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SUMÁRIO / CONTENTS Apresentação / Presentation ..........................................................................................................5 Vânia Maria Lescano Guerra 1. A variação lingüística no Brasil ....................................................................................................6 Dercir Pedro de Oliveira 2. Cruzando os fios da história com a historicidade do discurso...................................................14 Gláucia Muniz Proença Lara 3. O arsenal teórico de Bakhtin: entre o estudo da linguagem e o ser social ...............................25 Vânia M. Lescano Guerra & Jefferson Barbosa de Souza & Carlos Vinicius da S. Figueiredo & Érica R. Dourado & Gislane P. Borges & Lorena A. da Cruz & Sandra R. Nóia Mina 4. “A hora da estrela” e o Brasil de 70 ...........................................................................................45 Edgar Cézar Nolasco & Carlos Vinícius da S. Figueiredo 5. A gramática do conflito numa perspectiva discursiva ................................................................52 Marlon L. Rodrigues & Wedencley A. Santana 6. O ritmo da palavra: questões sobre a oralidade........................................................................63 João Luis Pereira Ourique 7. Representação social da voz do estado no discurso do desenvolvimento tecnológico ............76 Izabel E. de S. Oliveira dos Santos & Marlene Durigan & Vânia M. Lescano Guerra 8. O léxico como braço da cultura regionalista sul-mato-grossense: Pouso Alto em questão ......88 Maria Madalena da Silva Lebrão 9. A autobiografia pós-modernista na literatura brasileira: uma análise de “A estratégia de Lilith”, de Alex Aantunes ...........................................................................................................................95 Rodolfo Rorato Londero 10. Semiótica e Rock: análise de “Palavras Erradas” d’O Bando do Velho Jack ........................105 Vanessa Amin ENSAIOS / ESSAYS 1. A visão eufórica do Brasil ........................................................................................................ 116 Carlos Erivany Fantinati 2. Vôte! Existe produção literária em Mato Grosso! ....................................................................139 João Mützenberg & Franceli A. da Silva Mello 2 RESENHAS/REVIEWS 1. MALDIDIER, Denise. A Inquietação do discurso: (Re) Ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2003................................................................................................152 Resenhado por Janaina Nicola 2. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Trad. Felipe B. Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. .....................................................................................................................155 Resenhado por Jefferson Barbosa de Souza BIBLIOGRAFIAS COMENTADAS /COMMENTED BIBLIOGRAPHIES 1. Bibliografia comentada sobre Análise de Discurso Francesa .................................................158 Vânia M. Lescano Guerra 2. Bibliografia comentada sobre Literatura Brasileira ..................................................................164 Antonio Rodrigues Belon sumário R G L, n. 5, jun. 2007. 3 EXPEDIENTE ISSN - 1980-1858 GUAVIRA LETRAS, Revista do Programa de Pós-graduação – Mestrado em Letras do campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Volume 1, número 5, junho de 2007. GUAVIRA LETRAS, editada pelo Programa de Pós-graduação – Mestrado em Letras do campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, é uma publicação técnico-científica que se define como um veículo de difusão e debate de idéias, estudos e relatos de experiências sobre os estudos lingüísticos e literários. É também um espaço aberto à comunidade acadêmica para manifestarse sobre temas relacionados com a formação de recursos humanos de alto nível. Aceita a contribuição de professores e pesquisadores do Brasil e do exterior. Propõe discussões de interesse da comunidade acadêmica e científica. NOTA: Todos os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião do Programa. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Arte e diagramação: Eduardo Luís Figueiredo de Lima 4 APRESENTAÇÃO Considerando que GUAVIRA LETRAS visa, fundamentalmente, promover a divulgação de trabalhos nas áreas de Literatura, Lingüística, Língua Portuguesa, Línguas e Literaturas Estrangeiras, Estudos Culturais e Artes, o Volume 5 traz trabalhos inseridos na temática LÍNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS. A proposição do tema teve como objetivo estimular, por meio de artigos completos, ensaios, bibliografias comentadas e resenhas de obras relevantes, a elaboração de reflexões voltadas para implicações e responsabilidades éticas e sociais, resultados desses juízos e condições. À medida que fomos preparando os textos para esta edição, fomos nos dando conta de que perpassa os textos uma dialética de conflitos propícios ao debate. De um lado a aparente força da inércia, querendo que as coisas permaneçam como estão: do outro, a aparente insatisfação com as coisas que precisam mudar. Evoluímos para garantir nossa existência como seres humanos? Ou estagnamos e negamos a essência de nossa natureza? José Luiz Fiorin (2005, p.01), em sua apresentação da Revista GUAVIRA LETRAS à comunidade científica, por meio de um texto primoroso, afirma que uma vez que é inerente à ciência a diversidade teórica, o fazer científico implica necessariamente a polêmica, o debate, a controvérsia, o questionamento, a dúvida, a crítica. Por isso, em ciência, não existem dogmas, não há exclusões, não existem verdades a que se adere pela crença, não há temas proibidos. Evidentemente, o fazer científico é regido pela ética, mas por uma ética que não se funda num programa de ação, como o apresentado pelo discurso religioso, mas se baseia no princípio da busca da verdade, o que significa que a atividade científica não pode estar a serviço da defesa de interesses comerciais, religiosos, políticos, etc., e sim na promoção do bem-estar, da igualdade e da liberdade dos seres humanos, o que implica, entre outras coisas, a preservação do meio ambiente e o respeito aos sujeitos da pesquisa. Esperamos que a diversidade de autores e a multiplicidade de pontos de vista articuladas aqui possam ser apreciadas como expressão da relevância dos estudos de linguagem e do interesse que vêm despertando na sociedade contemporânea. Vânia M. L. Guerra (Responsável pela organização da Guavira Letras 5) R G L, n. 5, jun. 2007. 5 A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA NO BRASIL Dercir Pedro de OLIVEIRAa Resumen: El objetivo de este texto es enseñar que la variación en Brasil existe desde la formación de la lengua y que las realizaciones lingüísticas existentes actualmente tiene raices en la colonización del país por los portugueses en el siglo XVI. Señala, igualmente, que la descripción dialectológica ha sido hecha desde la primera mitad del siglo XIX, y las análisis sociolingüísticas a partir de la década de 60 del siglo XX. Palabras-clave: Variación, influencias, descripción. Os estudos variacionistas no Brasil, com vestimentas diferentes, são resultados de pesquisas que datam da segunda metade do século XIX, já com alguma sistematicidade, pois, como afirma Silva Neto (1976, p. 73), nossos filólogos só se têm ocupado com peculiaridades regionais e comparações entre as pronúncias lusitana e brasileira. Este texto tem por objetivo mostrar que a diversidade lingüística está presente no português do Brasil desde a sua formação e que, há algum tempo, estudiosos se preocupavam em descrever as variações, de forma genérica e, posteriormente, nos meados do século XX, as análises já apareciam de modo sistemático. Isto se dá com a dialetologia e depois com a sociolingüística. A variação lingüística que foi, primeiramente, objeto de estudo da dialetologia e, muito mais tarde da sociolingüística, é resultado de inúmeras influências de povos que para cá vieram, e dos aqui habitam, aparece já na época do descobrimento, pois os colonizadores, segundo Silva Neto (1976, p.235), vinham de todas as partes de Portugal, de modo que refletiam as várias peculiaridades dialetais portuguesas, que no Brasil, em contato e interação se fundiram num denominador comum, de notável unidade (...). A diversidade lingüística não é fato de descoberta recente, embora haja, ainda, afirmações controvertidas com relação ao seu estudo. Alguns estudiosos, mesmo que com ênfase no léxico já se preocupavam com aspectos dialetais no começo do século XIX. Isto para voltar-se apenas para estudos da língua portuguesa. De modo sistemático, apesar de terem surgidos, no século XIX, os passos dos estudos dialetológicos, a variação lingüística começa a ser objeto de investigação científica com o advento da Dialetologia no Brasil com Rossi (1963) e seus colaboradores ao elaborarem o Atlas Prévios dos Falares Baianos. Posteriormente, na década de 60, surge a Sociolingüística. Ressalte-se que, já em 1958, Fischer discutia a correlação de variáveis independentes para realizar pesquisas variacionais. Em afirmação feita em 2003, p.73, o lingüista Dermeval da Hora afirma que: A variação lingüística agora ainda é de interesse exclusivo dos sociolingüístas, embora isto esteja rapidamente mudando. Outros campos da lingüística e particularmente da lingüística histórica têm- 6 se beneficiado da aplicação sistemática da noção de variação, então, passa a ser vista não como algo aleatório, mas como subsistemas em competição e heterogeneidade estruturada. Os estudos variacionistas, baseados na teoria laboviana, apesar de algumas críticas que têm recebido, é o que tem permitido apresentar uma descrição mais estruturada da variação. O estudo tem sustentação na regra variável em oposição à categórica, nas variáveis dependentes e independentes lingüística e extralingüística, e, por fim, no tratamento estatístico que permite a correlação entre as variáveis. Ressalte-se que, nos estudos variacionistas, passar da variação para a mudança é só uma questão de tempo. Às vezes, muito tempo. Da Hora (2003), referindo-se a Weinreich, Labov e Hezgog (1968, p.23) afirma que: Para os autores, uma teoria de mudança deve lidar com o modo como uma comunidade é transformada no curso do tempo, de forma que, em algum sentido, tanto a língua como a comunidade permaneçam as mesmas, mas a língua adquira uma forma diferente. A importância de buscarmos a sistematização dos estudos variacionais com estabelecimento de teorias, com sustentação argumentativa a toda e qualquer prova, se deve à origem da língua portuguesa falada no Brasil, cujo trajeto histórico nos mostra uma fotografia dos dialetos, falares, sotaques, espécies de linguagem, empréstimos, influências indígenas e negras, e, ainda, da identificação das classes sociais e atividades profissionais, realçando as relações interpessoais por meio da língua geral, dos crioulos, tudo com reflexo nas diferentes manifestações lingüísticas utilizadas atualmente. Acrescente-se tudo isso ao país continental que é o Brasil. Em seu livro Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, Silva Neto (1976), passim, faz ponderações sobre o início da comunicação lingüística no Brasil. Transcrevo, a seguir, alguns dados informativos a título de exemplificação. Examine, pois: i. Como se vê, há muitas semelhanças entre o português dos índios e o português dos negros. Isso é, aliás, bem natural, pois tanto o índio como o negro, em atrasado estágio de civilização, aprenderam o português como língua de emergência (p.36). ii. A língua geral, pelo contrário, era simples e de reduzido material morfológico; não possuía declinação nem conjugação. Tinha o aspecto de língua de necessidade, criadas para intercâmbio” p. 50 “... a língua geral (ou seja o Tupi) usada pelos índios que conviviam com os brancos e mamelucos em suas relações com o gentio (p. 121). R G L, n. 5, jun. 2007. 7 iii. Na fonética, há dois exemplos expressivos. Um é o caso da iotização de / / (pronúncias como muié, maiada) que igualmente se dá nos crioulos de Cabo Verde, da Guiné, nas Ilhas do Príncipe e de São Tomé (...). No nosso caso particular e histórico, observamos que os aloglotas (mouros, índios e negros) se mostraram sempre incapazes de pronunciar / /. O segundo caso é o caso da não pronúncia do /s/ final, característica dos falares rurais brasileiros: “os livro”, “as mesa” (falares rurais brasileiros: aldeias, acompanhamento militar, quilombo e fazendas). Vestígio do crioulo colonial. iv. “Também no que refere a grande parte dos fatos fonéticos existe unidade expressiva”. >poco, compro Essa redução comum aos dialetos de Damão, Goa, Ceilão, Macau, Cabo Verde, Guiné, representa extensão de fato já conhecido no português lusitano. Observe: >bandera, berada > cuié, atrapaiá Esse fato é característico dos crioulos. Por exemplo, ainda: > tomano, comeno - O desaparece como em: Falá, fazê, amô v. Na sintaxe, do mesmo modo, ocorrem fatos comuns a nossos falares rurais e ao linguajar das classes urbanas mais modestas. Entre os mais típicos: a. ter no lugar de haver; b. preposição em com verbo de movimento; c. mim como sujeito de orações infinitas. (p.142) O exame do trecho transcrito nos mostra que, tomando a chamada norma culta como referência, a modalidade falada do português do Brasil atual, no que respeita à linguagem popular, é muito semelhante ao crioulo colonial; remontando aos séculos XVI e XVII. Assim, as variações e mudanças, ocorridas no português do Brasil, são motivadas, como já dito, pelas diferentes procedências dos portugueses que para cá vieram (Minho e Douro) e pela presença de diferentes raças que habitavam o país nos primórdios como índios, negros, árabes que necessitaram de uma língua – emergencial, com simplificação estrutural, para poderem comunicar-se. Além disso, Lucchesi (2003, p. 281), na formação do PB, observa que: 8 O ponto de partida de todo processo de transmissão lingüística irregularb desencadeado pelo contato entre línguas é a perda da morfologia flexional na aquisição inicial da língua alvo por parte de falantes de outras línguas. A sociolingüística tem mostrado ao longo dos anos que fortes argumentos para as variações lingüísticas do português do Brasil estão centradas na própria constituição da língua. Justificativas para uma ou outra realização fazem parte da sua origem. As diferentes atualizações da língua, que, em muitas circunstâncias batem de frente com as normas gramaticais, se devem como diz Cunha (1986, p.71) ao que segue: Foi pela organização rural que começou o Brasil; antes de possuir cidades possui engenhos fazendas, sítios. A classe que tomou feição aristocrática ou de nobreza situava-se no mundo rural; vinha dos engenhos, das fazendas, dos sítios; e era ela que impunha as sedes administrativas, que vamos de vida, a própria administração, a formação dos conselhos e câmaras. Bahia, a velha capital da Colônia, e o Rio de Janeiro do domínio português jamais constituíram centros irradiadores de culturas comparáveis a México e Lima, que, então, rivalizaram em esplendor com Toledo Madrid ou Sevilha. Nesta passagem, Cunha nos encoraja ainda mais em aceitar o português do Brasil, com suas características fonéticas, morfológicas, lexicais e sintática, até certo ponto independentes do português europeu, portanto, com suas peculiaridades locais e distante da língua dos acadêmicos de Coimbra, dos escritores d’além mar, de membros mais sofisticados da Corte, enfim do purismo exacerbado, que, inegavelmente, impede a comunicação. Em decorrência disso, pode-se deixar de lado o caráter situacional da linguagem. A sociolingüística e a dialetologia têm-se debruçado nos estudos variacionais, visando à identificação e sistematização dos fatos lingüísticos, relacionados ao uso do português do Brasil. Dos estudiosos mais antigos (Paranhos da Silva (1879), Amaral (1922), Marroquim (1934) dentre outros, para os mais recentes Rossi (1963), Braga (1986), Tarallo (1983), Mollica (1989), apenas para citar alguns, pode-se dizer que a diversidade lingüística do português está, de certo modo, bem descrita. Ressalte-se, porém, que a pesquisa lingüística é como a verdade, deve-se buscá-la sempre. Embora, constitucionalmente, o Brasil seja considerado um país monolíngue, pelo que já foi escrito neste texto e pelos trabalhos de dialetólogos e sociolingüístas, a homogeneidade lingüística brasileira, não por motivos óbvios, corresponde à realidade. No que respeita ao obrigatório reconhecimento da diversidade dialetal, Matos e Silva (2004, p.69) diz que: São reconhecidas pelos brasileiros as entonações típicas de diversas áreas do Brasil; as realizações variadas das pretônicas que opõem, grosso modo, Norte e Sul e do Brasil; marcam paulistas por oposição a cariocas as sibilantes implosivas, aqueles com realizações predominantemente sibilantes, e estes com realizações chiantes; opõem certas áreas, sobretudo do Sul, em relação ao resto do Brasil, a inexistência da R G L, n. 5, jun. 2007. 9 distinção entre duas realizações do r intervocálico, um anterior outro posterior e assim por diante. A exposição acima faz referencia às variações fônicas, como diz a pesquisadora, de maneira nada sofisticada. Há que considerar, por outro lado, as variações lexicais e sintáticas, que, num estudo quantitativo, estarão centrados no cruzamento das variáveis dependentes lingüísticas e com as variáveis extralingüísticas, principalmente, escolaridade, faixa etária, origem, sexo e classe social. O estudo da variação lingüística, dadas as suas características continentais exige, no aspecto lexical, um estudo muito criterioso a partir das múltiplas influências: português europeu, negros, índios, no período de formação, e, italianos, espanhóis, poloneses, alemães, no período da colonização. Obviamente que, onde existem quilombos, aldeias e colônias, as influencias e os empréstimos têm alta freqüência. Apenas para exemplificar, examine algumas manifestações lexicais de algumas regiões brasileiras. i. No Sul: galopito, ginete, changueiro, campeiraço, gaúcho, tchê, gaudério, gaitero, china, pampa, coxilha, bergamota, carafá, muchacho, mirar, vaquejada, cincha, cochomilho, ilhapa, lonanco. ii. No Nordeste: aipim, macaxeira, baitola, chué, berimbau, tapioca, dendê, araçá, agogô, acarajé, orixá, caatinga, mugunzá, cacimba, lapiana, pinchar. iii. No Centro-Oeste: matula, chamamé, sesta, chalana, mangaba, siriema, mutum, guavira, piúva, tuiuiú, gueirova, bolicho, curicaca, quebra torto, buenas, varadouro, tropim, tijuco, putiã, piroga, gambira, funda. iv. Sudeste: marimba, quitanda, muxiba, bocó, canindé, pacaembu, biguá, maracanã, gariroba, guariroba, tiririca, baguassu, cajuru, caipira, cachaça, bruaca, chupeta, cumbuca. Ressalte-se que se deve levar em conta, igualmente, a produtividade lexical oriunda de mecanismos de criação léxica, como os processos derivativos e compositivos, abreviações, linguagem figurada etc. De outra parte, Marroquim (1996, p.122) afirma que: A luta língua culta e o dialeto se processam no campo da sintaxe. A primeira recebe o léxico variadíssimo de uso popular, como um enriquecimento vocabular aproveitável e aproveitado. É intransigente, porém, quanto à sintaxe, pois é ela a estrutura viva da língua; é na sua articulação que reside a alma e o caráter do idioma (...) já algumas formas sintáticas dialetais firmaram-se de tal forma na linguagem de todas as classes, que estão entrando na literatura. O português do Brasil tornou-se, na sintaxe, já há algum tempo, uma língua de 10 tópico, conforme Oliveira (1996), por meio do deslocamento do objeto ou do circunstante, e, ainda, pela reiteração do sujeito. A construção de tópico aparece com o mecanismo da topicalização e do deslocamento à esquerda. Observe, pois: A bicicleta eu comprei-a na loja. A bicicleta eu comprei na loja. O professor ele é incompetente. Com a caracterização do PB como língua de tópico, sua classificação topológica passaria a ser TSVO. Alguns aspectos sintáticos, fazendo um contraponto com a gramática tradicional, ressaltam a diversidade do PB, que, de certo modo, está presente em todo o país. Veja: i. ii. iii. iv. v. vi. vii. viii. ix. x. pronome reto como objeto: Chame ele pra mim. Construção com objeto nulo: Comprei ontem cedo na quitanda. O pronome “mim” como sujeito do infinitivo: É pra mim fazer o trabalho. Seqüência lingüística com ter existencial: Tem reunião de departamento amanhã cedo. A expressão “a gente” em substituição a pronome “nós”: A gente faz a proposta. Começo de frase com pronome obliquo: Me dá um dinheiro aí Construção passiva com verbo no singular e sujeito no plural: Conserta-se relógios. Sintagma nominal com pluralização apenas do determinante: Os aluno estudioso. Verbo de movimento com a preposição em: Cheguei na cidade. Enfraquecimento da flexão: Tu Ele Nós Eles xi. foi Relativa com pronome lembrete: A aluna que eu falei com ela, mora no sítio. Essas realizações variacionais sintáticas são mais presentes na modalidade falada, R G L, n. 5, jun. 2007. 11 observados contexto e situação. Uma ou outra forma faz parte, também, da modalidade escrita. Em “Como falam os brasileiros”, Leite e Callou (2002, p.57) afirmam que: A variação existente hoje no português do Brasil, que nos permite reconhecer uma pluralidade de falares, é fruto da dinâmica populacional e da natureza do contato dos diversos grupos étnicos e raciais nos diferentes períodos da nossa história. São fatos dessa natureza que demonstram que não se pode pensar no uso de uma língua em termos de “certo” e “errado”, “bonita” ou “feia”. De acordo com o trecho transcrito não existe na linguagem falada realizações que não tenham uma trajetória histórica. Nada surge do nada e a sociolingüística e a gramática histórica, principalmente, têm procurado mostrar isso. Assim é que existem variantes de prestígio e variantes estigmatizados ou, ainda, as chamadas variantes padrão e variantes não padrão. Por fim, o encerramento dessas considerações sobre a variação lingüística no Brasil se dá com o que diz Cunha (1986, p.79): Nenhuma língua permanece uniforme em todo o seu domínio e ainda num só local apresenta um sem-número de diferenciações de maior ou menor amplitude. Porém essas variedades de ordem geográfica, de ordem social e até individual – pois cada indivíduo tem o seu idioleto, como hoje se diz, isto é, procura utilizar o sistema idiomático da forma que melhor lhe exprime o gosto e o pensamento – essas variedades, reprisemos, não prejudicam a unidade superior da língua nem influem na consciência que tem os que a falam diversamente de se servirem de um mesmo instrumento de comunicação, de manifestação e de emoção. Depois de tudo o que foi colocado ao longo do texto, é imperioso afirmar que as descrições sociolingüísticas, principalmente as que têm por base a Teoria da Variação Laboviana e as elaborações dos Atlas lingüísticos regionais e do Brasil, darão cabo das diversidades lingüísticas do Brasil já em circunstâncias bem avançadas. Referências bibliográficas AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira, 1920.2.ed. São Paulo: Anhembi, 1955. BRAGA, Maria Luiza. Construção de tópico de discurso. In: A.J. NARO. Relatório final de pesquisa: subsídios sociolingüísticos do Projeto Censo à educação. Rio de Janeiro, UFRJ, vol.1e2, 1986. CUNHA, Celso. Língua Portuguesa e realidade brasileira. 9.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. FISHER, John L Social influences on the choice of a linguistic variant. Word. 14(47-56), 1958. LEITE, Yonne e CALLOU, Dinah. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. LUCCHESI, Dante. O conceito de transmissão lingüística irregular e o processo de formação do português do Brasil. In: RONCARATI, Cláudia e ABRAÇADO, Jussara (orgs.). Português 12 brasileiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. MARROQUIM, Mário. A língua do Nordeste. 3.ed. Curitiba: HD Livros, 1996. MATOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. MOLLICA, Maria Cecília. Estudo da cópia nas construções relativas em português. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1977. NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca em 1922. ed.Rio,1953. OLIVEIRA, Dercir Pedro de. O tópico em língua escrita. In: Letras & Letras. V.12,n.2, jul/dez. Uberlândia: Ed. da UFU, 1996. PARANHOS DA SILVA, José Jorge. O idioma do hodierno Portugal comparado com o do Brasil. Rio de Janeiro, 1879. ROSSI, Nelson. Atlas Prévio dos falares baianos. Rio: INL, 1963. SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Presença; Brasília, INL, 1976. TARALLO, Fernando. Relativization Strategies in Brasilian Portuguese. PHD Dissertation. Philadelphia, 1983.(mimeo). WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Empirical foundations for a theory of language change. In: Winfred P. Lehmann & Yavov Malkiel (eds.). Directions for Historical Lingüistics. Austin: UniversitY of Texas Press, p.97-195. Notas. a Professor titular de Lingüística e Língua Portuguesa, do Departamento de Educação, do Câmpus de Três Lagoas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil. b O conceito de transmissão lingüística irregular é aqui tomado para designar processos de contato massivo c prolongado entre as línguas, nos quais a língua do segmento que detém o poder político é tomada como modelo de referência para os demais segmentos. (...) Quando uma grande população de adultos em muitos casos falantes de línguas diferenciadas e mutuamente ininteligíveis – é forçada a adquirir uma segunda língua emergencialmente (...) R G L, n. 5, jun. 2007. 13 Cruzando os fios da História com a historicidade do discurso* Gláucia Muniz Proença LARA** Abstract: In the present work, we take as analysis object the speech of ownership to 1º mandate of Jose Orcírio dos Santos (Zeca of the PT), former-governor of Mato Grosso do Sul (MS), searching, to the light of the DA (French school of Discourse Analysis), to study the discursive and ideological formations that cross the cited speech, as well as apprehending the “game of images” (image of the I/enunciator, articulated to the notion of ethos, image of other/enunciatary, image of MS) that in it constitutes. In this manner, “we cross” the historicity of the text (the tram of felt that in it constitutes) with History (the relation with the exteriority), as it considers the DA. Key-words: historicity, politics discourse, History, Discourse Analysis. Introdução O discurso político tem atraído vários pesquisadores e estudiosos ao longo do tempo. A escola francesa de análise do discurso (AD), por exemplo, privilegiou, nos seus primórdios, esse tipo de discurso como objeto de estudo. Pêcheux, em prefácio a trabalho de Courtine (1981, p. 5), constata que tal disciplina “parece ter experimentado, desde suas origens, um pendor irresistível, na França, para eleger como objeto de estudo os ‘discursos políticos’ (de esquerda, mais freqüentemente), para escrutar suas especificidades, suas alianças e suas demarcações”. No Brasil, muitos são os trabalhos que, orientados por perspectivas teóricas distintas e por diferentes objetivos, têm-se debruçado sobre o discurso político, buscando desvendar seu “funcionamento” e refletir sobre seus efeitos de sentido. Entre eles, podemos citar as pesquisas de Souza (1987), que procura examinar a relação entre língua e ideologia no discurso sindical de Luís Inácio da Silva; de Fiorin (1988), que estuda as invariantes do discurso do golpe de 1964; de Pinto (1989), que analisa a “fala” do Presidente José Sarney sobre o Plano Cruzado; de Lima (1990), que empreende a análise discursiva do termo “povo” nos discursos de 1º de Maio de Getúlio Vargas; e de Cazarin (1998), que examina a heterogeneidade discursiva mostrada no discurso político de L. I. Lula da Silva, no período compreendido entre 1978 e 1995. O presente trabalho elegeu como objeto de estudo o discurso político, mais especificamente o discurso de posse (proferido em 1o de janeiro de 1999) referente ao primeiro mandato do ex-governador de Mato Grosso do Sul – doravante MS – José Orcírio dos Santos, o Zeca do PT. Lembramos que José Orcírio foi reeleito em 2002, cumprindo um segundo mandato no período de 2003 a 2006. A escolha desse discurso – e não de outros, que estariam igualmente disponíveis – tem sua razão de ser: a vitória de José Orcírio na eleição governamental de 1998 significou a ruptura no plano político, não apenas porque um candidato de esquerda assumiu, pela primeira vez, a função mais relevante de MS, mas também porque sua ascensão pôs fim a um ciclo que se repetia desde a divisão do Estado (Lei Complementar nº 31, de 11 de outubro de 1977), com o revezamento de três governadores – Marcelo Miranda, Wilson Barbosa Martins e Pedro Pedrossian – no poder. Nosso objetivo é, em linhas gerais, verificar como essa ruptura se dá no plano discursivo. Para tanto, propomo-nos cruzar, no discurso escolhido, a historicidade do texto (a trama de sentidos que nele se constitui) com a História (a relação com a exterioridade). 14 Pressupostos teóricos No quadro da AD francesa, pretendemos, num primeiro momento, analisar as formações imaginárias que interagem no discurso de posse de Zeca do PT, articulando a “imagem do eu” à noção aristotélica de ethos, a fim de mostrar como a imagem do enunciador está atrelada à própria imagem do outro (povo, políticos em geral, ex-governadores) e à própria imagem do “objeto” (MS) que ele constrói. Assumimos, nesse caso, com PÊCHEUX (1990, p. 79-87), que o discurso não deve ser entendido como simples transmissão de informações, mas como “efeito de sentidos” entre A e B, que são lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares esses que estão representados por uma série de formações imaginárias: a imagem que o falante tem de si, a que tem do seu ouvinte, a que tem do referente etc. Quanto ao ethos, afirma Maingueneau (2001, p. 97-98) que esse tipo de fenômeno permite revelar, por meio da enunciação, a personalidade do enunciador. Pontuando que o discurso é inseparável daquilo que se poderia designar, de forma muito grosseira, como uma “voz”, o autor destaca que essa era uma dimensão bastante conhecida da retórica antiga, que entendia por ethé “as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, através de sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem” (grifos do autor). Nesse sentido, Aristóteles distinguia: phrônesis (ter o aspecto de pessoa ponderada), areté (assumir a atitude de um homem de fala franca, que diz a verdade crua) e eunóia (oferecer uma imagem agradável de si mesmo) (MAINGUENEAU,1993, p. 45-46; grifos do autor). Num segundo momento, à luz da concepção de heterogeneidade constitutiva, buscaremos apreender as formações discursivas que atravessam o discurso em exame, tanto aquelas pertencentes ao campo discursivo político quanto a outros campos (como o religioso, por exemplo), examinando as relações de aliança ou de confronto que as FDs estabelecem entre si, a fim de desvelar a formação ideológica (FI) que rege essas relações. Lembramos que as noções de formação discursiva (FD) e de formação ideológica (FI), originárias, respectivamente, dos trabalhos de Foucault e de Althusser, são (re)formuladas no quadro da AD. Nessa perspectiva, uma formação ideológica, definida como “um conjunto de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos a posições de classe em conflito umas com as outras”, comporta necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que “determinam o que pode e o que deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares, no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes” (PÊCHEUX & FUCHS, 1990, p. 166-167; grifos dos autores). Cabe, finalmente, explicitar o que entendemos por discurso e, mais especificamente, por discurso político. Souza (1987, p. 29), citando Courtine, concebe o discurso como um espaço em que se imbricam o ideológico e o lingüístico. A relação língua/discurso/ideologia também é abordada por Bakhtin (1990, p. 96-113). Entendendo o discurso como tudo aquilo que se constrói no momento da enunciação e que resulta, portanto, da interação de indivíduos socialmente organizados, o autor afirma que a língua (através da qual o discurso se realiza) é inseparável de seu conteúdo ideológico. Assim, enquanto noção intermediária entre a língua (geral) e a fala (individual), o discurso implica lugar social, interação. Quanto à noção de discurso político, alguns autores, como, por exemplo, Lima (1990, p. 20), afirmam que a distinção discurso político versus outros discursos constitui um engodo, já que em qualquer discurso podemos encontrar a instância “político” e que, inversamente, podemos não encontrar elementos “políticos” em um discurso dito “político”. Entretanto, falar de um discurso x ou y implica considerar que temos um conjunto de enunciados que se relacionam entre si de alguma forma mais ou menos garantida, seja porque se produzem numa mesma instância, seja porque relativos a um mesmo referencial. R G L, n. 5, jun. 2007. 15 É isso que nos permite, por exemplo, falar de discurso político, discurso sindical, discurso médico ou discurso de esquerda (POSSENTI, 1990, p. 45-59). Não se trata, porém, de formações discursivas estanques, definidas de uma vez por todas. O discurso do sujeito se tece polifonicamente, num jogo de vozes cruzadas, complementares, concorrentes, contraditórias; seu discurso é, pois, atravessado por várias FDs, cujos limites podem romper-se ou embaralhar-se. Diante do que foi exposto, falar de discurso político implica, no nosso modo de entender, considerar que temos um discurso caracterizado, predominantemente, por determinadas especificidades, mas que pode ser atravessado por elementos oriundos de outros discursos ou de outras FDs. Não podemos perder de vista que todo e qualquer discurso é, por excelência, heterogêneo e o discurso político não foge à regra. De acordo com Pinto (1989, p. 56), o discurso político necessita, como nenhum outro, interpelar, pois seu êxito depende de sua habilidade de construir sujeitos com a mesma visão de mundo que defende, na qualidade de guardião das idéias e valores da classe dominante. É, portanto, um discurso persuasivo, por natureza, cujo objetivo é vencer a luta (política), através do jogo da desconstrução e reconstrução de significados. Comparando o discurso político ao científico, a autora aponta que, enquanto neste a ênfase no objeto do discurso (o enunciado) apaga as marcas do sujeito (o enunciador), criando um efeito de sentido de “saber objetivo”, naquele há um sujeito presente, explícito que se instaura completamente no discurso. Entretanto, se a primeira luta do discurso político é a de instaurar sujeitos que o enunciam, essa luta não se esgota aí: ela ganha novos contornos quando o foco é analisar os sujeitos que são enunciados pelo enunciador. Um discurso dirigido aos “trabalhadores ordeiros e leais às tradições cristãs” e um outro direcionado aos “trabalhadores maltratados, explorados, sem habitação digna, sem direito à escola para seus filhos” constituem diferentemente o sujeito-trabalhador. Ou, em outras palavras, constroem desse sujeito imagens completamente distintas (PINTO, 1989, p. 53-54). Daí a importância de analisarmos a imagem do “eu/enunciador” que se mostra no discurso tanto no nível do enunciado (aquilo que o enunciador diz de si mesmo) quanto no da enunciação (o que está ligado à noção aristotélica de ethos) e de articularmos essa imagem às outras (imagem do outro/enunciatário, do “objeto” etc) que o discurso constrói. Vamos, portanto, à análise do discurso de posse do primeiro mandato de José Orcírio dos Santos – o Zeca do PT – que, como se viu, tem nos conceitos propostos pela AD seus princípios norteadores. Analisando o discurso 1.As condições de produção e o “jogo de imagens” José Orcírio dos Santos (o Zeca do PT) assumiu o governo no dia 1º de janeiro de 1999 (1o mandato), depois de uma vitória expressiva nas urnas, que o levou a derrotar, já no 1º turno, o candidato apoiado pelo então governador Wilson Barbosa Martins: o engenheiro Ricardo Bacha. Essa vitória é mais significativa ainda quando se considera que José Orcírio havia tentado, dois anos antes, tornar-se prefeito de Campo Grande, capital do Estado, tendo sido derrotado por André Puccinelli por uma margem mínima de votos, o que levou o PT a questionar a lisura e s transparência do processo e acusar o prefeito eleito de compra de votos. Foi, portanto, a primeira vez em que o PT, partido tradicional- 16 mente de esquerda, assumiu a função política mais relevante de MS, rompendo o “ciclo de governadores” que, até então, dominava inconteste na administração do Estado. Esse fato será relembrado por José Orcírio no seu discurso, através da insistência na idéia de “mudança”, como mostra o trecho abaixo: O propósito de mudança que firmei durante a trajetória de minha vida política, foi o credencial para que a população sul-mato-grossense, também movida por esse sentimento, acreditasse na alternativa de um governo popular e realizasse a mudança na condução política do nosso Estado. (p. 2; grifos nossos) Esse é, em rápidas pinceladas, o contexto histórico-social em que se constrói o discurso. Quanto à situação mais imediata de interação verbal, o governador eleito, como de praxe no dia da posse, fala na Assembléia Legislativa, mas seu discurso se dirige, fundamentalmente, ao povo, o que é compatível com a postura de um governo que se intitula “popular” (vide trecho acima). É importante nos determos aqui para estabelecer o “jogo de imagens” que se institui entre enunciador e enunciatário(s). O governador eleito constrói uma imagem de si como um “homem forte”, atribuindose qualidades morais elevadas (nível do enunciado), e reforça essa imagem também no nível da enunciação (ethos). Assim, pelo “tom” forte de uma enunciação que vai direto à crítica, recusando o uso de meias palavras – o que remete a areté – José Orcírio cria um discurso eficaz, mostrando que a palavra vem de alguém que, por meio dela, demonstra possuir as qualidades (coragem, firmeza, determinação) necessárias à implementação das mudanças que permitirão a construção de “um Estado solidário”. Vejamos: Quis Deus, pelas mãos do povo, que eu assumisse a responsabilidade de conduzir o Estado para o novo milênio. Os desafios enfrentados só fizeram fortalecer o meu caráter e minha vontade de mudar as regras do jogo. Por isso, assumo hoje, sem medo, com firmeza e determinação, o governo de um Estado economicamente falido e socialmente fracassado, resultado do descompromisso daqueles que, eleitos pelo povo, foram incapazes de retribuir-lhe a confiança. Exerceram o poder com egoísmo e ingratidão (...) Só conheceram suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zelaram com avareza até o último dia, esbulhando os últimos centavos do cofre público. (p. 3) Esse “retrato discursivo” favorável que o governador eleito constrói de si mesmo (tanto no nível do enunciado quanto no da enunciação) contrasta, no outro extremo, com a imagem, digamos, fragilizada (mas ainda assim positiva) que o discurso institui do outro/povo. Nesse sentido, o povo é, em geral, caracterizado como sofrido, maltratado, injustiçado, ludibriado (pelos governos anteriores em que acreditaram), endividado (os devedores do Estado são os devedores do povo), embora se constitua de “homens e mulheres de bem”. Percebemos, assim, como se dá, via “jogo de imagens”, a instauração do sujeitoenunciador e a do sujeito que é enunciado pelo enunciador (PINTO, 1989). José Orcírio ocupa, pois, o lugar de político de esquerda, adepto, pelo menos teoricamente, de um sistema de governo de forte participação popular, e o povo, apesar de ser quem detém e delega o poder numa democracia, acaba ocupando, no discurso em questão, um lugar “menor”, o que justifica a necessidade de um líder político corajoso e determinado, a R G L, n. 5, jun. 2007. 17 quem caberá sobretudo reorganizar a “casa”, já que a imagem que se constrói do referente MS é a de “um Estado economicamente falido e socialmente fracassado”, conforme se viu no trecho reproduzido acima. É apenas a partir da recuperação da ordem, da volta ao equilíbrio, comprometido pelo fazer dos governos anteriores, que será possível promover o desenvolvimento econômico e social de MS. Nesse sentido, a imagem positiva que o governador eleito se atribui também contrasta com os simulacros dos ex-governadores que são construídos no/pelo discurso. Estes, na sua condição de enunciatários indiretos, são caracterizados de forma extremamente negativa: são egoístas, ingratos, avarentos, descomprometidos com o povo. Enfim, as respostas às perguntas “quem sou eu para lhe falar assim”, “quem é ele para que eu lhe fale assim” e “de que eu lhe falo”, que configuram, respectivamente, os pontos de vista de José Orcírio sobre si mesmo, sobre o(s) outro(s) – tanto o enunciatário maior “povo” quanto os enunciatários indiretos – e sobre o referente (MS) permitem-nos, chegar às formações imaginárias que estão na base do discurso e que, juntamente com as variáveis sócio-históricas apontadas anteriormente, interferem, a título de condições de produção, na construção do sentido. 2.As formações discursivas e ideológicas Examinaremos aqui a “fala” de José Orcírio (o intradiscurso) por meio do seu interdiscurso (o espaço de “troca” ou de interação entre várias FDs), tal como propõe Maingueneau (1991). Admitindo que “uma formação discursiva aparece como o lugar de um trabalho no interior do interdiscurso”, o autor considera o interdiscurso como a unidade de análise pertinente, na medida em que permite apreender não uma FD, mas a interação entre FDs, o que implica que a identidade discursiva se constrói na relação com o Outro. Assim, todo discurso mantém relação com outros discursos (os quais inclui, exclui, pressupõe etc.), relações essas determinadas pelo interdiscurso (MAIGUENEAU, 1991, p.160-163). Entretanto, por tomar interdiscurso como um termo bastante vago, o estudioso busca refiná-lo e torná-lo mais operatório, introduzindo três conceitos complementares: o de universo discursivo, o de campo discursivo e o de espaço discursivo. É a partir do universo discursivo, enquanto conjunto de enunciados de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada, que são “recortados” os domínios suscetíveis de ser estudados pelo analista: os campos discursivos. Estes podem ser definidos como um conjunto de FDs que se encontram em concorrência (afrontamento aberto, aliança ou neutralidade aparente) e se delimitam, portanto, a partir de uma posição enunciativa numa região dada. (MAINGUENEAU, 1991, p. 157-158). Fazendo uso das duas noções definidas acima, podemos dizer que temos, no interior do universo discursivo, um campo discursivo político, em que várias FDs se encontram em concorrência, delimitando-se reciprocamente. Dentro do campo, podem ser isolados 18 espaços discursivos, isto é, subconjuntos que ligam ao menos duas FDs que mantêm relações privilegiadas, relações essas que o analista julga pertinentes para o seu propósito. Isso quer dizer que o espaço discursivo não é dado a priori, resultando de uma escolha do pesquisador (MAINGUENEAU, p. 1991:163). Nessa perspectiva, vemos que a o discurso de posse de José Orcírio é “atravessado” por várias FDs, mostrando, dessa forma, a heterogeneidade que está na base de sua constituição (e que, num outro plano, se mostra através de “marcas” específicas, sejam ela unívocas ou não). Se, utilizando a noção de espaço discursivo, fizermos um “recorte” dessas FDs, situadas no campo político, no sentido de estabelecer relações que sejam cruciais para a compreensão do discurso em questão, constatamos a existência de pelo menos dois espaços discursivos. No primeiro plano, um discurso “situacionista” (atribuído, portanto, à situação, ao governo que ora assume o poder) estabelece uma relação polêmica com um discurso “oposicionista” (relacionado aos governos anteriores). Isso porque cada uma dessas FDs define sua própria identidade pela negação das unidades de sentido construídas pela outra (MAINGUENEAU, 1991, p.165). Num outro plano, um discurso de cunho populista, que prega o compromisso com o social, articula-se – contraditoriamente – com um discurso tradicionalista, que prega a austeridade e a moralização no nível econômico e administrativo, ou seja, essas duas FDs partilham o mesmo espaço discursivo sem que a presença de uma implique necessariamente a rejeição ou a negação da outra. Isso mostra que as FDs estabelecem entre si relações dialógicas, que tanto podem ser confronto quanto de aliança, revelando, em última análise, que a constituição dos discursos, assim como a dos sujeitos, se dá de forma contraditória. A contradição, que une e divide ao mesmo tempo os discursos, é, pois, algo inerente às FDs e FIs, sendo a própria individuação de um discurso um processo contraditório (COURTINE, 1981, p.29). A FD situacionista que “atravessa” o discurso de José Orcírio pode ser apreendida através de enunciados que valorizam o fazer (futuro) do governador do PT e as intenções que o iluminam. Isso ocorre, por exemplo, quando se diz que os salários serão pagos em dia e que se buscará o fortalecimento das relações com os servidores públicos, como forma de valorizá-los e motivá-los, ou quando se afirma que o repasse constitucional de verbas aos Municípios será garantido e honrado e que se lutará em defesa do pacto federativo. Já a FD oposicionista pretende mostrar que o fazer dos outros (sobretudo dos dirigentes anteriores) foi danoso ao povo. É assim que os atrasos no pagamento dos servidores públicos e a falta de repasse do dinheiro dos Municípios são caracterizados como “completa ausência de sensibilidade e de solidariedade humana dos dirigentes públicos”. São, pois, FDs cuja identidade se define por oposição à identidade da outra. Assim, todo enunciado narrativo e todo tema do discurso situacionista negam o enunciado e o tema correspondentes do discurso contrário (o oposicionista) e vice-versa. Além disso, cada uma das duas FDs que caracterizam essa troca polêmica “compreende” os enunciados (e o fazer) do outro, traduzindo-os em sua própria grelha semântica. R G L, n. 5, jun. 2007. 19 É assim, por exemplo, que os gastos empreendidos pelos governos anteriores são “traduzidos” no discurso situacionista como “esbulhamento” dos cofres públicos, motivado por interesses particulares e de grupo. Se a relação entre a FD situacionista e a FD oposicionista é nitidamente polêmica, o mesmo não ocorre quando se trata do segundo espaço discursivo que “recortamos”. Nele, busca-se uma espécie de harmonização entre a FD de cunho populista e a FD tradicional. Essa convivência, até certo ponto pacífica, entre as duas FDs (já que a presença de uma não implica a rejeição ou a negação da outra), manifesta-se, com clareza, no seguinte trecho: Infelizmente não poderei apresentar aqui apenas as ações para a implantação das políticas democráticas e populares de nosso governo. A grave situação financeira do Estado obriga-me a apresentar, também, medidas para garantir, de forma mínima, a administração dos primeiros cem dias de governo. Este documento resume nossa intervenção emergencial nos rumos da administração pública sem, contudo, esquecer de reafirmar nosso compromisso de campanha. Como governador empossado, assino hoje 16 decretos que consolidam as promessas de austeridade administrativa e implantação de políticas públicas voltadas ao bem-estar da população. (p. 7) Assim, enunciados que pregam a moralização das finanças, a racionalização das despesas, a revisão dos incentivos fiscais concedidos, o cancelamento de regimes tributários especiais, o incremento da fiscalização preventiva, com punição severa para a corrupção e a sonegação (FD tradicional) convivem com aqueles que pertencem a uma FD de cunho populista e que anunciam, por exemplo, a valorização do ser humano e o compromisso com o bem-estar da população, acima de tudo, o que implica a não-aceitação de “políticas financeiras impostas, que maltratam nossa gente”, ou ainda, a defesa de “ações que beneficiam nosso povo sofrido”. O trecho que reproduzimos abaixo ilustra claramente a filiação do discurso em questão a uma FD de cunho populista: Nosso objetivo e compromisso é a construção de um Estado solidário que, além de combater as mazelas e desigualdades sociais, através de programas voltados à distribuição de renda e valorização do ser humano, como a bolsa-escola, o banco do povo, o médico de família e o orçamento participativo, possa incentivar a construção de novas relações entre as pessoas, onde o respeito, o auxílio e o convívio harmonioso com o próximo sejam a regra e não a exceção. Um Estado onde homens e mulheres possam partilhar os sonhos e as conquistas, onde o que seja permitido a um não seja vedado a outro. Um Estado que permeie suas ações contemplando as políticas de gênero. Um Estado que inclua e valorize o ser humano. (p. 13) Assim, o complexo das FDs, em seu conjunto, define o universo do “dizível”. Não podemos perder de vista, no entanto, que embora a interação entre as quatro FDs mencionadas seja bastante equilibrada, no discurso em questão, diríamos que predominam as FDs situacionista e populista sobre as outras duas, o que é compreensível, uma vez que se trata 20 do discurso de um governo que se diz popular e que pretende, acima de tudo, valorizar seus próprios compromissos, ações e atitudes. Para além do campo político, podemos resgatar ainda duas FDs, oriundas de outros campos discursivos (o religioso e o lúdico) que “atravessam” o discurso do sujeito e que estabelecem relações de aliança com as FDs políticas situacionista e populista. Trata-se da FD cristã, que atribui a Deus a responsabilidade maior pela conjunção do então candidato com o poder, e uma espécie de FD do jogo (perceptível quando se fala, por exemplo, em “mudar as regras do jogo”). O que já foi dito permite-nos concluir que o discurso é heterogêneo por natureza, pois sempre comporta, constitutivamente, em seu interior, outros discursos. O que importa para a AD é, então, romper a aparente homogeneidade discursiva e fazer vir à tona sua heterogeneidade fundante, mobilizando, para tanto, a categoria da “memória discursiva” (INDURSKY, 1992, p 285-302). Uma vez apreendidas as FDs que interagem no espaço interdiscursivo em que se inscreve a “fala” de José Orcírio, resta-nos buscar a FI em que essas FDs se inscrevem, uma vez que, como vimos, o discurso constitui o ponto privilegiado de encontro entre o lingüístico e o ideológico. Propagandas televisivas que comemoraram, à época, os 21 anos de fundação do PT, partido a que se vincula o governador eleito, insistiam no lema: combater a corrupção e melhorar a vida do povo. Esse bordão está em sintonia com o que propõe o discurso de posse de José Orcírio, inscrevendo-o, portanto, numa FI que defende as idéias, os valores e os interesses do povo. Considerando que a análise não se interessa pela “verdadeira” posição ideológica do enunciador real, mas pelas visões de mundo do(s) enunciador(es) inscrito(s) no discurso (FIORIN, 1988, p. 51), afirmaríamos, então, que o discurso de José Orcírio é “atravessado” por FDs que materializam, através da linguagem, uma FI das classes populares. Isso se dá, evidentemente, no nível do parecer. Como o que importa é a verdade interna do texto, o discurso convence, persuade o interlocutor a que se destina porque “parece verdadeiro”. Nesse sentido, o povo, enunciatário maior a quem o discurso se dirige, é tomado como uma massa homogênea movida pelos mesmos interesses. O governo, que dirige o Estado, passa, assim, a justificar suas ações em nome de uma vontade única: o bem-estar comum, o que implica, através de um mecanismo semântico básico de universalização abstrata, negar as diferenças em nome de uma unidade superior, que engloba contrários e contraditórios. Essa relação “natural”, que vê a sociedade organizada como um pacto em função de interesses maiores que pertencem a todos, serve, na realidade, para ocultar a existência de classes em confronto numa FS (formação social). Tal estratégia, observada por Fiorin (1988a) nos discursos do regime militar, também se manifesta no discurso de posse de José Orcírio. Não podemos perder de vista, além disso, que a instância do poder está inexoravelmente ligada aos interesses da classe hegemônica, pois é esta, em última análise, que sustenta aquela. E, embora haja numa FS tantas FIs quantas forem as classes sociais, a FI dominante é a da classe dominante. Essa conjuntura nos levaria a afirmar que um discurso R G L, n. 5, jun. 2007. 21 que institui o povo como seu enunciatário maior, atribuindo-lhe um querer único, serviria, na realidade, para escamotear a relação classe hegemônica/instância do poder. Com isso, manter-se-ia o status quo, mas se negaria essa manutenção sob um aparente processo de mudanças, cujos benefícios seriam estendidos a todos. Resta saber até que ponto, em sua essência (nível do ser), o discurso de José Orcírio mantém o comprometimento, observado no nível da manifestação (nível do parecer), com a FI das camadas populares. Não buscaria ele, como os discursos políticos em geral, ocultar a relação com a FI das elites, que constituem, em última análise, a fonte do poder, através da idéia de um Estado que paira acima das diferenças e interesses de classe? Fica a questão em aberto para novas e mais profundas investigações. Referências bibliográficas AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). 