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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. 4 á 7 de Setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. GT 19: Juventudes, territorialidades e identidades. Os Muros Eternos: o charpi na cidade de Teresina. John Wedson dos Santos Silva1 [email protected] 1 Bacharel (2009) e licenciado (2012) em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Desde 2007 é integrante do Núcleo de Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente – NUPEC/UFPI. Atualmente é colaborador em investigação sobre Bandas Juvenis em Teresina. Tsss, tsssss2... Uma lata de tinta spray reproduz uma criação imagética no muro de um cemitério, no alto de um prédio, numa ponte, em algum não-lugar de Teresina. É noite. Ninguém conhece o autor daquela criação. Poucos conhecem a prática. Que sujeito é esse? O que caracteriza essa prática? Como se processou o charpi 3em Teresina? Quem o trouxe? Quem o vivenciou? E, por fim, que leituras sociológicas são possíveis sobre essa manifestação juvenil contemporânea? A jornalista Phydia de Athayde sugere que a pichação no Brasil “começou com o abafado grito ‘abaixo a ditadura’, pichado nas sombrias noites do Brasil dos anos 60” (SOUSA, 2007, p. 13), em outras palavras, a autora relaciona a origem da prática aos movimentos contra a ditadura militar implementada logo após o golpe de 1964. Entretanto, nos finais do regime ditatorial, “essa prática foi se popularizando e perdendo seu exclusivo caráter político. As pichações já não pediam somente a cabeça desse ou daquele governante, mas declaravam amor, faziam piadas ou simplesmente exibiam o nome dos seus autores” (GITHAY, 1999, p. 21). Em Teresina o que se sabe até o momento é que a pichação, na forma do charpi, teve inicio na década de 1990, quando ouve a incorporação de um alfabeto estilizado com letras variadas oriunda da cidade de Fortaleza. Assim, fazendo uso do neologismo charpi, formaram-se os primeiros grupos de pichadores teresinenses. Com a inversão silábica na escrita, os praticantes ocultavam seus apelidos ou verdadeiros nomes, como por exemplo “Camusa” e “Tonare”. Primeiramente munidos apenas da tinta spray e posteriormente de rolinhos e tinta látex – usualmente empregados para pinturas na construção civil – os jovens teresinenses ganhavam as noites da cidade ávidos por estampar quantitativamente suas marcas individualizadas pelas paisagem urbana. É como se “eles [fossem] sua própria obra; ao espalhar suas assinaturas pela cidade, transforma-se em personagens urbanos [dizendo] por meio de suas escrituras: ‘eu existo’, ‘eu circulo pela cidade’, ‘esta cidade também é minha’” (OLIVEIRA, 2008, p. 235). Existir no mundo da pichação é ser reconhecido pela reprodução quantitativa de uma marca estilizada pela cidade (SOUSA, 2007). Os muros e paredes são os 2 Palavra onomatopaica que reproduz o barulho que surge da lata de tinta spray quando a tinta sai. 3 É o anagrama criado no Rio de Janeiro da palavra pichar (SOUSA, 2007). Essa denominação também é usada em Teresina. out doors que divulgam e redimensionam o apelido do pichador tirando-o do anonimato. Nessa lógica, os muros de pedras aparecem como um dos alvos mais cobiçados pelos praticantes do charpi. Conhecidos entre os jovens como “eternos” (SOUSA, 2009), esses locais são assim chamados pela dificuldade que apresentam para a retirada da tinta spray (foto 1) (SOUSA, 2007). Então, ao estampar sua marca nesses suportes o autor resignifica esses espaços, dandolhes o sentido de que passam a pertencer eternamente ao autor da façanha. Foto 1: Charpi do Cannabis do grupo Grafiteiros rebeldes - GR. Muro de Pedra na Av. Dom Severino, Bairro: Morada do Sol, Zona Leste de Teresina PI. Estima-se que os Fantasmas da Madrugada – FM seja o primeiro grupo de pichadores de Teresina. Isto porque já realizavam a atividade antes mesmo da introdução do alfabeto que possibilitou a pichação no formato do charpi. Criada por um jovem conhecido como Rama, seu inicio foi marcado pela inscrição em tinta spray de frases