ARTE PÓS-MODERNA EM MARCELO D2
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ARTE PÓS-MODERNA EM MARCELO D2
ARTE PÓS-MODERNA EM MARCELO D2 ART POSTMODERN IN MARCELO D2 Cleber Augusto Gonçalves Dias Wecisley Ribeiro do Espírito Santo “Resistência cultural, casa do caralho”. Marcelo D2 RESUMO Neste trabalho temos o propósito de debater algumas repercussões e implicações do advento do conceito de pós-modernidade nas artes a partir de um estudo de caso bem específico e concreto na esfera da música: o DVD acústico do cantor Marcelo D2 lançado há pouco mais de um ano pela emissora MTV. Na primeira parte pretendemos apontar alguns critérios conceituais e metodológicos acerca da arte na pós-modernidade e da fertilidade na utilização de linguagens culturais como suporte de reflexões sociológicas mais gerais; da possibilidade de análise mais contextualizada a partir de um caso empírico. Na seqüência deste esforço reflexivo tentaremos identificar as repercussões e representações pós-modernas no caso específico por nós selecionado. Alguns destes elementos serão analisados à luz do conceito de collage. Por fim, procuraremos encaminhar alguns aspectos para o debate acerca do caráter político na arte pós-moderna quando não na própria pós-modernidade. e ainda mais especialmente a questão de se tal processo constitui uma superestrutura do capitalismo tardio ou se este é um processo ambivalente com potencialidades transformadoras – que dessa forma, deixa espaço para a atuação de grupos periféricos no contexto das relações de poder. PALAVRAS-CHAVES: pós-modernidade; arte; música. 1- INTRODUÇÃO Nos dias de hoje, deparamos-no, cotidianamente, com algumas recentes e profundas transformações na maneira de se produzir e consumir bens culturais. É algo que se sobressai até mesmo aos olhos do observador social mais displicente. O nível e o alcance de tais transformações parecem compor uma realidade incontornável. De que se trata afinal? Um número consideravelmente grande de intelectuais, seguindo Lyotard, tem defendido que o conjunto destes processos sociológicos deve ser denominado pós-modernidade, por se tratar de uma ruptura com os valores da modernidade (LYOTARD, 2002; BAUMAN, 1998). Anthony Giddens (1991), por outro lado, sustenta que os fenômenos averiguados não constituem, em verdade, um abandono do habitus moderno; tais fenômenos parecem ser antes uma radicalização do mesmo habitus e, por isso, devem ser chamados com mais propriedade de alta modernidade, supermodernidade ou modernidade tardia.1 Para além da discussão conceitual algumas características podem ser elencadas a partir de uma observação empírica. Redescoberta do conhecimento local em detrimento dos grandes modelos teóricos; desregulamentação das diversas esferas da vida humana (BAUMAN, 1998); aprofundamento de intercâmbios culturais em profusão e ritmo jamais vistos; colagem cultural; ocaso da crença em uma teleologia do progresso no contexto da história humana; abandono da razão instrumental como o núcleo estruturante dos processos humanos; desconfiança em relação à pretensão de objetividade científica (e porque não dizer, à pretensão de objetividade de qualquer prática de representação do mundo, incluindo a representação artística); enfim, incredulidade diante das grandes metanarrativas da modernidade2 (LYOTARD, 2002). No contexto deste debate, perfilhamos a posição que entende estas características de forma formidavelmente inovadoras, cujo conjunto é com mais propriedade designado como pós-modernidade. A questão que se coloca mais especificamente é: quais seriam as implicações desse processo sociológico no campo da atividade artística? Este artigo tem o propósito de debater algumas dessas implicações a partir de um exemplo concreto na esfera da música. Qual seja, o DVD acústico do cantor Marcelo D2 lançado há pouco mais de um ano pela emissora MTV. Na primeira parte pretendemos apontar alguns critérios conceituais e metodológicos acerca da arte na pós-modernidade que nos permitam analisar, de forma mais contextualizada, o caso empírico a que nos propomos abordar em seguida. 1 A esse respeito ver também AUGE (2003) e LIPOVETSKY e CHARLES (2004). Esta incredulidade é também encarada por Giddens como uma continuidade. Para aprofundar o tema ver Giddens (1991). 2 Na seqüência deste esforço reflexivo tentaremos identificar as repercussões e representações pós-modernas no caso específico por nós selecionado. Alguns destes elementos serão analisados à luz do conceito de collage. Em seguida a este estudo de caso procuraremos encaminhar alguns aspectos para o debate acerca do caráter político da pósmodernidade. Especialmente focaremos na questão de se tal processo constitui uma superestrutura do capitalismo tardio ou se este é um processo ambivalente com potencialidades transformadoras – que deixa espaço para a atuação de grupos periféricos no contexto das relações de poder. Também aqui nosso exemplo será particularmente profícuo no que diz respeito à instrumentalização do fenômeno denominado collage para a ocupação de um lugar de destaque da cultura Afro-brasileira no cenário cultural brasileiro. Este último ponto deverá transitar ainda pelo debate de se a representação de vozes até então destituídas de instrumentos de expressão, no contexto da collage, constitui um avanço significativo na luta pela supressão das assimetrias de poder; ou se, pelo contrário esta representação é antes uma apropriação mercadológica da indústria cultural. Neste contexto pretendemos trabalhar com os instrumentos conceituais de Adorno e Horkheimer (1985) e Pierre Bourdieu (1997). 