Tarek Moysés Moussallem
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Tarek Moysés Moussallem
A ENUNCIAÇÃO E OS ENUNCIADOS: A PERFORMATIVIDADE NO DIREITO. Tarek Moysés Moussallem1 1 – Teoria comunicacional do direito e constructivismo lógico-semântico. O mesmo dado material “O” pode ser reconstruído em diversos objetos formais O’, O’’, O n’ tantas quantas forem as possibilidades interpretativas inventadas pelos sujeitos cognoscentes (I’, I’’, In’). Nesse suposto, os juristas empregam a palavra “direito” em pelo menos dois sentidos que interessam a este trabalho. Em uma primeira acepção a palavra “direito” é usada como objeto formal (O’) de estudos compreendido como conjunto de enunciados prescritivos válidos em determinado tempo e espaço, susceptível análise interpretativa pelo jurista que opera no interior do conjunto de normas a constituir aquilo que se pode denominar Ciência-do-Direito em sentido estrito. A Ciência-do-Direito em sentido estrito se coloca no interior do sistema do direito positivo para, daquela perspectiva, construir o sentido descritivo do objeto. Ao tomar a Semiótica (ciência que estuda os signos) por método de aproximação ao objeto de estudos, PAULO DE BARROS CARVALHO e GREGORIO ROBLES construíram pensamentos confluentes e complementares em relação ao direito (entendido como objeto de estudos) no Brasil e na Espanha. No Brasil a escola foi denominada como Constructivismo Lógico-Semântico, na Espanha designada por Teoria Comunicacional do Direito. Tudo se deve ao fato de se aproximarem em relação ao direito por meio da linguagem em que as normas se manifestam. Para GREGORIO ROBLES “la Teoria comunicacional concibe el derecho, no como una «cosa» (en el sentido, pro ejemplo, em que usa DURKHEIM esta palabra), sino como um 1 Mestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 conjunto de procesos de comunicación, cuya variedad y complejidad dependen de las características de cada sociedad”.2 Tal postura, leva o autor espanhol a inclinação ao plano pragmático da linguagem do direito, aproximando-o a uma teoria da decisão. Com pequenas diferenças o constructivismo lógico-semântico de PAULO DE BARROS CARVALHO é obtido pelo filosofar no direito (e não filosofar sobre o direito). Filosofar este resultante pelo emprego das categorias lingüísticas aos textos normativos.3 Para ele, o estudo do direito passa pela experiência inevitável da linguagem do objeto como linguagem-objeto. Nessa escola, sobressai o viés sintático e semântico do direito posto. Seja na análise dos enunciados prescritivos (PAULO DE BARROS CARVALHO) ou disposición (GREGÓRIO ROBLES)4, seja no exame da normas jurídicas (como unidades de sentido deôntico), o presente trabalho buscará esboçar uma teoria dos enunciados prescritivos, tendo como ponto de partida as lições de ambos juristas, numa tentativa de enaltecer a teoria da decisão mediante o esforço construtivista lógico-semântico. Com isso se prestará homenagem a ambos autores, registre-se, de há muito merecida. 2 – Elementos de análise do discurso Antes de ingressar no campo conceptual, a figura didática do exemplo torna-se imperiosa. Suponha-se uma ordem dada por um patrão aos seus empregado afixada no quadro da empresa: 2 ROBLES MORCHÓN, Gregorio. Pluralismo jurídico y relaciones intersistémicas: ensayo de teoria comunicacional del derecho. Madrid : Thomson Civitas, 2007, p. 30. 3 BARROS CARVALHO, Paulo de. Direito tributário: lingaugem e método. São Paulo : Noese, 3ª ed., 2009, p. 7. 4 Encontram-se as definições dos conceitos de «enunciado prescritivo» e «disposición». Para PAULO DE BARROS CARVALHO “uma coisa são os enunciados prescritivos, isto é, usados na função pragmática de prescrever condutas; outra, as normas jurídicas, como significação construídas a partir dos textos positivados e estrturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compsotos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas” (Op, cit. p. 129). Já para ROBLES disposición é “cada frase o sentencia con sentido” muito embora seja necessário coloca-la em conexão com outras para alcanzar o sentido plenamente inteligível (norma) (Teoria del derecho: fundamentos para uma teoria comunicacional del derecho, Madrid : Civitas, 1998, p. 179). Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 AVISO Todos funcionários estão proibidos de permanecer na fábrica no período de descanso. Madrid, 11 de agosto de 2010. A direção Nenhum dos funcionários presenciou o ato da escrita da ordem. Deparam-se com o “aviso”, mas não com o ato de sua produção. Em termos mais rigorosos, defrontam-se com o enunciado não com a enunciação. Mas, afinal, que é enunciado? Que é enunciação? Qual a diferença entre eles? Vários são os sentidos atribuídos a palavra “enunciado”. Na linha de pensamento de GREIMAS & COURTÉS5, “entende-se por enunciado toda magnitude provida de sentido da cadeia falada ou do texto escrito, prévia a qualquer análise lingüística ou lógica”. O enunciado deve ser construído de acordo com as regras lógicas e empíricas do sistema lingüístico a que pertence, para que, a partir dele, se possa construir a proposição. Então, o enunciado seria o suporte físico (marcas de tinta no papel), uma oração bemconstruída dotada de sentido (well-formed formula). Ao sentido composto, denomina-se proposição.6 A existência do enunciado pressupõe a execução de um ato que coloca a língua em funcionamento. Ao ato mesmo de produção de enunciados chama-se enunciação. Assim é que ÉMILE BENVENISTE7 define o conceito de enunciação como um processo de apropriação da língua. Essa situação de “apropriação da língua” se manifesta por “um jogo de formas específicas cuja função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação”. A enunciação instaurará elementos fundacionais de pessoa, de tempo e de espaço do discurso, uma vez que ela é o marco fundamental da produção do enunciado. Todas as 5 COURTÉS, J e GREIMAS, A. J. Semiótica: diccionário razonado de la teoria del lenguaje. Tradução de Enrique Ballón Aguirre e Hermis Campodónico Carrión. Madrid: Gredos. 1982, p. 146. 6 Assim é que vários enunciados distintos como “José tem um carro verde” e “O carro verde pertence a José” permitem a composição da mesma proposição (relação pluri-unívoca). Da mesma forma, de um mesmo enunciado, pode-se construir várias proposições como é o caso deste “A manga é verde” (relação uni-plurívoca). O discernimento entre enunciado e proposição remonta aquele retro efetuado entre ato ilocucionário e ato proposicional. Veja-se que, em ambos os casos, a existência do enunciado tem como pressuposto o sentido-sintático a que se refere LOURIVAL VILANOVA (Teoria das formas sintáticas: anotações à margem da teoria de Husserl. Escritos jurídicos-filosóficos. Vol. 2. São Paulo: IBET/Axis Mundi, 2003, p. 93-155),. Não se pode denominar enunciado a estes: “tem verde um João carro” ou “Imperador se quando então amanhã”. Constituem-se num sem-sentido sintático. 7 BENVENISTE, Émile.O aparelho formal da enunciação. Tradução de Marco Antonio Escobar. In: ______. Problemas de lingüística geral. Vol. II. São Paulo: Cortez. 1989. p. 84. Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 categorias de pessoa, de espaço e de tempo presentes no discurso tomam como referência o ato de enunciação. O “eu”, “tu”, “ele” – pessoas –, o “aqui”, “lá” – espaço – e o “presente”, “passado” e “futuro” – tempo – guiam-se pelo ato produtor de enunciados. Ao conjunto de referências articuladas pelo eixo «eutu – aqui – agora» que define as coordenadas espaçostemporais implicadas num ato de enunciação DOMINIQUE MAINGUENEAU8 denomina “deixis”. Os dêiticos são, portanto, os elementos de linguagem que permitem ao intérprete a reconstrução da enunciação. Assim, a enunciação se opõe ao enunciado como um processo a seu produto, algo dinâmico em contraposição ao estático. Todo enunciado pressupõe enunciação. Na leitura do tipo exemplar visto, ocorrido ficticiamente em Madrid, a enunciação é o ato de produção do “aviso”, ou seja, o evento de o produtor do texto ter tomado o giz ou o pincel e ter colocado o aviso no quadro para os funcionários. Este ato de enunciação se esvaiu no tempo e no espaço com todas as circunstâncias daquele momento (poderia estar chovendo ou não, estar nervoso ou não, com camisa ou sem camisa) que se deu em 10 de maio de 2010 na cidade de Madrid. Ainda, no exemplo acima, o enunciado, ou melhor, os enunciados são as próprias orações bem-construídas de acordo com as regras sintáticas da língua que vão desde a palavra “Aviso” até a palavra “Direção”. A partir desse pressuposto, dois conjuntos de enunciados distintos saltam aos olhos: um que se volta à pessoa, ao espaço e ao tempo da produção do texto e outro que nada tem que ver com a produção do texto. Ao primeiro, a Semiótica denomina enunciação-enunciada e ao segundo enunciadoenunciado. A enunciação-enunciada são as marcas de pessoa, de espaço e de tempo da enunciação projetadas no enunciado. Neste tipo – enunciação-enunciada –, estão contidos aquilo que KERBART-ORECCHIONI9 denomina “fatos enunciativos”, isto é, as unidades lingüísticas, qualquer que seja sua natureza, funcionam como índices da inscrição no seio do enunciado dos protagonistas do discurso e da situação de comunicação, inseridas as coordenadas espaços–temporais. No exemplo fornecido, pertencem à enunciação-enunciada a pessoa que produziu o enunciado (“a direção”), o tempo (“10 de maio de 2010), o espaço (Madrid). 8 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. 2.ed. São Paulo: Pontes, 1993, p.41. No mesmo sentido CATHERINE KERBRATORECCHIONI prefere chamar “dêiticos”. (KERBRAT-ORECHIONI, Catherine. La enunciación: de la subjetividad en el lenguaje. 