórias forneceu esclarecimentos sobre o cotidiano e revolucionou as ciências sociais (história, antropologia, sociologia etc.), a partir das novas visões, das novas temáticas abordadas. Permitiu algumas rejeições do ponto de vista histórico como à ideia de continuidade, os estudos globalizantes, a história universal. Surgiram novas temáticas ligadas ao cotidiano, porque “o cotidiano é parte integrante da história”. A memória mostra que as identidades são diferenciadas, ou seja, comunidades, grupos, gerações, etc. têm ideias, valores e procedimentos particulares. Costumava-se antes generalizar como se os grupos fossem um todo sem diferenciações. Outra função da memória é servir de ligação social dos grupos, isto é, os indivíduos se identificam através das lembranças e dos valores comuns. Tema II | História: construção, fato e utilidade 49 Filtragem da lembrança A memória deve ser vista como uma construção social que tem a ver com o momento histórico e as características culturais dos grupos. Neste aspecto os meios de conservação da memória são importantes. Textos escritos, artefatos em pedra, madeira, tecidos, barro, entre outros, são suportes para “presentificar” e “futuricizar” a memória. Ou seja, trazem a memória ao presente e possibilitam a sua conservação para o futuro, para as novas gerações. Ao entendermos como são produzidos os meios de preservação da memória, fica mais clara a ideia de que a lembrança, o esquecimento e a filtragem das informações acompanham este processo. É por isso que a memória é uma construção. Há meios de manipulá-la. Manuelzão, um dos mais famosos ‘inspiradores reais’ do escritor Guimarães Rosa. Coletar memórias é uma forma de construir a história. Fonte: FROCHTENGARTEN, F. A memória oral no mundo contemporâneo. Fonte: http://www.scielo.br A filtragem é uma forma de manter um controle sobre o que deve ser lembrado, filtrar é selecionar e isto ocorre intencionalmente. Há maiores seleções nas memórias que envolvem o poder político, nem sempre os discursos dos governantes correspondem às ações. Segredos de Estado são exemplos do controle da memória pelo poder. O silêncio é outra face da memória. Neste caso, é sempre proposital. Não é em todas as instâncias que silêncio é eficaz. É eficiente no campo político, mas não é no cotidiano. 50 Introdução ao Estudo Histórico Para entendermos melhor basta dizer que “a memória oculta, esconde o fracasso, os vícios, os defeitos” e tende a sustentar, a propagar os sucessos, as “boas” lembranças. Esta visível manipulação da memória é também um abuso da memória. Ocorre quando se seleciona alguns fatos do passado como mais importantes e significativos. Mas o esquecimento pode também ser uma fuga, um meio de não se lembrar de algo incômodo. Enfatizamos até agora algumas discussões a respeito da memória e de sua contribuição para a História. Mas, a ideia de memória varia de acordo com alguns teóricos. O que nos interessa aqui é reforçar o papel da memória para a sobrevivência da identidade individual e coletiva, lembrar que a memória não é um registro fiel do passado porque o ato de relembrar implica uma recriação, e, por isso, a história que é feita da memória também é uma representação do passado. Texto Complementar A RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Deste ponto de vista, o estudo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e, quanto às perturbações da memória, das quais a amnésia é a principal, a psiquiatria (cf. Meudlers, Brion e Lieury, 1971; Flores, 1972). Certos aspectos do estudo da memória, no interior de qualquer uma destas ciências, podem evocar, de forma metafórica ou concreta, traços e problemas da memória histórica e da memória social (cf. Morin e Piattelli Palmarini, 1974). Tema II | História: construção, fato e utilidade 51 A noção de aprendizagem, importante na fase de aquisição da memória, desperta o interesse pelos diversos sistemas de educação da memória que existiram nas várias sociedades e em diferentes épocas: as mnemotécnicas. Todas as teorias que conduzem de algum modo à ideia de uma atualização mais ou menos mecânica de vestígios mnemônicos foram abandonadas, em favor de concepções mais complexas da atividade mnemônica do cérebro e do sistema nervoso: “O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios” e “os processos de releitura podem fazer intervir centros nervosos muito complexos e uma grande parte do córtex”, mas existe “um certo número de centros cerebrais especializados na fixação do percurso mnésico” (Changeux, 1972, p. 356). O estudo da aquisição da memória pelas crianças permitiu, assim, constatar o grande papel desempenhado pela inteligência (cf. Piaget e Inhelder, 1968). Na linha desta tese, Scandia de Schonen declara: “A característica das condutas perceptivo-cognitivas que nos parece fundamental é o aspecto ativo e construtivo dessas condutas” (1974, p. 294), e acrescenta: Podemos, pois, concluir que se desenvolveram ulteriores investigações que tratam do problema das atividades mnésicas, integradas ao conjunto das atividades perceptivo-cognitivas, no âmbito das atividades que visam organizar-se da mesma maneira, na mesma situação, ou adaptaremse a novas situações. E talvez só pagando este preço compreenderemos um dia a natureza da recordação humana, que impede tão prodigiosamente as nossas problemáticas (op. cit., p. 302). Descendem daqui diversas concepções recentes da memória, que põem à tônica nos aspectos de estruturação, nas atividades de auto-organização. Os fenômenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, não são mais do que os resultados de sistemas dinâmicos de organização 52 Introdução ao Estudo Histórico e apenas existem “na medida em que a organização os mantêm ou os reconstitui. Alguns cientistas foram, assim, levados a aproximar a memória de fenômenos diretamente ligados à esfera das ciências humanas e sociais. Assim, Pierre Janet “considera que o ato mnemônico fundamental é o “comportamento narrativo”, que se caracteriza antes de mais nada pela sua junção social, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (Flores, 1972, p. 12). Aqui intervém a “linguagem, ela própria produto da sociedade” (ibidem). Deste modo, Henri Atlan, estudando os sistemas autoorganizadores, aproxima “linguagens e memórias”. (...) Leroi-Gourhan (1964-1965, p. 269), considera a memória em sentido lato e distingue três tipos de memória: memória específica, memória étnica, memória artificial: Memória é entendida, nesta obra, em sentido muito lato. Não é uma propriedade da inteligência, mas a base, seja ela qual for, sobre a qual se inscrevem as concatenações de atos. Podemos a este título falar de uma “memória específica” para definir a fixação dos comportamentos de espécies animais, de uma memória “étnica” que assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas e, no mesmo sentido, de uma memória “artificial”, eletrônica em sua forma mais recente, que assegura, sem recurso ao instinto ou à reflexão, a reprodução de atos mecânicos encadeados. (...) Finalmente, os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento (nomeadamente no seguimento de Ebbinghaus), nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afeti- Tema II | História: construção, fato e utilidade 53 vidade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva. Fonte: LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003. p. 419-422. Para Refletir • Como você entendeu o conceito de memória? • Que importância tem a memória para a História? • Em que sentido o uso da memória permitiu a ampliação do estudo da história do cotidiano? • Tratando-se da memória o que significa o silêncio e o esquecimento de determinados episódios? 54 Introdução ao Estudo Histórico 2.2 FATOS HISTÓRICOS A História é feita a partir dos fatos históricos. Fatos são os acontecimentos considerados relevantes pelos historiadores para ilustrar os seus estudos. Mas, a relação dos historiadores com os fatos é diferenciada. Uns consideravam os fatos como imutáveis, outros os consideravam como uma construção, uma invenção. Afinal, o que é fato histórico? Diz-nos Edward Carr (1996, p.43) que, em 1896, uma publicação da Universidade de Cambridge, sobre a ideia de história, falava na possibilidade da produção da história definitiva, isto é, do estabelecimento da verdade histórica, da versão insuperável. Em 1957, outra publicação da mesma instituição falava em estudos históricos superáveis e defendia que não há verdade histórica objetiva. São dois bons exemplos de como a visão Universidade Cambridge, Inglaterra. de história mudou comInstituição que propôs em 1896 a pletamente em tão pouco tempo. história definitiva. Antes de responder a Fonte: http://borboletasaoluar.blogspot.com pergunta sobre o que é História é preciso esclarecer o que é fato histórico. Os historiadores positivistas defendiam que os fatos deveriam ser apenas relatados com pouca ou nenhuma interpretação. Em suma, o pesquisador não precisava pensar. A partir desta visão, era valorizado o relato dos fatos com exatidão. Atualmente, é consenso entre os historiadores que a exatidão em relação à época e ao local é um dever e não uma virtude do historiador. Outra mudança em relação à visão dos fatos históricos é a constatação de que eles só falam quando são abordados e de que é o historiador Tema II | História: construção, fato e utilidade 55 quem decide qual fato é histórico. Assim, a verdade não está nos fatos, considerando que há uma escolha daqueles que melhor ilustram uma determinada época ou pesquisa. A respeito do poder do historiador sobre os fatos, temos um bom exemplo em relação à História Antiga e Medieval, na qual alguns fatos possuem validade e significado aceitos por outros historiadores, mesmo que não estejam registrados e seja fruto da interpretação do pesquisador. Por exemplo, se as fontes só nos permitem saber sobre a economia ou a guerra na Grécia antiga, o historiador tem que imaginar como era o cotidiano das pessoas, as suas aspirações etc. Vemos que, a História oscila entre a verdade contida nas fontes e os julgamentos aceitos. Também em relação à História Contemporânea, rica em registros históricos, a coisa não é diferente. Os fatos históricos são aqueles tidos como os mais importantes. Neste caso o que o historiador faz é descartar os fatos que achar insignificantes. Na impossibilidade de utilizar todos os fatos, faz-se uma seleção. Mais uma vez percebemos que, se é o historiador quem escolhe os fatos, não pode haver uma única verdade objetiva. A seleção dos fatos Os fatos são selecionados, ou seja, nem todo fato se torna fato histórico. O culto aos fatos que os considerava como sagrados, imutáveis perdeu adeptos. Um dos problemas desta tendência na História era que ela levava a uma espécie de história enciclopédica e dava a impressão de se poder conhecer todo o passado humano se todos os documentos fossem reunidos. Porém, sabemos que só conhecemos fragmentos do passado. Os fatos são essenciais, mas não constituem a História. É necessária a análise do historiador. A seleção dos fatos começa antes dos documentos chegaram às mãos do historiador. Ao serem produzidos os documentos já representam a visão do registrador. Quando escrevemos uma carta, que é um documento histórico, 56 Introdução ao Estudo Histórico escolhemos aquilo que iremos dizer e evitamos falar sobre determinados assuntos. O mesmo ocorre em relação a qualquer documento histórico. Quem registra os fatos conta a sua versão, o seu ponto de vista. Assim, o fato não é uma verdade absoluta. Cabe ao historiador conhecer o contexto em que um documento foi produzido e quais os interesses que estavam por trás dele. Se utilizarmos como fonte um jornal, fica bastante claro que este veículo de comunicação representa um ponto de vista, defende determinado partido ou certas ideias, outro jornal poderá noticiar o mesmo fato de outra forma. Em qual deles repousa a verdade? Ambos constroem uma versão do acontecido. A tarefa do historiador neste caso não é encontrar a verdade, mas explicar as razões por trás do posicionamento destes dois jornais. O que é História? Os fatos não chegam puros, intocados até nós. Então, como definir o que é História? As respostas são muitas. Segundo Benedetto Croce (1866-1952), historiador italiano, toda história é contemporânea porque representa a visão do presente e os problemas do presente usados para interpretar o passado. Por exemplo, no século XIX não existia movimento feminista, logo, ao estudar o passado os historiadores não pensavam no papel da mulher, mas no século seguinte quando o movimento ganha força política e as mulheres começam a conquistar sua independência, a história passa a se interessar pela mulher no Egito, em Roma, na Idade Média etc. Questões do presente nos fazem olhar para o passado com outros olhos, com outras interrogações. Benedetto Croce, autor de Materialismo Histórico e Economia Marxista. Fonte: http://educacao.uol.com.br Tema II | História: construção, fato e utilidade 57 A História seria somente interpretação? Os fatos seriam apenas uma criação? Na visão de Benedetto Croce somos tentados a acatar esta conclusão. O historiador Collingwood (apud CARR, 1996, p.59) define a História de outra forma. Para ele, a História consiste na interação entre o passado e o pensamento do historiador sobre ele. Assim, a interpretação histórica é fundamental, mas possui limites porque atua sobre o que foi registrado nas fontes. É por este motivo que a História não é uma ficção. Suas ideias sobre a História podem ser resumidas da seguinte forma: há seleção e interpretação; escrever a história é a única maneira de fazê-la; os fatos não chegam até nós puros, eles refletem o pensamento do registrador; o papel do historiador é compreender a mente das pessoas estudadas, isso não significa que se deve ter simpatia ou antipatia pelo passado; o passado é visto com os olhos do presente. Collingwood também disserta a respeito da função do historiador. Este profissional deve dominar e entender o passado para compreender o presente. Só temos competência para explicar o presente se compreendermos o passado. A relação do historiador com os fatos é de igualdade e reciprocidade, ambos se influenciam. Ou seja, há a interpretação dos fatos, mas estes também influenciam o pensamento do historiador. Em outras palavras, o historiador é um mediador entre o diálogo do presente com o passado. 58 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar O PROCESSO DE SELEÇÃO DOS FATOS Darei um exemplo do que estou tentando dizer citando algo que conheço bem. Quando Gustav Stresemann, ministro do Exterior da República de Weimar, morreu em 1929, deixou atrás de si uma enorme massa - 300 caixas cheias - de papéis oficiais, semi-oficiais e particulares, quase todos relacionados com os seis anos de seu mandato como ministro do Exterior. Seus amigos e parentes naturalmente pensaram em fazer uma obra monumental em homenagem a um homem tão ilustre. Seu dedicado secretário Bernhard pôs-se a trabalhar, em três anos foram publicados três volumes maciços, com cerca de 600 páginas cada, de documentos selecionados daquelas 300 caixas, com o título pomposo de Stresemanns Vermiichtnis. Normalmente os documentos se teriam desfeito em pó em algum porão ou sótão e desaparecido para sempre; ou talvez em cem anos ou mais algum literato curioso tê-los-ia encontrado e se disposto a compará-los com o texto de Bernhard. O que aconteceu foi ainda mais dramático. Em 1945, os documentos caíram nas mãos dos governos inglês e americano, que os fotografaram e colocaram as cópias fotostáticas à disposição dos estudiosos no Public Record Office em Londres e nos Arquivos Nacionais de Washington, de maneira que, se tivermos paciência e curiosidade suficientes, podemos descobrir exatamente o que Bernhard fez. O que ele fez não foi muito comum nem muito chotante. Quando Stresemann morreu, sua política ocidental parecia ter sido coroada por uma série de sucessos brilhantes - Locarno, a admissão da Alemanha na Liga das Nações, os planos Dawes e Young e os empréstimos americanos, a retirada dos exércitos de ocupação aliados das W HUUDVGR 5HQR ,VW R SDUHFLDDSDUW HLPSRUW DQW HHFRP SHQVDGRUD da política externa de Stresemann; não era estranho que tivesse Tema II | História: construção, fato e utilidade 59 sido super-representada na seleção de documentos de Bernhard A política oriental de Stresemann, por outro lado, suas relações com a União Soviética, não foi particularmente bem sucedida; além disso, uma vez que massas de documentos sobre negociações que apenas produziram resultados triviais não eram muito interessantes e nada acrescentavam à reputação de Stresemann, o processo de seleção podia ser mais rigoroso. Stresemann, na verdade, dedicou uma atenção muito mais constante e ansiosa às relações com a União Soviética, e elas desempenharam um papel muito maior na sua política externa como um todo, do que o leitor da seleção de Bernhard suporia. Mas os volumes de Bernhard ganham em comparação, imagino eu, com muitas coleções de documentos publicadas em que o historiador comum se fia implicitamente. Este não é o fim da minha história. Logo depois da publicação dos volumes de Bernhard, Hitler subiu ao poder. O nome de Stresemann ficou esquecido na Alemanha e os volumes saíram de circulação: muitos dos exemplares, talvez a maioria, devem ter sido destruídos. Hoje, Stresemanns Vermãchtnis é um livro raro. Mas a reputação de Stresemann no Ocidente permaneceu elevada. Em 1935 um editor inglês publicou uma tradução resumida do trabalho de Bernhard - uma seleção da seleção de Bernhard; talvez um terço do original tenha sido omitido. Sutton, tradutor de alemão bastante conhecido, fez seu trabalho muito bem e com competência. A versão inglesa, explicou ele no prefácio, era “ligeiramente condensada, mas apenas pela omissão de uma certa quantidade daquilo que, sentia-se, era assunto mais efêmero... de pequeno interesse para leitores ou estudantes ingleses” . Mais uma vez é natural. Mas o resultado é que a política oriental de Stresemann, já sub-representada em Bernhard, retira-se ainda mais do panorama, e a União Soviética, aparece nos volumes de Sutton meramente como uma intrusa ocasional e muito mal recebida na política externa 60 Introdução ao Estudo Histórico predominantemente ocidental de Stresemann. Ainda assim é a opinião geral, salvo para alguns especialistas, que Sutton e não Bernhard - e ainda menos os próprios documentos - representa para o mundo ocidental a voz autêntica de Stresemann. (...) Quero, porém, levar a história mais além. Deixemos de lado Bernhard e Sutton e reconheçamos que podemos, se quisermos, consultar os documentos autênticos de alguém que teve um papel importante na história européia recente. O que nos dizem estes documentos? Entre outras coisas, contêm registros de algumas centenas das conversas de Stresemann com o embaixador soviético em Berlim e de uma vintena ou mais com Chicherin. Estes registros têm uma característica em comum. Eles descrevem Stresemann como tendo a parte do leão nas conversas, e revelam seus argumentos como invariavelmente bem colocados e convincentes, enquanto os de seu interlocutor são na maioria estreitos, confusos e não muito convincentes. Esta é uma característica familiar de todos os registros de conversações diplomáticas. Os documentos não nos contam o que aconteceu, mas somente o que Stresemann pensou que aconteceu, ou o que ele queria que outros pensassem, ou tal vez o que ele próprio queria pensar que tivesse acontecido. Não foi Sutton nem Bernhard, mas o próprio Stresemann, quem começou o processo de seleção. Se nós tivéssemos, digamos, os registros de Chicherin destas mesmas conversas, assim mesmo apreenderíamos delas o que Chicherin pensou, e o que realmente aconteceu ainda teria de ser reconstruído na mente do historiador. Naturalmente, os fatos e os documentos são essenciais ao historiador. Mas que não se tomem fetiches. Eles por si mesmos não constituem a história; não fornecem em si mesmos respostas pronta a esta exaustiva pergunta: “Que é história?” Fonte: CARR, E. H. O que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.52-55. Tema II | História: construção, fato e utilidade 61 Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Como é que o historiador lida com os fatos históricos e qual poder tem sobre eles? • Como Collingwood explica a função do historiador? • Quem seleciona as informações constantes nos documentos? 