“SE LHES RETIRAS A RESPIRAÇÃO MORREM” (Sl 104,29
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“SE LHES RETIRAS A RESPIRAÇÃO MORREM” (Sl 104,29
“SE LHES RETIRAS A RESPIRAÇÃO MORREM” (Sl 104,29). Descobrindo a importância da espiritualidade a partir das necessidades elementares da vida * When you take away their breath, they come to an end, and go back to the dust Rivaldave Paz Torquato, O. Carm ** RESUMO: A presente reflexão é uma tentativa, desde o espírito dos livros bíblicos sapienciais, de motivar para a espiritualidade a partir das necessidades mais elementares da vida, particularmente as decisivas para viver. O autor, fazendo-se valer da hierarquia das necessidades básicas, conhecida como a Pirâmide de Maslow, elenca aqueles do primeiro nível da hierarquia de Maslow, a fisiologia, e selecionou, entre eles, o dormir, a luz (o sol), o comer e beber, e o respirar (o ar). Tais necessidades são comuns aos animais. Mas já – de forma análoga – apontam para a necessidade da vida divina em nós que coroa a existência. Dado, porém, que o ser humano é bem mais que um mero animal, tornase necessário olhar para as coisas que se vêem e que são efêmeras intuir as invisíveis e eternas. Daí decorre a sabedoria bíblica ou seja: deixar-se fascinar pela ordem da natureza porque ela denuncia a desordem humana e está sempre atento para perceber no ordinário da vida o extraordinário de Deus. PALAVRAS CHAVE: espiritualidade sapiencial, necessidade elementares, necessidade de Deus, dom, tarefa. ABSTRACT: The present reflection is a quest of motivating to spirituality from the most elementary needs in life, particularly the decisive ones to live. The author, using the hierarchy of basic needs, known as the Pyramid of Maslow, listed that of the first level of Maslow’s hierarchy, physiology, and selected, among them: sleeping, the light (sun), eating, drinking and breathing (the air). These needs are also common to the animals. But already - in a similar way - point to the need of the divine life in us that crowns the existence. Given, however, that the human being is much more than a mere animal, it becomes necessary to look at the things which are seen and which are fleeting and sense the invisible and eternal ones. Hence, comes the biblical wisdom i.e.: to let oneself be fascinated by the order of nature because it denounces the human disorder and is always attentive to perceive the extraordinary of God in our ordinary life. KEY WORDS: sapiential spirituality, basic needs, need of God, gift, task * Aos amigos, que com frequência pedem minhas reflexões por escrito, dedico este pequeno artigo. * Mestre em Ciências Bíblicas, pleo Pontifício instituto Bíblico de Roma e doutor em Dagrada wscritura pela Werstälische Wilhelms-Universität de Münster – Alemanha (WWU), professor do Studium Theologicum de Curitiba. 89 1 – INTRODUÇÃO O ser humano quer ser dono da própria vida, quer ser protagonista do próprio destino, quer saber por onde andar e ordenar a vida para ser feliz. Modelar a própria vida com decisões pequenas e grandes é obra de arte, é tarefa de artesão. Ora, o ser humano quer ser artesão sensato da própria existência, apesar da fadiga que isto normalmente acarreta.1 Esta iniciativa aparentemente boa e sadia pode tornar-se uma cilada quando empreendida sem parâmetros, no isolamento, sem alteridade, enfim, quando o ser humano se faz a medida de si mesmo. Não raro o protagonismo humano se revela falso e não atinge a meta, gera uma pessoa amarga e infeliz. A vida torna-se uma fadiga, uma mera tarefa sem dom. 90 Vindo ao encontro desta realidade, a Sagrada Escritura apresenta o caminho da sabedoria ou sapiência. Esta sabedoria é tarefa, adquire-se no cotidiano, brota da experiência da vida, é prática. É preciso ter um olho para o chão para não tropeçar e não cair. Mas é preciso ter o outro olho voltado para cima porque ela é