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São Paulo: PUC/SP, 1987 (Dissertação de mestrado). *O presente artigo é parte da pesquisa “As imagens de Mato Grosso do Sul no discurso de seus governantes”, que foi desenvolvida por nós no período de 1999-2002, quando ainda atuávamos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), da qual aposentamos em fevereiro de 2004. Foi apresentado no III Encontro Nacional do GELCO – II Simpósio de Língua de Sinais e Bilingüismo – I Colóquio Regional da ALED no Brasil, triplo evento realizado pela UnB, em Brasília, DF, em outubro de 2006. **Docente da FALE/UFMG. Docente da FALE/UFMG. R G L, n. 5, jun. 2007. 23 24 O ARSENAL TEÓRICO DE BAKHTIN: ENTRE O ESTUDO DA LINGUAGEM E O SER SOCIALA* Vânia Maria Lescano GUERRAb Jefferson Barbosa de SOUZAc Carlos Vinicius da Silva FIGUEIREDOd Érica Roberta DOURADO Gislane Pedroso BORGES Lorena Adami da CRUZ Sandra Regina Nóia MINA Abstract: Our objective in this study is to reflect on some Bakhtin’s concepts, from his conception of language as an abstract system and as a collective, integrant creation of a cumulative dialogue between “I” and the “other”, between many “Is” and many “others”. We understand our goal does not constitute simple task, in result of the amplitude and the complexity of its workmanship, discussion around the attributed authorship the texts signed with other integrants’ names of the Bakhtin’s Circle, and unfamiliarity that still it’s verified in totality of his ideas and the object diversity of author’s reflection. From a preliminary inquiry, we verify that the current publications are innumerable which, of different and until paradoxical forms, appeal to Bakhtin to try the validation of extremely disparate hypotheses between itself. It is possible to find the Bakhtin’s thought since in dedicated works of semiotics to the study of the cinema, of the painting, even in literature works whose emphasis falls again into aesthetic questions of the literary texts, and of linguistics whose focus is on the process of subjectivity constitution. Key-words: dialogism; ideology; subjectivity. Introdução Estudar a obra de Bakhtin é uma tarefa difícil em decorrência da amplitude e da complexidade do seu pensamento, da discussão em torno da autoria atribuída a textos assinados com nomes de outros integrantes do círculo de Bakhtin, do desconhecimento que ainda se verifica da totalidade de suas idéias e da diversidade de objetos de reflexão do autor. Inúmeras são as publicações atuais que, de formas diferentes e até paradoxais, recorrem a Bakhtin para tentar a validação de hipóteses extremamente díspares entre si. É possível encontrar o pensamento bakhtiniano desde em trabalhos de semiótica dedicados ao estudo do cinema, da pintura, até em trabalhos de literatura cuja ênfase recai em questões estéticas dos textos literários, e de lingüística cujo foco está no processo de constituição da subjetividade. Mikhail Mikhailovitch Bakhtin – filósofo, historiador da Cultura, Estética e Filologia – nasceu na Rússia, em 1895, e viveu o conturbado período da revolução, da possibilidade de uma nova sociedade e das impossibilidades ditadas pelo governo stalinista. Sua extensa obra é caracterizada por uma concepção dialógica da linguagem, da vida e dos sujeitos. Ele é um dos maiores pensadores do século XX e um teórico fundamental da língua. Em Marxismo e filosofia da linguagem está sua teoria da linguagem e do dialogismo em que R G L, n. 5, jun. 2007. 25 ele enfatizou a heterogeneidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme das manifestações de linguagem em situações sociais concretas, diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto é, o sistema abstrato da língua, com suas características formais passíveis de serem repetidas. Nosso objetivo neste ensaio é refletir sobre alguns conceitos bakhtinianos, a partir de sua concepção de linguagem como um sistema abstrato e como uma criação coletiva, integrante de um diálogo cumulativo entre o “eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros”. A fim de que os conceitos por nós eleitos possam ser elucidados ao longo deste trabalho, trazemos algumas análises que dizem respeito ao estudo que fizemos sobre o pronunciamento do Primeiro Comando da Capital (PCC) à mídia televisiva, a partir de um discurso sobre identidade transgressora (ser social). Esclarecemos, ainda, que a transcrição desse discurso foi publicada na Revista ISTO É, de 24 de maio de 2006, periódico de grande circulação nacional. Carnavalização Um conceito que nos interessa mobilizar é o de carnavalização, termo decorrente de análises bakhtinianas acerca da produção literária de Rebelais e Dostoievski, e que se modifica ao longo desse percurso teórico: de simplesmente adereço e mobilização popular passa ao grotesco e descomunal, proporcionados pela ruptura no furor de uma sociedade totalmente oficial. Conceitualmente, então, carnavalização, como o próprio termo sugere, advém de carnaval, cuja imagem de celebração, durante a Idade Média e Renascimento, estava intrinsecamente ligada à comemoração do início do ano ou renascimento da natureza. Aqui no Brasil, toma-se a comemoração popular do carnaval como uma representabilidade da cultura brasileira (austral), de que decorre a aplicabilidade conceitual do termo na contemporaneidade brasileira. Máscaras, fantasias, pinturas, paródia constituem o universo carnavalesco que, para Bakhtin, caracteriza a instauração da liberdade ou ruptura em relação às restrições promulgadas pelas leis que determinam uma sociedade “organizada”. Nosso país, por excelência, apresenta toda uma genealogiae conservadora perpetuante em seu discurso. Esse é um traço genético que se adquiriu no instante do processo colonizador. Portanto, melhor lugar não há, a não ser a periferia ou, por extensão, a colônia, para a ação carnavalesca. A carnavalização, então, é aquilo que se inverte, que desloca e que provoca tensão entre os mundos oficial e popular. Bakhtin (1987, p.5), da perspectiva do texto literário, diz que Os ritos e espetáculos carnavalescos oferecem uma visão de mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficial, exterior, à Igreja e ao Estado, pareciam ter constituído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma 26 segunda vida... Essa segunda vida da cultura popular constrói-se como paródia da vida ordinária, como um mundo ao revés. A construção de um segundo mundo ou de uma segunda imagem do mundo oficial evidencia o desvirtuamento da cultura como um padrão essencialmente determinante. É no instante da encenação - momentânea e restrita à data comemorativa - e da galhofa que a cultura popular subjugada produz sua leitura e sua crítica à cultura ortodoxa das leis, invertendo o discurso pedagógicof estatal. Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberdade temporária da verdade dominante e do regime vigente, da abolição provisória de todas as relações hierárquicas; privilégios, regras, tabus (BAKHTIN, 1987, p.8). A carnavalização, mesmo estando relacionada aos textos literários, pode ser visível em outros suportes, como no discurso, na materialização de vozes suprimidas que se fazem ouvir apesar da rigidez do Estado. Um caso exemplar de carnavalização é o comunicado do Primeiro Comando da Capital (PCC) redigido, pronunciado e, em especial, gravado, para ser ouvido por nossos governantes. A enunciação do comunicado interrompeu a programação normal da emissora Rede Globo, chocando os seus enunciatários, os governantes do país, encarregados de tomar decisões políticas e jurídicas em relação ao grupo. A afronta e a reversibilidade caracterizam a ação do PCC. Embora incontido do riso da ironia e do sarcasmo da galhofa, o pronunciamento do grupo pautou-se em recursos da lei, o que, em outras palavras, caracteriza a inversão de valores e papéis que define a carnavalização, segundo Bakhtin. Significação e tema Para estudiosos das competências semânticas dos enunciados e, por extensão, dos discursos, os conceitos de significação e tema oferecem suporte quanto à análise que se pauta no intra e no interdiscursog. Para Bakhtin, a significação é essencialmente arquitetada no signo lingüístico, pois, em um enunciado, cada signo se vale de seu repertório semântico, espécie de arquivo discursivo historicizado. Embora açambarque dimensões de significação contempladas pela história, a significação é, para o estudioso, um estágio inferior no que tange à capacidade de significar. Dessa forma, o filósofo atribui ao tema a possibilidade de referir-se ao sentido como resultado da conjunção da significação das categorias lingüísticas com a situação de enunciação (contexto). Tema, portanto, equivale nesse sentido ao signo ideológico, proposto pelo mesmo autor em outra ocasião: Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras são povoadas de intenções; [...] (BAKHTIN, 2004, p.100). R G L, n. 5, jun. 2007. 27 O modo como expomos pode sugerir que os dois conceitos funcionem isoladamente, o que na verdade não acontece. O sistema que configura a significação jamais é fixo e biunívoco. O tema é um alçamento que se incorpora à significação, permitindo sempre a possibilidade de renovar, flexionar ou mutabilizar os sentidos. É justamente nesse ponto que se verifica a articulação entre os discursos constituídos historicamente, ou seja, o traço da interdiscursividade. Para exemplificar o exposto, tomemos o enunciado proferido pelo PCC em gravação enviada à Rede Globo: “O RDD é inconstitucional”. Nesse enunciado apresentam-se signos que possuem uma significação própria, como é o caso de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), uma sigla substantiva, que designa modalidade de pena destinada somente a infratores que representam verdadeira ameaça à sociedade como um todo; regime em que não se admite qualquer tipo de regalia e o sentenciado passa, ao todo, 22 horas diárias encarcerado. Inconstitucional, por sua vez, refere-se, como adjetivo a “contrário ao disposto na constituição do Estado” (SACCONI, 1996, p.389). A significação do enunciado é, portanto, que o regime de encarceramento disciplinar é contrário aos preceitos previstos na constituição brasileira. No entanto, analisando o contexto no qual o pronunciamento é produzido, chegar-se-á ao tema desse discurso. Esse pronunciamento surge três meses após os ataques do PCC à capital paulista, ataques que conferiram periculosidade a Marcola e demais líderes do grupo que, em decorrência disso, foram imediatamente transferidos para o Presídio de Presidente Bernardes, onde vigora o RDD. Portanto, o tema desse enunciado remete-se à Constituição, ao Código Penal e à Lei de Execução Penal a fim de produzir efeitos de sentido de ilegalidade, crueldade, contradição no discurso do Estado. A adoção de medidas punitivas não previstas na Constituição gera esses efeitos de sentido, traduzindo como marca ideológica de luta pela preservação da integridade e chefia do próprio PCC. Sujeito e consciência Articulamos os conceitos de sujeito e de consciência, importantes construtos do amplo legado de Bakhtin no bojo das Ciências Humanas. Ele formula seu conceito de consciência a partir do conceito de ideologia. Para ele, a construção do inconsciente humano está relacionada à situação de classe ocupada pelo indivíduo; é necessário que o homem tenha um segundo nascimento: o “nascimento social”. A consciência do indivíduo é, assim, uma consciência com dimensão coletiva e não individual. O nascimento biológico não é suficiente para o homem, pois que ele é um ser social. O objeto da psicanálise é esse ser social e, portanto, seus parâmetros de análise não devem ser os biológicos, diferentemente do que ocorria nos estudos freudianos. Bakhtin propõe o estudo da palavra como instrumento de análise da dimensão ideológica da consciência humana. Segundo ele, o signo lingüístico é construído socialmente e evidencia uma ideologia, presente de sua constituição, o que vai conflitar com os estudos lingüísticos centrados na idéia de constituição física do signo 28 lingüístico defendida por Saussure. Segundo Guerra (1999), Bakhtin desenvolveu uma teoria da linguagem na qual o que de fato existe é o processo lingüístico, pois a língua constitui um processo de criação contínua que se realiza pela interação verbal social dos locutores. Nessa teoria, a intersubjetividade antecede à subjetividade; logo, a linguagem vai além de sua dimensão comunicativa, pois considera-se que os sujeitos constituem-se por meio das interações sociais. O reconhecimento do sujeito e do sentido é crucial para a constituição de ambos. Bakhtin coloca em crise a unicidade do sujeito falante, atribuindo ao sujeito um estatuto heterogêneo. O sujeito modifica seu discurso conforme as intervenções dos outros discursos, sejam elas reais ou imaginadas. Portanto, o sujeito não é a fonte primeira do sentido: o sujeito emerge do outro. O sujeito bakhtiniano é dialógico e seu conhecimento é fundamentado no discurso que ele produz: “não podemos perceber e estudar o sujeito enquanto tal, como se ele fosse uma coisa, já que ele não pode permanecer sujeito se ele não tem voz; por conseguinte, seu conhecimento só pode ser dialógico” (Bakhtin, apud TODOROV, 1992, p.34). Pode-se verificar que o eu, para Bakhtin, não é monádico e nem autônomo uma vez que não se trata do cogito autocriador de Descartes. Ele existe a partir do diálogo com os outros eus e precisa de outros para poder definir-se e ser “autor” de si mesmo. Assim, o sujeito dialógico bakhtiniano vem abalar a concepção clássica do sujeito cartesiano, circunscrito em uma identidade permanente porque o sujeito baktiniano é solidário das alteridades de seu discurso ao ser concebido numa partição de uma multiplicidade de vozes concorrentes. Diante disso, podemos afirmar que a idéia de sujeito é uma negação do sujeito pensante de Descartes, já que a “palavra do outro” se transforma, dialogicamente, para tornar-se “palavra alheia” com auxílio de outras “palavras do outro”, e, depois, palavra pessoal. A palavra já tem, então, um caráter criativo (BAKHTIN, 2003, p. 405-6). Essa teoria do sujeito de Bakhtin, na crítica radical do sujeito coisa, aponta para uma nova e relevante perspectiva de conhecimento para a lingüística, pois propõe que o sujeito só pode ser teorizado como objeto de teoria, se for reconstruído como tal, a partir da realidade das outras vozes de seu discurso. O sujeito bakhtiniano marca sua originalidade epistemológica por meio de um duplo deslocamento: um que ancora a consciência na palavra: “a consciência de si é sempre verbal” (BAKHTIN, 2004, p.183); outro que ancora o sujeito na comunidade, isto é, o “eu só pode se realizar no discurso, apoiando-se em nós” (Bakhtin, apud TODOROV, 1992, p.68). Dessa perspectiva, a consciência individual é um fato social e ideológico. Em outros termos, a realidade da consciência é a linguagem e são os fatores sociais que determinam o conteúdo da consciência: do conjunto dos discursos que atravessam o indivíduo ao longo de sua vida, é que se forma a consciência. O mundo que se revela ao ser humano mostra-se pelos discursos que ele assimila, formando seu repertório de vida. Pelo fato de a consciência ser determinada socialmente, não se pode pensar que o ser humano seja meramente reprodutivo; o que se enfatiza é, portanto, a criatividade do sujeito humano, que é influenciado pelo meio, mas se debruça sobre ele para modificá-lo. R G L, n. 5, jun. 2007. 29 Verifica-se, então, que o homem nasce duas vezes: fisicamente (o que não implica que esteja inserido na história) e socialmente, determinado pelas condições sociais e econômicas. A partir disso, não se pode sustentar a idéia — tão propalada pelo idealismo e pelo positivismo psicologista — de que a ideologia deriva da consciência. É apenas sob a forma de signos que a atividade mental é expressa externa e internamente para o próprio indivíduo (sem os signos a atividade interior não existe). O enunciado não é só meio de comunicação, mas também conteúdo da própria atividade psíquica. Bakhtin aborda em seus trabalhos, a linguagem como constituidora do sujeito; para tanto, focaliza a relação pensamento e linguagem, chave para a compreensão da natureza da consciência humana. Partindo do pressuposto de que pensamento e linguagem têm raízes diferentes, o filósofo russo constatou que o pensamento e a palavra, apesar de não serem ligados por um elo primário, não podem ser considerados como dois processos independentes. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 2004), o teórico russo critica duas posições teóricas, ambas reducionistas e mecanicistas: o “subjetivismo-individualista” e o “objetivismo-abstrato”. Por um lado, o “subjetivismo-individualista” pensa a produção do sentido como algo que deriva da consciência do sujeito. Desse prisma, o sujeito seria a instância fundadora do sentido e a linguagem representaria a expressão da mentalidade subjetiva. A identidade do sujeito forma-se a partir da negação de tudo o que não é idêntico a si mesmo, ou seja, a negação da diferença, do coletivo e a afirmação do individual. Por outro lado, o “objetivismo-abstrato” nega a subjetividade em prol da afirmação de que tudo o que o sujeito pensa/faz resulta das determinações sociais e apenas o outro se afirma como constituinte da formação do sujeito. Bakhtin utiliza o materialismo-dialético do pensamento marxista para elucidar essa questão e assevera que ambas as formas de pensamento estão equivocadas. O sujeito nem é o total responsável pela produção do sentido, nem é totalmente reprodutor de discursos cristalizados e não passíveis de nova significação. O sujeito estaria no intervalo (entremeio) dessas duas concepções. Desse ponto de vista, o individual é produto da interação social e coletiva. Para se constituir como sujeito, é necessário que o indivíduo interaja com outros sujeitos (BAKHTIN, 2003, p. 21-22): Essa distância concreta só de mim e de todos os outros indivíduos - sem exceção - para mim, e o excedente de minha visão por ele condicionado em relação a cada um deles (desse excedente é correlativa uma certa carência, porque o que vejo predominantemente do outro em mim mesmo só o outro vê, mas neste caso isso não nos importa, uma vez que na vida a inter-relação “eu-outro” não pode ser concretamente reversível para mim) são superados pelo conhecimento, que constrói um universo único e de significado geral, em todos os sentidos totalmente independente daquela posição única e concreta ocupada por esse ou aquele indivíduo. O sujeito, conforme propõe Bakhtin, é constituído na interação e seu espaço é o intervalo formado entre consciência e determinação social. O sujeito está, portanto, atravessado por outras subjetividades pois se localiza nessa linha tênue e decisória. Assim se localiza o sujeito social do PCC. Ao mesmo tempo em que luta em prol de restringir condições limitantes no sistema penitenciário, transforma-se em sujeito político, de direito e trans- 30 gressor em um comunicadoh feito na TV, como no seguinte enunciado O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado [...] Queremos um sistema carcerário com condições humanas [...] Não estamos pedindo nada mais do que está dentro da lei [...] Apenas não queremos e não podemos sermos [sic] massacrados e oprimidos [...] pois não vamos aceitar e não ficaremos de braços cruzados pelo que está acontecendo no sistema carcerário. Nesse excerto, o locutor do PCC fragmenta-se em posições sujeito, em decorrência do fato de o signo ser ideológico e, portanto, investir-se do papel social em que os “eus” desempenham práticas discursivas, para lembrar Foucault, co-relacionadas às modalidades enunciativas. Afirmar que o RDD é inviável à ressocialização e pedir que se cumpra o que determina a lei faz do sujeito transgressor um sujeito de direito; reivindicar melhores condições carcerárias e tratamentos intersubjetivos transformam-no em sujeito político; ao passo que afirmar uma atuação “não ficaremos de braços cruzados” traz a marca do sujeito da ação, o sujeito transgressor. Autor e Autoria Sem dúvida, a figura de Mikhail Bakhtin aparece hoje como uma das mais fascinantes e enigmáticas da cultura européia do século XX. Em Estética da criação verbal, ao refletir sobre a relação entre o autor e seu herói, o filósofo russo constitui de forma única a questão do autor e da autoria. Esse tema envolve uma extensa elaboração de natureza filosófica, já que, desde cedo, Bakhtin esteve empenhado em construir uma estética geral, que o levou a diferentes desdobramentos ao longo de sua produção intelectual. Na visão de Faraco (2005), Bakhtin assinala a distinção entre o autor-pessoa e autorcriador. O autor-pessoa é visto como o criador, o artista, enquanto o autor-criador exerce a função estético-formal engendradora da obra, ou seja, que compõe o objeto estético. O autor-criador, de acordo com Bakhtin, é aquele constituinte que dá forma ao objeto estético, materializa certa relação axiológica com o herói e seu mundo em suas diferentes facetas (simpatia ou antipatia, distância ou proximidade, alegria ou amargura), respeitando-se aqui a clareza de que uma efetiva posição axiológica nunca é um todo uniforme e homogêneo, mas vem aglutinar múltiplas e heterogêneas coordenadas. Dessa forma, o posicionamento valorativo, que dá ao autor-criador a força para constituir o todo, materializa escolhas composicionais e de linguagem resultantes também de um posicionamento axiológico, uma vez que, a partir dela se criarão, tanto o herói e o seu mundo, quanto a forma composicional e o material. É importante ressaltar que, de acordo com Bakhtin, em todo ato cultural assume-se essa posição valorativa diante de outras posições valorativas. No ato artístico, por exemplo, a realidade vivida é transposta para outro plano axiológico (o plano da obra), por diferentes valorações sociais, em que os aspectos do plano da vida são destacados (isolados) de sua eventicidade, sendo organizados de um modo novo, e é o autor-criador (materializado) R G L, n. 5, jun. 2007. 31 que realiza essa transposição de um plano de valores para outro. Em outras palavras, é o autor-criador quem dá forma ao conteúdo. Com isso, o ato criativo envolve um complexo processo de transposições refratadas da vida para a arte, em que o autor-criador é uma posição refratada e refratante. Refratada, pois trata-se de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; refratante porque é a partir dela que se recortam e se reordenam esteticamente os eventos da vida. Bakhtin afirma que, no estudo estético, não interessam os processos psicológicos envolvidos na criação ou no depoimento do autor-pessoa sobre seu processo criador, porque este não experiencia os processos psicológicos criativos como tais, mas apenas sua materialização na obra. A esse respeito, de fato, Bakhtin professa uma abordagem que ultrapassa a abordagem marxista da língua e da lingüística, combinando-a com um novo olhar diante das experiências culturais humanas. Atribuir, por exemplo, autoria ao comunicado do PCC passa pelo crivo de uma regra imposta pelo grupo, inscrita na própria materialidade “Como integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC, venho pelo único meio encontrado por nós para transmitir um comunicado.” Não se trata de um pré-conceito que antecede ao processo discursivo, mas de condições históricas e sociais que determinam uma regularidade sobre as práticas do grupo - mais voltadas à ação que a comunicação propriamente - que interferem nesse processo de reconhecimento autoral. Outro fator é a formação discursiva do grupo, que se torna híbrida, a ponto de projetar desconfiança do sujeito-autor (autoridade legal?) da carta: “A introdução do Regime Disciplinar Diferenciado [RDD] pela Lei 10.792/2003, no interior da fase de execução penal, inverte a lógica da execução penal.[...] conferindo à pena de prisão o nítido caráter de castigo cruel”. O autor-criador é, portanto, aquele construído pela discursividade, que está submetido à posição sujeito heterogênea e fragmentada, ao passo que o autor-indivíduo é um dado empírico, o PCC. Diálogo Como mostramos nos conceitos anteriores, aqui articulados, o diálogo – entendido como interação verbal (realizado, portanto, por meio de signos ideológicos) entre um eu e um outro – ocupa um lugar fundamental nas pesquisas bakhtinianas. Ele é a base para a concepção de sujeito (formado a partir do diálogo com outro sujeito e com o meio sóciocultural em que está inserido), de discurso (formado a partir do diálogo com outros discursos e com a(s) sociedade(s) em que esses discursos são veiculados), de signo (entendido a partir da relação com outros signos sociais), entre outras concepções que norteiam o pensamento bakhtiniano a respeito das ciências humanas modernas. Sob essa ótica, entendemos que os estudos de Bakhtin visam a um relacionamento entre o individual e o coletivo, pois os discursos – formados por signos e utilizados subjetivamente – co-existem dialogicamente em uma estrutura social. Bakhtin (2003, p. 30) afirma que há, por parte do sujeito, um querer dizer que tem ampla influência na formação 32 do enunciado: Em qualquer enunciado, desde a réplica cotidiana monoleximática até as grandes obras complexas científicas ou literárias, captamos, compreendemos, sentimos o intuito discursivo ou querer dizer do locutor que determina o todo do enunciado: sua amplitude, suas fronteiras. [...] O intuito, o elemento subjetivo do enunciado entra em combinação com o objeto do sentido – objetivo – para formar uma unidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta (única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores: seus enunciados. A relação conteúdo e forma está sempre indissociada, uma vez que a intenção do autor é objetivada no discurso sob determinada forma, que não poderia ser outra e que constitui o momento do reflexo, isto é, a marca da individualidade no real. Na verdade, há um duplo aspecto a ser considerado: todo processo de objetivação do fazer humano é orientado pelo momento subjetivo que pressupõe leitura do mundo, intencionalidade, conhecimento técnico e, ao mesmo tempo, todo resultado obtido possui pretensão de validez objetiva. É necessário o esforço do reflexo para captar o objeto, em conexão com a subjetividade humana em geral (universal), e, ao mesmo tempo, observar como esse todo se apresenta, manifesta-se, na imediaticidade histórica (singular); em outros termos, um reflexo da realidade que seja capaz de impor as impressões e vivências da cotidianidade e, simultaneamente, estar impregnado de subjetividade como elemento insuperável de seu ser-assim. A realidade apresenta-se ao homem na sua forma particular; as coisas têm sempre ontologicamente uma característica que as torna, ao mesmo tempo, universais e singulares, e por isso, particulares. Para que haja apreensão do real pela subjetividade, há necessidade de, a partir da particularidade, captar a singularidade e a universalidade. Seguindo essa abordagem, é possível asseverar que nenhum discurso pode ser estudado sem o auxílio da História. Não é história porque o sujeito resolveu contar o seu tempo, mas porque ele reflete no e sobre o seu tempo. Em consonância com essa forma de apreender o sujeito do discurso, pode-se também afirmar que toda a objetivação discursiva possui um ponto de vista autoral. Na verdade, estamos nos referindo ao posicionamento do sujeito sobre a realidade refletida no discurso, a marca de sua intencionalidade, ao escolher aquele conjunto de códigos e não outro para refletir sua fala. Reforçando essa argumentação, Bakhtin (2004, p. 32), no estudo que faz da relação entre subjetividade e objetividade, afirma: Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica. Nessa perspectiva, o diálogo, tanto exterior (na relação com o outro), como no interior da consciência (ou escrito), realiza-se na linguagem. Refere-se a qualquer forma de discurso, sejam as relações dialógicas que ocorrem no cotidiano, sejam textos artísticos ou literários. Bakhtin considera o diálogo como as relações que ocorrem entre interlocutores, em uma ação histórica compartilhada socialmente, que se realiza em um tempo e local específicos, mas sempre mutável, em decorrência das variações do contexto. Segundo Bakhtin, o dialogismo é constitutivo da linguagem, pois mesmo entre produções monológicas, observamos R G L, n. 5, jun. 2007. 33 sempre uma relação dialógica; daí podermos dizer que todo gênero é dialógico. Por todas essas considerações, pode-se observar por que o dialogismo é vital para a compreensão dos estudos de Bakhtin e das questões referentes à linguagem como constitutiva da experiência humana e seu papel ativo no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional, a importância desse conceito reside no fato de ratificar o conceito de comunicação como interação verbal e não verbal e não apenas como transmissão de informação. A contribuição à complexidade desse conceito também se verifica por implicar outros: interação verbal, intertextualidade e polifonia. Esses termos parecem designar um mesmo fenômeno com pequenas variações entre si. São essas especificidades que vão estabelecer as diferenças entre eles, aproximando-os ou distanciando-os em graus diferenciados. O mais importante é verificar que todos eles, independentemente de suas particularidades, rompem com a arrogância e a onipotência do discurso monológico. O ser social nasce com o exercício de sua linguagem. O dialogismo, como o próprio termo sugere, é uma espécie de diálogo ao qual os discursos estão submetidos pelo seu caráter simultaneamente interior e exterior à linguagem. No comunicado do PCC, por exemplo, o transgressor diz “Queremos um sistema carcerário com condições humanas, não um sistema falido”, em que “condições humanas” e “sistema falido” estabelecem diálogo com o discurso do Estado. O sujeito do enunciado inscreve-se como denunciante e desconstrói as enunciações do Estado nas leis. O diálogo do PCC com o Estado ocorre por meio da alusão aos seguintes artigos: “Art. 12 - A assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimeno de alimentação, vestuário e instalações higiênicas” (suprimento de finalidades materiais) e “Art. 1º - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” [suprimento de finalidades sociais], prescritos na Lei de Execução Penali. Então, o dialogismo é inevitável em qualquer produção humana, porque pressupõe seu outro a partir do qual se encontram articuladas as causas de uma necessidade de se posicionar, de discursar, jamais de somente informar. Posto isso, importa mobilizar o conceito de polifonia, a fim de que possamos refletir sobre o legado bakhtiniano a partir de um dos seus conceitos mais utilizados na literatura e na lingüística. Polifonia O grande eixo temático de todas as ramificações do pensamento bakhtiniano está na prosa artística, mais especificamente no romance. Em sua obra mais famosa, Problemas da Poética de Dostoiévski (1997), embora o tema central seja a literatura de Dostoiévski, a discussão sobre o romance como gênero aparece em vários momentos, sempre relacionada à discussão sobre a natureza da linguagem, literária ou não, como, aliás, foi a marca de todo o trabalho de Bakhtin. Parte substancial de suas categorias encontra-se neste livro, em particular o conceito de polifonia, que ficaria célebre pelo mundo inteiro como uma 34 das marcas maiores do pensamento bakhtiniano. No livro sobre Dostoiévski, que foi preparado durante a década de 20 e que teve a primeira edição em 1929, e a segunda, reelaborada, em 1963, o pensador russo observa que o romancista estabelece uma relação única com suas personagens, as quais têm voz própria e o mínimo de interferência da parte dele como autor, criando, assim, um novo gênero, denominado por Bakhtin de polifônico, porque apresenta muitos pontos de vista, muitas vozes. Para o estudioso, Dostoiévski foi o criador de um novo gênero literário, o romance polifônico, cuja característica marcante (entre outras exigências) estaria no fato de que, na obra do romancista russo, as vozes que ressoam no texto não se sujeitam a um narrador centralizador (como em geral acontece no romance considerado tradicional); elas se relacionam umas às outras em condições de igualdade. Bezerra (2005, p. 191) estudando as obras de Bakhtin ressalta que o filósofo russo distinguiu duas tendências para o romance: o monológico e o polifônico; no romance monológico o processo de criação é centrado no autor; assim, o outro é sempre objeto da consciência de um “eu” que controla as ações. No romance polifônico, por sua vez, a autoconsciência é o traço dominante da personagem ao construir sua imagem; dessa forma, o autor age como um regente das vozes que participam do processo dialógico. A polifonia pode ser definida a partir da interação de diferentes vozes e consciências dentro de um mesmo espaço do romance; essas vozes e consciências são sujeitos de seus próprios discursos. No romance polifônico, o autor não explica as personagens e suas consciências, uma vez que elas mesmas se definem no diálogo como consciências infinitas e inacabadas. Na polifonia, o dialogismo deixa-se entrever por meio de muitas vozes polêmicas; já na monofonia, há apenas o dialogismo, que é constitutivo da linguagem, porque o diálogo é mascarado e somente uma voz se faz ouvir; as demais são abafadas. Verifica-se, portanto, que há distinção entre a polifonia (dialogismo polifônico) e a dialogia (monofonia ou dialogismo monofônico). Na ótica de BEZERRA (2005, p. 199), Bakhtin caracteriza a polifonia no romance a partir da relação que se estabelece entre o autor e a personagem; para o filósofo russo é necessário que se enfatize a relação dialógica entre autor e personagem, em que o autor exerce um papel ativo por meio do qual se observa uma ligação entre a consciência criadora – autor – e a consciência recriada – personagem. Observa-se, então, que a personagem traz em si aspectos histórico-sociais e culturais, já que é sustentada por meio da realidade, não podendo, por isso, surgir apenas de elementos estéticos, pois, para percebê-la, é preciso relacioná-la ao real. É a partir desse diálogo entre o real e o estético, autor e personagem, que se configuram as diferentes vozes dentro de um romance. Conforme os pressupostos bakhtinianos, a polifonia é uma relação que se estabelece entre “n” participantes sociais, decorrente da dimensão do signo ideológico que coloca diversas posições em choque, aliança, complementação, oposição. Na seguinte passagem do comunicado, “Queremos que a lei seja cumprida na sua totalidade”, ouvimos não só a voz do grupo em desvantagem, mas a do cidadão do cotidiano que se vê oprimido por forças decisórias que partem da lei e que privilegiam um determinado grupo da sociedade. R G L, n. 5, jun. 2007. 35 Ouve-se também o “tu” a quem o enunciado se dirige: o Estado constantemente procura afirmar que age segundo os princípios da lei, porém essa afirmação é rebatida quando as outras vozes evidenciam uma parcialidade da lei e, por extensão, de quem a aplica. Em outra passagem, “Se nossos governantes, juízes, desembargadores, senadores, deputados e ministros trabalham em cima da lei, que se faça justiça em cima da injustiça que é o sistema carcerário, sem assistência médica, sem assistência jurídica, sem trabalho, sem escola, enfim, sem nada”, ouvem-se as vozes, além do transgressor, a do eleitor, responsável pela escolha dos políticos e líderes de direito, a voz do doente, do desempregado, do estudante ou do analfabeto que constituem a massa governada e manobrada de todo e qualquer sistema político capitalista. Gênero do Discurso Segundo Brait (2005 a), a teoria dos gêneros do discurso é clássica, o estudo desse conceito foi consagrado com Aristóteles, mas foi a partir de Bakhtin que a análise dos gêneros tornou-se mais abrangente e seguiu novas vertentes, pois Bakhtin verificou a necessidade de uma observação não apenas retórica ou poética, mas também das práticas prosaicas, por meio da linguagem que em diferentes situações e condições concretizam-se no discurso, obtendo assim uma manifestação de pluralidade. A idéia de gênero está relacionada ao tempo que se liga à história e ao espaço ao social. Brait (2005 a) assevera que o pensamento bakhtiniano vem enfatizar que os gêneros devem ser entendidos como manifestações da cultura e não como uma ação determinante, são preceitos estruturais dentro de uma determinada conjuntura para a criação de mensagens e melhor desempenho da comunicação em um contexto específico. O contexto determina-se nos entremeios da história, da cultura e do social. Esses três fatores caracterizam a condição de produção de um discurso que designa um tipo de gênero criado de acordo com as necessidades das atividades humanas. Assim, a mudança de gênero remete às variações de mundo - sabemos que os homens pensam, falam, vivem de formas diferentes. Segundo Brait (2005 b, p. 180), com o passar do tempo transformase a cultura, a sociedade e o conceito de gênero, pois, segundo Bakhtin, “a linguagem acompanha ou pode acompanhar as atividades humanas. Haverá tantos gêneros de discurso quantas atividades humanas”. O gênero discursivo adapta-se à condição de produção em que se insere a linguagem, esta é que o caracteriza conforme mostra, descreve, explica os objetos do discurso. Em Estética da criação verbal, Bakhtin (2003, p. 280) destina um capítulo à problemática dos gêneros, destacando que, desde a Antigüidade até a época contemporânea, as análises estiveram voltadas para textos artístico-literários, desvinculadas da vida social. Segundo o autor, os gêneros refletem a variedade de utilização da língua feita pelo ser humano e os enunciados são organizados conforme as condições específicas e as finalidades de cada modo de utilização da língua, que, por sua vez, se refletem em um enunciado por 36 meio de um conteúdo temático, das escolhas operadas nos recursos lingüísticos e por sua organização composicional. Ao conceituar os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados j (id.) , o autor apresenta a natureza verbal comum entre gêneros e enunciados, visualizando os gêneros a partir de sua historicidade, razão pela qual não são de natureza convencional. Ele os analisa como tipos históricos ao relacionar a eles o mesmo caráter de enunciado, caráter social, discursivo e dialógico. Durigan (1995) observa, no entanto, que a palavra tipo (de enunciado) está relacionada a uma tipificação social de enunciados que apresentam certas marcas/traços comuns, que se elaboraram historicamente nas atividades humanas, diante de uma interação verbal relativamente estável. Assim, um gênero é constituído por sua ligação com a situação social envolvente, e não por estruturas formais. Cada esfera da comunicação produz historicamente, na/para a interação verbal, os gêneros discursivos que lhe são próprios. Desse modo, estes se estabilizam e se constituem historicamente por meio de novas situações de uso da língua e, assim, de novas formas de interação verbal necessárias nas diferentes esferas de comunicação. Segundo Bakhtin (2003, p. 279-280), a riqueza e a variedade dos gêneros acompanham a infinita variedade da atividade humana, e cada esfera (cotidiana, de trabalho, científica, jurídica, escolar, religiosa) dessa atividade é composta por um repertório de gêneros discursivos que se diferenciam e se ampliam a partir do desenvolvimento de cada uma. Sublinha o autor que “A diversidade funcional parece tornar os traços comuns a todos os gêneros do discurso abstratos e inoperantes” (ibidem). Ao fazer essa reflexão, o pensador observa a natureza heterogênea dos gêneros e aponta que a diferença essencial está entre os gêneros primários (da comunicação cotidiana) e os gêneros secundários (da comunicação desenvolvida a partir de códigos culturais elaborados, como a escrita); uma distinção que dimensiona as esferas de uso da linguagem em um processo dialógico-interativo. Os gêneros primários compõem os gêneros secundários, de forma que se transformam dentro destes e adquirem uma característica peculiar. Os gêneros secundários, como romances, gêneros jornalísticos, gêneros jurídicos, gêneros científicos, são formações complexas que se apresentam em circunstâncias de comunicação mais elaboradas e mais evoluídas. Estes se constituem a partir da absorção e da transformação dos gêneros primários de todas as variedades, constituídos por meio de uma interação verbal espontânea. Dessa maneira, a relação entre os dois tipos vai além das fronteiras das características de cada tipo de gênero. Não se pode, pois, ignorar a natureza do enunciado e as suas características particulares de gênero, pois isso leva ao formalismo e à abstração, uma vez que desconsidera a historicidade do enunciado e enfraquece o vínculo existente entre a língua e a prática social. A língua está, portanto, inserida na vida por meio dos enunciados concretos/gêneros que dão existência a ela e, também, a partir dos enunciados concretos, a vida se insere na língua. Os gêneros discursivos são elaborados, segundo Bakhtin (2003, p. 284), primeiro de acordo com uma função pré-determinada (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana); segundo, a partir de dadas características específicas de cada esfera da comunicação. Assim, R G L, n. 5, jun. 2007. 37 não são estruturas fixas, imóveis, mas relativamente estáveis, tendo em vista que, para cada situação de uso de um gênero, o tema, a organização composicional e o estilo se alteram, pois o seu resultado depende das suas condições de produção e de sua historicidade. O conceito de gênero do discursok tem sido elemento-chave para se antecipar, por exemplo, que formações discursivas e ideológicas podem inscrever-se na materialidade de um determinado enunciado que provém de um suporte discursivo maior. O gênero define as regras a que os discursos estão submetidos, as condições que lhe permitem definir as modalidades enunciativas – pensando-se aqui em uma aproximação com o método arqueológico foucaultiano. O comunicado do PCC é um exemplo ímpar. Em primeiro lugar, tem-se um dispositivo de mídia removível (DVD), no qual o comunicado encontra-se gravado, o que o constitui como gravação ou vídeo. Em segundo lugar, o vídeo é uma gravação sobre a leitura de uma carta, destinada aos interlocutores que estão no poder, o que o constitui enquanto comunicado. Como se pode observar, definir um gênero é estar ciente de que ele é fluido, escorregadio, pois são demasiadamente amplas as coerções ideológicas sobre o sujeito no ato locutório. Se a linguagem acompanha o homem na história, na cultura e no social, de fato, a gravação em DVD exemplifica um contexto em que a tecnologia não serve de suporte somente à elite e ao poder, mas se tornou um gênero híbrido, um dispositivo de luta, reivindicação e solicitação de direitos, bem como de ameaças diretas e indiretas. Ideologia Ideologia, no sentido marxista do termo, significa um conjunto de representações e idéias, como também normas de conduta que norteiam o indivíduo em sua forma de pensar, sentir, agir. Conceito fundamental nos trabalhos e pensamentos de Bakhtin e dos membros do seu Círculo, que aprofundaram outras questões que Marx e Engels apenas haviam tocado, como a relação da infra-estrutura com a superestrutura, a constituição e o papel dos signos, a questão da constituição da subjetividade e da consciência, as questões da peculiaridade da palavra literária, o característico da linguagem verbal e sua relação com outros sistemas sígnicos e a questão da caracterização da arte. As questões pertinentes ao estudo da ideologia estão abordadas de forma mais ampla e aprofundada no livro Marxismo e filosofia da linguagem (MIOTELLO, 2005 p.168-169) e nos escritos atribuídos ao Círculo. O problema inicial era a forma mecanicista que Marx fazia do estudo: Bakhtin e os membros do Círculo procuravam estabelecer uma relação direta nas estruturas socioeconômicas e sua repercussão nas superestruturas ideológicas. O estudo era visto como um pacote pronto, com relações mais subjetivas que objetivas. Além desse sentido, que atribuiria à ideologia poderes de inversão de idéias, abstração, universalização de situações singulares e naturalização de valores que não nos pertencem, era necessário quebrar essa tradição de análise subjetiva/interiorizada, que degenera e morre, e como idealista/psicologizada, que não pode ser compreendida como acontecimento vivo e dialógico. Bakhtin e seus companheiros do Círculo não trabalham a questão da ideologia 38 como algo pronto e já dado, mas inserem outras discussões filosóficas. Partem do que já era aceito pelo marxismo oficial - ocultamento da realidade social e não concordam inteiramente com essa conceituação, pois destroem e reconstroem parte dessa concepção, com a ideologia oficial e a do cotidiano. A ideologia oficial é entendida como relativamente dominante, que implanta uma concepção única de produção de mundo, enquanto a ideologia do cotidiano é considerada como as condições de produção e reprodução do mundo. De um lado, é possível, por exemplo, ouvir alguém dizer em um ponto de ônibus: “Cara, estou desempregado há seis meses”, de outro, os meios de comunicação afirmando: “Todos os indicadores econômicos apresentam melhora no semestre”. É preciso compreender essas afirmações em relação dialética, não em relação causal. Pode-se compreender a mensagem que cada situação tenta passar, a que público atinge com mais freqüência e quais são os grupos sociais e problemáticas da vida cotidiana de que tratam. O ponto de vista, o lugar valorativo e a situação são sempre determinados sócio-historicamente, pois representam a realidade revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que coincide com o domínio do ideológico. Na mesma linha de raciocínio, todo signo, além da dupla materialidade para representar o mundo, é melhor expresso por palavras, pois não precisa de outro meio para ser produzido além do ser humano em presença de outro. Com base nessas atividades humanas, Bakhtin considera que, no discurso, o sujeito não se constitui apenas pela ação discursiva, mas nos espaços oferecidos pela subjetividade na constituição de sentidos. E em cada uma das atividades, os signos revestem-se de sentidos próprios, produzidos a serviço dos interesses de cada grupo, como nos exemplos “O MST invade as terras de FHC” ou “O MST ocupa a terra de FHC”, que nos mostram a inexistência da neutralidade dos discursos. Para Bakhtin uma idéia é forte, verdadeira e significativa se souber tocar aspectos essenciais da vida (MIOTELLO, 2005 p.168-169). Nessa relação, o filósofo russo defende que as menores, mais ínfimas e mais efêmeras mudanças sociais repercutem imediatamente na língua e em contextos diversamente orientados. O signo verbal não pode ter um único sentido, porque possui acentos ideológicos que seguem tendências diferentes e não eliminam outras correntes ideológicas dentro de si. A polifonia existente nos signos ecoa em várias épocas do passado, em futuros possíveis e contraditórios (com que coexiste), em palavras como pobre e humilde, que passam a ter sentidos instigantes. Bakhtin defende que a ideologia do cotidiano organiza-se em um estrato imediatamente superior (MIOTELLO, 2005 p.168-169), pois representa, no plano concreto dos acontecimentos, uma série de atos materiais determinados. Uma relação mais efetiva com as instituições ideológicas (imprensa, literatura, ciência, leis, religião) está presente na refração da ideologia e em sua produção de homogeneização e circulação. Para Bakhtin, a ideologia encontra materialização nas organizações sociais determinadas, e o movimento em cadeia faz que ela se constitua e se renove no contato ininterrupto dos indivíduos, preenchendo por completo as relações Homem x Mundo e as relações Eu x Outro em um resultado de interações sociais que, a todo momento, destrói e reconstrói os significados R G L, n. 5, jun. 2007. 39 do mundo e dos sujeitos. A tônica do conceito bakhtiniano de ideologia está na inexistência de neutralidade na linguagem, já que a ideologia permeia as instituições produzindo consensos e fazendo permanecer valores forjados sócio-historicamente. Numa matéria da Revista IstoÉ (24.05.06), por exemplo, o locutor fala sobre o consumo de drogas e o quanto isso ajuda a equipar o crime: “É de fato a mais pura e cristalina hipocrisia achar que cada cocotinha que consuma drogas não esteja ajudando financeiramente a armar os Marcolas da vida”. Nesse enunciado, o atributo de verdade absoluta antecede as concepções do consumista e do beneficiário “a mais pura e cristalina hipocrisia achar que...”, em que a pureza e a transparência evidenciam para o locutor que a verdade é visualizável e comum. Na seqüência, “que cada cocotinha que consuma drogas...”, tem-se o item lexical gírio cocotinha que geralmente se refere à droga, e, no entanto, está se referindo ao consumidor dela, acentuando a posição do locutor, o qual define droga e consumidor como semelhantes. E mais: “... ajudando financeiramente a armar os Marcolas da vida”, em que, seja por efeito metonímico, de substituição, ou de adjetivação, o item Marcola passa a apresentar valoração negativa, contaminado pela posição ideológica do PCC e do locutor da matéria. Nessa concepção de ideologia COM que trabalhamos, “Marcola” remete a criminosos, traficantes, subalternos, e define a posição do locutor em relação ao discurso oficial, jurídico e legal. Estilo Segundo Brandão (2005), as reflexões contemporâneas sobre o estilo não podem deixar de levar em conta as contribuições de Bakhtin cujas idéias têm tido atualmente grande influência sobre os estudiosos da linguagem. Como já mencionamos, Bakhtin concebe a linguagem como forma de interação social cujo objetivo é a comunicação entre falante/ouvinte, entre um eu e um tu, o que pressupõe um princípio geral a reger toda palavra: o princípio de que a linguagem é diálógica. Toda palavra é dialógica por natureza porque pressupõe sempre o outro; o outro sob a figura do destinatário a quem está voltada toda alocução, a quem o locutor ajusta a sua fala, de quem antecipa reações e mobiliza estratégias. Mas, na concepção bakhtiniana, o outro é ainda o outro discurso ou os outros discursos. A enunciação lingüística tem, portanto, um caráter social, e o produto dessa interação social é o enunciado. Como produto de trocas sociais, o enunciado está ligado a uma situação material concreta e também a um contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística. Como os atos sociais vivenciados pelos grupos são diversos, conseqüentemente a produção de linguagem também o será. Para Bakhtin, os discursos são produzidos de acordo com as diferentes esferas de atividade do homem. Bakhtin analisou a questão do estilo em suas obras, vinculando-o à dimensão textual e discursiva. Suas análises não se atêm a um único modelo, nem se subordinam a um único conceito de estilo. Em Problemas da poética de Dostoievski e A cultura popular 40 na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, Bakhtin recorre à tradição literária e não literária para estudar o estilo dos dois autores. Nessas obras, ele busca elementos para explicar as singularidades de cada autor e também instaurar uma nova perspectiva estilística e uma nova leitura dessas obras. Nos tempos atuais, é praticamente impossível falar de Dostoievski e de Rabelais sem citar os estudos de Bakhtin. Para Bakhtin (BRAIT, 2005 a, p. 98) o estilo pode dar margens a muito mais do que a simples busca de traços que indiciem a expressividade de um indivíduo, de modo que, segundo a concepção bakhtiniana, os discursos surgem de enunciados concretos, de suas formas de enunciação, que fazem história e são a ela submetidas. Para o filósofo russo, o estilo faz que a singularidade de diferentes textos dialogue com a coletividade. Ele aponta que o enunciado está no cruzamento de um problema, o estilo, que reflete a seleção das formas lingüísticas que o usuário da língua faz para produzir os seus enunciados. Assim, por ser individual, o estilo revela a individualidade de quem fala ou escreve. Essa escolha dos recursos lingüísticos está associada ao interlocutor/destinatário, uma vez que este influencia a elaboração de um enunciado. Entre o estilo e o tema observa-se um vínculo indissociável, assim como entre o estilo e a organização composicional. Segundo Bakhtin, o estilo é um dos elementos da unidade de um gênero; ele pertence ao estilo do gênero, de modo que aquilo que se pode dizer, o que não se pode e o como se deve dizer já estão pré-determinados pelo gênero a ser utilizado. Observa-se que o estilo está associado às escolhas que o locutor faz por determinadas marcas/traços que melhor atenderão às suas necessidades: o ato de selecionar determinada forma gramatical e não outra já revela um estilo. A teoria bakhtiniana sublinha que todo gênero é gerado a partir de um tema, ou seja, apresenta seu objeto discursivo e sua finalidade discursiva. Assim, o tema do romance é, para Bakhtin, o homem que fala e seu discurso. Para Durigan (1995), são os próprios gêneros que apontam para uma maior ou menor possibilidade de tratamento de um tema e do sentido de interação. Quanto à organização composicional, destaca que esta também está ligada ao estilo, uma vez que a relação estabelecida entre esses dois elementos determina o tipo de estruturação e de conclusão de um todo, o tipo de relação entre o locutor e o interlocutor. Dessa maneira, observa-se que o locutor fará a escolha da organização de seu enunciado e, também, das seqüências textuais que vão compor o todo do enunciado. É notório que Bakhtin já sublinha uma questão problemática para a reflexão sobre os gêneros discursivos: a diferenciação entre tipo textual/seqüência textual e gênero. Arriscamos dizer que o vínculo entre estilo e gênero é indissolúvel. E isso se mostra claramente quando se estuda a questão segundo a perspectiva da funcionalidade do gênero: Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. O estilo é indissociavelmente vinculado a unidades R G L, n. 5, jun. 2007. 