de questionamento social por exemplo, “viver de aparência nesta puta decadência” – referindo-se a necessidade de estar dentro de um padrão que inspire a interpretação de uma boa vida, mas que contrasta com as inseguranças da realidade – e “só a morte é perfeita não importa a cova estreita”4 – negando as 4 Está pesquisa foi realizada na disciplina de Estágio Curricular, entre os meses de Março e Agosto de 2009. Durante o percurso de campo as Avenidas que cruzam os bairros Marquês, Aeroporto e adjacências – localidades que o grupo práticas humanas, mesmo as bem sucedidas, e atribuindo a perfeição apenas a morte. O grupo teve uma projeção maior na cidade, antes focalizada na zona norte e centro, quando ouve a incorporação das “letragens” que possibilitavam o charpi e quando ouve a entrada de novos membros. A história da origem do alfabeto de pichadores de Teresina é vinculada a dois pichadores que, segundo dizem, transitavam frequentemente de Teresina á Fortaleza e de Fortaleza á Teresina: Rama, um dos fundadores da FM e Fobia, um dos criadores da RS (Rebeldes Suicidas). Na verdade, existem três versões da história da chegado do alfabeto á capital piauiense. Percebe-se que as duas versões, possuem uma mesma estrutura. Logo, tem-se assim, um mito de origem da chegada das letras estilizadas. Em todas, a cidade na qual as “letragens” são oriundas é a mesma: 1º Os avós do Rama moram em Fortaleza. Por isso nas férias ele vai para Fortaleza. Ele conheceu os pichadores de lá e trouxe o alfabeto deles para Teresina5. 2º Ele vinha trabalhar [em Teresina], né cara? Com o irmão dele. [Mas,] o Fobia sempre viajava para Fortaleza, daí trouxe um, trouxe vários alfabetos de lá e daí que a RS começô. Depois disso ai [a prática] foi explodindo mais6. O ex-pichador, Bola 8, que relatou a segunda versão, ainda questiona a possibilidade de ser a FM o grupo pioneiro á praticar o charpi na cidade, pois embora pichassem, não tinham o alfabeto para a prática do charpi. Para ele: O tempo disso ai não era charpi, tá entendendo? Os cara colocava mais era frase, mais essas coisa assim. Botava o ‘nomizim’ e tal. Colocava mais frase. Não colocava charpi mesmo como, como, como pichador. tinha forte atuação – foram cartografadas na intenção de obter registro fotográfico das frases, mas nenhuma foi encontrada. Contudo, fomos informados pelo antigo participante do movimento de pichadores de Teresina, hoje ex-pichador , Magão, do grupo Rebeldes Anarquistas – RA, que no final da Av. Campo Sales, no muro do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DENOCS ainda tinha uma frase. Mas, ao chegar lá, percebemos que a mesma estava totalmente encoberta por uma grossa camada de lodo que tomava a maior parte do muro, inviabilizando a identificação. 5 Comentário concedido ao autor pelo ex pichador , Magão, RA, quando coletava informações sobre os praticantes do charpi na cidade durante a disciplina de Estágio Curricular, em 28 de Maio de 2009. 6 Entrevista concedida ao autor pelo Bola 8 durante a disciplina de Estágio Curricular, em 08 de Agosto de 2009. Mas o que caracteriza o tipo de pichação aqui examinado? O fato de não fazer uso de um alfabeto próprio para a prática descaracteriza como pichador um grupo que utiliza os muros e paredes da cidade para a reprodução de uma marca individual? Questões semelhantes foram respondidas na elaborada teia intelectual tecida pelo sociólogo David Aguiar de Sousa em sua dissertação de mestrado. O produto da confecção é uma etnografia da pichação carioca que, na tentativa de precisar a origem da prática na cidade, depara-se com uma intrigante inscrição pichada a partir de 1977 nos muros do Rio de Janeiro: CELACANTO PROVOCA MAREMOTO. Para determinar o lugar das frases pichadas pelo Rama, bem como da intrigante mensagem a cima é imprescindível entender a característica estrutural básica da pichação de muros nos moldes aqui investigados, em outras palavras – a necessária utilização da cidade como suporte para a divulgação quantitativa de uma marca pessoal (SOUSA, 2007; GITHAY, 