também dom de Deus que oferece o horizonte. Dito de outro modo, é preciso estar atento para ver irromper o dom na tarefa e que, por sua vez, a ilumina. O sábio – da perspectiva bíblica – se deixa fascinar pela ordem da natureza porque ela denuncia a desordem humana e está sempre atento para perceber no ordinário da vida o extraordinário de Deus. Ele, perscrutando a sabedoria, está aberto a acolher o dom quando a razão por si já não alcança. Esta sabedoria não é algo puramente intelectual, é participação no saber criador de Deus, é o saber fazer, realizar, é artesã. É uma oferta de sensatez, que dá sentido e torna o ser humano consciente e livre, enfim, que o permite ser realmente feliz. Sendo assim, a sapiência bíblica inspira o homem a estar atento e observar a ordem do cosmo, as leis da natureza, as coisas da vida para dai aprender e apreender por analogia aquela sabedoria que conduz à vida. Certamente faz sentido o dito popular: o mundo é uma escola. Nesta perspectiva, a reflexão que segue é uma tentativa de motivar para a espiritualidade a partir das necessidades mais elementares da vida.2 1 2 Para a sabedoria como oferta de sensatez e o sábio como artesão sensato da própria existência, a vida como obra de arte, cf. L. ALONSO SCHÖKEL – J. VILCHEZ. Proverbios. Cristiandad, Madrid, 1984, pp. 21-26. Pensa-se naqueles elementos sem as quais a vida deixa de existir ou é substancialmente diminuida. 2 – AS NECESSIDADES ELEMENTARES DA VIDA HUMANA Existem várias necessidades que são básicas para a vida. Algumas embora sendo básicas, podemos sobreviver sem o respectivo preenchimento. Vestir, por exemplo. A grande maioria não quer viver nua, mas os povos da floresta ou os aborígenes conseguem viver sem roupas! Outras, porém, são decisivas para a sobreviência. Sobre estas dirigiremos a seguir nossa atenção. 2.1 – Dormir Dormir é vital para a saúde física e psíquica de uma pessoa. Quando alguém dorme bem, sereno e profundo se diz que ele tem o “sono dos justos”, enquanto se não consegue dormir se diz que ele tem a “consciência pesada”. Uma pessoa fragmentada não dorme ou tem dificuldade de dormir. Falta-lhe o equilíbrio que devolve um sono tranquilo. As preocupações tiram o sono. Alguém que comete barbaridades morais e dorme tranquilo é chamado de “sangue frio”. O sono restitui as energias do corpo e da mente. E assim por diante. São expressões do cotidiano que mostram o vínculo entre o dormir e a saúde do corpo, da mente e da moral. É claro, portanto, que o sono é necessário ao organismo e, por conseguinte, à sobrevivência. A Sagrada Escritura não ignora esta necessidade humana. Ao contrário, ressalta sua importância, quando - recorrendo ao antropomorfismo - diz que também Deus dorme (Sl 44,24; 78,65),3 embora renuncie o dormir e o cochilar para guardar a ti e a Israel (Sl 121,3-4). O ápice da tradição bíblica em relação ao dormir, porém, está em fazer do sono profundo e do sonho meio comum de revelação divina. Por esta via, Deus comunica seus desígnios, sua vontade, dá instruções ao ser humano, mostra-lhe o futuro.4 Assim foi sobretudo com Jacó (Gn 28,10-19; 31,10-25), com José do Egito (Gn 37,5-20), com o Faraó (Gn 41), com Daniel (Dn 2; 4; 7) e com José de Maria (Mt 1,20; 2,13-23). 5 Enfim, o 3 Os Evangelhos também registram este aspecto em Jesus: “... houve no mar uma grande agitação, de modo que o barco era varrido pelas ondas. Ele [Jesus], entretanto, dormia. Os discípulos então chegaram-se a ele e o despertaram...” (Mt 8,24-25//Mc 4,37-38 e com outro verbo Lc 8,23-24). 4 Cf. por exemplo: Gn 20,3.6; 28,12.16; 31,10.11.24; 37,5.6.8.9.10.19.20; 40,5.8.16; 41,7.8.11.12.17.22.26.32; 42,9; Nm 12,6; Dt 13,2.4.6: Is 29,7; Dn 2,28; 7,1; Jó 4,12-13; 7,14; 20,8; 33,14-15; Jl 3,1; IV Esd 10,59; 11,1; 12,35; 13,1.35; 14,8; Sr 34,3; II Mc 15,11; Mt 1,20; 2,12-13.19.22; At 2,17; 16,9; 18,9. 