41 temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.). O estilo entra como elemento na unidade de gênero, de um enunciado [...] [O estudo do estilo] sempre deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade (BAKHTIN, 2003, p.284). Conforme vimos, o conceito de estilo proposto por Bakhtin na análise de obras literárias considera, em primeiro plano, o gênero a partir do qual o autor nos fala. Viu-se também que o princípio dialógico define o estilo, pois se trata de um arranjo de que o “eu” se vale para se dirigir ao “tu”. O comunicado em DVD do PCC exemplifica esse conceito. No comunicado, o grupo utiliza-se de determinadas sutilezas retóricas e sintáticas, pois, primeiro, enquanto comunicado o conteúdo da carta deve ser claro, conciso e direto, e, segundo, ela se destina exclusivamente à elite política do país. Analisemos o seguinte trecho: Já em seu primeiro artigo, traça como objetivo do cumprimento da pena a reintegração social do condenado, a qual é indissociável da efetivação da sanção penal. Portanto, qualquer modalidade de cumprimento de pena em que não haja constância dos dois objetivos legais – o castigo e a reintegração social--, com observância apenas do primeiro, mostra-se ilegal, em contradição à Constituição Federal. O porta-voz da carta nesse excerto fala-nos da Lei de Execução Penal, segundo o qual o objetivo da reclusão do transgressor é ressocializá-lo e reintegrá-lo à sociedade. Questiona-se uma determinada modalidade legal em que preponderam práticas supliciantes em detrimento daquele objetivo proposto no primeiro artigo da LEP: “qualquer modalidade (...) de pena em que haja constância dos dois objetivos legais - o castigo e a reintegração social - com observância apenas no primeiro, mostra-se ilegal, em contradição à Constituição Federal”. Enquanto transgressor, o PCC dirige-se aos seus membros utilizando termos comuns à sua dimensão social marginal por meio de gírias e expressões fora do padrão culto da língua, no entanto, quando se porta como entidade política (revolucionária) para se dirigir àqueles que detêm o poder, o PCC passa a utilizar a estratégia da argumentação, à qual se plasmam itens lexicais específicos da lei e da política: “reintegração”, “indissociável”, “efetivação”, “sanção”. Por fim, na esteira do pensamento bakhtiniano, podemos acentuar que as relações dialógicas processam-se entre sujeitos, posicionados social e culturalmente, com pontos de vista, posições, materializando-se no discurso como relações de sentido, embora, como diz ele próprio, não se restrinjam às relações de ordem lógica. A alteridade como um dos pilares do dialogismo bakhtiniano faz-se presente, portanto, em todos os níveis, desde o processo de constituição do sujeito humano como um ser de linguagem, portanto constitutiva de suas práticas discursivas, até a materialidade explícita da unidade de análise da comunicação verbal, o enunciado, cujas características essenciais são a alternância de interlocutores, o acabamento e as relações entre enunciados, enunciadores e interlocutores (BAKHTIN, 2003). 42 Esperamos novas pesquisas que tragam mais luzes para o entendimento das idéias desse grande pensador russo que revolucionou as Ciências Humanas com um arsenal teórico ímpar e despojado, decorrente de uma prática discursiva ligada às questões sociais, históricas e aos estudos da linguagem. Dessas teorias emergiram categorias como “polifonia”, “carnavalização” e “dialogismo” (só para citar algumas), que, pela poderosa sugestão que contêm, oferecem respostas muito produtivas para questões que, nascidas no terreno da especialização literária, transcenderam amplamente os seus limites. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. M. (Voloshinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004. ______. Estética da criação verbal. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio, Forense Universitária, 1997. ______. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de Françoise Rebelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987. _______ . Écrits sur le freudisme. Paris: L’Age D’homme. 1980. BEZERRA, P. Polifonia. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin, conceitos-chaves. São Paulo: Contexto, 2005, p. 191-200. BHABHA, H. 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A pressuposição no jogo polifônico e argumentativo do discurso político. R G L, n. 5, jun. 2007. 43 Revista Linguagem & Ensino, Pelotas: Universidade Católica de Pelotas, v.2, n.2, p. 6190, 1999. ISTOÉ. São Paulo: Editora Três, ano 20, n.1.909 , 24 de maio de 2006. MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B. (org.), Bakhtin, conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p.167-176. SACCONI, L.A. Minidicionário Sacconi da língua portuguesa. São Paulo: Atual, 1996. TODOROV, T. Prefácio. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Notas a * Este artigo é fruto de pesquisa e de reflexão empreendida na disciplina optativa intitulada “Análise do Discurso”, ministrada pela Profª. Drª. Vânia Maria Lescano Guerra aos alunos da graduação em Letras do campus de Três Lagoas, da UFMS. b Docente da UFMS, pesquisadora apoiada pela FUNDECT. c Mestrando em Letras do campus de Três Lagoas (UFMS), integrante da linha de pesquisa Fundamentos de compreensão e produção do discurso escrito, da área de concentração de Estudos Lingüísticos. d Alunos do curso de Letras da UFMS, do campus de Três Lagoas que aceitaram o desafio instigante da escrita deste texto em co-autoria. e O termo genealogia é entendido aqui da perspectiva foucaultiana, ligado à busca da origem dos saberes por meio dos fatores que interferem na sua emergência, permanência e adequação ao campo discursivo, como elementos incluídos em um dispositivo político, que abre as condições para que os sujeitos possam construir imersos em determinadas práticas discursivas. f O discurso pedagógico a que nos referimos é o proposto por Homi Bhabha, um teórico literário indiano, em seu livro O local da cultura, 2003, p.207. g O interdiscurso é constitutivo de qualquer discurso. Ele atesta que a FD (enunciados de uma mesma base semântica), por excelência, constitui-se como tal mediante a presença de outros discursos no interior dela mesma, isto é, o sentido se dispersa para outros possíveis. h Conforme o vídeo gravado pelo PCC no seguinte site http://www.youtube.com/ watch?v=bwPHGk0ifb4, e enviado à Rede Globo sob a promessa de libertação de um funcionário da emissora seqüestrado pelo grupo. i Cf. BRASIL. Lei n° 7210 de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Disponível em http://www.soleis.com.br/L7210.htm. Acesso em 28 jun. 2007, 1 hora. j Em outras obras, Bakhtin faz referência a “formas de discurso”, “formas de um todo” e “tipos de interação verbal”. k O gênero do “comunicado” do PCC para nós não foge de seu contexto de produção. O DVD com as imagens de um transgressor lendo uma “carta” redigida pelo grupo e dirigida aos governantes e à sociedade, foi produzido no crivo de uma ameaça a um funcionário da Rede Globo, seqüestrado pelo PCC. A exigência para a libertação do indivíduo foi que a emissora transmitisse o conteúdo do dispositivo ao vivo, como ela o fez às 3 horas e 23 minutos do dia 13.08.06. 44 A HORA DA ESTRELA E O BRASIL DE 70∗ Carlos Vinícius da Silva FIGUEIREDO Edgar Cézar NOLASCO Abstract: This work tries to discuss the production of the writer Clarice Lispector produced in the 70s in Brazil. In this way, using the theory support of the Cultural Studies, which contemplates in a satisfactory way the relationship between the literary production and the political and cultural context of the time. The work will try to show that, although the writer were all the time, in a way, worried about the politics and cultural movements that were happening, to the point she got this happenings to the construction of her histories, that’s why in some how they have a realist manner. Key words: Clarice Lispector; Cultural Studies; 70 decade. Introdução Os Estudos Literários nunca estiveram tão atravessados pelos Estudos Culturais como nos dias atuais, a ponto de já ser postulado, por alguns estudiosos, a substituição daqueles pela rubrica destes. Sem querer radicalizar, o fato é que, hoje, a Cultura e, por extensão, as diferentes culturas locais e suas diferenças se fazem presentes nas narrativas que estruturam o pensamento contemporâneo. Quer essas narrativas sejam teóricas, quer sejam ficcionais. Seria como se a Cultura fosse pensada como uma narrativa discursiva que pode ser desconstruída e lida do avesso, sem ser jamais desconsiderada. No caso especifico das narrativas ficcionais, é crescente a constatação de que o começo do dialogo teórico–crítico com esse tipo de texto passa por seu lócus enunciativo, ou lócus cultural, mesmo quando a leitura proposta por tal texto seja aquela que rasura os limites de qualquer cultura. Na pós-modernidade os conceitos canônicos, como o de Cultura, por exemplo, estão por ser revisitados, desconstruídos e repensados, tanto são as diferenças sociais, culturais, políticas e étnicas que hibridizam o mundo e as pessoas contemporâneos - afastando-os de um valor absoluto e indiscutível (como o de Verdade que só levaria ao cansaço), bem como o de um conceito hegemônico qualquer. Assim, como se depreende desde já, o tema da cultura pode ampliar e aguçar nossa reflexão critica, sobretudo e principalmente quando se tem em pano de fundo o texto literário, em específico A hora da estrela de Clarice Lispector. Aliás, deve-se lembrar, por fim, que a literatura é um constructo cultural. O texto literário não passa incólume a essas diferenças culturais propostas pela pós - modernidade. Daí os estudos literários, num crescendo, expandirem-se para os Estudos Culturais, apesar de não haver um consenso por parte da crítica sobre tal aproximação. Os Estudos Culturais, enquanto suporte metodológico para o estudo da literatura, entram em cena, muito recentemente, na década de 90. De acordo com Culler, R G L, n. 5, jun. 2007. 45 o projeto dos estudos culturais é compreender o funcionamento da cultura, particularmente no mundo moderno: como as produções culturais operam e como as identidades culturais são construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de comunicações diversas e misturadas, de poder do Estado, indústrias da mídia e corporações multinacionais (1999, p.52). Conclui Culler dizendo que os estudos literários podem ganhar quando a literatura é estudada como uma prática cultural específica e as obras são relacionadas a outros discursos (C.f. CULLER, p.52). Sob o rótulo de crítica cultural, saiu recentemente o livro Crítica Cult, de Eneida Maria de Souza, que discute com lucidez crítica sobre a importância dos Estudos Culturais no espaço da literatura comparada. Diz a autora, na orelha do livro, que “com o avanço dos estudos de literatura comparada e da crítica cultural no final da década de 70 no Brasil, o discurso crítico sobre literatura ganhou maior dimensão e vigor. Expandiram - se os objetos de análise, antes restritos à linguagem literária e ao funcionamento discursivo, o que motivou a abertura para os fatos culturais”. Com isso, tomando o livro A hora da estrela de Clarice Lispector, último livro publicado em vida pela autora, parece-nos que nele ela resolveu enfrentar sem dó nem piedade questões como a da injustiça social brasileira, mostrando-nos que as diferenças culturais são na verdade gritantes. Também o livro parece zombar de conceitos hegemônicos, como o de Cultura, além de fazer toda uma crítica ao sistema sócio-político estabelecido. Daí talvez suas personagens serem todas consideradas subprodutos, rebotalhos da sociedade, ocupando o lugar daquela resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito com o ambicionado clã do sul do país. É sugestivo lembrar que uma das tantas perguntas não entendidas por Macabéa é o “que quer dizer cultura?”. A hora da estrela e o contexto cultural Literatura, História e Cultura É nas entrelinhas do discurso que o saber se diz, diz a época em que está sendo pensado, funda a escritura e acaba dizendo o seu sujeito enquanto tal . Edgar Cézar Nolasco De acordo com os autores do livro Movimentos Culturais de Juventude, podemos afirmar que não existe ser humano sem cultura, bem como que todo ser humano é produto de sua cultura (C.f. BRANDÃO & DUARTE, 1996, p.9). Stuart Hall, em A identidade cultural na Pós-modernidade, questiona a quebra dos paradigmas vigentes sobre identidade, ao afirmar que as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o individuo moderno, até aqui visto como sujeito unificado (HALL, 2004, p.7). O tema cultura pode ampliar e aguçar nossa reflexão crítica, sobretudo e principal- 46 mente quando se tem em pano de fundo o texto literário, em especifico, A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, ultimo livro publicado em vida da autora, como já se disse, que nos parece reivindicar o direito ao grito contra a injustiça brasileira a toda forma de exclusão social. Grosso modo, tratar-se-á aqui a respeito do contexto histórico-cultural do país, a partir da década de 30 até o foco de nosso objeto de estudo, a década de 70. Durante o período de 1930-1945, tanto a literatura quanto as artes plásticas no Brasil foram essencialmente “ideológicas”, voltadas que estavam para a discussão dos problemas brasileiros. Em 1945, terminada a Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, a ditadura de Vargas, o mundo passara a viver a Guerra Fria, e o Brasil um período democrático e desenvolvimentista, que chegaria à euforia no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Foi em plena instalação do regime militar (1964-1985) - período este em que toda liberdade de Expressão e idealismo foi abarcado por um poder opressor - que Clarice Lispector atingiu seu ápice com a publicação das obras A paixão segundo GH (1964) e A Legião Estrangeira (1964). A respeito de tal regime, o livro História do Brasil, de Boris Fausto, expressa com clareza a imposição ditatorial: O movimento de 31 de Março de 1964 tinha sido lançado aparentemente para livrar o país da corrupção e do comunismo e para restaurar a democracia, mas o novo regime começou a mudar as instituições do país através de decretos, chamados de Atos Institucionais (AI). Eles eram justificados como decorrência “do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções” (FAUSTO, 2000, p.465). No país, com o passar dos anos, se tornava cada vez mais impossível manter os princípios básicos da democracia, inclusive “os estudantes que tinham tido um papel de relevo no período Goulart foram especialmente visados pela repressão” (FAUSTO, 2000, p.467). Assim, com o início da década de 70, década, aliás, da publicação de A hora da estrela, as manifestações sociais se tornaram mais evidentes e foram a prova de força contra o governo, “um verdadeiro clima de terror político, que se refletiria num forte controle da produção cultural do país” (FAUSTO, 2000, p.479). A partir disso, a música ufanista voltou à cena, lembrando os tempos de Estado Novo e de Ari Barroso, em Aquarela do Brasil (1939) e Eu te amo meu Brasil (xenofobia e autoelogio ao regime militar) (BRANDÃO & DUARTE, 1996, p.12). Com a chegada do “sesquicentenário”, em 1972, o Brasil completou 150 anos de independência política, e em meio a esta euforia, a esperança fora amplamente disseminada por ações e slogans, como: Brasil: ame-o ou deixe-o. De acordo com Brandão e Duarte, no livro já mencionado, a palavra de ordem era “integração nacional”, tanto para o governo militar, que precisava legitimar o seu poder a todo o custo, para os grandes meios de comunicação, que precisavam atingir todos os mercados consumidores do país para oferecê-los aos anunciantes (BRANDÃO & DUARTE, 1996, p.8). R G L, n. 5, jun. 2007. 47 Criou-se, assim, uma espécie de agência de massificação e sofisticaram-se os meios de apropriação de uma cultura popular que abarcasse a população a uma integração nacional a partir de certos padrões culturais. Mas esta tentativa de massificação cultural sofreu os reflexos da contracultura, ou seja, “cultura marginal”, “arte marginal”, “arte contra-cultural”, que tratava do inconformismo diante da repressão e do conservadorismo vigentes no país, sendo difundida através das publicações de jornais e revistas como o Pasquim, Flor do mal, Bondinho, dentre outros. Dessa forma, as forças populares em processo de reorganização voltam a se expressar por meio de manifestações estudantis (1977), e greves que, a partir de 1978, agitavam o ABC Paulista, reivindicando aumentos salariais e liberdade de organização sindical que, por sua vez, impulsionaram também a busca pela abertura política que se concretizaria nos anos 80. Dito isso, fica claro encontrar nas obras de Clarice Lispector toda esta saga pela luta social e cultural que perdurou por toda década de 70. De acordo com Silviano Santiago, no livro Nas malhas da letra, uma das funções da literatura naquele momento histórico e cultural era: refletindo sobre a maneira como funciona e atua o poder, a literatura brasileira pós-64 abriu campo para a crítica radical e fulminante de toda e qualquer forma de autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina, tem sido pregada pelas forças militares quando ocupam o poder, em teses que se camuflam pelas leis de segurança nacional (2002, p.15). Clarice Lispector, em seu livro A hora da estrela, de forma magistral articula a descrição do ambiente e as condições vividas por suas personagens: o tão sonhado “milagre” brasileiro (1969-1973), período marcado pelo extraordinário crescimento econômico, deixando de lado os setores de saúde, educação e habitação. A autora coloca em evidência as mazelas sociais existentes na época ao apresentar o contexto social da retirante nordestina Macabéa perdida na cidade grande toda feita contra ela: O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre, entre prostitutas que serviam os marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe saudade do futuro, Rua do Acre. Mas Que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não piso, pois tenho terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda (LISPECTOR, 1998, p.30). Ainda a respeito da personagem Macabéa, a autora faz uma crítica aos modelos culturais e sociais da década de 70 que impulsionaram a abertura da mídia e uma grande influência social. Tal influencia, mesmo pelo pouco (ou único) contato que a personagem mantinha com o mundo exterior, se dava por um rádio portátil de uma de suas amigas de quarto, mostrando que mesmo aqueles incapazes de serem parte de uma sociedade, vistos como subprodutos, rebotalhos da sociedade estão expostos à força dos meios de comunicação. Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, assevera a respeito do poder da cultura midiática: 48 As pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em paises pobres, do “Terceiro Mundo”, podem receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas através de aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à “aldeia global” das novas redes de comunicação (HALL, 2004, p.74). Marcada assim por um contexto tomado pela insegurança, a autora se vê cercada pela força do regime militar e pela imposição do AI-5 que assombrou toda a década, vivendo uma espécie de neurose militar, em que a alegria de escrever que impulsionava a vida da escritora era abarcada pela profunda tristeza de relatar o que acontecia com o país: Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com estremecimento de prazer: será que ele vai me matar? Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra (LISPECTOR, 1998, p.38). Nas entrelinhas de um caos social Por que há direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola. Clarice Lispector Todo texto de tradição que se inscreve dentro de um contexto histórico e que é fruto de uma busca incessante nunca perde sua atualidade, criando, assim, um entrelaçamento significativo entre realidade e a realidade imaginada e a realidade contextual. No livro Restos de Ficção: a criação biográfico literária de Clarice Lispector, Nolasco constata que no início de seu projeto literário, o ficcional seria o lugar onde o traço biográfico se escondia; no decorrer desse projeto acontece justamente o oposto: agora é o ficcional que vai ficar “colocado” ao vivido, confundindo-se com ele. O vivido passa a ser ficção (2004, p.78). Afora tal traço biográfico-cultural que se apresenta de forma importante para discutir a produção de Clarice Lispector, devemos retomar o que a crítica cultural brasileira tem discutido sobre o contexto cultural brasileiro do qual o livro A hora da estrela pertence. Reconhecemos, entretanto, que mesmo que isso não fosse uma preocupação da própria Clarice, não impede que o mesmo seja lido em seu livro, se considerarmos o contexto da época. Remetendo nossa análise ao posicionamento critico da escritora já mencionado, no texto, Clarice Lispector parece tratar de questões sociais com uma verdadeira vontade de se fazer justiça, como confirma a crônica de 16 de Setembro de 1967, na qual aborda a problemática da fome: assunto nunca tão discutido como nos dias atuais no país, seja por meio do projeto Fome-Zero do governo, seja por meio de telejornais que informam que crianças morrem de R G L, n. 5, jun. 2007. 49 desnutrição pelo país afora. Questionada se saberia calcular o Brasil “daqui a vinte e cinco anos” (este é o título da crônica), responde que nem daqui a vinte e cinco minutos. Mas já previa, naquela época, que a busca por uma situação econômica mais digna de um povo estava por se desenrolar, pois o povo já havia dado mostras de ter maior maturidade política do que a maioria dos políticos. Na crônica, parece-nos evidente que a escritora desejava que o problema da fome se resolvesse, pois o povo, que sempre estivera à espera de práticas sociais mais justas por parte do governo, não poderia esperar mais. Para ela, a fome é como uma endemia, ou seja, uma doença populacional de uma certa região, apresentando-se como parte orgânica do corpo e da alma das pessoas, podendo ser vista hoje como epidemia, pois já afeta todo o país sem distinção regional. Ainda na crônica, fica-nos claro que descrever as características do povo brasileiro resumir-se-ia em descrever os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Como se vê, a questão da fome foi uma constante na vida da autora. Nesse sentido, o livro A hora da estrela faz justiça ao projeto da intelectual, uma vez que todas aquelas questões referentes à injustiça social, que ficaram em pano de fundo na narrativa clariciana, agora estampam a superfície textual. Com isso, Lispector deseja alcançar a cura para esse tão temido câncer social, e que “os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer”. Por fim, e na tentativa de expressar a real importância da intelectual, valho-me das palavras de Nolasco que afirma: Enfim, se a produção de Clarice Lispector ocupa hoje um lugar indiscutível no cenário da literatura brasileira e mundial, entendemos que tal produção não só nos permite fazer as leituras críticas mais variadas possíveis, como também convida-nos a revisitar, criticamente a própria crítica a ela instituída. Levando – se em conta, sempre, o fato de que vida e obra se dizem e se completam, mesmo que de forma fluida e escassa, tanto quanto a própria imagem que Clarice procurou nos legar no decorrer e ao cabo de seu projeto literário. Da vida à obra e do texto da ficção ao texto da vida, a imagem do próprio, tanto da escritora quanto do texto, é rasurada, como forma de lembrar-nos, talvez, de que a propriedade do que quer que seja em Clarice Lispector está sempre aquém da vida e além da ficção (2004, p.200). Referências Bibliográficas BRANDÃO, Antonio. DUARTE, Milton. Movimentos Culturais de Juventude. São Paulo: Ática, 1986. CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. Trad. de Sandra Vasconcellos. São Paulo; Beca Produções Culturais Ltda, 1999. 50 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 8. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós - modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 1998. JOHNSON, Richard. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. SCHULMAN, Norma. Org. e Trad. SILVA, Tomas Tadeu da. O que é, afinal, Estudos Culturais? São Paulo: 3. edição, Editora Autêntica, 2004. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7. edição Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. NOLASCO, Edgar Cézar. Restos de Ficção: a criação-biográfico literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da Letras. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2002. ______. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. R G L, n. 5, jun. 2007. 51 A G R A M Á T I C A D O C O N F L I TO N U M A P E R S P E C T I VA DISCURSIVA Marlon L. RODRIGUES1 Wedencley A. SANTANA2 Abstract: A discursive theory has been born, in years 60, in a context of effusion - crisis and challenges - of the historical materialism inherits as the one of the marks most defining its continuous critical-social position. However, when perceiving the dialectic progression of the social theories, exactly having in view of the necessary contradiction between the real of history - the impossible one to be said - and its clarifying, theoretical models of the discourse must be in constant dialogue with social theoreticians more contemporaries. The objective of this article is exactly to undertake a dialogue between Discourse Analysis and one of the central theses of Axel Honneth’s thought, one of the continuators of German tradition of the Critical Theory: the conflict and the fight for recognition as motor of history. Key-words: Conflict; Subject; Discourse. Introdução De maneira geral, podemos compreender a relação entre sujeito e sociedade num quadro de integração social, ou num outro de lutas e conflitos. Embora esta distinção seja oportuna apenas para fins expositivos, estas duas ênfases, tomadas aqui como opostas, marcam na maioria das vezes opções epistemológicas de conseqüências fundamentais na compreensão do desenvolvimento humano. A análise de discurso, pensamento sobre a linguagem, ligada em seu início ao materialismo histórico, optou pela percepção das lutas sociais: embora irredutíveis entre si, a esta opção estão articuladas uma teoria do sujeito e uma teoria da linguagem. A questão que se coloca neste artigo é como pensar discursivamente as relações entre sujeito e luta social, sobre a base de uma teoria discursiva que não se reduza a uma opção voluntarista, utilitarista nem determinista das ações sociais. Para isso, buscamos um diálogo com a tese de Axel Honneth sobre luta pelo reconhecimento como gramática moral dos conflitos sociais, para pensar a questão das lutas sociais, nesse texto, analisando o acontecimento da auto-denominação no movimento dos Sem-Terra. 1. Sujeito, conflito, linguagem Axel Honneth, considerado hoje o nome mais emergente da Teoria Crítica (sediada 1 Docente da UEMS, do campus de Nova Andradina (MS), doutor em Lingüística pela UNICAMP. 2 Doutor em Lingüística pela UNICAMP. 52 no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, da qual é diretor), tenta compreender como o conflito moral, não reduzido à luta de classes como na tradição marxista, seria constitutivo da dinâmica social. Tendo a ação social como mediador necessário da socialização do indivíduo, Honneth (2003) mostra que os conflitos sociais surgem na medida em que um ou mais dos padrões intersubjetivos de reconhecimento é infringido, sem os quais o indivíduo não poderia referir a si mesmo como um sujeito emancipado: a auto-confiança, pela experiência do amor, auto-respeito, pela experiência do direito e auto-estima, pela solidariedade. A categoria de conflito aparece então como base da interação social e sua gramática é a luta pelo reconhecimento. Os desenvolvimentos sociais, portanto, são impulsionados pela força moral das tentativas de restauração de relações de reconhecimento mútuo. Ao contrário de Habermas, guiado por uma eticidade do consenso, com fins emancipatórios, ao colocar em primeiro plano uma teoria social do conflito, a concepção de Honneth abre, a nosso ver, caminho para um diálogo entre a análise de discurso francesa e a teoria crítica, visto que o posicionamento crítico é marca fundante desta análise de discurso e a questão do conflito (no início, de classes) é inerente à sua constituição epistemológica. Honneth sabe obviamente que não é o primeiro a trabalhar com a categoria de conflito, mas mostra que, em nenhum momento na tradição do pensamento social, ou ela foi central ou ela teve dimensão moral devida. Se Marx enfatizou as lutas pelos meios de produção, deixou de lado a força moral do conceito de “dignidade”, independente da questão econômica; Sorel recorreu à categoria de “honra”, para conferir expressão ao conteúdo moral das exigências políticas do movimento operário, mas tal categoria soaria de alguma forma como um conservantismo; Sartre pensa na doutrina do reconhecimento de Hegel, mas aplicada, exclusivamente, à luta de povos colonizados (idem: 253). Da mesma forma, na consideração de Honneth, o conflito não apareceria como base da interação social no quadro conceitual das ciências sociais emergentes, marcadas que estavam pela influência dos modelos conceituais darwinista e/ou utilitarista. Durkheim e Tonnies preocuparam-se antes pela questão da integração social; Weber pensa a luta como “imposição da própria vontade contra a resistência dos parceiros”, mas percebida como intenção de elevar o poder de dispor das possibilidades de vida; Simmel vê a luta social como dimensão da identidade pessoal ou coletiva, mas reduzida a um impulso de hostilidade; e, por fim, a Escola de Chicago pensa a luta basicamente no quadro dos confrontos étnicos ou nacionais. (idem, pp. 254-255). Ao efetuar a compreensão do reconhecimento mais básico do indivíduo, aquele no limiar do surgimento do sujeito, empreendido pela experiência do amor, Honneth recorre às teorias de Winnicott sobre o papel da interação mãe e filho na passagem de um estado de simbiose total até a individuação, mostrando aí que tanto a autonomia quanto possíveis distúrbios ou inadequações psicossociais podem advir de uma qualquer complicação nesse estágio. Em uma crítica à suposta tendência monológica da infância em Freud, segundo Honneth, prioriza-se na teoria psicanalítica de tradição britânica o aspecto relacional da formação de um self – o que proporcionará uma ponte para a consideração do self de HerR G L, n. 5, jun. 2007. 53 bert Mead, quando se passa a considerar as fases dos reconhecimentos socialmente mais explícitos: do auto-respeito, proporcionado pela experiência jurídica (o sujeito do Estado); e da auto-estima, pela solidariedade, pertencimento comunitário. O que está na base desses três padrões de reconhecimento é uma proposta de gênese relacional de base interacionista, que geralmente trabalha o simbólico como constituído no decorrer da interação social. Em outras palavras, há algo no “self” de pré-simbólico. È nesse aspecto que nossa compreensão se distancia de Honneth: o simbólico – e para nós, o discursivo – é constitutivo do sujeito, e a sua estruturação em relação ao Outro desfaz qualquer possibilidade de crítica a uma suposta tendência monológica freudiana. Na Análise de Discurso, uma marca particularmente forte dessa percepção da linguagem como constitutiva é o seu caráter relacional absoluto: o sujeito constitui-se na sua relação com o Interdiscurso, campo do sentido, campo da ideologia. Posicionado em formações discursivas, o sujeito está sempre diante de outras formações discursivas que se atravessam, e o atravessam historicamente. Como já afirmamos, a perspectiva de Honneth, que entende o conflito como base teórica, é-nos interessante justamente pela extensão da luta pelo reconhecimento, em que está traçado um percurso desde a psicogênese do indivíduo – embora optamos pela teoria psicanalítica de base lacaniana, reconsiderada ideológica e discursivamente – até o desenvolvimento da dinâmica social pelo conflito, com a atenção devida ao fato, diferentemente do autor alemão, de que a linguagem ocupa um lugar constitutivo nesse processo. Mas a tradição da Teoria Crítica caminhou ao largo da percepção da linguagem como constitutiva do sujeito, principalmente quando Habermas (a partir de Appel), como contraponto ao pós-estruturalismo francês, recorre, ainda que criticamente, ao pragmatismo. Nesse âmbito, sua ética discursiva retoma no máximo o aspecto ritualístico da linguagem previsto na pragmática: lugar de atos de linguagem, conformação das posições subjetivas no agir comunicativo, mas exterior ao nascimento do próprio sujeito. Os efeitos discursivos dessa opção foram a instrumentalização da linguagem, e a elaboração de uma teoria ética do consenso, do entendimento, apagando a dimensão do conflito, que, no entanto, perdurara de certa forma na Escola de Frankfurt até ele. Retomar o caráter histórico da linguagem e do sujeito, percebendo aquela como lugar de constituição deste, é permitir a compreensão das lutas sociais, visto que as composições bio-psicológicas são extremamente conformativas. É permitir, por exemplo, hoje entender o fato de que as lutas sociais são demarcadoras de identidades subjetivas: questões de gênero, etnia, nacionalidades, religião, etc, ganham materialidade a partir da heterogeneidade própria às formações discursivas e às posições sujeito, o que não impede a percepção do contraditório no cerne dos próprios grupos sociais. Isto é, as identificações do sujeito nas formações discursivas em conflito ou adesão superam uma pretensa universalidade inerente (como nas concepções de sujeito/indivíduo de cunho universalizante), assim como escapam à sua redução aos grupos sociais em conflito – o que parece pressupor um institucionalismo da teoria de Honneth. Sem a intermediação da linguagem, do discurso, visto em sua heterogeneidade, não se conseguirá perceber as 54 constituições do ser-sujeito em sua pluralidade, como materializações da história. 2. Linguagem e história: o movimento dos Sem Terra Para que seja possível atribuir ou reivindicar algum tipo de identidade para sujeitos, para grupos, para movimentos populares, para partidos políticos, é preciso que haja minimamente um espaço de discursividade (conquistado, reivindicado, disputado, cedido) e um lugar material (instável ou não) em seu aspecto espaço/temporal. Além disso, é importante ressaltar que a identidade marca uma certa territorialidade nos/pelos discursos, tendo como referência ou como condição um conjunto de objetos prévios, um conjunto de valores, de crenças, de rituais, de símbolos, nos/sobre os quais ela se inscreve, se rompe e se estabelece enquanto acontecimento, quando não, o acontecimento não é absorvido pela memória, como se nunca tivesse acontecido (Pêcheux, 1999: 50). A identidade, ao se configurar elementarmente, abre ou reivindica um espaço de representação política e histórica, desestabilizando parcialmente as identidades com as quais ela rompe. Esse jogo de representação supõe certos efeitos de sentido, além das condições materiais, históricas e discursivas, um conjunto de formações imaginárias (Pêcheux, 1969: 82) que designam representativamente a identidade do sujeito e a do outro, uma vez que marcar a identidade é fazê-lo em relação ao outro: somente tendo em consideração outras identidades é que surge a necessidade de marcar “a sua”, pois a identidade se constitui em relação a outras. Nesse sentido, é possível considerar a identidade como acontecimento (Pêcheux, 2002: 53), uma construção histórica a partir de um complexo de condições materiais de existência intrincada nas relações de poder (Foucault, 1979). A identidade surge não como algo que nunca tivesse acontecido, como se irrompesse de um vazio e assim viesse à existência milagrosamente, mas pode-se dizer que ela surge a partir de “fragmentos” e de “reminiscências” de outras identidades que são ressignificadas – pertencentes, em alguma instância, a um campo de co-existência. Os “fragmentos” e as “reminiscências” fazem parte das condições materiais que trazem consigo algo que se desestabilizou ou deixou de existir como tal, nunca para “morrer” ou deixar de existir, mas para se recolher ao seu lugar “reservado” na memória a partir das disputas onde há vencedores, derrotados, esquecidos, ignorados, silenciados. O acontecimento de uma nova identidade pode fazer surgir algo “novo e diferente”, que procura se estabilizar e garantir sua existência enquanto representação e posicionamento político de um determinado grupo, de uma classe. Pode-se dizer que essa é uma das condições particulares, entre outras, que pode facultar o surgimento de um grupo específico para se enunciar de uma forma “nova e diferente”, ou seja, enunciar a partir de uma identidade como nunca antes fora enunciado. Convém ressaltar que este “novo” não se dá nem à deriva, nem independentemente das redes de memória e dos lugares de filiações identificadoras (Pêcheux, 2002: 54), pois, R G L, n. 5, jun. 2007. 55 se há alguma possibilidade de surgimento de uma “nova” identidade, é a partir dessas condições materiais de existência: históricas discursivas, políticas e ideológicas em que há uma relação de tensão, conflituosa pelos/nos sentidos. Essas condições colocam sempre em questão a possibilidade de desestabilização, de divisões de espaço das condições materiais de existência do já existente, o que implica a possibilidade de se colocar em um outro campo ou de se re-configurar, ou seja, colocar-se a partir de uma “nova” identidade o que se desdobra em uma “nova” posição discursiva, enunciativa, ideológica. Aqui fica estabelecida a relação entre formas de identificação e o conflito na raiz dos modos de subjetivação discursiva, que nos leva tanto a Honneth, quanto a Pêcheux: uma identidade “nova” exige não apenas ser reconhecida ou ritualizada como tal. Ela, antes de mais nada, se constitui em uma tensão de relações, e, assim, se impõe, se sobrepõe, negocia relações diante da(s) outra(s) por oposição, por aliança, por redimensionamento, por ressignificação, por negação, por afirmação, uma vez que de acordo com Pêcheux (2002, p. 56): não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido (...) isto é, sobre o outro, objeto de identificação. É mesmo talvez uma das razões que fazem que exista algo como sociedades e história e não apenas uma justaposição caótica (ou uma integração supra-orgânica perfeita) de animais humanos em interação... Outra questão importante está no fato de que uma “nova” identidade é também uma forma “nova” de enunciar, de se constituir discursivamente, de ocupar certos espaços sociais de luta e de se ressignificar, entre outras condições. A partir dessas considerações, analisamos os seguintes enunciados, referentes à autodenominação no Movimento dos Sem Terra. A autodenominação, dadas as condições materiais de existência, está inscrita em situações tensas, quer de forma localizada, quer em âmbito nacional (considerando a dimensão do movimento). É importante ressaltar que o início dos anos 80 (dada a pressão política que vinha das décadas anteriores) foi marcado por diversas manifestações políticas que reivindicavam democracia, liberdade, direitos civis, eleições diretas, direitos das minorias e é nesse cenário político que a autodenominação e denominação se constituem discursivamente no processo de construção e formação da identidade do movimento. 3. Autodenominação: construção de identidade de si (01) “SEM TERRA / BOLETIM INFORMATIVO DA CAMPANHA DE SOLIDARIEDADE AOS AGRICULTORES SEM TERRA” (B.01/01/15/05/1981)a. É significativo que, no primeiro ato de enunciação, o movimento se autodenomina “Sem Terra”. Essa autodenominação, somente a princípio, não corresponde a uma identi- 56 dade supostamente estável e pré-existente a um grupo ou a uma categoria em específico naquele momento, no entanto, o sentido da expressão (Pêcheux, 1997, p. 160) “sem terra”, pelo seu efeito de sentido (Pêcheux, 1969: 82; 1997: 164), irrompeu como forma de representar a diversidade de outras identidades reivindicadas e presentes no movimento, como no enunciado: Nós somos mais de 500 famílias de agricultores que vivíamos nesta região (Alto Uruguai), como pequenos arrendatários, posseiros da área indígena, peões, diaristas, meeiros, agregados, parceiros, etc... Desse jeito já não conseguíamos mais viver, pois trás muita insegurança e muitas vezes não se tem o que comer. Na cidade não queremos ir, porque não sabemos trabalhar lá. Nos criamos no trabalho da lavoura e é isto que sabemos fazer (B.01/01/15/05/1981). A enunciação reivindica não só os sujeitos como também um lugar próprio que lhes garanta a existência e seu(s) sentido(s). Sentidos aqui constituídos na impossibilidade de uma coincidência de posições discursivas tanto daqueles que se identificam como proprietários, quanto como trabalhadores da cidade. Mais explicitamente, é a impossibilidade de identificação com os primeiros, quanto a desidentificação com os lugares sociais ocupados pelos segundos (“Na cidade não queremos ir”), que faz com que, na ruptura dos sentidos, aconteça o surgimento de uma nova posição sujeito. O acampamento na Encruzilhada Natalino foi a base material enunciativa, histórica e discursiva do movimento. Esse espaço se institui com/nos sentidos dos sujeitos ali reunidos. São colonos, posseiros, meeiros, parceiros, peões, diaristas, arrendatários, agregados, desprovidos daquilo que os identifica (lavradores) e os distingue (desprovidos da matéria prima para trabalhar e para a existência profissional, a terra). O acampamento de trabalhadores da terra sem terra por si só já impõe certos sentidos ao espaço. De forma geral, a palavra “acampamento” se refere aos grupos de pessoas que se instalam em algum lugar em barracas, com objetivos de lazer, e também a grupos de militares, paramilitares que se instalam em operação de guerra ou de treinamento. O acampamento, no entanto, é de trabalhadores da terra vivendo em situações precárias para reivindicar terra para poder trabalhar e sustentar suas famílias; nesse sentido, inscrito na ordem do discurso do Estado, conforme Constituição Federal. Na condição material de trabalhadores desprovidos de sua matéria prima, sobre eles recai um peso semântico histórico de desprovimento de algo necessário como condição de sobrevivência. Esse peso semântico que o acampamento instituiu: é o sentido dos “sem”. A expressão “sem”, relacionada ao elemento que precede, por subordinação, indica ausência, falta, concessão ou ainda ausência de condição necessária; aponta para a privação de tudo que traz a memória discursiva da expressão “terra”, que tem entre seus efeitos de sentido, a remissão à terra prometida, ao paraíso (na discursividade religiosa), de mãe provedora daqueles que nela trabalham, de relações de poder (nos discursos político-econômicos), fora os sentidos afetivos que lhe dão os homens. A expressão “Sem Terra”, enquanto unidade discursiva, é tão relevante que configura não somente a identidade na formação imaginária, mas também o instrumento de materiaR G L, n. 5, jun. 2007. 57 lização discursiva do movimento. Vejamos os próprios enunciados: (02) “CARTA DOS COLONOS ACAMPADOS EM RONDA ALTA” (B.01/01/15/05/1981), (03) “”Nós somos mais de 500 famílias de agricultores que vivíamos nesta região (Alto Uruguai), como pequenos arrendatários, posseiros da área indígena, peões, diaristas, meeiros, agregados, parceiros, etc..”” (B.01/01/15/05/1981), (04) “O Boletim circulará periodicamente, na intenção de manter “aceso o fogo que clareira” as reivindicações dos trabalhadores rurais” (B.03/01/15/05/1981), (05) “servirá também que os agricultores renovem o seu apelo à sustentação desta luta” (B.03/01/15/05/1981), (06) “há quase dois meses, mais de quinhentas famílias de agricultores sem terra, totalizando cerca de 3.000 pessoas” (B.03/01/15/05/19/81), (07) “V. Organização - Nesta caminhada de sofrimento e de lutas, estão surgindo novas lideranças entre os agricultores” (B.04/01/15/05/1981), (08) “os agricultores estão, ainda, emprenhados em conseguir através dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Ronda Alta e Passo Fundo, um espaço nas emissoras de rádio para divulgar informações e leituras de manifestações de solidariedade que vêm recebendo” (B.04/01/15/05/1981), (09) “por ocasião de uma procissão realizada pelos agricultores, foram identificados dois agentes da Policia Secreta (DOPS)” (B.04/01/15/05/1981), (10) “VII. O que querem os Colonos?” (B.05/01/15/05/1981), (11) “TRABALHADORES E POVO DE FORMA GERAL APOIAM A LUTA DOS COLONOS” (B.06/01/15/05/1981). Apesar da relação de conflito com os sentidos estabilizados para outras categorias, vemos que “sem terra” ainda não se constitui como unidade, coesão, referência estabilizada como identidade que possa recobrir um determinado grupo ou categoria: esses são os “sem-terra”, mas é possível conceber como uma “proposta” política de identidade em construção. Esse fato pode ser constatado, num recorte que se limita ao primeiro Boletim, como “marca/elemento” discursiva da diversidade de identidades: (02) “colonos acampados”, (03) “famílias de agricultores, pequenos arrendatários, posseiros de área indígena, peões, diaristas, meeiros, agregados, parceiros”, (04) “trabalhadores rurais”, (05) “os agricultores”, (06) “famílias de agricultores sem terra”, (07) “os agricultores”, (08) “os agricultores”, (09) “pelos agricultores”, (10) “os colonos”, e (11) “dos colonos”. Essas referências identitárias no interior do discurso do movimento indicam um tipo relação de poder (entre trabalhadores e proprietários) de quem detém o direito histórico sobre a terra e de quem nela trabalha. Há os proprietários de terra e há os trabalhadores da terra em diversas categorias. Com o passar do tempo, proprietários e trabalhadores da 58 terra se estabilizam historicamente em identidades específicas. O que não quer dizer sem conflito ou que ele deixe de existir. O acampamento vem desestabilizar a identidade desse agricultor desprovido de terra, em oposição ao grande proprietário. Dessa forma, o sentido de “agricultor” é, genericamente, aquele que na terra trabalha ou que a lavra, no entanto, para designar o proprietário de grandes proporções, a história no Brasil conta com designações como “coronel”, “capitão”, “doutor”, latifundiário, “fazendeiro” e, mais recentemente, “investidor ou aplicador”. Esses sentidos estão relacionados aos donos de terra e se referem ao tipo de prestígio daqueles que possuem médias e grandes propriedades. Assim, o termo “agricultor” estabelece, de forma geral, um tipo de identidade entre a terra e o homem que nela trabalha ou aquele que a possui. Se “agricultor” representa uma identidade ampla, há, no entanto, outras categorias decorrentes do trabalho na terra com identidades específicas, mas não divergentes pela oposição “empregados”, “proprietários”, mesmo que haja uma hierarquia de sentidos. Nesse aspecto, para a construção dos sentidos e das identidades de “agricultor”, é importante considerar que o sul do país foi colonizado, em grande medida, por italianos, alemães, croatas, romenos, armênios entre outros. Assim, o movimento, ao se enunciar como integrado por “colonos” (como aqueles que emigram para povoar e/ou explorar uma terra estranha, ou aqueles que trabalham em terra de outrem por um salário), “arrendatários” (aqueles que tomam alguma coisa em arrendamento, rendeiro), “posseiro de terras indígenas” (aquele se apropria de terras indígenas, também aquele que ocupa terra devoluta ou abandonada e passa a cultivá-la), “peões” (empregado braçal de fazenda, homem rude, peão), “diaristas” (trabalhador do campo que não tem salário fixo, ganhando apenas os dias trabalhados), “meeiro” (trabalhador que planta “a meias” com o dono do terreno, a quem tem de dar parte do rendimento da plantação), “agregado” (trabalhador de fazenda que mora nas terras do proprietário sob determinadas condições, entre elas cultivar a terra e dar alguns dias de trabalho ao dono como remuneração, ou ainda aquele que, morando em fazenda ou sítio, presta serviços avulsos sem ser propriamente um empregado), “parceiros” (parceria rural, pessoas que tratam ou criam os animais; parceiro tratador, na parceria rural, o dono dos animais entregues para a criação e o trato), está ritualizando a diversidade de identidades que constituem os trabalhadores do campo naquele momento histórico, cada uma com suas especificidades, seus sentidos e suas historicidade. Nas designações “agricultor rural”, “agricultores”, a marca de identidade diz respeito, a princípio, àquele que trabalha na terra. Essa marca é generalizada, porque pode ser qualquer um, pequeno, médio ou grande proprietário, e até mesmo empregado. Essas denominações de reivindicações identitárias não fazem sentido enquanto “sem terra” em decorrência do seu enunciador, e considerando ainda as condições materiais de existência em que se enunciam e reivindicam uma identidade ao se pronunciar e para se enunciar. Na designação “os agricultores sem terra”, os sentidos ainda se referem àqueles acampados em Ronda Alta, na Encruzilhada Natalino, mesmo que investidos na construção de uma identidade, ainda que instável em relação aos sentidos, que os distingue dos demais. R G L, n. 5, jun. 2007. 59 Não é necessário recorrer às condições materiais de enunciação para saber que tipo de agricultor é ou está reivindicando este espaço de enunciação. Se, de um lado, há uma ritualização de identidades já estabilizadas no decurso da história dos agricultores, de um outro lado, a situação política e ideológica em que surge o movimento na luta pela terra coloca em um mesmo espaço questões que recobrem todos os grupos identitários do movimento, o grupo dos “sem”. Não é um “ajuntamento voluntário”, um acampamento de lazer; é, antes de mais nada, uma pressão social e político histórica (sentido restrito) a que estão submetidos os agricultores e demais operários. Esse fato é possível de ser constatado no próprio discurso do movimento: ao longo da História do Brasil, os trabalhadores rurais têm sofrido uma desumana exploração social e política. A maior prova disso é que eles conquistaram alguns direitos semelhantes aos dos trabalhadores urbanos com 25 anos de atraso, graças ao Estatuto dos Trabalhadores Rurais, criado em 1963 (JST.02/36/06/1984). Em contrapartida a essa pressão, há um movimento de resistência que não está à deriva na história ao se organizar e ao investir-se de certas posições políticas e discursivas de resistência. Foi nessa resistência e somente nela que foi possível o acontecimento da identidade de “sem-terra” que de uma forma ou de outra, foi capaz de representar todas as identidades. Cumpre ressaltar que essa representação não de deu de uma hora para outra ou de uma enunciação para outra e, ainda, que essa representação se constituiu em uma atividade tensa de paráfrase, do “mesmo”, de polissemia, do “diferente”. Há uma tensão e uma instabilidade nessa nova denominação identitária que recobre ou que procura recobrir o movimento, naquele momento, e tende a se estabilizar, o que não significa que venha a suplantar as demais. É possível constatar essa tensão e instabilidade quando o movimento se autodenomina “sem terra”, como se representará nos seguintes enunciados a partir do Boletim número dois. (12) “No mesmo dia, os “Sem Terra” receberam a visita de toda a Diretoria dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo” (B.02/02/28/05/1981), (13) “(CNBB Atendeu Pedido dos Sem Terra)” (B.02/19/02/04/1982), (14) ”Sem Terra do país têm encontro em Goiás para discutir problemas” (B.01/23/06/19082), (15) “A decisão dos colonos de indicar o “Sem Terra” com seu órgão informativo dá um novo impulso ao boletim, mas os recursos materiais disponíveis e as condições continuam precários” (B.01/25/07/1982). Em vias de estabilização discursiva, a autodenominação ainda se revela, nesse segundo boletim, volátil, dado o uso das aspas, com seu “caráter imprevisível”, o que indica certa distância em relação ao enunciado relatado. Nos enunciados em que elas aparecem, o que fica como efeito de sentido é a tensão enunciativa, a divisão do sujeito enunciador, uma vez que a forma aspeada concorre com outras formas sem aspas, junto a outras denominações. Lendo discursivamente, vemos que o que há é uma tensão entre posições discursivas 60 possíveis, que virão significar alhures. Ainda assim, nesses interstícios, o movimento vai se especificando como único, o que implica também impor um reconhecimento pelo outro na arena política. No conflito, nasce um novo sujeito do discurso. Considerações finais A contribuição de Honneth, recuperando para a teoria social a dimensão do conflito como motor da história, pode proporcionar um diálogo interessante com a Análise de Discurso. Principalmente, se reconsiderada à luz das possibilidades epistemológicas abertas por Pêcheux, ao considerar como indissociáveis a linguagem, o sujeito e a história. As posições discursivas definem o sujeito em relação a outro sujeito, ao discurso outro. Se as contradições sociais são o motor da história (princípio materialista), acrescentamos que não há história sem sentido, e que a luta pelo reconhecimento é antes a luta pela tomada da palavra, constituída sob o pano de fundo das incessantes reconfigurações da memória. Referências bibliográficas HONNETH, Axel. (2003) Luta pelo Reconhecimento: A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Rio de Janeiro: Editora 34, SP. NOBRE, Marcos. (1994) Teoria Crítica e seus Teóricos. Rio de Janeiro: Papirus Editora. SP. ORLANDI, E.P. Discurso e texto. Formação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. ______ et all (orgs.) Gestos de leitura. 