1999). Após constar que essas características estruturais eram comuns tanto a mensagem “celacanto provoca maremoto”, quanto as atuais pichações cariocas, Sousa conclui que “através da massificação, o autor de ‘celacanto provoca maremoto’ parece ter sido o primeiro autentico pichador de muros carioca, inaugurando um estilo peculiar, o das chamadas ‘pichações poeticas’” (SOUSA, 2007, p. 16). No mesmo sentido, as frases de questionamento social assinadas pelo Rama, acompanhadas de um FM entrelaçado, demonstram similaridade estrutural com o tipo de pichação aqui analisado: a reprodução quantitativa com tinta spray de um marca individual pelas noites da cidade. O que me leva a concluir, a partir dos dados que disponho sobre a prática teresinense, que a FM é o grupo pioneiro de pichadores de Teresina. Com a diferença que essas frases eram escritas em letras inteligíveis, em uma época na qual o movimento de pichadores de muro não estava consolidado na capital piauiense. A chegada do alfabeto de letras estilizadas e as fases do charpi em Teresina Com a chegada do alfabeto de pichadores de Fortaleza á Teresina as frases foram substituídas por pseudônimos, compostos de quatro a cinco letras em média, possibilitando uma certa economia de tempo e tinta, tinta ao mesmo tempo que os traços tornavam-se tornavam se cada vez mais ligeiros, além disso, o aumento do número de praticantes desenvolveu o movimento em Teresina. Consolidado na cidade com a formação de grupos nos variados bairros da capital piauiense o movimento passaria ainda por duas fases. O segundo momento foi marcado pela presença sempre constante das “letragens” na confecção dos charpis. Porém, as setas sempre muito bem estilizadas izadas que descem logo abaixo das da pichações – em uns de forma inclinada, em outros reta, de um ainda saiam duas setas, de outro três que terminavam em uma – foram o item insubstituível no movimento, embora tenham passado por substanciais modificações ao longo do tempo. Mas neste momento elas caracterizavam-se caracterizavam por serem em curtas, ou seja, não chegavam até a o chão. Alias, os charpis como um todo não ocupavam grandes espaços (fotos 2e3). fotos 2 e 3: Charpis antigos,, fundamentalmente compostos pelas letras estilizadas do alfabeto de pichadores,, as setas inexpressivas sequer tocam ao chão. chão É notório que não tomam toda a parede, pois ficou espaço no local. Foto 1: Centro Artesanal Mestre Dezinho, Dezinho Bairro: Centro, Teresina - PI. Foto 2: Rua: Coelho Neto, Bairro: Lourival Parente, Zona sul, Teresina – PI. Sabe-se se que um dos principais representantes desse momento chamachama se Svera, novo membro da FM,, foi responsável pela difusão do grupo na cidade.. Este sujeito dominava perfeitamente a técnica da pichação. Seu charpi ganhava forma a partir de traços precisos que delineavam uma seta reta e estilizavam de forma impecável as letras que compõem seu charpi. charpi De forma transversal, o Svera seguiu com suas atividades ao longo das duas últimas fases do movimento (fotos 3 e 4), 4), conseguindo por entre os anos realizar o objetivo da pichação: “ganhar a cidade”. Em outras palavras, obter fama e reconhecimento através da reprodução quantitativa de uma de uma marca pela paisagem urbana (OLIVEIRA, 2008; SOUSA, 2007; GITHAY, 1999; VALENZUELA, 1999), somando ainda o status próprio a um pichador da antiga (OLIVEIRA, 2008). Teresina para este sujeito era um corpo a ser exaustivamente tatuado quando estampava, noite após noite, noite, sua criação imagética pelos suportes das principais avenidas da cidade. Entre eles, os muros de pedra demarcados pelo Svera prestam-lhe prestam lhe eternos reconhecimentos e prestígio. Em sentido igual, mesmo as marquises e prédios7 em que suas marca já esteve impressa mpressa manterão sob as novas camadas de tinta a lembrança que o desafio de suas altitudes foi superado por suas façanhas. Como tatuagens sobre um corpo, seus s charpis tatuaram uma nova pele sob o cenário urbano (DESCAMPS apud DIOGINES, 2008). Fotos 3 e 4: Charpis do Svera. Foto 3: Charpi