5 A este propósito, J. J. COLLINS observa: “Por todo o mundo antigo, os sonhos eram considerados como um importante meio de comunicação entre os deuses e a humanidade. Eles são considerados ambivalente na Bíblia hebraica. Sua validade é aceita no Gênesis, mas questionada por Jeremias (cf. Jeremias 23,27-28) e Ben Sira (Sirácida 34,1-8). [Em Daniel] eles são um meio positivo de revelação. Daniel não utiliza os artifícios babilônicos tradicionais de adivinhação; ele tem um meio superior de acesso à revelação, através de sua oração a Deus” (cf. A Imaginação Apocalíptica. Paulus, SP, 2010, p. 141). 91 dormir, o sono e o sonho dão vazão ao mistério. O sonho é a mediação que o ser humano não consegue controlar. Enquanto dorme, a pessoa é incapaz de oferecer resistência, está a mercê de tudo e de todos, indefesa. Já não é mais dona de si mesma, perde o controle dos próprios sentidos. Os mecanismos de defesa estão desativados.6 Entra-se na inatividade.7 Então é o tempo e a condição propícios para a vinda de Deus e manifestação de seus desígnios. Ao dormir o ser humano descobre - por analogia - as condições para acolher Deus e sua vontade: não resisti-Lo.8 Ele é como o ladrão (Mt 24,43) e prefere a não-resistência! Já o primeiro homem, Adão, Deus o faz imergir num profundo sono (Gn 2,21) para abri-lo para uma realidade nova, manifestar-lhe a alteridade (v. 22), causa de sua alegria (v. 23). José, ao interpretar os sonhos de Faraó (Gn 41,1-36) e realizar as instruções neles recebidas (Gn 41,47-49), abre para si e para os outros uma possibilidade nova. O mesmo se verifica em José de Maria. Ele segue, isto é, obedece as instruções do anjo do Senhor no sonho e o plano divino se realiza abrindo uma possibilidade nova à toda humanidade.9 92 Se a comunicação dos desígnios divinos por parte de Deus é dom, pressupõe da parte humana a atitude correta para receber. Esta postura é expressa no dormir, e nele, o sonhar, isto é, a inatividade que acentua o protagonismo de Deus que nos precede. O protagonismo do homem sucede, isto é, ao transformar o dom recebido em tarefa, em missão. O dom abre-lhe um horizonte. Esta abertura para receber manifesta-se na disposição em adequar a vida ao dom recebido, ou seja, levar vida justa e reta. Estes são os traços daqueles que, na Bíblia, receberam os desígnios de Deus mediante o sono ou o sonho. São pessoas de quem Deus se agrada e (por isso) dá a conhecer os seus mistérios. São tidas por justas e sábias. Mas convém lembrar que a Escritura também alerta que o sonho pode ser usado para se afastar de Deus (Jr 23,27) e dar espaço para a fantasia (Sir 34,1-8). Siracida não fecha a possibilidade de intervenção divina mediante sonhos, mas é preciso ser crítico. Ora, cada vez que o sono vem, o ser humano (que crê) lembra-se que assim como não pode viver sem dormir, também não pode viver sem Deus – pode 6 7 8 9 Cf. Jz 16,19; I Sm 26,7.12; I Rs 3,20; Mt 28,13. Por isso o dormir é comparável à morte (cf. Is 51,39.57; Dn 12,2; Mt 27,52; Jo 11,11.12; At 13,36; etc.). As funções orgânicas obviamente continuam atuando normalmente – segundo o ritmo exigido na fase do sono. Segundo E. ARENS – M. D. MATEOS: “Os sonhos particularmente apontam para a profundidade dos desejos e anseios do homem; surgem do subconsciente, sem que sejam controlados pelo homem. Daí poderem-se conceber na Bíblia os sonhos como meio de entrar na esferea divina. Esse mundo era considerado real. Além disso, como os sonhos ‘se nos impõem’, pois não os manejamos conscientemente – o que é evidente nos pesadelos –, não é de admirar que outrora fossem considerados revelações” (cf. O Apocalipse – a força da esperança. Estudo, leitura e comentário. Loyola, São Paulo, 2004, p. 118). Cf. Mt 1,20-25; 2,13-14.19-22. vegetar.10 Então lembrar-se-á das condições para receber os seus desígnios e procurará adequar-se a eles para manter a vida na rota certa e ser feliz. O adequarse aos