2- ARTE PÓS-MODERNA: ASPECTOS TEÓRICOS - METODOLÓGICOS. No capítulo VIII de O mal-estar da pós-modernidade, Zygmunt Bauman (1998), logo no início, afirma que “o que quer que o significado da nova música possa trazer não é facilmente captado por aqueles que a ouvem” (p.131). Evidencia-se assim a natureza sobremodo complexa da dinâmica dos significados musicais na pós-modernidade. Parece que esta dificuldade hermenêutica intrínseca à nova música tem que ver fundamentalmente com um processo de abandono dos cânones clássicos. Ou um abandono da norma – um processo de de-existência do estilo, de um padrão orientador do processo de criação artística. Pierre Boulez (apud., BAUMAN, op cit.) constata que “as obras musicais tenderam a se tornar eventos únicos”. Ora, a arte musical, neste contexto, retoma o estatuto mesmo de arte, no sentido literal de obra de um artífice, um produtor único e sui generis. Sustentamos tal afirmação apoiados em Adorno e Horkheimer (1985) para os quais o estilo já é em si antagônico a qualquer pretensão artística na medida em que instaura a reprodução como imperativo da criação. Para cita-los: A industria cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. O denominador comum “cultura” já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração (p. 23. Grifo nosso). A reprodução é obviamente uma prática que nada possui de especificidade, de autenticidade. Talvez seja interessante notar, a título de elucidação, que reprodução nada tem á ver com o conceito marxista de “tipicidade” na arte, introduzido por Lukács. Diz ele: Posto que a concepção dialética resume [...] numa móvel unidade o universal, o particular, o singular, está claro que esta sua peculiaridade deve se manifestar também nas formas específicas da arte. De fato, contrariamente á ciência, que resolve este movimento nos seus elementos abstratos e que tende a definir conceitualmente a ação recíproca destes elementos, a arte o faz intuir sensivelmente enquanto movimento na sua evidente unidade. Uma das categorias mais importantes desta síntese artística é a do tipo. Não por acaso, portanto, Marx e Engels recorrem em primeiro lugar a este conceito quando se trata de definir o verdadeiro realismo (apud. DELLA VOLPE, 1980, p.51. O grifo é nosso). A tipicidade é, portanto, um conceito que permite diferenciar a atividade artística da científica por meio da introdução da sensibilidade na atividade intelectual – da percepção orgânico-corporal dos elementos sócio-culturais-estruturais de um dado momento histórico. Daí que esta percepção permita sintetizar o universal (aqueles elementos estruturais) com o específico (a contribuição propriamente criativa do artista) na atividade artística, formulando uma obra típica de um tempo. Esta tipicidade nada têm a ver, como já afirmado, com a submissão aos cânones do estilo denunciadas por Adorno e Horkheimer. Interessante notar aqui que a hipótese de uma captação de aspectos estruturais de um dado momento histórico pelo artista é compartilhada tanto por marxistas como por teóricos culturalistas da arte pós-moderna tal como Renato Cohen (2002). Uma constatação formulada por Mattelar e Neveu (2000), que dizem que “mesmo entre os mais conservadores, observa-se uma forma de sensibilidade moderna, antropológica, ao cultural, que integra os estilos de vida, a estética da cotidianidade” (p. 35). Em outras palavras, trata-se do cultural turn; um processo de valorização e incorporação da idéia de cultura no âmbito das ciências humanas, observado de maneira particularmente mais intensa a partir da década de 80. Contudo, é preciso apontar aqui importantes diferenças no tratamento teórico e metodológico oferecido ao fenômeno “cultura” pelas diversas matrizes do pensamento científico. De um lado temos a compreensão de que a cultura é algo que emerge como um bem transcendental em relação aos aspectos da vida cotidiana, da economia ou da política. Esse tipo de abordagem, identificada no final do século XIX sob o desígnio de um humanismo romântico, encontra seus principais representantes nas figuras de Thomas Carlyle e Matthew Arnold. Já, de maneira mais diretamente ligada as ciências sociais, encontramos o idealismo hegeliano – sobretudo seu conceito de “geist” (espírito) – que dá origem a uma série de outras formulações conceituais que dão, em alguma medida, autonomia a dimensão cultural. É assim com Émile Durkheim e Talcoltt Parsons na sociologia, com suas noções de “consciência coletiva” e “sociedade”, respectivamente. No mesmo sentido, a teoria marxista, com sua metáfora de base e superestrutura que resulta, no hoje tão criticado, determinismo economicista. E na antropologia com Alfred Kroeber e Robert Lowie através da formulação do “supra-orgânico”. Todas essas proposições, cada uma a seu modo, acabam desvencilhando a cultura de qualquer possibilidade de ligação com o mundo real, onde de fato, as pessoas produzem e reproduzem suas vidas. Todas essas preposições acabam conferindo uma atmosfera autônoma à cultura, que, nesse caso, seria capaz de gerar (autonomamente) suas próprias formas; independentemente da vontade dos homens. Ao homem é atribuído um papel secundário, passivo e impotente. A cultura compreendida nesses termos rejeita e ignora a importância das ações humanas ou como afirma Peter Burke (2002), “não se preocupam com pessoas, mas sim com estruturas” (p.153). Sob essa modulação teórica, a cultura transfigura-se em uma “entidade mística”, alheia dos acontecimentos concretos; fora da própria sociedade confundindo anonimato com autonomia. A cultura, entendida como entidade transcendental – e que por isso mesmo adquire uma propriedade sui generis - pode ser elevada a uma condição de repositário dos valores humanos fundamentais, universais e absolutos; comuns a nossa própria humanidade. Sua função, sob essa perspectiva, é a de salvaguardar esses mesmos valores fundamentais, universais e absolutos. Como formulou F. R. Leavis (CEVASCO, 2003): “cabe ao mundo da cultura vigiar o campo da sociedade em nome do humano” (p. 36). Dito de outra forma, o