feito no segundo momento do movimento de pichadores em Teresina,, a seta não toca ao chão, chão Rua: Barroso, Bairro: Centro/Sul, Teresina - PI. Foto 4: Charpi mais adaptado ao terceiro momento, a seta já toca o chão, chã Av. Coelho de Resende, Bairro: Centro/Sul, Centro/Sul Teresina - PI. 7 De acordo com informações colhidas na experiência de Estágio Curricular, em Teresina, os sprays do Svera teveram como alvo prédios como o da Companhia de Habitação Habitação do Piauí (COHAB) e do Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos (SETUT). (SETUT) Demonstra-se, assim, que os atores sociais dão novos sentidos aos suportes da urbe8. As pichações redefinem o público e o privado, transformadoos em lousas repletas dos símbolos contaminados dos significados dessa cultura urbana juvenil. Desse modo, os muros e paredes são os outdoors que divulgam e redimensionam o apelido do pichador tirando-o do anonimato. Indelével á memória da terceira fase do movimento de pichadores de muro de Teresina foram as inovações criadas nesse período pelos dois maiores representantes desse momento, Bola 8 e Kasa9 – ambos membros da RS O primeiro sujeito a cima, assim como o Svera, participou ativamente do movimento desde a chegada das “letragens” á cidade e seguiu com a prática até seu declínio. Contudo, no início, seu pseudônimo e charpi correspondiam exatamente ao do Fobia – cofundador da RS, juntamente com o próprio Bola 8. Atitude questionável quando pensada em um movimento regido pela alteridade, Bola 8 comenta a questão: Bom, [...] o início do charpi em Teresina pra mim foi primeiramente assim minha amizade com o pessoal do skate, principalmente com o Fobia, né? Foi da e que surgiu a galera da gente, que é os Rebeldes Suicidas. E através do skate, [...] a gente começo a brincar com tinta, como, com, ‘letreros’ de fora quele trazia. E daí a gente começo a brincar com tinta, com, com spray, esse negoso de tentar fazer desenho, grafite e a gente começo a risca parede, que é o charpi, chamado charpi, fazer a nossa marca. Através disso ai, como ele morava em Fortaleza e eu tava aqui, [...] a gente ‘começamo’ a riscar tipo como se fosse a mesma pessoa, mas tanto como representante daqui, Teresina, que sou eu, Piauí; e ele né? Fobia, que representava o Ceará. Tanto quando eu ia pra lá eu colocava o mesmo nome dele, mas botava o THE/PI, como se chama Teresina/PI, ai ele colocava o Ceará, Fortal/Ceará. [...] O Fobia sempre viajava para Fortaleza, daí ele trouxe um, trouxe vários alfabetos de lá. [...] Ai, daí, a gente começo a inventa letras trançadas e bota otros tipos de apelido. Ai eu já deixei de bota o Fobia e passei a bota Pink. Ai, com o tempo, o Fobia já tava, já tava, já tava botano muita fama pra ele doque pra mim. Que, pô o pessoal, tipo assim: via o [charpi] Fobia, só diferenciava quando botava o THE/PI, 8 A variedade de suportes que o espaço urbano proporciona á prática da pichação demonstra a versatilidade do objeto desta investigação. Além dos já apontados, são viadutos, passarelas, placas de sinalização, portões, portas de enrolar, e assim por diante, que podem ser alvos potencias dos sprays se atenderem a exigência dos pichadores de estarem localizados em espaços de grande circulação (OLIVEIRA, 2008; PENNACHIN, 2003, SOUSA, 2007). 9 Quando concedeu entrevista ao autor durante a disciplina de Estágio Curricular, em 07 de Junho de 2009, este sujeito pediu a abreviação do seu apelido quando fosse necessário usa-lo. que ai sabia que era eu né? Ai quando não dava tempo de coloca o pessoal pensava que era ele. Eu falei: não! Pô, agora eu vô botar o meu nome agora. Ai mudei para Pink. Ai daí Pink não deu muita coisa não. Achei muito estranho para mim. Muito diferente de mim. Não, vô botar outra coisa. Ai comecei a colocar o Fobia de novo. Só que nesse Fobia que eu voltei a colocar, eu tava botano diferenciado. Que eu tava colocano com letrão grande. Que no tempo o pessoal não colocava, né? [...] Ai comecei a colocar Fobia, que era umas letras retangular assim [fala desenhando no ar o estilo