2.3 UTILIDADE DO PASSADO A consciência da existência do pas9 Conheça melhor o assado é algo comum a todas as sociesunto lendo: HOBSBAWN, dades, em todos os tempos. Diz HobsE. Sobre a história. São bawn (2001, p. 22), “o passado é uma Paulo: Companhia das dimensão permanente da consciência Letras, 2001. pp. 22-35. humana”. Diante desta constatação, discutiremos quais são os usos que as sociedades fazem deste passado9. Passado: padrão para o presente São múltiplos os usos que se fazem do passado. Nesse texto frisaremos aqueles lembrados pelo historiador Eric Hobsbawn, representante da historiografia inglesa. Uma das formas de lidar com o passado é tê-lo como padrão para o presente. Neste sentido, cada geração reproduz ou pretende imitar a sua predecessora e sente-se em falta com ela se fracassa nesse intento. Esta utilização do passado parece ser mais ideal do que real, 62 Introdução ao Estudo Histórico porque deve existir espaço para a inovação, a transformação social. Cabe lembrar que, o passado é uma seleção particular daquilo que é lembrado, logo, não são todos os traços do passado que são lembrados e reproduzidos. No processo de rememoração, diante do esquecimento, há espaço para a mudança. O uso do passado como padrão é típico das sociedades tradicionais. Não podemos afirmar que esses povos foram sempre avessos a inovações, mas que em alguns aspectos ocorre a sua aceitação. Onde detectar estes pontos flexíveis e inflexíveis em relação às mudanças? A tecnologia seria uma área mais aberta às mudanças. Em relação aos costumes, moralidade, religião, os grupos tendem a serem conservadores. A História dá exemplos de povos tradicionais aceitando inovações, como o uso de uma ferramenta de ferro em substituição a uma de pedra. O passado formalizado, fechado, serve de apelação para as disputas do presente. É o caso de indígenas e afro-descendentes no Brasil de hoje, que usam a memória para reivindicar as terras comunais que séculos atrás pertenciam aos seus antepassados. Algumas sociedades indígenas tinham o passado como padrão para o presente. Dança dos índios tapuias, óleo sobre tela de ALbert Eckout, 1641. Fonte: http://www2.uol.com.br Tratando das brechas para a ocorrência da inovação, esta pode acontecer de forma consciente. Sociedades tradicionais podem admitir mudanças sociais drásticas, enquanto cumprimento de uma profecia, por exemplo. Existe um ritmo lento nas mudanças históricas, por isso elas não aparentam Tema II | História: construção, fato e utilidade 63 acontecer, mas a visão de que entre os povos tradicionais existe uma espécie de “estatismo”, ou seja, imobilismo é um mito. A visão de passado como padrão para o presente é incompatível com o progresso contínuo. Passado: modelo para o presente Para outras sociedades o passado se presta como modelo para ser reabilitado no presente. O passado serve de modelo para o presente após a transformação da sociedade para além de certo ponto. Por razões múltiplas busca-se restabelecer os velhos tempos, uma espécie de retorno a uma época supostamente mais feliz. Foi o que ocorreu no México quando se tentou restaurar o modo de vida camponês de algumas décadas atrás. Tal tentativa mexeu com a ordem vigente, ferindo interesses dos novos grupos sociais e resultou na Revolução Mexicana de 1917. Ou seja, a tentativa de restaurar o passado mexicano resultou em algo novo sem precedentes históricos. A Revolução Mexicana de 1917 tinha o passado como modelo. Pancho Villa e Emiliano Zapata (centro) mobilizaram um levante camponês no México. Fonte: http://www.brasilescola.com 64 Introdução ao Estudo Histórico O que se deseja é um retorno ao passado após um intervalo de tempo. Parece uma tarefa fadada ao fracasso, porque é possível restaurar plenamente um edifício em ruínas, após identificar os detalhes de sua construção, mas em uma sociedade não se tem clareza do que restaurar. O que restaurar? Uma antiga lei, os valores morais, a religião? O que se deseja restaurar é muito vasto e vago. Recriar o passado remoto pode redundar numa fabricação, ou seja, numa invenção do passado. Os historiadores do século XIX, no afã de construir uma história para alimentar os movimentos nacionalistas, acabaram, em muitos casos, fabricando versões do passado das novas nações emergentes. Também pode ocorrer que inovações apareçam disfarçadas de restauração de um passado histórico, é o que acontece com o Estado de Israel, onde aspectos do passado existem como ideal ou como fabricação e não como experiência histórica real. Progresso: rejeição do passado Outro uso que se pode fazer do passado é a sua rejeição, a sua negação, o desejo de superá-lo. O mundo capitalista, de certa forma, apregoa um rompimento com o passado ao defender a ideia de progresso contínuo. Essa visão é perceptível principalmente no aspecto tecnológico, no qual todos almejam acompanhar as novidades. A mudança constante significa destruir ou superar o velho. Este desejo vem acompanhado da ideia de que aquilo que é novo, que é revolucionário é melhor, por isso são desejáveis. Porém, mesmo neste caso, o rompimento como o passado não é total. Há também setores inflexíveis onde há resistência à mudança. A inovação ocorre na ciência e na tecnologia, mas há resistência quando se trata de mudança social e política. Invenções Tema II | História: construção, fato e utilidade 65 utilitárias como a bicicleta, o rádio, são bem aceitas, não se tem notícia de ninguém que tenha lutado contra elas. Por outro lado, o desenvolvimento técnico no capitalismo não provocou mudanças políticas e sociais com tanta rapidez, pelo contrário, foram violentamente combatidas. Também o pensamento socialista tendeu ao rompimento com o passado, visando construção de um futuro diferente. Almejava-se acabar com a velha sociedade burguesa e implantar o modo de vida comunista. Mas essa aparente revolução escondia um precedente remoto, o comunismo primitivo. No ideário socialista falava-se em romper com o passado e construir uma sociedade nova. Revolução Russa. Fonte: http://api.ning.com 66 Introdução ao Estudo Histórico No modelo formulado por Karl Marx, o “comunismo primitivo” teria existido nos primórdios da humanidade, quando todos possuíam as mesmas condições de acesso aos meios de sobrevivência. Na ótica socialista, romper com o passado é buscar uma sociedade boa, um sistema político desejável. Mas, o fato de usar o comunismo primitivo como modelo significa que o passado é tido como um repositório de precedentes. Resumindo: o passado pode servir de padrão e modelo para o presente e pode ser rejeitado pelo presente também. As três análises acima não esgotam os usos sociais do passado, existem outras perspectivas descritas por Eric Hobsbawn como a genealogia e a cronologia. Confira o texto complementar. Texto Complementar OUTRAS FUNÇÕES DO PASSADO Genealogia “O sentido do passado como uma continuidade coletiva de experiência mantém-se surpreendentemente importante, mesmo para aqueles mais concentrados na inovação e na crença de que novidade é igual à melhoria: como testemunha a inclusão universal da “história” no programa de todos os sistemas educacionais modernos, ou a busca de ancestrais (Espártaco, More, Winstanley) pelos revolucionários modernos cuja teoria, se são marxistas, supõe sua irrelevância. O que exatamente os marxistas modernos ganharam ou ganham com o conhecimento de que havia rebeliões de escravos na Roma Antiga – que, mesmo supondo-se que tivessem metas comunistas, estavam, segundo a própria análise desses marxistas, fadadas ao fracasso ou a produzir resultados que trariam escasso suporte às aspirações dos comunistas modernos? É evidente que a sensação de pertencer a uma tradição antiqüíssima de rebelião fornece satisfação emocional, mas como e por quê? Será ela análoga à sensação de Tema II | História: construção, fato e utilidade 67 continuidade impregnada nos currículos de história e que aparentemente torna desejável que os estudantes aprendam sobre a existência de Boadicéia ou Vercingetórix, rei Alfredo ou Joana d´Arc como parte daquele corpo de informações que (por razões supostamente válidas mas raramente investigadas) “devam saber a respeito” como ingleses ou franceses? A atração do passado como continuidade e tradição, como “nossos antepassados”, é forte. Mesmo o padrão do turismo presta testemunho disso. Nossa simpatia espontânea pelo sentimento não deve, porem, nos levar a negligenciar a dificuldade de descobrir por que isso deve ser assim”. (...) Cronologia “Finalmente, consideremos o problema da cronologia, que nos leva ao extremo oposto da possibilidade de generalização, uma vez que é difícil pensar em alguma sociedade conhecida que, para determinados objetivos, não ache conveniente registrar a duração do tempo e a sucessão dos eventos. Claro que existe, como observou Moses Finley, uma diferença fundamental entre um passado cronológico e um passado não cronológico: entre o Ulisses de Homero e o de Samuel Butler, que é concebido de modo natural e nada homérico como um homem de meia-idade voltando para uma esposa idosa depois de vinte anos de ausência. Certamente a cronologia é essencial ao sentido histórico moderno do passado, já que a história é mudança direcional. O anacronismo é uma campainha de alarme imediato para o historiador, e seu valor de choque emocional em uma sociedade totalmente cronológica é tal que se presta à fácil exploração nas artes: Macbeth em roupagem moderna hoje se vale disso de uma maneira que um Macbeth jacobino obviamente não conseguia”. Fonte: HOBSBAWN, E. Sobre a história. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 32-34. 68 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Sobre o uso que o presente faz do passado, explique quando é que ele é padrão ou modelo. • O que você entendeu sobe a ideia de “rejeição do passado”? • O que você compreendeu sobre o uso do passado como genealogia? 2.4 FUNÇÃO DA HISTÓRIA Não há antagonismo entre a ideia de que a história serve para proporcionar prazer e a de que a sua função é fazer uma reflexão crítica sobre a nossa realidade. Fazer e ensinar História deve sim ser um prazer, mas que divertimento é este? Para aprofundar o entendimento do tema leia: SILVA, M. A. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.11-38. Qualquer ramo do conhecimento tem uma função. Pesquisar e ensinar História proporciona deleite, este prazer é algo que deve ser compartilhado por todos, aqueles que produzem e aqueles que usufruem o conhecimento histórico. Esta noção da função da História como distração, diversão e sedução, pertence ao historiador Marc Bloch. Opondo-se a Bloch, Jean Chesneaux (1995, p. 94) diz que a História não pode ser neutra social nem politicamente. O historiador deve tomar partido. Como historiador marxista, Chesneaux tomaria o partido dos “oprimidos”. Tema II | História: construção, fato e utilidade 69 Aparentemente, os dois autores defendem posturas dicotômicas, prazer versus luta política. Analisando melhor, percebemos que o prazer da história também comporta a crítica e a autocompreensão dos homens. A ideia de luta da mesma forma inclui o desejo de tornar o mundo mais belo e feliz. Logo, essas duas legitimidades da história não são opostas. A ressalva que se pode fazer a Marc Bloch é quanto ao prazer autocentrado em pessoas e corporações, os que produzem o conhecimento. Logo, se o prazer da História for compartilhado por todos, o problema está resolvido. Vejamos a opinião de Marcos Antonio Silva (1995, p. 12) sobre este assunto: Quando se fala em história como distração, diversão, sedução e prazer, não se está, necessariamente, renunciando à sua carga crítica, à capacidade que possui de aprofundar a (auto) compreensão dos homens: diferentes artes também produzem aquelas experiências (pintura, poesia, cinema, teatro etc.) e, simultaneamente, participam, quando o querem, de radicais desmontagens de poderes – governos, valores, grupos. Os lugares da história Como ocorre esta diversão? Depende de como temos acesso ao passado. Se for através dos bancos escolares sentiremos um pouco de tédio, mas se a forma de acessar a História se der através do romance histórico, da pintura histórica, do cinema, das revistas em quadrinhos, da televisão etc. certamente teremos mais alegria. Mais uma vez estamos vendo que, o acesso ao passado se dá também por meio das artes. A História não é apenas um conhecimento científico preciso, ela pode e deve aliar também a beleza da produção artística. Como arte, a História fica mais sedutora. Ao apreciarmos uma pintura histórica somos levados também a refletir sobre o contexto retratado, então, a arte não só diverte como permite a reflexão, a crítica. 70 Introdução ao Estudo Histórico Através da pintura histórica podemos aprender, ter prazer e refletir. Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo (1843-1905). Fonte: http://www.unicamp.br A democratização do prazer da História tem a ver com o acesso aos lugares de História como as escolas, os museus, os arquivos, as bibliotecas, os monumentos públicos etc. É importante que cada vez mais as pessoas tenham acesso a tais espaços, ambientes de interação entre os profissionais e o público. Quando o grande público tem acesso aos lugares da História, esta deixa de ser um néctar de poucos deuses. Se antes só os historiadores podiam apreciar o passado, hoje cada vez mais, mais pessoas o acessam. Produção do saber na escola Para ser um ambiente prazeroso, a escola não deve ser apenas um lugar de reprodução do conhecimento histórico, mas também de produção. Ela permite outros convívios com o passado. O estudante deve experimentar ser ativo e não só passivo na produção do conhecimento. Um bom exercício é a pesquisa sobre o seu cotidiano. Não aquela pesquisa que se contenta com a transcrição literal dos conteúdos, mas a pesquisa que envolve o pensamento autônomo e criativo. É uma forma de possibilitar o prazer da História a outros atores. Ensinar e aprender História como algo prazeroso tem relação direta com os recursos existentes nas escolas. A pesquisa no ambiente escolar exige algumas condições relacionadas por Marcos Antonio Silva (1991, p. 19), são elas: “livros, instrumentos para reprodução de textos, imagens e sons, Tema II | História: construção, fato e utilidade 71 tempo para reflexão, preparo de atividades e correções de trabalhos”. No Brasil, há diversas revistas de história que mostram os exemplos práticos de pesquisas feitas nas escolas. Tais experiências além de significaram o acesso ao prazer da história, permitem que professores e alunos “permaneçam no anonimato de seu cotidiano sem perderem a capacidade de um pensamento autônomo e criativo” (SILVA, 1995, p. 20). Esta discussão sobre o prazer da história enquanto um direito de historiadores, professores e alunos, traz outras ideias como: fazer com que o acesso à pesquisa histórica não se restrinja aos autores das teses e suas bancas examinadoras; inventar práticas e condições para que a escola se torne um espaço criativo; A história imediata Durante muito tempo os historiadores evitaram refletir sobre o imediato, acreditando ser perigoso analisar o presente devido à suposta falta de reflexão, a proximidade do vivido etc. Dizia-se, o imediato é tema para jornalistas, sociólogos, filósofos e militares, mas não para historiadores. O imediato é aquilo que o historiador vive e testemunha, é o presente. No ensino é possível refletir sobre o presente. É preciso considerar a História como algo em produção, admitir a diversidade na elaboração do passado. Assim, refletir sobre o imediato equivale a criticar imagens cristalizadas de diferentes tempos e questionar o passado. Toda história é imediata porque temas passados sobrevivem até o presente. A relação de mão dupla, passado versus presente, torna a história imediata. Refletir sobre tais questões permite uma melhor apreensão do passado. 