caráter autônomo e transcendental da cultura acaba por reificá-la; canonizar um modelo, tornando-o hegemônico. O resultado mais tangível desse processo é, curiosa e paradoxalmente, o obscurecimento de algumas importantes questões acerca das dinâmicas culturais, como, por exemplo, o processo de estratificação e subordinação social; ou ainda, os conflitos e divergências de interesses expressos na atribuição de valores e significados a uma cultura, que, diga-se a tempo, é sempre permeada de interesses específicos e particulares. Em suma, os efeitos da interpretação da cultura como algo dado a priori, esvazia seu significado político. Provavelmente por isso, essas posições têm sido tão furiosamente atacadas. Nesse sentido, destacamos as considerações de Bordieu (1983) sobre os mecanismos de reprodução cultural, onde a dominação de uma classe social não operaria somente no âmbito econômico. Segundo o autor, a dominação de uma classe opera também pela cultura do vivido, ou seja, pela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver e de ouvir, de tal forma que o que as pessoas vêm a pensar e a sentir é a reprodução de uma ordem social. Trata-se, de maneira mais profunda, da vinculação das esferas materiais às imateriais ou simbólicas. Amiúde, a produção cultural, definitivamente assimilada pela produção de mercadorias em geral, passa a ser uma esfera central na reprodução social. Invade e recobre todos os espaços de sociabilidade. A economia transforma-se em cultura, ao mesmo tempo em que a cultura se transforma em economia (DEBORD, 2003). Na prática estamos falando do desaparecimento das fronteiras entre produção econômica e cultural, ou o entrecruzamento dessas duas dimensões da vida. Isso nos leva necessariamente a repensar a relação entre “alta cultura” e “cultura de massas”. Um redimensionamento – difícil e necessário - entre as fronteiras entre cultura popular, de massas e erudita. Mais precisamente obriga-nos a pensar essa relação dialeticamente, superando sua dicotomia e considerando-as fenômenos relacionados e interdependentes. Em última análise – e finalmente retomando a questão colocada inicialmente – estamos falando de problemas relacionados a interpretação da cultura como algo transcendental e sui genereis. Daí decorre a identificação de uma segunda corrente de pensamento ligada à cultura: os culturalistas. Nesse caso, a arte, a cultura e a sociedade são pensadas em conjunto; em articulação profunda e permanente, e não mais como simplesmente relacionadas. A cultura passa ser vista como um processo social que se materializa na sociedade de maneira diversificada, sendo a arte uma dessas expressões. A revisão dos modos de descrever as inter-relações entre cultura e sociedade, ou ainda, para formular em termos mais clássicos, entre a base e a superestrutura, acaba exigindo um refinamento nos modos de pensar a determinação da cultura pela base econômica. E isso constitui um aspecto teórico fundamental dos Estudos Culturais. A arte é uma forma social simbioticamente ligada à própria sociedade. A arte é algo constituído pelos processos sociais, mas que ao mesmo tempo constituem esses processos, dando-lhes forma. A cultura de uma maneira mais abrangente é pensada em termos de reciprocidade mútua à sociedade, já que é o modo de vida quem estrutura a forma assumida pela cultura, articulando seus significados e valores. Logo, a cultura é conceituada como todo um modo de vida; sendo as artes uma significativa expressão desse modo. Através das artes temos a representação simbólica dos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam a sociedade ou o grupo social, seu modo de vida, seu sistema de valores, suas tradições e crenças. A arte, como uma linguagem representacional dos sentidos, transmite significados que não podem ser transmitidos através de nenhum outro tipo de linguagem (BARBOSA, 1998, p.16). Esse tipo de empreendimento intelectual acabou se disseminando entre as diversas disciplinas das ciências humanas e seus efeitos foram notados de maneira mais explícita a partir da década de 60. No campo da produção cultural contemporânea, as trocas culturais são marcadas por essa diluição de barreiras, especialmente as barreiras fronteiriças que dividem alta cultura e cultura de massas ou entre o universo cultural do morro e do asfalto. No caso específico da música, Beatriz Resende (2002) aponta a constância e domínio do aparecimento de temas, designados por ela como “do local ao global” e o “desmanche de bordas”, na cena musical brasileira. Algo que pode ser identificado em cada compositor. Uma implicação mais concreta das renegociações dessas fronteiras, sobretudo à luz dos críticos da pós-modernidade, seria o progressivo desaparecimento da figura do artista como sujeito da sua própria produção e a eliminação da ideologia do novo, algo que teve marcante presença durante o vanguardismo3 modernista. Contudo, essas características mais gerais da cultura e da arte pós-moderna - ainda que estejamos a admitir que a pós-modernidade como tal não possa simplesmente ser designada como um estilo de época; passível de definições estilísticas – possuem uma nova tradição estética marcada pela busca do novo, ao contrário do que as mentes mais apequenadas podem pensar. Essa nova tradição estética é marcada pela utilização do passado como matéria-prima; pelo ecletismo e colagem de estilos e linguagens; enfim, pelo advento de uma nova sensibilidade profundamente marcada por novas soluções estéticas. Mais adiante retomaremos essa discussão a partir da música de Marcelo D2. Por ora, importa reter que ao sublinhar a interdependência dos elementos superestruturais à produção material, imprimiu-se uma derrocada as acepções idealistas de cultura, e o que é teoricamente mais notável, sem reduzir a complexidade da cultura aos efeitos da