3.ed. Versión castellana de Gladys Anfora y Emma Gregores. Buenos Aires: Edicial, 1997, p. 45) 9 KERBRAT-ORECHIONI, Catherine. La enunciación: de la subjetividad en el lenguaje. 3.ed. Versión castellana de Gladys Anfora y Emma Gregores. Buenos Aires: Edicial, 1997, p. 41. Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 Já o enunciado-enunciado é a parte do texto desprovida das marcas da enunciação. É o enunciado(s) veiculado pela enunciação-enunciada. No exemplo dado, o enunciado-enunciado é composto pela oração “Todos estão proibidos de permanecer na fábrica no período de descanso”. O enunciado-enunciado, para falar com J. L. Austin, é o próprio ato locutório: “A Direção disse: Todos estão proibidos de permanecer na fábrica no período de descanso”. A enunciação é um ato fugaz ao qual, na maioria das vezes, o interlocutor não tem acesso. É pressuposta pelo enunciado, no qual deixa marcas ou pistas que permitem recuperála. DIANA LUZ PESSOA DE BARROS10 é concludente ao dizer que “reconstrói-se a enunciação de duas perspectivas distintas e complementares: de dentro para fora, a partir da análise interna das muitas pistas espalhadas pelo texto; de fora para dentro, por meio das relações contextuais – intertextuais do texto em exame”. Interessa, ao presente trabalho, a reconstrução de dentro para fora. Por meio da análise interna do texto, recompõe-se o efêmero ato de enunciação. A parte do texto que fornece os fatos enunciativos pelo quais se reconstitui a enunciação chama-se enunciaçãoenunciada. Por isso, a enunciação-enunciada acaba por constituir o sujeito, o espaço e o tempo da enunciação. No esquema acima exemplificado, é a partir da enunciação-enunciada que se saberá quem, quando e onde se escreveu o enunciado-enunciado. A alteração, em qualquer desses dados, altera completamente o sentido da mensagem. Basta pensar em apagar, por exemplo, a data estampada na enunciação-enunciada para deixar perplexo o enunciatário. Todos percebem a importância e o perigo da substituição da pessoa estampada na enunciação-enunciada por outra sem aptidão para emitir o enunciado. Imagine-se um aluno brincalhão alterando o nome do emissor da mensagem. Aqui está a linguagem, sem intermitência, a instaurar simulacros da realidade na consciência humana. Isso não afasta o alerta de EDMUND HUSSERL11, antes o corrobora: Aquilo que certamente aparece em primeiro lugar no campo da consciência (aquilo que se chama o campo do prestar atenção) e aquilo que se destaca desse campo são as formações enquanto 10 BARROS, Diana Luz de. Teoria semiótica do texto. 3.ed. São Paulo: Ática. 1997, p.83. HUSSERL, Edmund. Logique formelle et logique transcendentale. 2.ed. Tradução de Suzanne Bachelard. Paris: PUF, 1965, p.39. Para conferir credibilidade, segue o original: “Ce qui aparraît certes em premier lieu dans le champ de la conscience (dans ce qu’on appelle le champ du regard de l’attention) et dans ce qu se détache de ce champ, ce sont les formations en tant qu’énonc’s, mais le regard thématique est toujours dirigé non pas vers les expressions en tan que phénomènes sensibles, mais «à travers elles» vers ce qui est pensé. Les expressions ne sont pas des fins thématiques, mais des index thématiques, renvoyant par-delà elles-mêmes aux thèmes logiques proprement dits”. 11 Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 enunciadas, porém a atenção temática é sempre dirigida não para as expressões enquanto fenômenos sensíveis, mas, «por meio delas», em direção aquilo que é pensado. As expressões não são os fins temáticos, são tão-só os índices temáticos, convertidas elas mesmas (as proposições), noutro instante, em temas lógicos propriamente ditos. 3 – Os atos de fala deônticos Imagine-se uma lei qualquer determinando sucintamente “O Congresso Nacional decreta e Eu sanciono a seguinte lei: ...se for proprietário de imóvel, pague imposto sobre a propriedade”; igualmente um dispositivo de uma sentença: “Defiro o pedido para condenar João a entregar o carro para José”; da mesma forma um ato administrativo “Autorizo José a dirigir”; ou ainda um negócio jurídico “Prometo pagar a quantia de R$ 50,00 por este relógio”. Que há de comum entre esses quatro enunciados prescritivos pertencentes ao sistema do direito positivo? São todos enunciados performativos ou proferimentos performativos. Para usar expressão convencional, são todos atos de fala. Nada descrevem, nem nada declaram. Realizam ações de ordenar ao prescreverem condutas. Não é difícil constatar que o direito positivo se constitui por atos de fala. Tal fato é tão óbvio que independe de provas. É ele mesmo o “chão”, o “fundamento” para falar com HEIDEGGER.12 Então pode-se dizer que, em direito, se fazem normas com palavras. A linguagem é usada para criar normas (em sentido amplo). O legislar (Poder Legislativo), o julgar (Poder Judiciário), o executar (Poder Executivo) e o contratar (particulares) nada mais são do que ações realizadas mediante o proferimento de algumas palavras. Tocando exatamente no problema, CHRISTOPHE GRZEGORCZYK13 não poupa encômios para dizer que 12 HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon. Tradução de Gabriela Arnhold e Maria de Fátima Almeida Prado. Petrópolis : Vozes, 2001, p. 35. 