3.1 PRINCÍPIOS DE BASE PARA UM TRABALHO COM A

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3.1 PRINCÍPIOS DE BASE PARA UM TRABALHO COM A
3.1 PRINCÍPIOS DE BASE PARA UM TRABALHO COM A LITERATURA INFANTIL
Nelly Coelho3 é pioneira nos estudos sobre o ensino da literatura no Brasil, e a experiência tem se
transformado, ao longo dos anos, em baliza para as reflexões a respeito do assunto. Em consequência, o amadurecimento dos conceitos e da aplicação da literatura na escola está sintetizado nos princípios que passamos
a apresentar e discutir.
3.1.1 A CONCEPÇÃO DA LITERATURA COMO UM FENÓMENO DE LINGUAGEM
A literatura, que tem o imaginário e a ficcionalização como elementos constituintes de sua identidade,
transforma a realidade em linguagem. Essa transformação resulta em que o texto escrito se "re-insere", graças
à leitura, novamente no real. O percurso realidade —> literatura —> realidade tem a ver com o desempenho do
leitor e o modo como ele utiliza seu repertório de experiências vividas, ouvidas, lidas e imaginadas para
converter a linguagem escrita em significação e sentido. Para tanto, o leitor irá buscar, no âmbito das
convenções sociais, nas relações de poder, na cultura e em todas as suas linguagens (música, cinema, teatro,
artes plásticas e outros), além de sua experiência de vida, a compreensão das ideias expressas pêlos textos
literários.
Trata-se de caminho de muitas vias: o que o leitor já traz em seu repertório aplica aos textos e acresce
ao repertório, além de devolver à comunidade dos leitores os sentidos que conseguiu produzir no ato de ler.
Por sua vez, o autor também está sujeito às mesmas condições políticas, sociais, culturais e pessoais que
direcionaram as escolhas que fez para compor seu texto. Esse movimento de formas e sentidos acaba por
inserir-se no contexto social e cultural, que se altera e fica à disposição dos escritores para uma outra (e
nova) formatação. Então, o ciclo da leitura é acionado novamente.
3.1.2 O PODER DA PALAVRA
A literatura é a arte da palave e, como tal, tem na linguagem verbal sua matéria prima. Os efeitos causados
pêlos extos literários, tal como emoções, informações, reflexões e percepções em geral, só podem tornar-se
acessíveis aos leitores por intemédio das palavras escritas ou orais (no caso da literatura não escrita, da
poesis popular, da contação de histórias e de outras formas orias). |
A compreensão do texto literário se dá à medida que o leitor domina com maior suficiência e independência
seus signos. O texto literário coloca em primeiro plano a linguagem, mas há textos que também o fazem e
não são literários, como, por exemplo, a publicidade. É que esse privilégio dado à linguagem também tem a
ver com uma segunda característica complementar: a de que a organização dessa linguagem é complexa por
tratar simultaneamente de vários fatores, componentes e relações. Por exemplo, a poesia e a narrativa
estabelecem uma ré- ' lação ficcional e inventada com a realidade, ao mesmo tempo em que propõem uma
reflexão sobre os modos com que ela, a realidade, se apresenta aos seres humanos. É complexa porque
busca o efeito do todo
numa linguagem que se apoia na integração, na harmonia, na tensão ou na dissonância de seus elementos.
Como ensina Culler, "estudar a literatura (...) é olhar, sobretudo a organização de sua linguagem, não tê-la
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como expressão da psique de seu autor ou como o reflexo da sociedade que a produziu."
3.1.3 O PAPEL DO LEITOR
A literatura está constituída por três componentes indissociáveis: o autor, a obra e o leitor. Cada um deles
merece atenção, pois é da sintonia entre eles que a literatura atinge sua realização adequada. O autor, ao
construir o texto de imaginação em linguagem criativa, propõe ao leitor um desafio e um contrato. O desafio é
viver a aventura de ler e conhecer. O contrato estabelece que o leitor concorda em considerar como veros-símil
o que lê, mesmo sabendo que se trata de um texto ficcional.
O texto é, por sua vez, a parte concreta e indispensável ao encontro de dois pensamentos e dois
pensadores: o autor e o leitor com seus processos de interpretação do real e da linguagem literária.
No século XIX, o autor estava em evidência e a interpretação visava encontrar na literatura a influência da
biografia e do contexto histórico do escritor. Texto e leitor ficavam em plano secundário.
Na metade do século XX, o texto assume o primeiro plano: fala-se de imanência do texto, isto é, ele
passa a ser a única preocupação dos críticos, dos teóricos e dos leitores. As respostas para indagações
de forma e conteúdo devem ser encontradas apenas no texto literário. O objetivo era identificar as
estruturas textuais que tornavam possível a interpretação.