72 Introdução ao Estudo Histórico A divisão da história 10 Querendo se inteirar Anteriormente, discutimos a funmais a respeito do tema ção da história de promover o prazer leia: CHESNEAUX, J. e de servir para a luta política. AgoDevemos fazer tábula rasa ra discutiremos a função da divisão do passado? São Paulo: da história em quatro épocas. TomaÁtica, 1995. pp.92-106. remos como base o historiador Jean Chesneaux10, para quem a finalidade desse compartimento tem várias funções, uma delas é colocar a Europa como o centro do mundo civilizado. Na visão de Jean Chesneaux (apud Silva, 1995, p. 11), a divisão da História Geral em períodos é um modelo francês seguido por outras nações para organizar a sua história de forma similar. Na França a repartição da história se dá com as idades: Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Essa divisão é chamada de quadripartismo histórico. No modelo, apenas a História Contemporânea ultrapassa os limites da Europa, para salientar a conquista do mundo pelos europeus. Desta forma, temos a impressão de que somente a Europa tem história, o resto do mundo vive uma espécie de barbárie, sem história e sem realizações. Somente com a europeização do mundo é que eles absorvem a civilização. Há países em que a elaboração do passado segue esquemas diferentes. Na França, tal subdivisão serve como aparelho ideológico de Estado, ou seja, atende aos interesses da França diante de outras nações e dos grupos dominantes internamente. Jean Chesneaux (apud Silva, 1995, p. 15) defende que essa subdivisão esconde interesses, aos quais ele chama de funções. São elas: pedagógica, serve de modelo para o ensino e para as publicações didáticas; institucional, são formados especialistas em determinadas áreas, por exemplo, mestres em História Antiga e Medieval, estes adquirem poder e angariam assistentes, Tema II | História: construção, fato e utilidade 73 créditos, é uma forma de favorecer o corporativismo; intelectual, as subespecializações só são legítimas e respeitáveis no quadripartismo, configurando-se como o monopólio dos temas de estudo por algumas figuras da intelectualidade. A outra função é a ideológica. Por trás dela fica implícita a atitude de mostrar a suposta superioridade cultural do Ocidente (Europa) diante do mundo. Internamente, busca enraizar valores essenciais para a burguesia como o conhecimento da língua grega e latina; destacar valores da Idade Média cristã: família, monarquia, cavalaria, as bases morais da classe dominante, que legitimariam a sua posição. Em resumo, o quadripartismo coloca a Europa como herdeira da civilização clássica grega e romana. A ideia de superioridade da Europa foi a responsável pela colonização e pelo neocolonialismo de várias partes do mundo. Fonte: http://blog.educacional.com.br O autor não poupa crítica à Nova História. Em sua opinião estudar as mentalidades, as técnicas e outros temas da Nova História serve para desviar a atenção das lutas políticas, das crises, que seriam o motor da história na sua visão marxista. Em suma, visa extirpar da história sua dimensão política. Ele denuncia que a Idade Contemporânea tem a função essencial de afirmar a aptidão do Ocidente para dominar o mundo, como ocorreu durante a colonização do Novo Mundo e o Imperialismo na África. O “quadripartismo” recorta em partes arbitrárias certas zonas históricas homogêneas, como se a passagem de um período para outro ocorresse de súbito. Dificulta estudos específicos sobre a 74 Introdução ao Estudo Histórico comunidade rústica, a guerra não-convencional, os marginais. Isso porque sua abordagem da história é superficial. A divisão da história feita pelo marxismo não mudou muito, apenas fez a substituição dos termos, ao invés de Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea, temos modo de produção Escravo, Feudal e Capitalismo Ascendente e Desenvolvido. O ataque ao quadripartismo é pertinente porque mostra a arbitrariedade da construção dos períodos históricos. Eles não são dados naturalmente, mas criados artificialmente. Para o ensino possuem uma função importante, facilitar a compreensão da profundidade histórica. Por outro lado, este recorte possui deficiências, coloca certas regiões fora da história porque enquanto a Europa ingressa na história, regiões da África, das Américas e da Ásia vivem na pré-história. O quadripartismo não deixa claro que as sociedades se transformam em tempos históricos diferenciados e que as experiências históricas de cada região são peculiares. As críticas à divisão artificial do tempo histórico são bem aceitas pela maioria dos historiadores. Mas, Marcos Antonio Silva (apud Chesneaux, 1995, p. 5) relaciona algumas opiniões de autores sobre o quadripartismo, por exemplo: Jaques Le Goff comenta que a visão de Chesneaux tem “esforço teórico”, mas é “desequilibrada pela renúncia ao ofício do historiador”; para Nizza da Silva, é um exemplo dos “marxistas revolucionários” que se opõem à interdisciplinaridade; Carlos Vesentini diz que é uma rejeição das sequências mecânicas de períodos históricos, inclusive como “modos de produção”. Tema II | História: construção, fato e utilidade 75 Texto Complementar O DISCURSO SOBRE A HISTÓRIA UNIVERSAL O principal propósito desse discurso sobre a história universal é apresentar um quadro coerente da sucessão dos grandes períodos da história do mundo, de acordo com uma análise logicamente ordenada e de maneira que esse quadro tenha por desfecho a sociedade a que pertence seu autor. Colocado numa situação privilegiada, ele a apresenta como um ponto culminante de toda a história do mundo; ela é, assim, magnificada, legitimada no Tempo. Tal é o percurso de Bossuet, reduzindo todo o decorrer dos séculos passados a um lento encaminhamento em direção à sociedade monárquica do Rei Cristianíssimo Luís XIV. Tal é o percurso, inverso na forma, idêntico no conteúdo, de Voltaire escrevendo o Ensaio sobre os costumes para exaltar a ascensão progressiva da “Idade das Luzes” (século XVIII) – essa idade que, no entanto, era apenas um frágil compromisso cultural entre as aspirações da burguesia ascendente e a inércia política do Antigo Regime. O percurso de Toynbee é o mesmo: em sua grande série Um estudo de história, ele esboça uma tipologia e uma ordenação das dezenove grandes “civilizações” que a história mundial conheceu; o ponto culminante ali é, naturalmente, o capitalismo liberal do Ocidente. O empreendimento coletivo da Unesco, edificando logo após a Segunda Guerra Mundial uma História do desenvolvimento cultural e científico da humanidade em seis grandes volumes, teve por desfecho enaltecer um culturalismo apolítico e cosmopolita como saída para as crises de nosso tempo: as responsabilidades históricas dos sistemas econômicos de poder, notadamente a guerra, a repressão política e, mais particularmente ainda, a responsabilidade da Alemanha nazista nesses domínios são indiretamente rechaçadas para o último plano, são apresentadas como secundárias. Fonte: CHESNEAUX, J. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995. pp.100-101. 76 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Para que serve a História? • Além dos livros, quais são os outros meios que nos permitem usufruir o conhecimento histórico? • Como pode ser democratizado o prazer da história? • Qual a função ideológica do quadripartismo histórico? • Que crítica Jean Chesneaux faz à Nova História? • Por que é pertinente questionar a divisão do tempo denominada de “quadripartismo histórico”? RESUMO DO TEMA II Dentro deste tema foi discutido que a história é feita a partir dos fragmentos de várias memórias, por isso, ela é uma construção sempre passível de novas interpretações. A noção de fato histórico também mostra que a produção do conhecimento histórico se dá a partir de escolhas, silenciamentos e generalizações. O próprio registro usado pelo historiador já passa por uma pré-seleção. O passado investigado pelo presente pode ter vários usos, dependendo da época e da sociedade. Pode servir de padrão, de modelo ou ser rejeitado. O passado ou a reflexão sobre ele tem várias utilidades, destacamos uma que remete à arte, ao gosto de apreciar o passado e os seus elementos; outra que se refere à utilização da história para a transformação política da sociedade; por fim, uma função dita ideológica, ou seja, a história pode ser usada para justiçar a dominação de povos, de etnias, de classes sociais. A PRODUÇÃO E A DIVULGAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO Parte II 3 História: método científico e teorias Neste tema estudaremos a grande valorização que teve a história no século XIX, por isso, foi chamado de: o século da história. A criação de um método de investigação, cuja pretensão era transformar a história em uma ciência similar às ciências naturais; a concepção marxista de história que pretendeu ser uma história ciência e tomou como objeto de estudo as estruturas econômico-sociais; a história dos Annales ou história nova, que trouxe como novidades ao fazer histórico nova concepção de fontes, de objetos de estudo e praticou a interdisciplinaridade com diversas ciências, principalmente a sociologia, a economia e a antropologia. 11 3.1 SÉCULO DA HISTÓRIA Para aprofundar a compreensão do tema leia CARBONELL, C. O. Em outros momentos já estudamos como o conhecimento histórico evoluiu. No século XIX11, a História ganhou o estatuto de ciência, passou a ser ensinada “O século da história”. IN: Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987. p.115-140. 80 Introdução ao Estudo Histórico nas universidades, teve aprimorado e divulgado um método de investigação próprio. Foram transformações fundamentais para o aprimoramento da disciplina. Como ocorreram estas transformações e por quê? Dois argumentos comprovam 12 François Pierre Guillau- ser o século XIX o século da História. me Guizot (1787-1874) foi O primeiro, ela cai no gosto popular, as um político francês. Ocu- pessoas passam a ler e lhe dispensar pou o cargo de primeiro- interesse. O segundo, ela passa a ser ministro da França entre feita por grandes escritores. Também 1847 e 1848. começou a surgir a noção da vastidão do fazer histórico, a noção de histórias, daí Guizot12 afirmava que havia cem maneiras de escrever a história. Várias tendências históricas coexistiram na época. Uma das que influenciou a História foi o romantismo. Com a historiografia romântica nota-se uma paixão pelo passado através dos romances e dos dramas tomando contornos históricos. Também o teatro, o romance e a poesia sofreram essa influência. Na época, o passado passou a alimentar as paixões políticas, tanto da elite como dos revolucionários. Os primeiros buscavam conservar os monumentos antigos e restaurar a velha ordem que lhes dava prestígio. Os revolucionários procuravam enfatizar as memórias das minorias como camponeses, operários. Estes exemplos demonstram como o passado foi valorizado. Outras características da historiografia romântica são: uma curiosidade maior pela Idade Média, surgindo estudos sobre a vida cavalheiresca, as Cruzadas, a Inglaterra dos Saxões e dos Normandos, as comunas italianas, os árabes; a posse de um método mais poético do que erudito, o qual dava espaço para a intuição e a imaginação, diferentemente da corrente positivista. Essa intuição pode ser vista nas palavras de Michelet: “no Tema III | História: método científico e teorias 81 silêncio aparente daquelas galerias, um movimento, um murmúrio que não era da morte. Aqueles papeis não são papeis mas vidas de homens, de províncias, de povos...” (CARBONELL, 1987, p.119). Imagem de uma Cruzada Medieval, um dos temas da historiografia romântica. Fonte: http://www.repensando.com Na época, a Escola Histórica Alemã ou positivista se notabilizou, mas coexistiram várias maneiras de escrever a história: a clássica e filosófica, a erudita e documental, a historiografia das academias instruídas (monográfica e discursiva), a pitoresca e anedótica destinadas às livrarias, a historiografia didática e a vulgarização histórica. As novidades do século Duas outras novidades apareceram neste século e influenciaram a História: o filosofismo e o cientificismo. O filosofismo, também conhecido como Filosofia da História, propunha a explicação de um vasto problema por intermédio do raciocínio lógico. Surgiu uma obra histórica do gênero que explicava a origem de Roma graças à frugalidade da vida dos primeiros romanos e 82 Introdução ao Estudo Histórico a sua decadência era devida à devassidão dos últimos imperadores. O surgimento da França era explicado a partir das lutas de raças, gauleses contra francos. Ou seja, no filosofismo explica-se um vasto problema a partir da explicação racional. Dentro da tendência cientificista, cabem tanto o Marxismo quanto o Positivismo. Consistia na explicação da causa e profundidade da História. Ambas falam no sentido, no caminho e no objetivo da História. Ou seja, o Marxismo e o Positivismo trabalham com toda a História, da Pré-história à época moderna. Entre os marxistas o motor ou a causa da História é a luta de classes. O cientificismo defende que toda reflexão deve nutrir-se do passado e considera ter inaugurado a história científica. A história erudita Tal valorização do passado fez Charles Carbonell cunhar a frase “Clio ceifa e enceleira”. Ou seja, a consequência de tudo isso foi a preocupação com a preservação dos documentos escritos, desta preocupação prosseguiu e ampliou-se a busca de documentos. Os registros do passado, na época entendidos apenas como os textos escritos, privilegiados por permitir a suposta neutralidade do investigador, passaram a ser salvos da destruição, através do depósito nos arquivos e museus. Surgiu a partir daí a ideia de que a História é feita com documentos e que é preciso preservá-los em locais adequados, os templos de Clio, a musa protetora da história. Antes do século XIX, história e erudição caminhavam separadas. O desenvolvimento desta foi singular para a história. Os eruditos faziam a compilação e publicação de documentos e a preservação dos objetos chamados de antiguidades, todos provenientes da Antiguidade Clássica e de outros períodos históricos da Europa. Cabia à História estudar estas fontes. Quando história e erudição se aproximam, a primeira ganha com a vastidão de fontes e com a apropriação do método da crítica documental. Tema III | História: método científico e teorias 83 Na época, a Alemanha foi pioneira na Europa implantando o ensino de história nas universidades e criando as academias dedicadas a pesquisa. A exortação do governante alemão Frederico II era a de que “A academia não existe para inglês ver”. As academias foram responsáveis pelo financiamento de pesquisa no Egito, na Grécia, na Mesopotâmia, etc. Virou moda a publicação de documentos históricos, havendo inclusive a previsão nos orçamentos dos estados de recursos para este fim. Vieram à tona Corpus Inscriptionum Latinarum, o “Corpus dos escritores eclesiásticos”, os “Documentos históricos inéditos” da França, entre outros. Foi uma tentativa de salvaguardar a história através da publicação de documentos. O Brasil também aderiu a este movimento com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e de uma revista de história. Pedra de Roseta, atualmente no Museu Britânico (Londres), achado arqueológico que permitiu a Jean-François Champollion, em 1822, compreender a escrita hieroglífica. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br O grande financiador da história passa a ser o Estado. Ele financia a pesquisa, mantêm os historiadores, pagando seus salários, cria institutos de pesquisa. Esse interesse do Estado advém do fato da história ser responsável pela criação das nacionalidades, ou seja, era vista como o cimento das nações. Estados europeus em vias da unificação política, como a Alemanha, dão grande valor ao conhecimento histórico. Por isso, os historiadores alcançaram prestígio assumindo altos cargos na esfera do poder. O próprio Estado dirigia a investigação através dos institutos, ele se tornava historiador. 84 Introdução ao Estudo Histórico No século XIX, nasceu a história culta ou erudita. O maior representante da História erudita é o alemão Leopoldo von Ranke (1795-1886). Ele associava erudição e escrita, narração e explicação. Frise-se explicação dos fatos e não interpretação. Defendia que a história não devia julgar o passado e nem filosofar, que o uso das fontes primárias dos arquivos servia como prova para os historiadores, que obrigatoriamente se devia fazer a referência das fontes em nota de pé de página. Para Ranke, o objetivo do historiador é conhecer como os fatos aconteceram exatamente. Por isso, se desprezava a interpretação. Outros historiadores eruditos foram: Droysen, Curtius, Mommsen, Von Sybel, Von Treitschke, Lamprecht, tidos como os maiores mestre e modelos. Método da crítica documental Um dos mais importantes acontecimentos para a história foi a divulgação de um método de investigação. O método foi criado pelos eruditos, mas entre os historiadores a sua divulgação deveu-se aos franceses Langlois e Seignobos, através da obra Introdução aos Estudos Históricos. O método consiste em quatro etapas: 1ª. Reunir os documentos, fase chamada de heurística; 2ª. Fazer a crítica documental interna e externa; 3ª. Separar os fatos, ou seja, extrair as informações que serão utilizadas; 4ª. Proceder à construção histórica. A fase da escrita, a última, não poderia conter opiniões nem interpretação, em muitos casos era uma mera transcrição das fontes. A crítica interna e externa preocupava-se em garantir a autenticidade do documento, evitando que os historiadores utilizassem documentos falsos. No século XIX, o predomínio da História Positivista significou a crença na verdade histórica e na possibilidade conhecer toda a história através da reunião dos textos escritos. Não demorou muito para surgirem certas desilusões. Uma delas é que a publicação das fontes até a exaustão era impraticável. As obras Tema III | História: método científico e teorias 85 desse gênero jamais se esgotavam, sempre ficava um documento de fora para ser encontrado. A outra, a crença na verdade histórica, no mito do historiador objetivo, caiu por terra devido ao patrocínio do Estado-nação. Como o historiador resistiria às paixões nacionais? Como ser neutro falando de povos que competem entre si por superioridade? Como escrever sem agradar ao patrão, no caso, o Estado? Texto Complementar AS ILUSÕES DA HISTÓRIA NO SÉCULO XIX A crença na loquacidade das fontes primárias e na existência de factos históricos contidos nos documentos, qual múmia em seu sarcófago, está na origem da boa consciência científica de Fustel de Coulanges e de todos aqueles – e são numerosos – que, como ele, se dizem os melhores discípulos de Clio neste fim de século. Denunciando o subjetivismo teórico ou filosófico dos seus antecessores e eliminando neles tudo o que deles poderia provir privilegiam simultaneamene o documento escrito relativamente a todos os outros vestígios do passado. Só o texto fala “por si mesmo”; responde “claramente” às questões “claras” que lhe põe, numa linguagem “clara”, esse grande leigo ilustrado que é o historiador culto. Por isso convém preferir, entre todos os textos, os que dimanam de verdadeiras instituições: já classificados e depurados, são infinitamente mais próprios e, portanto, mais honradamente loquazes do que os textos de origem particular, essencialmente subjectivos. 