economia. Parece estar suficientemente claro que a cultura é uma instância de construção de significados e da veiculação de valores. E dessa forma, a análise cultural pode ser metodologicamente alocada no cerne das análises sócio-antropológicas, na medida em que na cultura, está expresso considerável e significativo número de temas sociais, a partir da sua seleção, ênfase e exclusão, sempre de acordo com interesses particulares. E esta mesmo é a nossa premissa de fundo: a idéia de que a atividade artística é condicionada pelos movimentos sociológicos mais amplos da história. Partiremos da premissa de que toda obra de arte tem dois autores: o artista e o seu tempo. E no caso específico do contexto pós-moderno, não é esta impressão da história na idiossincrasia do artista, entretanto que Bauman está denunciando como tendo se extinguido na pós-modernidade, mas antes aquela submissão às regras da norma clássica, do estilo. Feita a distinção retornemos ao debate referente á esta última questão – o abandono do estilo. Uma produção musical engendrada sem a orientação das normas estéticas conhecidas (as normas tradicionais da modernidade) encontra-se impossibilitada de 3 Também Bauman sugere o desaparecimento das vanguardas na pós-modernidade. Diz ele que o conceito de Avant-garde (posto avançado; estar à frente), é impossível em um mundo no qual não se sabe ao certo o que é à frente e atrás. julgamento, porquanto inexistem os critérios axiológicos do ato judicativo. O objeto da representação artística neste contexto, seu problema, é precisamente a procura de tais critérios normativos. A arte busca então suas linhas orientadoras; quer encontrar e representar os princípios mesmos que tornaram factível seu advento. Por isso, a obra e o texto têm a característica de um evento; surgem tarde demais para seus autores ou – o que equivale à mesma coisa – sua realização sempre começa cedo demais. O pós-moderno precisa ser compreendido através do paradoxo do tempo futuro anterior (LYOTARD, apud. BAUMAN, op. cit.). Nossa interpretação pessoal é de que, não havendo critérios norteadores para a produção artística pós-moderna, não há também um padrão de racionalidade instrumental no trabalho de criação. Os significados emanados da arte pós-moderna encobrem-se em “símbolos sensoriais”,4 para usar a caracterização de Victor Turner. Isto equivale a dizer que há expressão dos significados inconscientes (mas nem por isso menos estruturantes da vida humana) no produto artístico. Por conseguinte, com a queda da norma, talvez manifestações espontâneas de revolta, insubmissão e resistência cultural encontrem ocasião para uma explosão passional. Ou, ao gosto de Michel Onfray (2001), é um certo princípio hedonista, pulsional e orgânico, que encontra brechas para a emersão de significados antiautoritários com relação ás normas do “campo” artístico – normas estas que, segundo Bourdieu (1997), tem a função única de operar uma divisão de poder entre grupos humanos. Depois deste sumário das repercussões dos fenômenos pós-modernos no campo da arte, gostaríamos de rapidamente abordar uma característica específica do trabalho de criação artística no contexto contemporâneo. Trata-se do conceito de collage com que Renato Cohen (2002) analisa a estrutura da linguagem performática na arte. Cohen diz que a collage seria a “justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas através de seleção e picagem de imagens encontradas ao acaso em diversas fontes” (p. 60). A collage teria, em si, um caráter lúdico, remontando às brincadeiras de criança – “qualquer criança com uma tesoura na mão faz isso” (ibid.) – e sua atividade de constante releitura do mundo. A collage é também, por excelência, um desafio á ordem estabelecida. Ela desorganiza e reorganiza repetidamente as coisas sobre as 4 Os símbolos possuem dois pólos de significação – o pólo ideológico e o pólo sensorial. O primeiro abarca os significados normativos e ideológicos da tradição social; o segundo deita raízes mais profundas no inconsciente e na dimensão passional e pulsional dos seres humanos.Ver a respeito dos aspectos sensoriais e ideológicos dos símbolos o extraordinário trabalho de Victor Turner (2005). quais se concentra. Este belo trecho de J. C. Ismael (apud. COHEN, op. cit.) sintetiza muito bem esta função da collage: O colador enfraquece os deuses do Olimpo, separando uns dos outros, rearranjando-os à sua maneira, agindo como um Deus supremo capaz de impor sua vontade sem admitir a menor contestação. Para o colador a harmonia preestabelecida leva ao delírio. Cumpre-lhe buscar uma nova ordem para essa harmonia, resgatando-a das amarras prosaicas do cotidiano (p.61). A collage possui uma proximidade formidável com os processos psíquicos descritos por Freud – por exemplo, a condensação, junção de imagens, sons, ritmos e palavras díspares em uma única expressão artística que, por isso, assume uma polissemia extraordinária; o deslocamento, o processo de um significante remeter a um significado secundário além do significado naturalmente pertencente á ele, etc. É com base nesta relação da collage com a psicanálise que Cohen poderá dizer o seguinte acerca da arte pósmoderna: “Esta arte, tomando-se aqui a dialética freudiana, caminha em cima do princípio de prazer (Dionisíaco) e não do princípio de realidade (Apolíneo)” (ibid., p. 62). A collage nesse sentido parece expressar elementos estruturais da mente humana que, sem as barreiras da norma a que nos referimos anteriormente, ficam livres para emersão. Um exemplo eloqüente deste fenômeno é a função iluminadora do mundo presente na collage. Segundo Cohen o distanciamento que a collage assume frente ao mundo não vai provocar uma separação entre vida e arte, mas, “pelo contrário, vai possibilitar a estimulação do aparelho sensório para outras leituras dos