13 GRZEGORCZYK, Christophe. L’impact de la théorie des actes de langage dans le monde juridique: essai de bilan. In: AMSELEK, Paul (Coord). Théorie des actes de langage, éthique e droit. Paris: PUF, 1986, p.165-194. Para conferir credibilidade, segue original: “[...] en droit les mots «font» tout ou presque – ils lient e délient les marriages, transfèrent ou partagent les biens, condamnent, jettent en prison, parfois tuent, créent des choses et des faits (juridiques, bien sûr, non pas matériels) ou les font disparaître sans trace [...]”.No mesmo sentido, KARL OLIVECRONA: “In brief, by performative utterances in the field of law we ostensibly perform the creation of rights and duties, legal relationships and properties. Rights and duties are established through contracts; the right of ownership is transferred. A company is formed and duly registered; and it becomes a juristic person. Na immigrant from a foreign country is naturalized Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 no direito as palavras «fazem» tudo ou quase – elas atam e desatam matrimônios, transferem ou partilham os bens, condenam, colocam na prisão, às vezes matam, criam as coisas e os fatos (jurídicos, claro, não materiais) ou os fazem desaparecer sem marcas. Logo todas as categorias aplicadas aos atos de fala servem, com as devidas ponderações, às normas jurídicas. Essa teoria, aplicada ao direito, não pode ser limitada a essa constatação do caráter ativo, produtivo e constituinte da linguagem do direito, haja vista que, apenas por essa senda, não haveria diferença para a linguagem ordinária. A linguagem ordinária realiza cotidianamente as mesmas «mágicas» que a linguagem normativa. À conta disso, afirma GRZEGORCZYK14 que a importância da teoria dos atos de fala, no direito, está em saber que “existe uma diferença radical entre «fazer qualquer coisa ao falar» e «fazer qualquer coisa em direito ao falar»”. Onde está a diferença entre o performativo proferido na linguagem ordinária e o performativo proferido na linguagem do direito positivo? Três são as diferenças básicas: (i) nos efeitos; (ii) no procedimento e (iii) na enunciação. A primeira diferença está nos efeitos jurídicos atribuídos pelo direito ao ato de fala proferido em seu interior. Não é por outro móvel que CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA15, adaptando o conceito de “ato performativo” ao direito, expõe que “Um enunciado será dotado de performatividade jurídica, se, e só se, ao seu significado corresponder um efeito jurídico, segundo regras juridicamente relevantes”. Uma “promessa” feita na linguagem comum em grande parte se afasta da “promessa” realizada na linguagem do direito positivo. Da mesma forma, a “advertência”, enquanto na linguagem do dia-a-dia nada mais faz do que criar um efeito ilocucionário, no direito, tem o efeito de “constituir em mora”, “suspender prescrição” (veja a inscrição em dívida ativa em matéria tributária), etc. A mais grave complicação ocorre com o ato de “afirmação” ou de “declaração”. A declaração na linguagem comum e na linguagem do direito positivo são completamente diversas se analisadas pelo prisma de seus efeitos ilocucionários. Preocupado com a by a declaration of the proper authority; and thereby becomes a citizen. [...] The legal performatives, therefore, are supposed to have a creative effect. According to our way of thinking, rights and duties and legal properties are brought into being, or changed, or removed through the pronouncement of such phrases. This is how legal business is transacted. It is the language of magic”. (OLIVECRONA, Karl. Legal language and reality. In: NEWMAN, Ralph E. (ed.) Essays in jurisprudence in honour of Roscoe Pound. New York: The Bobbs-Merrill Company, 1962, p. 174-175). 14 GRZEGORCZYK, Christophe. L’impact de la théorie des actes de langage dans le monde juridique: essai de bilan. In: AMSELEK, Paul (Coord). Théorie des actes de langage, éthique e droit. Paris: PUF, 1986, p.189. No original, “[...] une différence radicale existe entre «faire quelque chose en parlant» et «faire quelque chose en droit en parlant» [...]”. 15 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico. Vol I. Coimbra: Almedina, 1992, p.132. Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 separação, GRZEGORCZYK16 proclama que “no primeiro caso [da linguagem ordinária] há um ato lingüístico de afirmar e nada mais (ao menos em geral); no segundo [da linguagem normativa], há, adicionalmente, um efeito extra-lingüístico jurídico, de criação de um novo «estado de coisas»”. No mesmo sentido, a lingüista CATHERINE KERBRAT-ORECCHIONI17 leciona: Sem entrar nos detalhes dos diferentes tipos de atos jurídicos – atos legislativos ou regulamentares (leis, decretos, sentenças) contratos, testamentos, decisões da justiça – dizemos que eles compartilham a propriedade de possuir um verdadeiro poder de ação sobre o real, até mesmo de constituição do real; isso aparece claramente quando comparadas duas versões, ordinária e judiciária, de um mesmo ato, como a promessa, a afirmação («Dupond matou Durand»: hospedada em um acórdão proferido na sessão de uma corte criminal, tal enunciado cria um novo «estado de coisas legal») ou a qualificação (o fato de «nomear em direito» as coisas tomam existência específica na ordem do direito). Com isso, permanecem fora do âmbito do direito os enunciados meramente declaratórios. Ato declaratório, sentença declaratória, lei interpretativa, declaração de vontade, declaração de inconstitucionalidade são “nomenclaturas” que podem levar o interlocutor a entender pela possibilidade de existir no direito enunciados declaratórios em sentido ordinário. Inclusive há enunciados prescritivos na forma declaratória, mas a função é sempre prescritiva. Trata-se dos performativos deônticos implícitos. Por exemplo: “A alíquota do imposto é de 1%”; ou este outro da Constituição Federal “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; ou, ainda, o artigo 5º do mesmo Diploma : “Todos são iguais perante a lei...”; ou mesmo a sentença judicial que, ao deferir o pedido formulado na inicial, consigna “João é o pai de José”. Todos enunciados acima são performativos deônticos implícitos, porquanto são simulacros de enunciados declaratórios, pois, como bem observa PAULO DE BARROS 16 GRZEGORCZYK, Christophe. Op. cit, p.188, ver nota 21. No original: “dan le premier cas, il y a un acte langagier d’affimer et rien de plus (du moins en général); dans le second, il y a, en plus, un effet extra-langagier, juridique, de création d’un nouvel «état des choses légales»”. Ao usar a expressão “effet extra-langagier”, o autor parece querer dizer efeitos que não importam à linguagem ordinária, pois, estranho seria se falasse em efeitos extra-lingüísticos dentro da linguagem do direito positivo. 17 KERBRAT-ORECHIONI, Catherine. Les actes de langage dans le discours. Paris: Nathan. 2001, p.167. No original, “Sans entrer dans le détail des différents types d’actes juridiques – actes législatifs ou réglementaires (lois, ordonnances, décrets, arrêtés), contrats, testaments, décisions de justice -, disons qu’ils partagent la propriété de détenir un véritable pouvoir d’action sur le réel, voire de constitution du réel; ce qui apparaît clairement lorsque l’on compare les deux versions, ordinaire et judiciaire, d’un même acte, comme la promesse, l’affirmation «Dupond a tué Durand»: logé dans un arrêt de cour d’assises, un tel énoncé crée un nouvel «état de choses légal») ou la qualification (le fait de «nommer en droit» les choses revient à les doter d’une existence dans l’ordre du droit)”. (Ibidem, p.167) Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 CARVALHO18, nesses casos “o dever-ser, comparece disfarçado na forma apofântica, como se o legislador estivesse singelamente descrevendo situações da vida social ou eventos da natureza”. O próprio J. L. AUSTIN19, em nota de rodapé de seu famoso livro How to do things with words, consigna, com certo espanto, que era de se esperar que os juristas, mais que ninguém, se apercebessem do verdadeiro estado das coisas. Talvez alguns agora já se apercebam. Contudo, tendem a sucumbir à sua própria ficção temerosa de que uma declaração “de direito” é uma declaração de fato. A advertência de AUSTIN não pode passar despercebida. Basta verificar as desastrosas conclusões de se levar às últimas conseqüências a “declaração” em direito, quando se afirma, por exemplo, que a sentença em “ação declaratória” goza de caráter ex tunc. Graves problemas exsurgem da questão mal posta: primeiro, porque, em rigor, não se há falar em ação declaratória, já que o juiz nada descreve; segundo, porquanto o efeito ser ex tunc ou ex nunc nenhuma correlação mantém com o fato de a sentença ser ou não declaratória. Efeitos ex nunc e ex tunc nada mais são do que “temporalizações do tempo” (FRANÇOIS OST) feitas pelo direito positivo. É o direito mesmo quem outorgará eficácia retroativa ou não às normas. 