cultura
Transcrição
cultura
c u lt c u lt u r a Aroeira Chargista Crise? Que crise? Quando o pessoal da Democracia Viva me pediu para escrever um artiguinho sobre a crise, coisa pouca, seis mil caracteres, por aí... gelei. Demorei vinte minutos no Word só pra descobrir como contar os tais caracteres. E esse preâmbulo foi só pra mostrar quão pequena é a minha intimidade com editores de texto. É que não tenho escrito nada na mídia por mais de vinte anos. Estou enferrujado. Ouço as minhas circunvoluções cerebrais rangendo e estalando. Receio até quebrar alguma coisa, danificar alguma sinapse, sei lá... Pra meu alívio, me explicaram que este é apenas um texto introdutório para um montão de charges sobre a dita crise. Gostaria de colocar cartuns de vários colegas, mas a logística disso não é mole. Portanto, peguei os desenhos do chargista mais próximo e mais à mão, eu mesmo. Então... a crise? Não preciso explicá-la, não preciso pesquisá-la, não preciso sequer compreendê-la... Só preciso rir dela. E, se possível, fazer com que vocês também riam. 40 Democracia Democracia Viva Viva NºNº 4545 ura Julho Julho 2010 2010 41 C u lt u r a Mesmo que seja apenas um “rir de nervoso”, como dizemos lá em Minas... Hoje, olhando pra trás, o monstro pode até parecer menor, se você mora por aqui. Ainda que também apanhássemos “cá o nosso talhão”, coisa do idioma luso, ficamos com uma fatia bem menor. Dizem que na Espanha, na Grécia ou na Califórnia todo mundo quer migrar pra cá... O Brasil ganhou um certo respeito lá fora, na base do “last man standing”, o último de pé. Foi um Halloween gigante (estourou, pra quem não é economista, em outubro de 2008!), um tsunami econômico que passou em nossas vidas, o fim do mundo “tal como o conhecíamos”... E etc. Repetido ad nauseum. Imprensa é um negócio bem divertido: em 15 minutos, todos os jornais acharam especialistas e economistas dispostos a compartilhar sua sapiência. Todos em pânico. Todos com razão e com razões... muitas e contraditórias. Todos sabiam, todos ensinaram e todos os brasileiros se tornaram economistas da noite pro dia, entendendo de “spread” e “commodities”, acumulando isso com o cargo vitalício de técnico de futebol, que temos desde criancinhas. Analisávamos as quedas abissais da bolsa com o mesmo interesse com que analisávamos a seleção do Dunga. E com o mesmo pessimismo, claro. É da nossa alma. Coisa muito nossa. 42 Democracia Viva Nº 45 crise? que crise? Julho 2010 43 C u lt u r a Ah, e o(s) governo(s)? Aqui, o governo dizia “Marolinha”, e a oposição respondia “Tsunami” e “Fim do Mundo”. As empresas demitiram preventivamente, os clientes secaram, e tudo virou uma enorme crônica de uma morte anunciada. O mundo acabou, gente... Corram em círculos e gritem socorro! Governo corre daqui e dali, corta IPI disso e daquilo, oposição acusa governo de esconder a gravidade do Apocalipse, governo responde com um clássico “pessimistas, incentivadores do pânico”, oposição rebate com “escamoteadores, pilantras mentirosos”, governo retruca com “fomentadores do caos”, e daí pra um xingar a mãe do outro foi um fio de cabelo. Todo mundo em pânico! Algum tempo depois, recontrataram, recuperaram os clientes, passou o susto e, ressabiadamente, nossos “agentes econômicos” saem debaixo das camas e voltam a fazer o que faziam... Ou seja, sugar o sangue dos trabalhadores, para uns, ou fomentar o progresso e o desenvolvimento, para outros. Ou alguma coisa mais no meio... 44 Democracia Viva Nº 45 crise? que crise? Julho 2010 45 C u lt u r a Lá fora não foi diferente, se falamos só do pânico. Acusações mútuas entre posições políticas e visões econômicas em doze