acontecimentos da vida” (ibid., p. 63). Em outras palavras, a collage, por meio de uma síntese inusitada entre elementos díspares do mundo, permite uma maior compreensão das funções cotidianas destes elementos mesmos. Esta função iluminadora do mundo pertencente à prática artística da collage parece ser uma lei presente em inumeráveis práticas humanas de caráter ritual. Victor Turner verificou que entre os Ndembu, da Zâmbia (antiga Rodésia do Norte), os rituais de iniciação dos neófitos possuem características que poderíamos caracterizar como pertencentes á collage. Turner notou que a confecção de máscaras e outros artigos dos rituais de passagem que possuíam caracteres díspares entre si (combinações de características animais, humanas e vegetais, masculinas e femininas, etc.) não tinham a função de confundir os jovens e engendrar enigmas aos seus olhos, mas, ao contrário, pretendiam evidenciar as características de cada componente do ritual no mundo. Baseando-se em William James, Turner afirmará que a prática de mistura de caracteres tem sempre o papel de amplificar a leitura do mundo. James chamará isto de “Lei de dissociação por variações concomitantes” e dirá que “o que é ora uma, ora outra coisa tende a dissociar-se de ambas, transformando-se num objeto de contemplação abstrata para a mente” (p.84). Por conseguinte, a arte da collage, podemos sumariar, constitui uma atividade de criação que suscita a possibilidade de admiração do mundo, através de combinações inusitadas que remontam necessariamente ás características originais de cada elemento colado. Por fim, resta inferir que a collage não apenas aprofunda a leitura do mundo tal como se nos apresenta, mas, para além disso, resignifica o mundo em uma nova composição entre seus elementos constitutivos. O propósito fundamental da collage se encontra em explodir a configuração pré-ordenada do mundo para remonta-lo de forma desordenada. Efetuado o inventário teórico-metodológico dos conceitos orientadores deste trabalho passemos agora à interpretação propriamente dita do caso empírico por nós selecionado. Esta interpretação será efetuada em duas partes: primeiramente trataremos de evidenciar como a tipicidade artística está presente em Marcelo D2 segundo categorias nativas; em seguida procederemos a uma sobreposição do conceito de pós-modernidade ao conjunto da obra deste mesmo artista. 3- TIPICIDADE ARTÍSTICA EM MARCELO D2 SEGUNDO CATEGORIAS NATIVAS Análises culturais na contemporaneidade devem, antes de tudo, resistir aos cânones estabelecidos - que se constituem muito mais pelo que excluem do que pelo que escolhem. Nesse sentido nossa análise pretende se utilizar o máximo possível de conceitos próprios do nosso objeto de reflexão. O que pretendemos aqui é buscar nas categorias nativas de Marcelo D2 elementos que sustentem nossa hipótese de fundo – a da tipicidade artística. As letras das músicas de D2 nos servem como excelente exemplo concreto da captação do “espírito de um tempo” pelo artista. Em vários momentos ele faz questão de sublinhar a ligação da sua produção artística com a concretude do vivido. Um artista que declara em alto e bom som que “saca a cidade”; que é um “intelecto das ruas”.5 Ou ainda, um “cronista, jornalista ou coisa parecida / eu canto as coisas que vejo na minha vida”.6 Resende (2002) adverte-nos para uma importante questão, a de que “não devemos esquecer que o ficcional existe também nas músicas, que o poético muitas vezes se distancia do real-material e que o realismo não é a única das propostas artísticas” (p. 126). Contudo, em se tratando de uma música ligada ao movimento hip-hop, como é o caso da obra de Marcelo D2, é importante destacar uma característica inerente a essas canções: cantar seu cotidiano, geralmente pobre e marginalizado. O próprio D2 faz questão de destacar esses elementos: “a batida é crua e você vai a lua e as letras mermão / vêm direto das ruas”.7 Parafraseando ainda o artista, e formulando em outros termos, os versos cantados pelos Mestres de Cerimônia (MC), têm o poder de registrar o tempo, de lançar um olhar urbano, de representar as ruas no microfone. É dessa forma que essa legítima expressão artística-cultural que é o rap, e nesse caso mais especificamente o rap de Marcelo D2, vai se potencializando como fonte de interlocução da realidade. E mais ainda, como forma de expressão de uma parcela muito bem delineada da população, a saber, os jovens dos subúrbios. O samba e as expressões musicais populares são, nesse caso, “duro na queda / não é conversa fiada / é e sempre foi a voz da rapaziada”; “falando, cantando, gritando situações dramáticas, com um dialeto nato”.8 Nota-se um explícito e deliberado esforço dos artífices para instrumentalizarem a linguagem artística com potencial de denúncia, de crítica e de informação. De uma maneira geral, o samba produzido no Rio de janeiro – que como veremos, integra o projeto artístico de D2 – vêm desde 1928, com a canção “favela vai a baixo”, contando e registrando a história das intervenções urbanísticas, os problemas e belezas vividas e enfrentadas pelas populações do morro e dos subúrbios. Vêm, num esforço crescente de dar voz e visibilidade a uma realidade sempre posta à margem da sociedade. Observar as manifestações culturais produzidas é, em alguma medida, observar o próprio cotidiano. Ou como formula Resende (2002): 5 Vai vendo Samba de primeira. 7 Samba de primeira. 8 Samba de primeira. 