2. ed. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1997. _____. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. PÊCHEUX, M. Semântica discursiva. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1987. ______.Análise automática do discurso (AAD-69). In Por uma análise automática do discurso Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1997. p. 61-161 _____ (2002) O discurso. Estrutura ou acontecimento. 3. ed. Campinas: Pontes, 2002. _____”Papel da Memória”. In: Achard. P. et all Papel da Memória.Campinas: Pontes, 1999. pp. 49-56. RAJAGOPALAN, K. A construção de identidades e a política de representação. In FERREIRA, L. M. A. e ORRICO, E. G. (orgs.) Linguagem, identidade e memorial social. Novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. p. 77-88 R G L, n. 5, jun. 2007. 61 RODRIGUES, Marlon L. MST: Discurso de Reforma Agrária pela ocupação - acontecimento discursivo. Tese de doutorado. Campinas, SP: IEL, Unicamp, 2007. SANTANA, Wedencley A . A midiatização das (neuro)ciências: discurso, ideologia, sujeito. Tese de doutorado. Campinas, SP: IEL,Unicamp, 2007. Notas (B.01/01/15/05/1981): B = Boletim; 01 = número da página; 01 = número do Boletim; 15 = dia; 05 = mês; 1981 = ano. 62 O RITMO DA PALAVRA: QUESTÕES SOBRE A ORALIDADE João Luis Pereira OURIQUEa Abstract: Having as base the tradition presents in regionalist gaucho poetry, it’s capable of observing a kind of epic vocation that marks gaucho’s appearance and historical course. The own given denominations those who compose poems founded in valorization and exaltation of the fight – even in the constant lived collisions in the area, and the facing of daily, rural work and survival necessity – of payadores, singers, among others, relate poetic doing with telluric force present in the verses. So, the dialectal character points out that composition – with its structure that sends the song of war – it’s sustained in the orality. Key-words: payador, orality, poetry, regionalism, gaucho. A linguagem do gaúcho versejador está atrelada a uma musicalidade que orienta a própria composição. O ritmo, principalmente, e as rimas apresentam-se simultaneamente aos compassos musicais, articulando-se a eles. Assim, é importante salientar que a composição, normalmente acompanhada por instrumento musical pelos declamadores - com sua estrutura que remete a modelos clássicos, como o trovadorismo - sustenta-se no verso, seja este oriundo da tradição oral, quer da literatura escrita, ou seja, a parte musical é subordinada ao verso, ao ritmo da palavra. Isso não se verifica apenas na maneira como a obra é apresentada, mas também pela incorporação de formas de expressão oral no processo de composição. Há a possibilidade da observação desses aspectos em muitos poemas que buscam alicerçar uma filosofia campeira sobre as coisas e como elas são (ou deveriam ser, assim como uma lição, um código de posturas) compreendidas e enfrentadas pelo gaúcho. A valorização da tradição oral que perpassa a linguagem dita culta das formas escritas consagradas é constantemente defendida, não diretamente, mas na própria elaboração dos textos e em algumas comparações com os elementos da natureza, com a voz que narra a história, que se posiciona e compromete os que a ouvem, como um sopro que seduz, pois “o vento analfabeto fala em todos os dialetos”b. Toda essa caracterização sobre a poesia regionalista gaúcha acrescenta um problema de teoria literária que ainda não é abordado fora dos dogmas preestabelecidos pela crítica. Há uma preocupação com a universalização das obras, visando adequá-las ao modelo ocidental, buscando, nos seus aspectos regionais, na cor local e na linguagem peculiar, elementos que toquem os clássicos “canonizados”, não abrindo espaço, assim, para a compreensão de que são as diferenças que enriquecem essa produção. A tentativa de traduzir a cultura de determinada região ou tipo humano representado tende a ser falha quando busca um padrão de excelência a priori e não leva em consideração as diversas formas de expressão que, muitas vezes, não são percebidas nas generalizações e aproximações forçadas com os arquétipos literários. Mesmo quando há uma influência direta – e talvez por isso haja a dificuldade de realizar uma leitura mais isenta dessas determinações – da cultura colonizadora, a qual impõe, mas não determina todas as variantes do processo, essa não é capaz de servir como base da regionalidade sem empobrecer aquela R G L, n. 5, jun. 2007. 63 produção que tenta, em primeira instância, valorizar. É interessante destacar que a pobreza – a crítica negativa - da poesia regionalista gaúcha muitas vezes é confundida com o que tem de mais rico: a sua rejeição aos modelos e projetos de civilização e progresso. A violência, o autoritarismo e a barbárie exaltados em verso e prosa estão mais próximos dos ideais do colonizador europeu, da sua luta por conquistar e dominar novas terras e impor seus valores morais, do que daquela produção (intrinsecamente ligada à cultura letrada européia) que buscou adaptar-se a outras situações mais próximas da luta do homem comum às intempéries da vida. Cabe aqui, portanto, diferenciar duas vertentes dentro do regionalismo: o primeiro atrelado a um processo de lutas e de produção literária engajada e partidária dos ideais que serviram de base para a formação dos estereótipos míticos do gaúcho, objeto de crítica desta pesquisa, e o segundo, pouco valorizado pela academia e, por vezes, esquecido por ela, que tenta apresentar uma realidade cultural rica em significados ao abordar uma dimensão acerca do gaúcho além do condicionante da guerra. Significados estes que, entrando no campo da tradição, contraditoriamente colocam em dúvida vários valores e questionam exatamente a identidade que aquela produção literária oferece ao tipo humano do gaúcho. Nesse tom épicoc não se pode esquecer das relações entre a “imagem e o tempo da palavra” d que impedem de conceder à inspiração, à imaginação e à criatividade, todas as possibilidades que a palavra adquire nas estéticas de base romântica e surrealista. “Sem a língua” – disse Hegel -, “as atividades da recordação e da fantasia são somente exteriorizações imediatas”. O fenômeno verbal é uma conquista na história dos modos de franquear o intervalo que medeia entre corpo e objeto. (...) O que é imagem-no-poema? Já não é, evidentemente, um ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do devaneio: é uma palavra articulada.e As aproximações entre a palavra narrada e a cantada encontram maior ressonância na gesta veiculada à tradição oral, mas que não deixa de ser uma linguagem que “indica os seres ou os evoca”f, pois, segundo Bosi, a palavra busca a imagem, resultando de um desencadeamento de relações onde não se identifica mais a mimese inicial da própria imagem, com isso, Pela analogia, o discurso recupera, no corpo da fala, o sabor da imagem. A analogia é responsável pelo peso de matéria que dão ao poema as metáforas e as demais figuras. A crítica de língua inglesa costuma designar com o termo image não só os nomes concretos que figurem no texto (casa, mar, sol, pinheiro...), mas todos os procedimentos que contribuam para evocar aspectos sensíveis do referente, e que vão da onomatopéia à comparação. (...) Analogia não é fusão, mas enriquecimento da percepção. O efeito analógico se alcança, ainda e sempre, com as armas do enunciado.g Essas analogias, portanto, estão ligadas diretamente às representações históricas e de cunho sociológicos da poesia regionalista gaúcha, exigindo, sem sombra de dúvida, uma 64 aprimoração dos sentidos para a interpretação de suas estratégias que escondem elementos sob um manto de obviedade e percepção fácil. Walter Benjamin, em seu ensaio O narrador, preocupa-se com o fim do contador de histórias, aquele que narra os acontecimentos buscando a preservação de uma identidade através da preservação da memória, pois o “narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”h. Essa praticidade, essa dimensão utilitária descrita por Benjamin, é tecida na substância viva da existência, na dinâmica da vida social. Com base nessas afirmações, o narrador, ou melhor, o contador – seria possível dizer, o declamador ou o payadori – está atrelado ao processo histórico não como um historiador isento e imparcial, mas como um indivíduo participante da coletividade, buscando, como na Antigüidade, ser uno com o seu mundo, caracterizando, assim, o tom épico da poesia regionalista gaúcha. Benjamin afirma que o primeiro narrador grego foi Herôdotosj, autor da primeira obra em prosa da literatura grega preservada até os dias atuais. Em sua História, Herôdotos faz uma abordagem que valoriza mais os acontecimentos que a exposição destes, visto que eles falam por si e deixam fluir as sucessivas etapas, mesmo com seus julgamentos morais e éticos e interferências que poderiam caracterizar – em partes da obra – posicionamentos de um cronista aos leitores mais recentes. Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.k Tudo isso estava inserido em um contexto cultural ingênuo, de um público pouco exigente que ainda não estabelecia a distinção entre os acontecimentos factuais ou narrativas imaginárias. Benjamin estava atento a isso quando fez essa abordagem, pois o mítico, o imaginário, permeia a obra de Herôdotos e revela tantas informações, tantos casos pitorescos, tantos pequenos contos importantes que enriquecem sua obra de um ponto de vista sociológico e antropológico que ajudam a entender melhor as culturas (ou a diversidade cultural) daquela época. Com base nisso é viável buscar uma possibilidade de interpretação de um contexto social mais amplo partindo de narrativas que se assemelham à forma épica, o que só poderia ser abordado a partir das relações entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história.(...) No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer secularizado.l R G L, n. 5, jun. 2007. 65 Sendo a memória “a mais épica de todas as faculdades”m, ela é a base da própria história a princípio, pois é graças a sua excepcionalidade e capacidade de assimilação de todos os fatos e eventos que se torna capaz de fazer a história gravitar em sua volta. “Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento das coisas, com o poder da morte”n. Assim, a reminiscência tida como unidade da rememoração/recordação (musa do romance) e da memória (musa da narrativa) está ligada fundamentalmente à tradição oral, que transmite os acontecimentos através das gerações. O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais. Contudo, assim como essas camadas abrangem o estrato camponês, marítimo e urbano, nos múltiplos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico, assim também se estratificam de múltiplas maneiras os conceitos em que o acervo de experiências dessas camadas se manifesta para nós. (...) Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. (...) Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência.o Nos “Diálogos patrióticos”, Bartolomé Hidalgop ensaiou uma primeira aproximação com a entonação, que consiste na apropriação autorizada - principalmente pela empatia com a defesa das idéias do homem rural, pioneiro e guerreiro - das célebres payadas populares anônimas. Esse ensaio se apresenta através de um diálogo estabelecido entre o contador da história da Independência, da entrada triunfal de San Martín à frente de todos os comandantes, e aquele que está atento, com os ouvidos preparados para entender o transcurso dos eventos históricos e com os olhos seduzidos pelos gestos que podem ser percebidos através das marcas textuais presentes nos versos 21, 22, 23 e 24, marcas estas que chamam o ouvinte para a história, utilizando-se de termos chulos e populares visando enfatizar o feito e o envolvimento da comunidade. 66 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. Cielito, cielo que sí, tome bien la deresera, porque con la pesadumbre no dé en una vizcachera. Con puros mozos de garras San Martín entró triunfante, con jefes y escribanistas y todos los comandantes. Cielito, cielo que sí, digo, cese la pendencia, ya reventó la coyunda y ¡viva la Independencia! Y en cuento gritaron ¡viva! Ya salieron boraciando los libres con las banderas que a la Patria consagraron. 17. 18. Cielo, y ya las garabinas y los cañones roncaron 19. 20. 21. 22. 23. 24. y hasta las campanas viejas allí dejaron el guano. ¡Qué bailes y qué junciones! Y aquel beber tan prolijo, que en el rico es alegría y en el pobre pedo fijo.q As oitilhas simples, de versos heptassílabos – redondilha maior – apresentam um outro aspecto a ser destacado no que diz respeito à forma: o encadeamento que pode ser percebido através da repetição de versos (versos 01 e 09) e do paralelismo entre o ruído dos canhões nas batalhas e os festejos da vitória, ambos enfatizando o momento histórico e contribuindo para, por sua vez, também sustentar o gesto. Hilario Ascasubir, em sua obra engajada com a crítica política contra o governo de Rosas, por meio de diversos pseudônimos, mas predominando o de Paulino Lucero, realizou versos expressivos, destacando no poema La Refalosa, o tormento a que são submetidos os prisioneiros que caem nas mãos do inimigo. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Mirá, Gaucho salvajón, que no pierdo la esperanza, y no es chanza, de hacerte probar qué cosa es Tin Tin y Refalosa. Ahora te diré cómo es: escuchá y no te asustés; que para ustedes es canto más triste que un Viernes Santo.s O chamado para que o ouvinte preste atenção ao que vai ser contado (versos 01, 06 e 07) é uma das marcas presentes nesse poema que valoriza as rimas em uma estrofação livre, pois estão presentes versos de medidas diferentes. Nos versos 02, 03, 04 e 05 a importância é enfatizada quando quer a presença do outro para afiançar a história, visando o seu aspecto verídico que passa a ser provado pelo payador. O reforço desta atenção é percebido através das exclamações, quebras e entonações no decorrer do poema que também funcionam como uma linguagem fática no intuito de manter o contato, mas não apenas isso, manter um contato diferenciado, partidário e comprometido com a verdade narrada. Na estrofe transcrita abaixo do poema de Estanislao del Campo, esses elementos estão presentes nos versos 01, 09, 10, 11 e 17, além da comparação com o domínio da vida através da dominação do animal, vista como a supremacia do homem sobre a natureza e ampliando a possibilidade de leitura para a relação entre o homem do campo ser tão ou mais capaz e preparado para enfrentar os dissabores e problemas que se apresentarem. 1. 2. 3. ¡Ah, criollo! Si parecía pegao en el animal, que aunque era medio bagual, R G L, n. 5, jun. 2007. 67 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. a la rienda obedecía, e suerte que se creería ser no sólo orrocinado, sino también el recado de alguna moza pueblera: ¡Ah, Cristo! ¡Quién lo tuviera!... ¡Lindo el overo rosado! (...) 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. En fin, como iba a contar, Laguna alrío llegó, Contra una tosca se apió Y empezó a desensillar. En esto, dentro a orejiar Y a resollar el overo, Y jué que vino un sombrero Que del viento se volaba De entre una ropa, que estaba Más Allá, contra un aperot Essa valorização do gaúcho realizada por Estanislao de caráter um tanto artificioso é visto de forma diferente na obra de José Hernandezu que não apenas valoriza o tipo humano, mas também “ironiza a cultura livresca (‘y el gaucho tiene su ciencia’) dizendo que no campo pouco valia tal cultura porque os doutores da cidade não conseguiam resolver o problema do gaúcho”v. Cabe salientar que os aspectos aqui destacados e a sua proximidade com elementos presentes na epopéia não devem ser entendidos como a simples reprodução em outro contexto histórico, mas sim como a assimilação de elementos que a compõem em sua estrutura e que são mantidos pela tradição oral que fundou a epopéia clássica, ou seja, o que interessa é a base de formação de ambas as formas de expressão: a Epopéia e a poesia regionalista gaúcha. Características que foram somente aproximadas na abordagem da obra de José Hernandez, mas que não contemplaram a possibilidade interpretativa proposta por Benjamin. Antecipando essa possibilidade de leitura equivocada, Donaldo Schülerw traz a opinião de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy sobre a obra de José Hernandez, a qual apresenta um sabor de romance, de difícil classificação, deixando claro que Martín Fierro não é uma epopéia como as antigas. Mas o que está em jogo aqui não é a classificação tomada nas bases do pensamento crítico que valoriza a epopéia enquanto afirmação da Pátria-Nação, mas sim enquanto espaço para o narrador, o contador de histórias, o payador, inserir-se, através da oralidade, tal qual um sábio que “sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos (...) Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”x. E é isso que pode ser observado já na primeira estrofe de Martín Fierro, o chamado para o canto (o contar aliado ao cantar) de toda uma vida ao compasso do violão, vida plena 68 de experiências que concedem ao seu autor a sabedoria necessária para dar os conselhos sobre o mundo em que viveu. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Aquí me pongo a cantar al compás de la vigüela, que el hombre que lo desvela una pena extraordinaria, como la ave solitaria con el cantar se consuela. Pido a los santos del cielo que ayuden a mi pensamiento, les pido en este momento 10. 11. 12. que voy a cantar mi historia me refresquen la memoria y aclaren mi entendimiento.y Hernández utiliza a sextilha (agrupamento de seis versos) que possibilita por sua vez, o agrupamento dos versos em pares, estruturando o esquema das rimas opostas, ou enlaçadas, o que logra certo mimetismo com as formas da fala gauchesca e, como o próprio Hernández as caracterizava, também ocorre uma falta de enlace entre as idéias, visto que às vezes não existe uma sucessão lógica, a não ser uma revelação oculta e remota. Segundo Jean Francoz, o herói do poema de Hernández é mais do que um gaúcho: é um payador, homem das idéias, orgulhoso do seu cantar e do seu engenho. Sua condição de fora da lei, de contestador, vivendo à margem da sociedade, caracteriza o relato da história de seus infortúnios contado por ele mesmo. Isso pode ser entendido como uma tentativa de representar o payador enquanto tal, revestindo-se com seus trejeitos, manuseando o estilo e a forma, incorporando a sua alma, como Rafael Obligadoaa enfatiza em El alma del payador, décima composta com rimas opostas e emparelhadas, o caráter mítico do payador, a sua relação com a natureza como um ser iluminado que nasceu para cantar as verdades da vida na visão do pampa (primeira estrofe), relacionando com elementos sobrenaturais ao afirmar que o payador é um espírito capaz de tocar uma guitarra como o prelúdio de um canto (segunda estrofe citada, terceira do poema) para, na oitava e última estrofe do poema, confessar-se como também partidário dessa legenda, como uma alma que perambula com a guitarra à espalda. Cuando la tarde se inclina sollozando al ocidente, corre una sombra doliente sabre la pampa argentina. Y cuando el sol ilumina con luz brillante y serena del ancho campo la escena, la melancólica sombra huye besando su aflomba con él afán de la pena. (...) R G L, n. 5, jun. 2007. 69 Dicen que, en noche nublada, si su guitarra algún mozo en el crucero del pozo deja de intento colgada, llega la sombra callada y, al envolverla en su manto, suena el preludio de un canto entre las cuerdas dormidas, cuerdas que vibran heridas como por gotas de llanto. (...) Yo, que en la tierra he nacido donde ese genio ha cantado, y el pampero he respirado que al payador ha nutrido, beso este suelo querido que a mis caricias se entrega, mientras de orgullo me anega la convicción de que és mía ¡la patria de Echeverría, la tierra de Santos Vega!ab O clima buscado pelos payadores na narração dos seus Romances não se restringe ao emprego da oralidade enquanto mera vocalização do discurso verbal. Esta, segundo Lienhardac se traduz em mais de um elemento, envolvendo vários fatores que remetem à expressão, envolvendo os demais sentidos na tentativa de captar toda a dinâmica expressiva, pois a “alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática.”ad A atitude do narrador/payador está vinculada aos elementos que se relacionam com o apelo à memória e à capacidade obter respeito e atenção do grupo ao qual se dirige, como na obra de José Alonso y Trellesae. “El Viejo Pancho fué desde entonces un amigo más, recibido con el mate cordial bajo las enramadas.”af 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. (...) 10. 11. 12. 13. 14. ¿Vamos, viejo? No voy, no voy hermano: Ando medio pesáo de la cabeza, Y cuando estoy ansina, hasta una broma Se me hace que es ofensa... Vaya no más usté: pa mi no tienen Ni un poquito de gracia las carreras Dende aqueya ocasión en que el cacique, Que dentraba en la penca, Me retó porque tráiba Consigo toda la perrada hambrienta, ¡La perrada baguala que en el gáucho Ve el pan que no se vende de esta tierra!... Vaya no más usté; yo ya soy viejoag Utilizando a forma de falar do campeiro, mas também demonstrando preocupação com os temas do cotidiano, tornando-se uma espécie de “amigo” mais experiente que tem muito a revelar sobre a vida e o tempo, o poema tece um diálogo entre dois homens, 70 um deles supostamente mais jovem (versos 01 e 14) e ao qual o contador demonstra sua inconformidade (versos 08, 09, 10 e 11) enquanto entende a necessidade das novas gerações de enfrentarem seus problemas e seguirem seus próprios caminhos, mas alerta para a tradição guerreira que deve ser honrada (versos 12 e 13). Aureliano de Figueiredo Pinto traz no poema Este livro as marcas que realizam uma aproximação com o cotidiano da campanha por meio da metáfora entre o artesanato rústico de trançar o couro para a confecção do laço e o trançar versos para o poema de abertura (versos 01 e 02). Criticando aqueles que “trançam” seus poemas copiando formas e expressões consagradas (versos 05 e 06) e não se detendo com paciência ao trabalho que a composição exige (versos 03 e 04), apresenta elementos que evidenciam o payador como aquele que merece atenção, pois também possui a sua ciência. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Campeiros! Prontos os laços para tropeada e rodeio. Lidei com chuva e vagar sem pressas no romaneio. Pelo demais se apurar a um tal sucede trançar com loncas de gado alheio.ah Assim, a criação de um local em que se pode contar/cantar/narrar é realizado por meio da linguagem; o clima e a preparação do ouvinte para a recepção dos versos estão relacionados com a adaptação às práticas cotidianas que se transformam em ponto de partida para abordar outros temas, desde o lúdico até a política partidária. Todas essas características apontam o payador como narrador na perspectiva benjaminiana, distanciando-o daquelas aproximações frágeis com a epopéia e destacando aspectos relacionados à oralidade e à composição de um espaço-tempo aceitável para o trânsito das personagens e temas intrínsecos à cultura gaúcha. Referências bibliográficas ASCASUBI, Hilario. La Refalosa. In: _____. Paulino Lucero. Buenos Aires: Estrada, 1945. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Ed. USP, 1977. BRAUN, Jayme Caetano. Alma Pampa. In: MARENCO, Luis. Filosofia de Andejo. Long Play. Porto Alegre: ACIT, gravado entre os dias 19 e 22 de março de 1993. CAMPO, Estanislao del. Fausto. Buenos Aires: SUR, 1962. R G L, n. 5, jun. 2007. 71 FRANCO, Jean. Historia de la literatura hispanoamericana. 11. ed. Barcelona: Ariel, 1997. HERNÁNDEZ, José. El gaucho Martín Fierro: La vuelta de Martín Fierro. 9. ed. Madrid: Catedra, 1995. HERÔDOTOS. História. 2. ed. Brasília: UNB, 1988. HIDALGO, Bartolomé. Obra completa. Montevideo: Editorial Ciencias, 1979. JOZEF, Bella. História da Literatura Hispano-Americana. Rio de Janeiro: Vozes, 1971. LIENHARD, Martín. Oralidad. In: Revista de Crítica Litrária Latinoamericana – Documentos de Trabajo: Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana. Lima-Berkeley, 2º sem. 1994, p. 371-374. OBLIGADO, Rafael. Santos Vega. 12. ed. Buenos Aires: Kapelusz, 1965. PINTO, Aureliano de Figueiredo. Romances de Estância e Querência - Marcas do Tempo. Porto Alegre: Globo, 1959. PORTAL DE LITERATURA GAUCHESCA – Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Buenos Aires. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em jun. 2004. SCHÜLER, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. TRELLES, José Alonso y. Paja Brava. 6. ed. Montevidéu: Impresora Uruguaya, 1930. WIKIPEDIA La Enciclopedia Libre. Disponível em: <http://wikipedia.org/wiki/El_Viejo_ Pancho#Biograf.>. Acesso em: 13 mar. 2004. Notas a Doutor em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (PPGL/UFSM) b BRAUN, Jayme Caetano. Alma Pampa. In: MARENCO, Luis. Filosofia de Andejo. Long Play. Porto Alegre: ACIT, gravado entre os dias 19 e 22 de março de 1993. c O tom épico relaciona-se com a questão da oralidade, das marcas lingüísticas presentes nos poemas que evidenciam a presença dos elementos da tradição dos narradores, dos contadores de histórias. Dessa forma, os dois tipos de regionalismo mencionado no texto se aproximam por meio da estrutura. d BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Ed. USP, 1977. p. 20. e Ibid., p. 21. f Ibid., p. 22. g BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, Ed. USP, 1977. p. 29-30. h BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 221. i No mesmo ensaio, Benjamin faz a comparação entre quem escuta uma história e quem lê um romance, afirmando que este é solitário. “Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta pra um ouvinte ocasional)” BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 213. Há a aproximação, assim, da cultura tradicional que valoriza os poemas que narram histórias e feitos individuais e coletivos. j Herôdotos nasceu em Halicarnassos, em 484 a.C., na época o centro mais florescente da cultura helênica (cabe aqui salientar o aspecto inflexível da cultura helênica, diferente do da helenística, mais flexível e absorvedora dos aspectos culturais das regiões que a compunham). Participava da vida política da cidade, opondo-se ao tirano Ligdamis – segundo sucessor de Artemísia. Herôdotos é chamado “pai da história” porque 72 antes dele houve apenas logógrafos (escritores em prosa) em contraste com os escritores em versos (poetas e filósofos). Elabora, assim, uma distinção entre o logógrafo e o historiador, o qual tem um significado mais definido, pois história quer dizer originariamente “busca, investigação, pesquisa”; então o historiador, do ponto de vista etimológico, é uma pessoa que se informa por si mesma da verdade, que viaja, que interroga, em vez de limitar-se a transcrever dados à sua disposição e repetir genealogias, cronologias e lendas. Ver: HERÔDOTOS. História. 2. ed. Brasília: UNB, 1988. k BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 204. l BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 209. m Ibid., p. 210. n Ibid., p. 210. o Ibid., p. 214. p (1788-1822) É considerado o iniciador formal e o primeiro representante da literatura gauchesca. Nascido em Montevidéu recebeu uma educação irregular de autodidata. Considerado como o primeiro poeta do Uruguai, cantor da gesta de Artigas e precursor na versificação da língua falada pelos gaúchos orientais, foi autor da Marcha oriental, de corte neoclássico. Cruzou o Rio da Prata em 1818, e iniciou em Buenos Aires uma singular carreira de poeta profissional, que durou apenas quatro anos. A obra de Hidalgo pode ser classificada em “Cielitos” e “Diálogos patrióticos”; e no aspecto cronológico pode ser dividida em dois grandes períodos: • o uruguaio (1811-1816) que corresponde a sua literatura de aspecto político • o argentino - Buenos Aires (1818-1822), que corresponde ao que se denominou “poesía expectante” e representa a fase mais madura de sua produção. Adaptado do PORTAL DE LITERATURA GAUCHESCA – Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Buenos Aires. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em jun. 2004. q HIDALGO, Bartolomé. Al triunfo de Lima y Callao. Cielito patriótico que compuso el gaucho Ramón Contreras. In: _____. Obra completa. Montevideo: Editorial Ciencias, 1979. p. 51-53. r (1807-1875) Nasceu em Fraile Muerto (hoje Bell Ville), província de Córdoba; aos 12 anos embarcou para os Estados Unidos. O barco, porém, acabou em Lisboa, de onde foi a Inglaterra primeiro e depois a França para, finalmente, voltar a América. Em 1825, já em Buenos Aires, se envolveu com as forças do general Lamadrid. Em 1892 pasou a Montevidéu com o general Lavalle e regressou a Buenos Aires, onde foi aprisionado pela polícia de Rosas em fins de 1830. Dois anos depois (1832), escapou da prisão, cruzou o Rio da Prata e se instalou em Montevidéu, onde residiu até a queda de Rosas, vinte anos mais tarde. E foi em Montevidéu que Ascasubi, afirmado na tradição iniciada por Bartolomé Hidalgo, escreveu e publicou seus primeiros poemas gauchescos. Adaptado do PORTAL DE LITERATURA GAUCHESCA – Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Buenos Aires. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em jun. 2004. s ASCASUBI, Hilario. La Refalosa. In: _____. Paulino Lucero. Buenos Aires: Estrada, 1945. p. 152-153. t CAMPO, Estanislao del. Fausto. Buenos Aires: SUR, 1962. p. 17. Sua obra é altamente representativa de um período singular da literatura gauchesca: o da sua aproximação com elementos com os padrões de composição da poesia dita culta. Nasceu em Buenos Aires, em 07 de fevereiro de 1834, no seio de uma família tradicional. Filho do coronel Estanislao del Campo, chefe do Estado Maior do exército de Lavalle e de Dona Gregória Luna. Estudou na Academia Portenha e trabalhou, em sua adolescência, no comércio, abraçando, depois, a carreira das armas. Lutou em 1853 ao lado do General Mitre contra as forças da Confederação. Sempre fiel a causa da província de Buenos Aires, lutou em Cepeda (1859) e depois em Pavón (1861), quando foi promovido a capitão. Na revolução de 1874 foi promovido a coronel. Paralelamente a sua participação nas campanhas militares, desempenhou diversos cargos e funções públicas. Foi dono de uma imprensa – “Buenos Aires” – onde foi impressa a primeira edição de Fausto. Atuou principalmente nos periódicos El Nacional e Los Debates, nos quais colaborava com versos gauchescos de intenção política sob o pseudônimo de Anastacio el Pollo. Alcançou grande popularidade depois da aparição de Fausto, em 1866, em forma de folhetim. Foram amigos de Estanislao del Campo, entre outros destacados nomes da literatura do seu tempo, Hilario Ascasubi, José Mármol, Ricardo Gutiérrez e Carlos Guido y Spano. u José Hernández (1834-1886) foi soldado, periodista, funcionário público e legislador, partidário de Urquiza e do federalismo. El gaucho Martín Fierro y La vuelta del Martín Fierro, são dois textos conhecidos na atualidade como as duas partes de uma mesma obra, constituindo-se em uma das obras essenciais de toda a literatura rio-pratense. Nascido no interior de Buenos Aires, Hernández viria a se converter no maior expoente da literatura gauchesca. Sua juventude foi vivida entre o campo e a cidade, sendo interrompida em 1852 pela morte do seu pai e seu ingresso em milícias no ano seguinte. Como os demais poetas gauchescos, publica seus escritos em diversos periódicos como La Reforma Pacífica (1856), El Argentino (1863) e El Río de la Plata (1869). Nesta época ocorrem os exílios em função de motivações políticas. De volta a Buenos Aires R G L, n. 5, jun. 2007. 73 em 1872 publica a obra que viria a consagrar o gênero gauchesco: El Gaucho Martín Fierro. Sete anos mais tarde, em 1879, Hernández publica La Vuelta de Martín Fierro. No prólogo do texto, o próprio Hernández insiste nos valores que considera principais acerca de sua obra: a universalidade do personagem e o caráter popular do poema: “El gaucho no aprende a cantar. Su único maestro es la espléndida naturaleza que en variados y majestuosos panoramas se extiende delante de sus ojos. Canta porque hay en él cierto impulso moral, algo de métrico, de rítmico que domina en su organización, y que lo lleva hasta el extraordinario extremo de que todos sus refranes, sus dichos agudos, sus proverbios comunes son expresados en dos versos octosílabos perfectamente medidos, acentuados con inflexible regularidad, llenos de armonía, de sentimiento y de profunda intención. Eso mismo hace muy difícil, si no de todo punto imposible, distinguir y separar cuáles son los pensamientos originales del autor y cuáles los que son recogidos de las fuentes populares”. Adaptado do PORTAL DE LITERATURA GAUCHESCA – Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes. Buenos Aires. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em jun. 2004. v JOZEF, Bella. História da Literatura Hispano-Americana. Rio de Janeiro: Vozes, 1971. p. 83. w SCHÜLER, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. x BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 221. y HERNÁNDEZ, José. El gaucho Martín Fierro: La vuelta de Martín Fierro. 9. ed. Madrid: Catedra, 1995. p. 111. z FRANCO, Jean. Historia de la literatura hispanoamericana. 11. ed. Barcelona: Ariel, 1997. “Después de haber sido reclutado para luchar en la frontera contra los indios, deserta, descubre que su familia ha desaparecido y a partir de entonces se convierte en un ‘tigre’, movido por el odio a la ley y al orden. (...) El servicio militar de Martín Fierro en la frontera menoscaba su dignidad viril al privarle del caballo y de las armas que son los símbolos de la hombría del gaucho. (...) Martín Fierro encarna los valores de la hombría enfrentados a todas estas fuerzas – la explotación, la corrupción, la injusticia – que amenazan al individuo. Encarna también los valores de la frontera, la valentía, la confianza en si mismo y la independencia, contra lo que Sarmiento hubiese considerado como los valores de la civilización: el imperio de la ley, la organización social y el comercio”. p. 76-77. aa Rafael Obligado nasceu em Buenos Aires, em 27 de janeiro de 1851. Tradicionalista de alma, sua estética se baseou na exaltação do argentino. A paisagem, a história e a tradição foram fontes inspiradoras para suas composições. Atuou como membro, conselheiro e vice-decano na fundação da Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires. Apoiou várias obras que trouxessem algum benefício para a cultura. Viveu sua existência serenamente de forma reflexiva, enamorado da terra natal, de sua beleza e do seu passado legendário. Realizou algumas viagens pelo interior da República, passando seus últimos anos dedicado à leitura e a correção dos seus poemas. Faleceu em 08 de março de 1920. Adaptado de LACAU, Maria Hortênsia. Noticia sobre Rafael Obligado. In: OBLIGADO, Rafael. Santos Vega. 12. ed. Buenos Aires: Kapelusz, 1965. p.VII-VIII. ab OBLIGADO, Rafael. Santos Vega. 12. ed. Buenos Aires: Kapelusz, 1965. p. 03-06. ac LIENHARD, Martín. Oralidad. In: Revista de Crítica Litrária Latinoamericana – Documentos de Trabajo: Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana. Lima-Berkeley, 2º semestre de 1994, p. 371374. ad BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 220. ae Em 07 de maio de 1857 nasceu José María Alonso de Trelles y Jarén em Santa María do Campo, Ribaldeo (Lugo). A sua mãe Vicenta Jarén era galega, enquanto que o seu pai, o mestre Francisco Alonso y Trelles era de origem astúria. Durante a súa adolescencia, José María estudiou perito mercantil, sendo esta a profesión que anos máis tarde lle permitiu vivir economicamente. Corria o ano 1875e, com 18 anos cumpridos, Alonso de Trelles parte para o Rio da Prata despois de terminar os seus estudos. O seu primeiro porto de chegada foi Montevidéu. Entre 1875 e 1877 viveu na pampa argentina. Trelles viu por primeira vez ao gaucho crioulo, familiarizou-se com o folclore riopratense, de um ambiente que mitura o indio e o colono. A Argentina naqueles anos estaba governada pelo general Roca, que se caracterizou por arrasar com os indígenas e colonizar até a Patagônia. Para isso houve a necessidade de contingentes de imigrantes que pudessem povoar aquele extenso país. De 1860 a 1880 chegam 160.000 estrangeiros - maioria galegos e italianos. Com a conquista do deserto, o novo modelo de país não apresenta espaço para o índio e o gaucho. Em 1881 editou a sua primeira obra Juan el loco da qual o mesmo Trelles disse que “era algo con notables pretensións de parecerse a un poema”. Durante um breve tempo veio viver na zona brasileira de Sarandí Garupá, quase na fronteira com o Uruguai, para retornar novamente a El Tala. Em El Tala, Trelles captou rapidamente o carácter do lugar e de sua gente. Aprendeu as lendas. Incorporou a linguagem e converteu-se em mais um criollo. José María Alonso y Trelles, que anos mais tarde seria chamado popularmente de “El Viejo Pancho”, converteu-se no escritor gauchesco mais importante da literatura uruguaia, algo como José Hernández para os argentinos. Em 1902 nacionalizou-se uruguaio, incorporando-se à vida política do país. A obra literária de Trelles foi destacada fundamentalmente na expressão poética. A sua primeira obra de caráter nativista foi Resolución. 74 Posteriormente Trelles reuniu a sua produção poética em um único livro chamado Paja Brava, com o que atingiu a sua máxima projeção literária. Faleceu de uma longa enfermidade no dia 28 de julho de 1924 (ou 28 de fevereiro de 1924) com 513 anos de idade. Adaptado de WIKIPEDIA La Enciclopedia Libre. Disponível em: <http://wikipedia.org/wiki/El_Viejo_Pancho#Biograf.>. Acesso em: 13 mar. 2004. af MUNIZ, Justino Zavala. El Viejo Pancho. In: TRELLES, José Alonso y. Paja Brava. 6. ed. Montevidéu: Impresora Uruguaya, 1930. p. VII. ag TRELLES, José Alonso y. Fruta del tiempo. In: _____. Paja Brava. 6. ed. Montevidéu: Impresora Uruguaya, 1930. p. 3. ah PINTO, Aureliano de Figueiredo. Romances de Estância e Querência - Marcas do Tempo. Porto Alegre: Globo, 1959. p. 03. R G L, n. 5, jun. 2007. 75 REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA VOZ DO ESTADO NO DISCURSO DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO Izabel Eugenia de Souza OLIVEIRA DOS SANTOSa Marlene DURIGANb Vânia Maria Lescano GUERRAc Abstract: We opt to study the technology and development discourse, matter that has gotten world debate, since it is necessary the use bigger time of the energy as combustible for the development of the companies that generate “the wealth” of the nations. We choose a report from 1905, research ordered for the State’s governor to take care of economic interests of Brazil, in relation to the construction of hydroelectric plants in the State of São Paulo. On molds of the French Discourse Analysis (AD), which brings for theory of discourse history and subject, we highlight the interdiscourse of the ideology of the State (representative of the globalization). We show as the subjects of the analyzed discourse-report reach the economic objectives of the State of São Paulo and the bourgeoisie pre-industrial in the initial period of century XX, by means of a scientific rational discourse that anchors the institutional discourse of the State, supported for the positivist philosophy of scientific matrix. Key-words: representation; discourse; positivism; History. Tudo o que existe envolve contradição, porque envolve o ser e o não ser ao mesmo tempo. Porque envolve o ser quanto a nós, e o não ser quanto a Deus. Mas o que é esse nós? A contradição da existência racional é não envolver contradição; a da existência real precisamente envolvêla. Mas então como se dá o acordo entre o racional e o real? [...] Bem sei que isto se torna incompreensível, mas com a nossa limitação, não podemos senão chegar a este apontar ridículo para uma porta fechada. (Fernando Pessoa, Obras em prosa, p. 710). Introdução Ao iniciarmos este trabalho optamos pelo estudo do discurso da tecnologia e do desenvolvimento, assunto que tem despertado o debate mundial, uma vez que se fez necessário a utilização cada vez maior da energia como combustível para o desenvolvimento das empresas que geram “a riqueza” das nações. Atualmente, discute-se o uso de matérias-primas renováveis e menos poluentes para desacelerar a destruição causada no meio ambiente desde a revolução industrial – marco da história oficial da industrialização mundial - que prejudicou a sociedade no que diz respeito também às condições econômico-sociais. Pensando nisso, elegemos o relatório de 1905, pesquisa encomendada pelo governador do Estado para atender aos interesses econômicos do Brasil, em relação à construção de usinas hidrelétricas no Estado de São Paulo. Esse estado já se mostrava um pólo de concentração de pequenas indústrias que contavam com imigrantes que não haviam prosperado nas lavouras de café e procuravam trabalho. Nos moldes da Análise do Discurso francesa (AD), que traz para a teoria do discurso a história e o sujeito, destacamos o interdiscurso da ideologia do Estado (representante da globalização). Estudamos no texto, por meio da materialização lingüístico-discursiva das observações registradas pelos relatores, as perspectivas do chefe da comissão João P. Cardoso, o chefe da turma, do engenheiro Jorge Black Scorrar e do engenheiro Guilherme 76 Florence, no Relatório de exploração do rio Tietê, de 1905: o assujeitamento à ideologia do Estado de São Paulo; a relação com o interdiscurso da ideologia positivista, no que tange às conseqüências do desenvolvimento da sociedade (liberal, burguesa e capitalista) vinculada à ciência e à utilização de instrumentos tecnológicos especializados na produção econômica; a história da exploração do interior do Estado de São Paulo, desde o século XVIII, por meio do rio Tietê; a posição do sujeito diante da história, sua interpretação e produção de sentidos e os processos de apagamento-exclusão da população regional e desumanização dos sujeitos no discurso científico. Assim, buscamos aqui compreender como os discursos de exploração do rio Tietê estão historicamente marcados pela ideologia do Estado de São Paulo e pela participação da elite paulista do período colonial até o período de articulação do projeto, que resultou no discurso do relatório de 1905. Em outras palavras, procuramos compreender como os sujeitos do discurso-relatório analisado atingem os objetivos econômicos do Estado de São Paulo e da burguesia pré-industrial no período inicial do século XX, por meio de um discurso racional científico que ancora o discurso institucional do Estado, sustentado pela filosofia positivista de cunho científico. Importa acrescentar que, para responder às questões de pesquisa – assujeitamento ideológico, a construção do discurso-relatório institucional a partir da História, a formação do sujeito, os processos de apagamento-exclusão e a desumanização no discurso científico –, tomamos como referência as orientações teóricas de autores da AD, essencialmente Michel Pêcheux, Michel Foucault, estudiosos que buscam, na exterioridade, elementos constitutivos da argumentação discursiva do sujeito do discurso e, pois, auxiliam na interpretação dos sentidos produzidos. Trata-se de identificar efeitos de sentido produzidos no discurso científico de exploração energética do rio Tietê (tendo como enunciados sustentadores a busca por riquezas) que constitui/é constituído no relatório dos engenheiros. Tomamos também o método arqueológico para analisarmos as descontinuidades na história, suas rupturas para sustentar o discurso da exploração. O corpus da pesquisa constitui-se de um relatório de cunho científico elaborado pela Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo, atrelado aos interesses econômicos do Estado, ou seja: preocupado com o desenvolvimento industrial do Estado e a necessidade de energia para a manutenção de futuros parques industriais na capital e no interior paulistas. Há que se apontar aqui a complexidade do real discursivo em relação à instabilidade e heterogeneidade enunciativa que resultam da necessidade e do desejo da verdade (ilusão de completude dos sentidos, controle) dos seus enunciadores e de seus processos de subjetivação evidenciados na leitura desse relatório escrito, com fins de trabalho. Enfim, a verdade é pautada na construção da imagem positiva do Estado e de suas instituições geradoras de energia. É pertinente dizer que encontramos oito pesquisas em Análise do Discurso a respeito do discurso da tecnologia e do desenvolvimento, no que tange à construção de usinas hidrelétricas como apoio para a industrialização. Frente a esse número restrito de pesquisas e à importância do tema para o futuro do modo de vida mundial, esperamos colaborar como R G L, n. 5, jun. 2007. 77 mais um fio de discurso nessa trama que ainda se encontra “rarefeita”. Contribuições de Pêcheux para a AD Na análise do discurso proposta por Pêcheux, a exterioridade torna-se um elemento constitutivo dos sentidos. Segundo Gregolin (2001, p.12), esse deslocamento teórico demonstra uma crise interna da lingüística, especialmente a semântica: “Decorre dessa nova concepção de discurso uma teoria não subjetiva, com base nas propostas de Althusser sobre o assujeitamento ideológico e de Foucault com a noção de formação discursiva”. Esse questionamento prevê na AD o encontro entre uma teoria lingüística (Saussure), uma teoria do sujeito (Freud) e uma teoria da história (Marx). Esse questionamento que é fundamental, sobre a relação entre “intradiscurso” e “interdiscurso”, vai ser operado por meio da noção de “formação discursiva”, emprestada de Foucault e reinterpretada por Pêcheux. Uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, pois, é constitutivamente invadida por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas, fundamentais (por exemplo, sob a forma de pré-construídos e de discursos transversos) (PÊCHEUX, 1990). Desde a concepção da AAD-69, Pêcheux (1993, p. 75) afirma que o sentido depende da formação discursiva a que o texto pertence e que é necessário constituir um corpus, um conjunto de textos que permitam confrontar os efeitos de sentido heterogêneos para localizar as correspondências entre as formações discursivas e interpretações. Desse modo, Pêcheux antecipa a noção de interdiscurso: o discurso apóia-se em um discurso anterior que fará a vez de matéria-prima. Em outras palavras, o discurso é uma articulação multiforme (até contraditória) de formações discursivas, que se referem a formações ideológicas antagônicas (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004). Nesse trabalho, duas ilusões foram denunciadas: a ilusão do sujeito falante dono de seu discurso e a da semântica, que considera que um sentido comunicado pelo texto pode ser depreendido pelo leitor a partir da combinatória das palavras e frases desse texto. Como instrumento de análise, a AAD 69 utiliza a análise harrisiana, que seleciona classes de enunciados elementares em relação de paráfrase, sem levar em conta a enunciação. O materialismo histórico de Marx serviu ainda para Pêcheux verificar lugares na estrutura de uma formação social, como os lugares do “patrão” (diretor, chefe de empresa), do funcionário de repartição, do contramestre e do operário no interior da produção econômica e daí formular sua noção de sujeito. Pêcheux acrescenta ao discurso o conceito de inconsciente reformulado por Lacan, que o inscreve exclusivamente no registro da estrutura, definindo que o inconsciente é estruturado como a linguagem e que o inconsciente do sujeito é o discurso do outro. Essas revelações de Lacan juntam-se com o “lugar social” de que fala Althusser, orientando-se para o conceito de “condições de produção” do discurso, ou seja, circunstâncias nas quais um discurso é produzido. Nesse aspecto podemos entender que a relação dos sentidos torna-se diferente de acordo com a formação discursiva, como nos orientou Michel Foucault, apresentado no 78 item a seguir. A contribuição de Michel Foucault A “análise arqueológica” que Foucault realizou constitui um método original em História das idéias e suas bases são formadas em Arqueologia do saber publicado em 1969. Essa análise é em sua essência uma análise do discurso, em que Foucault procura examinar com rigor o modo como as categorias ocorrem nos discursos e como o próprio discurso se constitui. O método arqueológico busca elementos que possam ser articulados oferecendo um panorama das condições de produção de um saber de uma época. Ele investiga os diferentes modos de discursos, que circulam em uma época. No método arqueológico, Foucault (2003) propõe não a “busca da origem” ou a escavação de “significados secretos”, mas sim uma “origem visível”, começos relativos e nesses “começos” busca sentidos escondidos atrás da materialidade das palavras. Foucault (2005) argumenta que o poder é uma tentativa de impor uma ordem num mundo em movimento. Acredita ainda que o poder é exercido em sistemas e em instituições e que a “verdade” jamais é absoluta, mas sempre contingente, além de que expressa as normas sociais e políticas prevalecentes, que são produtos das relações de poder e, portanto, não são de influência niveladora, uma vez que, no mundo moderno, o poder permeia a sociedade, não é mais centralizado, é exercido de baixo para cima. O poder soberano foi substituído pelo “poder disciplinar”, poder da coação exercido por sistemas de controle que vão de instituições penais ao materialismo comunista (ROHNANN, 2000, p.167-8). Em relação à vontade de verdade, os sujeitos têm a “intenção” de passar o que é verdadeiro, de estar com o que é tido como “regime de verdade”. E não existe uma “chave interpretativa” capaz de trazer à tona as “verdades ocultas”, pois o que está ao alcance do analista são gestos interpretativos com os quais ele passa a entender o próprio funcionamento. Verdade e poder caminham juntos. O conceito de “condições de produção” aproxima-se da noção de “circunstâncias” nas quais o discurso é produzido (processo de produção), assim pode-se explicitar o que condicionou o contexto do discurso, no caso do relatório, todo o estado de coisas que se organizava política e economicamente no país no início do século XX, e os momentos da história oficial do Brasil que depois de mais de 500 anos não mudou, ou seja, a busca por riquezas e a exploração. As condições de produção do discurso Pêcheux (1997) designa “por meio do termo processo de produção o conjunto de mecanismos formais que produzem um discurso de tipo dado em circunstâncias dadas” (p. 74-5). Os estudos dos processos discursivos supõem duas ordens de pesquisa: o estudo R G L, n. 5, jun. 2007. 