línguas diferentes fazem um barulho e tanto! Já ouvi falar de perdas de até 10 trilhões de dólares. Mais. Isso é possível? Havia tanto dinheiro assim no mundo financeiro, correndo essa “rat race”, nas sábias palavras de Bob Marley? Ou era igual ao dinheirinho do Banco Imobiliário, de mentirinha? Sempre desconfiei. Eu, cartesiano naïf que sou, vivia me perguntando como era possível todo mundo ganhar aquela dinheirama toda, como prosseguir com aquela espiral de lucro incessante sem coisa nenhuma sair de lugar algum. Principiozinho básico da Física... A lei da conservação da energia. Mas, se falamos de resultado final, os gringos se saíram bem pior do que nós. Será por causa das dezenas de planos econômicos, desvalorizações e renomeações de moedas, confisco de poupança, o escambau a quatro que temos na nossa história? Será porque, após tantas décadas de malucos de carteirinha gerenciando nossos destinos (desenhei vários deles, pombas!), estamos imunes à “economia enquanto tal”, “em bloco e dentro do contex- 46 Democracia Viva Nº 45 crise? que crise? Julho 2010 47 C u lt u r a 48 Democracia Viva Nº 45 crise? que crise? to”? Ai, que saudade do Paulo Francis... Ou simplesmente acertamos, ultimamente? Alguns dizem que escapamos por causa do consumo interno, graças à distribuição de renda promovida por esse governo. Simplista, eu sei, mas é só pra resumir. Outros dizem que foi o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que saneou os bancos brasileiros, explicação também simplista (não assino nem uma das duas visões, nem nada que tenha a ver com economia – vocês precisam ver as MINHAS contas). Provavelmente uma combinação de ambas as ações. Sempre achei que os governos FHC e Lula fizeram algumas das tarefas essenciais pra esse país, só que em pontas diferentes da sociedade. Pontas opostas, pra ser bem claro... mas fizeram. Bancos com carteiras relativamente seguras, pouquíssimas hipotecas, empréstimos mais amarrados (já tentou arrancar um empréstimo de um banco se você não tem carro ou casa? Fiu!), mais Bolsafamília na mão de um bocado de gente, e outras formas de “assistencialismo populista e eleitoreiro deslavado”, como diria a oposição. Talvez tenha funcionado. O fato é que aqui nós passamos e ainda passamos pelas turbulências da crise, mas indiscutivelmente menores...eu acho. Pode ser que algum economista leia isso e diga “Mas que grande besta, esse cara!”. Não seria a primeira vez. Mas em outros cantos o desastre foi feio pra burro. Existem lugares aí fora onde o mundo caiu de verdade. Eu até achava que a Islândia tinha sumido do mapa, mas pelo visto, não. Sobrou pelo menos um vulcão, que fechou o espaço aéreo da Europa por uma semana. Se eu fosse o presidente da Comunidade Europeia, mandava benzer aquele lugar... Europeus e americanos não estão tão acostumados à miséria como nós, me dizem. Por isso, gente no sinal lavando para-brisa em Paris, Londres, Madri e Los Angeles poderia ensinar uma lição ao planeta. Bobagem. Paris nem está notando as favelas de migrantes crescendo em sua periferia, a não ser pra votar leis de exclusão e expulsão. O mesmo para essas outras cidades. Tenho muitas dúvidas sobre a capacidade de entendermos o desastre que isso significa e como evitar “más de lo mismo”. Assim que a re-acomodação acabar, os novos donos daquele dinheirinho de Banco Imobiliário assumirão os dados (já estão a fazer isso nesse exato instante) e o tabuleiro. E a espiral volta a rodar, sempre pra cima e além. Mas não liguem pra mim, sou só um chargista. Um pessimista profissional... Aqui entre nós: Eta pessoalzinho burro, esses meninos ricos... não aprendem mesmo. Julho 2010 49