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1 Responsabilidade do fiador após o vencimento do prazo do contrato de locação LUIS ARLINDO FERIANI Doutorando em Direito Processual Civil pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito pela PUC, Professor da PUC-Campinas. Juiz de Direito Aposentado. Advogado. Área do Direito: Processual Resumo: O presente artigo envolve o estudo a respeito da viabilidade jurídica de se responsabilizar o fiador pelas obrigações assumidas no contrato de locação, mesmo após o vencimento do seu prazo, ao contrário do entendimento que vem sendo dado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça. Abstract: This article aims to analyze the legal feasibility of making the guarantor responsible for the obligatios assumed in the lease contract, even after its maturity date, as opoposed to the considered opinion of the Brazilian Superior Court of Justice. Palavras chave: Contrato de locação; vencimento do prazo; responsabilidade do fiador. Key words: lease contract; maturity date; guarantor’s responsability 2 RESPONSABILIDADE DO FIADOR APÓS O VENCIMENTO DO PRAZO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO. 1.- INTRODUÇÃO A Súmula 214, do STJ, dispõe que: “O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.” Com fundamento na súmula em questão existem várias ementas jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça, complementando o referido enunciado, com o entendimento no sentido de que o fiador não responde até a efetiva entrega das chaves do imóvel locado, mesmo existindo cláusula expressa em tal sentido, asseverando ser ineficaz a cláusula que assim estabelece. O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, ao contrário, tem entendido que o fiador que assinou contrato comprometendo-se como devedor solidário, até a entrega definitiva do imóvel, responde pelas obrigações posteriores ao vencimento do prazo expresso no contrato de locação, que foi prorrogada tacitamente, por prazo indeterminado, desde que não se tenha exonerado da mesma. O presente artigo objetiva evidenciar que a interpretação do Superior Tribunal de Justiça não é a mais correta, segundo as regras da hermenêutica. 2.- DA NATUREZA JURÍDICA DA FIANÇA Mesmo tratando-se de contrato que gera apenas obrigações ao fiador, pode-se considerá-lo como de natureza bilateral não perfeita, uma vez que após cumprir a obrigação, o fiador subroga-se nos direitos do credor originário, podendo, até mesmo, utilizar-se do mesmo processo. Embora, como regra, possa ser caracterizado como um contrato benéfico ou gratuito, sem qualquer benefício ao fiador, ao menos na fiança locatícia, é certo que inexiste óbice à fixação de remuneração, como forma de compensação pelo risco assumido, o que não é tão incomum na fiança mercantil ou comercial. 3 Sem dúvida é um contrato acessório, pressupondo a existência de uma obrigação principal, de ordem legal ou convencional. São as três características mais comuns do contrato de locação, que dão sustentação à integração de forma e interpretação, gizadas nos artigos 818 a 837 do Código Civil. O art. 819, do Código Civil, tendo em vista a sua natureza benéfica e gratuita, só admite a forma escrita e impõe a interpretação restritiva, ao não admitir a extensiva. Pelas mesmas razões, o legislador atrelou, ainda, ao direito do fiador, os seguintes benefícios: a) o benefício de ordem, previsto no art. 827, do Código Civil, fixando-a como garantia subsidiária, admitindo, outrossim, a solidariedade, somente se houver renúncia expressa do fiador, ao mencionado benefício; b) previsão, nos artigos 837 e 838, do Código Civil, da possibilidade de o fiador opor as exceções que lhe forem pessoais e as extintivas de obrigação, entre as quais quando a culpa pelo descumprimento pelo afiançado se deu em razão de qualquer favorecimento, omissão ou conduta por parte do credor, incluindo eventual inércia deste; c) por último, o artigo 818, do Código Civil, atribui ao fiador o dever de garantir a satisfação ao credor, somente no caso de descumprimento do afiançado, em decorrência da natureza acessória do contrato de fiança. A concretização da fiança depende de forma escrita ad solemnitatem, imposta pela lei (art 819, do Código Civil), por instrumento público ou particular, no próprio corpo do contrato principal ou em separado. Basta, assim, que seja dada por escrito, não havendo exigência de forma especial para a sua comprovação e existência. Dessa forma, pode-se concluir que se trata de contrato formal, uma vez que não pode ser presumida. A gratuidade é uma das caracteristicas da fiança, isto porque o fiador, normalmente, auxilia o afiançado de favor, nada exigindo em contrapartida, mormente tratando-se de contrato de locação. A fiança pode se dar através de carta simples ou qualquer outro documento, onde deverá constar a sua modalidade e extensão, sem exigência de termos sacramentais, como ressalta Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra Direito Civil Brasileiro, 10ª edição, 2013. È fácil, assim, concluir que a sua extensão pode ser perfeitamente prevista como sendo até a entrega efetiva das chaves. 