4 - Os atos de fala e a produção normativa Antes de ingressar no tema dos atos de fala deônticos, necessário se faz uma precisão terminológica. A expressão “ato de fala” padece de plurivocidade significativa. A locução pode ser usada em três acepções: (i) enunciado; (ii) ação e (iii) o ato de produção de enunciados (enunciação). Para AUSTIN20, performativo era o enunciado e o verbo em que ele se manifestava. Só esporadicamente, afirmou que “performativo é tanto uma ação quanto um proferimento”21. Mas não há como negar a diferença entre o enunciado ou proferimento e a ação por ele realizada. Ao dizer “Sim” numa cerimônia de casamento, o nubente profere o enunciado “Sim” e externa o desejo (ação) de casar. 18 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.120. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de Souza. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p.23. 20 AUSTIN, J. L. Performative-constative. In: SEARLE, John. The philosophy of language. 5. reimp. Londres: Oxford University Press, 1979, p.15. 21 No original: “Then we must add that our performative is both an action and a utterance”. (Ibidem, p.15) 19 Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 Por outra aresta, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA22, tomando a expressão “ato de fala” apenas como “enunciado”, vislumbra uma ambigüidade interna à própria palavra “enunciado”. Para o autor português, a palavra “enunciado” remete à ambigüidade processo/produto. Ora denomina-o enunciado, ora enunciação. Assim, a expressão “ato de fala” ganha mais um significado: o de ato produtor de enunciados (enunciação). Em resumo, a locução “ato de fala” é empregada em três sentidos: (i) enunciado ou proferimento; (ii) ação realizada por emitir o proferimento e (iii) enunciação. No curso deste trabalho, quando não for especificado o sentido da locução “ato de fala”, estar-se-á a usá-la na primeira acepção, como até agora tem sido feito. Firme nesse suposto, passa-se ao deslinde dos atos de fala deônticos. As normas jurídicas (em sentido amplo) são atos de fala deônticos. Deônticos, pois sobre o ato de fala incide o modal dever-ser juridicamente relevante. No ato de fala deôntico, o dever-ser aparece explícita ou implicitamente. Na maioria das vezes, fulgura de maneira implícita, razão pela qual deve ser desvelado. Da mesma forma que os atos de fala da linguagem ordinária, os atos de fala da linguagem do direito positivo podem ser inquiridos sobre os aspectos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Veja-se o exemplo a seguir. A autoridade S’ (União Federal) diz a S’’: “Se auferir renda, está obrigado a pagar Imposto sobre a Renda”. Esse é o ato locucionário, que consiste em dizer algo. A ação que S’ realiza ao dizer “Se auferir renda, estará obrigado a pagar IR” é o ato ilocucionário. Neste caso, a ação é ordenar. O ato perlocucionário é o efeito de S’ produzir, fazendo com que S’’ pague o IR quando auferir renda. Esquematizando o ato de fala: (a) S’ diz a S’’: “Se auferir renda, estará obrigado a pagar IR” – ato locucionário. S’ ordena S’’ – ato ilocucionário. S” persuade S’ a pagar – ato perlocucionário. Algumas observações, no exemplo acima, afiguram-se importantes. À primeira vista, no ato locucionário, não transparece o functor dever-ser. Antes, pelo contrário, traz à tona um functor apofântico consubstanciado no verbo “estar”. Mas, conforme anteriormente explanado, o sincategorema deôntico está implícito. Em rigor, o dever-ser é o functor que incide sobre a totalidade daquilo dito no ato locucionário. 22 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico. Vol I. Coimbra: Almedina, 1992, p.137. Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 Na análise do ato ilocucionário e do ato proposicional, isso talvez fique mais claro. Enquanto este está ligado à função da ação, aquele está vinculado diretamente à ação realizada mediante a expedição do ato de fala. No exemplo acima, a ação é ordenar (legislar, julgar ou executar), enquanto a função da ação é “obrigar a pagar imposto sobre renda”. Separando o ato ilocucionário dêontico do ato proposicional deôntico, tem-se “ordenar” como ato ilocucionário e o “obrigar a pagar IR” com ato proposicional. Nisso está o fundamento normativo do dever observar os comandos expedidos por autoridades. No ato proposicional, a função da ação sempre estará regulada pelo functor modalizado nos valores: obrigatório (O), proibido (Ph ou V) e permitido (P), ao passo que, no ato ilocucionário, o sincategorema incidente será sempre o dever-ser em sua forma neutra. Em linguagem formalizada, poderia, assim, ser re-escrito: “Ds [Or (F Op)]”, onde: “Ds” equivale ao dever-ser incidente sobre o ato ilocucionário ordenar “Or”, por sua vez, colhe a proposição normativa como um todo. “F” é a variável indicadora de notas de um acontecimento de possível ocorrência (in casu, “auferir renda”) ou um fato. De acordo com a teoria das classes, “F” outorga os critérios conotativos (“auferir renda”) para a