A partir de 1967, com professores da Escola de Constança, na Alemanha, ganha força a teoria da
recepção, ao propor que todo o sentido do texto nasce do leitor, de sua história pessoal de leituras e da percepção que tem do texto que lê. Se o leitor não conseguir entender o que lê, então o texto literário perde sua
força. A interpretação da obra (sua recepção, portanto) é que indica a importância do texto para a história da
literatura, e não a experiência de vida do autor.
Essa mudança de perspectiva é responsável pela valorização que se dá atualmente ao trabalho de
compreensão de textos pelo leitor, o modo como ele percebe e avalia o que lê. Convém lembrar que, mesmo
com a valorização do leitor, o texto continua sendo o motivador, o início e a base de toda a interpretação. O
leitor não tem a liberdade de propor qualquer significação para um texto: é preciso haver negociação dos
sentidos entre leitor e obra.
3.1.4 A ESCRITA E A L EITURA
Ler e escrever são ações complementares. Um bom escritor é, sobretudo, um bom leitor. Os textos, por sua
vez, estão sempre em conexão com outros textos. Uma obra literária se insere numa cadeia de textos
literários, que continuadamente estão se citando, se relacionando em termos de ideias e de formas. Nenhum
texto é totalmente original, pois nasce e reproduz outros textos conhecidos e lidos pelo escritor. Desse modo,
é possível compreender a noção de escrita enquanto "ato-fruto de leitura assimilada", como esclarece Nelly
Coelho5. Há uma ciranda de textos em cada obra literária que lemos. Essa concentração faz com que, quanto
mais o leitor entra em contato com os textos da história da literatura e de sua contemporaneidade, mais ele é
capaz de estabelecer vínculos, de descobrir relações de semelhança e de confrontar ideias expressas no
texto que lê com ideias conhecidas de outros textos.
De forma semelhante, é possível apreender a relação que uma obra estabelece com outras formas
culturais, como o cinema, a música, o teatro. Muitas são as fontes em que um escritor vai buscar a seiva
que irá alimentar sua obra literária. As suas experiências estéticas acabam por manifestar-se nos textos
que constrói, seja no enredo, seja nos personagens, seja na linguagem adotada.
3.1.5 LITERATURA E LIBERDADE INTERIOR
A valorização do modo especial e particular que a literatura tem de se manifestar e construir equivale a uma
declaração de liberdade. O escritor compõe sua obra a partir de motivos pessoais, que podem ser compartilhados por muitos escritores. No entanto, cada um deles escreve à sua maneira. Isso significa que não
existe um modelo único e exclusivo de expressar ideias semelhantes. Tal impossibilidade de repetição devese ao fato de que a arte literária, como toda arte, existe porque há liberdade de criação formal.
Há, no entanto, uma outra dimensão de liberdade que é a de pensamento e imaginação. Nessa perspectiva
e sobre esse assunto, podemos afirmar que nada impede que o artista possa, entes, durante e ao final de sua
obra, criar sem pereconceitos nem exigências.
A literatura é uma instituição paradoxal porque criar literatura é escrever de acordo comjormulas existentes —
produzir algo que parece ura soneto ou que segue as convenções do romance — mas é também zombar dessas
convenções, ir além delas. A literatura é uma instituição que vive de expor e criticar seus próprios limites, de testar o
que acontecerá se escrevermos de modo diferente.6
A liberdade formal, o desejo de ultrapassar convenções e de buscar o diferente e o incomum caracterizam
também uma realização de ordem pessoal, de vez que atendem ao desejo mais íntimo do escritor de deixar
registrada sua marca pessoal na história da literatura, seja para adultos, seja para crianças.
Essa capacidade de criação por meio da palavra é que, segundo Nelly Coelho, confere satisfação e
fecundidade à realização pessoal do escritor. Em consequência desse aspecto, para ser criativo, renovador,
diversificado, o trabalho do professor em sala de aula deve acompanhar essa capacidade de criação do texto
literário.
3.1.6 A VALORIZAÇÃO DA ILUSTRAÇÃO
A atualidade apresenta para as crianças uma variedade de discursos formulados em linguagens verbais e não
verbais, como a publicidade, o cinema, a televisão. Entre as linguagens não verbais sobressai a imagem,
considerada hoje inseparável do texto em palavras no livro de literatura infantil.
Dessa luta entre diferentes textos poderá, entretanto, sair uma metodologia de leitura produtiva. Glória
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Ponde e Eliana Yunes defendem a ideia e qualificam a leitura como "uma porta de comunicação com o
mundo". Como toda porta, a leitura tem a face de entrada e a de saída. E a noção de tr ânsito que torna pleno
o sentido da porta. Por isso, o professor-formador-de-leitores necessita conviver com o universo de leituras
existente, conhecê-lo e dele extrair as iscas com as quais irá pescar seu leitor crítico.