4 3.- ANTINOMIA A Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça, publicada no Diário da Justiça em 02.10.1998, página 250, dispõe que: “O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.” Como regra, os contratos de locação (principal) e o de fiança (acessório), são formalizados em um só instrumento. Vencido o prazo convencionado pelos contratantes, é certo que o contrato continuará vigente por prazo indeterminado, constando, normalmente, dos referidos contratos, que a responsabilidade do fiador se estenderá até a efetiva entrega das chaves do imóvel locado. Com efeito, o art. 39, da Lei nº 8245/91, giza que: “Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por força desta lei.” Existe entendimento no sentido de que no caso da fiança locatícia existe disposição legal em contrário, em razão da exigência de forma escrita para a validade da garantia. Com efeito, dispõe o art. 819, do Código Civil, que: “A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.” Assim,aplicando-se os conceitos de hermenêutica ao próprio dispositivo legal, seria inadmissível a garantia fidejussória acompanhar a prorrogação da locação. O parágrafo primeiro do artigo 46, da Lei nº 8245/91, preceitua que, findando o prazo pactuado pelos contratantes, se o locatário continuar na posse do imóvel locado, por mais de trinta (30) dias, sem oposição do locador, presumir-se-á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato (art. 46, parágrafo primeiro: “Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-a prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato”. Segundo alguns doutrinadores, estaria havendo antinomia entre as normas. O art. 39, em conjunto com o parágrafo primeiro, do artigo 46, da Lei nº 8245/91, dispõem que o contrato de locação e suas garantias ficam tacitamente prorrogados, em razão do silêncio entre locador e locatário, decorridos trinta dias do vencimento do contrato, enquanto que o artigo 819, do Código Civil, só admite a formalização da fiança, por escrito, impondo interpretação restritiva. Segundo esses doutrinadores, cabe ao aplicador do direito utilizar dos critérios jurídicos para a solução da antinomia entre as normas jurídicas. 5 O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem entendido, de forma majoritária, que deve prevalecer a cláusula convencionada pelas partes, no sentido de a responsabilildade do fiador se estender até a efetiva entrega das chaves, ou seja: “Fiança- Responsabilidade do fiador – locação – fixação até a entrega das chaves. Contrato prorrogado – exoneração – ausência – reconhecimento – Fiador que se obrigou até a entrega real e efetiva do imóvel e não requereu sua exoneração, como permitido pelo artigo 1500 do Código Civil de 1916, continua respondendo pelas obrigações de seu afiançado, mesmo após o vencimento do contrato escrito, exceto por aquelas decorrentes de aditamentos feitos sem a sua anuência.” Apelação com revisão 779.092-00/4-29ª Câmara – Relator Desembargador Dyrceu Cintra, j. 02.03.2005. Em sentido contrário, o Superior Tribunal de Justiça, na conformidade do que dispõe a Súmula 214, tem entendido que mesmo que haja previsão de responsabilização contratual do fiador até a efetiva entrega das chaves, o garantidor não seria responsável por obrigações decorrentes de prorrogação legal à qual não anuiu. Segundo o referido entendimento cessa a relação jurídica, em relação ao fiador, com o vencimento do contrato, delimitando a sua responsabilidade, estritamente, por possível inadimplência do afiançado dentro do prazo de vencimento expresso do contrato com prazo determinado, ou seja: “STJ – 5ª Turma. Relator Ministro Arnaldo Esteves de Lima. 21.10.2004. Votação unânime. Ementa: “A despeito de o fiador haver-se comprometido com as obrigações do locatário até a devolução do imóvel, tal não deve prevalecer se ele não concordou, expressamente, com a prorrogação do contrato (Súmula 214 STJ), ante a natureza benéfica dessa garantia, cuja interpretação deve ser restritiva. 2. O termo inicial da exoneração do fiador, em ação declaratória com esse objetivo deve coincidir com a data da citação, conforme aliás, dispôs a sentença. 3. Recurso Especial conhecido e provido, nos termos do voto do relator.” STJ. REsp 440.110/SP. Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca. DJU 11.11.2002, pág. 284. Ementa: “A jurisprudência da Corte vem-se firmando no sentido de não admitir interpretação extensiva ao contrato de fiança, daí não poder ser responsabilizado o fiador por prorrogação de prazo no contrato de locação, a que não deu anuência, mesmo que exista cláusula de duração da responsabilidade do fiador até a efetiva entrega das chaves. Recurso conhecido e provido.” Sabemos que antinomia é o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular. É a presença de duas normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada ao caso concreto. A antinomia pode dar origem à 6 lacuna de conflito ou de colisão, porque, em sendo conflitantes, as normas se excluem reciprocamente, por ser impossível deslocar uma como a mais forte ou decisiva, por não haver uma regra que permita decidir entre elas, obrigando o magistrado a solucionar o caso sub judice, segundo os critérios de preenchimento de lacunas. Dessa forma, para que se tenha presente uma real antinomia, são imprescindíveis três elementos: a incompatibilidade, a indecidibilidade e a necessidade de decisão. Só haverá antinomia real se, após a interpretação adequada das duas normas, a incompatibilidade entre elas perdurar. Para que haja antinomia será mister a existência de duas ou mais normas relativas ao mesmo caso, imputando-lhe soluções logicamente incompatíveis. Antinomia real, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., é “a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saida nos quadros de um ordenamento dado”. As antinomais classificam-se quanto: 1.- Ao critério de solução. Hipótese em que se terá: a) antinomia aparente, se os critérios para a sua solução forem normas integrantes do ordenamento juridico: b) antinomia real, quando não houver na ordem juridica qualquer critério normativo para solucioná-la, sendo, então, imprescindível à sua solução a edição de uma norma nova. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Alf Ross, seria de bom alvitre substituir tal distinção, baseada na existência ou não de critérios normativos para sua solução, por outra, em que antinomia real seria aquela em que a posição do sujeito é insustentável porque há: a) lacuna de regras de solução, ou seja, ausência de critérios para solucioná-la, ou b) antinomia de segundo grau, ou melhor, conflito entre os critérios existentes; e antinomia aparente, o caso contrário. O reconhecimento de antinomia real, neste sentido, não exclui a possibilidade de uma solução efetiva, pela edição de nova norma, que escolha uma das normas conflitantes, ou pelo emprego da interpretação equitativa, recurso ao costume, aos princípios gerais de direito, à doutrina etc. Embora a antinomia real seja solúvel, não deixa, por isso, de ser uma antinomia, porque a solução dada pelo órgão judicante a resolve tão somente no caso concreto, não suprimindo sua possibilidade no todo, do ordenamento juridico, e mesmo na hipótese de edição de nova norma, que pode eliminar a antinomia, mas gerar outras concomitantemente. 7 2.- Ao conteúdo. Ter-se-á: A) Antinomia própria, que ocorre quando uma conduta aparece ao mesmo tempo prescrita e não prescrita, proibida e não proibida, prescrita e proibida. Por exemplo: se a norma do Código Militar prescreve a obediência incondicionada às ordens de um superior e disposição do Código Penal proibe a prática de certos atos (matar, privar alguém de liberdade), quando um capitão ordena o fuzilamento de um prisioneiro de guerra, o soldado vê-se às voltas com duas normas conflitantes – a que o obriga a cumprir ordens do seu superior e a que o proibe de matar um ser humano. Somente uma delas pode ser tida como aplicável, e essa será determinada por critérios normativos; B) Antinomia imprópria, a que ocorrer em virtude do conteúdo material das normas, podendo apresentar-se como: a) antinomia de princípios, se houver desarmonia numa ordem juridica pelo fato de dela fazerem parte diferentes ideias fundamentais, entre as quais se pode estabelecer um conflito. Exemplo: quando as normas de um ordenamento protegem valores opostos, como liberdade e segurança; b) antinomia valorativa, no caso de o legislador não ser fiel a uma valoração por ele próprio realizado, como, por exemplo, quando prescreve pena mais leve para delito mais grave; se uma norma de Código Penal punir menos severamente o infanticidio (morte voluntária da criança pela mãe no momento do parto, ou logo após o nascimento) do que a exposição de criança a perigo de vida pelo enjeitamento, surge esse tipo de antinomia, que deve ser, em geral, aceita pelo aplicador: c) antinomia teleológica, se se apresentar incompatibilidade entre os fins propostos por certa norma e os meios previstos por outra para a consecução daqueles fins. Essa antinomia pode, em certos casos, converter-se em normativa, devendo como tal ser tratada; em outros, terá de ser suportada, como a antinomia valorativa. A esses tipos de antinomia imprópria há quem acrescente a antinomia técnica, atinente à falta de uniformidade da terminologia legal, como por exemplo, o conceito de posse em direito civil é diverso daquele que lhe é dado em direito administrativo. Essas antinomias são impróprias porque não impedem que o sujeiro aja conforme as normas, mesmo que com elas não concorde. As antinomias próprias caracterizam-se pelo fato de o sujeito não poder atuar segundo uma norma sem violar a outra, devendo optar, e esta sua opção implica a desobediência a uma das normas em conflito, levando-o a recorrer a critérios para sair dessa situação. 