6 se a independência própria ao universo poético permite ao compositor criar um morro mítico, adocicado pela memória ou pelo carinho, fica também evidente que são muitos os exemplos de propostas de crítica à sociedade ou aos costumes que envolvem este tema recorrente na historia da musica popular brasileira, especialmente a composta no Rio de Janeiro (p. 127). E continua a autora: “À música popular, cabe, como toda forma de arte, divertir e causar prazer, mas também comover o ouvinte – pois sem comoção de alguma espécie, seja qual for, não há arte – o faz de forma provocadora e sedutora ao apontar, mencionar, cantar as questões de seu tempo e espaço” (p. 138). Aceita a idéia das linguagens artísticas - e mais particularmente a música funcionarem como denúncia, crítica e informação, podemos então realizar uma ligação mais estreita entre esta e a literatura, tornando-as similares. Uma observação mais atenta às letras das músicas de D2, que lembremos a tempo, “vem direto das ruas”, percebe-se mais claramente seu esforço em tentar registrar o seu tempo. Cantando as coisas que vê na sua vida, fazendo um som “que mostra muito bem o que eu sou / onde cresci, onde ando, onde fico e aonde eu vou”.9 3- HIP-HOP COM SAMBA: COLLAGE DA ARTE NEGRA EM MARCELO D2 A collage pode selecionar de forma desordenada os elementos que deverão se fundir em uma mesma representação. Não obstante esta desordenação possui sempre uma intencionalidade, a orientação proveniente da inspiração do artista colador. A inspiração foca-se em um conjunto de significados e os produz sob o signo da reunificação de significantes díspares. D2, repetidamente, faz referências a esse processo de justaposição em suas obras: “Não toco como antigamente / com um banda de samba / Hoje a coisa é diferente/ é o DJ e o sample [...] acho que já deu pra entender né, já deu / É Hip Hop com Samba / É hip hop que vem do Rio de Janeiro uma batida de funk e o DJ no pandeiro”10 Talvez, o mais importante a se destacar nesse caso seja a originalidade alcançada por esses novos arranjos que, em absoluto, são reduzidas a pura cópia; ao pastiche: “novas batidas recicladas eu vejo no sample”.11 9 A procura da batida perfeita. Samba de primeira. 11 Samba de primeira 10 A utilização do passado como matéria-prima é um esforço que se percebe constantemente nas produções artísticas contemporâneas, para não dizermos pós-modernas. O próprio termo pós-modernismo é originado de um tipo de prática da arquitetura que tenta reaproveitar formas clássicas (ANDERSON, 1999). Um elemento, que mais uma vez, encontramos representado na obra de D2: “no samba de raiz onde eu me inspiro e posso buscar / minha rima e até mesmo meu laiá laiá / não têm parada que não pode / então saca só cumpadi”12; o artista busca inspiração “na raiz”. O propósito fundamental da collage se encontra em explodir a configuração préordenada do mundo para remonta-lo de forma desordenada. A collage pode selecionar de forma desordenada os elementos que deverão se fundir em uma mesma representação. Não obstante esta desordenação possui sempre uma intencionalidade, a orientação proveniente da inspiração do artista colador. A inspiração foca-se em um conjunto de significados e os produz sob o signo da reunificação de significantes díspares. A collage em Marcelo D2 foca-se na questão da afirmação de uma determinada cultura marginal – a cultura negra, quando compreendida sob uma categoria mais abrangente, indo um pouco além do rap e do próprio samba. O fenômeno pós-moderno da hibridação cultural ocasiona a oportunidade para a emersão de vozes até então silenciadas nos meios de difusão cultural. “Meu samba é duro na queda / não é conversa fiada / é e sempre foi a voz da rapaziada”.13 Na medida em que o artista se registra como ator e agente dos espaços físicos e simbólicos que percorre, tal qual Marcelo D2, este artista acaba se tornando um pouco a voz dos excluídos; uma voz dessa mesma pobreza e miséria que canta; produzindo uma estética da exclusão. “Quem representa a rua no mic? quem é? / um dos elementos que mantêm a cultura de pé / capacidade de pôr a moral do povo pro alto / na TV no rádio ou ao vivo no palco”.14 Mais do que isso, ainda faz questão de dar destaque a esses mesmos elementos que, historicamente, foram e são responsáveis pela condição de marginal: o “cabelo piaçava” e o “estilo de neguinho”. D2 parece mesmo fazer questão absoluta de deixar claro o lugar da onde fala, um artista que segue “os mandamentos da Zulu Nation”; que ama como ama um 12 Vai vendo. Samba de primeira 14 Profissão MC 13 black; fala como fala um black; anda como anda um black e usa sempre o comprimento black. Como já mencionado, nossa tese de fundo para a análise da arte pós-moderna é a de que o artista possui uma sensibilidade especial que capta, como uma antena, o espírito de um tempo; produzindo, portanto uma obra de arte “típica” (em termos Lucaksiano) deste tempo mesmo. Pela utilização deste postulado teórico podemos entender o caso específico do DVD acústico MTV de Marcelo D2. A tipicidade da arte de D2 – além daqueles já sumariados anteriormente - consiste na transparência, tanto na forma como no conteúdo, de alguns dos elementos pós-modernos da arte tal como a collage. O caso selecionado não apresenta um abandono absoluto do estilo como formulado anteriormente como um elemento da arte pós-moderna. A collage aqui é uma colagem mesma de dois estilos. Talvez isso se deva à especificidade própria dos estilos colados. Acima afirmamos que o abandono da norma ocasiona a oportunidade de emersão de significados de resistência e insubmissão frente ao poder. Não obstante, no caso em foco, a cultura popular foi, e é, historicamente um importante instrumento de desobediência ao poder instituído. O estilo aqui não é o mesmo estilo castrador da arte erudita15, que impõe a sublimação como modelo estético unitário; mas consiste precisamente, em todos os seus elementos – ritmo, harmonia, melodia, letra, dança, etc. – em uma manifestação passional e pulsional de elementos inconscientes ligados ás pulsões de vida, a Eros, como dizia Herbert Marcuse. É dessa forma que a arte posmoderna empreende seu esforço na estetização cotidiana, rumo a uma “estética