desígnios, porém, se faz desperto e de dia, responde-se na luz. 2.2 – A luz: o sol A vida no planeta depende da luz. Uma planta em seu crescimento se orienta para o sol, ela vai na direção da luz. Ela precisa da fotossíntese, sem falar do fator da pigmentação. Ora, na cadeia alimentar, o que o ser humano faria sem as plantas? O que dizer da importância da energia, do calor, da vitamina D para os ossos? E assim por diante... Até um certo nível de profundidade no oceano, a vida ainda existe, mas escassa e de forma primitiva, rudimentar, pois falta a luz. É a vida que ninguém deseja. A luz é ainda essencial para caminho, isto é, está na base da vida ética: caminhar na luz.11 É um fato incontestável que a luz é essencial para a vida e seu desenvolvimento. É inconcebível, para os viventes, a terra sem luz. Como se não bastasse, daquilo que já foi dito, permite-se concluir que se não temos a luz em em nós mesmos, então a vida depende de algo fora de nós. Ora, a Bíblia percebe com muita clareza esta necessidade humana. No relato da criação, a primeira coisa que Deus cria é a luz (Gn 1,3). Com isso a Escritura ensina que a vocação fundamental do mundo é sair das trevas para luz12 até que não haja mais noite (Ap 22,5). Nela insiste-se que a escuridão, as trevas, a ausência de luz não é o habitat da vida, mas expressão da morte, do caos, da anti-vida. Segundo Qohelet, suave éa luz e agradável é aos olhos ver o sol (Qo 11,7). O salmista vai um pouco mais longe e afirma que Deus é sol e escudo (Sl 84,12), é luz13 e sua Palavra é luz (Sl 119,105).14 O messias que devia vir é sol15, “o Sol nascente que nos veio visitar”(Lc 1,78). A Palavra de Deus que se fez carne, Jesus, é a luz (Jo 8,12; 9,5) e luz verdadeira que ilumina todo homem (Jo 1,9). O mistério da Páscoa é passar das escuridão da morte à aurora da vida (Mc 16,2), isto é, das trevas para a luz. Enfim, nestas expressões bíblicas se esconde uma afirmação basilar: da mesma forma que a vida não pode existir sem luz, o ser humano não pode viver sem Deus e sua Palavra. Ve-se nisto a pedagogia divina, ou seja, parte daquilo que é óbvio na vida para, por analogia, abraçar aquilo que é mistério. É a conclusão irrefutável 10 Obviamente que o ímpio insiste em achar que pode e consegue viver sem Deus. Mas com que qualidade ou intensidade de vida? Com qual horizonte? 11 Cf. Jo 11,9-10; veja também 3,19-21; 12,35-36.46. 12 A 1ª Carta de Pedro fala “...daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (I Pd 2,9). 13 Cf. Sl 27,1; 36,10; 118,27; I Jo 1,5. 14 Enquanto salmos, trata-se de uma experiência adquirida na oração. 15 “Para vós que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas...” (Ml 3,20). Veja o vínculo entre sol da justiça e salvação, ou seja, vida em plenitude. 93 que o salmista chega pela oração: “Deus é nossa luz” (Sl 118,27). Se nesta terra, luz é sinônimo de vida, na Bíblia luz é sinônimo de salvação, porque é sinônimo de Deus (Sl 27,1). Nesta perspectiva o primado da autossuficiência humana – uma vez que não tem luz em si mesmo – é um engodo, pois é na Sua luz que veremos a luz (Sl 36,10), é na Sua luz que somos luz (Mt 5,14; Ef 5,8)! Por um lado, a noite (o sono) aparece como o tempo em que o ser humano oferece as condições propícias para acolher o dom divino, isto é, a sua instrução, sua vontade, seus desígnios. Por outro, o dia (acordado) representa o tempo propício para a pessoa responder ao dom, isto é, procura realizar a mesma vontade, os mesmos desígnios de Deus manifestados enquanto dormia. É à luz do sol que se trabalha.16 Noite e dia abarcam o arco do tempo. Isto significa que todo tempo o ser humano envolve-se neste diálogo com Deus que lhe garante a vida. O saltério, logo no seu prólogo, de certa forma aborda este pensamento quando afirma: Feliz o homem ... que tem o seu prazer na lei do Senhor e medita sua lei dia e noite (Sl 1,1-2). 