formação da classe (extensão) estampada na norma abstrata ou a classe unitária evidenciada no antecedente da norma concreta. “” é o conectivo condicional efetivador da relação de imputação. “Op” é o ato proposicional “Obrigado pagar imposto sobre a renda”, onde “p” é a proposição “pagar IR” sobre a qual incide o functor modalizado “O” (obrigatório). A linha de pensamento acima esposada encontra balizamento na teoria de LOURIVAL VILANOVA23: Se simbolizarmos a proposição-hipótese por p e a proposição-tese por q, e a relação implicacional por “”, a fórmula do primeiro 23 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 1998, p.97. Esse é o pressuposto para a crítica que o autor pernambucano faz a KELSEN ao afirmar que “A fórmula ‘se A é, deve-ser B’ não mostra que o deôntico é functor (ou operador) que incide sobre o nexo interproposicional”. (Ibidem, p. 96) Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 membro da proposição jurídica seria “D (p q)”, onde D é o functor (o sincategorema que indica a operação deôntica) incidente sobre a relação interproposicional. Essa colocação do functor, abrangente da relação formal, evita que se construa formalmente a proposiçãohipótese na fórmula: “p D (q)”, isto é, como sendo uma proposição-antecedente descritiva, implicando a proposiçãoconseqüente de caráter prescritivo. O dever-ser, normativamente posto, tece as relações de imputação no interior do sistema do direito positivo. Não somente no interior das normas jurídicas, mas também entre as normas jurídicas. O valer (o viger, o ser eficaz) do ato de fala deôntico é cortado com o valer (o viger, o ser eficaz) de outro ato de fala deôntico. Com isso, mantém-se a homogeneidade estrutural do sistema do direito positivo, que tanto aludia LOURIVAL VILANOVA24. O próprio aspecto perlocucionário do ato de fala deôntico (como, por exemplo, o efetivo pagamento do IR por parte do contribuinte) somente tem relevância jurídica no interior de outro ato de fala deôntico. Por exemplo, o significado jurídico de “pagamento” para o direito não é o simples “entregar dinheiro”, mas, sim, expedir outro ato de fala: o recibo. Não se pode afirmar que houve pagamento, em sentido jurídico, se inexistir recibo. Juridicamente não há pagamento sem recibo (ato de fala)25. Em definitivo, não há efeito perlocucionário juridicamente relevante que não seja colhido por ato locucionário, muito embora a linguagem do direito positivo atue como elemento fundamental no condicionamento da conduta com caráter perlocucionário extrajurídico. Como observou intuitivamente GEORGES BURDEAU26, A lei é essencialmente um procedimento do governo e governar implica a possibilidade de unificar os elementos esparsos da idéia de direito, de criar, nos indivíduos e no grupo social, um estado de 24 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 88. 25 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Algumas críticas a “Notas sobre o fato jurídico: crítica segunda ao realismo jurídico de Paulo de Barros Carvalho”. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma, vol. 11, jul/set, 2002, p. 169. 26 BURDEAU, Georges. Traité des science politique. V.3. Paris: Librairie général de droit et jurisprudence, 1950, p. 438. No original, “La loi est essentiellement un procédé de gouvernement et gouverner implique la possibilité d’unifier les éléments épars de l’idée de droit, de créer chez individus et dans le groupe social un état de conscience qui facilitera au Pouvoir la solution des problèmes que sucite la vie politique”. Tocando exatamente no problema, LOURIVAL VILANOVA atesta que “as normas não são imediatamente eficazes, porque então inserir-se-iam na corrente da causalidade. Alteram, sim, as séries causais da conduta mediante os atos psíquicos que elas determinam. Um ato não é neutro ao conteúdo objetivo de uma norma. O conteúdo desse direciona-o, interfere no fluxo da vivência”. (VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: RT. 2001, p. 39) Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 consciência que facilitará ao Poder a solução dos problemas que suscita a vida política. Esse “état de conscience” nada mais é do que o efeito perlocucionário (de caráter extra-jurídico) que todo documento normativo possui. Contudo, o direito não se preocupa com seu simples cumprimento ou descumprimento, antes, ao contrário, requer sempre ato de fala constituindo-os para torná-los juridicamente relevantes. É o direito positivo como fato dependente da linguagem. Por isso, todo lance no jogo do direito positivo (isto é, tanto a criação como a transformação e a extinção de normas jurídicas) requer expedição de ato de fala. A perda da linguagem em que a norma se manifesta equivale à sua morte. A sucessão temporal de normas toma como pressuposto a sucessão temporal de atos de fala. Isso é