generalizada” (ONFRAY, 2001). Especificamente na música pós-moderna, essas características são facilmente identificáveis. Um bom exemplo nesse sentido são as propostas artísticas lançadas por John Cage, considerado um dos pais da música pósmoderna. Cage organizou um evento multimídia no Black Moutain College que envolvia pinturas de Robert Rauschenberg, a dança de Merce, filmes, slides, rádio, poesia, música e literatura. Uma proposta artisticamente renovadora. Em uma de suas composições eletrônicas, a “Roaratorio: An Irish Circus on Finnegans Wake”, de 1979 – considerada por 15 Não desconhecemos também a circularidade presente nas várias esferas da cultura e que não permite uma divisão muito precisa entre cultura erudita e cultura popular; não obstante cremos que esta classificação guarda ainda uma certa utilidade analítica. muitos seu maior trabalho - o artista buscou combinar textos, música irlandesa e outros sons diversos. Estava lançada a base para esse tipo de musicalidade. Com isso, não queremos dizer que a música elaborada no Brasil contemporaneamente se assemelhe aquelas praticadas na Europa ou nos Estados Unidos. Nesses lugares o termos pós-modernismo tem sido utilizado basicamente sob duas perspectivas: uma que busca definição estética e estilística e outra que a associa a uma manifestação exacerbada da cultura de massas. A própria associação de nomes como Robert Rauschenberg e Andy Warhol são responsáveis por essas leituras, sobretudo nos Estados Unidos. Mas no Brasil falar de pós-modernismo assume peculiaridades muito distantes do modelo norte americano (SALLES, 2005). Essas problematizações – embora pertinentes – ultrapassam em muito o escopo desse breve estudo. Basta-nos perceber que o dub, o dancehall e o hip hop, com a sua filosofia de samplear, copiar e colar, são todas músicas pós-moderna por excelência. Hip hop com samba. Arte popular estadunidense com arte popular brasileira. D2 parece perceber neste movimento de hibridação cultural uma oportunidade única de afirmação desta parcela importante da cultura que é a arte negra. Para usarmos suas palavras: “a maldição bateu sambou nunca mais pára e tá na cara a raiz tá cravada no chão do tronco ao fruto para bee-boy fazendo a conexão e sangue bom eu disse sangue bom tem coisas que invadem o coração já disse o João não ninguém faz samba porque prefere sobre o poder da criação força nenhuma no mundo interfere e fabricado em série é o coringa do baralho resitência cultural casa do caralho e passo a passo foi tomando conta de mim é coisa fina DJ com tamborim fortaleceu meus braços abriu minha cabeça um ser humano digno aconteça o que aconteça”16 Esta miscelânea de ritmos diversos, com um MC virando partideiro, bumbo virando scratch e finalmente entrando no samba com hip hop, parece ter a função, como nas máscaras dos rituais de iniciação Ndembu, de evidenciar a especificidade de cada um dos elementos colados, neste caso, “o samba é o som e o Brasil é o lugar”. A síncrese é, portanto um poderoso instrumento de afirmação da identidade cultural do Hip Hop e do 16 A maldição do Samba. O grifo é nosso. samba, separadamente e em conjunto. “O DJ e o pandeiro, o MC é o partideiro / tem samba no meu hip hop / porque eu sou brasileiro”.17 Essa afirmação da identidade vai a direção do tema musical que Resende (2002) identifica na música popular brasileira como do “local ao global”. Trata-se de registrar a tensão permanente que existe entre as influências de outras culturas com as tradições populares brasileiras. Na prática isso significa não renunciar nem às influências diversas a que todas as culturas estão sujeitas tampouco abdicar às próprias tradições. Para isso D2 “separa o trigo do joio o que presta do que não presta”. 18 “a percussão é eletrônica a favela na internet o coco é enlatado e a banana é com chiclete [...] globalizado ou não eu mantenho os meus laços do hip hop ao samba é compasso por compasso nem feliz nem aflito nem no lugar mais bonito nada mais interfere no quadro que eu pinto a benção velha guarda o samba de terreiro a maldição te pega no Rio de Janeiro”.19 A referência às influências da velha guarda, combinadas a exaltação do “novo” – fazendo a conexão – explode as fronteiras taxionômicas e classificatórias, ou como diz o próprio D2, “fronteiras não há para nos dividir”.20 E a primeira dimensão fundamental – e que dá o tom contemporâneo a música de D2 – é a instabilidade conceitual; é esse desapego as taxionomias classificatórias. “Qualquer análise cultural só poderá seguir adiante se partir de uma atitude disposta a questionar fronteiras e rediscutir limites” (RESENDE, 2002, p. 137). E parece mesmo ser esse o projeto artístico de D2, que já em 1997 com o álbum “os cães ladram mas a caravana não pára” sinalizava para essa hibridação cantando “sou do samba / sou do reaggue / sou do soul / mas também sou do hip hop / do hip hop eu sou”.21 Outro elemento digno de nota é a formidável presença de elementos de metalinguagem musical em Marcelo D2. Esta metalinguagem consiste em falar, no corpo das letras, do Hip-hop e do samba; utilizar a música não para a expressar outras realidades, mas a realidade da própria música. 17 Samba de primeira Profissão MC 19 A maldição do Samba 20 Batucada 21 Hip Hop Rio 18 A metalinguagem parece ser igualmente uma estratégia de afirmação cultural do hip-hop, da cultura popular, do samba. Portanto, este parece ser um movimento que compreende, mesmo que intuitivamente, as brechas que o sistema apresenta hodiernamente. 