86 Introdução ao Estudo Histórico Daí os traços dominantes da historiografia universitária francesa do final do século XIX e princípio do século XX: • publicação de textos em que o discurso do historiador se limita a meia dúzia de páginas de apresentação e a uma profusão de notas de pé de página; • confecção de monografias destinadas a esgotar os documentos relativos a um indivíduo (biografias), a um acontecimento ou a um lugar estritamente delimitado; • monotonia e estreiteza no território percorrido pelos historiadores, que se limita aos domínios das histórias institucional, política, diplomática e militar. Fonte: CARBONELL, C. O. “O século da história”. IN: Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987. p.135-137. Para Refletir Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Por que o século XIX é chamado de o século da história? • A erudição forneceu qual contribuição importante para a história? • Explique o significado do enunciado “Clio ceifa e enceleira”: • Comente as etapas do Método Histórico vulgarizado por Langlois e Seignobos? • Por que as promessas positivistas geraram desilusões para a história? Tema III 3.2 ESCOLA | METÓDICA História: método científico e teorias 87 13 Para conhecer mais o assunto leia: REIS, J. C. “A Muito combatida por suas limitaEscola Metódica dita “posições, a escola histórica Positivista tem tivista”. In: A história entre muitos méritos. Sua defesa intransia filosofia e a ciência. São gente das fontes e a criação de um méPaulo: Ática, 1996. p.11-25. todo de investigação ainda são muito importantes para a História. Todas as inovações na História que ocorreram depois tiveram como base o positivismo. A Escola Metódica ou positivista surgiu na Alemanha no final do século XIX e pretendia dar o estatuto de ciência à História. Ela criticava a filosofia da história por ser especulativa e propunha que a função do historiador era recuperar os eventos por meio da documentação, abrindo mão da interpretação. Recusando a filosofia da história, a Escola Metódica buscava objetividade, defendia que o historiador escapa do condicionamento social, religioso, cultural, ou seja, o produto de sua investigação devia ser neutro em relação às visões de mundo do investigador. A rigor, os positivistas diziam que a História está nos documentos e o que o historiador devia fazer era a narrativa dos fatos, sua descrição sem teorização. Na prática, os textos positivistas se prendiam muito à cópia das fontes com pouca ou nenhuma explicação. Esta concepção de História residia na crença de que era possível atingir a verdade histórica objetiva. A História dita científica buscava a neutralidade, com o historiador evitando expressar a sua opinião e tomar o partido de uma nação, de um grupo. Os fatos narráveis preferidos eram os políticos, administrativos, diplomáticos e religiosos. Em geral, buscava destacar os vultos históricos e seus feitos memoráveis, por isso que o ensino de História consistia em decorar os nomes de homens tidos como importantes e os seus feitos. As pessoas comuns aparecem pouco ou quase nada nos textos históricos. 88 Introdução ao Estudo Histórico O Positivismo falava do palácio, da corte, mas não da vida que corria nas ruas, nos campos, no cotidiano do lar e do trabalho. Grito do Ipiranga - Dom Pedro proclama a independêancia do Brasil - óleo sobre tela de Pedro Américo (l888). Exemplo de fato histórico narrado pelos positivistas. Fonte: http://embaixada-portugal-brasil.blogspot.com A principal contribuição do Positivismo para a História foi o aperfeiçoamento da crítica histórica – a crítica interna e externa dos documentos (consultar os passos deste método no tema VIII). Pois, trata-se de um método de como retirar as informações das fontes. Uma característica importante do Positivismo na historiografia francesa é a sua visão progressiva, linear e evolutiva em direção a uma sociedade moral, igual e fraterna. Uma análise detalhada da historiografia positivista mostra que a neutralidade era apenas um ideal. Na prática, seus historiadores não escapavam de expor os seus pontos de vista. Na França do século XIX, os positivistas defendiam a República, combatiam a Igreja Católica e eram nacionalistas. Tema III | História: método científico e teorias Os positivistas franceses Langlois e Seignobos14, na obra que se tornou um manual, Introdução aos Estudos Históricos, manifestavam as principais preocupações do método histórico: o que é possível e o que importa saber? 89 14 Langlois e Seignobos – principais representantes da escola metódica na França. Autores de “Introdução ao estudo histórico”, um manual da pesquisa histórica. O que é e como tratar os documentos? Que são fatos históricos? Como 15 Leopoldo von Ranke – agrupá-los? historiador alemão do século Fustel de Coulanges é considerado XIX. Procurou dar uma di- o autor da primeira obra científica fran- mensão científica à história. cesa, ou seja, o primeiro historiador a empregar o método positivista. A sua concepção metodológica é a de que a história é ciência pura e não arte, a crença naquilo que é demonstrado através dos documentos, enfim, uma história sem especulação. Ao contrário de Michelet, Fustel quer ver os fatos e não a sua própria ideia deles. Entre os representantes desta visão de História estão o alemão Leopoldo von Ranke15. Ele, assim como os outros positivistas, mantinha-se na superfície dos eventos, sem problematizar e sem interpretar os fatos, não procuravam entender os acontecimentos. O fato histórico era tomado como dado objetivo, não se questionavam as condições em que ele foi registrado, havia uma preocupação apenas em saber se o documento era verdadeiro ou se era uma falsificação. O interesse positivista eram os grandes eventos políticos, desprezavam os aspectos sociais. 90 Introdução ao Estudo Histórico O historiador alemão Leopold von Ranke (1868/1875). Fonte: http://germanhistorydocs.ghi-dc.org Os historiadores positivistas não se interessavam por questões imprescindíveis aos historiadores atuais como: a problematização, a construção de hipóteses, a reabertura do passado e a releitura dos fatos. Pelo contrário, estes procedimentos eram criticados. Acreditava-se na possibilidade de construir uma história definitiva. Em outras palavras, a história definitiva consistia na ideia de que, uma vez publicado um trabalho sobre determinado período, este era a palavra final. Os estudos positivistas se voltavam para o passado. Este culto das épocas mais antigas era a consequência da fuga do presente, que não podia ser estudado pelo historiador para não opinar sobre ele. O presente sendo o contexto em que o historiador vivia, não oferecia a isenção necessária para estudá-lo. Segundo José Carlos Reis (1996, p. 25-26) as realizações destes historiadores foram: uma história voltada para a educação cívica, na qual, os fatos históricos e os grandes homens eram reconstituídos para a educação da juventude, fazendo-se a comemoração dos seus feitos. Produziram a utopia de que os grandes eventos foram realizados por grandes homens, que contribuíram para o desenvolvimento da nação e da democracia. Mesmo que consideremos os limites dessa corrente histórica, como o pouco mérito literário, a falta de interpretação das fontes e a opção pelo estudo da elite dominante, sua importância reside na profissionalização da História, na implantação do ensino universitário e no aperfeiçoamento do método de investigação histórica. Tema III | História: método científico e teorias 91 Texto Complementar CONCLUSÕES SOBRE O MÉTODO POSITIVISTA [...] “A terceira conclusão, que é talvez mais importante para a nossa discussão, é que da mesma maneira que as ciências da natureza são ciências objetivas, neutras, livres de juízos de valor, de ideologias políticas, sociais ou de outras, as ciências sociais devem funcionar exatamente segundo esse modelo de objetividade científica. Isto é, o cientista social deve estudar a sociedade com o mesmo espírito objetivo, neutro, livre de juízo de valor, livre de quaisquer ideologias ou visões de mundo, exatamente da mesma maneira que o físico, o químico, o astrônomo, etc. Esta é talvez a conclusão mais importante para o nosso debate sobre a relação entre ideologia-utopia e conhecimento social. Significa que a concepção positivista é aquela que afirma a necessidade e a possibilidade de uma ciência social completamente desligada de qualquer vínculo com as classes sociais, com as posições políticas, os valores morais, as ideologias, as utopias, as visões de mundo. Todo esse conjunto de elementos ideológicos, em seu sentido amplo, deve ser eliminado da ciência social. O positivismo geralmente designa esse conjunto de valores ou de opções ideológicas como prejuízos, preconceitos ou prenoções. A ideia fundamental do método positivista é de que a ciência só pode ser objetiva e verdadeira na medida em que eliminar totalmente qualquer interferência desses preconceitos ou prenoções”. Fonte: LOWI, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1985, p.36. 92 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar A VISÃO POSITIVISTA DA HISTÓRIA O objetivo dos positivistas parece-nos, pode ser comparado ao da organização de um museu, embora o conceito de museu, talvez, seja mais complexo. No museu, os objetos de valor histórico são resgatados, recuperados e expostos à visitação pública, com uma ficha com seus dados ao lado, e o observador posta-se diante de uma “coisa que fala por si”, definitivamente reconstituído. Assim, também, procederia o historiador metódico: através dos documentos, reconstituiria descritivamente, “tal como se passou”, o fato do passado, que, uma vez reconstituído, se tornaria uma “coisa-aí, que fala por si”. Ao historiador não competiria o trabalho da problematização, da construção de hipóteses, da reabertura do passado e da releitura de seus fatos. Ele reconstituiria o passado minuciosamente, por uma descrição definitiva. Tratados dessa maneira, os fatos históricos se tornariam verdadeiros seres, substâncias, objetos que se pode admirar do exterior, copiar, contemplar, imitar, mas jamais desmontar, remontar, alterar, reinterpretar, rever, problematizar,reabrir. Uma vez “estabelecidos” os fatos passados, a não ser que aparecessem novos documentos que alterassem sua descrição, tornando-se mais “verdadeira”, eles seriam uma “coisa que fala por si”. Claro que este projeto é impraticável plenamente e sustentar que há obras históricas que o realizaram é “caricaturar” a produção histórica “positivista”. Entretanto, tal projeto foi uma “orientação” da pesquisa histórica que, se não o realizou inteiramente, pois impossível, deixou-se conduzir por seus princípios e objetivos. Fonte: REIS, J. C. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996. p.22-23. Tema III | História: método científico e teorias 93 Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Na visão positivista qual é a função do historiador? • Na construção do conhecimento quais procedimentos eram proibidos ao historiador positivista? • O que significa narrar os fatos sem interpretação? Que problema tal procedimento suscita? • Quando é que a ciência se torna objetiva e verdadeira? 3.3 MARXISMO E HISTÓRIA 16 Sobre o tema leia REIS, J. C. “O marxismo”. In: A De início inovadora e revoluciohistória entre a filosofia e nária, a visão marxista da História16 caa ciência. São Paulo: Ática, minhou na terceira e quarta década do 1996. p.40-53. século XX para o dogmatismo e a estagnação das ideias. A despeito deste hiato, o marxismo significou uma renovação e contribuiu muito para a Nova História e até hoje conta com o apoio de importantes intelectuais. O marxismo deve seu nome ao filósofo alemão Karl Marx (1818-1883). Assim como o Positivismo, também recusa a filosofia da história e sua meta de descobrir um sentido para a História. Em contrapartida, se propõe a construir a história científica, ou seja, o estudo do passado a partir de elementos científicos. 94 Introdução ao Estudo Histórico O filósofo Karl Marx. Do seu nome deriva o termo marxismo. Autor dos livros Manifesto do Partido Comunista e de O capital. Fonte: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/antigosmodernos/seculoxix/marx/index.html Quem caracterizou bem o marxismo foi Pierre Villar. Segundo ele, Marx criou a história-ciência. A partir do conceito de materialismo histórico, o passado é tido como analisável, observável, objetivável, quantificável. Para os pensadores dessa linha, a História é cientificamente penetrável como toda outra realidade. Para entender a visão marxista da História, é preciso compreender as seguintes hipóteses: 1. A produtividade é a condição necessária da transformação histórica, isto é, toda vez que há uma mudança técnica a história tem um salto; 2. As classes sociais, em luta, se definiram pela sua situação no processo produtivo como opressor e oprimido. Em outras palavras, o estudo do passado se resume ao estudo das lutas das classes sociais entre si; 3. O objeto da história são as forças produtivas (fonte de energia, matéria-prima, máquina, os conhecimentos e os trabalhadores) e as relações de produção (relações sociais para a produção e divisão dos bens e serviços) em um modo de produção e em uma formação social específica. O objeto de estudo marxista são as estruturas econômicas e sociais. Nesse sentido, é um avanço em comparação à paixão dos positivistas pela política. Uma crítica é necessária quanto à inexistência de um homem universal, cada sociedade influencia seus indivíduos com visões de mundo específicas. Para Marx, o indivíduo é fruto das relações sociais de produção, ou seja, a visão de mundo de um indivíduo é determinada pelo Tema III | História: método científico e teorias 95 modo de produção vigente durante a sua existência. Alguns dos modos de produção definidos por Marx são: Asiático, Escravista ou Antigo, Feudal e Capitalista. A humanidade caminharia para a superação do Capitalismo pelo Comunismo. Enquanto ciência da História o marxismo enfatiza as contradições e os conflitos sociais e não a harmonia, as estruturas da sociedade e não o evento, nem o indivíduo. Novamente percebemos a sua diferença do Positivismo. Nos meados do século XX, a visão dogmática marxista que priorizava o estudo dos modos de produção e o determinismo econômico foi praticamente abandonada, permanecendo, porém, a explicação dos eventos históricos e sociais pelas estruturas econômica e social. Ou seja, persistiu a visão de que as estruturas moldam as ações dos indivíduos. O dogmatismo marxista consistia num conjunto de princípios divulgados por Josef Stálin, ex-governante da União Soviética. Entre os princípios tidos como leis universais estavam: a unicidade e linearidade da lei do desenvolvimento; a ideia da superestrutura (política, leis, etc.) como reflexo da infraestrutura (economia); a irreversibilidade absoluta da história, com o progresso ocorrendo em saltos; a evolução determinada por leis científicas. Em resumo, se critica o dogmatismo marxista devido a sua concepção de determinismo econômico para a análise da realidade e a noção de que todas as sociedades passam pelos mesmos estágios civilizatórios. Charles Carbonell (1987, p.146) sintetiza o questionamento de Antonio Gramsci à ortodoxia marxista: fala que a superestrutura tem existência relativamente autônoma em relação à economia, que a própria economia não obedece a leis, mas a tendências. Gramsci flexibilizou a metodologia marxista após os anos 1960. 