das letras] que eu colocava. O Fobia fazia o [charpi] e eu fazia o letrão grande. Ai foi que foi mais diferenciado. Bem como os jovens do Rio de Janeiro, que entendem os significados socioculturais presentes nas músicas dos bailes funk cariocas, os jovens teresinenses já devem saber que os charpis que confeccionam são emblemas que representam seus autores, daí espertamente procuram fazê-los em uma estilização individual que dê conta da divulgação precisa de cada autor (SOUSA, 2007; VIANNA, 2003; VALENZUELA, 1999). Os jovens teresinenses, como alunos aplicados da complexidade social, também já devem saber que “a marca é um obstáculo ao esquecimento” (CLASTERS apud DIOGINES, 2008, p. 190; VIANNA, 2003). Levada as ultimas consequências, essa ideia chegou aos charpis pelas tintas dos Rebeldes Suicidas. Seus sprays revolucionaram com mudanças substanciais e imutáveis á prática da pichação de muros em Teresina. Entre elas está a reinvenção da linguagem do movimento, quando a RS deixou de usar o alfabeto de letras estilizadas para empregar signos na composição de suas pichações. Destituídos da linguagem cifrada proporcionada pelas “letragens” – como assinalado, de uso fundamental na segunda fase do movimento – agora os charpis da RS gritavam seus significados através da imagem. O primeiro a fazer uso desse recurso foi o Fobia de Teresina, quando na busca pela alteridade em relação ao Fobia de Fortaleza redefiniu seu código de adscrição ao circuito de pichadores. Sob o pseudônimo de Bola 8, seu charpi passou a reivindicar os espaços mais concorridos da cidade, confeccionado de forma inovadora a partir de um circulo com o número 8 dentro: Pô [o Fobia] já tava com uma fama da porra. Eu tava veno que tava dano fama pra ele e falei: pô, tô [...] riscano o nome do cara. [...] Falei: não, tá errado esse negoço ai. Vô faze o meu. Até que eu [encontrei com] ele [e falei]: não Fobia, já chega. Tu tem lá [em Fortaleza] e tem aqui. Tô cubrino o teu aqui. Vô faze o meu agora. Ai, [...] vêi esse apelido, né? [...] Pink, que eu falei que não dava muito certo. Por que Pink, não tem nada haver comigo [...] Eu digo: não, num dá muito certo não. Vô botar Bola 8. Ai, daí, surgiu o Bola 8. A RS notabilizou-se dentro do movimento de pichadores de Teresina com charpis inovadores. Além do Bola 8, outros dois integrantes do grupo fizeram uso de signos na composição de seus charpis – Kasa e Morcego . Marcando assim uma diferença, uma diferença do semelhante: É, acontece de no meu caso é por que eu procurei uma forma diferente [...] da pichação dos outros [...] entendeu? O meu, o que que eu poderia caracterizar com o meu? É, o palhaço entendeu? O meu era o palhaço, que tinha as bolinhas. Os outros eram mais parecidos um com o outro. Tinham, é, nomes. O meu já não era o nome Kasa[...], e sim o símbolo do Kasa[...]. O que era o Kasa[...]? Um palhaço (foto 5). Foto 5: Charpi do Kasa. Note que na parte superior é desenhado um chapel característico do Arlequim, um palhaço do tipo bobo-da-corte, Av.Dom Severino, Bairro: Jockey, Teresina – PI. [...] o Morcego fazia um Morcego10. Contudo, o Bola 8 foi quem melhor explorou as possibilidades que o uso do signo propiciava as pichações. O emprego do circulo com um 8 dentro dava flexibilidade á seu charpi, de formato “camaleônico’ hora era estilizado de uma forma, hora podia ser visto de outra. A diferença desse momento em relação a fase da chegada do alfabeto – na qual os charpis começaram a surgir na 10 Não encontramos nenhum um charpi deste jovem por entre as Avenidas das Zonas Leste, Sul e Norte da cidade, cidade – zonas cartografadas durante esta investigação. paisagem da cidade – não estava apenas no fato de que esses primeiros eram feitos a partir de letras engenhosas11, porém compostos de setas inexpressivas. Mas sobretudo, por que agora eram feitos em vários estilos, com o objetivo de adapta-los aos espaços da cidade. Tendência lançada pelo Bola 8 no movimento juvenil do charpi em Teresina (fotos 6, 7, 8 e 9) : Meu símbolo era aquele: o 8. A bola 8, o RS e as seta