Os ratos de Pasárgada - Site oficial da escritora Ercilia Macedo
Transcrição
Os ratos de Pasárgada - Site oficial da escritora Ercilia Macedo
Os ratos de Pasárgada Ercília Macedo-Eckel Fazei imagens de [escrevei sobre]vossos ratos, que andam destruindo a terra (I Samuel 6:5). A Pasárgada de que eu falo é uma cidade situada em lugar plano e faz aniversario dia 21 de abril. Tem clima ameno, grandes lagos para a prática de esportes aquáticos e prédios de vidro. De vidro! Com transparência, muitas vezes, obscena. Lá o reino é bastante liberal. Os súditos podem pichar a cidade sem pudor e escrever congreço no cabeçalho de documentos do parlamento, que ninguém dá bola. Nem o gerundismo proibido por decreto consegue modificar o discurso daquela gente. E ainda que Joana, a louca da cabeça pelo marido- cadáver e rainha de Espanha, ali chegasse de repente, por certo não tiraria o sorriso do rosto e do bolso dos cidadãos. Você já viu alguém louco do pé ou rindo pelo cotovelo? De lés a lés os pasargadenses são livres civil, política e religiosamente. Porém as idéias de alguns não me parecem tão avançadas, uma vez que ainda se prendem ao individualismo no qual defendem determinadas classes e não a totalidade dos cidadãos. Assim, o termo liberal nos leva ao conceito de política confusa e oscilante. E não à possibilidade de escolher, ou de impor limites e condições àquele que olha apenas para o próprio umbigo ou defende seu bando. Daí essa cidade ser indicada para quem, na condição de amigo do rei, quiser deixar de ser pé-dechinelo. Em Pasárgada tem de tudo. Do lirismo de Manuel Bandeira às histórias de (in) fidelidade e (in) gratidão. Mas é preciso cuidado. O processo contraceptivo não é muito seguro, ou é desprezado, abatendo a honra de certas famílias que se dizem honradas. Também pudera! As mulheres disponíveis (ou não) são maravilhosas e gostosas. Algumas se submetem ao encantamento de ratos transvestidos de botos. Você viu aquela Playwoman? A vida é uma aventura explícita da nora com que muitos coroas sonham. Diante dos olhos e nas orelhas de cada rato da Casa pasargadense, tem celulares com GPS e seus mapas em tela touchscreen, a fim de que os amigos do Rei possam assistir à TV digital ou fazer vídeochamada com excelente imagem durante as sessões. Tudo brinde! Apenas um toque. Não há preconceito contra dedo sujo. O acesso é rápido. Até secreto. E os vestígios das falcatruas, que rumo tomam? Roedores, camundongos, ratões e ratinhos-de-nada subtraem, picam ou arquivam nos canais subterrâneos relevantes documentos. Eu não tenho o sadismo de Fortunato, nem um prato com espírito de vinho, como no conto A causa secreta, de Machado de Assis, porém não me causaria desconforto se sonhasse com Garcia Top Top dependurando cada rato desses pela cauda, a fim de chamuscar-lhes o focinho ou os bigodes no líquido incandescente de Baco. Nem teria piedade (até saborearia tranquila) caso o doutor, com gestos obscenos e uma tesoura na mão direita começasse a cortar devagarinho, uma a uma, as patas dos Murídeos, levando-os em intervalos regulares à chama da praça, só para vê-los contorceremse, assando e chiando diante do povo. E ainda não morrerem no campo minado de sem-vergonhice, sob os olhares encavernados de seus comparsas. Pensa que só a sua Veneza é (e sempre foi) enfestada de ratos, Mainardi? A diferença é que aqui não sei a porcentagem deles por habitantes. Também atravessam lagos e piscinas a nado e me tratam com desdém. Estão se lixando para o que penso deles. É, pertencem a uma estirpe nobre, não são ratos comuns. Têm biografia! Não morrem com Racumin; nem aceitam a própria morte, indo contra o que escreveu Montaigne nos Ensaios. Não é Diogo? Merecem bustos, monumentos, instituições, logradouros com seus nomes, ainda vivos. Não se fazem mais heróis, celebridades e mártires como antigamente! Ademais, a nobreza desses ratos deixa Remy, do filme Ratatouille, muito envergonhado, sob o chapéu de Linguini. Pela primeira vez e nunca nesse reino tantos ratos saem dos esgotos ao mesmo tempo. Sobem pelas pernas dos habitantes da cidade, tomam conta do palácio e fazem cocô sobre o livro de decisões do rei. Roem sua gravata, sua camisa vermelha, sua gramática internacional e o deixam completamente nu. Como Adão, em seu discurso primitivo no paraíso. Mas sempre que aparece em público, sua Majestade toca a trombeta, anunciando a eloquência de seu reino. Messiânico. Prometido e esperado desde a descoberta dessa terra de Vera Cruz. Ninguém foi ou é mais adequado ao trono do que ele. Ou quem sua Majestade fabricar como seu sucessor. E o ibope, oh! Lá em cima. Não tem para ninguém. Porém os Murídeos constituem sério perigo aos pasargadenses, pois são portadores do bacilo da peste bubônica, através de suas pulgas saltadoras. Sanguessugas. E sempre há um rato em destaque, meio cadáver, meio sombra, que não abre caminho para o ofício do réquiem. Continua com a cabeça levantada e pose de orgulhosa inocência, porém suas entranhas chiam, como as de um animal imolado e sua boca vomita os últimos pecados do bando. Meio cadáver, meio sombra. Até o talentoso gato Oscar tem dúvidas sobre a previsão de sua morte. Deitou-se na entrada da toca do roedor, começou a ronronar e logo se levantou. Não se afeiçoou muito ao paciente. Talvez por causa de seu cheiro terminal. Entretanto não se engane. Para pegar um roedor desse é preciso fazer muita ginástica, subir no coqueiro ou no pau-de-sebo, sujar as mãos para recuperar a transparência e a grandeza das asas que dão o traçado de Pasárgada, cujo rei está mais desvairado que Joana de Espanha, com seu prestigio internacional. Nunca é demais ser prudente, defender-se com galhos de arruda, muito otimismo e oração: Pai eterno, agradecemos por estar nesse lugar abençoado. Sabemos que somos falhos e imperfeitos, mas Teu sangue nos purifica. Agradecemos por Durval existir como instrumento de tantas bênçãos em nossas vidas. Com certeza ele receberá galardões e lotes sob o céu dessa cidade. Parabéns, Pasárgada, em seu aniversário! *Ercília Macedo-Eckelé membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, sócia da União Brasileira de Escritores – GO e da Academia Petropolitana de Letras – RJ. Mestra em Letras, Lingüística e Literatura Brasileira pela UFG.