79 das variações específicas (semântica, retórica e pragmática), fundo invariante da língua, e o estudo de ligação entre “circunstâncias” de um discurso, chamado de condições de produção, pano de fundo específico dos discursos “o que torna possível sua formulação e compreensão”. Segundo o autor, “[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas” (PÊCHEUX, 1993, p. 77) e está relacionado com seu lugar num mecanismo institucional extralingüístico. Em outras palavras, o processo discursivo não tem, na verdade, início, pois um discurso é sempre matéria prima do outro. (id, p. 78). No caso, o relatório datado de 1905 foi editado posteriormente em 1930, emergiu novamente como acontecimento discursivo quando, no Brasil, ocorria a aceleração da política de industrialização, decorrente da quebra da bolsa de valores e da desvalorização do café em 1929, até então principal fonte de riqueza do nosso país. Esse relatório defende os interesses econômicos (industriais) do Estado, uma vez que apresenta a análise de todo o território às margens do rio Tietê, explorando as possibilidades de investimento, especialmente a construção de usinas hidrelétricas para alimentar o aparato industrial que se pretendia instalar no Brasil já em 1905. Esse interesse pelas riquezas do interior paulista é registrado na história oficial do Brasil desde o século XVI. Segundo Michel Foucault (2002), tradicionalmente os historiadores abarcavam uma densa camada de acontecimentos em sucessão linear, que até então eram objetos de pesquisa. Esses foram substituídos por um jogo de interrupções, pois, à medida que se desce para alicerces mais profundos, as escansões tornam-se cada vez maiores: Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar: história do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação de culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação (p.3). A arqueologia de Foucault rompe com o fio da continuidade (dos historiadores tradicionais) e volta-se para as brechas, descobrindo o descontínuo, buscando o emaranhado de fatos discursivos que antecedem um acontecimento, podendo explicá-lo e determiná-lo. E uma conseqüência de a história de nossos dias voltar-se para a arqueologia é a descontinuidade como lugar de onde o historiador pode falar: a ruptura, que lhe oferece como objetivo a história e sua própria história. A infinitude de sentido é transformada por completude, pelos textos, mas esse efeito dura até o leitor investigar as marcas inscritas na materialidade textual, na prática da interpretação, ele devolve ao texto sua incompletude. O texto, inserido na memória e na história, nasce de um ininterrupto diálogo com outros textos, portanto não há como encontrar a palavra fundadora, a origem, a fonte. O sujeito só consegue enxergar os sentidos nessa movimentação. No texto analisado, encontram-se vozes e “discursos” da história que se estende desde o processo inicial de colonização portuguesa no Brasil, a partir do século XVI, até o início da modernidade liberal republicana, no começo do século XX, que se apóiam in- 80 terdiscursivamente e intradiscursivamente. As descontinuidades, rupturas causadas pelas circunstâncias ideológicas, sociais, políticas (interna e externa) constituem a história do Brasil: a história da escravidão, da cana-de-açúcar, do ouro, do café, da pecuária. Essas histórias, como os afluentes, deságuam na história da exploração, que, no início do século XIX, sofrerão outra ruptura, mudando apenas o alvo: o próprio Tietê, que já havia servido de caminho para o explorador (COTRIN, 1994). O discurso de exploração do rio Tietê inaugura-se na sociedade brasileira no início do processo de colonização da coroa portuguesa no século XVI. Os jesuítas e os bandeirantes utilizaram da geografia natural do rio, que possui suas nascentes na Serra do Mar, o que permitia o avanço colonizador e explorador para o interior do Estado e da colônia, fazendo, dessa forma, o caminho contrário ao que é comum para os rios: desembocar no oceano. No período colonial, esses discursos ganham força, pois o rio paulista aparecia como um dos melhores caminhos rumo ao interior e conseqüente expansão do território colonial. Esse processo de interiorização da colônia brasileira pelos portugueses chega a ser quase natural, em decorrência da presença marcante dos bandeirantes paulistas, que, em busca de escravos indígenas e pedras preciosas, como nos orientam Silva e Bastos (1989), organizavam “as bandeiras, que se tornaram verdadeiras empresas em busca de riquezas nos sertões, aproveitando-se dos grandes rios, como, por exemplo, o rio Tietê, o Paraíba do Sul e o rio Paraná” (p. 66). Importa considerar que os sujeitos dos discursos de exploração do rio Tietê sempre tiveram o aval institucional dos poderosos, como, por exemplo, o colonizador Martim Afonso de Souza, ou o religioso, o padre José de Anchieta. Os jesuítas, responsáveis pela educação e cristianização dos povos naturais da região e dos estrangeiros, seguiam a ideologia da Igreja Católica; já os bandeirantes assujeitavam-se à ideologia do Estado português colonizador e dos proprietários de terras particulares (condicionados à ideologia da coroa portuguesa), para exploração da região em busca de metais preciosos, escravização dos índios e expansão territorial da colônia brasileira. No discurso-relatório em questão, encontramos essa vinculação ideológica institucional com o Estado. Já na apresentação do relatório o chefe da comissão, João P. Cardoso (1º. Enunciador), esclarece ao Secretário da Agricultura do Estado (1905), o Dr. Carlos Botelho, que: Em obediência ás instrucções approvadas pelo Governo do Estado para a exploração do extremo sertão, foi organisada a turma que devia proceder ao levantamento do Rio Tieté desde a barra do Jacaré até a sua foz no Paraná (§1º.). Durante a expedição de 1905, que resultou no discurso que ora analisamos, também encontramos semelhanças lingüístico-discursivas entre a ação dos bandeirantes sobre os índios e os exploradores cientistas modernos. O próprio chefe da comissão, João P. Cardoso (E 1), ainda em sua apresentação inicial, ao divagar sobre a utilização do rio Tietê no futuro, “prevê”, intui que, “quando ahi for um centro industrial e comercial, para o que basta que todas essas fontes de riqueza sejam convinientemente exploradas e povoada essa grande R G L, n. 5, jun. 2007. 81 extensão do Estado occupada hoje pelos ferozes índios Coroados” (§15). Com relação a esse aspecto, encontramos, no relatório, preocupação com a verificação científica e detalhada sobre as pedras preciosas (antigamente perseguidas pelos bandeirantes) que ainda existiam (e possivelmente ainda existem em algumas partes), como notamos no item do relatório relacionado às notas geológicas sobre o rio Tietê: Ainda hoje vê-se a escavação que devia ligar o leito superior com o inferior e é fácil verificar que a causa do mallogro foi a dureza do granito na extremidade superior do canal. O ouro, contido no cascalho do leito, motivou essa tentativa (§180). A vida colonial e os discursos voltam-se para as descobertas de pedras preciosas nas regiões de Minas Gerais, porém existia necessidade de abastecimento de alimentos. Uma das alternativas encontradas pela população colonial e pela coroa portuguesa, para resolver a carência alimentícia na região do ouro, foi o incentivo à criação pecuária. O discurso liberal capitalista burguês ganha impulso no Brasil com a produção de café. No século XIX, o Estado de São Paulo e Rio de Janeiro transformam-se nos maiores produtores exportadores de café do mundo. No relatório encontramos ressonância desse discurso, quando os exploradores cientistas detalham as cercanias do município de Itapura, ponto de onde praticamente partiram nossas indagações, como reparamos no detalhe descrito pelo engenheiro: “Os espigões são quase na sua totalidade formados de terra roxa e vermelha e de grande fertilidade” (§110). Mais adiante encontramos: De summa importância, não só do lado puramente scientifico como também do lado economico, são as rochas eruptivas, diábase e diábase-porphico (2) [...] são estas rochas (vulgarmente chamadas “pedra de ferro”), que pelas suas propriedades chimicas e phisicas produzem a afamada terra roxa. (§ 199). Na última década do século XIX, no Brasil, na fase de transição da monarquia para a república, o Estado de São Paulo começaria a conhecer o seu potencial político, só atingindo sua maturidade no século XX, motivado a ser potência econômica do país, com o seu setor moderno cafeeiro. Os dois primeiros presidentes do Brasil, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto (1889 – 1894), militares, eram naturais do Rio de Janeiro, que era a capital do país, pertencendo à oligarquia cafeeira do setor tradicional. A partir de 1894, até a data de execução do relatório (1905) aqui analisado, todos os presidentes civis (Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves) eram, todavia, paulistas pertencentes à oligarquia cafeeira moderna. Os discursos políticos da elite cafeeira terão sido, para nós, o fator que mais acelerou e provocou o advento do processo de industrialização no Estado de São Paulo e, conseqüentemente, no Brasil. Transformava-se o Estado que, durante quase todo o século XIX (monarquia), era o maior produtor de café, na maior potência industrial do país no início do século XX, segundo Cotrin (1994). Agora as margens dos discursos colonial (bandeirantes) e liberal (exploradores cien- 82 tistas) afunilam-se mais e mais, de modo que encontramos, então incorporados ao discurso do gênero científico que analisamos, mais essa preocupação: a indústria. Verificamos que nessa análise inicial esses setores modernos da oligarquia cafeeira do Estado de São Paulo e do Brasil propiciariam o aparecimento dessa comissão geográfica. Esta elaborou um relatório de conhecimento sobre rio Tietê, enquadrado no gênero de discurso científico, para possível adequação e utilização na produção de energia elétrica para sustentação de um futuro parque industrial na sociedade paulista. Algumas análises O topos do discurso-relatório nos dois textos é aquele que se apóia nos discursos de exploração do rio Tietê para obtenção de energia elétrica, pensando no desenvolvimento econômico, industrial, burguês e capitalista no Brasil. O primeiro enunciador, dá o tom do discurso, garantindo, pelo topos argumentativo de desenvolvimento econômico industrial do Estado de São Paulo, o argumento da apresentação que será repetido, valorizado e até melhorado, no relatório seguinte exposto no texto: ora tendo em consideração todos esses elementos, julgo que não é optimismo prever que sobre as ruinas do Itapura hão de surgir multiplas e variadas construcções quando ahi for um centro industrial e comercial, para o que basta que todas essas fontes de riqueza sejam convinientemente exploradas e povoada essa grande extensão do Estado occupada hoje pelos ferozes índios Corôado. (§ 15). O trabalho de exploração do rio Tietê teve o aval do Governo do Estado, respaldado pela construção que os sujeitos fazem utilizando-se de discursos estabilizados e até cristalizados (interdiscursos), para formar uma imagem positiva do que está por vir, o desenvolvimento. Por meio do discurso jurídico (um dos fios que legitimam esse discurso construído), o sujeito inscreve-se na ordem do discurso enunciável, que legalizou a empreitada, concedendo, aos interessados no desenvolvimento da região, o direito de reconhecer o terreno, demarcá-lo e analisá-lo de acordo com os princípios da lei da época, com os princípios científicos e com as premissas do desenvolvimento vigentes. Logo na abertura do relatório encontramos o título: Relatório de exploração do sertão noroeste; faz-se importante notar que, segundo o dicionário Aurélio (2001), o terno “explorar”, além de significar “procurar”, “descobrir”, ainda equivale a “tirar partido”, ou “proveito”, “ludibriar”. Já o termo “sertão” significa “zona pouco povoada do interior do país”, o que autoriza a interpretação que concebemos nesta análise. O sujeito busca a garantia da homogeneidade, da verdade, crê que é dono do seu discurso, que é coerente e tem consciência do que diz e constrói uma “imagem” de confiança que confere com a imagem positiva do Estado e do seu Governo. Não se pode negar a presença da memória, de fios do discurso do bandeirante, do explorador, do colonizador, que têm em mente tomar posse do terreno e “amansar” os índios ferozes, o que se acentua novamente no parágrafo 15 da apresentação do relatório realizada pelo Chefe da Comissão, João P. Cardoso: R G L, n. 5, jun. 2007. 83 A colocação dessa colonia é excellente sob todos os pontos de vista para a creação de uma cidade; pois basta observar que em seus arredores encontram-se os saltos de Urubupungá e Saltinho no Rio Paraná, e Itapura no Rio Tieté; que a estrada de ferro noroeste deverá passar em suas proximidades pondo em communicação as longinquas paragens do Mato Grosso com o nosso Estado [...] occupada hoje pelos ferozes índios Coroados (§ 15). Com esses discursos já cristalizados na nossa história, podemos recorrer ao discurso dos Bandeirantes, pois foram eles que partiram em expedição conhecendo todo o rio Tietê e o relato do enunciador cria um sentido de dominação e de exploração do Brasil e de suas riquezas como no passado. Ao mesmo tempo em que exalta o desenvolvimento, quando a língua falha ele se expõe, deixando vir à tona justamente a marca do que não trouxe benefício ao país, o da tomada de posse da terra, do massacre dos nativos (povo), tudo isso feito por esses personagens da História do Brasil. Isso acontece porque ele, sujeito, não controla o seu discurso, durante a sua estratégia enunciativa, algo lhe escapa. Nessas falhas podemos identificar a todo momento o projeto do Estado de apropriação da região para o desenvolvimento “do país” e não do da população. Isso é dizer-se no repetível. A saudação com que o primeiro enunciador (chefe da comissão João P. Cardoso) cumprimenta o Exmo. Secretário da Agricultura Carlos Botelho deixa claro o interdiscurso da ideologia iluminista-científico-positivista de liberdade, igualdade e fraternidade, no parágrafo 20: “Saúde e fraternidade”. O discurso legislador que confere ao relatório autoridade e direito de exploração, demonstrando o poder da instituição na instauração da verdade, como explicou Pêcheux (1995), materializa-se no parágrafo 21, lembrando que o Estado de São Paulo era o centro de maior concentração de advogados já no início do século XX. O trecho revela a ideologia capitalista liberal do Estado, pois há no discurso as marcas do Estado e dos interesses de particulares. Toda a descrição/análise tem o respaldo do Governo, como podemos observar logo na primeira linha do texto do Relatório propriamente dito, em que o sujeito/chefe declara o cumprimento da lei: A fim de dar cumprimento ao Decreto No. 1278 de Março de 1905, relativo ao levantamento do rio Tieté até a barra do Paraná e por este acima até o Salto do Urubupungá, foi organisada sob minha chefia (§ 21). Em relação ao conteúdo do relatório, são raras as referências aos seres humanos (à população), como se o objetivo fosse criar um ambiente ao dispor do homem “civilizado”, como se não houvesse vida (útil) no lugar e sua modificação não dependesse de mais nada a não ser de um projeto desenvolvimentista para beneficiar os interesses de riqueza e de desenvolvimento do Estado. Como podemos comprovar no parágrafo 118, o sujeito/médico (terceiro enunciador) utiliza o termo “abandonada” para expressar o seu pensamento: Toda essa força vegetativa, que ahi jaz abandonada, ha de um dia transformar-se em bellas searas, á luz radiante do sol pelo trabalho inteligente do homem civilizado (§ 118). O relator associa “o trabalho inteligente ao homem civilizado” àquele que está de acordo com a ordem do discurso (FOUCAULT, 2003), que domina a natureza, a ordem do desenvolvimento, que se identifica com o discurso da industrialização do capitalismo que 84 se instaurou no mundo. Essa necessidade cega do sujeito de acreditar que tem consciência do que diz, e que o que diz é a verdade, faz que o sujeito do relatório descreva uma região rica e abandonada, com algumas tribos de índios que poderão ter destino parecido como tiveram os índios da época dos bandeirantes. O sujeito que relata não demonstra preocupação com esse assunto, pois ele está assujeitado pela ideologia dominante e preconiza os mesmos projetos, a construção da verdade, organizada pelas instituições, faz que ele veja esta realidade como normal. O assujeitamento acontece também por causa da identificação do sujeito com determinada ideologia. Além disso, todo dizer remete a um não-dito, que envolve as noções de interdiscurso, ideologia e formação discursiva. Ou seja, quando o sujeito pouco se refere à população ribeirinha, sabemos que isso também faz sentido, uma vez que o projeto industrial não foi desenvolvido para beneficiar essa parcela da sociedade. Podemos verificar, diante dessa reflexão, que os sujeitos engenheiros utilizam-se da lógica para objetivar seus estudos, ou melhor, eles partem dos resultados do termômetro (instrumento da ciência) para a análise. Desse modo, sua leitura do exterior é, seja pelas próprias distribuições políticas e ideológicas, seja pela formação acadêmico-social-cultural-econômica, ideologicamente diferente da visão de mundo do habitante daquela região. Aquele que é instituído para descrever-relatar precisa representar, ali, aquilo que é pertinente para o progresso e útil ao sistema capitalista, que, à medida que aperfeiçoa o processo de obtenção de lucro, estabelece novos valores sociais, geralmente não humanos. Todas essas informações serão úteis para o povoamento da região, para a agricultura, para o desenvolvimento do interior do Estado de São Paulo. Considerações finais Com essa análise verificamos que os discursos da história de colonização e exploração do Brasil estão cristalizados, e o sujeito do relatório e sua equipe estão em busca da riqueza. O sujeito na sua essência é ideológico e histórico porque ocupa um lugar num determinado tempo, e ele seleciona alguns dizeres e apaga outros, segundo o “esquecimento 1 e 2” de Pêcheux, essa ilusão é necessária na formação do sujeito para que ele continue a produzir discursos. Nesses espaços discursivos, o sujeito tem a impressão de saber o que fala, pois os enunciados logicamente estabilizados possuem propriedades estruturadoras, independentes de sua enunciação. Trata-se de uma descrição discursiva adequada do real e esses espaços são unificados por evidências lógico-práticas. Existe a impressão de uma aparente homogeneidade lógica, criando proposições verdadeiras e falsas. A impressão que nos causa a leitura do relatório é de que o mundo exterior é o puro relato do conhecimento, pois, ele se apodera dos objetos em seus conceitos e classifica todas as coisas ordenando-as de tal modo que nos ensina “o que é” e o que pensar sobre “o que é”, como nos ensinam nas escolas, na sociedade, na família, nas faculdades. R G L, n. 5, jun. 2007. 85 O texto, inserido na memória e na história, nasce de um ininterrupto diálogo com outros textos, portanto não há como encontrar a palavra fundadora, a origem, a fonte. Referências bibliográficas CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. Trad. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004. COTRIN, G. História e consciência do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1994. Dicionário Aurélio Básico de Língua Portuguesa. São Paulo: Folha de São & Cortez, 2001. FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. _______. A ordem do discurso. Trad. 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Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi; Lourenço Chacon Jurado Filho; Manoel Luiz Gonçalves Corrêa; Silvana Mabel Serrani. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. _______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 1997. PESSOA, F. Contos de Raciocínio. Conto filosófico de Pero Botelho. In: Pessoa, Fernando, Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar. S. A, 2005, p. 710. RELATÓRIO DA COMISSÃO GEOGRÁFICA E GEOLÓGICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 3. ed. São Paulo: Typografia Brazil de Rotheschild & Cia., 1930. ROHMANN, C. Livro das idéias. Trad. Jussara Simões. Rio de Janeiro: Campos, 2000. SILVA, Francisco de Assis & BASTOS, Pedro Ivo de Assis. História do Brasil. São Paulo: 86 Moderna, 1989. Notas a Mestre em Letras pela UFMS, sob a orientação da Profa. Marlene Durigan e da Profa. Vânia Maria Lescano Guerra, da área de Estudos Lingüísticos, do campus de Três Lagoas (CPTL). b Docente do Programa de Mestrado em Letras da UFMS (CPTL) e pesquisadora da FUNDECT. c Docente do Programa de Mestrado em Letras da UFMS (CPTL) e pesquisadora da FUNDECT. R G L, n. 5, jun. 2007. 87 O LÉXICO COMO BRAÇO DA CULTURA REGIONALISTA SULMATO-GROSSENSE: POUSO ALTO EM QUESTÃO Maria Madalena da SILVA LEBRÃOa Abstract: This article articulated some considerations concerning the lexicon as arm of the regional culture Sul-mato-grossense, disclosing the Pouso Alto as one of the richest scene in the question. The high relevance and local semantic-lexical conservation are given by the fact of the district to be in a geographically strategical position: incrusted in the vegetation of our State. Key-words: lexical; culture; Pouso Alto. Introdução Pouso Alto é um distrito sul-mato-grossense pertencente ao município de Água Clarab e possui 55 pessoas adultas, que somadas às crianças e aos moradores das 13 fazendas circunvizinhas, juntamente com o “Ranha” — alcunha local — formam a Região do Cangalha, cujo número oficial de habitantes resulta em seiscentosc. A alcunha “Ranha” advém do fato de a maioria de seus moradores ser demasiadamente “ranheteiros”. Quando se encontram embriagados, o que ocorre freqüentemente, discutem por qualquer querela, atiram a esmo e, se matam alguém, pensam fazê-lo por honra. Seus próprios moradores referem-se naturalmente ao Pouso Alto como Ranha. Em meados de 1924, Juscelino Ferreira Guimarãesd — tabelião de Pouso Altoe do estado de Minas Gerais — requereu junto a este Estado, que até então era o de Mato Grossof, a posse das terras da região do Rio Gangalha, situada ao norte de Água Clara, com a finalidade de torná-las um patrimônio, haja vista que o Estado, na época, doava terras para este fim. De posse das terras, o tabelião atribuiu o nome de Pouso Alto ao local por admiração à sua terra natal mineira e porque, coincidentemente, havia nos hectares que o Estado lhe concedera, um córrego chamado Pouso Alto. Hoje, este córrego forma uma bica d`água na fazenda que lhe pertenceu e que recebeu, por este fato, o nome de Pouso Alto. A bica origina-se no córrego e atravessa a cozinha da casa sede. O fundador do Pouso Alto, Juscelino Ferreira Guimarães, teve com a popular “D. Tonica” dez filhos, sendo três falecidos. O atual administrador da fazenda é o seu filho primogênito Urbano Ferreira Guimarães. A fazenda do Pouso Alto, depois de inaugurada, só se tornou distrito oficial do município de Água Clara em oito de fevereiro de 1953. Até novembro de 1998, o Pouso Alto era formado por 25 casas de palha, pau-a-pique ou sapê, com chão barreado, e seus moradores tinham costumes bastante rudimentares. Esses costumes, ao longo destes 79 anos, foram lenta e curiosamente alterados: a alvorada que ocorria às 2h da madrugada, com o objetivo de moer a cana de onde extraíam melado, com que adoçavam os alimentos, assim como o leite das crianças, passou para as 88 5h; o almoço servido às 8h ou 9h da manhã, hoje ocorre às 10h 30 min ou 11h; o jantar das 16h, hoje se dá às 18h ou 19h. Em seus primórdios, a economia local era baseada na agricultura, pecuária e pesca. Os desbravadores do Pouso Alto — Juscelino e Tião Paulog, ambos fazendeiros, e alguns poucos peões contratados por eles — plantavam cana-de-açúcar e demais alimentos regionais [como o caxi (abóbora), mandioca, laranja entre outros] para a própria sobrevivência e criavam bois. Na aragem da terra, utilizavam carros-de-boi e, quando comercializavam o gado, os peões tocavam a boiada pela estrada afora. Em decorrência da Segunda Guerra Mundialh, acrescentaram à lavoura e à pecuária, o comércio do sal que buscavam com 10 juntas de bois em “Ferreiros” — segunda estação ferroviária que antecede Água Clara com destino a Três Lagoas. Toda a Região do Cangalha ficava abastecida por meses, já que nesta feita o valor do sal era muito alto, pois o produto era racionalizado. A Região do Cangalha compõe-se pelas fazendas Beatriz, Cachoeira, Fazendinha, Carro Velho, Tigre, Estela II, Alvorada, Olho d`água, Quebra Pedra, Alto do Angical, Pouso Alto, Monte Alegre e Pedra Branca. E apesar de todas elas serem banhadas pelos rios Cangalha, Rio Verde e/ou Sucuriú, o único meio de acesso à região é feito por transporte rodoviário. 80% de seus moradores são nascidos e criados no local; os 20% restantes são migrantes de Minas Gerais. Após novembro de 1998, as casas do Pouso Alto passaram a ser de alvenaria, quando acidentalmente, nessa data, Monaliza Pereira e Silvai, com dois anos de idade, na época, ateou fogo no único barracão de baile que existia no lugar. As labaredas alastraram-se velozmente atingindo 21 das casas feitas de sapê. O então prefeito de Água Clara — Ézio Vicente de Matos — declarou calamidade pública, em parceria com o vereador nascido no lugar Pedro Nogueira de Jesus — o Pedro do Cídio (nome de seu pai) — distribuíram colchões e construíram casas de alvenaria para os moradores que perderam suas casas. As famílias tradicionais de Pouso Alto são as dos Ferreira Guimarães, as dos Garcia Leal, as dos Pereira e Silva e as de Cídio Nogueira. Desenvolvimento Segundo Frubel & Isquerdo (apud ISQUERDO 2003, p. 166): descrever um léxico regional implica levar em consideração a questão da variação, já que “as marcas dialetais no âmbito do vocabulário de um grupo sócio-lingüístico-cultural relacionam-se diretamente à variação espacial (regionalismo) e à variação temporal (arcaísmo)”. Etimologicamente, léxico é o conjunto de vocábulos de uma língua e, por conseguinte, R G L, n. 5, jun. 2007. 89 de um povo, de uma região. O leque lexical nacional é vastíssimo e sempre surgem novas expressões, novos termos, e este é um dos fatos de o dialeto brasileiro ser riquíssimo. Ao descrevermos o léxico encontrado no Pouso Alto e a descortinarmos seu significado, veremos o quanto os vocábulos dali evidenciam características socioculturais do povo sul-mato-grossense. Zavaglia (2007, p. 210) diz que: considerando-se o léxico como um sistema lingüístico que caracteriza, nomeia e reflete cultural e socialmente as percepções e os sentimentos dos falantes de uma determinada língua, podemos pressupor que tal sistema seja composto por diversos microssistemas que por sua vez podem também ser fragmentados em outros microssistemas, e assim por diante, formando, na sua totalidade, o que chamamos do acervo léxico-cultural de uma sociedade. Observemos os significados lexicais dados aos registros de fala encontrados em Pouso Alto e percebamos como as aquisições sócio-lingüístico-culturais desta sociedade oferecem dados relevantes a nós, pesquisadores da língua e de seus fenômenos variacionistas. 1. Alto Descrição semântico-lexical de alguns registros de fala encontrados em Pouso Tendo em vista a variação léxica abundante em Pouso Alto, apresentamos neste artigo campos semânticos do AliB — Atlas lingüístico do Brasil. Antes, porém, salientaremos alguns termos aparentemente inéditos na região, como [mugango] e [caxi] utilizados para designar [abóbora]: são expressões trazidas de Minas Gerais por Juscelino Ferreira Guimarães — o fundador da comunidade de Pouso Alto — assim como as expressões [queima], [colondria], [precata] e [vista]. Ao procurarmos definição para as variações léxicas [caxi], [mugango] e [vista,] por nos parecerem expressões inusitadas na região, o dicionário de Caldas Aulete (1970) mostra que tais variações ocorrem por uma questão analógica. Segundo o autor, é provável que a expressão [caxi] provenha de [caxim], palavra brasileira referente à planta da família das euforbiáceas que vertem, geralmente, por incisão, um suco leitoso, branco, acre e muitas vezes venenoso. Quanto ao vocábulo [mugango], provavelmente, a analogia existe devido à espéciediferenciada de casca de abóbora ou à espécie diferenciada de aboboreira, a arcurbita melonosperma. Em algumas regiões, mencionadas pelo autor, a expressão [mugango] era o mesmo que “merenda”. As variações léxicas [ribeirão] ao invés de “córrego”; [barra] e [grota] ao invés de “foz”; [rebojo] e, novamente, [grota] ao invés de “redemoinho (de água)” e [corredeira] ao invés de “onda (de rio)” são expressões encontradas no distrito como referência aos acidentes geográficos. No que se refere ao campo semântico dos fenômenos atmosféricos, surgiram expressões bastante representativas como é o caso da expressão [rabo-de-gala] para arco-íris. Segundo Coutinho (1976, p. 179), o termo [gala] surgiu na Grécia antiga e está associado 90 à “galáxia”, portanto, analogicamente, “rabo-das-galáxias”. Outras expressões como [chuva rápida] e [manga d’água] ao invés de “tromba d’água”; [chuva mansa] ao invés de “chuva forte”; [chuva de flor] e [chuva de botão] ao invés de “chuva de pedra” também compuseram, significantemente, as variações lexicais encontradas ali. A expressão [chuva mansa] p ossui uma explicação analógica muito curiosa, pois entre os brasileirismos amazonenses esta variação léxica indica o “trecho de um rio em que as águas parecem não correr” e é interessante notarmos que no momento exato em que a “tromba d’água” cai realmente, as águas parecem não correr devido às poças formadas pela chuva tórrida que brutalmente vem e se vai. No que diz respeito ao campo semântico dos astros naturais e do tempo apareceram as variações lexicais [barra do dia], [clarear do dia] e [amanhecer do dia] ao invés de “amanhecer”. O mesmo ocorreu com relação à expressão “anoitecer” quando nos deparamos com as variações léxicas [escurecer do dia] e, diferentemente, [boca da noite]. Todas estas variações são, na verdade, vestígios de arcaísmos do português europeu na língua brasileira. É interessante ressaltar a presença da variação léxica [barra] t anto para o léxico“foz” quanto para “amanhecer”, por isso, é importante também explicar que, conforme nos mostra Aulete (1970), a expressão é usada, geograficamente, para designar “entrada estreita de um porto” e faz menção à “sair à barra”, ou seja, “sair à orla”. Com relação à “foz” apareceu também a variação lexical [grota] assim como para “redemoinho (de água)”. Aulete (1970) mostra que esta é uma expressão da língua brasileira, ou seja, um brasileirismo de origem goiano que quer dizer “igarapé”. É possível, portanto, que esta expressão tenha transposto as fronteiras de Minas Gerais e tenha sido incorporada pelos moradores da comunidade. Ainda encontramos como variação lexical as expressões [trovadinha] ao invés de “alvorada”; [estrela guia] e [estrela d’oeste] ao invés de “estrela matutina/Vênus/estrelada-manhã/estrela-d’alva”; [sapel] ao invés de “estrela cadente/estrela filante/meteoro/zelação”; [caminho de Cristo] para “via Láctea ou caminho de Santiago” e a lexia, quase generalizada, [caiu] ao invés de “mudou/correu uma estrela”. No que tange às atividades agropastoris, encontramos as variações léxicas [araruta] a o invés de “mandioca”; [cabo] ao invés de “hastes do carrinho de mão”; [sião] a o invés de “cangalha/forquilha”; [agandi] ao invés de “borrego (do nascer até...)” e [trieiro] ao invés de “trilho/caminho/vereda/trilha”. Já no campo semântico referente à fauna, apareceram as expressões [beijinha] ao invés de “colibri/beija-flor”; [loro] a o invés de “papagaio”; [pitoco] a o invés de “cotó”; [jaratataca] ao invés de “gambá”; [rabo] ao invés de “crina da cauda” e [beronha] ao invés de “mosca varejeira”. No tocante ao campo semântico de corpo humano apareceram expressões como [velida] cuja estrutura morfológica adequada é “belida”, ao invés de “catarata”, que R G L, n. 5, jun. 2007. 91 significa “névoa”. Apareceram ainda as expressões [dente chato] ao invés de “dentes molares/dente queiro”; [gengibre] ao invés de “desdentado/banguela”; [cateto] ao invés de “meleca/tatu”; [cangote] ao invés de “nuca”; [sobaco] ao invés de “axila”; [gaieiro] ao invés de “cheiro nas axilas”; [cambeta] ao invés de “pessoas de pernas arqueadas”; [garrão] e [canela] ao invés de “tornozelo”. Em relação ao campo semântico dos ciclos da vida, apareceu, distintamente, a expressão [paquete] ao invés de “menstruação”. Esta expressão é uma das mais atraentes das encontradas na comunidade de Pouso Alto. Aulete (1970) mostra que [paquete] é um termo da chapelaria referente ao “conjunto das diversas qualidades de pêlos”, daí, possivelmente, a referência analógica feita à “menstruação”. No que se refere ao campo semântico do convívio e comportamento social, apareceram as expressões [veaco] e [seguro] ao invés de “pessoa sovina”; [capanga] e [jagunço] ao invés de “assassino pago”; [biscate], [rapariga] e [rampeira] ao invés de “prostituta”; [pau d’água] e [pinguço] ao invés de “bêbado” e [bituca] ao invés de “toco de cigarro”. Quanto ao campo semântico relacionado à religião e crenças, foi encontrada a expressão [capeta] a o invés de “diabo”; [assombração] para “fantasma”; [macumba], [sarava] e [despacho] para “feitiço” e [raizeiro] ao invés de “curandeiro”. Já no que diz respeito ao campo semântico dos jogos e diversões infantis, apareceram expressões como [birola] ao invés de “bolinha de gude”; [bate cara] ao invés de “esconde-esconde”; [rela-rela] para “pega-pega” e [corre cutia] ao invés de “chicotequeimado/lenço atrás”. Alguns vocábulos anteriormente mencionados, como é o caso de [jaratataca], [beronha], [garrão], [capanga] e [ birola] são explicados por Aulete (1970) como brasileirismos encontrados em estados como Rio Grande do Sul, Bahia e Minas Gerais. [capanga], por exemplo, é um brasileirismo que na Bahia significa “o fetiche do orixá Oxossi”, que é o mesmo que “valentão assalariado, guarda-costas, jagunço”. Quanto à expressão [cateto] — que, segundo Aulete (1970), é também um brasileirismo — utilizada pelos falantes da comunidade de Pouso Alto para designar “meleca/tatu” é possível que os moradores dessa comunidade a utilizem em sua fala devido à analogia à “porco-do-mato” cognominado “caititu ou caetetu”. No que concerne ao campo semântico da habitação, a expressão que mais apresentou representatividade, devido à sua distinção, foi [picumã] utilizada pelos informantes da comunidade para designar “fuligem”. Esta expressão é um termo indígena, da tribo tupi, que etimologicamente significa “apepocumã” e, como brasileirismo de “fuligem”, possui uma gíria respectiva que é “carapinha”. Em relação ao campo semântico da alimentação e cozinha, encontramos as expressões [pasta doce] ao invés de “geléia”; [mingau] e [angu] ao invés de “curau/canjica”; [pinga] para “aguardente”; [ansiado] ao invés de “empanturrado” e [guloso], [esfomeado] e [esganado] ao invés de “glutão”. Quanto ao campo semântico tocante ao vestuário e acessórios, houve apenas uma 92 expressão geradora de variação lexical entre os informantes entrevistados na comunidade de Pouso Alto e que foram os responsáveis pelos dados do corpus analisado, a expressão [zorba] ao invés de “cueca”. E, finalmente, no campo semântico referente à vida urbana, encontramos as expressões [tartaruga] ao invés de “lombada/quebra-molas”; [pedestre] ao invés de “calçada/passeio”; [sarjeta] ao invés de “meio-fio”; [curva], [trieiro] ao invés de “rotatória/rótula” e [circular] ao invés de “ônibus urbano”. Considerações finais A cultura de um povo se propaga mediante seus costumes mais arbitrários. Assim como suas crenças, suas manifestações artísticas, seus valores e afirmações, o léxico pertencente a uma língua leva este mesmo povo a uma competência intercultural, como já dizia o antropólogo Milton Bennett. Há em Pouso Alto uma peculiaridade lexical deslumbrante, pois alguns vocábulos têm relação direta com a situação histórica local, pois encontramos no distrito muitas expressões advindas, tanto da região interiorana das Minas Gerais, tais como Francisco Sá (antiga Vaca Brava), Carmo de Minas, Passo Quatro, Dom Viçoso, Soledade de Minas e Pouso Alto, quanto de outras regiões brasileiras. Mescladas pelo laço histórico-cultural e pelos costumes da região rural tipicamente sul-mato-grossense, expressões como [paquete], ao invés de menstruação, [chuva-debotão] para chuva de granizo, [picumã] para fuligem, [jaratataca] ao invés de gambá entre outras expressões mineiras particularizam, semanticamente, a fala dos moradores de Pouso Alto. O vocabulário utilizado pelo povo de uma região está intimamente ligado à sua situação histórico-cultural, por isso não veremos, jamais, um peão de rodeio utilizar o vocabulário de um industrial, ou vice-versa. Isso significa que o vocabulário está intrinsecamente relacionado ao significado que tem e exerce em dada comunidade. A utilização do vocabulário de uma língua ocorre — não somente pelos falantes da comunidade de Pouso Alto, mas por toda a humanidade — de maneira seleta e, psíquica e subjetivamente, apropriada para cada situação e contexto. Com relação ao vocabulário de Pouso Alto, muitas expressões se perpetuaram pelos cento e poucos anos de sua fundação. Referências bibliográficas AULETE, C. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Delta editora, 2 edição brasileira em 5 volumes, 1970. R G L, n. 5, jun. 2007. 93 BENNETT, M. www.wikipedia.org/wiki/Língua_e_cultura. Acesso em 10 de abril de 2007, 13 h. Comitê Nacional do Projeto AliB (Brasil). Atlas lingüístico do Brasil: questionário 2001/ Comitê Nacional do Projeto AliB — Londrina: Ed. UEL, 2001. COUTINHO, I. de L. Pontos da gramática histórica, 7 ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976. FRUBEL, A. C. M. & ISQUERDO, A. N. Vocabulário do falar sul-mato-grossense: aspectos lexicográficos e socioculturais. IN As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: Ed. UFMS, 2004. ISQUERDO, A. N. Vocabulário do seringueiro: campo léxico da seringa. IN As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: Ed. UFMS, 2003. ZAVAGLIA, C. A prática lexicográfica multilíngüe: questões concernentes ao campo das cores. IN: ALVES, I. M. & ISQUERDO, A. N. As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: Ed. UFMS, 2007. Notas a Mestra em Lingüística pela UFMS, atual docente e coordenadora do curso de Educação das Faculdades Integradas de Três Lagoas — AEMS. b Tem como povoados circunvizinhos Garcia, Mutum e Três Lagoas (com aproximadamente 220 quilômetros de distância desta última). Água Clara tem 303 metros de altitude, 20º26’53’’ de latitude ao Sul, 52º52’4’’ de longitude a Oeste e uma área municipal de 11.063, 4 mil metros quadrados. Fonte: www. aondefica.com/lat_3.asp/ATarde. Acesso em 5 de abril de 2006, 14 horas. c Fonte: Prefeitura Municipal de Água Clara. d Dados fornecidos por seu primeiro filho Urbano Ferreira Guimarães e confirmados pelos registros encontrados na Prefeitura Municipal de Água Clara. Juscelino Ferreira Guimarães nasceu em dia não identificado (nem pela família, nem pela certidão de nascimento, nem pelo atestado de óbito) do mês de maio de 1907 e faleceu em 16 de abril de 1981. e Região próxima aos municípios de Carmo de Minas, Dom Viçoso, Passa Quatro e Soledade de Minas. O Pouso Alto tem 22º11’37’’ de latitude ao Sul; 44º58’21’’ de longitude à Oeste; 884 metros de altitude e uma área municipal de 261,9 mil metros quadrados. Fonte: www.aondefica.com/lat_3.asp/ATarde . Acesso em 5 de abril de 2006, 15 horas. f A divisão do Estado ocorreu em 11 de outubro de 1979. g Tião Paulo reside em Pouso Alto com parte de seus filhos; a outra parte reside em Três Lagoas. h Confissões declaradas por Dona Tonica, na área central da Casa Sede da Fazenda Pouco Alto, quando dos dias de estada no distrito para coleta de dados. Posteriormente, todas essas informações foram comprovadas por meio dos registros encontrados na Prefeitura Municipal de Água Clara, bem como todas as demais que constituem este capítulo. i Monaliza é filha de Marcos Silva e Maria Pereira e Silva, donos do único point do Pouso Alto: a lanchonete Martacas. 94 A AUTOBIOGRAFIA PÓS-MODERNISTA NA LITERATURA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DE A ESTRATÉGIA DE LILITH, DE ALEX ANTUNES Rodolfo Rorato LONDERO Abstract: The objective of this article is to understand the post-modernist autobiography and, principally, the weakness of distinction between fiction and realty practiced by it in Brazilian literature. We will use the book “A estratégia de Lilith” (2001), by Alex Antunes, like a example of post-modernist autobiography. Key- words: Autobiography; Post-modernism; Brazilian Literature Então me vi pelos olhos daqueles que olhavam para mim. Eu, naquele momento, não era eu. (Alex Antunes, A estratégia de Lilith) Nas primeiras páginas de Poética do pós-modernismo (1988), Linda Hutcheon traça algumas atitudes subversivas praticadas na literatura contemporânea, mas afirma que “(...) as fronteiras mais radicais que já se ultrapassaram foram aquelas existentes entre a ficção e a não-ficção e – por extensão – entre a arte e a vida” (1991, p. 27). É justamente esse enfraquecimento da distinção entre arte e vida que caracteriza a autobiografia pós-modernista, e, portanto, que afirma o valor dela como literatura e, conseqüentemente, como objeto de estudo. Assim, entender como tal enfraquecimento manifesta-se na produção literária brasileira contemporânea é o objetivo deste artigo. Para tanto, o livro A estratégia de Lilith (2001), de Alex Antunes, nos serve como exemplo de autobiografia pós-modernista. Para alcançarmos satisfatoriamente o objetivo proposto, este artigo divide-se em três tópicos: “uma definição do discurso ficcional”, “o pacto pós-modernista” e “entre a primeira e a terceira pessoa”. No primeiro tópico há uma definição do conceito de ficção, algo fundamental para entendermos porque a fronteira entre arte e vida nunca existiu de fato. Já no segundo tópico iremos dialogar com os textos de Philippe Lejeune (1994) e de Anna Caballé (1995) para mostrar como a obra de Antunes evita firmar um pacto específico com o leitor. E, finalmente, no terceiro tópico serão analisados os usos da primeira e da terceira pessoa na autobiografia de Antunes. Também utilizaremos, ao longo do artigo, modelos e formulações teóricas oriundas da lingüística, principalmente da semiótica e da análise do discurso. Por lidarem com questões de valor e de veracidade, tais disciplinas muito contribuem para a pesquisa em autobiografia, mas o que mostraremos aqui são apenas esboços para uma possível teoria unificada. R G L, n. 5, jun. 2007. 95 1. Uma definição do discurso ficcional A dificuldade em definir o discurso ficcional deve-se ao significado de falsidade que é amplamente atribuído ao termo “ficção”. Até mesmo alguns dicionários apresentam apenas variantes desse significado: “1. Criação da fantasia. 2. Literatura cujo enredo trata de fatos imaginários. 3. Invenção; simulação” (LUFT, 1991, p. 295). Mas o termo “ficção” e, conseqüentemente, o discurso ficcional, não se limitam ao significado de falsidade, como afirma Reis: Referindo-se ao quase-mundo imaginário que a escrita configura, Ricoeur conduz-nos a um fundamental aspecto constitutivo do texto literário: a sua condição ficcional que pode ser relacionada, mesmo do ponto de vista etimológico, com o conceito de fingimento. Se em latim fingere significa plasmar, formar, então o fingimento artístico que origina textos literários ficcionais designa uma modelação estético-verbal e não implica necessariamente uma outra acepção em que o fingimento pode ser entendido: a acepção depreciativa de hipocrisia ou falsidade (2001, p. 170; grifos do autor). Na verdade, o “fingimento” é o único meio que o homem possui para acessar e descrever a realidade, pois a realidade é uma instância inexprimível. Para usarmos termos aristotélicos, enquanto a realidade manifesta-se no discurso sempre como potência, o “fingimento” é o próprio ato discursivo. É por isso que todo discurso (jornalístico, autobiográfico, jurídico, etc.) é um discurso ficcional. No caso do discurso autobiográfico, a potencialidade do vivido torna-se ato através do “fingimento”. A esse respeito, Souza escreve o seguinte: A imitação de modelos ficcionais se explica pela pequena distância entre o eu e o outro e pela ausência de limite entre a letra e a realidade. Entre sujeito e objeto intercede o terceiro termo, sem a função de instituir o simbólico, mas de promover identificações, incitar apropriações e ignorar os limites entre os dois pólos da realidade e da ficção. (2002, p. 126) A relação entre os três termos (sujeio-objeto-ficção) propostos pela autora assemelhase à que ocorre entre símbolo, referente e pensamento no modelo de linguagem de Ogden e Richards. Assim, com algumas alterações, o modelo representa o que Souza afirma: Embora exista uma relação direta entre o sujeito e a ficção ou o objeto e a ficção, a relação entre o sujeito e o objeto é indireta. É uma relação arbitrária que só se mantém por causa do denominador comum, a ficção. Retornado ao que foi dito anteriormente, o “fingimento” é o único meio que o homem possui para acessar e descrever a realidade. 96 Souza exemplifica o modelo acima através do romance de Flaubert: “Madame Bovary, obra que representa a metáfora da literatura como criadora de ilusões, ilustra a mesma sedução causada pelo ‘desejo triangular’, processo cognitivo através do qual a relação do sujeito com o objeto é fruto da leitura dos romances românticos” (2002, p. 126-127; grifo nosso). Várias passagens da autobiografia de Antunes revelam o “fingimento” literário como meio de acesso ao vivido: “O Alex tinha que lembrar de viver a vida mais como literatura, e menos como crítica” (ANTUNES, 2001, p 208). Na verdade, como característica marcante da produção pós-modernista, o discurso metaficcional é identificado constantemente na obra, principalmente revelando o caráter de “fingimento” da autobiografia. No oitavo capítulo da terceira parte, a personagem Sofia questiona a personagem-autor Alex a respeito de uma cena descrita no sexto capítulo da segunda parte: – Não era de nozes? – O quê? – A estrela não era de nozes? – Era, mas eu achei amendoim mais realista. Aliás também não foi com a bota que a Marli tomou na cara. Foi com um tênis... (ANTUNES, 2001,p. 195). De fato, através do discurso metaficcional, a personagem-autor Alex confunde os limites entre arte e vida ao comentar para a personagem Janny uma estranha coincidência: “– Ó. Eu escrevi ‘meu finado pai’ na semana passada, uns cinco dias, sei lá, antes do velho morrer, só de sacanagem. Será que tudo que eu escrevo acontece?” (ANTUNES, 2001, p. 159). Mesmo sem valer-se do discurso metaficcional, o autor revela o caráter de “fingimento” da autobiografia ao repetir, no segundo capítulo da terceira parte, um trecho do primeiro capítulo da primeira parte na íntegra, exceto por pequenas alterações: o tipo de sorvete (flocos por crocante) e de filme (Lynch por Tarantino), a expressão “quarto de empregada” por “quarto de trás” e, principalmente, o uso da terceira pessoa pelo da primeira pessoa. A respeito das duas últimas alterações citadas, iremos discuti-las no terceiro tópico. Mas da leitura para a escrita, a ficção torna-se estilo, ou “modelação estético-verbal”, como quer Reis. Segundo Souza, “associar o escritor ao estrangeiro é dar-lhe, como assim se expressa Kristeva, em L’avenir d’une revolte, o estatuto de tradutor, de estranho a si próprio, por estar o tempo todo traduzindo e transformando a sua experiência para uma outra língua que não lhe pertence” (2002, p. 124). Ou seja, o escritor autobiográfico, por ser estranho a si próprio, traduz o vivido para uma outra língua, o estilo. Para Piglia, “o estilo é esse movimento até outra enunciação, é uma tomada de distância em relação à palavra própria. Há outro que diz que, talvez, de outro modo não se pode dizer” (apud SOUZA, 2002, p. 135). Enfim, na autobiografia, o estilo (ficção) é o mediador entre o escritor (sujeito) e o vivido (objeto). Com relação à autobiografia de Antunes, nota-se uma profusão de estilos, todos citados ao longo da obra: o romance policial noir, a ficção científica cyberpunk e os filmes de David Lynch são alguns exemplos. De fato, a profusão de estilos, aquilo que Jameson R G L, n. 5, jun. 2007. 97 definiu como pastiche, ou “[...] a canibalização aleatória de todos os estilos do passado, o jogo aleatório de alusões estilísticas [...]” (JAMESON, 2004,p. 45), é uma característica da produção pós-modernista. Discutiremos rapidamente os três estilos citados acima para demonstrar seus usos pelo autor como “modelação estético-verbal”, como “fingimento”, enfim, como acesso ao vivido. Boa parte das tramas da autobiografia assemelha-se às descritas nos romances policiais noir. No sexto capítulo da segunda parte, o autor resume o que foi contado até então da seguinte forma: Até bandido tinha na história agora. Eu estava pensando na coisa toda como a Palafita dos Bons Costumes: aquele mundo no qual a gente acha que vive. E que vai rarefazendo depois do horário bancário, sendo substituído pelo mundo de verdade, o pântano que fervilha embaixo de tudo. Putas, traficantes, o escambau. Aquele universo noturno que só os taxistas conhecem. Desci para o pântano, digo, para o cortiço. Katinha estava enrolando um baseado gigantesco, meio vestida, enfiada numa calça justíssima azul-celeste, descalça e de sutiã preto (ANTUNES, 2001,p. 117). Na verdade, Katinha representa uma personagem típica do romance policial noir: a femme fatale. Certamente, a femme fatale nos remete ao título da autobiografia de Antunes, pois “a imagem moderna da femme fatale, criada na Europa urbanizada do século XIX e difundida em mitos literários do porte de Carmen, Nana ou da Lola de Heinrich Mann, nada mais é do que a atualização da Lilith que, há 5.000 anos atrás, frustra o sonho de Gilgamesh” (DUARTE, 1998, p. 79). Característica da ficção científica cyberpunk, a linguagem saturada por referências de marcas de produtos comerciais, de músicas, enfim, de objetos da cultura de massa, manifesta-se na autobiografia de Antunes. De fato, Antunes é o responsável pela tradução da terceira edição brasileira da obra fundamental do gênero cyberpunk, Neuromancer (1984), de William Gibson. No prefácio desse livro, ele indica algumas influências e temas do universo cyberpunk – “a ‘investigação existencial’ herdada do policial noir” e “a obsessão com o bairro oriental” (ANTUNES, 2003, p. 6) – que identificamos em sua autobiografia: a descrição do bairro oriental de São Paulo, por exemplo, ocorre no mesmo capítulo que lemos o termo “cyberpunk” (ANTUNES, 2001, p. 116). Também metáforas típicas do gênero cyberpunk, que apresentam o corpo como uma máquina, são verificadas ao longo da obra, como, por exemplo, “[...] só parei para engolir um café no boteco pra dar start no cérebro” (ANTUNES, 2001, p. 111; grifo nosso). A respeito dos filmes de Lynch, conhecidos por misturar os limites do sonho com os da realidade, Antunes apresenta um equivalente literário: as latinhas de cerveja descritas no sonho do décimo capítulo da primeira parte – “A geladeira tinha três ou quatro latinhas de uma cerveja palha, dessas marcas que às vezes aparecem quase de graça nos supermercados” (ANTUNES, 2001,p. 64) – reaparecem na realidade do segundo capítulo da segunda parte – “Tomei as outras duas latinhas de cerveja. Continuava vagabunda” (ANTUNES, 2001,p. 93; grifo nosso). O uso do estilo de Lynch reforça novamente o “fingimento” (desta vez, onírico) como meio de acesso à realidade. 98 2. O pacto pós-modernista O grande trunfo do texto Le Pacte autobiographique (1975), de Philippe Lejeune, leitura obrigatória para qualquer estudo aprofundado sobre autobiografia, é a noção de pacto, ou seja, o trato de veracidade feito entre escritor e leitor. Normalmente, tais pactos são travados na folha de rosto e na ficha catalográfica do livro, onde a obra é indicada como romance ou autobiografia, ou em notas ao leitor. Enfim, é a partir da noção de pacto que podemos distinguir o que é romance e o que é autobiografia, como mostra o seguinte quadro (LEJEUNE, 1994,p. 67): Ou seja, a obra é um romance quando o nome da personagem for diferente do nome do autor e o pacto travado for romanesco ou indeterminado. Quando o nome da personagem for igual ao nome do autor e o pacto travado for autobiográfico ou indeterminado, então a obra é uma autobiografia. Quando o nome da personagem for indeterminado, então a classificação da obra depende do tipo de pacto estabelecido. Dificilmente podemos distinguir a obra quando o nome do autor e o tipo de pacto forem indeterminados. Porém, o quadro de Lejeune parece surgir para estabelecer as normas que são subvertidas pela produção pós-modernista. Certamente, o escritor pós-modernista evita firmar um pacto específico com o leitor: suas obras localizam-se nas casas em branco do quadro de Lejeune, principalmente na casa superior direita. Esta e outras questões levaram Lejeune, em 1986, a reescrever Le Pacte autobiographique e afirmar o seguinte a respeito das casas em branco: Hay dos casillas “en blanco” que corresponden a casos “excluidos por definición”… Está claro que el que estaba en blanco era yo. En primer lugar porque salta a la vista que el cuadro está mal hecho. Para cada eje propongo una alternativa (novelesca/autobiográfica, para el pacto; diferente/igual, para el nombre), pienso en la posibilidad de ni uno ni otro, ¡pero olvido la de a la vez uno y otro! Acepto la indeterminación, pero rechazo la ambigüedad… Sin embargo se trata de una práctica corriente (1994,p. 134-135; grifos do autor). Ambigüidade: eis a palavra que define o pacto pós-modernista. A autobiografia de Antunes, por exemplo, estabelece na introdução o seguinte pacto, ou não-pacto, com o leitor: “As principais tramas aqui relatadas realmente ocorreram, mas fica mais confortável apresentá-las como ficção” (2001, p. 9). Ou seja, apesar da obra ser catalogada como romance e indicada como ficção (no sentido de não-comprometimento com a veracidade), o autor não deixa de afirmar o valor autobiográfico da obra, provocando dúvidas no leitor. R G L, n. 5, jun. 2007. 