modificava. Botava por baxo [do muro], rastera12. Fazia seta é, tipo: de raio, aquelas seta cortada, quebrada. Que tanto pra [...] bota [em] distancia, pega tela toda, [...] pra num dexa espaço pra ninguém [...]13. Foto 6: Charpi do Bola 8. Não foi possível determinar o local exato devido a intolerância que os moradores da casa apresentaram quando tirávamos a foto,Teresina – PI. 11 Paráfrase da expressão “inscrições engenhosas” formulada pelo sociólogo mexicano José Manuel valenzuela Arce quando investigou as pichações cariocas (1999, p. 10), em pesquisa avaliativa de continuidades e descontinuidades entre práticas juvenis delinquentes identificadas em Tijuana e na Cidade do México e outras no Rio de Janeiro. 12 Este estilo de seta era empregada no roda pé do muro. Isso quando a parte superior de um muro bem localizado não era possível de ser pichada. 13 O muro da Polícia Rodoviária Federal, localizado na Avenida João XXIII, foi preenchido por esse outro estilo de seta do Bola 8. Causando impacto entre os praticantes que não tinham um charpi que pudesse ocupar grandes espaços. Foto 7: Charpi do Bola 8, Av. Campo Sales, Bairro: Centro/Sul, Teresina – PÌ. Foto 8: Charpi do Bola 8. Av. Dom Severino, Bairro: Jockey, Teresina – PI. Foto 9: Charpi do Bola 8. Av. Nossa Senhora de Fátima, Bairro: Jockey,Teresina-PI A possibilidade de um charpi que supera os obstáculos apresentados pelos suportes da cidade originou o surgimento de uma nova técnica na pichação de muros em Teresina. Se antes um espaço repleto de pichações era desprezado por não ser mais atingível pelos sprays, agora o charpi do Bola 8 podia aproveita-lo plenamente, quando estampado na parte superior do muro, sua seta era estendida ao longo do espaço para descer na extremidade, encobrindo assim os charpis que lá estavam. Bola 8 nomeou a técnica de “superá”: É superá. Como eu te falo [...] . Se você dexo espaço por cima... O povo disse que eu era meio folgado, tá entendendo? Mas se dexo espaço em cima e não tô riscano o seu, cara, num posso faze nada, você dexo... Agora, se você consegui risca [da] ponta do muro até o chão, pra mim num [superá], tá tranquilo. Ai eu num [supero]. Agora, se dexo espaço em cima e a tinta puder passar... [...] coloca só o [...] risco da seta que vai pro chão e puxava a outra por cima já [...] colada com a minha própria seta. Já colano em cima, já passano por cima da galera assim. Tipo [...] colocava um charpi, num dava pra passa por cima, botava uma seta no chão e botava o outro risco por cima saino do meu charpi. Ai, tipo, fico espaço? Aproveitava. O meu destacava mais, né? O meu, eu peguei a tela toda e os cara, ficaro tudo embaxo14. Bola 8 formou dupla com Kasa nas aventuras com spray pelos itinerários urbanos. Rebeldes Suicidas que se rebelaram contra o uso do alfabeto estilizado de pichadores na composição dos seus charpis. Assim como Bola 8, Kasa também fazia uso de uma longa seta para ocupar grandes espaços (foto 10), bem como a empregava para “superá” charpis que não ocupavam todo o muro no qual eram feitos. Juntos tornavam-se KasaBola15. Em traços subreptícios trouxeram ino vações que marcaram o movimento de pichadores de Teresina, impedindo que sejam esquecidos. Mitificados entre a juventude de 14 Embora não tenha sido possível encontrar um charpi do Bola 8 empregando está técnica por entre os muros das Avenidas das Zonas Leste, Sul e Norte da cidade, é possível compreendela observando a foto de número 7, na p. 10. Pois da parte superior de um muro aquela seta descia do charpi do Bola 8 encobrindo, sem riscar, os charpis que não aproveitavam os demais espaços do local. Na verdade, este sujeito empregava a técnica de “superá” com todos os seus charpis. 