94 2.3 – Comer e beber Um outro dado da experiência revela que a vida – ainda que vegetativa – não subsiste sem alimento. É verdade que alguns vivem pra comer e comem compulsoriamente. Mas comer é conditio sine qua non pra viver.17 Ora, comer requer um contato direto, pessoal e imediato com o alimento. Ainda não é possível comer on-line, via satélite, por telefone, pela televisão, auto-sugestão, etc. O alimento virtual ainda não resolve o drama da fome. Tampouco é possível alimentar alguém ou alimentar-se mediante procuração, ou melhor, não posso comer no lugar de alguém ou esperar que alguém alimente-se por mim. É tarefa intransferível e insubstituível. E a desnutrição mata. Mais ainda, não basta se alimentar uma vez, a dependência do alimento é contínua. Tudo estaria resolvido se tivéssemos o alimento em nós mesmos. Neste nível descobre-se a nudez dos viventes: não temos a vida em nós mesmos. Dependemos duma realidade fora de nós, neste caso, do alimento. 16 Veja a afirmação de Jesus: “Enquanto é dia temos que realizar a obra daquele que me enviou. A noite vem, quando ninguém pode trabalhar”(Jo 9,4). Paulo convida a despertar do sono, pois vem chegando o dia e é preciso revestir as armas da luz, andar como em pleno dia, isto é, realizar as obras de Deus (cf. Rm 13,11-14). 17 Segundo A. J. HESCHEL: “Muita gente pensa que alimentamos nosso corpo para aliviar os tormentos da fome, para acalmar os nervos irritados de um estômago vazio. Na verdade, não comemos porque sentimos fome, mas porque a ingestão de alimento é essencial para a manutenção da vida, de vez que fornece as energias necessárias para as várias funções do corpo. A fome é o sinal para comer, sua ocasião e seu regulador, mas não a sua causa verdadeira. Não confudamos o rio com a navegação, a nutrição com a fome, ou a religião com o uso que dela faz o homem” (cf. O homem não está só. Paulinas, SP, 1974, p. 238). Outra vez a Escritura percebe este dado da existência e já no caminho do deserto apresenta Deus fazendo cair o maná como alimento para o seu povo (Ex 16). Assim ensinava que a vida cotidiana vem de Deus. O Deuteronômio, num texto de extraordinária beleza, mostra por analogia que este maná é a Palavra de Deus sem a qual o povo não pode viver: Lembra-te, porém, de todo o caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto, (...) fez com que sentisse fome e te alimentou com o maná que nem tu nem teus pais conheciam, para te mostrar que o homem não vive somente de pão, mas que o homem vive de tudo aquilo que procede da boca do Senhor. (...) Portanto, reconhece no teu coração que o Senhor teu Deus te educa, como um homem educa seu filho... (Dt 8,2-3.5). Enquanto Sagrada Escritura, este texto ensina e é, portanto, uma escola. Então, na escola de Deus a sabedoria da vida. Enquanto fato da vida que ensina, isto é, a fome de pão que mostra a necessidade da Palavra, é também uma escola. Então, na escola da vida a sabedoria de Deus. Quer por uma escola (a Escritura), quer pela outra (a realidade da vida), Deus apresenta-se como um pedagogo que nos educa como um homem a seu filho (v. 5). A aprendizagem, porém, é um caminho (v. 2). Neste nível, a sabedoria prepara um banquete e envia as criadas a convidar (Pr 9,2-3): “vinde comer do meu pão e beber do vinho... Deixai a ingenuidade e vivereis, segui o caminho da inteligência” (v. 5-6).18 Obviamente – comer do meu pão – não se refere mais no nível físico-biológico, antes trata-se de uma proposta ao ser humano a ser inteligente e aprendar na escola do Pedagogo (Dt 8,5-6) e viver conforme sua vontade. Isto é uma condição de vida. De modo semelhante é o que diz respeito ao beber, à água. Moisés tira a água da rocha para mostrar que esta também é um dom de Deus19 e serve ao mesmo propósito: a vida cotidiana é dádiva, não a temos em nós mesmos. A analogia é explicitada também em Amós: “Eis que virão dias em que enviarei fome a terra, não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor” (Am 8,11). Estas ocorrências bíblicas vão culminar no discurso de Jesus que, vindo ao encontro da fome e sede humana, se declara: “eu sou o pão da vida”(Jo 6,34.48.51) e bebida (Jo 6,53.55.56), se faz água (Jo 7,37-38; 4,10-15). E então conclui: “Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca 18 Cf. ainda Sir 24,19-21. 