99 Outra ambigüidade é o caso da autobiografia ser assinada por dois autores: Alex Antunes e o “espírito” Sish, cujo nome encontra-se inclusive na ficha catalográfica. Por ser desconsiderada, tal situação também subverte o quadro de Lejenue. Como Antunes, Sish também “escreveu” uma introdução, onde lemos o seguinte trecho: “Aceitei o convite para ‘escrever’ (ou será que o convite foi meu?) sabendo que nem sempre conseguiria deixar de imprimir parte da trama diretamente no que vocês chamam de realidade... A ‘primeira pessoa’ dele [Antunes] é no papel, a minha é no éter” (ANTUNES, 2001, p. 10; grifo nosso). Certamente, a presença de um “espírito” como co-autor é mais uma forma encontrada pelo autor para misturar os limites da ficção com os da realidade. Para Anna Caballé, “[...] en mayor o menor medida, toda autobiografía es mentira puesto que viene provocada por un impulso creador y, en consecuencia, imaginativo, que empuja a dar forma a lo vivido y, al darle forma a la vida se la falsea” (1995, p. 27; grifo nosso). Se nos remetermos ao quadrado veredictório de Greimas, veremos que a mentira não é, mas parece: Ou seja, a autobiografia nunca é o vivido (pois, como vimos anteriormente, a realidade é uma instância inexprimível), mas ela é crível. Na verdade, a autobiografia transita entre a mentira e o falso, pois, apesar dela não ser o vivido, ora ela é crível, ora não. Mariceia Benetti (2004), que também utiliza o quadrado veredictório de Greimas como ferramenta metodológica, afirma que a estética contemporânea atua justamente através da mentira e do falso. Assim, a autobiografia é o jogo do parecer e não-parecer travado entre escritor e leitor. Certamente, a noção dinâmica de jogo é mais enriquecedora para uma teoria da autobiografia do que a noção estática de pacto. Porém, tais acepções são recentes: durante muito tempo, acreditava-se ser possível exprimir o vivido, e afirmações como a seguinte eram quase dogmas: “E tem bastante fundamento a opinião de Coleridge segundo a qual uma vida qualquer, desde que contada com veracidade, oferece interesse” (WELLEK; WARREN, s/d, p. 87-88; grifo nosso). Nesse contexto histórico e teórico, a autobiografia sempre era o vivido, sendo ora crível, ora não. Ou seja, ela transitava entre o verdadeiro e o segredo. De fato, o termo “segredo” denota as origens confessionais da autobiografia. Enfim, com algumas substituições, o quadrado veredictório de Greimas também nos serve para completar as casas em branco do quadro de Lejeune: 100 Ou seja, da mesma forma que existem romances com pactos romanescos e autobiografias com pactos autobiográficos (o romance e a autobiografia “puros”, respectivamente), também existem romances com pactos autobiográficos (casa inferior esquerda no quadro de Lejeune) e autobiografias com pactos romanescos (casa superior direita no quadro de Lejeune). A introdução de Antunes, citada anteriormente, exemplifica o segundo caso, denominado produção pós-modernista: a obra é uma autobiografia, mas deve ser lida como romance. A respeito do primeiro caso, a denominação linhagem das Memórias intitula o sexto capítulo da obra de Fischer, onde ele afirma o seguinte: “Ocorre que, sem dispormos de muitas memórias escritas no Brasil, é surpreendente a sucessão de narrativas ficcionais de feição memorialística que a literatura brasileira apresenta” (2003, p. 36; grifo nosso). Mais adiante, Fischer escreve o seguinte: A linhagem das Memórias tem uma galeria de romances explicitamente concebidos como memórias: Memórias de um sargento de milícias (1853); Memórias póstumas de Brás Cubas (1881); O Ateneu (1888); Dom Casmurro (1900); Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908); Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909); Memórias sentimentais de João Miramar (1923); São Bernardo (1934); Grande sertão: veredas (1956); bem mais recentemente, Lavoura arcaica, de Raduan Nassar (1975), Armadilha para Lamartine (1976) e Que pensam vocês que ele fez? (1994), de Carlos Sussekind, e Quase-memória, de Carlos Heitor Cony (1995). Isso sem entrar na geração ainda mais recente, em que despontam os textos de Milton Hatoum (Dois irmãos), Cristóvão Tezza (Trapo), Vitor Ramil (Pequod) (2003, p. 36-37). No texto de Fischer, não há uma distinção entre memória e autobiografia. De fato, algumas das obras citadas acima pelo autor revelam, na verdade, feições autobiográficas, como é o caso de Memorial de Aires, de Machado de Assis, onde ocorre, segundo a denominação de Lejeune (1994), um pacto fantasmático. A esse respeito, o teórico francês afirma o seguinte: De esta manera, el lector es invitado a leer las novelas no solamente como ficciones que remiten a una verdad sobre la “naturaleza humana” sino también como fantasmas reveladores de un individuo. Denominaría a esta forma indirecta del pacto autobiográfico el pacto fantasmático. (LEJEUNE, 1994, p. 83; grifos do autor). Enfim, as obras que compõem a linhagem das Memórias são romances, mas apresentam narrativas escritas como autobiografias (Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo) ou de cunho autobiográfico (Memorial de Aires, como acabamos de ver). R G L, n. 5, jun. 2007. 101 3. Entre a primeira e a terceira pessoa Uma característica reveladora da autobiografia de Antunes é a alternância entre o uso da primeira e da terceira pessoa. A primeira pessoa, predominante na obra, é utilizada para narrar as principais tramas do livro, enquanto a terceira pessoa é utilizada para narrar os fatos marcantes na vida da personagem-autor (a morte do pai, por exemplo) e para comentar as tramas narradas em primeira pessoa (discurso metaficcional). Na verdade, tal alternância manifesta tanto o duplo caráter particular e universal da literatura, quanto o duplo caráter realista e inventivo. Segundo Antonio Candido, E aí está um traço da literatura de ficção, isto é, a relação reversível Particular ↔ Universal, sem o que não há eficiência do texto e onde os dois termos possuem igual importância, sendo ela que garante a validade da outra relação, que também está presente nestes livros [autobiográficos] e também é necessária para a sua eficácia: Realidade ↔ Invenção (1989, p. 63). Na obra de Antunes, as tramas narradas em primeira pessoa manifestam-se, principalmente, como universais e inventadas, enquanto os fatos narrados em terceira pessoa manifestam-se como particulares e reais. O uso da terceira pessoa também funciona, em alguns casos, como auto-retrato. A respeito do auto-retrato, Caballé afirma o seguinte: No obstante, es curioso notar cómo en este género literario hay identidad, pero no suele darse coincidencia entre el autor y el personaje: el distanciamiento, incluso una cierta crueldad del primero con el segundo, es un rasgo acusadísimo, sin duda motivado por el temor a caer en el extremo contrario del envanecimiento autodescriptivo (1995, p. 48-49; grifo nosso). Distante e pateticamente cruel é a maneira como Antunes se descreve no seguinte trecho: “Alex estava sofrendo (muito) e estranhamente excitado (um pouco), deitado nu, só com um abajur lilás aceso, um clichê deliberado, no sofá da sala” (2001, p. 15). Distante e convincentemente cruel também é o comportamento da personagem-autor diante da morte do pai: Ele teve uma sensação estranha. Principalmente alívio. Ele costumava achar fácil conviver com as poucas mortes de pessoas próximas pelas quais tinha passado. Dizia que a morte tinha um lado bom: libertar quem ia e obrigar quem ficava a mexer a bunda afetiva um pouco, que era mais importante que qualquer tristeza. Nesse caso era mais que isso. O mundo é que ficava livre de um imbecil. (ANTUNES, 2001, p. 155-156). Na definição de Barros, no discurso acima ocorre uma desembreagem enunciva, ou seja, “[...] se produz o efeito de distanciamento da enunciação, com o emprego da terceira pessoa ele, do tempo do então e do espaço do lá” (2003, p. 204; grifos da autora). Assim, “[...] o discurso produz o efeito de distanciamento da enunciação e, por conseguinte, de objetividade e de neutralidade” (BARROS, 2003, p. 204). Enfim, no caso da citação acima, a personagem-autor distancia-se do fato e, apesar de não enunciá-lo objetivamente, 102 empresta certa objetividade para o seu posicionamento diante da morte do pai. Já a desembreagem enunciativa ocorre no discurso “[...] quando o efeito é de proximidade da enunciação, graças ao uso da primeira pessoa eu, do tempo presente do agora e do espaço do aqui [...]” (BARROS, 2003, p. 204; grifos da autora). Assim, “o discurso produz o efeito de proximidade da enunciação e, portanto, de subjetividade, de envolvimento” (BARROS, 2003, p. 205). É importante frisar que Antunes utiliza esse tipo de discurso para relatar experiências místicas e efeitos de alucinógenos, realçando a subjetividade proporcionada pelo discurso. Porém, a contaminação da objetividade pela subjetividade é notada quando o autor, usando a primeira pessoa, repete, no segundo capítulo da terceira parte, um trecho, escrito em terceira pessoa, do primeiro capítulo da primeira parte integralmente, exceto por pequenas alterações, como a expressão “quarto de empregada” por “quarto de trás”. A expressão objetiva “quarto de empregada”, usada em terceira pessoa, é alterada pela expressão subjetiva “quarto de trás”, usada em primeira pessoa, denotando o posicionamento da classe social da personagem-autor. De fato, tal interpretação é oferecida pelo próprio autor ao narrar, num outro capítulo e numa outra trama, o seguinte: “E, de repente, Marx venceu Dionísio. Foi a faxineira e não a atriz quem falou [...]” (ANTUNES, 2001: 45). Assim, dependendo do modo como a primeira e a terceira pessoas são utilizadas pelo escritor, podemos concluir, ao contrário de Hutcheon que afirma que “a freqüente alternância entre a primeira e a terceira pessoas complica a implantação da subjetividade na linguagem, pois a insere e desestabiliza ao mesmo tempo” (1991, p. 116), que tal alternância facilita o entendimento da implantação da subjetividade no discurso. Considerações finais Ao analisar A estratégia de Lilith, autobiografia de Alex Antunes, procuramos mostrar como o enfraquecimento da distinção entre arte e vida caracteriza a produção pós-modernista. Assim, dividimos este artigo em três tópicos: “uma definição do discurso ficcional”, “o pacto pós-modernista” e “entre a primeira e a terceira pessoa”. No primeiro tópico, definimos o conceito de ficção e demonstramos, através da noção de pastiche, como o estilo manifesta-se na autobiografia de Antunes. Já no segundo tópico dialogamos com os textos de Lejeune e de Caballé para mostrar como a noção de jogo, ao invés de pacto, é mais enriquecedora para uma teoria da autobiografia. No último tópico analisamos os usos da primeira e da terceira pessoa na autobiografia de Antunes para concluir como tal alternância facilita o entendimento da implantação da subjetividade. Modelos e formulações teóricas oriundas da lingüística (o modelo de linguagem de Ogden e Richards), principalmente da semiótica (o quadrado veredictório de Greimas) e da análise do discurso (as noções de desembreagem enunciva e enunciativa), foram citadas no decorrer do artigo. Por lidarem com questões de valor e de veracidade, tais disciplinas, como buscamos demonstrar, muito contribuem para a pesquisa em autobiografia. R G L, n. 5, jun. 2007. 103 Referências bibliográficas ANTUNES, A. . A estratégia de Lilith. São Paulo: Conrad, 2001. ________ . Prefácio à edição brasileira. In: GIBSON, W. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2003. BARROS, D. L. P. . Estudos do discurso. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à lingüística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003. BENETTI, M. Estética neobarroca: fragmentos de estudos para apreciação de produtos culturais. Canoas: Ed. ULBRA, 2004. CABALLÉ, A. 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Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. 104 SEMIÓTICA E ROCK: ANÁLISE DE “PALAVRAS ERRADAS” D’O BANDO DO VELHO JACK Vanessa AMINa Abstract: This article analyses the lyrics Palavras Erradas from Fabio Terra, who is the guitar player of the band O Bando do Velho Jack, one of the most traditional rock groups in the state of Mato Grosso do Sul, through a semiotics perspective. It is an effort to know how the process of making sense is built in this text adopting the semiotics theory developed by Algirdas Julien Greimas and his followers. Keywords: semiotics; song; rock; Mato Grosso do Sul. Introdução Rock’n’roll pra cabeça, jazz para a alma e blues para o coração. Esses são os principais ingredientes que se misturam e sempre estão presentes nas músicas e shows de O Bando do Velho Jack, segundo seus integrantes. Considerada uma das bandas mais importantes do cenário do rock sul-matogrossense, desde 1995, já teve diferentes formações e, hoje, é composta de Rodrigo Tozzette (guitarra e vocal principal), Marcos Yallouz (baixo), Alex Cavalheri (teclado), João Bosco (bateria) e Fábio Terra (guitarra e vocais). Durante os mais de 10 anos de estrada, o Bando já lançou quatro CDs: Procurado, Old Jack, Como ser feliz ganhando pouco e Ao vivo e acústico no Som do Mato. Neste ano, lançaram o quinto CD intitulado Bicho do Mato. Nas apresentações que faz em Mato Grosso do Sul e em outros estados como São Paulo, Paraná e Mato Grosso, o grupo apresenta composições próprias e músicas de bandas de rock dos anos de 1970, conquistando fãs e admiradores fiéis que comparecem em peso aos shows. O site do grupo na Internet (www.velhojack.com.br) já possui mais de 18 mil acessos e a comunidade no Orkut (comunidade on-line que conecta pessoas) é integrada por mais de 2,9 mil membros. Em um Estado onde prevalece o estilo sertanejo, esses números são até representativos. Dentre o repertório executado, uma música se tornou obrigatória em todos os shows do Bando. Trata-se de Palavras Erradas cuja letra e melodia são de autoria do guitarrista Fábio Terra, ou “Corvão”, como é mais conhecido pelos amigos e fãs. Palavras Erradas está no primeiro CD lançado pelo grupo - Procurado - em 2000. Terra tem como linhas mestres o blues e o rock setentista e como principais influências os músicos Jimy Hendrix e Steve Ray Vaughan. Consegue imprimir em suas canções estilo agressivo do rock’n’roll e o tom melódico do blues. Neste trabalho, vamos analisar a letra da música Palavras Erradas. Optamos por restringir a análise à letra do texto escolhido, ou seja, ao plano de conteúdo, deixando de lado a melodia, ou plano de expressão. Também não estamos analisando o texto ou a situação de comunicação, como por exemplo, a execução da música durante um show, o que traria outras questões, outras discussões. Para compreensão da construção de sentido deste texto, adotamos a teoria semiótica R G L, n. 5, jun. 2007. 105 greimasiana. Segundo Diana Luz Pessoa de Barros (2005, p. 7) “a semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz, para dizer o que diz”. Mas o que é o texto para a semiótica? Segundo a autora o texto será definido por duas formas complementares: como objeto de significação e objeto de comunicação. E, além disso, o texto para a semiótica não se restringe ao lingüístico ou verbal e pode ser tomado como manifestação visual ou sincrética (quando há mais de uma expressão presente, a exemplo das histórias em quadrinhos, dos filmes, entre outros). “Para construir o sentido do texto, a semiótica concebe o seu plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo de sentido” (idem, p. 8). Esse percurso gerativo de sentido pode ser resumido em três etapas. A primeira, o nível fundamental, onde se tem a significação como uma oposição semântica mínima, é mais simples e mais abstrato. A segunda etapa é o nível narrativo, onde será organizada, do ponto de vista do sujeito, a narrativa. E, finalmente, o nível discursivo onde o sujeito da enunciação assume a narrativa. Neste artigo propomos a análise separada de cada uma das etapas do percurso gerativo de sentido, começando pelo nível narrativo. O leitor pode perguntar o porquê de se iniciar o estudo pelo segundo nível e não pelo primeiro, porém, segundo Barros (2005) facilita em muito o trabalho do pesquisador iniciar sua análise pelas organizações narrativas e discursivas e somente depois partir para as estruturas fundamentais. Análise Antes de começarmos a análise, segue a letra da música: Palavras Erradas Quanto tempo faz Já não lembro mais Das noites em claro que eu passei Tentando dormir Pra ver se eu sonhava com você Passam as horas, sinto medo O frio tomou o meu coração por inteiro Agora tanto faz Não me importo mais Não me esqueci de como era o seu beijo Cai a noite Como se fosse uma prisão Uma prisão pro meu coração Sei que usei palavras erradas Achando que elas nunca dariam em nada As horas já não passam mais tão rápidas Como quando eu tinha você, Quando eu tinha você Eu vou beber, beber até cair Mas que clichê da solidão Melhor seria então assistir A um bom filme na televisão 106 Quando eu abri a porta E não vi você chegar, Não vi você chegar Quando eu abri a porta E não vi você chegar, Sentei ali Esperando você voltar A letra da música trata de um relacionamento amoroso que foi interrompido. Como foi dito anteriormente, a análise será iniciada pelo nível narrativo. De acordo com Barros (ibidem, p. 17) a relação entre dois actantes – sujeito e objeto – é o que caracteriza o enunciado elementar. “(...) a relação transitiva entre o sujeito e o objeto dá-lhes existência, ou seja, o sujeito é o actante que se relaciona transitivamente com o objeto, e o objeto aquele que mantém laços com o sujeito”. A autora acrescenta ainda que existem duas formas de enunciado elementar que distinguem as relações entre estado e transformação. No texto em questão, observamos os seguintes enunciados. Primeiramente há um sujeito “eu” em estado disjuntivo com o objeto “você” e todos os valores que ele proporcionava: completude, calor, prazer. Estado esse explícito logo nas primeiras linhas: quanto tempo faz / já não lembro mais / das noites em claro que passei / tentando dormir / pra ver se eu sonhava com você. Uma das definições do verbo sonhar é “entregar-se a devaneios e fantasias”. Portanto, se o “eu” tenta dormir pra sonhar com “você” isso significa que “eu” não tem “você” ao seu lado e por meio do sonho é retomado o estado de conjunção. Porém, percebemos que antes de estar em estado disjuntivo, houve um momento anterior quando havia uma conjunção entre sujeito e objeto e que indica se tratar de um relacionamento que foi interrompido e não apenas um amor platônico ou não correspondido: não me esqueci de como era o seu beijo ou em as horas já não passam mais tão rápidas como quando eu tinha você. Assim, o sujeito passou de um estado de conjunção e encontra-se em estado de disjunção com o objeto, houve uma transformação que não era desejada e, por isso, o eu espera poder voltar ao estado anterior de conjunção: sentei ali / esperando você voltar. Estabelecidos os enunciados, representaremos o programa narrativo (PN). “O programa narrativo ou sintagma elementar da sintaxe narrativa define-se como um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado” (ibidem, p.20). Em Palavras Erradas podemos encontrar o seguinte PN principal: o sujeito “eu” quer estar em conjunção com o objeto “você” para poder ter acesso aos valores que essa relação lhe proporcionava (calor, beijo, completude). Para a semiótica, um sujeito só inicia seu percurso em busca de um objeto que lhe proporcionará alcançar certos valores por meio do processo de manipulação, que pode ser exercida de quatro formas diferentes: tentação, intimidação, sedução ou provocação. Neste texto, temos então um destinador-manipulador – você – cuja presença ao lado do sujeito faria retornar todos os valores buscados por ele. Configura-se então uma manipulação por tentação: a falta de você faz o sujeito cair em devaneios, sentir medo e frio. Essa manipulação é bem sucedida, pois faz o sujeito querer. R G L, n. 5, jun. 2007. 107 Mas, apesar do sujeito querer ele não tem a competência para realizar a performance, ou seja, ele não tem o saber, nem o poder fazer, nem um querer agir. Permanece em estado de passividade e compensa essa falta em outras coisas: eu vou beber / beber até cair / mais que clichê da solidão / melhor seria então assistir / a um bom filme na televisão e as possibilidades de transformação de seu estado não se realizam: quando eu abri a porta / e não vi você chegar / sentei ali / esperando você voltar. Os conceitos de Semiótica como contrato, espera e paixões nos permitem abordar o texto. A teoria semiótica greimasiana explica que quando um sujeito está em conjunção com um objeto é estabelecido um contrato imaginário com obrigações entre os actantes. Há a construção de simulacros de comportamentos de um e de outro, porém nem sempre há a disposição ou possibilidade para cumprimento das ações e os simulacros podem ou não se confirmar. Na letra da música, o sujeito “eu” acreditava que suas ações, ou como diz suas palavras, nunca dariam em nada, por ter construído um simulacro de “você” que, a princípio, não se importava com isso, por outro lado, “você” havia também construído um simulacro do sujeito que foi rompido pela mesma atitude. “As paixões, do ponto de vista da semiótica, entendem-se como efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito de estado” (ibidem, p. 47). Essas paixões, de acordo com a autora, podem ser ainda simples ou complexas e isso vai depender do percurso do sujeito que oscila na narrativa entre estados de relaxamento para tensão ou de euforia para disforia e vice-versa. Em Palavras Erradas temos uma paixão complexa. O “eu” encontra-se em estado de espera (sentei ali / esperando você voltar) combinado pelas seguintes modalidades: ele deseja o objeto (querer), mas não faz nada (não tem o saber, nem o poder, nem o querer agir) para consegui-lo e apenas espera que “você” volte, deposita suas esperanças na realização desse acontecimento e assim o contrato rompido seria restabelecido, fazendo com que ele passe de um estado de tensão para relaxamento e de disforia para euforia. Como não houve mudança narrativa para o estado de euforia, há pistas no texto que indicam que o sujeito ainda oscila entre estados de tensão e conformação: eu vou beber / beber até cair e depois melhor assistir a um bom filme na televisão; ou, ainda, em passam as horas / sinto medo e depois agora tanto faz / não me importo mais; e, até mesmo de resignação: sei que usei palavras erradas / achando que elas nunca dariam em nada, assumindo a culpa pelo rompimento do contrato e como responsável pela própria situação de tensão. Passamos agora para a análise discursiva. “O nível discursivo é o patamar mais superficial do percurso, o mais próximo da manifestação textual” (ibidem, p. 53). É no nível discursivo em que são analisadas as opções de pessoa, tempo e espaço, escolhidas para enriquecer a narrativa e, em último caso, criar a ilusão de verdade. Salientamos que para a semiótica pessoa, tempo e espaço reais não devem ser confundidos com pessoa, tempo e espaço da enunciação. Ressaltamos também que é no nível discursivo que verificaremos quais são as formas de construção de sentido usadas pelo enunciador para convencer o enunciatário de alguma coisa, qual o objetivo do texto. As opções de pessoa ou as vozes que estão impressas na letra da música podem ser 108 definidas nas instâncias do enunciador e enunciatário, narrador e narratário e interlocutorinterlocutário. Na letra da música, não verificamos a presença das instâncias interlocutor-interlocutário. No segundo nível, podemos dizer que há um narrador “eu” que usou as palavras erradas e foi deixado pelo narratário “você”. Se tivéssemos considerado na análise a situação de comunicação estabelecida no show, por exemplo, onde o vocalista do Bando, cantaria a música, haveria a possibilidade de outros desdobramentos e teríamos que considerar a performance do cantor. No primeiro nível, temos o enunciador e o enunciatário que correspondem ao compositor e ouvinte implícitos. No texto analisado podemos dizer que o enunciador é o compositor da música, neste caso, é Fábio Terra, guitarrista de O Bando do Velho Jack, mas não o Fábio Terra que é formado em arquitetura, que vive em Campo Grande, é casado, mas o simulacro que ele constrói e que podemos caracterizar por meio das marcas no texto e o enunciatário é quem compra o CD do Bando do Velho Jack. Ao dar a voz a um narrador em primeira pessoa, o enunciador valoriza a construção e estabelece uma relação de proximidade ou desembreagem enunciativa. Estão projetados uma pessoa “eu”, um tempo “agora” e um espaço “aqui”. Temos o primeiro passo para o estabelecimento de um contrato entre enunciador e enunciatário. Ao tomarmos a letra da música como objeto de comunicação entre esses dois sujeitos, o seu sucesso estará dependendo principalmente do estabelecimento deste contrato. O enunciador dá ao texto um efeito de verdade, de realidade, quer fazer-crer e o enunciatário precisa crer-fazer para que esse contrato seja estabelecido. Para criar o efeito de realidade, o enunciador introduz no discurso procedimentos semânticos de figurativização que, por sua vez, concretizam temas.Quando analisamos uma canção há de se levar em conta também que o sucesso será provido da empatia do sentido de verdade, da sensação do “artístico”, do contato músicos e público. “Tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato e organizá-los em percursos” (ibidem, p. 68). Para a autora, ao analisar os procedimentos de tematização, temos que considerar a organização do percurso temático e as relações entre tematização e figurativização. Em Palavras Erradas encontramos a narrativa de um sujeito que está em busca de valores como amor e completude que serão retomados somente pela conquista do objeto “você”. Trata-se então de um tema amoroso-sexual, com menção a um tipo de homem que era incapaz de ser compreensivo e amoroso e se encontra arrependido. No texto está retratada uma relação que já foi muito boa, porém encontra-se interrompida. Alguns traços semânticos nos permitem chegar a essa conclusão: noite, coração, beijo, solidão, sonhava, medo. “Pelo procedimento de figurativização, figuras do conteúdo recobrem os percursos temáticos abstratos e atribuem-lhes traços de revestimento sensorial” (ibidem, p.72). Barros afirma ainda que a figurativização possui etapas diferentes como a figuração, que seria a primeira etapa, quando se passa da figura ao tema; e a iconização que tem como objetivo produzir ilusão referencial. R G L, n. 5, jun. 2007. 109 No texto analisado, o objeto está investido dos valores de calor, completude, amor; todo o percurso do sujeito torna-se figurativizado pelas ações de lembrar, tentar dormir, sonhar, esquecer, beber, cair, usar, abrir, ver, esperar e o tempo e o espaço determinamse por noites em claro, quanto tempo faz, passam as horas, agora, cai a noite, quando eu tinha e ali. Para produzir uma ilusão referencial, levando o enunciatário a reconhecer imagens do mundo e acreditar na verdade do discurso, o enunciador de Palavras Erradas traz figuras discursivas como beber até cair (clichê da solidão, como o enunciador mesmo diz no texto), assistir a um bom filme na televisão, abrir a porta, que remetem à realidade, às ações de uma figura humana comum, como qualquer outra pessoa. Verificamos também que, no texto, há temas recobertos de figuras. “A reiteração dos temas e a recorrência das figuras no discurso denominam-se isotopia” (ibidem, p. 74). Ainda segundo Barros, há dois tipos de isotopia: temática, quando ocorre no texto a repetição de unidades semânticas abstratas; e a figurativa, quando há redundância de traços figurativos. Partimos então para a análise dos percursos isotópicos e depois das relações entre essas isotopias no discurso. A primeira isotopia que podemos perceber é a do sofrimento presente na maior parte do texto, com destaque para as seguintes expressões, em negrito: Quanto tempo faz Já não lembro mais Das noites em claro que eu passeib Tentando dormir Pra ver se eu sonhava com você Passam as horas, sinto medo O frio tomou o meu coração por inteiro Agora tanto faz Não me importo mais Não me esqueci de como era o seu beijo Cai a noite Como se fosse uma prisão Uma prisão pro meu coração Sei que usei palavras erradas Achando que elas nunca dariam em nada As horas já não passam mais tão rápidas Como quando eu tinha você, Quando eu tinha você Eu vou beber, beber até cair Mas que clichê da solidão Melhor seria então assistir A um bom filme na televisão Quando eu abri a porta E não vi você chegar, Não vi você chegar Quando eu abri a porta E não vi você chegar, Sentei ali Esperando você voltar Percebemos que há repetição da palavra “noite” em sua acepção negativa. Na 110 primeira parte da música, no sentido de não conseguir dormir e sofrer tentando sonhar com os valores. Depois o enunciador dispõe de novo da palavra “noite” e dramatiza mais o sofrimento, pois estabelece uma relação com a “prisão” para o “coração”. Prisão é um local escuro, onde se sofre pelos erros cometidos, noite também remete à escuridão. Depois temos a relação de “medo” e “frio” (traço sensorial da frustração amorosa) que também se ligam ao “coração” e concluindo a linha figurativa com a palavra “solidão”. Como dissemos ao analisar o nível narrativo, o sujeito não consegue transformar seu estado e permanece alternando níveis de tensão e conformação. Identificamos então isotopia de conformidade: Quanto tempo faz Já não lembro mais Das noites em claro que eu passei Tentando dormir Pra ver se eu sonhava com você Passam as horas, sinto medo O frio tomou o meu coração por inteiro Agora tanto faz Não me importo mais Não me esqueci de como era o seu beijo Cai a noite Como se fosse uma prisão Uma prisão pro meu coração Sei que usei palavras erradas Achando que elas nunca dariam em nada As horas já não passam mais tão rápidas Como quando eu tinha você, Quando eu tinha você Eu vou beber, beber até cair Mas que clichê da solidão Melhor seria então assistir A um bom filme na televisão Quando eu abri a porta E não vi você chegar, Não vi você chegar Quando eu abri a porta E não vi você chegar, Sentei ali Esperando você voltar Faremos ainda uma relação entre essas duas isotopias principais. Não é difícil perceber que essa relação se estabelece em quase todas as estrofes da letra da música. Por exemplo, passam as horas / sinto medo / o frio tomou o meu coração por inteiro que caracterizam a isotopia de sofrimento e vem sem seguida a conformidade agora tanto faz / não me importo mais. Ou ainda em na alternância entre beber até cair e depois a mudança para melhor assistir a um bom filme na televisão. Também vamos destacar a isotopia do arrependimento, bastante clara no seguinte trecho: R G L, n. 5, jun. 2007. 111 Esse trecho do discurso nos permite construir o seguinte sentido e estabelecer a relação: erro e punição. A prisão é um lugar onde as pessoas que cometem erros cumprem penas para repará-los e depois voltar ao convívio social. Neste trecho, em especial, apreendemos uma das principais intenções de manipulação do enunciador-destinador para com o enunciatário-destinatário: convencê-lo de que errou sem intenção, pagou pelos seus erros e está arrependido. Antes de passar para as considerações sobre o nível fundamental, acrescentamos ainda que o texto estabelece relações intertextuais, remetendo às histórias de relacionamentos interrompidos ou do amor romântico por meio de clichês como passar a noite em claro sonhando com a pessoa amada ou beber até cair (citado como clichê da solidão pelo próprio enunciador no texto) ou até mesmo ao mencionar que as horas ao lado passam rápidas, remetendo ao dito popular “tudo que é bom dura pouco” e desta forma apelando para a memória do enunciatário, estabelecendo uma relação de veridicção. Feitas as considerações sobre os níveis narrativo e discursivo, entramos agora na análise das estruturas fundamentais. Ao considerarmos o que foi apreendido nos níveis narrativo e discursivo do texto Palavras Erradas podemos determinar com mais facilidade o mínimo de sentido construído. “Trata-se da relação de oposição ou de ‘diferença’ entre dois termos, no interior de um mesmo eixo semântico que os engloba, pois o mundo não é diferença pura” (ibidem, p. 77). Para representar essa relação de oposição utilizaremos o modelo lógico do quadrado semiótico: No texto analisado, temos uma relação de oposição entre vida e morte orientada na passagem da morte à vida. Nas três primeiras estrofes da letra há afirmação da morte, 112 como valor disfórico; na quarta, há a euforização da vida; na quinta, passa-se novamente a disforização da morte e na última estrofe, novamente uma euforização da vida. Porém, como não há transformação do estado do sujeito não há uma passagem completa entre morte e vida. Ele fica alternando entre os estados intermediários por meio das lembranças (pra ver se eu sonhava com você ou não me esqueci de como era o seu beijo) ou das fugas por meio de ações compensatórias (beber até cair ou assistir a um bom filme na televisão). Considerações finais Procuramos explicitar ao leitor deste artigo como acontece o processo de construção de sentido em um texto específico por meio da teoria semiótica greimasiana. Ressaltamos que o autor da música adotou esses procedimentos de maneira espontânea. Deixamos de lado a análise do plano de expressão da música, que implica a necessidade de conhecimentos especializados próprios da linguagem estética, neste caso, da musical. Porém, esperamos ter alcançado o objetivo principal que foi analisar a aplicação desta teoria no texto verbal – letra da música -, ou seja, restringimos a análise à descrição dos níveis fundamental, narrativo e discursivo do plano de conteúdo. Referências bibliográficas BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2005. LOPES, Ivã Carlos e HERNANDES, Nilton (org.). Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. TATIT, Luiz. Análise Semiótica através das Letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. Notas a Aluna regular do programa de Mestrado em Letras oferecido no CPTL/UFMS, de Estudos Lingüísticos, e professora do curso de Jornalismo da UNIDERP (MS). b Grifo nosso. R G L, n. 5, jun. 2007. 113 114 Ensaios A VISÃO EUFÓRICA DO BRASIL∗ Carlos Erivany FANTINATI Abstract: Our goal is to show the possible correlations between the instance of production and the national conscience, always in function of the reception instance. The emphasis will be given to a sort of conscience of the country: the euphoric or apologetic vision of the national reality, that is, the high standard and praised vision of our human natural reality. The euphoric, tremendous or utopian vision of the national reality, produced by the dominant social groups in power, will be dealt considering its process formation and development, like in some of its significant traces. Its manifestation will be illustrated with fiction and non- fiction texts. The choice of two different types of texts estimate the agreement on a wide conception of literature, which joins together any type of text and the distinct media that give them support, as the book, the radio, the television and the record. Keywords: production; national conscience; euphoric vision. Considerações preliminares Temos por objetivo neste ensaio expor as possíveis correções entre a instância de produção e a consciência nacional, levando sempre em consideração a instância de recepção. A ênfase do presente estudo será dispensada a um tipo de consciência do país: a visão eufórica ou apologética da realidade nacional, em outros termos, a visão panegirista e grandiloqüente de nossa realidade natural humana. O primado conferido à visão eufórica tem uma razão metodológica: ela é a primeira maneira de ver o Brasil a se constituir em nossa história, sendo seus produtores a camada dominante e dirigente portuguesa. Com a visão oposta estrutura-se, mais tarde, a visão crítica. Esta é entendida aqui como as várias modalidades de ver o Brasil ao longo de sua história, caracterizadas por uma posição de contraposição, de resistência à visão eufórica nacional. Em outros termos, poder-se-ia dizer que a articulação primeira da visão eufórica confere a ela traços de norma, de interdição e de proibição, em relação aos quais a visão crítica apresenta as marcas de violação, de infração e negação, por ser uma articulação segunda. A visão eufórica, apoteótica ou utópica da realidade nacional, produzida pelos grupos sociais dominantes no poder, será tratada aqui no seu processo de formação e desenvolvimento, bem como em alguns de seus traços significativos. Sua manifestação será ilustrada com textos ficcionais e não-ficcionais. A escolha de dois tipos de textos pressupõe a aceitação de uma concepção ampla de literatura, a qual englobe qualquer tipo de texto e os distintos veículos que lhes sirva de suporte, como o livro, o rádio, a televisão e o disco. Para localizar esses textos ao longo da história literária, usaremos como referência os diferentes movimentos literários, que passam a ser os períodos literários da concepção ampla da literatura. Assim, a literatura no Brasil – no sentido amplo do termo – passa a contar com os seguintes movimentos literários: Barroco (1600-1768); Arcadismo / Ilustração (1768- 116 1836); Romantismo (1836-1880); Realismo – Naturalismo e Parnasianismo (1880-1922); Modernismo (1922-1945) e Tendências Contemporâneas (1945-1980). Ainda com relação aos movimentos literários convém dizer que, para nós, a visão eufórica manifesta-se no Barroco, no Romantismo e na fase final do Realismo - Naturalismo e Parnasianismo e ainda no inicio do Modernismo, enquanto a visão crítica o faz no Arcadismo / Ilustração, na fase inicial do Realismo – Naturalismo e nas Tendências Contemporâneas. Com isso, estaremos dando ênfase, no primeiro caso, à dominante “oficial” e, no segundo caso, à dominante da resistência, sem nos determos na complexidade de cada movimento literário. Dentro da linha escolhida aqui para a abordagem da visão eufórica ou apoteótica serão relevantes os seguintes fatores: os momentos em que ela se manifestou de modo mais ostensivo em nossa história; a já mencionada importância da instância receptora; e o papel da visão crítica. Consideramos os seguintes momentos políticos importantes na manifestação ostensiva da visão eufórica: na Colônia, o período que vai do século 16 até meados do século 18; no Império, o período entre 1840 e 1870; na República Velha, o período entre 1894 e 1914; na Segunda República, o Estado Novo entre 1937 e 1945; e, mais recentemente, o período entre 1968 e 1974. No que tange à instância de recepção, tem-se como significativa a seguinte observação de Antonio Candido: Quando consideramos a literatura no Brasil, vemos que a sua orientação dependeu em parte dos públicos disponíveis nas várias fases, a começar pelos catecúmenos dos autos de Anchieta, a eles ajustados e sobre eles atuando como lição de vida e concepção de mundo.Vemos em seguida que durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios – de igreja, academia, comemoração (CANDIDO, 1973, p.77-8). Nesse trecho interessa-nos sobremaneira a expressão “públicos normais”, com seu traço de “auditório”, afeito, portanto, à oralidade. A condição de auditório dos “públicos normais” não se restringe só ao período colonial. Ela vai ser a gênese de uma “tradição de auditório”, a qual me parece prolongar-se até nossos dias. A formação e a permanência dessa “tradição de auditório” se devem ao analfabetismo, que constitui o traço básico do subdesenvolvimento no terreno cultural. Analfabetos, letrados de poucas letras e de parcas leituras compõem os “públicos normais”, aos quais a literatura teve que se dirigir no Brasil, do que resultou a importância da palavra oral, isto é, do escrito para ser ouvido sobre o escrito para ser lido. Reconhecendo a importância básica da “tradição de auditório”, procuraremos mostrar os meios e os modos, por meio dos quais a camada dirigente buscou transmitir a visão eufórica, elaborada por ela, ajustando-se a essa realidade dos “públicos normais”. Com relação à visão crítica, ela será tratada aqui mais em função da visão apoteótica do que em si mesma. Seria interessante, por exemplo, examinar a posição da visão crítica ante as formas de ajustamento encontradas pela visão apoteótica para se adaptar aos “públicos normais”, bem como as formas elaboradas pela visão crítica para se dirigir à condição de R G L, n. 5, jun. 2007. 117 “auditório” do público. Parece-me uma hipótese cativante, por exemplo, investigar como se deu a visão crítica no Realismo literário – Machado de Assis, em especial procurou, em lugar de se ajustar aos “públicos normais”, denunciar a “tradição de auditório” por meio de textos escritos não para serem ouvidos, mas para serem lidos. Essa postura crítica que, por um lado, fere na raiz o analfabetismo e a estrutura de poder que o sustenta, por outro, cria barreiras para o acesso dos “públicos normais” à visão desmascarante. Se procurarmos agora recolocar a proposição deste ensaio, talvez possamos dizer que ela objetiva mostrar a correlação, ao longo de nossa história, entre traços da visão eufórica, produzida pela camada dirigente no poder, e os veículos utilizados para difundi-la à massa dos “públicos normais” do país. E para finalizar estas considerações preliminares, convém observar que este é, antes de tudo, um trabalho de reflexão sobre conceitos, categorias e idéias desenvolvidas por Antonio Candido e Alfredo Bosi sobre a literatura e as culturas brasileiras. A presença desses autores pode ser constatada de modo explícito nas citações constantes de trechos de suas obras referidas na bibliografia. Ocorre ela também de modo implícito em certos momentos do texto, o que talvez fosse impossível evitar, pela convivência com as obras dos dois autores. Se alguma originalidade contiver este trabalho, reside ela na tentativa do desdobramento das concepções desses autores e na aplicação ao século XX. A visão eufórica no período colonial (1500-1822) O Brasil, bem como todo o continente americano, nasceu sob o signo da visão eufórica ou apoteótica, que cobre a terra descoberta de panegíricos, louvores e mitos sobre as excelências paradisíacas de sua realidade natural e humana. No caso do Brasil, as instâncias produtoras dessa publicidade são então o Estado português e a Igreja Católica que, por aqui desde meados dos séculos 16, “foram dilatando a Fé, o Império”. Nesse processo de expansão ultramarina, os donos do poder em Portugal procuram dissimular ou ocultar o intuito de obter o real valor de troca, ditados pelos desígnios da política mercantilista, por meio da exaltação das qualidades positivas da mercadoria-Brasil, tornando-a atraente à população crédula e analfabeta, impregnada de uma visão de mundo marcadamente medieval e oral. Essa situação vai se enrijecer, pouco mais de quarenta anos após a descoberta, com a política contra-reformista da igreja Católica, que sofrera, a partir de 1517, o cisma da Reforma. Na sua gênese, a exaltação das qualidades positivas da mercadoria-Brasil pode ser observada já na Carta que Pero Vaz de Caminha envia à coroa lusa, comunicando a descoberta. Sua leitura mostra, ao lado dos aspectos informativos, um outro, que um satirista atual chamou de “valorização do troço” (LOPES 1980, p. 12), com a louvação da terra, dos índios e das índias... Dos cronistas do século 16, aquele que parece espalhar melhor os interesses dos grupos dominantes é Pero de Magalhães Gândavo, em suas obras Tratado 118 da Terra do Brasil e História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576). Ambos os textos são, no dizer de Capistrano de Abreu, “‘uma propaganda da imigração’, pois cifram-se em arrolar os bens e o clima da colônia, encarecendo a possibilidade de os reinóis (‘especialmente aqueles que vivem em pobreza’) virem a desfrutá-la” (apud BOSI, 1970, p. 18). A “propaganda da imigração” adequa-se aos propósitos do poder metropolitano, com sua necessidade de promover o deslocamento de contingentes populacionais para ocupar e explorar a terra, segundo os ditames do mercantilismo. Ajusta-se ainda às intenções da Igreja da Contra-Reforma, com sua política econômica e religiosa de expandir a fé. No mesmo movimento que incentive a imigração, as camadas dominantes metropolitanas procuram articular, desde meados do século 16, procedimentos que assegurem os liames entre a Colônia e Portugal. Começam a surgir intuitos de controle social, expressos pelas atividades culturais da Igreja e do Estado, ao promoverem manifestações literárias para comemorar as festas religiosas, as datas ligadas à Família Real, os movimentos das altas autoridades os acontecimentos políticos e militares. Tais eram os pretextos principais para jornadas de sermões, representações teatrais, composição e recital de poemas. Proliferam na correspondência dos governadores das capitanias as ordens aos professores, para promoverem tais atividades (CANDIDO, 1964, p. 132). Nas manifestações literárias – sermões, representações teatrais e recital de poemas – evidencia-se com muita nitidez o caráter oral dessas realizações, indicando o hábil ajustamento do poder metropolitano aos “públicos normais” da Colônia, conforme já vimos, e convém repetir uma vez mais: (...) durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios – de igreja, academia, comemorações. O escritor não existia enquanto papel social definido; vicejava como atividade marginal ao lado de outras mais requeridas pela sociedade pouco diferenciada: sacerdote, jurista, administrador (CANDIDO, 1973, p. 78). O quadro que se desenha nesse período é, assim, uma forte presença do poder metropolitano. Sob sua capa, vai se formando o público, ao participar das cerimônias religiosas e das comemorações públicas, e o escritor vai eventualmente perpetrando alguns textos de circunstância, nos quais deve necessariamente enaltecer a ação do Estado e da Igreja, por sua condição objetiva de funcionário. É nessas condições que ressoa na Colônia, do século 17 até meados do século 18, o Barroco, movimento artístico imperante nos países europeus ligados à Contra – Reforma, em especial na Espanha, à qual nosso destino, bem como o de Portugal, esteve ligado de 1580 a 1640. Entre 1600 e 1768, o estilo barroco foi uma linguagem providencial para exprimir a visão apoteótica da realidade natural e humana da Colônia, graças aos recursos retóricos e estilísticos colocados à disposição dos escritores. A correspondência e o ajustamento entre a moda literária e a visão apoteótica podem ser vistos nesta observação de Antonio Candido. R G L, n. 5, jun. 2007. 119 No Brasil, sobretudo nos séculos 17 e 18, esse estilo equivalia a uma visão, graças à qual foi possível ampliar o domínio do espírito sobre a realidade, atribuindo sentido alegórico à flora, magia à fauna, grandeza sobre-humana aos atos. Poderoso fator ideológico, ele compensa de certo modo a modéstia dos recursos e das realizações, e ao dar transcendência às pessoas transpôs a realidade à escala dos sonhos (CANDIDO, 1964, p.133). Retomando a afirmação inicial de que o Brasil nasceu sob o signo da visão apoteótica, parece claro agora que não há ruptura, mas sim continuidade entre os séculos 16, 17 e 18 quanto à maneira de ver a Colônia. Essa continuidade de visão, bem como suas implicações econômicas, sociais e políticas, foi com muita acuidade apontada por Sérgio Buarque de Holanda, citado por Antonio Candido em suas análises: No admirável Visão do Paraíso (...), Sérgio Buarque de Holanda esmiúça o mecanismo das imagens ideais sobre a beleza, as riquezas, as propriedades miraculosas do continente americano, como acicate do processo colonizador. Esse movimento da imaginação pode também ser considerado uma forma de orientar inconscientemente a realização da conquista, pois permitiu não apenas estimular a exploração dos recursos naturais, mas, indiretamente penetrar na vastidão desconhecida para submetê – la às normas e à cultura da metrópole (CANDIDO, 1963, p.135) Um exemplo dessa vinculação entre o poder metropolitano, a visão apoteótica da realidade e o ajustamento aos “públicos normais” na Colônia pode ser encontrado nas Academias Barrocas. Criadas sob a inspiração e a influência do Estado português, as Academias dos Esquecidos (1724-1726) e dos Renascidos (1759-1760), na Bahia, produzem, entre muitos poemas, um tipo de historiografia que pesquisa a realidade natural e humana da Colônia, enfocando-a, por um lado, de uma perspectiva informativa, com seus catálogos de bispos e governadores, e, de outro, da perspectiva da apoteose da realidade, em que não falta também a exaltação da ação política metropolitana. A História da América Portuguesa, do coronel Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), de 1730, constitui o modelo mais expressivo das tendências que Aderaldo Castelo chama de “nativismo áulico”, ao “nos considerar como Estado da monarquia portuguesa, cuja política é exaltada, enquanto os nossos valores são reconhecidos como portugueses” (CANDIDO; CASTELLO, 1964, p. 14). Na introdução do livro de Rocha Pita, encontram-se quase todos os recursos lingüísticos que servem de base para a visão eufórica ou paradisíaca da Colônia: 1.Introdução - Do novo mundo, (...) é a melhor porção o Brasil; vastíssima Região, felicíssimo terreno, em cuja superfície tudo são tesouros emcujas montanhas e costas tudo são aromas; tributando os seus campos o mais útil alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus troncos o mais suave bálsamo, os seus mares o âmbar mais seleto.(...). 2.Em nenhuma outra região se mostra o Céu mais sereno, nem madruga mais bela Aurora: o Sol em nenhum outro Hemisfério tem os raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes: as Estrelas são as mais benignas, e se mostram sempre alegres: os horizontes, ou nasça o Sol, ou se sepulte, estão sempre claros: as águas, o se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das Povoações nos aquedutos, são as mais puras: e enfim o Brasil Terreal Paraíso descoberto onde tem nascimento, e curso os maiores rios; domina salutífero clima: influem benignos Astros, e respiram auras suavíssimas que, o fazem fértil, e povoado de inumeráveis habitadores (...) (CANDIDO; CASTELLO, 1964, p. 95-96). 120 Observada, até o século 18, a vinculação entre os interesses reais da camada dirigente metropolitana e a visão apoteótica da realidade natural e humana da Colônia, é necessário agora ver como o processo colonizador ia, de maneira inevitável, gerando sua própria contradição, ao modificar-se para se adaptar e ao consolar as classes dominantes no Novo Mundo. No século 18, os interesses dos grupos dominantes da Colônia começam, em certos momentos, a manifestar suas novas posições e sentimentos por meio da literatura (CANDIDO 1973, p 37). A mesma obra do coronel Sebastião da Rocha Pita que acabamos de citar pode, por exemplo, ser vista de uma perspectiva divergente e mesmo contrária, pois também exprime os anseios dos grupos dominantes coloniais, que já se sentem então distintos dos da metrópole, ao se reconhecerem numa realidade marcada por coordenadas espaciais e temporais diferentes. Nesse sentido, a obra exprime, ao lado de seu aulicismo, uma consciência incipiente do afastamento eventual dos grupos dominantes coloniais das camadas sociais que monopolizam o poder na Metrópole. Esse sentimento de diferença corresponde a um estágio da formação dos grupos dominantes na Colônia e exterioriza-se na necessidade de elaborar uma ideologia própria que os justifique como tais. Desempenham, nesse sentido, um papel relevante os genealogistas do século 18, como Borges da Fonseca (1718-1786) em Pernambuco, Jaboatão (1695-1764?) na Bahia e Pedro Taques (1714-1777) em São Paulo, que elaboraram um tipo de história, por meio de avaliação especial da mestiçagem e do encontro de cultura, que resulta depois, após a Independência política, numa exacerbada idealização do índio. Visando a dar tradição aristocrática às famílias importantes da Colônia, os genealogistas do século 18 procedem à criação e invenção de um tipo de história, por meio do entroncamento das famílias das classes dominantes e de seus varões ilustres a discutíveis estratos superiores das tribos indígenas, aos quais concedem, segundo padrões europeus, foros de nobreza. A intenção apoteótica orienta essa “tendência genealógica” ao conferir traços aristocráticos às famílias ilustres e reflete-se na linguagem laudatória que enforna a mistificação. Assim, no decisivo século 18, vislumbra-se já o início da transferência da visão apoteótica da realidade natural e humana, elaborada pelo poder metropolitano, para as camadas dominantes em gestação na Colônia, por meio da qual elas começam a manifestar seu descontentamento com relação às pressões portuguesas e a reivindicar seu enraizamento autóctone na terra e no índio. O Barroco, sobretudo o do século 18, passa também, desse modo, a servir para a expressão dessa diferença e do esboço de sua consciência. Tanto isso é verdade que dois historiadores da literatura brasileira apontam para a importância básica do legado barroco em nossa cultura. Antonio Candido escreve: “O estilo barroco gerou modalidades tão tenazes de pensamentos e expressão, que, apesar da passagem das modas literárias, elas ficaram em parte, como algo visceral do nosso país” (CANDIDO, 1973, p. 42). Mais pormenorizado é Alfredo Bosi: R G L, n. 5, jun. 2007. 