Entendendo a leitura, num enfoque semiótico, como a interpretação e a atribuição de sentidos aos textos
da realidade, aí compreendidos a publicidade, os quadrinhos, a televisão, o cinema, a música, o hiper -texto,
por exemplo, o professor não pode desprezar textos visuais e auditivos que compõem indissoluvelmente o
cotidiano dos alunos, já que não são veículos e/ou produtos passageiros. Instalaram -se na vida deles, e nela
ocupam um espaço-tempo muito maior do que a leitura de textos escritos e de livros. Faz parte de sua génese
servirem à sociedade capitalista de que se sustentam. Como tal, sua linguagem e mensagens estão coladas
aos interesses de classe e de lucro que, em sua agressividade, ficam por demais expostos; e, cientes de sua
força, crêem-se im-batíveis. A todos os valores alardeados correspondem seus contrários, numa dinâmica
dialética que permite sempre a intromissão de valores antagónicos, com os quais acabam por se confrontar e
que nem sempre conseguem derrotar, como podemos observar quando, convencida, a criança combina
essas linguagens com a leitura do verbal, no formato do velho e bom livro. As fissuras da ideologia dominante
e da pressão dos meios tecnológicos de comunicação massiva permitem a atuação do leitor crítico, seja ele o
professor, seja ele o aluno.
O cinema, antes arte coletiva, domesticou-se. De classe A a Z, as fitas em vídeo fizeram aliança com férias,
pipocas, madrugadas e bem-estar doméstico. O aparelho de DVD e a TV digital são objetos do desejo de
qualquer telespectador. Ocupam honroso lugar nos indicadores económicos e nos definidores do prazer e do
imaginário. A acessibilidade prática e a acessibilidade de compreensão se unem para transformar o cinema em
casa num substituto do cinema em grandes espaços. Essa sucessão de tecnologias encontra paralelo nos
folhetins lidos durante os saraus domésticos no século passado, que não impediram, contudo, a criação de
obras-primas da literatura. Assim, o aparelho de DVD e a TV digital não eliminam a leitura —, de vez que um
filme é também um exercício de leitura —, mas, sim, permitem o trabalho de correspondências e comparativismo que a escola, por vezes temerosa, esquece de fazer.
A presença dessas linguagens artísticas encontra uma outra forma de realização na ilustração dos livros
infantis. Desempenhando diferentes funções e com qualidade artística diferenciada, hoje ela integra o livro
infantil como se tivesse sido sempre sua companheira fiel. No entanto, a imagem ilustrada do livro foi aos
poucos tomando espaço entre as páginas escritas. Contribuiu para sua presença mais intensa o desenvolvimento gráfico, com máquinas e recursos que permitem a impressão mais colorida, perfeita e a reprodução
mais rápida. Também a escola, com a supervalorização da imagem, principalmente em livros oferecidos à
criança em fase de alfabetização, com maior dificuldade de praticar a leitura individual, ajudou a disseminar a
ideia de quanto a ilustração pode contribuir para facilitar a construção da interpretação do leitor.
Convém acentuar que a ilustração é mais um dos componentes visuais do livro infantil. As letras, a
apresentação gráfica, as capas do livro e o próprio formato dele se constituem em imagens visuais que
provocam a interpretação do leitor. Imagine se as letras trocassem de posição aleatoriamente, se não
houvesse o espaço entre os parágrafos, fazendo com que eles se emendassem uns aos outros. Imagine uma
capa de livro toda branca, sem letras, sem imagens. Que diferenças de entendimento provocam livros em
tamanho de uma caixa de fósforos ou grandes como um tampo de mesa para duas pessoas? Ou um livro
enrolado como um grande rocambole de letras? Ou uma tela iluminada em formato de livro de mão, como os
e-books? São tamanhos e formas que realmente existiram na história do objeto livro. A visão de cada um deles
transforma o modo como nos posicionamos para ler e o sentido que atribuímos a eles: mais imponente, mais
verdadeiro, mais caro, mais colorido etc.
Há nos livros marcas da história dos modos de ler, marcas de leitores desde os tempos remotos. A história
do livro permite conhecer a história das culturas e de seus praticantes. Até mesmo a inexistência ou a raridade
dos livros impressos dá conta da importância que se deu à leitura de textos escritos em diferentes momentos
da história humana.
Por isso, Nelly Coelho salienta a importância da imagem como um dos princípios do trabalho com a
literatura infantil, como vemos neste item 6 de sua classificação: há uma relação estreita entre a imagem do
livro, a imagem no livro e a imagem que as palavras formam na mente do leitor ao ler qualquer texto. Todas
essas imagens constituem representações do mundo e da história. Por essa razão, a autora se refere à ligação
entre ilustração-imagem visual e a descoberta do mundo que ela representa toda vez que o faz de modo
diferente, provocando o "olhar de descoberta" do leitor diante da estranheza das novas visualidades.