19 Cf. Ex 17,1-6; Nm 20,2-11; Is 48,21. 95 terá sede” (Jo 6,35; cf. Is 49,10). Ora, o que a Bíblia e Jesus querem ensinar com tais afirmações? A resposta parece óbvia! De forma análoga aos alimentos, o ser humano precisa de uma relação pessoal, imediata e contínua com Deus. Esta relação não pode ser terceirizada. O homem não tem vida em si mesmo e, portanto, da mesma forma como não pode viver sem alimento (comer e beber) também não pode viver sem Deus. A vida divina é tão fundamental para a pessoa como é o alimento e a água. O homem é um ser que se recebe dos antepassados e de Deus. Nos recebemos d’Ele a cada novo dia. Somos prova da sua permanente providência. 20 Para erradicar esta carência humana Jesus se faz comida e bebida. Não por acaso, a eucaristía não é mero algo periférico, mas centro e ápice da vida da Igreja, da vida do crente. A inanição espiritual também mata. 2.4 – Respirar: o ar 96 Se o ser humano sem comer e beber tem sua sobrevivência comprometida em questão de dias e dificilmente ultrapassa um mês, se não respira, se falta o ar, este comprometimento se reduz a alguns segundos, quando muito a pouquíssimos minutos. Com razão se diz que a vida é um sopro! Por que será que o homem com a inteligência extraordinária que dispõe e atingindo um nível de evolução tão elevado ainda não descobriu uma forma de viver sem respirar, sem ar? Imagine que se superassemos a necessidade de respirar, poderiamos explorar planetas sem oxigênio. Isto não é importante ou é um dogma da existência que extrapola nossa alçada? Estas perguntas são tão ingênuas quanto perspicaz. É pra fazer o leitor divagar! Todavia, outra vez fica definitivamente claro que a vida depende de algo fora de nós e que não a temos em nós mesmos. A Sagrada Escritura, ao falar da criação do homem, diz que “o Senhor Deus modelou o homem com pó do solo, soprou em sua narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente (Gn 2,7).21 O pó ressalta a fraqueza humana, sua condição mortal e efêmera,22 enquanto o hálito de vida de Deus aponta para a dimensão divina do ser humano. Enquanto vive, enquanto respira, o homem mantém acesa a centelha divina dentro de si (cf. Pr 20,27). Desta forma a Bíblia quer fazer uma afirmação basilar e já mencionada acima: a vida humana é dom, o homem é um ser que se recebe de Deus. Para viver, ele depende do hálito de vida que só Deus dá (cf. Jó 33,4; Is 42,5). Ora, respirar, receber este hálito, foi apenas 20 Para a analogia entre o alimento e a vida espiritual veja ainda I Cor 3,2; 10,3-4; Hb 5,12-14; I Pd 2,2-3. 21 Este mesmo verbo soprar ocorre também em Ez 37,9: “Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e sopra sobre estes mortos, para que vivam”. Cf. também Sb 15,11. 22 Cf. ainda Gn 3,19; Jó 10,9; Ecle 3,20. Abraão se declara:“Eu sou pó”(Gn 18,27) e o salmista, falando da misericórdia divina, afirma que Deus“conhece nossa estrutura e sabe que somos apenas pó”(Sl 103,14). um acontecimento pontual realizado no momento da criação e pronto (creatio prima) ou trata-se também de um ato contínuo, repetido a cada segundo (creatio continua)? Se fosse um ato pontual do passado, o ar se tornaria gás carbono e longe de vivificar, mataria. O dinamismo da vida reproduz-se também no ato elementar da respiração segundo por segundo. Portanto, o homem não pode afastar-se daquele que sopra em suas narinas o hálito que lhe permite ser um vivente. Isto requer um face-a-face com Deus. Esta parece ser a posição