8 3) Ao âmbito. Poder-se-á ter: A) Antinomia de direito interno, que ocorre entre normas de um mesmo ramo do direito ou entre aquelas de diferentes ramos jurídicos. B) Atinomia de direito internacional, a que aparece entre convenções internacionais, costumes internacionais, princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas, decisões judiciárias, opiniões dos publicistas mais qualificados como meio auxiliar de determinação de normas de direito, normas citadas pelas organizações internacionais e atos jurídicos unilaterais. Nessas normas existem apenas hierarquias de fato; quanto ao caráter subordinante, são elas mais normas de coordenação do que de subordinação, e, quanto à sua autoridade, mais do que sua fonte importa o valor que elas encarnam. C) Antinomia de direito interno-internacional, que surge entre norma de direito interno e norma de direito internacional, e resume-se no problema das relações entre dois ordenamentos, na prevalència de um sobre o outro na sua coordenação. 4) À extensão da contradição. Segundo Alf Ross, ter-se-á: A) Antinomia total-total, se uma das normas não puder ser aplicada em nenhuma circunstância sem conflitar com a outra. B) Antiniomia total-parcial, se uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma hipótese, sem entrar em conflito com a outra, que tem um campo de aplicação conflitante com a anterior apenas em parte. C) Antinomia parcial-parcial, quando as duas normas tiverem um campo de aplicação que, em parte, entra em conflito com o da outra e em parte não. A esse respeito bem semelhante é a posição de Hans Kelsen. Kelsen ensina que, para haver conflito normativo, as duas normas devem ser válidas, pois se uma delas não o for não haverá qualquer antinomia. Por isso, ante a antinomia jurídica real o aplicador do direito ficará num dilema, já que terá de escolher, e sua opção por uma das normas conflitantes implicaria a violação da outra. A ciência jurídica, ante o postulado da coerência do sistema, aponta critérios a que o aplicador deverá recorrer para sair da situação anormal. Referidos critérios não são princípios lógicos, mas jurídico-positivos, pressupostos implicitamente pelo legislador, apesar de se aproximarem muito das presunções. A ordem jurídica prevê uma série de critérios para a solução de antinomias aparentes no direito interno, que são: 1.- O hierárquico, baseado na superioridade de uma fonte de produção juridica sobre a outra. A ordem hierárquica entre as fontes servirá para solucionar conflitos de normas em diferentes níveis, embora, às vezes, possa haver incerteza para decidir qual das duas normas antinômicas é a superior. 9 2.- O cronológico, que remonta ao tempo em que as normas começaram a ter vigência, restringindo-se somente ao conflito de normas pertencentes ao mesmo escalão. 3.- O de especialidade, que visa a consideração da matéria normada, com o recurso aos meios interpretativos. Para Bobbio, a superioridade da norma especial sobre a geral constitui expressão da exigência de um caminho da justiça, da legalidade à igualdade, por refletir, de modo claro, a regra da justiça suum cuique tribuere. Ter-se-á, então, de considerar a passagem da lei geral à especial, isto porque as pessoas pertencentes à mesma categoria deverão ser tratadas de igual forma, e as de outra, de modo diverso. Há, portanto, uma diversificação do desigual. Esse critério serviria, numa certa medida, para solucionar antinomia, tratando desigualmente o que é desigual, fazendo as diferenciações exigidas fática e axiologicamente, apelando para isso à ratio legis. Realmente, se, em certas circunstâncias, uma norma ordena ou permite determinado comportamente somente a algumas pessoas, as demais, em idênticas situações, não são alcançadas por ela, por se tratar de disposição excepcional, que só vale para as situações normadas. Afigura-se claro que, desses critérios, o mais sólido é o hierárquico, mas nem sempre por ser o mais potente; é o mais justo. Se esses critérios forem aplicáveis, a posição do sujeito não seria insustentável, porque teria uma saída; logo a antinomia por um deles solucionada será aparente. Se não for possível o afastamento do conflito normativo, ante a impossibilidade de se verificar qual é a norma mais forte, surgirá a antinomia real ou lacuna de colisão, que será solucionada por meio dos princípios gerais do preenchimento de lacunas, artigos 4º e 5º, da LINDB. Havendo antinomia real ou lacuna de conflito, em casos excepcionais o valor justus deverá lograr entre duas normas incompatíveis, devendose seguir a mais justa ou a mais favorável, procurando salvaguardar a ordem pública ou social. 