96 Introdução ao Estudo Histórico Josef Stalin governou a União Soviética (Rússia) entre 1924-1953. Foi responsável pelo marxismo ortodoxo. Fonte: http://blue.utb.edu A convicção marxista de que conscientemente ou não os homens fazem a história é singular. Sendo assim, o papel histórico dos proletários era tomar as rédeas das decisões e construir o mundo dos seus sonhos: o socialismo, onde haveria a igualdade, o nivelamento social. Em linhas gerais, o marxismo tem uma visão evolutiva da história, diz que o drama histórico de todos os tempos é a luta de classes de escravos contra senhores, plebeus contra patrícios, servos contra senhores, proletários contra burgueses. O capitalismo seria o modo de produção mais evoluído. Como a história possui uma ordem evolutiva racional, a sua direção era alcançar a utopia comunista, após a destruição do capitalismo. O ideal marxista repousa na crença em um progresso rumo a uma sociedade justa, livre e comunitária. O sentido da história seria a emancipação dos homens pela ação do proletariado. Nesse otimismo insuperável, os homens ao tomar o seu destino nas próprias mãos, rompem com o passado e passam a construir a própria história. Muitas críticas foram feitas à visão marxista da história, mas os seus autores deram muitas contribuições à Nova História, dentre elas, o interesse pelos fenômenos sociais, pelos conflitos e pelos desfavorecidos, pela economia – suas técnicas e crises -, pela cultura material, e mais, os conceitos de estrutura, Tema III | História: método científico e teorias 97 conjuntura e duração. Mas, há diferenças entre os dois modos de fazer história, enquanto no marxismo prevaleceu o dogmatismo mecanicista, na Nova História predomina o ecumenismo metodológico. Texto Complementar RESUMO DA HISTORIOGRAFIA MARXISTA Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) “fundaram, com o materialismo histórico, dialético e científico, um método de análise do real e uma filosofia da história. Engels disse-o ante o túmulo ainda aberto do seu amigo: «Tal como Darwin descobriu a lei da evolução na natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução na história humana»”. A exposição mais clara do materialismo histórico pelo próprio Marx é certamente a que constitui a introdução à Crítica da Economia Política: «Na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, á base concreta sobre a qual se eleva uma superstrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. Em determinado estádio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não passa da sua expressão jurídica, com as relações de propriedade em cujo seio elas tinham existido até então... Inicia-se então 98 Introdução ao Estudo Histórico uma época de revolução social. A modificação na base económica subverte mais ou menos rapidamente toda a enorme superstrutura... Uma formação social não desaparece nunca antes de se terem desenvolvido todas as forças produtivas que ela tem capacidade para conter...». O Manifesto expõe, desde as primeiras linhas, o esquema de evolução da História: a luta de classes como motor, a passagem por fases progressistas como itinerário: «A história de toda a sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes». «Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre e companheiro - numa palavra, opressores e oprimidos em perpétua oposição, têm travado uma luta ininterrupta». Coube a Engels expor as leis de mecânica enunciadas por Hegel e conservadas pela lógica marxista apesar da sua ruptura com o idealismo hegeliano: a lei dos contrários, que afirma que a evolução e a mudança se operam pela negação, segundo um encadeamento ritmado por fases antagonistas: afirmação, negação, negação da negação; a lei dita «do quantitativo e do qualitativo», que faz sair a mutação qualitativa de uma evolução mensurável. Formuladas há mais de um século, estas regras de inteligência histórica são aplicadas com rigores e segundo estilos tão diversos que uma história sumária das historiografias marxistas não pode ir além duma caricatura de caricaturas. Historiografias marxistas Entre 1930 e 1960, durante um período que corresponde aproximadamente à fase estaliniana da história da U. R. S. S., a historiografia marxista viveu a sua época dogmática. _ o tempo Tema III | História: método científico e teorias 99 da «esclerose ideológica» (Guy Bois), das «descrições ontológicas da realidade» (Trukhanovsky), e do «infantilismo» (Gramsci). O paradigma é dado pelo opúsculo de Estaline, Materialismo Dialéctico e Materialismo Histórico, cuja influência foi considerável e de que o editor da tradução francesa dizia, em 1937: «Esta obra foi traduzida três séculos depois do aparecimento do Discurso do Método: são dois momentos de um mesmo esforço, duas obras da mesma estatura.» Lá se afirmavam: • a unicidade e a linearidade da lei do desenvolvimento: «A História conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: a comuna primitiva, a escravatura, o regime feudal, o regime capitalista e o regime socialista»; • o jogo permanente e determinante da causalidade ascendente, da infra-estrutura económica nas estruturas sociais, das estruturas sociais nas superstruturas: «A superstrutura é o reflexo da infra-estrutura»; • a irreversibilidade absoluta da História, o seu progresso incessante e «aos saltos»; • o determinismo duma evolução sempre sic et simpliciter regida pelas leis científicas: «lei de desenvolvimento», «lei de pauperização», «leis da insurreição». Fonte: CARBONELL, Charles O. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987, p. 141-150. 100 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Qual é o objeto de estudo da história marxista? • Qual a principal crítica feita a concepção marxista da história? • O que você entendeu sobre forças produtivas e relações de produção: • O que você entendeu por materialismo histórico? 3.4 HISTÓRIA DOS ANNALES A Nova História está na moda nos dias atuais. É o que se depreende da proliferação de pesquisas com temáticas diversas que chegam às livrarias recorrentemente. Esta escola histórica não excluiu as demais, até convivem, compartilham certos procedimentos, mas a Nova História17 detém certo predomínio em algumas partes do mundo. A renovação da história teve princípio em 1929, na França, com a publicação da Revista Annales d`histoire économique et sociale18, dedicada ao estudo de temas econômicos e sociais. É quando a história nasce como ciência humana, segundo Pierre Chaunu. Mas esse movimento não ocorreu apenas 17 Leia mais sobre este tema em CARBONELL, Charles O. “A Nova História hoje”. In: Historiografia. Lisboa: Teorema, 1987. p.151-69. 18 revista publicada na França desde 1929, por Lucien Febvre e Marc Bloch, chamada “Annales d`histoire économique et sociale”. A partir de 1946, a revista passa a se chamar “Annales, Economies, Sociétés, Civilizations”. Tema III | História: método científico e teorias 101 na França e teve precedente. Os pioneiros do estilo dos Annales foram o belga Henri Pirenne (estudos sobre economia), o holandês Huizinga (estudos sobre mentalidade), o polaco Znaniecki (estudos sobre o povo). Tiveram os estudos de cultura material na União Soviética, da economia e da história oral nos Estados Unidos, e, de arqueologia. Chamamos de “Escola histórica” porque seus representantes romperam com a historiografia antecedente. A Escola dos Annales substituiu a Escola Alemã positivista. A substituição implicou na rejeição da história factual, política, historicizante, da erudição monográfica, do corporativismo e imperialismo dos historiadores. Rompendo com os temas políticos a Nova História foi, desde o início, econômica e social. Essa transformação ocorreu porque o mundo havia mudado também. No novo cenário a economia invade o campo político e se processam transformações mundiais. A novidade está nos novos objetos de estudo. A História que antes tratava quase exclusivamente de política, ampliou os seus domínios. A Nova História costuma ser dividida em várias fases, mas podemos resumir a sua importância a partir de algumas contribuições. Assim, da proximidade com a economia, passou a estudar preços, moedas, trocas, ritmos, ciclos e morte; com a sociologia, surgem estudos sobre família, comunidades rurais e urbanas, círculos de sociabilidade (igrejas, tabernas, etc.), minorias sociais e de gênero, marginais, enclausurados; com a geografia mira o estudo dos climas e da relação do homem com o espaço através do tempo. A partir de 1950, ampliam-se os estudos demográficos, explorando temas como mortandade, nascimentos, que inicialmente eram estudos quantitativos, mas depois passaram a ser qualitativos. Nesta mudança, surgiram estudos sobre o comportamento sexual, a mãe, a criança, o corpo, a doença, o consumo, os gestos, os sentimentos, as paixões coletivas, os sonhos, os 102 Introdução ao Estudo Histórico mitos, etc. No princípio, o movimento é denominado de história das mentalidades, depois passou a ser conhecido como História Cultural, caracterizada pela ênfase no estudo do cotidiano das pessoas comuns. História do amor no Brasil, livro de Mary Del Priore sobre as mentalidades Fonte: http://www.editoracontexto.com.br O estudo das mentalidades aumentou a partir dos anos 1960, com os trabalhos de Philippe Ariès sobre infância, família, morte, vida privada. A história política ganha qualidade valorizando lendas e ritos. Depois de ter sido relegada ao escanteio a biografia histórica renasce, não mais enfocando o indivíduo, mas os movimentos políticos. A História cultural tem uma abrangência vasta, passando a explorar estudos sobre mentalidades, cor, religião, comportamento, sensibilidade, odor, tempo, jovem, entre outros. Saiba mais em: CAIRE-JABINET, M-P. A história em questão: os grandes debates do século 20. In: Introdução à historiografia. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003. p.141. O método Do ponto de vista do método, a Nova História inaugura um percurso novo. Seu método é o da história problema, ou seja, o historiador faz o questionamento do passado e do conhecimento produzido. Não todas as questões serão respondidas, ficaram em aberto para reflexão. No Positivismo era diferente, primeiro Tema III | História: método científico e teorias 103 se consultavam as fontes para em seguida responder os problemas históricos. Agora, os problemas são elaborados na mente do historiador e depois se processa a coleta dos testemunhos para respondê-los ou corrigi-los. Ocorreu também o alargamento da noção de tempo. Ao invés de simplesmente encadear os fatos no tempo, o historiador passou a refletir sobre as mudanças e as permanências históricas, isto por que a mudança histórica passou a ser encarada como processada na curta, média e longa duração. Resumindo, nem todos os fenômenos históricos mudam ao mesmo tempo, as coisas ocorrem em temporalidades diferentes, numa mesma época convivem o novo e o antigo. Uma civilização é entendida a partir da longa duração, mas um governo, a vida de um homem, pertence à curta duração. Outra questão importante foi que a busca das causas na História foi abandonada, por ser entender que existe um emaranhado de causas e não uma causa única. Ao invés de buscar determinar as causas, o historiador passou a entender os acontecimentos dentro do contexto, das estruturas sociais, econômicas, políticas, culturais. O século XX assistiu a uma mudança histórica no tocante às fontes históricas. Resultado da inflação documental, a partir da reprodução mecânica dos documentos e da ampliação da noção de fonte, a História passou a ser feita com recursos diversos: “uma sombra no solo, detectada pela fotografia aérea, que revela um habitat pré-histórico”; “os relatos autobiográficos dos operários polacos ou ingleses”, que revelam uma história desconhecida; “o desenho das estradas e dos caminhos numa carta”, que denuncia as fases da valoração dum território” (CARBONELL, 1987. p.164). Após estas modificações observadas no campo da história, somos levados a nos questionar: como ficou a crítica histórica? Ela acabou ou surgiu uma nova crítica? O elevado número de 104 Introdução ao Estudo Histórico documentos à disposição do historiador passou a exigir novos métodos. Pelo que vimos, as modificações constantes que atingem o campo histórico não são sinais de sua morte, mas indicam a eterna juventude da História. Para sintetizar melhor o significado da Nova História, lembremos do seu Manifesto de 1978, assinado por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, que fala na “Abertura da disciplina a novas temáticas, a vagabundagem por todos os terrenos”. Em outras palavras, a Nova História se caracterizou a partir das últimas décadas do século XX pela busca de NOVOS PROBLEMAS, NOVAS ABORDAGENS, NOVOS OBJETOS (CAIRE-JABINET, 2003, p.133). A Legitimidade da história Os autores dos Annales também se preocuparam com a serventia da História. Marc Bloch definiu que a História serve, antes de qualquer coisa, para divertir ou proporcionar prazer. Ela reflete o desejo de nossa espécie de se conhecer historicamente e coloca em contato os homens do presente com os do passado. Para Georges Duby, a História ensina a complexidade do real, sua diversidade e suas especificidades. Na visão de Jacques Le Goff, a História conhecida e vivida deve ser outra, ou seja, os historiadores têm a obrigação de não permitir que certas atrocidades aconteçam novamente. Para mostrar como são díspares estas visões, Paul Veyne radicaliza ao defender que a História é um mero conhecimento e não uma arte de viver (REIS, 1996, p.91-2). A Escola dos Annales no mundo A partir dos anos 1950, na chamada era Fernand Braudel, a revista torna-se conhecida na Europa. Na Itália, aparecem estudos sobre mercadores, heréticos e longa duração. Na Polônia, sobre urbanos pobres, mentalidades, Mar Báltico. O polonês Tema III | História: método científico e teorias 105 Witold Kula escreve a respeito da economia dos latifúndios. Na Alemanha, até os anos 1970, permanece o interesse pela política e os acontecimentos, depois abordam também o cotidiano. Porém, na Inglaterra fala-se do “afetado e irritante estilo dos Annales” e existe a incompreensão dos termos conjuntura e mentalidade. Como se vê, os ingleses permaneceram com sua historiografia própria, destacando-se muitos historiadores marxistas (BURKE, 1997, p. 109-127). Fernand Braudel (1902 -1985) foi um historiador francês e um dos mais importantes representantes da chamada “Escola dos Annales”. Fonte: http://api.ning.comg Fora da Europa não houve tanto interesse pela História dos Annales. Na África, a sua presença é irrelevante devido à preocupação com o passado recente. Na Ásia, prefere-se o marxismo. Na China, apareceram estudos sobre mentalidade (pensamento chinês, missão cristã). Na América do Norte prevalece o distanciamento. Mas, na América Central e do Sul, a coisa é diferente. O Brasil com Gilberto Freire confecciona estudos sobre família, sexualidade, infância, alimentação e cultura material desde 1930, consagrando-se assim como um precursor e não como um pensador que sofreu a influência da historiografia francesa. A América espanhola se aproximou dos Annales produzindo História a partir do ponto de vista dos vencidos. 106 Introdução ao Estudo Histórico A Nova História foi original porque suas ideias se difundiram mais extensamente e por mais tempo. Porém, esse movimento teve limites. Limite geográfico: sua influência abrange França, Espanha, Itália, América espanhola e portuguesa. Limite temporal: seus temas retratam preferencialmente a Idade Antiga, Feudal e Moderna. O movimento produziu obras-primas como: Os reis taumaturgos, de Marc Bloch, Sociedade feudal: o problema da incredulidade, de Lucien Febre, O Mediterrâneo, As paisagens de Languedoc, Civilização e capitalismo, de Fernand Braudel. Texto Complementar A NOVIDADE DA HISTÓRIA DOS ANNALES Os annales trazem uma renovação da historiografia em diversos campos. Em primeiro lugar: o interesse apaixonado pela atualidade e o presente. Ao longo de toda a sua vida, de seus escritos e conferências, Lucien Febre - para quem a “história é menos [...] uma profissão e mais uma razão de viver” (Annales, 1947) - repete incansavelmente: a história “pesquisa e avalia no passado os fatos, acontecimentos, as tendências que preparam o tempo presente, que permitem compreender” (Combats pour l’histoire, p. 117, 1953). A história da elaboração da obra de Marc Bloch, Les Rois thaumaturges (1924), é disso um exemplo. Combatente nos campos de batalha da guerra de 1914, ele constata a importância dos rumores e das falsas notícias entre os soldados entrincheirados. É a partir dessa experiência pessoal que ele passa a analisar essa imensa “falsa notícia” histórica: a cura dos escrofulosos pelos reis da França recém-sagrados. Esta importância fundamental do presente para os historiadores dos Tema III | História: método científico e teorias 107 Annales pode ser avaliada pelo número de artigos dedicados pela revista à história contemporânea: mais de 40% entre 1929 e 1941 (cf. os trabalhos de Olivier Dumoulin, apud DOSSE, 1987, p. 61-62). Há inúmeros artigos sobre a situação econômica da União Soviética ou o New Deal, em resposta à afirmação de Lucien Febvre: “Entre o presente e o passado, não existem compartimentos estanques, é o refrão dos Annales” (Annales, 1932). Para tratar destas questões, a revista dirige-se a especialistas de economia, banqueiros, financistas como, por exemplo, o diretor do Banco Mundial para o Comércio e Indústria a. Pose; a Divisão Internacional do Trabalho da SDN, dirigida por Albert Thomas, também fornece colaboradores ocasionais. Esta abertura a autores não historiadores é totalmente nova e contribui para localizar a iniciativa dos Annales dentro dessas “estratégias da terceira via” dos anos 30: nem liberalismo, nem marxismo. A segunda novidade dos Annales é a colaboração sistemática entre as diferentes ciências sociais e a história, mas também as estreitas relações que se estabelecem entre a geografia e a história; tão estreitas que se fala até mesmo em “geo-história”. Em 1922, com atraso devido à guerra, Lucien Febvre publica La Terre et l’Évolution humaine, texto polêmico no qual ele defende a geografia contra os sociólogos e insiste sobre a contribuição da geografia para a história. A posição dos geógrafos nos Annales é de importância considerável, e ambas as disciplinas se influenciam mutuamente. Os trabalhos de Marc Bloch (Les Caractères originaux de l’histoire rurale française), de Roger Dion (Essai sur la formation du paysage rural français), de Gaston Roupnel (Histoire de La campagne Française) são disso exemplo. O olhar dos geógrafos (“todo este campo é um livro aberto sob nossos olhos”, C. Roupnel) abre perspectivas aos historiadores, sobretudo no setor da história rural. Uma das grandes obras de “geohistória” é a tese de Fernand Braudel: La Mediterranée à l’époque de Philippe II, que transforma, por sugestão de Lucien Febvre, o 108 Introdução ao Estudo Histórico que no começo era simplesmente matéria da história clássica - a política mediterrânea de Filipe II - em uma ampla reflexão sobre um espaço, suas relações com o homem, em um prolongado período de tempo, em um tempo quase imóvel: “a distinção, no tempo da história, de um tempo geográfico, de um tempo social, de um tempo individual” (F. Braudel). Fonte: CAIRE-JABINET, M-P. Introdução à historiografia. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003. p.121-123. Para Refletir Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Os primeiros redatores da Revista de Annales rejeitaram que tipo de história? • O que você entendeu sobre os novos objetos de estudo abraçados pela Nova História: • A Nova História introduz o método da história problema. Se compararmos ao positivismo, qual é a novidade deste método? • Qual foi a sua compreensão deles sobre os três enunciados da Nova História? • No Brasil, como podemos perceber a influência da Nova História? Tema III | História: método científico e teorias 109 RESUMO DO TEMA III Neste tema quatro assuntos foram discutidos. Primeiro, vimos que a história no século XIX foi muito valorizada ganhando o estatuto de ciência, sendo ensinada nas universidades, ganhando arquivos para a guarda de documentos e revistas para a sua divulgação. Depois, discutimos o Positivismo, ou Escola Metódica, modo de fazer história que exigia o uso do documento oficial como fonte, a objetividade da síntese histórica e a narração de grandes feitos dos grandes homens, isto é, a história política. Em seguida, estudamos a concepção marxista da história, a qual se interessa pelo estudo das estruturas econômicas e sociais, dando ênfase aos modos de produção e a luta de classe. Por fim, tratamos da História dos Annales ou Nova História, que rompe com o fazer historiográfico anterior, pratica a interdisciplinaridade e amplia o campo de estudos da história. 4 História: Fontes, Escrita, Pesquisa, Ensino O objetivo deste tema é estudar o que são fontes históricas e a sua diversidade hoje. Discutir a escrita da história, mostrando um caminho para se aliar a narração dos acontecimentos com a explicação das estruturas. Apresentar os passos da pesquisa histórica, conhecimento necessário para pesquisadores, professores e estudantes compreenderem como se constrói a história. Refletir sobre o ensino de história, destacando os dilemas desta tarefa e as novas práticas que permitem uma boa transposição didática do saber histórico. 4.1 FONTES 19 Para entender melhor este assunto leia: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fon- Quer sejamos historiadores, protes históricas. 2 ed. São Paufessores, estudantes ou apenas leitores, lo: Contexto, 2006. p. 23-80. é fundamental que entendamos o que são fontes históricas. As fontes são as matérias primas das quais brotam as histórias presentes nos livros. A seguir, discutiremos o que são fontes históricas19, quais são 112 Introdução ao Estudo Histórico os tipos de fontes disponíveis e algumas maneiras de lidar com cada uma delas. Assim como um detetive de polícia para elucidar um crime sai em busca das pistas deixadas pelo criminoso, um historiador para esclarecer uma época ou um acontecimento vai atrás das suas pistas. Estes indícios são as fontes dos historiadores que, podem ser classificados por um variado elenco: as documentais, as arqueológicas, as impressas, as orais, as biográficas e as audiovisuais. As fontes através da história Houve uma variação no tempo e no espaço no uso das fontes históricas. Ao longo dos tempos percebe-se uma ampliação da noção de fontes. Hoje, para ser historiador exige-se erudição, isto é, o conhecimento dos diversos tipos de registros do passado, e sensibilidade para saber extrair informações deles. Através dos grafitos pintados nas cavernas conhecemos os primeiros relatos da vida humana. Posteriormente, as sociedades ágrafas, isto é, sem escrita, deixaram elementos da cultura material possibilitando hipóteses sobre o seu modo de vida. Em seguida, surgiram sociedades que inventaram a escrita permitindo a produção documental dos períodos históricos subsequentes, sendo as fontes mais valorizadas até o século XX. Cena de caça pré-histórica. Primeira forma do homem contar a sua história. Fonte: http://cilaschulman.files.wordpress.com Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 113 Na segunda metade do século XIX, época da história científica e da preferência pelas fontes escritas, a concepção predominante era a de que a “comparação de documentos permitia reconstituir os acontecimentos passados”, buscando-se as suas causas e consequências. Outra vertente de pensadores, a dos filósofos, concluiu que a evolução e o progresso explicavam a marcha da humanidade. Deste modo, tínhamos a história factual, narrada de forma linear e progressista. O marxismo, valorizando a estrutura econômica e as lutas entre as classes sociais, fez surgirem estudos de Economia e Sociologia, valorizando a coleta de fontes das atividades econômicas: cartórios, processos judiciais, censos, contratos de trabalho, movimento de portos, abastecimento e outros. A partir de então predominam a história social e econômica. A partir de 1929, os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre propõem a história-problema, na qual as fontes deveriam ser buscadas e interpretadas segundo as hipóteses do historiador. Numa crítica à valorização apenas da política, para eles, todas as atividades humanas deveriam ser consideradas como importantes. No mesmo período, adeptos do marxismo produzem trabalhos de história econômica utilizando fontes sobre o comércio, agricultura, trabalho, remuneração, censos, entre outras. A história quantitativa do historiador marxista Ernest Labrousse fez uso de métodos da economia, confeccionando gráficos, tabelas e estatísticas para explicar ciclos econômicos. Surgiram pesquisas sobre preços, dados bancários, importação e exportação, salários, produção de alimentos, etc., dando início à história demográfica que fazia uso de registros de nascimentos, falecimentos e casamentos. As contestações políticas e sociais dos anos 60 do século XX fizeram os historiadores se voltarem para o tempo presente, falando em novos problemas, objetos e abordagens. As fontes consultadas por estes historiadores mostram uma perspectiva 114 Introdução ao Estudo Histórico interdisciplinar de suas visões. Vejamos a lista sobre as fontes destes pesquisadores, preparada por Maria de Lourdes Janotti (2006, p.15): Mapas metereológicos, processos químicos, documentos de ministérios da agricultura, relatos de incêndios, cartas sobre catástrofes climáticas do passado, diários, biografias, romances, estudos psicanalíticos, Psicologia da arte, releitura dos clássicos greco-romanos, o discurso mítico, Antropologia cultural, culto de santos, doutrinas religiosas, livros pornográficos e clandestinos, estatísticas de publicações diversas, ilustrações, caricaturas, jornais, manuais de bons hábitos, fotografias, literatura médica, receituários, dietas alimentares, documentos de ministérios da saúde sobre epidemias, escrituração de estabelecimentos voltados ao abastecimento, contas da Assistência pública, estudos de Biologia, cardápio de hospitais e listas de compra, menus de restaurantes, arte culinária, utensílios de serviços de mesa, sondagens de opinião pública, depoimentos orais, filmes mudos, sonoros e coloridos, plantas de salas de exibição de filmes, letreiros, legendas, técnicas de filmagem, filmes de propaganda política, festas de loucos, fantasias, comemorações nacionais, bailes, cores, programas de festas públicas e particulares, homenagens, músicas, celebrações religiosas, discursos, trajes especiais [...] Fontes documentais São os registros do passado que geralmente estão depositados nos arquivos, lugar para onde se deslocam os jovens estudiosos dos cursos de história. Para os estudantes de graduação, este tipo de pesquisa nem sempre é bem sucedido devido a sua formação estar centrada na discussão historiográfica. A pesquisa exige o conhecimento básico de algumas noções sobre organização arquivística, paleografia e crítica de fontes, necessárias para o entendimento de como ocorre a construção do saber histórico. A fim de entendermos o agir do historiador que se dedica ao estudo de manuscritos de arquivo, leiamos as palavras de Carlos Bacellar (2006, p. 24): Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 115 O abnegado historiador encanta-se ao ler os testemunhos de pessoas do passado, ao perceber seus pontos de vista, seus sofrimentos, suas lutas cotidianas. Com o passar dos dias, ganha-se familiaridade, ou mesmo certa intimidade, com escrivães ou personagens que se repetem nos papeis. Sente-se o peso das restrições da sociedade, ou o peso da miséria, ou a má sorte de alguém, e deseja-se ler mais documentos para acompanhar aquela história de vida, o seu desenrolar. As visões dos historiadores sobre as fontes documentais são diversas e merecem um estudo aprofundado. Carlos Bacellar (2006, p. 25) cita dois exemplos: houve aqueles que viam nos documentos fontes de verdade, testemunhos neutros do passado, e há os que analisam os seus discursos, reconhecem os seus vieses, desconstroem seu conteúdo e contextualizam suas visões. A seguir, listaremos algumas instituições e documentos sob a sua posse que tratam da história do Brasil. - Arquivos do Poder Executivo: documentos (Correspondência: ofícios e requerimentos; matrículas de classificação de escravos, lista de classificação de votantes; matrículas e frequências de alunos, etc.). - Arquivos do Poder Legislativo: documentos (Atas; registros). - Arquivos do Poder Judiciário: documentos (Inventários e testamentos; processos cíveis, processos crimes). - Arquivos cartoriais: documentos (notas; registro civil). - Arquivos eclesiásticos: documentos (Registros paroquiais; processos; correspondência). - Arquivos privados: documentos (Documentos particulares de indivíduos, famílias, grupos de interesse ou empresas). 116 Introdução ao Estudo Histórico Livro da fabrica das naos. Manuscrito de 1580, deposita na Biblioteca Nacional de Lisboa. Fonte: http://4.bp.blogspot.com A pesquisa com documentos escritos requer algumas providências, uma delas é a confecção de fichamentos. Geralmente se faz a transcrição integral ou parcial do documento, observando as regras de paleografia a respeito das lacunas no texto, rasuras e borrões. Deve-se também anotar a referência do documento transcrito, indicar todos os dados que permitam identificar o documento, diferenciar o texto não copiado do texto cuja leitura foi impossível e, para documentos extensos, registrar as mudanças de página. (BACELLAR, 2006, p. 62). No momento de fazer a análise dos documentos, é necessário conhecer a fundo a história da peça documental, saber sob quais condições foi redigido, com que propósito e por quem? Sabemos que o documento não é neutro e carrega a opinião da pessoa ou do órgão que o escreveu. Outro ponto crucial é entender o texto no contexto de sua época, inclusive procurando o significado das palavras e das expressões. Para os historiadores que trabalham com temas econômicos, um dos problemas enfrentados são as medidas de comprimento, volume e peso presentes nos documentos. Transformar tais medidas em quilos, metros e metros cúbicos é uma dificuldade. O problema também ocorre porque as medidas variavam de região para região e ao longo do tempo. O pesquisador quando da análise e interpretação de suas fontes, o que ele faz é cotejar informações, justapor documentos, relacionar texto e contexto, estabelecer constantes, identificar mudanças e permanências (BACELLAR, 2006, p. 71). Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 117 Fontes arqueológicas De acordo com Pedro Paulo Funari (2006, p. 84), as fontes materiais ou arqueológicas já eram utilizadas pelos antigos historiadores. Para eles a história se fazia com testemunhos, objetos e paisagens. Entretanto, durante a prevalência do documento escrito, as fontes materiais ficaram relegadas ao papel de auxiliares, complementares ou ilustrativas. É imensa a quantidade de material disponibilizado pela arqueologia, mas o que mais chamou a atenção e se tornou mais valorizado foram as inscrições. Muitas civilizações utilizavam pedras, cerâmica, tijolos, telhas, estelas e sarcófagos para fazerem inscrições. Sociedades como a egípcia, a romana e outros povos passaram a ser mais conhecidos através das inscrições e manuscritos epigráficos evidenciados pela Arqueologia. Entre os séculos XIX e XX, a procura por fontes arqueológicas aumentou consideravelmente, permitindo o conhecimento do cotidiano das pessoas comuns e ampliando consideravelmente as fontes históricas. Fontes impressas Os jornais e as revistas constituem as chamadas fontes impressas. No Brasil, até a década de 1970 era reduzido o número de trabalhos que fazia a escrita da história por meio da imprensa. Dentre as temáticas que podem ser estudadas a partir da imprensa pode-se destacar: movimento operário, estudos sobre mulheres, infância. Entre os procedimentos necessários para quem trabalha com fontes impressas, Tania Regina de Luca (2006, p.142) dá algumas dicas: encontrar as fontes e constituir uma longa e representativa série; localizar as publicações na história da imprensa; atentar para as características de origem material (periodicidade, impressão, papel, uso/ausência de iconografia e de publicidade); assenhorar-se da forma de organização interna do conteúdo; 118 Introdução ao Estudo Histórico caracterizar o material iconográfico presente, atentando para as opções estéticas e funções cumpridas por ele na publicação; caracterizar o grupo responsável pela publicação; identificar os principais colaboradores; identificar o público a que se destinava; identificar as fontes de receita; analisar todo o material de acordo com a problemática escolhida. Texto Complementar O LUGAR DO MÉTODO HISTÓRICO NA ATUALIDADE Para além de qualquer discussão adicional, interessa-nos aqui ressaltar que a dificuldade presente nessa formulação ainda é igual a da incomensurabilidade das teorias, assinalada acima: se o defeito do conceito de verdade na base da concepção tradicional do método era supor uma diferença abismal entre o sujeito e o objeto, todo o nó estaria desatado se essa diferença fosse eliminada. A Escola Histórica também procurava uma ponte sobre o abismo, que seria justamente o método de neutralização do sujeito e afirmação do objeto. Os seus críticos do século XX apenas inverteram a polaridade, ao recusar a objetividade do conhecimento e afirmar radicalmente a sua subjetividade. É o caso da primeira posição examinada, quando concebe o método totalmente determinado por uma matriz teórica que prefiguraria a pesquisa empírica e seus achados; não haveria adequação do sujeito ao objeto, pois a ciência inteira estaria contida no primeiro. Também é o caso da segunda posição, que se distancia da própria ciência e do seu ideal de objetividade do saber. O problema para ela não é nem tanto o método, mas o conceito mesmo de verdade, do qual suspeita na medida em que ele se funda na possibilidade de conhecimento objetivo, da realidade em si. Não há mais nitidez daí sobre a diferença entre o que é ou foi verdadeiro e o que somente se imaginou como tal, interpretou- Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 119 se subjetivamente como tal. Como agora também levam em conta até mesmo a intuição e a fantasia, as teorias históricas - ou melhor, os estilos de escrever a história - são mais do que antes imunes aos testes da verificação ou falsificação empírica, a qualquer critério de objetividade de suas proposições. Não há mais verdade fora do circuito fechado do discurso histórico-literário; em cada teoria ou visão histórica é que se encontram as normas que atribuem sentido a suas proposições. Embora sucinta, essa análise da sua articulação lógica já permite visualizar acertos e exageros nessa perspectiva subjetivante. Depois de décadas de crítica, sabemos hoje que não há verdades absolutas e afirmamos apenas as relativas. Mas a questão precisamente é: “relativas” a quem ou a quê? Se forem distintas visões de mundo, que devem ser respeitadas em sua diferença por se organizarem em códigos mutuamente incompreensíveis, então temos aí configurado de maneira exemplar o problema da incomparabilidade das teorias, que vimos levar aos impasses do relativismo. Sem ser absoluta, a verdade não pode simplesmente ser relativa. Ocorre, porém, que tanto na forma absoluta como na relativa a verdade está definida nos termos da polaridade sujeito-objeto, que é preciso ultrapassar de outro modo que não a simples negação de um dos termos. Se não admitimos mais o conceito tradicional de verdade como correspondência com o real, objetividade de enunciados, é porque aprendemos o quanto há de subjetivo no objeto, que de forma alguma é “puro”; e também o quanto há de objetivo, de determinação histórica, no sujeito do conhecimento, que não pode jamais ser considerado neutro. Esse diálogo, esse trânsito recíproco dos dois pólos da relação, não significa, contudo, que se dissolveu completamente a diferença entre eles; ela se repõe pela própria relação. E é na perspectiva desse diálogo que se redefine hoje o conceito de verdade nas várias vertentes da fenomenologia e da hermenêutica, por exemplo. Fonte: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 298-299. 120 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • O que se pode dizer a respeito do uso das fontes ao longo da história? • Que análises podemos fazer a respeito do método histórico e do conceito de verdade? 4.2 ACONTECIMENTO E ESTRUTURA Os historiadores têm opiniões diferentes, às vezes divergentes, sobre o formato que deve ter um texto histórico. Ele deve ser uma narração dos fatos ou se deve evitar a descrição dos fatos e partir para uma análise das estruturas (econômica, política, cultural etc.)? Estas questões serão discutidas a seguir. Tendo curiosidade sobre este assunto leia: BURKE, P. (Org.). “A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa”. In: A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 327-48. A narrativa dos acontecimentos é o formato clássico do texto histórico. Ao longo dos anos este estilo sofreu vários ataques. Durante o Iluminismo a narrativa foi criticada em nome da explicação dos acontecimentos. No século XIX, Leopold von Ranke e os demais positivistas promoveram o retorno da narrativa do acontecimento. No século seguinte, nova crítica é feita à narrativa, preconizando-se a análise das estruturas. Assim, a narrativa é colocada em oposição à interpretação. Entretanto, segundo Ricoeur toda história é um tipo de narrativa. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 121 Durante as primeiras décadas do advento da Nova História, a narrativa ficou no ostracismo. Mais recentemente, dos anos 1970 para cá, alguns autores têm aderido à narrativa. Assim, Georges Duby e Emanuel Le Roy Ladurie, representantes da Nova História, realizaram pesquisas cujos focos são as batalhas e os acontecimentos. Trata-se do retorno da narrativa, mas de uma narrativa que contempla a explicação, a análise estrutural. O historiador francês Georges Duby, um representante da Nova História. Fonte: http://cem.revues.org Os textos históricos, basicamente, possuem estes dois formatos: narrativa de acontecimentos e análise das estruturas ou análise contextual. Ambos os estilos possuem limites. A narrativa é acusada de ser superficial por não aprofundar a análise dos acontecimentos, e generalizante porque ao privilegiar a ação dos heróis acaba ofuscando os demais indivíduos. Quando na narrativa se fala em Igreja, não se dá conta de que dentro desta instituição e de outras, existem embates, disputas. Logo, uma instituição não é algo homogêneo. Só uma explicação mais aprofundada dá conta desta situação. O que é a estrutura? Em termos gerais, considera-se a estrutura como a economia, a política, a cultura etc., algo que está acima do indivíduo e o influencia na sua vida diária. Também a análise das estruturas recebeu algumas críticas. Ela é acusada de ser estática, por não enfatizar as pequenas mudanças e de ser não-histórica por não discutir a sucessão de eventos. Muitos pensadores defendem o retorno da narrativa, entre eles, Peter Burke. Trata-se de uma nova narrativa. A narrativa 122 Introdução ao Estudo Histórico tradicional limitava-se a descrever os acontecimentos como eles apareciam nas fontes. A narrativa moderna admite a reconstrução hipotética do passado, ou seja, há margem para a interpretação. O retorno da narrativa advém da necessidade de incorporarmos novas formas literárias para tornar a história mais compreensível. Outra característica da nova narrativa é que ela parte de mais de um ponto de vista. Por exemplo, se estivermos falando do Brasil Colonial, o texto deve apresentar as visões dos padres jesuítas, dos colonos, dos índios e negros, ou seja, os agentes históricos do período. O próprio historiador deve se posicionar, dar o seu ponto de vista e mostrar que não é onisciente (não sabe de tudo) e nem é imparcial. Aliado a isso, a nova narrativa considera que as fontes históricas representam a visão de quem as produziu e não a verdade absoluta. A conciliação entre descrição e interpretação deve ocorrer por meio da narrativa densa. A narrativa densa ou descrição densa envolve o enfoque nos acontecimentos e a relação deste com as estruturas (sociais, políticas, econômicas, culturais). Ou seja, o texto histórico para ser mais compreensível, mais atraente, mais informativo, deve conciliar a narração dos acontecimentos e a análise das estruturas. Não há motivo para estes estilos serem opostos. O bom historiador deve agir como um bom escritor. A história deve se espelhar na literatura para se tornar mais atrativa sem perder a sua cientificidade. Pode aliar ficção e fatos históricos. Atualmente, isso está ocorrendo a partir de alguns procedimentos. São eles: a micro-narrativa, que fala das pessoas comuns; a relação entre micro-história e macro-hisClio a musa da história. tória, como uma forma de relaFonte: http://bp3.blogger.com cionar a história vista de cima com Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 123 a história vista de baixo, ou seja, os olhares dos grupos dominantes e dos grupos dominados; a história da frente para trás, tipo de escrita que possibilita ao presente sentir a pressão do passado; e, destacar o acontecimento visando chegar às estruturas. Em síntese, o que se propõe atualmente é relacionar acontecimentos e estruturas, ou seja, descrição e interpretação. Apresentar a história a partir de vários pontos de vista, não apenas a partir de um único olhar. Este procedimento é o que se chama de narração densa ou descrição densa. Texto Complementar O TEMPO NA ESCRITA DA HISTÓRIA Abordar a história com um “novo olhar” fora sem dúvida uma contribuição para a renovação da prática historiográfica. Mas seria preciso, para continuar incrementando novas possibilidades de renovação, abordar a história também com um “novo dizer”. Não apenas “olhar o tempo” de uma maneira nova, mas também “dizer o tempo” de forma inovadora - eis aqui também um programa possível para novas escolas interessadas em renovar o conhecimento histórico. Assim, à parte a proposta inovadora de Braudel e de outros historiadores associados ao movimento dos Annales para repensar o tempo histórico, esta que teve efeitos sensivelmente duradouros na historiografia ocidental, seria preciso talvez esperar pelas últimas décadas do século XX para que alguns historiadores pioneiros - incorporando técnicas narrativas introduzidas pela literatura e pelo cinema moderno - ousassem retomar a narrativa historiográfica mas sem deixar de assegurar a libertação em relação a uma determinada imagem de tempo mais linear ou mais fatalmente progressiva na apresentação de suas histórias (ou seja, na elaboração final dos seus textos). 124 Introdução ao Estudo Histórico Uma tentativa, citada por Peter Burke em artigo que examina precisamente os novos modelos de elaboração de narrativas1, é a de Norman Davies em Heart of Europe. Nesta obra, o autor focaliza uma História da Polônia encadeada da frente para trás em capítulos que começam no período posterior à Segunda Guerra Mundial e recuam até chegar ao período situado entre 1795 e 19182. Trata-se, enfim, não apenas de uma história investigada às avessas, como também de uma história representada às avessas. Outras tentativas são recolhidas por Peter Burke neste excelente apanhado de novas experiências de elaborar uma narrativa ou descrição historiográfica. As experiências vão desde as histórias que se movimentam para frente e para trás e que oscilam entre os tempos público e privado3, até as experiências de captação do fluxo mental dos agentes históricos e da expressão de uma “multivocalidade” que estabelece um diálogo entre os vários pontos de vista4, sejam os oriundos dos vários agentes históricos, dos vários grupos sociais, ou mesmo de culturas distintas5. Todas estas experiências narrativas pressupõem formas criativas de visualizar o tempo, ancoradas em percepções várias como as de que o tempo psicológico difere do tempo cronológico convencional, de que o tempo é uma experiência subjetiva (que varia de agente a agente), de que o tempo do próprio narrador externo diferencia-se dos tempos implícitos nos conteúdos narrativos6, e de que mesmo o aspecto progressivo do tempo é apenas uma imagem a que estamos acorrentados enquanto passageiros da concretude cotidiana, mas que pode ser rompida pelo historiador no ato de construção e representação de suas histórias. Para além de problemas estéticos (e heurísticos) relacionados à maneira de construir o texto final, a temporalidade também gera problemas científicos relativos à constituição do objeto de pesquisa. Assim, ainda em relação às imagens estereotipadas do tempo, uma prisão ainda maior costuma vir se erguer em torno Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 125 do trabalho historiográfico, agora sob a forma de um continuum espaço-temporal que impõe um duplo limite ao pesquisador que se põe a constituir o seu objeto de estudo. Cedo o historiador de formação acadêmica vê-se habituado a recortar o seu objeto em consonância com imagens congeladas como a do ‘espaço nacional’ ou do ‘tempo dinástico’: o “Portugal durante o reinado de Dom Dinis”, a “França de Luís XIV”, o “Egito de Ramsés II” pede-se ao pesquisador um problema que se encaixe dentro de limites como estes. 1 BURKE, Peter. A História dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: _______ (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 327-348. 2 DAVIS, Norman. Heart of Europe: a short History of Poland. Oxford: 1984. Esta e algumas das referências que se seguem devem ser creditadas ao artigo supracitado de Peter Burke. 3 Alguns exemplos podem ser encontrados nas obras sobre a China do historia- dor Jonathan Spence (Emperor of China, Londres: 1974; The Death of Woman Wang, Londres: 1978; The Gate of Heavenly Peace, Londres: 1982; e The Memory of Palace of Matteo Ricci, Londres: 1985). 4 Como exemplo deste tipo de experiência, Peter Burke cita a obra de Richard Price, onde o autor constrói um estudo do Suriname setecentista a partir de quatro vozes que são simbolizadas por quatro padrões tipográficos (PRICE, R. Alabi’s world. Baltimore: 1990. Apud BURKE, A História..., p. 337). 5 Uma referência para o estudo do encontro de culturas, abordado no sentido de conceder uma exposição de dois ou mais pontos de vista culturais, encontra-se nas obras de Marslhall Sahlins, que estudou as sociedades do Havaí e das ilhas Fuji (SAHLINS, M. Historical metaphors and mythical realities. Ann Arbor: 1981). 6 Hayden White chama atenção para a questão da descontinuidade entre os acon- tecimentos do mundo exterior e a sua representação sob a forma narrativa em “The Burden of History” (History and theory, n. 5, 1966). Fonte: BARROS, José D’ Assunção. Os usos da temporalidade na escrita na história. SAECULUM – REVISTA DE HISTÓRIA. 144-155; João Pessoa, jul/dez. 2005. 126 Introdução ao Estudo Histórico Para Refletir • Reúna-se com seus colegas e discuta: • Qual é a diferença entre narração dos acontecimentos e análise da estrutura? • O que difere a nova narrativa da narrativa tradicional? • No campo da história, como pode ser percebida a narrativa densa? 4.3 PESQUISA HISTÓRICA 20 Para conhecer mais o tema leia: VIEIRA, Maria do A pesquisa histórica se faz alea- Pilar A. et Alli. A pesquisa toriamente ou existe um método para em história. São Paulo: Ática, seguir? Somente os historiadores co- 1998. p.29-64. nhecem o seu segredo ou é uma prática acessível para qualquer pessoa? O que quer que se pense a esse respeito, é necessário que aqueles que trilham os passos da História conheçam os principais procedimentos da pesquisa20, sob pena de produzir uma série de memórias sem credibilidade. Antes de discorrer sobre os passos da pesquisa é preciso distinguir a História enquanto experiência humana e narração. As pessoas agem historicamente no dia-dia, mas os registros de suas ações nem sempre ocorrem de forma objetiva e sim como reconstrução. O resultado da investigação histórica modifica-se de acordo com as problemáticas estabelecidas, é por isso que não há uma verdade objetiva, os historiadores chegarão a conclusões diferentes de acordo com as questões lançadas ao passado. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 127 A História reflete o tempo em que foi escrita e a “classe” social a qual pertence o investigador. É por isso que em determinadas épocas alguns temas são privilegiados, como a “política” no século XIX, e outros são negligenciados como os “excluídos” na mesma época. Pelo que vimo a História narrada não corresponde à História vivida. Feitas estas observações, passemos a analisar os quatro passos da pesquisa histórica: escolha do tema, a problematização, a seleção das evidências e a construção do produto final. Leitura de documento no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGS. Fonte: http://www.ihgse.com.br/arquivo.asp A Escolha do tema É o primeiro passo do pesquisador. Significa pensar o objeto, refletir sobre ele. Não se trata apenas um uma escolha do assunto, a reflexão implica que a escolha do tema continua durante o andamento da pesquisa. Convém lembrar que a postura teórica do pesquisador promoverá resultados diferentes. Mas, de onde vem nosso interesse por um tema? Geralmente, a motivação para uma pesquisa nasce da inquietação acadêmica, ou seja, enquanto os universitários estudam algumas disciplinas percebem certas lacunas na historiografia e se propõem a preencher essas lacunas. Dessa forma, não questionam as demarcações temporais, nem os temas já estabelecidos. Outra forma de escolher um tema se relaciona com a experiência de vida, como a militância política, o trabalho, 128 Introdução ao Estudo Histórico o cotidiano, etc. neste caso, são critérios mais afetivos que prevalecem. O pesquisador que queira produzir um trabalho inovador deve, além de ouvir a bibliografia, através de uma seleção criteriosa de obras sobre o seu tema, investigar também os “atores” sociais. Exemplo: se for pesquisar o modo de vida camponês, deve atentar para o que já foi escrito e ir ao campo entrevistar esses sujeitos históricos. Sem ouvir os sujeitos históricos ou as fontes, a pesquisa é estéril, não traz nada novo. Não é ciência. É necessário que a delimitação de um tema seja progressiva. Uma vez escolhido um tema, posteriormente o pesquisador percebe que ele é amplo demais e necessita de uma delimitação mais específica. A redefinição do tema pode ocorrer a partir das novas questões que as fontes podem apontar e que eram desconhecidas do pesquisador. Por fim é preciso dizer que o pesquisador deve pensar os registros históricos como parte do real e não como a realidade propriamente dita. Problematizar e selecionar as evidências Um momento essencial da pesquisa é o da problematização. A pesquisa histórica é mais que uma narração de fatos, necessita da elaboração de questões para serem respondidas a partir da análise da realidade. O historiador deve estar atento de que a experiência humana envolve interesses, antagonismos e necessidades. São estas e outras as questões a embasar uma pesquisa. Assim, o conhecimento histórico tem que apreender a experiência vivida pelos sujeitos. As questões do presente contam nesta fase, porque se busca no passado algo não resolvido no presente. A formulação de questões e de hipóteses não são procedimentos rígidos, ela deve ser sensível ao que dizem as fontes e os sujeitos históricos investigados, com isso queremos dizer Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 129 que, todos os passos da pesquisa se inter-relacionam, todos eles podem ser modificados a qualquer momento. As fontes históricas não podem servir de mera ilustração para as hipóteses previamente estabelecidas pelo historiador, como ocorre em alguns trabalhos. Selecionar as evidências consiste em escolher as fontes históricas. As evidências de uma pesquisa são escolhidas de acordo com a visão de mundo do pesquisador. Para estudar o cotidiano das mulheres pobres de São Paulo no século XIX, aparentemente sem fontes, Maria Odila Dias usou registros indiretos – fontes de natureza criminal. As escolhas de temas e de fontes representam a postura do pesquisador, às vezes, os seus preconceitos, não é um ato inocente. Fachada do Arquivo Judiciário de Sergipe. O arquivo guarda documentos judiciais, um novo tipo de fontes à disposição do pesquisador. Fonte: http://www.tjse.jus.br As fontes também auxiliam a problematizar o objeto porque à medida que a pesquisa avança outras questões podem ser despertadas. As evidências não podem ser utilizadas apenas como ilustração para conclusões tiradas a priori (consultar a leitura complementar). 130 Introdução ao Estudo Histórico O Produto final É o momento da escrita do texto em que o pesquisador deve refletir e interpretar todos os dados colhidos. A etapa deve ser considerada como um instante de reflexão e não produto acabado. Nossas conclusões podem ser complementadas ou modificadas por pesquisas ulteriores, assim produzimos mais um conhecimento e não uma visão definitiva. Tradicionalmente a pesquisa histórica toma a forma do texto escrito, mas existem alternativas como o vídeo documentário, a fotografia, o desenho, a literatura, o teatro. Esses elementos além de servir de fonte podem ser também o formato da exposição da pesquisa. Dependendo do público que irá consumir a pesquisa e das temáticas abordadas, seria prudente escolher a forma de apresentação mais eficiente. Hoje, muitas pesquisas viram painéis, exposições fotográficas etc. e alcançam um público maior. Texto Complementar SELEÇÃO DAS EVIDÊNCIAS DA EXPERIÊNCIA O interesse do pesquisador por certos assuntos e o modo de abordá-los dependerá de sua visão da sociedade e de sua proposta de intervenção nela. A partir de suas preocupações no presente escolherá os registros e os tratará de uma dada forma. Se propomos que a problematização do objeto deva ser feita no processo da pesquisa, a partir do diálogo com as fontes, são os agentes sociais em questão que vão determinar os tipos de registros a serem utilizados. Por agentes sociais entendemos aqui não apenas aqueles em estudo como o próprio pesquisador. Nesse trabalho o pesquisador, se colocado como ser político, procurando saídas para o presente e para o futuro, se posicionará continuamente, fazendo opções e forjando o próprio caminho. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 131 Na abordagem que faz do passado se acerca de outros pesquisadores, através da bibliografia, discutindo procedimentos. Maria Odila L. S. Dias, interessada em desvendar relações de dominação difusas no social, estuda o cotidiano de mulheres pobres em São Paulo no século XIX. Essas mulheres, na luta pela sobrevivência, enfrentavam as questões do seu cotidiano através da linguagem oral e de comportamento não convencional em brigas de rua, conchavos etc. A falta de registros dificultou a abordagem dessas mulheres na medida em que não conseguiram perpetuar a própria fala e ninguém se interessou em registrar sua existência. Quando, por exemplo, cronistas e viajantes o fizeram, foram movidos pela perplexidade ante comportamentos tão anticonvencionais. Essas mulheres foram alvo de registros indiretos, cuja preocupação era ora de controle social, ora de punição ou repressão, quando quebravam as normas estabelecidas. Frente a essas contingências, M. Odila Dias recuperou a trajetória dessas mulheres através de uma gama variada de registros tais como Maços de População, Ofícios Diversos da Capital, Autos-Crimes da Capital, Crimes da Sé, Querelas, Escravos, Processos de Divórcio, Devassas e Visitas Pastorais, Atas da Câmara Municipal, Documentos Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo, Inventários e Testamentos, Coleção Cronológica de Leis Extravagantes etc. A falta de fontes sobre essas mulheres e a forma como foram registradas já é indicativo para o pesquisador da problemática vivida por elas. Isso exige uma leitura nas entrelinhas que ultrapasse a intencionalidade imediata do registro. Trata-se de estar pensando não só o que está sendo representado, mas por que está sendo representado daquela forma. No caso de M. Odila Dias, isso só foi possível na medida em que rompeu com uma série de ortodoxias. Ainda que utilizando registros dos mais tradicionais no campo de trabalho do 132 Introdução ao Estudo Histórico historiador, não faz uma leitura economicista, pensa a dominação permeando o todo social, estuda atividades improvisadas e não institucionalizadas. Importância das fontes na problematização Nesse sentido não dá para fazer a seleção de fontes depois da problematização, como geralmente recomendam os manuais. O pesquisador, no encaminhamento da pesquisa, se depara com registros que funcionam como elemento perturbador, ou porque não consegue explicá-los, ou porque questionam linhas importantes de sua reflexão. No primeiro caso, por exemplo, o grupo que desenvolveu o projeto “Fontes para o Estudo da Industrialização no Brasil”, levantando as condições de vida e de trabalho da classe operária, partia do pressuposto de que o trabalhador não era apenas um fator de produção, mas também um agente social. Embora pensando assim, ao levantar os dados separaram condições de vida e condições de trabalho. Dessa separação resultou o arrolamento de dados “sem lugar” na pesquisa, classificados como “cotidiano operário”. Repensando o objeto de estudo em função das evidências trazidas à luz pelos dados empíricos e de uma proposta metodológica, qual seja de que as relações sociais de produção não são apenas relações econômicas, mas sociais, políticas, culturais etc., os pesquisadores concluíram que haviam separado aquilo que nunca estivera separado. Em outras palavras, pensar o trabalhador como agente social e não apenas como força de trabalho, remete à “complexidade do todo social e às lutas que nele se verificam, imprimindo-lhes a dinâmica”. Dessa forma, a dominação do elemento operário não ocorre “apenas dentro da fábrica mas também fora dela”; é dada na “sociedade como um todo e não apenas neste ou naquele lugar”. A partir daí o que estava separado passou a fazer sentido conjuntamente, inclusive aqueles dados referentes ao “cotidiano operário”. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 133 No segundo caso, o mesmo grupo buscando a relação Estado/classes sociais através da legislação, vista como instrumento da intervenção governamental entendida no processo de luta de classes, num primeiro momento valorizou dados referentes à política financeira, impostos, taxas, política fiscal, relação empresa/Estado etc. Entretanto, ao coletar dados simultaneamente à reflexão teórica, houve necessidade de repensar a problemática do exercício e natureza do poder, diante das evidências sugeridas pelo material empírico. No caso da legislação sobre a imigração, foi possível detectar uma atuação não apenas para os aspectos diretamente ligados ao capital, mas para a racionalização e organização da mão-de-obra. Outro dado perturbador foi a presença de uma legislação social não aceita pela burguesia industrial. Tudo isso levou-os a colocar o Estado como expressão de uma correlação de forças sociais, e não como comitê da burguesia, ou como entidade autônoma, acima das classes. Fonte: VIEIRA, Maria do Pilar A. et. Alli. “Os passos da pesquisa”. In: A pesquisa em história. SP: Ática, 1998. p.45-48. Para Refletir Discuta com os seus colegas no fórum do AVA o que entenderam sobre os quatro passos fundamentais da pesquisa histórica: • Escolha do tema. • Problematização. • Seleção das evidências. • Produto final. 134 Introdução ao Estudo Histórico 4.4 ENSINO DE HISTÓRIA Como tornar o ensino de História21 mais agradável? Como convencer as pessoas de que estudar História é fundamental para nos situarmos na atualidade? Como compreender o contexto da vida e do trabalho dos professores de História? 21 Para se inteirar sobre esta temática ler: SCHMIDT, Maria A. “A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula”. In: BITTENCOURT, C. (Org.) O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p.54-66. O ensino de História Nos últimos vinte anos, o ensino em geral sofreu críticas e, em particular, o ensino de História também. Neste último, a questão essencial era a superação do ensino tradicional de história, no qual o essencial era fazer com que os alunos decorassem nomes e datas. Predominavam as visões positivista e marxista da História, com uma limitação temática para os assuntos políticos e econômicos. Na renovação do ensino de História dois itens foram essenciais, a modernização do currículo e a ênfase na atualização dos professores. Os currículos precisaram ser renovados para incorporar as novas temáticas discutidas pela História, seguindo a renovação proporcionada pela Nova História, incluindo novos temas e novas categorias sociais, antes ocultados pela história dos “grandes homens” e dos “grandes acontecimentos”. É verdade que no ensino brasileiro o quadro-negro ainda persiste como único recurso didático à disposição da maioria dos professores. Porém, algumas mudanças estão em curso. A imagem do professor e do aluno O curso de graduação em História não é o fim da formação do professor, a continuidade dos estudos é necessária para o aprimoramento e o contato com as novidades que a pesquisa traz para a área. A atualização constante requer a leitura constante e a participação em eventos científicos. Estas questões esbarram Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 135 em um problema que aflige o professor de História na atualidade: o excesso de tarefas. Ter vários empregos para complementar a renda, trabalhando em várias escolas, ter excesso de turmas com excesso de alunos, geralmente é o cotidiano do professor de História hoje. A falta de tempo e de dinheiro é um sério impedimento para que o professor invista na sua qualificação profissional. Modelo de aula medieval em que o professor era o dono do saber. Fonte: http://4.bp.blogspot.com Apesar de todos os problemas inerentes a sua profissão, a imagem do professor de História mudou. O professor era encarado como um difusor e transmissor de conhecimento, isto é, alguém especializado pesquisava e publicava e o professor só era capaz de transmitir este conhecimento aos seus alunos. Agora o professor é visto como um produtor de saberes e fazeres, afinal ensinar é fabricar artesanalmente o saber. Duas coisas são esperadas do professor: que ele tenha competência acadêmica (domínio do saber) e competência pedagógica (domínio da transmissão do saber). 136 Introdução ao Estudo Histórico Do mesmo modo, a condição do aluno mudou de receptáculo de informações para um ser capaz de aprender o saberfazer. A tarefa do professor é ensinar o aluno a levantar questões e a participar do processo do fazer, do construir a História. O professor não é o dono da verdade, embora tenha que conhecer mais do que o aluno, deve considerar que o estudante também obtém informações a partir de leituras, dos meios de comunicação etc., e que nem sempre o professor consegue acompanhar tais novidades. O desafio enfrentado pelos profissionais em sala de aula em relação ao fazer histórico e ao fazer pedagógico é como realizar a transposição didática dos conteúdos. A transposição didática é a capacidade de transformar os conteúdos em algo acessível para os alunos, ou seja, transformar o saber científico em um saber ensinar. Este é um processo de criação e não simplificação ou redução de conteúdos. O professor de História deve realizar na sala o ofício do historiador, colocando os alunos em contato com os registros históricos e estimulando a reflexão sobre estes. A apropriação do conhecimento requer a compreensão do seu processo de elaboração. A transposição didática também pressupõe trabalhar a compreensão e a explicação histórica. Novos Procedimentos Através da problematização de algumas questões levantadas pelos historiadores, por meio das indagações Por quê? Como? Onde? Quando?, os alunos podem encontrar significado nos conteúdos que aprendem. Deve-se salientar que, em História, existem muitas questões sem respostas e há inúmeras interpretações possíveis dos fatos históricos. O ensino tradicional limitava o ensino a causas e consequências, levando à falsa noção da previsibilidade dos acontecimentos. O estudante deve ser alertado que a análise causal Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 137 comporta a noção de multiplicidade de causas. Os eventos históricos possuem um emaranhado de causas e nem todas elas são passíveis de serem conhecidas. Os alunos devem compreender as mudanças e as permanências, ao invés de estarem preocupados com causas e consequências. O historiador manipula as características do tempo: sucessão, duração e simultaneidade. A periodização é só uma forma de classificar a transformação histórica das sociedades. Deve-se atentar para as especificidades temporais de cada povo, cada nação. O aluno deve ter contato com o documento para melhor refletir. O uso da fonte documental é uma oportunidade do estudante perceber como ocorre a construção do conhecimento histórico. Hoje, existem inúmeras publicações com trechos de documentos de todos os períodos históricos, facilitando a vida do professor. Devem-se diferenciar os estudos dos documentos propriamente ditos. Estudos são os trabalhos de pesquisa histórica, livros, artigos etc. produzidos para a divulgação do saber. Documentos são os registros contemporâneos aos acontecimentos, isto é, produzidos na mesma época. Os professores também dispõem das modernas inovações tecnológicas para realizar a transposição didática. A imprensa, a televisão, o vídeo, o computador etc. são meios importantes para o aluno ter acesso à História e praticar a reflexão histórica. Todas as questões discutidas até aqui visam refletir sobre o ensino de História, como uma atividade agradável, e sobre a possibilidade de o aluno ter acesso à pluralidade de realidades presentes e passadas. 138 Introdução ao Estudo Histórico Texto Complementar A problematização histórica, ao ser transposta para o ensino, traz múltiplas possibilidades e também questionamentos. Pode simplificar desde a capacidade mais simples de construir uma problemática em relação a um objeto de estudo, a partir das questões postas por historiadores e alunos; pode também significar simples indagações ao objeto de estudo: Por quê?, Como?, Onde?, Quando? Na prática da sala de aula, a problemática acerca de um objeto de estudo pode ser construída a partir das questões colocadas pelos historiadores ou das que fazem parte das representações dos alunos, de forma tal que eles encontrem significado no conteúdo que aprendem. Dessa maneira pode-se conseguir dos educandos uma atitude ativa na construção do saber e na resolução dos problemas de aprendizagem. É preciso que se leve em consideração o fato de que a História suscita questões que ela própria não consegue responder e de que há inúmeras interpretações possíveis dos fatos históricos. Nesse caso, a problematização é um procedimento fundamental para a educação histórica. A análise causal é outro elemento a ser destacado. O ensino tradicional explicava a História a partir da identificação das causas longínquas e imediatas dos fatos históricos. A partir desta visão de ensino e do próprio conhecimento histórico, as noções de casualidade levaram, muitas vezes, a uma perspectiva teleológica e intencional da História. Sem perder de vista a complexidade desta questão, é importante possibilitar aos alunos a compreensão de que os acontecimentos históricos não podem ser explicados de maneira simplista. É necessário fazê-los entender que numerosas relações, de pesos e características diferentes, interferem em sua realização. Ainda mais, é preciso buscar a explicação na multiplicidade, na pluralidade e no encadeamento de causalidades, sem a preocupação com a determinação finalista de causa-acontecimentoconseqüência. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 139 Na História, como em outras Ciências Sociais, a questão da causalidade é bastante complexa, por isso “as causas em História, naquilo que poderíamos chamar em sua acepção tradicional, vêm a ser somente as condições necessárias para o aparecimento do efeito” (DOMINGUES). Muito mais que as determinações causais, é importante levar o educando à compreensão das mudanças e permanências, das continuidades e descontinuidades. Essas noções são fundamentais na sua educação histórica e exigem, por parte do professor, uma grande atenção aos diferentes ritmos dos diferentes elementos que compõem um processo histórico, bem como às complexas inter-relações que interferem na compreensão dos processos de mudança social. Ademais, o procedimento histórico comporta a preocupação com a construção, a historicidade dos conceitos e a contextualização temporal. Entende-se que da mesma forma que o passado está incorporado em grande parte aos nossos conceitos, ele também lhes dá um conteúdo concreto. Assim, todo conceito é criado, datado, tem a sua história. Portanto, a construção dos conceitos, como Renascimento, humanismo, totalitarismo, faz parte dos procedimentos no ensino da História. Trata-se de um trabalho de elaboração de grades conceituais que poderão, de alguma forma, permitir que o aluno analise, interprete e compare os fatos históricos, construindo a sua própria síntese. Existe um consenso entre a maioria dos historiadores de que o passado não pode ser resgatado tal qual aconteceu, ele só pode ser reconstruído em função das questões colocadas pelo presente. Assim, também é consensual que, para reconstruir o passado, o historiador manipula as características essenciais do tempo: a sucessão, a duração, a simultaneidade. Além disso, os próprios historiadores têm reconstruído o passado a partir de periodizações e recortes temporais, bem como tentado apreender a temporalidade própria das várias sociedades. 140 Introdução ao Estudo Histórico Assim, dominar, compreender e explicitar os critérios de periodização histórica, das múltiplas temporalidades das sociedades, tornar efetiva a aprendizagem da cronologia, são também desafios do procedimento histórico em sala de aula. Finalmente, um dos elementos considerados hoje imprescindíveis ao procedimento histórico em sala de aula é, sem dúvida, o trabalho com as fontes ou documentos. A ampliação da noção de documento e as transformações na sua própria concepção atingiram diretamente o trabalho pedagógico. Segundo os princípios da História, denominada positivista, e numa perspectiva tradicional do ensino, o uso escolar do documento tem servido para destacar, exemplificar, descrever e tomar inteligível o que o professor fala. A partir das renovações teórico-metodológicas da História, bem como das novas concepções pedagógicas, o uso escolar do documento passou a estimular a observação do aluno, a ajudá-lo a refletir. O aluno tem sido levado a construir o sentido da história e a descobrir os seus conteúdos através dos documentos, porque o conhecimento não deve ser fornecido exclusivamente pelo professor (LEDUC, ALVAREZ- MARCOS, LEPELLEO). As mudanças têm sido importantes para fazer com que os alunos passem da análise, observação e descrição do documento para uma fase em que este sirva para introduzi-lo no método histórico. Outro aspecto a destacar é que tais mudanças podem levar à superação da compreensão do documento como prova do real, para entendê-lo como documento figurado, como ponto de partida do fazer histórico na sala de aula. Isso pode ajudar o aluno a desenvolver o espírito crítico, reduzir a intervenção do professor, e diminuir a distância entre a história que se ensina e a história que se escreve. FONTE: SCHMIDT, Maria A. “A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula”. In: BITTENCOURT, C. (Org.) O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p.60-62. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 141 Para Refletir • Discuta com os seus colegas no fórum do AVA as seguintes questões: • Quais foram as duas mudanças básicas ocorridas com a renovação do ensino de História? • Após a renovação do ensino, como o professor de História e o aluno passaram a ser encarados? • O que significa a “transposição didática”? • Como usar o documento na sala de aula? RESUMO DO TEMA IV Neste tema estudamos o que são fontes históricas, a sua diversidade, história da usa utilização e as maneiras de lidar com elas. Vimos a diferença entre narrar o acontecimento e explicar as estruturas, destacando as visões da nova história sobre um procedimento denominado narrativa densa. Em seguida, discutimos algumas questões dos passos da pesquisa, desde a escolha do tema até a confecção do texto final. Por fim, mencionamos alguns dilemas do ensino de história na atualidade, as visões sobre o que é ser professor de história e aluno, e os procedimentos para uma boa transposição didática. 142 Introdução ao Estudo Histórico Referências BACELLAR, C. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes históricas. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. BITTENCOURT, Circe. (Org.) O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2003. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. BURKE, P. A Escola dos Annales – 1929-1989: a revolução francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1997. CAIRE-JABINET, M-P. Introdução à historiografia. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003. CARBONELL, Charles Olivier. Historiografia. Lisboa, Portugal: Teorema, 1987. CARR, Edward Hallet. O que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. CHESNEAUX, jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995. FUNARI, P. P. Os historiadores e a cultura material. in: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. Tema IV | História: fontes, escrita, pesquisa, ensino 143 HERÓDOTO. História: estudo crítico por Vitor de Azevedo. 2. ed. São Paulo: Ediouro, 2001. HOBSBAWN, Eric. Sobre a história. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. JANOTTI, M. L. O livro fontes históricas como fonte. In: PINSKY, C. B. (org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003. LUCA, T. R. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. REIS, J. C. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996. SILVA, M. A. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 1995. 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