o que transparece às claras nas lições de GREGÓRIO ROBLES em sua teoria sobre a decisão no direito: “Si el ordenamiento es el texto generado, el texto global que tenemos introducido em el ordenador, las decisiones son los actos de habla de los creadores del Derecho. El legislador «habla» cuando promulga la ley. El juez «habla» al dictar sentencia. Los contratante «hablan» cuando fijan el contenido del contrato que les ha de vincular em su relación. Em suma, todos los creadores o generadores de normas «hablan», emiten «actos de habla» al concretar las normas. La decisión es um acto de habla, um acto de lenguaje. La decisión jurídica es um acto de habla que, por ser emitido por quien tiene um poder especial (jurídico) para hacerlo, adquiere la cualidad de pasar a forma parte del ordenamiento jurídico, com todo lo que esto implica”.27 5 - A análise do discurso normativo e as decisões como fontes do direito Não é difícil entrever que o direito positivo é composto por atos de fala. E, levando-se em consideração a classificação dos atos de fala quanto à sua força ilocucionária, percebe-se nitidamente o predomínio dos atos exercitivos, veredictivos e comissivos. Ora, se o direito positivo é composto de atos de fala, sua linguagem é a via de acesso às normas jurídicas mesmas. E mais: não só às normas jurídicas, mas também aos seus respectivos atos de produção. 27 ROBLES, Gregório. Teoria del derecho: fundamentos de teoria comunicacional del derecho. Madrid : Civitas, 1998. pp. 81/82 Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445 O estudo do direito positivo, tomado apenas pelo prisma dos enunciados prescritivos, amesquinha o relevante liame entre a teoria dos atos de fala deônticos e a teoria da análise do discurso normativo, pois, como bem asseverou PAUL AMSELEK28, “A função ilocucionária dos enunciados de regras jurídicas não lhe é imanente: é-lhe imprimida em nível dos atos mesmos de edição pelas autoridades jurídicas”. A existência de atos de fala pressupõe, sem rebuços, a execução de decisões que os produzem. Por isso, não se há de confundir o ato de fala deôntico com seu respectivo ato de produção. O estorvo entre processo/produto leva os juristas a dificuldades da mais alta ordem. Do ponto de vista jurídico, não é necessário maiores esforços cognitivos para verificar como o próprio direito positivo prevê quais são as pessoas (competência), o procedimento, o local e o tempo para a execução da enunciação. Em rigor, o direito positivo não regula sua própria criação, mas, sim, controla a regularidade da criação do enunciado (norma em sentido amplo). Isso outorga primazia ao produto (enunicado prescritivo/disposición) em detrimento de seu processo de criação (enunciação). Os enunciados prescritivos/disposición (e sua enunciação) somente são controláveis após ingressarem no sistema do direito positivo. Por isso que o mais correto é afirmar que o direito positivo controla não a produção das normas, mas a constitucionalidade (ou legalidade) do enunciado prescritivo. O fato é que a produção de um enunciado prescritivo somente é controlada após seu ingresso no sistema do direito positivo. A enunciação é controlada mediante o cotejo entre enunciação-enunciada e as normas que regulam a produção normativa. O próprio KELSEN29 não hesita em afirmar que o ato de criação do direito (enunciação) encontra-se fora do próprio direito ou, de acordo com suas próprias palavras, “o ato ponente de uma norma jurídica positiva é, ele também, um fato da ordem do ser ...”. Fica claro que os fatos transformacionais do direito positivo, embora sejam da ordem do ser, encontram-se abstratamente previstos pelo próprio direito positivo. Por esse mesmo motivo, o controle da regularidade ou não da enunciação se faz posteriormente ao ingresso da norma no sistema do direito positivo. 28 AMSELEK, Paul. Philosophie du droit et théorie des actes de langage. In: ______. (Coord.). Théorie des actes de langage, éthique e droit. Paris: PUF, 1986, p. 120. No original: “La fonction illocutoire des énoncés de règles ne leur est pas immanente: elle leur est imprimée au niveau des actes mêmes d’édiction des autorités juridiques”. (ibidem, p.120). Pelo mesmo motivo, GRZEGORCZYK e STUDNICKI “il ne convient pas d’étudier l’énoncé normatif en lui-même, masi un certaine situation lieé à l’enonciation de celui-ci”. (GRZEGORCZYK, Christophe; STUDNICKI, Tomasz. Les rapports entre la norme et la disposition légale. In: Archives de philosophie du droit: la langage du droit. Tome XIX. Paris: Sirey, 1974, p. 246). 29 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5. ed. Tradução J. Baptista Machado. São Paulo : Martins Fontes, 1997, p. 281. Rua Bahia, 1282 - Higienópolis - CEP.: 01244-001 - São Paulo/SP - Fone/Fax: 11 3665-6445
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