exata em que a narina humana pode receber o sopro da boca divina. Parece-nos que é exatamente isso que quer nos transmitir dois textos bíblicos.23 O primeiro é Jó 34,14-15: Se levasse de novo a si o seu espírito, se concentrasse em si o seu sopro, expiraria toda a carne no mesmo instante, e o homem voltaria a ser pó. Jó constrói uma frase condicional e de forma indireta (terceira pessoa) tirando uma conclusão clara: se Deus não concedesse seu sopro de vida o homem seria reduzido ao estado que precede sua criação, isto é, voltaria ao pó. Não há meio termo. O segundo texto é Sl 104,29-30: Escondes tua face e eles [os seres vivos] se apavoram, lhes retiras a respiração, morrem, voltando ao pó. Envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra. O salmista já faz uma afirmação categórica e direta,24 ou seja, sabe por experiência que, se Deus se afasta ou se esconde, o resultado pra vida dos viventes é desastroso, é fatal. Mas é seu sopro que renova a terra, isto é, Deus não só cria, mas assiste o criado. É uma certeza que vem da oração, do face-a-face com o doador da vida. 23 Convém lembrar por antecipação que os termos espírito (Jó 34,14), respiração e sopro (Sl 104,2930) traduzem o mesmo termo hebraico ruah, que por sua vez apresenta todas estas matizes. 24 Deus é tratado em 2ª pessoa, isto é, discurso direto. 97 Os textos sagrados mostram que o hálito da vida vincula definitiva e inseparavelmente a criatura e o criador. Isto explica porque – na Bíblia e, sobretudo, no saltério – o ser humano busca desesperadamente ver a face de Deus25 ou estar na sua presença.26 Estar na presença de Deus é estar diante da sua face.27 No NT, esta dimensão é elevada ao nível comunitário como mostra Jo 20,21-22: ‘Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo’. 98 Jesus sopra e diz “recebei o Espírito”. São os gestos de Deus do Gn 2,7 (cf. 1,27) vinculados agora à missão. A Igreja, portanto, não tem vida nem êxito missionário sem oração, isto é, sem abertura para acolher e alimentar a dádiva de sua existência. O princípio individual da vida (biológica) torna-se também princípio coletivo (da vida e missão espiritiual). Nesta perspectiva a Escritura faz emergir de forma inequívoca uma profunda verdade da fé: o ser humano necessita de Deus assim como necessita respirar, precisa de Deus como precisa de oxigênio. É uma necessidade que não se pode remediar, é questão de viver ou morrer. Isto é a conclusão óbvia que a analogia da respiração oferece. Furtar-se a esta necessidade é deixar de respirar para ofegar na “nicotina” da vida, é vegetar na incompletude. Abraçar esta necessidade é uma atitude sábia. Uma sabedoria que é dádiva do próprio sopro divino a ser acolhido. Segundo Jó: “Há um espírito no homem, e o sopro do TodoPoderoso o faz sábio” (Jó 32,8). No livro do Êxodo, Deus promete: “Minha face caminhará convosco...” (Ex 33,14). Em Jesus, ele expõe a sua face. Mas também esconde seu rosto.28 Quando isso acontece, o crente se perturba (Sl 30,8) porque sabe que pode descer à cova.29 Embora, na verdade, é a impiedade humana que ofusca e esconde o rosto 25 Cf. Sl 42,3; 24,6; 27,8; 105,4; Jó 33,26; Pr 7,15. 26 Cf. Sl 56,14; 16,11; 17,15; 19,15; 21,7; 22,30; 31,21; 41,13; 68,14. Às vezes usa-se expressões similares como faz brilhar/resplandecer a tua face (Sl 31,17; 67,2-3; 80,4.8.20; 86,16; Nm 6,25; Dn 9,17; cf. ainda Ez 4,3.7) ou a luz da face (Sl 4,7; 44,4; 89,16; 119,135) referida à face de Deus e normalmente vinculado à salvação. 27 Aliás, estar diante da face é a expressão hebraica usada para presença. Não há um termo próprio. 28 Cf. Jó 13, 24; Sl 10,11; 13,2; 27,9; 44,24; 69,18; 88,15; 102,2; Is 8,17; 54,8; 64,6. Veja também Sl 22,25. 