10 3.- SOLUÇÃO DA ANTINOMIA O argumento principal, que sustenta o entendimento dos que limitam a extensão da responsabilidade do fiador ao prazo inicial previsto no contrato é a teor da Sumula 214. Ocorre que, a referida súmula apenas e tão somente giza que: “O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.” O art. 819, do Código Civil, por sua vez, dispõe que: “A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.” A extensão do prazo da fiança até a entrega das chaves, não se trata de cláusula de aditamento do contrato e, com relação a ela, extensão, o fiador concordou expressamente, por escrito, ao assinar como fiador. O que se deve entender é que o fiador, nesse caso, não responde por qualquer obrigação que não esteja expressamente prevista no contrato, tal como correção do valor do aluguel por índice divergente daquele constante do contrato, ou decorrente de acordo entre as partes contratantes; inclusão de encargos, não previstos inicialmente, ou seja, a sua responsabilidade deve ficar restrita àquilo a que se obrigou e nada além. Se o fiador, em cláusula específica relativa à fiança, constante do contrato de locação concordou que a extensão de sua responsabilidade se prolonga até a efetiva entrega das chaves do imóvel locado, evidente que expressou a sua vontade livre e espontânea em tal sentido, não competindo ao intérprete fazer qualquer restrição, seja a que título for, exceto com relação aos limites das obrigações assumidas, ou seja, dívida principal e seus acessórios, incluindo as custas e despesas judiciais. Assim, além de referida interpretação não contrariar o teor da súmula 214, que nada diz em sentido divergente, temos também que a legislação específica que disciplina a locação, por tratar de matéria especial deve prevalecer, diante da norma geral, sendo muito significativo o teor do art. 819-A, acrescentado pela Lei nº 10.931, de 2.8.2004, no sentido de que: “A fiança na locação de imóvel urbano submete-se à disciplina e extensão temporal da lei específica, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial”. Referido dispositivo foi vetado, porém, não esconde a intenção do legislador. 11 É importante também considerar que é perfeitamente possível a fiança por prazo indeterminado, tanto assim que o art. 835, do Código Civil, disciplina a respeito, gizando que: “O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor.” É claro que, a interpretação da sumula 214 do STJ e do art. 819, do Código Civil, no sentido de que o fiador, apesar de existir cláusula contratual obrigando-o até a efetiva entrega das chaves, responde apenas pelo período inicial do contrato, e não pelo que lhe sobrevem, por prazo indeterminado, em decorrência da sua prorrogação, contraria o art. 835, do mesmo código, que preve, de forma clara e sem sombra de dúvida que a fiança pode ser assumida sem limitação de tempo, ou seja, por prazo indeterminado. Assim, não há como sustentar a restrição da responsabilidade do fiador com relação ao prazo inicial do contrato de locação, sendo mais correta a restrição quanto às suas obrigações, que devem limitar-se àquilo que ficou constando do contrato, sem estender a ele qualquer outra obrigação à qual não tenha anuido por escrito. O critério da especialidade é suficiente para a solução da antinomia aparente existente com relação à questão. Com efeito, a norma especial, no caso, é a constante da lei que trata da relação obrigacional da locação, uma vez que aquela do Código Civil é de caráter genérico, referindo-se ao contrato de fiança em geral. Dessa forma, havendo cláusula expressa prevendo a prorrogação da locação por prazo indeterminado, considerando-se, outrossim, que o art. 835, do Código Civil prevê a possibilidade de ser prestada a fiança, sem limitação de tempo, não há como aceitar-se que a limitação venha a ser imposta pelo julgador, contrariamente ao interesse dos contratantes, inclusive do prestador da fiança, devendo prevalecer o princípio da boa fé contratual, que seria contrariada com a suposição de que o fiador teria concordado com a cláusula de prorrogação de sua responsabilidade até a entrega das chaves, mesmo que no prazo indeterminado do contrato, com a predeterminação de que isso não viria a ocorrer porque, alguém, que não participou do contrato (o Poder Judiciário) compareceria para limitar aquilo que por ele, fiador, não foi limitado. Vicente Ráo já ensinava, com relação à declaração expressa em contrato que: “Considera-se expressa a declaração de vontade produzida com o propósito consciente de torná-la conhecida por outrem, ou, tal seja o caso, para que produza, pura e simplesmente, os efeitos que a lei lhe atribui.” 