15 De acordo com Bola 8: KasaBola foi uma mistura de kasa[...] com Bola 8. [...] [quando] não dava pra coloca muito, [...] charpi, quando a gente saia com uma lata só [de spray], ele botava o charpi dele dum lado, ele fazia uma seta e eu colocava o meu charpi em cima da seta dele. Então ficava um charpi, tipo junto com o dele, né? Ficava um charpi só e [os dois charpi] junto. Teresina, “[...] desfruta[m] de uma fama ganha a pulso, audácia e spray (VALENZUELA, 1999, p. 132). Foto 10: Charpi do Kasa com seta longa. Av. Jockey Club, Bairro: Jockey, Teresina – PI. Bola 8 foi o responsável ainda pelo pioneirismo em fazer uso no seu charpi do desenho de um coração, seguido das consoantes que compõem o nome de sua namorada. Mais que adereços, a cima de tudo, representavam efusivas declarações de amor pela cidade. Uma das mais significativas de suas façanhas neste sentido foi a audaciosa escalada ao prédio do Centro Artesanal Mestre Dezinho para imprimir no topo seu charpi e patentear publicamente seu amor: R. B. N. T. EU TE AMO (foto, 11, abaixo). Considerações finais Tsss, tsssss... pichar os muros e ganhar a cidade através de inscrições em spray é ser onipresente nos suportes da cidade urbanos, é estar em cada avenida, é superar as dificuldades apresentadas pelos edifícios públicos e re residenciais, é driblar porteiros e zeladores (GITAHY, 1999), é subir nos ombros do companheiro para alcançar as instalações de um ar condicionado ou a parte superior de um muro16. É alterar a composição dos muros e paredes com “inscrições engenhosas” (VALENZUELA, 1999, p. 9) que atraem a atenção, desafiando á leitura e á decifração. É transformar a cidade em um mapa cultural (CANEVACCI apud DIOGINES, 2008) que não apenas enuncia narrativas individuais – como o afeto de um jovem por uma garota – como condensa e expressa os vestígios de dimensões culturais mais amplas – como o movimento juvenil do charpi em Teresina (DIOGINES, 2008). Um olhar míope enxerga a atividade de pichar muros como algo sem propósito, sugerido assim que seus praticantes são estritamente desocupados (SOUSA, 2008). Enxergando mais além, a estudiosa dos assuntos juvenis, Valéria da Silva (2008, p. 2), faz a seguinte colocação: [...] as atuais e complexas formas dos jovens ocuparem a cena pública [situa-os] para além dos problemas entendidos por alguns como de caráter ‘juvenis’. Os jovens não são, por definição, hedonistas, atores de práticas violentas ou do uso de drogas, entre outros. Produzem cultura, redefinem (grifo meu) pautas morais, sociais e políticas, trabalham, estudam, constroem um existir pleno de sentidos e significados enquanto sujeitos do seu tempo (SILVA, 2008, p. 2). Então, em concordância com a pesquisadora dos assuntos juvenis, pensa-se aqui que o ato juvenil de pichar a cidade não pode ser entendido tão somente por concepções simplistas, que por serem unilaterais, não consideram que a pichação de muro é uma prática também realizada nas campanhas políticas para a divulgação dos nomes e respectivos números de candidatos ansiosos a serem eleitos ao governo. 16 Em São Paulo a prática de subir nos ombros de um companheiro é chamada de “pé nas costas” (OLIVEIRA, 2008, p. 231). Referencias DIOGINES, G. Cartografias da Cultura e da Violência: gangues, galeras e o movimento Hip-Hop. São Paulo: Annablume, 2008. GITHAY. C. O que é Graffite. São Paulo: Brasiliense, 1999. OLIVEIRA, R. C. A. A vida (nem tão Secreta) dos Pichadores de São Paulo: festas, rolês, tretas e amizades. In: BORELLI, S. H.; FREIRE FILHO, J. (orgs). Culturas Juvenis no Século XXI. São Paulo: EDUC, 2008. PENNACHIN, D. L. Signos Subversivos: das significações de grafftiti e pichação. Metrópoles contemporâneas como miríades sígnicas. Disponível em:<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2003/www/pdf/2003_NP15_p ennachin.pdf>. Acesso em: 04 Jan. 2012. SILVA, M. V. Projeto de pesquisa Coletivos Juvenis: novos cenários, práticas e políticas. Teresina: NUPEC/UFPI/CNPq/FAPEPI, 2008. Mimeo SOUSA, D. C. A. Pichação Carioca: etnografia e uma proposta de entendimento. Disponível em: <http://www.Comunidadesegura.org/ files/pichação%20cariocaPDF>. Acesso em: 04 Nov. 2011. VALENZUELA, J. M. A. Vida de Barro Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. VIANNA, H. Galeras Cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
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