29 “Não me escondas a tua face, para que eu não me torne como aqueles que baixam à cova” (Sl 143,7). de Deus.30 O homem se esconde da face de Deus primeiro (cf. Gn 3,8; Jó 13,20). Convém assim lembrar que habitar na presença dele é uma condição de vida, mas é também uma meta a ser alcançada e que pressupõe retidão (Sl 11,7; 140,14).31 Estar diante da face de Deus é também a posição da oração. É por ela que respiramos (de Deus) a força de caminhar, alimentamos a mística, vivificamos nossa missão e nossos sonhos. É a oração que alimenta o face-a-face com Ele. Não é por acaso que esta temática abunda sobretudo no saltério, a oração do povo de Deus, e tampouco é por acaso que a oração é endereçada à face do Senhor.32 O salmista declara: “Esta é a geração dos que o procuram, dos que buscam tua face, ó Deus de Jacó” (Sl 24,6). Jacó vê Deus face-a-face (Gn 32,31), Moisés fala com Deus face-a-face (Ex 33,11) e boca-a-boca (Nm 12,8). É diante da face do Deus-vivo que vive Elias (I Rs 17,1; 18,15). A última frase do saltério resume tudo ao vincular o viver/respirar com o louvor: “todo ser que vive e respira louve o Senhor”! (Sl 150,6). 3 – CONSIDERAÇÃO FINAL Abraham Maslow fala da hierarquia das necessidades básicas, conhecida como a Pirâmide de Maslow. Os elementos aqui apresentados encontram-se entre aqueles do primeiro nível da hierarquia de Maslow, a fisiologia, ou seja, a base da pirâmide. Estamos, portanto, no nível da sobrevivência. Trata-se de necessidades comuns aos animais. Mas já – de forma análoga – apontam para a necessidade da vida divina em nós que coroa a existência. O ser humano não pode reduzir-se ao nível dos irracionais, é preciso ultrapassá-los, superar a animalidade, a ferocidade que devora. Olhando para as coisas que se vêem e que são efêmeras intuir as invisíveis e eternas (II Cor 4,18). Eis o sábio bíblico! Se a sabedoria é um dom de Deus,33 precisa ser transformada em tarefa que leve a pessoa a saborear as coisas do céu.34 O sábio bíblico faz também da fisiologia – enquanto parte da própria ordem da criação – uma ponte para a teologia. Rende-se conta que celebrar é viver. Jesus observou com penetrante olhar a ordem da criação bem como a vida cotidiana e serviu-se delas como base de seu ensino. Basta olhar as parábolas por exemplo. Se ele, Sabedoria de Deus (I Cor 1,24), fez isso, é porque na ordem criada e no cotidiano está uma escola viva de onde se pode aprender e apreender algo 30 Cf. Sl 34,17; 68,2-3; 80,17; veja ainda 51,9; 90,8. 31 Sobre o Deus que se esconde e precisa ser buscado, veja nosso artigo: “Deus se esconde ou nossa experiência se cristaliza?”, Pistis & Práxis 3/2 (2011) 599-633. Disponível também on-line (PDF). 32 Cf. Sl 19,15; 62,9; 88,3; 95,2.6; 98,6; 100,2; 102,1; 119,169-170; 141,2; 142,3. 33 Cf. Is 11,2; Ex 36,2; Jó 35,11; Sl 19,8; Sir 1,1. 34 O salmista percebe isso quando, na sua oração, pede a Deus que ajude a entender a efemeridade da vida e a necessidade de ter um coração sábio: “Ensina-nos a contar nossos dias, para que venhamos a ter um coração sábio” (Sl 90,12). Esta sabedoria leva às águas mais profundas. 99 que ilumina o inígma da vida, está uma seta que aponta para o mistério do Deus vivo. A vida – assim como ela é, com ônus e bonus – é instrumento da pedagogia divina. A criação e a vida cotidiana é a escola de Deus. O sábio, vivendo entre as coisas que passam, abraça Aquele que não passa. Um dito popular diz: “O peixe só percebe a importância da água quando está fora dela”. Começa então a se bater e agonizar, acorda-se para a essência da vida à eminência da morte. De forma análoga, às vezes é necessário dizer o óbvio num mundo cuja frénézie faz as pessoas esquecerem que dormir, comer e beber são partes essenciais da vida, que respirar é importante. Oxalá desabrochemos para uma espiritualidade séria, sobretudo, que não faça de Deus um objeto de consumo nem do homem a medida de si mesmo. Não sejamos sábios aos nossos próprios olhos (cf. Pr 3,7; 26,5; Is 5,2), mas que a carência dos bens irrenunciáveis nos leve ao Autor deles (cf. Sb 13,1).