121 121 Nas esferas ética e cultural está ainda por fazer o inventário da herança colonial – barroca em toda a América Latina. Entre os caracteres mais ostensivos lembrem – se: o meufanismo verbal, com toda a seqüela de discursos familiares e acadêmicos; a anarquia individualista, que acaba convivendo muito bem com o mais cego despotismo; a religiosidade dos dias de festas; a displicência em matéria de moral; o vício do genealógico e do heráldico nos conservadores; o culto da aparência e do medalhão; o vezo dos títulos; a educação bacharelesca das elites; os surtos de antiquarismo a que não escapam nem mesmo alguns espíritos superiores (BOSI, 1970, p. 57). Esses traços não se transmitem pela raça nem se herdam no sangue: na verdade, eles se desenvolveram com as estruturas sociais que presidiram à formação das nossas elites e têm reaparecido, sempre que o processo de modernização se interrompe ou cede à força da inércia (BOSI, op.cit., p. 57). Com base nas considerações até aqui feitas, é possível dizer agora que, do século 16 até o século 18, os grupos dominantes metropolitanos elaboram uma visão eufórica da Colônia, com dupla função. A primeira é de caráter aparente e visa a apresentar, para os grupos sociais desprivilegiados, a realidade natural e humana da Colônia como um paraíso, com todas as conotações que essa imagem significava no contexto medieval e contra – reformista, enquanto satisfação de suas necessidades. A segunda é uma função real cujo objetivo é o de promover o deslocamento desses contingentes desprivilegiados para o Novo Mundo, visando à ocupação e à elaboração da terra, das quais resultariam os ganhos concretos pela política mercantilista. No que concerne à camada dominante da Colônia, essa visão funciona inicialmente segundo as esperadas diretrizes metropolitanas, mas, a seguir, de maneira incipiente e, depois, com mais freqüência no século 18, transforma-se em suporte de seus anseios de diferenciação e de afirmação ante a metrópole. Um ponto, porém, é incontestável: a visão eufórica produzida pela camada dominante foi posta, tanto lá como cá, a serviço dos seus elaboradores e de seus interesses de classe. A visão eufórica no Império (1840-1870) A transferência da visão apoteótica da realidade brasileira, gerada pelos estratos dirigentes portugueses, para a camada dominante em ritmo de consolidação na Colônia, vai se dar definitivamente no processo de independência política, entre mais ou menos 1790 e 1830. Mas não são os portadores da visão utópica os que compõem a vanguarda na dinâmica da emancipação. Desde as primeiras décadas do século 18, surge na Europa uma tendência ideológica mais radical, a Ilustração, ligada literariamente ao Arcadismo e socialmente à burguesia, e que repercute na Colônia. Influenciados pela Revolução Francesa de 1789, pela Revolução Americana de 1776 e 1777 em Portugal, os ilustrados brasileiros vão se constituir na ponta de lança da luta contra o estatuto colônia. Seus embates contra a Metrópole ficaram gravados nas várias Inconfidências, que ocorrem em Minas Gerais (1789/92), na Bahia (1794), em Pernambuco (1801 e 1817). Em razão de sua maior radicalidade, pagaram com a vida ou amargaram com o exílio ou a prisão seu levante contra as forças metropolitanas. Seu legado histórico, porém, é muito importante, pois forma a 122 gênese da visão crítica de nossa realidade humana e natural. Se o ilustrado e os “inconfidentes” compõem a ala mais radical na luta contra a opressão portuguesa, nem por isso, ou talvez até por isso mesmo, não conseguem empolgar o poder em 1822. A compreensão do fracasso dessa corrente, imbuída de visão crítica, na luta pelo poder no processo da Independência parece-nos muito significativa, não só naquele momento decisivo, mas também nos momentos decisivos posteriores de nossa história. Alfredo Bosi explica o que sucede em 1822 do seguinte modo: (...) foi o fácies da tradição, visível nas academias [barrocais] e no zelo genealógico dos linhagistas, que acabou prevalecendo no processo da Independência, relegando a um incômodo segundo plano as correntes ilustradas, sobretudo as radicais, que permearam as “inconfidências”, todas malogradas precisamente por terem deixado alheias ou receosas as camadas que podiam promover, de fato, a emancipação política: os senhores de terra e a alta burocracia. Sobrevindo o momento oportuno, foram estes os grupos que cerraram fileiras em torno do herdeiro português, dando o passo que lhes convinha (BOSI, 1970, p. 57). Nessa interpretação de Alfredo Bosi, fica claro que em 1822 os grupos dominantes na Colônia, produtores da visão apoteótica, foram os que se assenhoraram do poder, estruturando e organizando o Estado Nacional, segundo seus interesses de classe. Pode-se ver nesse evento um fato paradigmático em nossa história, pois fornece o parâmetro adequado para se entender o que sucede em 1889, o que se dá em 1930 e o que tem lugar em 1964. São os grupos sociais, dotados de uma visão crítica, que promovem toda a movimentação que resulta na República em 1889, na Revolução de Outubro de 1930 e nas reivindicações de reformas entre 1961 e 1963. Mas, no momento decisivo, é a tradição das camadas dominantes, produtores da visão eufórica da realidade nacional, que se antecipa ao risco de perda do poder e, aglutinando parcelas da sociedade, “dá o passo que lhes convém”, reprimindo as reivindicações radicais em andamento, conforme se verá. Para se perceber com maior nitidez que a camada dominante, estruturada sob o signo do Barroco, foi a que se apossou do poder em 1822, retomemos o que anteriormente se denominou “tendência genealógica”. Após a Independência política, a camada dominante vai promover a idealização do índio por meio de três procedimentos: engatando no legado sobre as linhagens dos varões ilustres, elaboradas pelos genealogistas do Barroco; realizando uma leitura intencional e distorcida das obras indianistas do século 18, como o Uruguai, de Basílio da Gama, e Caramuru, de Santa Rita Durão; ajustando a mitologização do selvagem aos moldes do Romantismo, movimento literário que começa a se impor a partir de 1836. Os românticos, depois de 1840, fizeram do indianismo uma paixão nacional, que transbordou do círculo dos leitores e se espalhou por todo país, onde, ainda hoje, perdura o hábito de usar nomes de personagens indígenas dos poemas e romances daquela época. Os dois escritores mais eminentes do indianismo romântico, Gonçalves Dias e Alencar, foram considerados pelos contemporâneos como realizadores de uma literatura finalmente nacional, que vinha manifestar a nossa sensibilidade e visão própria das coisas. O triunfo dessa opinião unilateral manifesta o apogeu da “tendência genealógica” durante o Romantismo, quando foi fortalecido pela vontade política compreensível de negar os valores identificados à colonização portuguesa (CANDIDO, 1964, p. 8). R G L, n. 5, jun. 2007. 123 Mas não foi só índio que eles retomaram e reatualizaram segundo os anseios do tempo. Também a natureza nacional, com seus predicados de excelência, conforme fora vista no Barroco, continuou a ser cantada, agora segundo os cânones do novo movimento literário. A valorização chegou a tal intensidade que ela e o aborígine foram elevados à categoria de critério estético. Além disso, a natureza sofreu um outro processo de elaboração ao ser conectada estreitamente à noção de pátria, passando a ser a essência do “gigantismo de base naturista”. A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensações por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social (CANDIDO, 1964, p. 8-9). Essa ligação causal entre “natureza” e “pátria” pode ser percebida num dos poemas antológicos de nossa literatura erudita – Canção do Exílio, de Gonçalves Dias (1823-1864) – que, ao lado do componente ideológico aqui analisado, sobrevive graças à sua elaborada construção estética: Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá: As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas Nossas várzeas têm mais flores Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá (CANDIDO; CASTELLO, 1963, p. 312-3). Essa visão apoteótica difunde-se e penetra em outras camadas sociais graças ao traço de oralidade que prevalece nas obras poéticas do Romantismo, ajustando-se aos “públicos normais” do país: Verifica – se, pois, que escritor e público definiram-se aqui em torno de duas características decisivas para a configuração geral da literatura: retórica e nativismo, fundidos no 124 movimento romântico depois de um desenvolvimento anterior. A ação dos pregadores, dos conferencistas de academia, dos pregadores, dos conferencistas de academia, dos glosadores de mote, dos aradores nas comemorações, dos recitadores de toda hora, correspondia a uma sociedade de iletrados, analfabetos ou pouco afeitos à leitura. Deste modo, forma-se, dispensando o intermédio da página impressa, um público de auditores, muito maior do que se dependesse dela, e favorecendo, ou mesmo requerendo do escritor, certo ritmo oratório, que passou a timbre de boa leitura e prejudicou entre nós a formação dum estilo realmente escrito para ser lido. A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que curve o som de sua voz brotar a cada passo por entre as linhas (CANDIDO, 1964, p. 81). Não se pode deixar de mencionar ainda, nesse processo de difusão, o papel das instituições governamentais, que não só estimulam a propagação da visão apoteótica, mas também criam certa dependência dos escritores em relação às ideologias dominantes, ao transformá-los em burocratas do Estado. Nesse sentido avultam três fatores: o freqüente amparo oficial de D. Pedro II, o Instituto Histórico e as Academias de Direito (Olinda – Recife e São Paulo). A sua função consistiu, de um lado, em acolher a atividade literária como função digna; de outro, em podar suas demasias, pela padronização imposta ao comportamento do escritor, na medida em que era funcionário, pensionado, agraciado, apoiado de qualquer modo. Houve um mecenato por meio da prebenda e do favor imperial que vinculavam as letras e os literatos à administração e à política, e que se legitima na medida em que o Estado reconhecia, desta forma (confirmando-o junto ao público), o papel cívico e construtivo que o escritor atribuía a si próprio como justificativa da sua atividade (CANDIDO, 1964, p. 83). Com base nos dados até aqui vistos, parece claro que há uma nítida linha de continuidade entre os grupos dominantes, produtores da visão eufórica na Colônia, e as camadas dominantes que se entronizam no poder a partir de 1822. Ao dar conformação ao Estado Nacional, realiza ela uma ligação com suas origens barrocas e remotamente com o Estado português, ao mesmo tempo em que procura ajustar a visão utópica do País ao novo momento histórico e literário, em função de seus interesses de elite. A visão eufórica na República Velha (1894-1914) Dissemos há pouco que consideramos 1822 um exemplo modelar de como a camada dominante nacional soube, no momento decisivo, apossa-se do poder. Como se sabe, todo o movimento reivindicatório que leva à Abolição em 1888 e à República em 1889 é realizado por um contingente de militantes que, a partir de 1870, inicia um combate sem tréguas contra a modorra imperial. Herdeiros da visão crítica ilustrada, esses intelectuais, informados das tendências cientificistas do século 19, exprimem anseios de grupos sociais desprivilegiados e os manifestam em suas produções literárias. Se conseguem o seu intento de pôr fim à escravidão negra e ao Império, não logram, poR G L, n. 5, jun. 2007. 125 rém, empolgar o poder. Entre 1894 e 1914, isto é, a partir do governo de Prudente de Morais, em especial nos de Campos Sales, Rodrigues Alves e Afonso Pena/ Nilo Peçanha, as oligarquias republicanas não só se firmam no poder, mas também seu ideólogo, Campos Sales, arquiteta os meios de permanência, com sua “política dos governadores”. Não é por acaso que justamente na metade do governo de Campos Sales, isto é, em 1900, vem a público uma obra que, embora considerada hoje “reação ingênua e patriótica” contra a visão desalentada do Naturalismo, nem por isso deixa de ser uma expressiva amostra da visão apoteótica, elaborada agora na República Velha. Referimo-nos ao livro do Conde de Afonso Celso (1860-1938), Porque me ufano do meu país, que visa a um público infantil, conforme ele mesmo reconhece, ao dizer que o escreveu para os filhos, mas que transcende a esses leitores. Objetivando alcançar um público inerme, incapaz, portanto, de qualquer criticidade ainda, o livro de Afonso Celso caracteriza-se por ser uma recolha dos traços da herança colonial-barroca e das contribuições românticas sobre a visão da terra. Nele prevalece e desenvolve-se o já visto “gigantismo de base naturista” com sua ligação causal entre “terra bela” e “pátria grande”. Isso pode ser observado na enumeração e na explicação dos onze motivos que fizeram a superioridade do Brasil: a grandeza territorial; beleza; riqueza do país; variedade e amenidade do clima; ausência de calamidades naturais; excelência dos alimentos que entraram na formação do tipo nacional; nobres predicados de caráter nacional; o Brasil nunca sofreu humilhações, nunca foi vencido; procedimento cavalheiresco e digno com outros povos; as glórias de colher no Brasil, a História do Brasil (LEITE, 1969, p. 196). Se o “gigantismo de base naturista” aparece em Afonso Celso mesclado a outros traços, embora comece ele, não por acaso, pela exaltação da geografia, tal modalidade de visão utópica vai encontrar expressão direta num outro texto, elaborado na República Velha. Esse texto é a letra de uma música que, pelo decreto de 6 de setembro de 1922, portanto, no centenário da Independência Política, se torna a letra do Hino Nacional Brasileiro. Transformado oficialmente em texto de caráter coral, o “gigantismo de base naturista” eclode nas seguintes estrofes do poeta parnasiano, Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927): Gigante pela própria natureza És belo, és forte, impávido colosso E o teu futuro espelha essa grandeza E engata no romantismo, ao citar, numa outra estrofe, a “Canção do Exílio”de Gonçalves Dias: Do que a terra mais garrida Teus risonhos, lindos campos têm mais flores “Nossos bosques têm mais vida” “Nossa vida”, no teu seio “mais amores”. No plano da “tendência genealógica”, o indianismo metamorfoseia-se, na República Velha, em caboclismo, conforme denuncia a visão crítica de Lima Barreto: 126 Uma das manias mais curiosas de nossa mentalidade é o caboclismo. Chama-se a isto a cisma que tem todo o brasileiro de que é caboclo ou descende de caboclo. Nada justifica semelhante aristocracia: portanto o caboclo, o tupi, era, nas nossas origens, a raça mais atrasada; contudo, toda gente quer ser caboclo. Muito influíram para isso os poetas indianistas e, sobretudo, o grande José de Alencar, o primeiro romancista do Brasil, que nada tinha de tupinambá. A mania, porém, percorreu o Brasil: e quando um sujeito se quer fazer nobre, diz-se caboclo ou descendente de caboclo (LIMA BARRETO, 1961, p. 69). A mania do caboclismo vai corresponder, no plano da criação literária, ao “conto sertanejo”, que alcança voga surpreendente, conforme o caracteriza a visão crítica de um estudioso penetrante: Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de amor a terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidade típicas. Forneceu – lho o “conto sertanejo”, que tratou o homem rural do ângulo do pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu respeito idéias – feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, estético (CANDIDO, 1964, p. 113-4). Natureza, como suporte do “gigantismo de base naturista”, caboclismo, como metamorfose atual da “tendência genealógica,” e “conto sertanejo” no plano ficcional são alguns dos pontos da visão apoteótica da realidade natural e humana do País, elaborada pelos grupos oligárquicos que estão no poder. Esses traços vão caracterizar o Parnasianismo, movimento literário que se inicia restrito ao poético e que depois vai se converter no estilo “das camadas dirigentes, da burocracia culta e semiculta, das profissões liberais, habituadas a conceber a poesia como ‘linguagem ornada’, segundo padrões já consagrados, que garantam o bom gosto da imitação” (BOSI 1970, p. 263). Em artigo, publicado em O Pasquim, em 1972, Arnaldo Jabor dá uma dimensão ampla ao Parnasianismo, reconhecendo-o como linguagem do poder e da repressão na vida brasileira: O Monte Parnaso seja em literatura, em pintura, ou em portaria, é tudo aquilo que tranca a vida em formas apertadas; é a caretice, o discursivismo do poder não – erótico; Parnaso é o princípio, meio e fim, é a prudência, o anticarnaval, à noite. O Parnasianismo é o Exu – Tranca – Ruas da vida nacional (...) (JABOR, 1972, p. 22). Faltou ao ensaio de Jabor a percepção de que o Parnasianismo é o herdeiro histórico das tendências que caracterizam a visão apoteótica do País, elaboradas desde o Barroco até o Romantismo, e a busca de fazê-las projetar-se. Todos esses traços, que compõem o figurino da visão apoteótica do período, coincidem com a euforia modernizante, que caracteriza a remodelação do centro urbano do Distrito Federal e de algumas capitais de Estado, como São Paulo e Manaus, propiciada pelo café e pela borracha. O Slogan, “O Rio civiliza-se”, lançado por um colunista social em O Binóculo, difunde-se por todo o país e pelo mundo – entenda-se Paris – levado por publicações luxuosas como as revistas Kosmos e Renascença. No mecanismo de difusão externa e interna de uma imagem positiva, “civilizada” e racialmente branca do País, desempenha papel fundamental o que hoje é o Ministério das R G L, n. 5, jun. 2007. 127 Relações Exteriores, comandado durante dez anos pelo Barão do Rio Branco (1902-1912). A presença estimuladora de Rio Branco não se restringia só aos incentivos pecuniários, visando à propaganda externa e interna. Ela se faz sentir em vários setores da vida cultural e intelectual, inclusive nas eleições da Academia Brasileira de Letras, em que muitos escritores, e mesmo não–escritores, chegam à imortalidade acadêmica graças aos empenhos do “homem do Itamarati”. Sua influência sobre a Academia Brasileira de Letras é bem um sintoma do nexo entre o político e o poder literário nesse momento da vida nacional. Esse liame veio de certa forma oficializar a literatura, ao se tornar a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 numa instituição consagrada pelo mudo oficial. Ela desempenhou com maior eficácia, a partir de então (1897), para a literatura, o papel que o Instituto Histórico desempenhara modestamente durante o Romantismo, como intermediária entre a produção intelectual, o poder político e o público (CANDIDO; CASTELLO, 1964, p. 108). O lado negativo dessa circunstância foi o de dar “um certo cunho oficial [à literatura], ajustando-a aos ideais da classe dominante gerando o academismo, no mau sentido da palavra”. (CANDIDO; CASTELLO, 1964, p. 108) Com relação ao “público normal”, a situação permanece inalterada: prossegue, por todo o século 19 e até o início de 20, a “tradição do auditório,” graças não apenas à grande voga do discurso em todos os setores de nossa vida, mas, ainda, ao recitativo, à musicalização dos poemas e à mania das conferências. O que se viu até aqui parece confirmar nossa hipótese de que a visão apoteótica está ligada no Brasil a uma elite que se estruturou sob o signo do Barroco, assentou-se no poder político em 1822 e, no poder literário, com o Romantismo. Ela se afirma na República Velha com as oligarquias, transformando o Parnasianismo no seu jargão de classe. Assim, elite, poder político, certos movimentos literários e a visão apoteótica da realidade correlacionam-se e interagem-se no movimento rural, patriarcal e latifundiária da nossa história, para falar aos “públicos normais” do País em defesa de seus interesses. A visão eufórica no Estado Novo (1937-1945) Em 1922 e 1930, sucedem dois fatos que abalam na base o domínio das oligarquias no plano literário e no plano político: a Semana de Arte Moderna e a Revolução de Outubro. Resultados de um conjunto de explosões intermitentes e de eventos subterrâneos que vão solapando os alicerces da República Velha, da sua linguagem parnasiana e da política de governadores, manifestam a consciência de grupos sociais, marginalizados do poder, e de camadas desprivilegiadas da sociedade. A ligação entre as manifestações críticas, no plano da linguagem e no nível político, por parte de forças novas no contexto brasileiro, foi muito bem descrita por Haroldo de 128 Campos, na introdução ao seu ensaio sobre a poesia de Oswald de Andrade. Após apontar para o delineamento, durante a Primeira Guerra, de uma incipiente “economia propriamente nacional”, Haroldo de Campos continua: A abolição dos escravos, a imigração maciça de trabalhadores europeus, o programa tecnológico dos transportes e comunicações, contam – se ainda, entre as causas determinantes dessa nova economia em germinação. Evidentemente que estes processos haveriam de repercutir, sob a forma de conflito, na linguagem dessa sociedade em formação e se entenda aqui linguagem no seu duplo aspecto; de meio técnico, ao nível da infra-estrutura produtiva, sujeita aos progressos da técnica; e-na obra de arte dada – de manifestação da superestrutura ideológica. Se é verdade (...) que os estratos mais altos da população urbana estavam formados, na sua grande maioria, por membros das grandes famílias rurais, (...) a mesma análise também nos elucida que o surgimento de um processo de urbanização, ao lado da oligarquia de base latifundiária (...), constitui – se num primeiro fator de instabilidade que, paulatinamente, através do fenômeno da massificação, desenharia o conflito fundamental ”entre as massas urbanas, sem estruturação definida e com liderança populista, e a velha estrutura de poder que controla o Estado” (CAMPOS, 1966, p. 8). Atingidas nas suas estruturas literárias e políticas pelo Modernismo e pela Revolução de 30, as forças conservadoras recompõem-se a partir de 1937, com o Estado Novo, em termos, porém, mais condizentes com a substância dos novos tempos, marcados pela industrialização, urbanização e massificação em processo. No plano literário, ocorre um fato significativo: é a substituição do livro - que até aquele momento servira de suporte da visão eufórica – pelo rádio, manifestando, por um lado, sintomas da crise na aliança entre o poder político e os movimentos literários, e por outro, a adesão incipiente do poder à cultura de massa. Em outros termos: se antes era possível perceber uma ligação entre o poder político, a visão utópica e os movimentos literários – Barroco, Romantismo e Parnasianismo - a partir do Estado Novo, o poder ascendente vai tomar como veículo menos o livro do que o rádio, cujo traço relevante é a oralidade. Fator determinante dessa modificação no plano literário é uma mudança no plano político: ao regime parlamentarista do Império e ao regime formalmente liberal da República Velha sucede um Estado totalitário, segundo as tendências desenvolvidas em Roma e em Berlim. Esse regime autoritário substitui a ligação mais ou menos direta que existia na Colônia entre a camada dominante em formação e as academias barrocas; no Império, entre o poder político e o Instituto Histórico; e na República Velha, entre as oligarquias e a Academia Brasileira de Letras – por um órgão oficial, dotado de incumbências prescritas pela ditadura. É então que surge o famigerado DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – não mais próximo da estrutura de poder, como as entidades anteriores, mas sim fazendo parte dela. Durante o Estado Novo, o DIP desempenha uma dupla função no que tange à produção cultural: a primeira é a de obstar e reprimir a transmissão de mensagens que manifestem resistência ao poder, impedindo – as de serem veiculadas, sobretudo pelo rádio; a segunda, a de interferir direta ou indiretamente no próprio processo de produção de cultura e de notícias, tornando-as extensões do poder. Sua dupla função censória e apologética pode muito bem ser observada, por exemplo, R G L, n. 5, jun. 2007. 129 na música popular, criada durante o Estado Novo. Do exercício da censura resta hoje como testemunha e parceira do DIP o samba de Ataulfo Alves O Bonde de São Januário, cuja letra original era a seguinte: O Bonde de São Januário Leva mais um sódio otário Sou eu que vou trabalhar Entendendo a composição como um samba que “promovia” a vadiagem, e não o trabalho, talvez segundo aquele slogan nazista de que o “trabalho liberta”, o DIP reescreveu-a. As influências estimuladoras do DIP sobre a visão eufórica evidenciam-se no surgimento da tendência chamada “samba-exaltação”, no âmbito de nossa música popular, cujo exemplo mais conhecido é Aquarela do Brasil de Ari Barroso, gravada em 1939. Ao lado dessa tendência surgem também hinos, gravados por cantores populares, com a intenção de louvar a tranqüilidade do Estado Novo, podendo ser lembrado aqui aquele de Benedito Lacerda e Aldo Cabral: Brasil és do teu berço dourado O índio civilizado E abençoado por Deus Brasil gigante de um continente És terra de toda gente E orgulho dos filhos teus ! (NOSSO SÉCULO, 1980) Na letra dessa música, é evidente a presença de alguns estilemas, que já vimos em momentos anteriores da visão apoteótica, como as menções aos “índios”, ao “gigantismo” e à “altura”, correlacionados aqui à pátria, posta sob a proteção divina. O índio estará presente artisticamente ainda na abertura musical de um programa radiofônico que nos parece o exemplo mais ilustrativo do rádio como veículo de mensagem do poder. Referimo-nos à protofonia de O Guarani, de Carlos Gomes, indicadora até recentemente do início, às 19 horas, do programa A Hora do Brasil. O programa A Hora do Brasil foi criado pelo DIP durante o Estado Novo para levar aos “públicos normais” a fala do poder autoritário. Essa intenção real, que preside à elaboração e orienta a difusão, aparece, porém, dissimulada e camuflada na denominação. A expressão concisa A Hora do Brasil manifesta, num nível aparente, que o momento do programa radiofônico não é o do Estado getulista, mas sim o do Brasil, isto é, da nação brasileira. Se, na verdade, A Hora do Brasil indicasse o que realmente diz, o programa radiofônico deveria compor-se de um conjunto de vozes em que se incluiriam enunciados de apoio ao poder político e, ao mesmo tempo, de crítica a ele, refletindo, assim, a coralidade de vozes da realidade nacional. Mas, por sua condição de produto radiofônico criado pelo DIP, ele não é, na verdade, como se pretende e promete ser, a expressão de consonância e dissonâncias – e sim a expressão solitária e única da hora do poder autoritário, que se apropriou do poder político e da nação pelo golpe de 1937. Nele, tem-se, assim, a hora do 130 totalitarismo que se apresenta, porém, com a pretensão de totalidade, como é típico das ideologias autoritárias. Desse modo, quando no Brasil começam a se fazer sentir as pioneiras modificações (resultantes dos processos de industrialização, de urbanização e de massificação), surge uma modalidade de regime autoritário moderno, que principia a deslocar a ligação tradicional entre a visão eufórica, a literatura e o livro para uma outra conexão, agora, entre aquela visão, o rádio, a publicidade política e uma tendência da canção popular, submetendo-as aos rigores da censura e a uma produção vinculada ao poder, que objetiva levar sua propaganda aos “públicos normais”. Mas a incipiente ruptura entre o poder político e o poder literário não pode ser vista unilateralmente, isto é, como emanada só do oportunismo do poder político. A “literatura literária” também tem um papel importante nesse afastamento, na medida em que ela, a partir do Modernismo, tende, por um lado, a se imbuir cada vez mais de uma visão crítica do poder político, denunciando-o, e à visão apoteótica a ela ligada; por outro, à uma consciência maior do poético tido como incompatível com o poder político. Isso vem corroborar as idéias de Hans Magnus Enzensberger em seu livro Poesia e Política, no tópico em que trata do “elogio aos donos do poder”, enfatizando o pólo oposto: O fim do elogio ao soberano, que é um dos fenômenos políticos extremos em poesia, rejeita qualquer explicação a partir do político, da psicologia ou da sociologia.Trata – se de um fato objetivo: a linguagem poética repudia aquele que a quer usar para cantar o nome dos soberanos.O motivo desse repúdio não está situado fora da poesia, mas sim no seu próprio interesse (ENZENSBERGER, 1962, p. 126). Portanto, a partir do Modernismo e do Estado Novo ocorre, quer por fatores de ordem política, quer por fatores de ordem poética, ou ainda pela convergência de ambos, uma ruptura na aproximação e mesmo entre poder político e poder literário, a qual me parece de difícil restauração, pelos interesses antagônicos de cada um. O Estado continuou na tentativa de falar aos “públicos normais”, enquanto a literatura, ao mesmo tempo em que se afasta do Estado, permanece com maior dificuldade para atingir esses mesmos “públicos normais”, em razão de sua maior depuração estética. A visão eufórica entre 1968 e 1974 O ano de 1945 marca no Brasil o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e o começo de uma tentativa de democracia liberal. Nesse período, após a Segunda Guerra Mundial, principia a se definir melhor uma visão crítica da realidade nacional, que ultrapassa a tendência crítica, originada com a Ilustração do século 18 e prosseguida no Realismo do século 19. É a consciência de que o Brasil é um país subdesenvolvido, a qual ganha maior consistência a partir do governo Juscelino Kubitschek (1956-1960). Essa consciência posiciona-se radicalmente contra a visão apoteótica ou eufórica da realidade natural e humana, marcada pela consciência amena do atraso. R G L, n. 5, jun. 2007. 131 A consciência catastrófica do subdesenvolvimento significa uma mudança de perspectiva que impôs a realidade dos solos pobres, das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, de sua incultura paralisante. A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro (...). Mas, em geral, não se trata mais de um ponto de vista passivo. Desprovida de euforia, ela é agônica e leva à decisão de lutar, pois o traumatismo causado na consciência pela verificação de quanto o atraso é catastrófico suscita reformulações políticas. Nesse sentido, “o gigantismo de base naturista” aparece então na sua essência verdadeira como construção ideológica transformada em ilusão compensadora (CANDIDO, 1963, p. 9 ). No princípio da década de 1960, os portadores de visão crítica empenham-se em tornar viável politicamente seu projeto, tendo como resposta da camada dominante e dos setores sociais a mobilização de um movimento militar, que se apossa do poder no segundo trimestre de 1964. Novamente parece-nos repetir-se aqui o caso paradigmático de 1822: os agentes sociais, portadores de visão crítica, movem a história nacional, mas a camada dirigente, imbuída de uma visão apoteótica, retém o poder no momento decisivo. Acompanhar o período que vai de 1964 até 1974 é observar o embate entre o direito e o avesso das duas visões e das duas concepções do Brasil: a de “país novo” e a de “país subdesenvolvido”. Quanto aos “donos do pode”, eles reeditam, sobretudo no período que vai de 1968 a 1974, certos desempenhos que caracterizam a competência da visão apoteótica. De tendência modernizadora, como fora no princípio da República Velha, a camada dirigente nada mais faz do que ajustar a visão apoteótica às circunstâncias do tempo presente, elaborando dois mitos: o do Brasil – potência, reatualização moderna e disfarçada do Velho mito do “gigantismo de base naturalista”; e o da “segurança e desenvolvimento”, reescritura do velho lema positivista da “ordem e progresso”, inscrito na bandeira nacional. No processo de difusão de suas mensagens, os “donos do poder” passam a explorar intensamente a televisão, o novo veículo de massa, implantado no País, em 1950, e que se expande por todo o território nacional na década de 1970, graças à infra- estrutura fornecida pela Embratel, empresa oficial de telecomunicações. A Embratel permite a difusão ampla das potencialidades verbais e não-verbais da televisão, vindo ela a desempenhar, sobretudo no qüinqüênio do General Médici (1969–1974), as mesmas funções que o rádio desempenhou no Estado Novo. As tarefas de censura e de apologia, outrora assumidas pelo DIP, desmembram-se agora em novos órgãos: a função censória fica confinada a órgãos criados para esse fim, enquanto a função de promover o ufanismo é atribuída a AERP, Assessoria Especial de Relações Públicas, órgão subordinado ao poder executivo, e gênese da SECOM (Secretaria da Comunicação) e da Agência Brasileira de Notícia. Enquanto a censura corta, mutila e dificulta o acesso à televisão por parte da visão crítica, a AERP produz séries ou usa anúncios, slogans e jingles publicitários, para transmitir a visão eufórica, com uma imagem esteticizada da mercadoria-Brasil. Essa imagem 132 positiva e ufanista gira em torno de que “segurança” é a base do desenvolvimento, isto é, do Brasil-potência, sendo um dos sintomas a ocorrência de um chamado “milagre econômico”. Embora não produzidos diretamente pela AERP, dois textos do período testemunham bem o espírito imperante entre 1968 e 1974. Um é a canção Eu te amo, meu Brasil, de Don, em vinil gravado pelos Incríveis, de que se dá aqui um trecho: Eu te amo meu Brasil, eu te amo Meu coração é verde, amarelo, branco, azul, anil Eu te amo meu Brasil, eu te amo Ninguém segura a juventude do Brasil (...) (NOSSO SÉCULO, 1980) Outro é o texto de Miguel Gustavo, composto inicialmente como jingle publicitário, que se transforma em hino, quando do sucesso futebolístico do México em 1970: Noventa milhões em ação Pra frente Brasil do meu coração Todos juntos, vamos Pra frente Brasil Salve a seleção De repente é aquela corrente pra frente (...) (NOSSO SÉCULO, 1980) Assim, naquele período, a televisão desempenhou um papel fundamental como veículo das mensagens do poder, atingindo, com seus recursos verbais e não-verbais, altamente envolventes, os “públicos normais”, carentes, no geral, de consciência crítica por razões de ordem histórica e, por isso, com dificuldades para desvendar, sob a aparência ufanista, os reais interesses que a publicidade e a visão eufórica encobriam. Se o primado na difusão das mensagens do poder, é dado à televisão, nem por isso outros veículos são ignorados. Logo após a televisão coloca-se o rádio. Desde os fins da década de 1960, o rádio sofre modificações significativas, resultantes das contribuições da tecnologia, com o transistor, o circuito integrado e a pilha. Esses elementos provocam um barateamento acentuado do veículo, decorrendo daí a expansão de seu consumo, sobretudo pelas camadas populares, compostas por indivíduos de poucas letras e analfabetos. O regime autoritário não ignora esse fato. Submete o rádio à mesma censura da TV, proibindo a veiculação de mensagens contra-ideológicas, ao mesmo tempo em que o transforma também em suporte das suas mensagens. Talvez o exemplo mais significativo do atrelamento do rádio aos desígnios do poder autoritário se possa encontrar nas modificações sofridas pelo programa oficial A Voz do Brasil, que não deixou de existir com fim do Estado Novo. O poder autoritário procede a uma substituição da velha estrutura do programa radiofônico por uma estrutura nova, mas ajustada ao momento. Essas modificações começam pela abertura do programa, em que R G L, n. 5, jun. 2007. 133 a protofonia de O Guarani, de Carlos Gomes, cede lugar aos acordes iniciais do Hino da Independência, com sua irônica exaltação da liberdade. O programa deixa de ser só A Voz do Brasil, com o adendo a ele da expressão “com o Jornal Nacional”, significando que ele é ao mesmo tempo “voz e jornal” do País, ou melhor, do poder autoritário. O programa propriamente dito abre-se agora com manchetes, desenvolvidas a seguir sob a forma de notícias. No governo Médici apresentou também um editorial abolido mais tarde. Uma outra modificação é a inclusão de um segmento final, a cargo do aviltado poder legislativo, com notícias e discursos parlamentares. Na sua nova função, o programa, sem perder os traços essências de sua origem, pretende-se mais dinâmico e menos cansativo. No período de autoritarismo mais ostensivo, isto é, entre 1968 e 1974, todos os outros veículos – jornais, cinema, livros - sofrem também restrições da censura e as funcionalizações para a transmissão das mensagens do poder, não, porém, talvez na intensidade do rádio e da televisão, em razão possivelmente de não atingirem a quantidade de “públicos normais” por estes alcançados. A visão apoteótica elaborada pelo regime autoritário instituído a partir de 1964 permanece até 1984 na “fala do poder”, caracterizando-se, porém, a partir de 1974, por um modo de manifestação menos ostensivo, correlato ao implicitamente maior do autoritarismo. Sua forma evidencia-se nos slogans e mensagens publicitárias que invadem o vídeo e o rádio nas datas significativas da nacionalidade ou naquelas consideradas como tais pelo poder. Tanto nas fases mais explícitas de autoritarismo quanto nas menos ostensivas, a publicidade governamental apresenta alguns traços invariáveis: a elaborada técnica na exploração dos recursos verbais e não-verbais com o objetivo da persuasão; a ênfase dada ao mito do Brasil/potência; a busca de despertar o otimismo e de suscitar a crença nos condutores do país. Com relação à visão apoteótica das fases anteriores, observam-se agora mudanças aparentes e reais. Mudança aparente ocorre, por exemplo, no disfarce do “gigantismo de base naturista” sob a forma do mito do Brasil/potência, deslocando para um plano implícito a natureza e pondo em primeiro plano a indústria de base ou a natureza domada pelas hidroelétricas. Dentro dessa mesma linha de disfarce do velho sob a forma do novo, pode-se lembrar a reescritura, já mencionada, do lema positivista “ordem e progresso”, inscrito na bandeira, sob a forma de “segurança e desenvolvimento”. A mudança real pode ser vista, por exemplo, no abandono da velha conexão entre “tendência genealógica” e indianismo, evidente na substituição de O Guarani pelo Hino da Independência na abertura do programa Voz do Brasil. Aliás, esse fato parece indicar que o indianismo, um dos fortes suportes tradicionais da visão apoteótica do País, encerrou seu ciclo como tal. Contribuiu para a sua morte, menos a exaustão de um tema do que o despertar da consciência reivindicatória dos remanescentes das antigas tribos. Hoje, os índios, com sua postura agressiva e seus gravadores, a defender seus interesses contra a exploração de que têm sido vítimas ao longo de nossa história, caracterizam-se por uma consciência crítica, não se prestando passivamente à manipulação da 134 camada dirigente. Esta lhes responde matando o mito que durante séculos elaboraram e exploraram. A crise do mito indianista afeta, por conseguinte o vezo genealógico das famílias tradicionais pela ligação que entre eles se inventou. Influi, ainda, nesse processo de decadência genealógica, o surgimento, com a industrialização, de uma camada dominante cuja ascendência remota são os imigrantes que para cá vieram em grande massa desde o fim do século XIX. Tudo isso não passou despercebido ao regime autoritário, que arquivou a “tendência genealógica”, inventada pela historiografia barroca. Tal fato, porém, não excluiu o aparecimento dela sob outra forma. O avesso dessa visão eufórica, com dados novos ou aparentemente novos, é constituído pelas manifestações críticas orais e práticas, todas imbuídas, em grau menor ou maior, da consciência do subdesenvolvimento do País. Elas se empenham, por um lado, na luta contra a perpetuação do regime autoritário e de sua visão apoteótica, por meio do desnudamento de nossas carências reais, e, por outro lado, na difusão e na propagação de sua visão crítica, denunciando as barreiras que buscam impedir que ela atinja “os públicos normais”. Conclusões 1- Na análise do processo de formação e desenvolvimento da visão eufórica ou apoteótica da realidade natural e humana do Brasil, procuramos definir algumas de suas características, por meio da análise de momentos significativos, em que seus traços aparecem mais ostensivamente, desde o período colonial até a atualidade. Esses momentos importantes não significam que nos períodos intervalares a visão eufórica tivesse deixado sua vinculação com o poder político. Pelo contrário: ela permaneceu ligada a ele, manifestando-se, porém, de maneira menos ostensiva. Com relação a esses momentos significativos, pretendeu-se ainda ter demonstrado que eles ocorrem sempre que as forças sociais, portadoras da visão crítica, buscam acelerar o processo histórico em direção aos interesses mais gerais da sociedade brasileira, obtendo como resposta às ameaças aos donos do poder, a instauração de um regime de caráter mais autoritário do que aquele que ocorre nos períodos intervalares. 2- No estudo desses momentos significativos da visão eufórica, pretendemos ter deixado claro o seguinte: 2.1- a instância produtora da visão apoteótica da realidade brasileira tem sido ao longo de nossa história a camada dirigente. No período colonial, ela foi gerada inicialmente pelos “donos do poder” metropolitano, sendo herdada, no processo de emancipação política, pela camada dominante colonial, que estruturou e organizou o Estado nacional em função dos seus interesses, permanecendo essa estrutura em sua essência até hoje; 2.2- no curso de nossa história, “os donos do poder” procuraram sempre encontrar os meios necessários para promover uma estetização da mercadoria Brasil. Até 1930, eles R G L, n. 5, jun. 2007. 135 estiveram ligados a três movimentos literários - o Barroco, o Romantismo e o Parnasianismo - , deles recebendo os recursos para a construção da visão apoteótica, ajustada ao momento histórico. Nesses diferentes momentos ampararam-na, direta ou indiretamente, instituições culturais, mantendo com elas uma troca de serviços, como as realizadas com as Academias barrocas no século XVIII, com o Instituto Histórico no Império e a Academia Brasileira de Letras na Primeira República. Com o desenvolvimento paulatino do processo de industrialização, urbanização e massificação desde o princípio do século 20, de que são sintomas o Modernismo de 1922, no plano literário, e a Revolução de 30, no plano político, ocorre uma crise na aliança tácita entre o poder político e o poder literário, decorrendo daí um paulatino afastamento recíproco entre os dois poderes. A camada dirigente cria, a partir de 1937, dentro da própria estrutura de poder, órgãos com função de censura a difusão da visão crítica e ao mesmo tempo de promover a elaboração da visão eufórica. Concomitantemente à dissociação entre os dois poderes, tem lugar a substituição do livro, como suporte de mensagem do poder político, pelo rádio inicialmente e mais tarde pela televisão, os quais são submetidos à vigilância constante nos momentos de autoritarismo mais ostensivo, pela sua condição de concessão do Estado. Na elaboração da propaganda do poder político, esses órgãos, ao promoverem a euforia, se apropriam dos recursos da função poética, enquanto esta sofre na “literatura literária” um processo cada vez mais acentuado de depuração, rebelando-se na estrutura contra aquela perversão; 2.3- nesse processo de aliança até mais ou menos 1930, e de crise a partir de então, entre os dois poderes, desempenham também papel relevante os traços negativos dos “públicos normais”, a saber, a oralidade, o analfabetismo e no caso dos alfabetizados, o parcimonioso domínio das letras e o pouco hábito de leitura, de que resulta seu baixo nível de criticidade. Tal fato não foi ignorado pelos “donos do poder”, responsáveis por tal situação dos “públicos normais”, o aparecimento dos veículos de massa, como o rádio e a televisão, dos quais se apropriaram e delegaram a membros da classe dominante para explorá-los. Com isto, o livro, relegado a segundo plano, permaneceu suporte quase que exclusivo do contra poder crítico. 3- Quanto às características da visão eufórica ou apoteótica, procuramos mostrar que: 3.1- tradicionalmente ela apresenta uma visão deslumbrada da terra, fundada no “gigantismo de base naturista” com sua fórmula de “terra bela-pátria”. Seu outro traço é a “tendência genealógica”, a qual inventou uma nobreza nacional, com a criação artificial de uma união monogâmica entre ascendentes masculinos remotos das famílias importantes da colônia e elementos femininos de uma inexistente nobreza indígena. Seu terceiro traço é a exploração da idealização do índio; 3.2- esses suportes tradicionais permaneceram arraigados até mais ou menos 1930, quando começam a entrar em crise. O indianismo, preservado até a primeira metade do século 20, entra em rápido processo de decadência a partir de 1964, por diversos fatores, sobretudo pelo surgimento de uma aguda consciência crítica e reivindicatória por parte dos poucos remanescentes das antigas tribos. A tendência genealógica sofre forte abalo 136 também não só pela crise da idealização do índio, mas também pela ascensão à camada dominante dos descendentes dos imigrantes. Esse processo de cessação da função ideológica do indianismo e da “tendência genealógica” faz-se acompanhar pela metamorfose do “gigantismo de base naturista” no mito do Brasil-potência, instaurado sobretudo a partir de 1964; 3.3- uma tração permanece, porém, inalterada: é o otimismo ingênuo que a visão apoteótica pretende insuflar, com o correlato anseio de promover a crença na camada dirigente, buscando transformar o monopólio do poder político em delegação à camada dominante da função de dirigir os destinos da nação, sem participação popular. 4- Com relação à visão crítica da realidade nacional, seu tratamento aqui foi limitado, por a termos tomado como fornecedora de subsídios para a compreensão da visão apoteótica. Apesar disso, creio ter deixado claro que sua gênese está na Ilustração do século 18 e começo do século 19, quando desempenhou o papel mais importante na luta contra a dependência colonial. Manifestou-se depois, de modo agressivo, na luta contra a escravidão e a monarquia, sob a égide do realismo. Teve um papel capital na Revolução de 30 e, depois, no período entre 1960 e 1963, quando mais uma vez foi reprimida em seus anseios de realizar seu projeto político. Permanece na denúncia dos traços autoritários do regime, na luta pela democratização e pelas conquistas populares. Referências bibliográficas BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970. CAMPOS, Haroldo. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas O Andrade.São Paulo: DIFEL, 1966. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 3. ed. São Paulo: Nacional, 1973. _______. Literatura e consciência nacional. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 158, p. 8-11, dez/1968. _______. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento, Rio de Janeiro, n.1, p. 7-23, 1973. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. 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In its 11 editions, between 1992 and 2002, the Vôte magazine! divulged the literary and cartoonists local production. If, on the one hand, this position takes care of to the project to give to know the regional artists to the inhabitants of the State, for another, restricts its reach. The proposal of this work is to proceed to an analysis of the trajectory of this publication, on the basis of references supplied theoretician P. Bourdieu, with the objective to subsidize the research on the constitution of the literary field in Mato Grosso and Brazil. Keywords: literary field, Vôte! magazine, Mato Grosso Em entrevista concedida em 1986 à revista Contato, Wlademir Dias-Pino, ao fazer um pequeno levantamento histórico de publicações literárias que haviam circulado em décadas anteriores em Cuiabá, apontava para a ausência de um canal que possibilitasse a escritores locais tornarem públicas suas produções. Para Dias-Pino, isso era um fator impeditivo da informação, inviabilizando, por conseguinte, a criação artística. Embora houvesse espaços oficiais que “amparassem” produções culturais, como as secretarias de Cultura do Estado e do município de Cuiabá, o Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso, não havia, naquele momento em Cuiabá, uma revista, um jornal, voltados para a divulgação da literatura produzida pela nova geração de escritores, o que limitava bastante sua circulação. De certo modo, o entrevistado falava de um mundo que lhe era familiar. Wlademir Dias-Pino, junto com Silva Freire, produzira a revista O arauto da juvenília no final dos anos 40, e, junto com Rubens de Mendonça, a revista Sarã. Também na década de 40, dirigiu o jornal Saci (DALATE 2005, p. 11). Além disso, entre 1950 e 1951, junto com o poeta Geraldo Dias da Cruz, participou do Movimento Igrejinha, que resultara na criação de uma editora com o mesmo nome. A publicação da produção intelectual na imprensa vai além da “informação” apontada por Dias-Pino; ela é importante para o autor formar seu público. Na literatura brasileira, muitos são os exemplos de escritores iniciantes que se consagraram graças esta prática. Na década de 80, havia três jornais diários em Cuiabá: Diário de Cuiabá, O Estado de Mato Grosso e O Dia. Cuiabá tinha então, segundo o censo de 1980, uma população de 212.980 habitantes, e o Estado possuía 1.138.918 habitantes (IBGE). A circulação dos jornais era restrita à Baixada Cuiabana. Estes, embora tivessem um caderno de variedades, não disponibilizavam espaço para canalizar a produção literária no Estado. Desses três jornais, O Estado de Mato Grosso e O Dia já deixaram de circular. Nesta mesma década, surgiram dois novos jornais em Cuiabá – A Gazeta e a Folha do Estado. Entretanto, embora ambos tenham também um caderno de “variedades” em que veiculam R G L, n. 5, jun. 2007. 139 notícias desde gastronomia a lançamentos do cinema, passando por literatura e artes plásticas, nenhum dos dois contempla um espaço específico para a discussão e crítica da produção editorial. No máximo, uma matéria acerca do lançamento do livro, geralmente com apoio da assessoria da editora ou do próprio autor, sem que haja uma discussão ampliada. A falta de crítica literária, de repercussão e de discussão acerca de livros lançados no Estado têm sido uma das queixas do presidente da Academia Mato-grossense de Letras, Carlos Gomes de Carvalho. A ausência de polêmicas literárias por meio da imprensa é apontada por Carvalho como um dos motivos da circulação restrita da produção editorial entre nós. O quadro de desalento na literatura apontado por Wlademir Dias-Pino vai se modificar nos anos 90, a partir de dois acontecimentos na vida cultural do Estado: uma exposição e uma publicação. Em 1991, uma exposição de quadrinistas organizada pelo grupo que se faria presente depois na Vôte! – Wander Antunes, Gabriel de Mattos e Joaquim Giovani - permitiu o intercâmbio de diferentes artistas do Estado e rompeu um ciclo de isolamento em que, como aponta Mattos, cada um considerava-se “o único quadrinista do estado”. A publicação refere-se à revista Gonçalinho que, se não chega a dinamizar o ambiente literário, ao menos permitiu ao editor da revista, Wander Antunes, ter a percepção da necessidade de ampliar a possibilidade dos artistas divulgarem a produção, haja vista a quantidade de material a que passou ter acesso. A partir da revista destinada ao público infanto-juvenil, que além de HQ também publicava contos, Antunes foi “descobrindo que tinha gente escrevendo, gente desenhando. E se tivesse uma revista que desse conta de mostrar isso!?” Essa revista era a Vôte!. É preciso atentar para o título da revista. Segundo Maria Francelina Drummond, “vôte!” é uma interjeição do linguajar cuiabano que pode indicar espanto ou repulsa, conforme a entonação dada pelo falante (DRUMMOND 1995, p.46). De nossa parte, sabemos que é usada em vários estados da região centro-norte do país e, provavelmente, no norte de Minas Gerais, pois aparece em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, de onde se conclui que não se trata de uma exclusividade da língua local, contudo, seu emprego remete a uma tentativa de regionalização. Embora a revista surja sob este signo, _ Aclyse de Mattos informa que ela fala de Cuiabá, “mas não só de Cuiabá, mas dos cuiabanos”_, a partir de edições seguintes foi diversificando esses objetivos. Em editorial da quinta edição, Antunes irá escrever: “em nossas páginas não há compromisso com o regionalismo ou com uma temática específica. Toda expressão vale a pena e tem espaço garantido na Vôte!”. A produção local tem, pois, uma proposta ampliada, o que se comprova ao examinarmos o conteúdo e a linguagem empregados em suas edições. Contudo, embora negasse o “regionalismo”, sinalizava para a afirmação de uma literatura que se produzia aqui, portanto, trazia evidentes os traços locais - e a revista seria catalisadora disso. No editorial da primeira edição, intitulado “Vôte!”, o autor brinca com o título e seu significado e as propostas da revista: 140 Uma revista em Cuiabá com quadrinhos, ficção e poesia? É isso mesmo. Falam que Cuiabá não tem memória, que o Brasil não tem memória e, no entanto, artistas, escritores, poetas e desenhistas estão aí criando e contando, produzindo e resgatando nossas memórias. Vôte!, então história em quadrinhos também é memória? Sim. E a Vôte! traz duas HQs que retratam a história de Cuiabá por Moacyr de Freitas e a arquitetura antiga do casario e da Prainha por Gabriel de Mattos, numa história de igreja, enterro e ouro. Outra história ambientada em Mato Grosso é a de Joaquim Giovani, que mistura a Chapada dos Guimarães com erotismo e ficção científica, ETs e tuiuiús. Vôte! Uma revista inteirinha falando de Cuiabá? Sim. Mas não só de Cuiabá, mas dos cuiabanos, o que eles fazem e inventam. (...) (...) Muita gente ainda tem muita coisa boa para mostrar. Humor. Ilustração. História. É só colocar o bloco na rua, a boca no trombone e a produção para rodar na Vôte!. Sem medo. Porque, afinal a primeira reação é sempre de surpresa Vôte! Ainda bem. Neste momento, a revista catalisa discussões em vigor no meio acadêmico: o tombamento do Centro Histórico da capital, o registro de sua história, o misticismo de Chapada dos Guimarães e a valorização do linguajar local são elementos que contribuem para a construção de uma identidade cuiabana. O primeiro número da Vôte! teve distribuição gratuita e restringiu-se ao público universitário, os números 2 e 3 passaram a ser vendidos em bancas de revista e livrarias. Segundo Antunes, a opção por vender a revista atendia às exigências de mercado, uma vez que livreiros e donos de bancas precisavam de um incentivo financeiro para disponibilizar espaço em seus pontos de venda. Também, a circulação em outros espaços que não a universidade visava a buscar leitores que estivessem fora do meio acadêmico, e, de certo modo, ampliar o público leitor da produção local. Ampliar o público leitor é uma busca de todos os editores. Monteiro Lobato, quando adquiriu a Revista do Brasil, em 1918, não tinha outro objetivo; tanto que se utilizou do espaço da revista para fazer propaganda dos livros que editava na Monteiro Lobato & Cia. Para além do interesse próprio, Lobato acreditava que só a cultura letrada poderia tirar o país do atraso em que se encontrava. Assim, empreendeu uma verdadeira cruzada para melhorar as condições de distribuição do livro de modo a torná-lo mais acessível à população. “Nós precisamos entupir este país com uma chuva de livros”, escreve, em 1915, a Godofredo Rangel (LOBATO 1951, p.7). Mas, ao contrário da empreitada lobatiana, cujo êxito resultou no aumento do capital simbólico (Cf. BOURDIEU 2005) do autor, a Vôte! não atingiu este objetivo. Quando a revista parou de circular, Antunes concluiu: Os dois mil exemplares que fazia na Vôte! falavam só com dois mil leitores que eram assim, universitários. Eles distribuíam na UFMT, aí um amigo lê fora, na UNIC, distribuía. Em alguma medida você falava com um público que já sabia dessa literatura e tal. Ótimo, é bom alimentar esse público. Mas a gente não conseguiu ampliar. Aí tinha um problema, na minha opinião. A ampliação do público não estava acontecendo. Isso é um problema, porque você vai ter aquele grupo que conhece, que vai continuar conhecendo e promovendo isso, mas um grupo restrito, com alcance restrito. R G L, n. 5, jun. 2007. 