12 Evidente que, tratando-se de pessoa maior e capaz, é necessário que o fiador tenha a sua vontade respeitada, tal como expressada por ele, sendo precipitada qualquer alusão quanto à pertinência de investigação em torno de sua real intenção ao se prestar a firmar contrato em benefício do afiançado. Não se afigura correta, outrossim, a qualificação do contrato de locação, como contrato de adesão, prevalecendo o disposto no art. 422, do Código Civil, que dispõe que: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Caso haja interesse do fiador em ver-se desonerado da fiança deverá proceder na conformidade do que estabelece o art. 835, do Código Civil. Não é razoável prestigiar-se interpretação para o desequilíbrio total da contratação, com superação da vontade escrita do fiador, deixando-se o locador sem garantia, findo o prazo inicialmente pactuado, levando-se em consideração o fato de que, se o fiador simplesmente deixar de anuir por escrito com a prorrogação, e o afiançado não apresentar outro fiador , em substituição, o locador com certeza sofrerá prejuízo irreparável, uma vez que deverá propor ação de despejo, por violação de cláusula contratual que obriga o locatário a oferecer garantia, em substituição, sendo certo que não obterá resposta do Poder Judiciário, em tempo oportuno, resposta necessária para evitar o seu prejuízo. A jurisdição deve ser exercida com a finalidade de se alcançar a paz social. Interpretação contrária à vontade manifestada por escrito, com base em suposição de que a referida vontade não expressaria a verdadeira intenção do subscritor, não colabora com a paz social, na medida em que pode causar prejuízo irreparável àquele que confiou na boa fé do contratante e agiu com probidade na conclusão do contrato, bem como com relação à sua execução. Partindo-se dessas premissas, pode-se chegar à conclusão de que a interpretação do Superior Tribunal de Justiça não é a que mais atende às exigências da ordem constitucional e legal, no sentido de que o juiz “ Na aplicação da lei...atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” (art. 5º, da LINDB. Por outro lado, é por demais sabido que, apesar de estabelecer uma relação entre o fiador e o credor, via de regra, mormente nos grandes centros, o primeiro nem chega a conhecer o segundo, uma vez que o afiançado apresenta ao locador o contrato já assinado, com firma reconhecida, não havendo qualquer fundamento para a suposição no sentido de que o fiador se veja constrangido e presta a fiança como que forçado pelas circunstâncias. 13 O ensinamento de que nos contratos a título gratuito a interpretação deve ser sempre favorável ao devedor, nada tem a ver com a questão da locação, como visto acima, de maneira que a intepretação que vem sendo dada pelo Superior Tribunal de Justiça não se afigura como a mais correta, e nem mesmo como a mais justa, mesmo porque não se pode partir da premissa de que o fiador mereça qualquer proteção adicional porque seria a parte mais fraca do contrato, já que na prática é por demais sabido que são inúmeras as pessoas que não conseguindo sobreviver com a irrisória aposentadoria resolvem locar o seu único bem, de valor maior, para poder complementar a sua renda mensal e, portanto, poder ter condições da própria sobrevivência. Nada mais correto do que a interpretação que vem sendo dada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no sentido de que se for intenção do fiador exonerar-se da fiança, deve se valor da ação própria, após a conversão do contrato com prazo determinado, para indeterminado, mantendo o perfeito equilibrio entre os contratantes e dando às normas que regulam a matéria a correta interpretação e aplicação. BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. Derecho y razón práctica. Trad. Manuel Arienza. 2ª ed. México: BEFDP, 1998. ________. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo. Landy, 2008. ARMELIN, Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. Revista de Processo nº 65, São Paulo: RT, 1992. ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel de. A arguição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: RT, 1988 ________. Tratado de direito processual civil. São Paulo: RT, 2º ed. v. 1, 1990. ________. Manual de direito processual civil. 7ª ed. São Paulo: RT., 2000 v. 1 e 2. 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