4- PÓS-MODERNIDADE E ARTE CONTRA-HEGEMÔNICA: CONSIDERAÇÕES À GUISA DE FECHAMENTO. Neste artigo procuramos encaminhar um debate de tom otimista em relação ao fenômeno dito pós-moderno. Fizemos isto, particularmente no campo da arte musical. O otimismo, no entanto restringe-se ao caso concreto por nós abordado e não se estende á outras esferas da produção cultural. Esta restrição se deve antes á concordância que temos com Clifford Geertz (2001) em sua defesa do “saber local”: A renuncia à autoridade proveniente das “visões que partem de lugar nenhum” (vi a realidade e ela é real) não constitui uma perda, mas um ganho; e não é um recuo, mas um avanço, a postura que diz: “Bem, eu, um norte-americano de classe média de meados do século XX, mais ou menos padrão, e do sexo masculino, fui a tal lugar, conversei com algumas pessoas que consegui induzir a falarem comigo, e acho que as coisas se passam com elas, por lá, mais ou menos de tal ou qual maneira”. Talvez isso não seja excitante, mas tem uma certa franqueza (coisa escassa nas ciências humanas). (p. 127). Este entendimento dos limites e das possibilidades do saber local nos leva a defender um certo otimismo político no caso de Marcelo D2; mas não nos autoriza a extrair daí qualquer lei geral acerca da arte pós-moderna. De fato, não uma lei, mas uma generalização dependeria do estudo comparado de muitos casos como este. Nosso otimismo político nos faz supor a presença de elementos contra-hegemônicos na obra de Marcelo D2, no que tange à imposição de significados pela industria cultural. Poderia-se obstar que o que ocorre aqui é antes uma apropriação do discurso subversivo pela cultura de massa. Nos deteremos um instante neste ponto. Bourdieu afirma acerca da censura que é imposta àqueles que querem dizer alguma coisa na televisão – mas poderíamos estender sua análise á outros meios de comunicação da industria cultural – que, visto que a época atual se caracteriza por uma forte propensão ao conformismo político, principalmente se considerarmos a existência de um exército industrial de reserva e a precariedade das relações de trabalho na indústria cultural, “as pessoas se conformam por uma forma consciente ou inconsciente de auto-censura, sem que haja a necessidade de chamar a sua atenção”. Marcelo D2, por sua vez, parece não se auto- censurar desta forma. Diz ele, em uma de suas músicas: “Iate em botafogo apartamento em Ipanema, uma vida de bacana se eu entrasse pro esquema. Mas eu busco na raiz e lá ta o que eu sempre quis, não é um saco de dinheiro que me deixa feliz... Há coisas que o dinheiro não pode, você sabe como é, tipo eu e minha preta, só no role [...]” Não obstante, importa considerarmos este particular de forma mais séria, em sua complexidade. Sabe-se, por exemplo, graças a Adorno e Horkheimer, que na industria cultural: A rebeldia realista torna-se a marca registrada de quem tem uma nova idéia a trazer à atividade industrial. A esfera pública da sociedade atual não admite nenhuma acusação perceptível em cujo tom os bons entendedores não vislumbrem a proeminência sob cujo signo o revoltado com eles se reconcilia (p.124). A rebeldia é neste sistema parte do cálculo racional de controle da revolta. Mais à frente eles irão dizer o seguinte: “contrariamente ao que se passa na era liberal, a cultura industrializada pode se permitir, tanto quanto a cultura nacional-popular no fascismo, a indignação com o capitalismo; o que ela não pode permitir é a abdicação da ameaça de castração” (ibid., p.132). Pode-se revoltar com o capitalismo e mesmo contra a industria cultural; o que não é possível é, desta revolta, extrair-se elementos que motivem ações contra estas instancias. “A industria cultural coloca a renuncia jovial no lugar da dor, que esta presente na embriagues como na ascese. A lei suprema é que eles não devem, a nenhum preço atingir seu alvo, e é exatamente com isso que eles devem, rindo, se satisfazer” (ibid., p. 132). Segundo esta clássica concepção frankfurtiana de um mundo administrado a participação do discurso subversivo na industria cultural, sendo parte mesma do cálculo racional não poderia trazer nenhum avanço na luta pela democratização dos meios de comunicação. Não obstante, importa somar a esta análise o conceito sociológico de “campo” desenvolvido por Bourdieu. O campo dos meios de comunicação não pode ser pensado como o produto fechado dos diretores e donos das emissoras e gravadoras. Este é antes um campo de disputas de poder travadas no interior de relações assimétricas. A definição que aquele sociólogo nos fornece é de grande valia neste debate: Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior deste espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar este campo de forças. Cada um, no interior deste universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em conseqüência, suas estratégias. (BOURDIEU, 1997, p. 57). Ora, à luz deste conceito de campo, a hipótese de uma industria cultural administrado por um pequeno grupo de donos não se sustenta, bem como não pode se sustentar a idéia segundo a qual o artista subversivo que se submete à exposição na mídia é um mero objeto da dominação daqueles poucos donos, administradores absolutos e onipresentes. Ao contrário o artista é aqui membro de um grupo maior de dominados, no interior de um campo, que lutam para transformar as relações assimétricas de poder no interior deste mesmo campo. É este o entendimento que temos no que concerne à arte de Marcelo D2 e que nos encaminhamos a defender neste esforço teórico. É também sob esta perspectiva que podemos compreender a ambivalência da epígrafe. A contra-hegemonia das idéias de D2 deita raízes na própria ambigüidade dos chavões esquerdistas já incorporados pela industria cultural tais como a expressão “resistência cultural”. Para além da mera resistência, D2 contra-ataca e desconstrói, à maneira de Derrida, os lugares comuns inculcados pelos detentores dos meios de comunicação: “Resistência cultural, casa do caralho”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1985. ANDERSOM, Perry. As origens da pós-modernidade. 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