141 A revista Vôte! nº. 2 chegou às bancas em dezembro/janeiro de 1993. Em editorial, Aclyse de Mattos ressalta a boa receptividade da revista e enfatiza que a nova gestão da Universidade Federal, em nome da reitora, “assumiu de pronto a semente iniciada na gestão anterior”. Como novidades, a revista traz um conselho editorial com três nomes que merecem uma pequena observação. Júlio De Lamônica Freire (Coordenador de Cultura da UFMT) é apontado por Antunes como um dos grandes incentivadores para que o projeto da Vôte! se realizasse. Desta forma, sua presença no Conselho extrapola o mero apoio dado à viabilização financeira da revista, por meio do uso do parque gráfico da UFMT, ela torna a Universidade co-partícipe da seleção de autores e textos a serem veiculados e as inferências daí possíveis. Os outros dois nomes são de escritores relativamente consagrados entre o público local: Ivens Cuiabano Scaff, conhecido por suas participações regulares na revista Gonçalinho e na Revista da Criança e Rômulo Carvalho Netto que fora, na primeira metade da década anterior, membro do Conselho Editorial da Universidade, tendo 5 livros lançados pela UFMT. Outro ponto a ressaltar refere-se ao espaço que a revista abria, a partir deste número e se estenderia aos números seguintes, à publicidade. A publicidade tem papel relevante na edição da revista, porquanto injeta dinheiro no projeto, o que permite ampliar o número de exemplares. Nessa primeira fase, excetuada a primeira edição, em que os custos de produção foram divididos entre Wander Antunes e gráfica da UFMT, foi o apoio da iniciativa privada que viabilizou a publicação da revista. Apesar do aporte financeiro, a revista continuou sendo impressa na gráfica universitária, de onde se conclui que havia um trabalho de parceria. Os espaços sociais e comerciais ocupados por Antunes certamente foram relevantes para que uma rede de supermercados local investisse em anúncio na revista. Seus proprietários, vindos do Paraná, procuravam elementos culturais que identificassem o investimento com a população local. Por traz das relações identitárias há, também, os interesses comerciais, isto é, ser aceito pela comunidade, agradar, e assim vender mais. Além desse anunciante, na edição de nº 2 anunciavam também a Secretaria de Estado de Educação e a Livraria Janina. Além, claro, do anúncio da casa, a ZHQ Projetos e Produções. A revista Vôte! de nº 3 saiu em fevereiro/março de 1993 e traz algumas alterações em relação ao número anterior. Uma delas é no Conselho Editorial, agora integrado por Aclyse de Mattos, Ivens Cuiabano Scaff, José Manoel Marta, José Pedro Gonçalves, Júlio De Lamônica Freire, Rômulo Carvalho Netto e Yasmin Jamil Nadaf. Outra mudança aparece também no expediente da revista. Nele consta que a “Vôte! é uma publicação bimestral da ZHQ Projetos e Produções”, diferente da nº 2, em que a publicação era da UFMT. Agora, a Universidade entra apenas com o apoio, por meio da Coordenação de Cultura. Embora na revista não conste, é possível deduzir em decorrência da entrevista com Antunes, que nesta revista de nº. 3 foi efetuada apenas uma correção. A Vôte! não era uma revista da UFMT, mas de um grupo de jovens escritores que gravitavam em torno das ousadias editorias de Wander Antunes e da ZHQ Projetos e Produções. A Universidade entrava apenas com o 142 apoio, e claro, com tinta, equipamentos etc. Nesse número a revista inaugura um espaço chamado “Vôte! Postal” destinado a cartas de leitores. É possível observar neste quadro a aceitação da revista junto a escritores e quadrinistas iniciantes, que vislumbram no periódico a possibilidade de publicar seus trabalhos. A aceitação da revista não se evidencia apenas pelas cartas dos leitores, mas por um dado de valor econômico. Agora são cinco os anunciantes da revista. O aumento do número de anunciantes possibilita, como já colocado acima, um consoante aumento na tiragem. No quadro “Relance Relâmpago” duas notas chamam a atenção. Uma, registra que o poeta Juliano Moreno, que participara da Vôte! nº. 2, vencera dois concursos de poesia no Estado. Nicélio Acácio Silva, que vencera o primeiro lugar num concurso de fotografia, estreava na revista. Outro colaborador da revista, Joaquim Giovani de Souza, ficou em primeiro lugar no Salão Luso-Brasileiro de Arte Sacra, versão 1993, com o quadro a óleo Ressurreição. Ao relacionar colaboradores da Vôte! como vencedores de diferentes concursos, procurava-se legitimar e agregar valor à própria revista. A outra nota digna de registro é assinada por Marinaldo Luiz Custódio, então estudante do oitavo semestre de Letras da UFMT. Após observar que a discussão acerca da inclusão da disciplina Literatura Mato-Grossense nos currículos escolares da rede pública estadual tem envolvido não apenas intelectuais, mas também políticos locais, Custódio constata a inexistência de material sistematizado acerca da literatura local e a quase completa ausência de obras de autores mato-grossenses nas bibliotecas. Embora a literatura já registrasse obras de Rubens de Mendonça, Lenine Póvoas e Sérgio Serejo sobre a produção cultural de Mato Grosso, apenas em 2001 uma obra viria a público dando um novo enfoque sobre a produção literária local. História da literatura de Mato Grosso: Século XX, de Hilda Gomes Dutra Magalhães, faz uma avaliação bastante rigorosa e didática sobre a produção literária mato-grossense. Seguindo a mesma tendência, outra obra da autora seria publicada pela EdUFMT : Textos de autores mato-grossenses: Século XX (coletânea). A despeito das publicações acima, uma rápida consulta à Biblioteca Central da UFMT permite observar que a ausência de autores mato-grossenses ainda persiste. Os três primeiros números da Vôte! foram impressos com a primeira e quarta capas em cores. A segunda e terceira capas e o miolo em preto e branco. Também é possível observar que o aumento do número de páginas da revista indica que a mesma recebia cada vez mais material para publicar. Ainda é possível deduzir que havia um razoável aporte de recursos financeiros via propaganda, o que permitia cobrir os custos com aumento do número de páginas. Apesar de apenas três números da revista terem circulado, a repercussão já foi o suficiente para que o grupo fosse citado por Álvaro de Moya na obra em que historia os HQs brasileiros e informa que “Gabriel de Mattos e Wander Antunes lideram um grupo de artistas em Cuiabá” (MOYA 1993, p.196). Após estes três primeiros números, a bimestralidade que a revista havia conseguido R G L, n. 5, jun. 2007. 143 nas edições anteriores não pôde ser cumprida. Somente em agosto de 1994 voltaria a circular, acompanhada agora com a expressão junto ao nome Vôte! “Sua revista de cultura”, que, aliás, seria mantida apenas para este número específico. No editorial, o editor geral, Enock Cavalcanti, reafirma a intenção de tornar regular a circulação da revista, fato que, como veremos, não se concretizou. Este novo número foi temático, sobre um episódio que ainda hoje rende teses acadêmicas em Mato Grosso: a derrubada da antiga Igreja Matriz de Cuiabá. Em virtude disso, essa edição recebeu o nome de Dossiê Catedral. A revista passava a ser publicada pela WAP (Wander Antunes Produções), um embrião do que viria a ser a Editora Tempo Presente, em parceria com o GMPA (Grupo Mato-grossense de Propaganda e Assessoria). Não há indicação de apoio da UFMT nesta edição. Como a revista foi impressa em gráfica particular (Gráfica Genus), tudo leva a crer que o grupo buscou outras parcerias para a edição da revista. Entretanto, há que se destacar que a ausência da Universidade ocorre apenas como fomentadora. O espaço de circulação da revista continua o mesmo e os colaboradores têm vínculos com a UFMT, quer seja como professores, quer como servidores, ou ainda como estudantes. No expediente da revista é possível observar uma busca por profissionalização cada vez maior do veículo, por conta da divisão de funções. Foram criadas as seções de Criação e Direção (Wander Antunes), Editor Geral (Enock Cavalcanti), Editor de Quadrinhos (Gabriel de Mattos). O conteúdo da revista refletia bem o meio em que circulava e o possível público leitor. Moacyr de Freitas, Gabriel de Mattos e Rômulo Carvalho Netto acompanhavam a Vôte! desde a primeira edição. Ludmila de Lima Brandão, que estreava na revista, e Júlio De Lamônica Freire, que já compunha o Conselho Editorial de edições anteriores, reproduziram artigos extraídos de suas dissertações de mestrado que seriam publicadas em livros pela EdUFMT. Ricardo Guilherme Dicke, embora já tivesse obras premiadas nacionalmente, iniciava um processo de legitimação junto ao público local, por conta da edição de Cerimônias do esquecimento pela EdUFMT, bem como pelas discussões que sua obra já despertava na Universidade. Dicke seria utilizado inclusive por um dos anunciantes da revista. O Supermercado, que já se apropriara do personagem Gonçalinho criado por Antunes, utilizava-se agora do escritor mato-grossense para ilustrar o seu anúncio e criar traços identitários com a população local. O anúncio identifica Dicke como “um dos nossos melhores embaixadores” e que “fala em sua obra de nossas cidades, nossos costumes, nossa paisagem e, principalmente, de nosso povo”. O anúncio ainda alerta para a necessidade de “ficarmos mais íntimos desse homem”, sugerindo que Dicke é um escritor que deve ser lido e estudado. O anúncio não busca apenas veicular uma marca e evidenciar sua identificação com as coisas e pessoas locais, mas sugere leituras e sentidos de leituras a partir dos elementos que estariam na obra dickeana: a cultura mato-grossense. Mas, como tantas revistas brasileiras, também esta foi marcada por interrupções e 144 retomadas. A partir da edição especial acerca da Igreja Matriz, a revista entraria em stand by, que, em editorial, seria chamado de “longo e tenebroso inverno”, apesar de, ironicamente, no editorial do Dossiê Catedral, o editor geral alimentar a expectativa de circulação regular. E o “inverno”, para uma revista que se propunha bimestral, foi longo, superior a três anos, mais precisamente 41 meses. Apenas em janeiro de 1998 voltaria a circular, agora com o selo Editora Tempo Presente, inaugurando a segunda fase. Para a retomada da Vôte! foi decisivo o apoio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. A retomada com a Lei de Incentivo não significou, necessariamente, garantia de continuidade. Essa segunda fase da revista teve, inicialmente, quatro edições no ano de 1998, garantindo uma periodicidade trimestral nas três primeiras (janeiro, abril e julho) e quadrimestral na quarta (novembro). O patrocínio da revista foi garantido por uma rede de lojas de materiais para construção, que fora anunciante da Vôte! Dossiê Catedral, e era distribuída gratuitamente nas lojas da rede, na Secretaria de Estado de Cultura, na Associação Mato-Grossense de Áudio Visual (Amav), universidades, livrarias, locadoras de vídeo e galerias de arte. Também o leitor do interior poderia receber a revista, desde que enviasse selo e envelope. Os colaboradores da revista continuam basicamente os mesmos, ou seja, poetas, contistas, quadrinistas que gravitam em torno das relações construídas a partir do núcleo formado por Wander Antunes e Gabriel de Mattos. Após esse ano de 1998 de circulação regular, garantida pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura, a revista entraria novamente num processo de interrupção. Desta vez, o período que ficaria sem circular foi menor que o anterior, mas também bastante extenso, mais precisamente 27 meses. Nesse retorno, duas mudanças marcariam a revista. A primeira delas, e que se estenderia pelas duas próximas e últimas edições, refere-se às seções de fotografia e pintura, que deixariam de existir. No editorial, assinado por Antunes, a opção por contemplar apenas três gêneros: quadrinho, conto e poesia, com uma opção regional explícita: produzidos em Mato Grosso ou para aqueles de qualquer Estado ou país que vivam aqui. A outra mudança refere-se a uma nova seção, destinada ao “resgate dos clássicos da literatura mato-grossense”. O autor escolhido para inaugurar este novo espaço foi José de Mesquita, com o conto Corá. Sobre este novo espaço é possível apontar para dois aspectos significativos. O primeiro deles é sobre os propósitos da própria revista. Vôte! jamais foi uma revista de vanguarda estética. Os contos e poesias publicados caracterizam-se pelo que Wlademir Dias-Pino chamaria de “discursivos”. O traço mais ousado da revista é a sua abertura à pluralidade de gêneros, contemplando HQ, pintura, fotografia, poesia, contos. Tanto que Dias-Pino, reconhecido nacionalmente pela sua participação no movimento da poesia práxis, portanto, um escritor de vanguarda, só apareceria na revista de número 7 da segunda fase, por coincidência, a última. O segundo aspecto decorre do primeiro, ou seja, a pluralidade e a ausência de preocupação com a inovação estética, permitiram o diálogo com escritores do passado, numa clara R G L, n. 5, jun. 2007. 145 e evidente tentativa de se reafirmar e legitimar autores para formar um cânone regional. Não por acaso, o escolhido foi José de Mesquita. De certo modo, isso atendia à demanda por estudos literários mato-grossenses, ainda que a revista não trilhasse os caminhos da crítica literária, o que viria a acontecer no número seguinte. Nesta edição nº. 5, a revista deixa de ter um conselho editorial. A criação e edição é dividida entre Antunes e Heliara Costa. Amauri Lobo é o editor de poesia. Mas voltara a ter preço de capa, R$ 4,00. As novidades da sexta edição em relação às anteriores configuram-se no epíteto que a Vôte! Recebeu, “Revista mato-grossense de literatura”, fato que sinaliza para uma nova opção editorial: a revista deixava de apenas publicar textos de ficção e passava a também veicular a crítica acerca da produção literária em Mato Grosso ou de mato-grossenses. Agora, além de contos, poesia e HQ, a revista traz dois artigos de caráter acadêmico, ambos de professores da UFMT: “Breves comentários sobre uma longa história: uma menina, um lobo e...”, de Mário Cezar Silva Leite, e “Aspectos de uma estética deleuziana”, de Ludmila Brandão. Hilda Magalhães, professora também da universidade, Tereza Albuês, com livro editado pela EdUFMT, e Luciene Carvalho, que participa de livro editado pela EdUFMT, revelam que a revista, mesmo sendo editada sem a ajuda da UFMT, continua inserida na instituição de ensino superior e dialogando com o seu público leitor, basicamente professores e estudantes das áreas, principalmente, de Letras, Artes, História. Entretanto, a maior evidência da presença da UFMT na revista é possível observar no expediente, que informa: “Vôte! está vinculada ao Grupo de Estudos em Cultura e Literatura de Mato Grosso/UFMT”. Outra novidade, é a volta do Conselho Editorial, formado por professores daquela universidade. O financiamento da lei estadual de incentivo à cultura garante a edição da revista. Por essa razão, não há anunciantes. Entretanto, a Vote!, até mesmo como forma de justificar sua proposta, traz, na segunda capa, o anúncio do sítio eletrônico <www.ufmt.br/prosavirtual>, cujo epíteto “um latifúndio aberto e produtivo” revela as intenções ousadas de abarcar toda a produção e discussão literária, “resgatando autores de ontem e abrindo espaço para os novos talentos da literatura mato-grossense”. Na terceira capa, o anúncio de dois livros: A geringonça, de Gabriel de Mattos, e A lenda do Ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo, de Regina Beatriz Guimarães Neto, sendo que o primeiro é uma seleção de contos publicados na imprensa, inclusive na Vôte!. A revista também traz uma pequena bibliografia dos colaboradores dessa edição. A estrutura da Vôte! de nº 7 é basicamente a mesma da anterior. Tanto na questão gráfica quanto no expediente (Conselho Editorial, criação e edição) não há mudanças substantivas. Entretanto, uma nova seção é criada: “Pandora: Dossiê Mato Grosso de Literatura”. O primeiro texto desta seção é “Aspectos críticos da poesia de Wlademir Dias-Pino”, de Sergio Dalate. Observa-se, nestes dois últimos números, uma ampliação das discussões literárias. Sintoma de que já existe uma produção significativa o suficiente para suscitar debates e 146 despertar o interesse de editoras e gráficas locais. Evidentemente, ao se propor analisar determinado escritor, está-se, na verdade, construindo um discurso de legitimação de sua obra. Considerando-se que a circulação da revista ocorre principalmente no meio acadêmico universitário, ampliam-se os órgãos legitimadores de escritores que irão formar o cânone regional mato-grossense e pode significar, senão uma ruptura com a Academia Mato-grossense de Letras, que possui seus próprios meios de legitimar os autores, ao menos um novo olhar sobre a produção literária. A Vôte! morreu. Com essa frase melancólica proferida por Antunes, a revista repetia o percurso de tantos outros periódicos nacionais de literatura e encerrava seu ciclo, que durou dez anos, com interrupções e retomadas, e onze edições. Ao todo, Vôte! teve 322 páginas e publicou, entre outros gêneros, 18 HQs, 27 contos e 29 poesias. Se considerarmos oito edições com dois mil exemplares e três edições com três mil exemplares, chegamos a 25 mil exemplares veiculando a produção local. Mais que uma interjeição do falar cuiabano, nestes dez anos em que circulou, Vôte! foi a publicação que, apesar das interrupções e dificuldades, assumiu a divulgação e o debate da literatura produzida em Mato Grosso neste período. O fim da revista Vôte! aponta para o silêncio. Como já dito anteriormente, não há nos meios de comunicação uma crítica literária atuante, de modo que a revista, a partir do momento em que deixou de receber o incentivo fiscal que a viabilizava financeiramente, deixou de circular e não houve, conforme a entrevista de Antunes, vozes que se levantavam em protesto contra a decisão do Conselho de Cultura, “quer dizer, mata-se uma revista como a Vôte! e a resposta a isso é o silêncio”. Ainda que não seja nosso propósito neste artigo, talvez seja útil especular sobre as causas do “fracasso” da revista a partir de um determinado momento. Uma delas, parece-nos relacionada à realidade local em que a dependência do poder público para a existência e manutenção do mercado editorial configura-se como um entrave, na medida em que sujeita as publicações a fatores como disponibilidade orçamentária e/ou querelas ou simpatias pessoais ou partidárias. Por outro lado, a iniciativa privada, no caso da Vôte!, só apoiou o projeto enquanto este atendia ao interesse comercial de se consolidar uma imagem junto à população local, atingido o objetivo, descartou-se o veículo. Outra causa pode ter sido o ecletismo da revista. Assim como a referida Revista do Brasil, que era aberta a todas as correntes estéticas (modernistas e regionalistas se digladiavam em suas páginas), a Vôte! caracterizou-se pelo pluralismo de gêneros e tendências artísticas. Contudo, no periódico dirigido por Lobato havia um eixo em torno do qual giravam os textos publicados, o Brasil era o grande tema de discussão e reflexão. Com exceção do “Dossiê Catedral”, os outros números não apresentavam um eixo temático; numa época de alta especialização, a Vôte! atirou para todos os lados, esta postura resvalando, inclusive, para a qualidade (irregular) dos textos publicados. Além disso, no caso da Revista do Brasil, o nome de Lobato, consagrado no campo literário, emprestou legitimidade junto ao público leitor e, por conseqüência, junto às instituições, determinando seu sucesso no campo editorial. R G L, n. 5, jun. 2007. 147 O fato de restringir-se o espaço da Vôte! à produção local, também pode ter contribuído para criar uma imagem da revista associada à da antipática “panelinha”, ou “igrejinha”, provocando uma atitude de rejeição ao veículo. Além disso, as revistas provincianas dificilmente se sustentam por muito tempo se não derem abertura para o nacional/universal. Veja-se o caso da revista Violeta, só para ficarmos em exemplos locais. Não obstante o já citado fracasso por não ter conseguido formar um público ampliado para a literatura produzida em Mato Grosso; a Vôte! conferiu visibilidade e alavancou a carreira de alguns de seus colaboradores. Dentre os quais, se destaca a de um de seus idealizadores, Wander Antunes, que depois das ousadias editoriais em Mato Grosso, publica hoje histórias em quadrinhos na Europa por meio da editora suíça Editions Paquet. Já lançou Bil Gill est mort, Lóeil du Diable, Ernie Adams. Entre seus álbuns, Big Bill est mort foi indicado no Festival de Chambery para o prêmio em cinco categorias: Álbum do ano, Coup de Couer, roteiro, desenho e cores. Conseguiu arrematar o prêmio de Coup de Couer. Atualmente a maioria dos colaboradores da Vôte! permanece publicando e utilizandose das mais diferentes estratégias para a construção de um campo literário autônomo num Estado cuja projeção em nível nacional dá-se em outro campo. Referências bibliográficas BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo. Companhia das Letras, 1996. ______. O poder simbólico. 8 ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 2005. CONTE, C. Q. e F. & DE LAMÔNICA, M. V. Centro Histórico de Cuiabá: Patrimônio do Brasil. Entrelinhas. Cuiabá. 2005. DALATE, Sérgio. Wlademir Dias-Pino: Poética e visualidade em Mato Grosso. In. Leite, SILVA, Mário Cezar (org.). Mapas da mina: estudos de literatura em Mato Grosso. Cuiabá. Cathedral Publicações. 2005. _____ . A escritura do silêncio: Uma poética do olhar em Wlademir Dias Pino. Dissertação de mestrado. UNESP de Assis, Faculdade de Ciências e Letras. 1997. DRUMMOND, Maria Francelina Ibraim. Do falar cuiabano. Cuiabá. Grupo Gazeta de Comunicação. 1995. MAGALHÃES, Hilda G.D. História da literatura de Mato Grosso: século XX. Cuiabá. UNICEN Publicações, 2001. ______. Textos de autores mato-grossenses século XX: coletânea. Cuiabá. EdUFMT, 2002. MONTEIRO LOBATO, J. B. de. A barca de Gleyre. São Paulo. Brasiliense, 1951. MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. 2 edição. Editora Brasiliense. São Paulo. 1993. 148 Revistas Revista Contato Ano 7 – nº. 68 – Junho de 1986 Vôte! Ano 1 – nº.1 – Outubro de 1992 Vôte! Ano 1 – nº.2 – Dez/Jan-93 Vôte! Ano 1 – nº.3 – Fev/Mar-93 Vôte! Ano 2 – nº.1 (ou nº. 4) – Agosto 94 (Dossiê Catedral) Vôte! nº.1 – Janeiro de 1998 (segunda fase) Vôte! nº.2 – Abril 1998 (segunda fase) Vôte! nº.3 – Julho de 1998 (segunda fase) Vôte! nº.4 – Novembro de 1998 (segunda fase) Vôte! nº.5 – Janeiro de 2001 (segunda fase) Vôte! nº.6 – s/d (segunda fase) Vôte! Edição 11 – ano 10 - nº.7 – (segunda fase) Sítios eletrônicos www.ufmt.br/prosavirtual .Acesso em 22 de março de 2007, às 15 horas. www.ubes.com.br . Acesso em 30 de março de 2007, às 19 horas. R G L, n. 5, jun. 2007. 149 150 Resenhas MALDIDIER, DENISE. A INQUIETAÇÃO DO DISCURSO: (RE) LER MICHEL PÊCHEUX HOJE. TRADUZIDO POR ENI P. ORLANDI. CAMPINAS: EDITORA PONTES, 2003. Resenhado por Janaina Nicola (PG-UFMS/CAPES) Atrelada ao empreendimento de investigação dos “saberes”, a obra A Inquietação do discurso: (Re) Ler Michel Pêcheux hoje, de Denise Maldidier, oferece um relato íntimo referente ao percurso de construção teórica por que passou a Análise de Discurso em torno da atuação fundadora de Michel Pêcheux. Traduzida por Eni P. Orlandi, as argüições dirigem-se aos analistas de discurso e outros, a fim de explicitar a história das teorias (e não a historiografia); critério possível a quem, fundamentalmente participativa da disciplina, associa teoria e prática, testemunhando os “movimentos de idéias” germinados na “aventura teórica” a que se dispõem os estudos do discurso. A estrutura da obra desenha-se sobre cinco capítulos que, exceto o primeiro, O objeto da ciência também merece que se lute por ele – uma apresentação de Orlandi -, conferem à Denise Maldidier a tarefa de tomar uma posição frente à história da ciência, usando da cronologia como pretexto ao objetivo de instalar-se nos “bastidores” da produção e das convivências do pensador inaugural da AD francesa. No que tange ao segundo capítulo, (RE) Ler Michel Pêcheux hoje, atesta-se a força, ainda hoje atuante, do pensamento pechetiano, responsável por deslocamentos que não convergem à síntese ou ao sistema. Em outra esteira, o discurso sugere a Michel Pêcheux a imagem de um nó, em que se fazem intrincados língua, história e o sujeito. Denise conta a sua história do itinerário de Michel Pêcheux, o autor que apresenta aos estudos lingüísticos de 1960 um projeto, progressivamente amadurecido, na articulação entre lingüística, materialismo histórico e psicanálise. A entrada de Michel Pêcheux na vida intelectual, no entanto, só se faria em 1966, com a publicação do seu primeiro artigo, sob o pseudônimo de Thomas Herbert, na revista Cahiers pour l’analyse, da Escola ENS da rua d’Ulm, onde realiza-se o encontro com Althusser e Canguilhem que, por suas vezes, aproximam-no do CNRS no Laboratório de Psicologia Social, trazendo-o também ao conhecimento de Paul Henry e Michel Plon. No viés do terceiro capítulo, o tempo das grandes construções é inaugurado por Análise Automática do Discurso (1969), uma máquina discursiva e um instrumento de reviravoltas que lançava questões fundamentais sobre os textos, a leitura e os sentidos. O fascínio pelas “máquinas” e a elaboração de uma análise automática alimentam suas reflexões sobre as práticas e os instrumentos científicos; o dispositivo e os procedimentos de informática, todavia, só se validariam ao passo em que se relacionassem à teoria. A AAD 69 aponta para um novo objeto: o “processo discursivo”; o processo de produção do discurso. É nos fins dos anos 60 que Michel Pêcheux, junto ao lingüista Jean Dubois, apresenta as bases sobre as quais se funda a disciplina Análise de Discurso, na (pela) qual se fez possível pensar algumas idéias fundamentais, como o conceito de condições de 152 produção – segundo o qual o discurso seria determinado por um “exterior”; tratava-se de um tecido histórico social - ou, ainda, da percepção de um conceito ausente: o não-dito, que dominará, ademais, a elaboração do conceito de interdiscurso – no crivo do qual se inscreve a maior parte de seus temas. Com a chegada dos anos de 1970, Antoine Culioli, Catharine Funchs e Michel Pêcheux publicam o texto Condições teóricas a propósito do tratamento formal da linguagem, que lançou atenção à idéia de formações discursivas. Outubro de 1971 acolhe a publicação do artigo intitulado A Semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso; é o número 24 da revista Langages. Com efeito, Michel Pêcheux intervinha vigorosamente na lingüística em torno de Saussure e contra a semântica. Contudo, seria o artigo de Althusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, divulgado pela revista La Penseé, que vincaria todo o trabalho de Michel Pêcheux nessa época. É, além disso, a força do pensamento de Pêcheux que dissemina, em maio de 1975, uma obra forte de um filósofo inquieto com a lingüística: o texto Semântica e Discurso configura uma produtiva articulação em torno das dualidades lógica/retórica, objetivo/subjetivo, necessidade/contingência, propriedade/situação. O quarto capítulo, Tentativas -1976-1979, se volta a um tempo em que, ao contrário das investidas antecedentes de Pêcheux, a fala é mais presente do que a escrita. O ano de 1976 registra o surgimento do seminário chamado HPP, sob as orientações de Paul Henry, Michel Pêcheux e Michel Plon. As argüições se assentavam em um espaço no qual se cruzavam: língua, psicanálise e política. Sob a responsabilidade de Nicolas Pasquarelli, o CERM, Centro de Estudos e Pesquisas Marxistas, discutia também as questões em torno da lingüística, sua história e sua crise, que nesse momento se passa a pressentir. A Análise de Discurso condiz, desde então, com um ponto de confrontos teóricos, compartilhados por Pêcheux, Louis Guespin (que acabava de batizar a “Escola francesa de análise de discurso”), François Gadet, entre outros. É no ano de 1977 que Pêcheux apresenta uma comunicação intitulada Remontemos, no simpósio do México nomeado O Discurso político: teoria e análises. A comunicação acena a novas pistas para a teoria do discurso, ancorada na discussão referente à categoria marxista da “contradição”; instaura-se a partir desse momento um “face a face” textual entre Spinoza e Foucault. No ano seguinte, Pêcheux exibe a sua autocrítica retomando Semântica e Discurso com o intento de mostrar que “só há causa do que falha”. Dessa maneira, o quinto capítulo exibe, a partir de 1980, um período de reflexão crítica de Michel Pêcheux a produzir, em uma Desconstrução Domesticada, novas (re)configurações sobre a Análise de Discurso e seu objeto. Enfim, em seus textos do último período, 1983, Michel Pêcheux se dispõe a uma interpretação histórica de sua “aventura teórica”. O posicionamento radical sugere uma “fissura” irreversível e difícil de se fazer entender. Pressentia-se a necessidade de construir uma teoria para que a sua desconstrução florescesse iluminação, questionamentos. O discurso mostrou-se a Michel Pêcheux como o lugar de todo o possível, e foi em busca dele que, de maneira excepcional, Pêcheux se lançou nos interstícios da língua, destinando-nos R G L, n. 5, jun. 2007. 153 o complexo e riquíssimo legado de sua prática; investigação que deslocou os alicerces da Análise de Discurso e ainda hoje se inflexiona a produzir uma multiplicidade de temas e preocupações marcantes no pensamento contemporâneo daqueles que comungam da mesma inquietação. 154 FOUCAULT, M. ARQUEOLOGIA DO SABER. TRADUÇÃO DE FELIPE B. NEVES. 7 ED. RIO DE JANEIRO: FORENSE UNIVERSITÁRIA, 2004. Resenhado por Jefferson Barbosa de Souza (PG-UFMS/CAPES). Michel Foucault descende de uma família tradicional de médicos. Entretanto, sua paixão pela história despertou-lhe o desejo de subverter a soberania do radicalismo patriarcal de sua família. Cursou História em Potiers e foi (se não é) a promessa de sua geração, tendo como professores Maurice Merleau-Ponty, Georges Dumézil, Louis Althusser, Jean Hyppolite, Georges Canguilhem e desenvolvendo a tese L’Antropologie de Kant, reconhecida posteriormente pelo título de História da Loucura, em 1961. Esta foi somente a primeira de outras, como A Arqueologia do saber (1969), que, em virtude de constituir ainda hoje as bases teóricas da Análise do Discurso (já em curso por ocasião de Michel Pêcheux), representa a revisão teórica já amadurecida do historiador/filósofo. N’ A Arqueologia do saber, Foucault submete seu projeto arqueológico, compreendido como experiência descritiva de enunciados, basicamente a três capítulos: as regularidades enunciativas, em seguida, o enunciado e o arquivo, e, por fim, a descrição arqueológica. Foucault introduz a obra propondo uma “nova” história dos saberes a partir da cisão com o pensamento moderno fundamentado na cronologia histórica, visto que “não é preciso remeter o discurso a sua longínqua presença da origem, é preciso tratá-lo no jogo de sua instância” (p.28). O capítulo posterior (segundo) - As regularidades discursivas - apresenta tendências de uma descrição arqueológica que tem “os acontecimentos como horizonte para a busca de unidades” (p.30). Uma maneira de apreender essas unidades é por meio da delimitação e especificação de formações discursivas, definidas no processo regulamentar de semelhante sistema dispersão de objetos, tipos enunciativos, conceitos, temas (cf.p.43). No terceiro capítulo - O enunciado e o arquivo – o historiador desloca o conceito de enunciado atribuído pela gramática, concebendo-o em sua abrangência constitutiva, isto é, por meio de traços que nem sempre pertencem ao domínio da língua, no entanto, sua condição de existência é a materialidade, seja por meio de gráficos, quadros e tabelas (objetos, enfim, que circulam nos campos das ciências ditas naturais, exatas e biológicas), seja por meio de proposições (gramaticais) inscritas no domínio das humanidades. Foucault atribui à análise enunciativa caráter de positividade, contanto que, na dispersão de uma exterioridade, visualize formas específicas de acúmulo (p.141-2). O acúmulo, segundo Foucault, verifica-se na remanência, como atributo de suportes materiais e institucionais, na aditividade suposta no agrupamento regido por leis específicas (de composição, anulação, exclusão, complementação) e recorrência de enunciados, definida por uma filiação que se redesenha, resultante da memória, do esquecimento e da redescoberta do sentido ou sua repressão (cf.p.140-1). Dessa forma, o arquivo constituir-se-ia de “enunciados R G L, n. 5, jun. 2007. 155 instaurados como acontecimento” e coisas, cuja “origem” é determinada por condições de aparecimento e utilização (p.146). O penúltimo capítulo - A descrição arqueológica – visa à determinação de pontos de disparidade entre análise arqueológica e histórica. De maneira geral, ele concebe a arqueologia como método de análise de discursos enquanto práticas coerentes a regras e a sua especificidade, o reencontro do que já foi dito a partir de sua própria identidade (na transformação regular proporcionada pela exterioridade) (cf.p.158). Para Foucault, a descrição arqueológica busca apreender a regularidade que atravessa a adjacência das práticas discursivas. “Não é que há causa e conseqüência, mas simplesmente uma lei para a comunicação entre os diversos discursos” (p.183). Essas leis são explicitadas pelo historiador como regras de formação capazes de mostrar isomorfismos arqueológicos, cujas regras análogas podem formar elementos díspares; definir modelos arqueológicos, ou seja, se as regras se aplicam regularmente, se encadeiam ou não na mesma ordem, ou se dispõem conforme o modelo nos diferentes tipos do discurso; mostrar por meio de defasagens arqueológicas domínios diferentes de descrição pelo uso de uma determinada palavra; finalmente, estabelecer correlações arqueológicas de subordinação ou complementaridade entre positividades (cf.p.180-3). À guisa de conclusão, o projeto arqueológico foucaultiano tem em vista a análise de relações que podem unir as práticas discursivas, que, por fim, configuram o que temos hoje como figuras epistêmicas (p.214), isto é, espécie de racionalidade que reveste o sujeito e os saberes de uma época, tornando-os soberanos e unificáveis. Evidencia-se, portanto, que a análise da dispersão dos discursos, para o historiador, leva às regras que caracterizam a unidade, ao menos “pretendida” pelo sujeito, à identificação com práticas sociais previstas no quadro de uma episteme. 156 Bibliografias Comentadas BIBLIOGRAFIA COMENTADA SOBRE ANÁLISE DO DISCURSO FRANCESA Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS) Esta bibliografia comentada apresenta-se, antes de tudo, como um instrumento de trabalho para todos aqueles que, a cada dia mais numerosos, trabalham com as produções verbais de uma perspectiva da análise do discurso. Com ela queremos marcar de alguma forma o território de um campo de pesquisas que é cada vez mais visível na paisagem das ciências humanas e sociais. É importante dizer que, no interior das ciências da linguagem, a análise do discurso não nasceu de um ato fundador, mas como resultado da convergência progressiva de movimentos com pressupostos extremamente diferentes, surgidos nos anos 60 na Europa e nos Estados Unidos. Tais movimentos desenvolvem-se em torno do estudo de produções transfrásticas, orais ou escritas, nos quais se busca compreender a significação social. A partir dos anos 80, e isso se vai acentuar consideravelmente nos anos 90, produziuse uma descompartimentalização generalizada entre as diferentes correntes teóricas que tomaram o “discurso” como objeto. Sendo a França um dos maiores centros de desenvolvimento da análise do discurso, os trabalhos da chamada “Escola francesa” e as reflexões de Michel Foucault, em A Arqueologia do saber, produziram uma imagem muito forte das pesquisas francófonas voltadas para a confrontação de investigações que se baseiam em universos teóricos diversos. Enfatizamos que as pesquisas em análise do discurso não são frutos de alguns espíritos originais, elas derivam de uma transformação profunda da relação que nossa sociedade estabelece com seus enunciados, presentes ou passados. “Que o homem é um ser de linguagem, eis algo que não nos cansamos de repetir há muito tempo; que ele seja um homem de discurso, eis uma inflexão cuja dimensão ainda é impossível mensurar, mas que toca em algo de essencial” (CHAREAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.17). E sobre a relevância de se trazer tal bibliografia é suficiente observar que obras que provocam debates são tão úteis, ou mais, do que as que fixam teorias e metodologias. Vamos a elas. ARAÚJO, I. L. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Editora da UFPR, 2001, 220 p. A autora aborda o tema central de Foucault: a crítica do sujeito. Alvo e produto de saberes e poderes, o sujeito é classificado por estes como são ou louco, legalista ou delinqüente, adulto ou criança, heterossexual ou homossexual, normal ou anormal. A obra expõe ainda a proposta de Foucault de uma ética da liberdade e uma estilística da existência, 158 como alternativas à normalização do sujeito moderno. A modernidade e a pós-modernidade são os temas tratados na parte final do livro. Contrapondo as idéias de Habermas e Foucault, a autora proporciona uma visão clara da crítica do primeiro ao segundo pensador, a qual envolve linguagem, discurso, marxismo, poder, sociedade disciplinar e sociedade emancipada. AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa (s). [Trad. Celene M. Cruz e João W. Geraldi]. Cadernos de Estudos Lingüísticos (19), Campinas, SP: Editora da UNICAMP,1990, p. 25-42. O artigo mostra um estudo da articulação de recursos lingüísticos com casos de heterogeneidade mostrada marcada, visível na materialidade lingüística, da ordem da enunciação, em que intervêm três campos de conhecimento: a Lingüística, a Psicanálise e a Análise do Discurso. A obra traz uma reflexão sobre o sujeito e o fato de linguagem que nos faz conhecer, propondo a heterogeneidade do sujeito e de seu discurso, apoiada no dialogismo bakhtiniano e numa abordagem do sujeito em sua relação com a linguagem, baseada numa leitura lacaniana de Freud. Nessa perspectiva, o sujeito dividido, descentrado, mas com a ilusão de sujeito autônomo, na impossibilidade de fugir da heterogeneidade constitutiva de todo discurso, procura negociar a presença do outro por meio das marcas da heterogeneidade mostrada, expressando, dessa maneira sua ilusão de unidade, de dominância. BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. [Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira] São Paulo: Editora Hucitec, 1995, 203 p. Publicado na Rússia em 1929, esse livro tornou-se um clássico. Nele, Bakhtin desenvolveu uma filosofia da linguagem de fundamento marxista, mas sem as limitações das ortodoxias oficiais da época. A natureza ideológica do signo lingüístico, o dinamismo próprio de suas significações, a alteridade que lhe é constitutiva, o signo como arena da luta de classes, as críticas ao conservadorismo das posições formalistas; as críticas a Saussure e, lidas hoje, sua adequação ao estruturalismo, os fenômenos de enunciação que a semântica moderna tanto preza, as análises dos diferentes tipos de discurso (direto, indireto, indireto livre, etc.) são alguns dos temas que o leitor encontrará neste livro. BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997, 386 p. Importante contribuição para o conhecimento da obra de Mikhail Bakhtin. Mostra o percurso de sua reflexão sobre a linguagem, desde os círculos de estudos na União Soviética, na primeira metade do século XX, até sua introdução e divulgação no Brasil, a partir da década de 1960. Trata-se de um livro que reúne artigos de especialistas brasileiros e franceses diretamente envolvidos com as questões debatidas no Colóquio Internacional R G L, n. 5, jun. 2007. 159 “Dialogismo, cem anos de Bakhtin”, ocorrido no Departamento de Lingüística da USP em 1995 e que, a partir dele, elaboraram os textos da coletânea. Como forma de homenagear o pensador russo, o livro traz reflexões sobre a linguagem que têm marcado diferentes áreas do conhecimento, e também vem mostrar e problematizar as diferentes maneiras como as teorias bakhtinianas vêm sendo trabalhadas atualmente. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 2. edição Campinas: Editora da UNICAMP, 1995, 124 p. Percorrendo a trilha aberta por Saussure, a autora discute a dicotomia existente entre língua e fala e usa o discurso como ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos. Para ela, qualquer estudo da linguagem é hoje tributário de Saussure, quer tomando-o como ponto de partida, assumindo suas postulações teóricas, quer rejeitando-as. E dentre os que rejeitam tais postulações está Bakhtin que, com seus estudos, antecipa de muito as orientações da lingüística moderna. O teórico russo parte do princípio de que a língua é um fato social cuja existência funda-se nas necessidades de comunicação. No entanto, afasta-se do mestre genebrino na visão da língua como algo concreto, fruto da manifestação individual de cada falante, valorizando dessa forma a fala. A obra pretende ser uma teoria crítica da linguagem, evidenciando que a Análise do Discurso de orientação francesa surge como uma luta contra qualquer forma de cristalização do conhecimento, daí o fato de suas fronteiras se confinarem com as determinadas áreas das ciências humanas, como a História, a Psicanálise, a Sociologia. CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. (Orgs.) Dicionário de análise do discurso. [Trad. Fabiana Komesu et al.] São Paulo: Editora Contexto, 2005, 555 p. Neste livro, Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau, duas das maiores autoridades mundiais no assunto, fazem um mapeamento completo dos principais conceitos da Análise do Discurso, por meio de mais de quatrocentos verbetes, escritos com a colaboração de cerca de trinta dos mais conceituados especialistas internacionais da área. A edição brasileira – fruto de uma caprichada e criteriosa tradução, confiada a um seleto grupo de estudiosos e pesquisadores do assunto no Brasil – é uma obra de referência pioneira, até aqui única no gênero, indispensável a todos os que se dedicam a analisar a construção e a desconstrução de sentidos presentes na fala e no texto. CORACINI, M. J. R. F. Análise do Discurso: em busca de uma metodologia. D.E.L.T.A. São Paulo, v. 7, n.1, fev.1991, p. 333-355. Neste clássico artigo, Coracini mostra como a escolha da orientação metodológica determina os resultados e pressupõe uma teoria do significado. Para isso, traz exemplos 160 extraídos de artigos científicos primários do português e do francês (relatos de experiências) com o objetivo de mostrar as semelhanças e diferenças no funcionamento dos textos nas duas línguas quando elas se mostrarem relevantes. Com isso, o artigo deixa transparecer que a metodologia de Análise de Discurso, que privilegia as condições de produção como norteadoras de sua análise, na medida em que não fecha a questão, pré-derminando formas lingüísticas capazes de veicular subjetividade ou objetividade, denotação ou conotação, está mais apta a assimilar uma visão pós-modernista de ciência que, apesar de reconhecer no peso da instituições que impõem limites aos jogos de linguagem e assim restringem a inventividade dos parceiros em matéria de lances, entende que é possível romper com as regras pré-estabelecidas se os limites da antiga instituição forem ultrapassados. FIORIN, J.L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Editora Ática, 1996, 318 p. Conciliando os postulados teóricos da análise do discurso e da enunciação, o livro faz uma ampla descrição das categorias de pessoa, espaço e tempo em língua portuguesa com ampla exemplificação. Na esteira dos trabalhos dos fundadores do que se poderia chamar uma Lingüística da Enunciação, Fiorin estuda minuciosamente tais categorias, examinando como nossa língua as organiza e as manifesta. Trata-se de um trabalho inovador, porque, de um lado, o autor analisa, de um modo diferente, certos fatos da língua, como descrever o sistema temporal não a partir das formas existentes para expressar o tempo, mas de um conjunto de relações semânticas manifestadas pelas formas temporais; de outro, porque examina tópicos que, embora de capital importância no português, são pura e simplesmente ignorados pela quase totalidade de nossos gramáticos, como, por exemplo, a concordância dos tempos. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. [Trad. Laura F. A. Sampaio]. 12. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005, 80 p. Nesta obra, o autor desvenda a relação entre as práticas discursivas e os poderes que as permeiam. Ao percorrer os diversos procedimentos que cerceiam e controlam os discursos na sociedade, o autor comprova que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar”. Foucault anuncia a direção em que prosseguirá suas investigações no decorrer dos cursos no Collège de France, apontando para o que denomina o “conjunto crítico” e o “conjunto genealógico”. R G L, n. 5, jun. 2007. 161 GREGOLIN, M. R. V. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso: diálogos e duelos. São Carlos: Editora Claraluz, 2004, 220 p. Este livro apresenta um “retorno à história” da constituição da Análise do Discurso, acompanhando os diálogos / duelos teóricos entre Michel Foucault e Michel Pêcheux, por meio dos quais se tramaram os fios de uma teoria do discurso que propôs um novo olhar para o sentido, o sujeito e a História. Essa proposta epistemológica leva-nos a acompanhar uma trajetória que se inicia na França, nos anos 1960 e que se insere nas discussões sobre o estruturalismo e o marxismo, numa teia de diálogos que se estabeleceu com Saussure, Freud, Marx e Nietzsche, a partir de releituras feitas por Althusser, Lacan, Barthes e vários outros pensadores que compartilharam esse momento histórico de intensa produção de espirais de conhecimentos. Ao vasculhar esses textos fundadores e enxergar a historicidade da constituição de um campo do saber, o objetivo deste livro é ressaltar a espessura histórica dos conceitos que sustentam os trabalhos brasileiros de análise do discurso. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. [Trad. Freda Indursky]. Campinas: Editora Pontes, 1993, 198 p. Esta tradução do francês coloca o leitor em contato com os novos pontos de referência para a reflexão acerca da Análise do Discurso de uma ótica interdisciplinar. Segundo o autor, o objetivo crucial é o de construir interpretações sem jamais neutralizá-las, seja por meio de uma minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico estabilizado com pretensão universal. Assim, a obra propõe que a análise do discurso dependa sempre das ciências sociais e de seu aparelho assujeitado à dialética da evolução científica que domina esse campo. Com isso, “o analista do discurso vem trazer sua contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo hermeneuta, ele supõe que um sentido oculto deve ser captado, o qual, sem uma técnica apropriada, permanece inacessível”. ORLANDI, E.P. Análise do discurso. Princípios e procedimentos. 5. ed. Editora Pontes, 2000.110 p. Uma proposta de reflexão sobre a linguagem, sobre o sujeito, sobre a história, sobre a ideologia para os interessados no estudo do funcionamento da linguagem. A autora problematiza as maneiras de ler, leva o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem; saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos incorre na percepção de que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade. Segundo a obra, essa contribuição da análise do discurso coloca-nos em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem. Assim, o discurso é entendido como movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de 162 conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios, isto é, o ritual da palavra. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. [Trad. Eni Orlandi]. Campinas: Editora da UNICAMP, 1975, 318 p. Para o autor, a semântica é o ponto nodal em que a lingüística tem a ver com a filosofia e a ciência das formações sociais. A partir dessa concepção discursiva da semântica, o autor desenvolve uma reflexão crítica sobre a produção de conhecimentos científicos e a questão da prática política. Sendo Pêcheux o iniciador da Escola Francesa de Análise do Discurso, que hoje se desenvolve sob várias perspectivas nos trabalhos de um conjunto de autores bastante diferenciado entre si, este livro representa um momento de sua reflexão (1975), num percurso em que ele mesmo se defrontou com questionamentos, limites e reavaliações que o levaram, com seus escritos posteriores, a precisar certos conceitos, aprofundar alguns e abandonar, provisoriamente, outros. Movimento natural em uma forma de reflexão que não se pretende fixista mas, ao contrário, teoricamente crítica. REVEL, Judith. Foucault: Conceitos essenciais. [Trad. Maria do Rosário Gregolin et al]. São Carlos: Editora Claraluz, 2005, p.96. Esse livro apresenta conceitos essenciais por meio dos quais se exprime o pensamento teórico e filosófico de Michel Foucault. A apresentação das principais noções foucaultianas na forma de um vocabulário tem como princípio a idéia de que um filósofo só pode ser compreendido por meio de sua língua, de seu vocabulário próprio. Por sua abrangência e consistência na reunião de 33 conceitos essenciais, esse livro constitui uma privilegiada via de acesso à leitura e à compreensão da obra de Foucault. Ao apresentar conceitos essenciais, o livro leva em consideração toda a complexidade da obra do filósofo francês. Ao mesmo tempo, a autora procura preservar o movimento das conceituações e tornar compreensível a coerência fundamental da reflexão foucaultiana. Assim, ao operar escolhas e eleger conceitos essenciais, a autora torna visíveis certas passagens da contínua problematização foucaultiana, e, por meio de um jogo de remissões, tece sistematicamente a trama a partir da qual é tecido o percurso filosófico de Foucault. R G L, n. 5, jun. 2007. 163 BIBLIOGRAFIA COMENTADA DE LITERATURA BRASILEIRA Antonio Rodrigues Belon (UFMS) A bibliografia comentada a seguir tem as virtudes e os defeitos de todos os trabalhos semelhantes. A inclusão e a exclusão de títulos, embora sob um critério explicável, não desconhece a sua natureza tendenciosa; assume a ausência de neutralidade. Dois títulos e dois autores, Alfredo Bosi e Antonio Candido, adotam uma concepção, resumidamente, posta como dialética. A obra dirigida por Afrânio Coutinho tem na multiplicidade de abordagens e de concepções fundamentais a sua razão de ser. A terceira categoria é a do olhar estrangeiro, uma valorização de um certo distanciamento. BOSI, Alfredo. Historia concisa da literatura brasileira. 35. ed São Paulo: Cultrix, 1997. Organizada em oito capítulos, respectivamente dedicados aos momentos fundamentais da literatura brasileira, das origens às tendências contemporâneas, a História Concisa da Literatura Brasileira trata individualmente dessas etapas, apreciando as suas tendências diferenciais, os seus autores principais, proporcionando ao leitor dados de ordem bibliográfica além de uma avaliação crítica, básicos na compreensão do processo. Recomendável, sobretudo à atenção de professores e estudantes de literatura brasileira, em nível de graduação e/ou de pós-graduação. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (volume único). São Paulo: Ouro sobre o azul, 2006. 777 pp. Basicamente o livro é o estudo de dois períodos da literatura brasileira, o Arcadismo e o Romantismo, considerados pelo autor decisivos para a formação do que denomina “sistema literário”. A articulação de autores, obras e públicos estabelece uma tradição, uma continuidade, uma produção literária com o caráter de atividade permanente, associada aos outros aspectos da cultura. Antonio Candido adota um critério classificatório, a constituição da literatura como atividade regular na sociedade, não como expressão de algum sentimento nacional. Seu objetivo foi estudar os períodos durante os quais a literatura adquiriu o caráter de sistema. Fundamentalmente o livro é o estudo analítico das obras. Nos pressupostos e no tratamento geral do historiador da literatura, o crítico, encontra a possibilidade da leitura de capítulo a capítulo, focalizando as obras e estabelecendo relações com as demais. 164 COUTINHO, Afrânio (Direção). A literatura no Brasil. 6 ed São Paulo: Global, 2003. Na sua extensão em seis volumes e milhares de páginas escritas por dezenas de autores, inclusive Antonio Candido, A literatura no Brasil, cobre um período histórico mais de cinco vezes secular, uma multiplicidade de objetos literários e os desdobramentos de suas relações com outros objetos culturais; mantém uma abordagem teórica e crítica pluralista encarnada nos seus inúmeros colaboradores procedentes de correntes de pensamento diversificadas. PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. 2. ed Rio de Janeiro: Lacerda, 2004. Uma obra de divulgação da literatura brasileira escrita em italiano, rica na perspectiva e no distanciamento e no diálogo com as fontes primordiais das literaturas ibéricas e de toda a cultura européia. R G L, n. 5, jun. 2007. 165