O Fenômeno da Burocracia das Ruas no Brasil. Considerações
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O Fenômeno da Burocracia das Ruas no Brasil. Considerações
O Fenômeno da Burocracia das Ruas no Brasil. Considerações. Autor: Eneuton Pessoa‡ Introdução Desde que Weber discorreu sobre a figura do burocrata, que estudos dão conta da sua formação no bojo do desenvolvimento do Estado nacional, da sua existência concreta vis-à-vis o seu tipo ideal, da sua identidade e imagem social, do seu papel para o desenvolvimento das nações, de suas relações com outros atores: governos, políticos e grupos de interesse, entre outros assuntos. A maioria dos estudos se remete à atuação do que se costuma denominar de “a alta burocracia”: os homens públicos de carreira que, detentores de saber especializado e expertise, ocupam postos-chave na máquina pública, tornando-os responsáveis por decisões de políticas públicas. Há, por sua vez, outro segmento da burocracia que está vinculado à prestação de serviços. Este, na realidade, é o segmento que mais cresce, no bojo dos processos de criação dos Estados de Bem-Estar Social e da universalização dos serviços básicos. À falta de designação mais apropriada, os americanos o denominam de street level bureaucracy, em tradução livre, “a burocracia das ruas”. No Brasil, a expansão recente do emprego público segue essa tendência. Desde meados dos de 1970 e, mais acentuadamente, após a Constituição de 1988, que a expansão do emprego público muito se deve à universalização de serviços básicos, sobretudo nas áreas da saúde e educação. É crescente a importância da burocracia das ruas. Dado seu peso numérico, a tendência é de expansão do gasto público com o pagamento de pessoal nas áreas de prestação de serviços públicos. Ademais, ela cada vez mais se coloca como ator político relevante. Através de suas organizações, busca influenciar a definição e o rumo das políticas públicas, bem como suas ações reivindicatórias têm consequências na avaliação que a sociedade faz dos governantes. Muito do impacto das políticas públicas ‡ Eneuton Pessoa – Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/CCJP tem a haver com o seu processo de implementação, justamente onde a burocracia das ruas atua. O objetivo deste trabalho é então trazer algumas evidências sobre a expansão recente da burocracia das ruas no Brasil. Adicionalmente, busca-se, de modo ensaístico, evidenciar algumas questões no que diz respeito à sua problemática e aos desafios concernentes à gestão desse pessoal de Estado. O trabalho, após essa introdução, trata, nos itens que seguem, sequencialmente, dos seguintes temas: o conceito e a importância da burocracia das ruas, as atividades fins e o conceito de burocracia das ruas, das evidências da expansão da burocracia das ruas no Brasil, na esfera municipal, da problemática salarial que envolve a gestão da burocracia das ruas no Brasil, e, por fim, das novas formas de gestão de pessoal suscitada pela expansão do emprego público à base do fenômeno da burocracia das ruas. Do Conceito e da Importância da “Burocracia das Ruas”. Na discussão Estado/sociedade a Literatura prioriza o que se denomina Top Bureaucracy: Elites Burocráticas de Estado. Há, porém, outra dimensão da burocracia pouco considerada: os empregados da base da pirâmide do serviço público. A importância da burocracia das ruas data do desenvolvimento das atividades sociais, de natureza trabalho-intensivas. O termo “Burocracia”, no seu sentido literal, corresponde a “Governo do Bureau”. Street Level Bureaucracy (SLB), literalmente, “a burocracia ao nível das ruas”. Esta concepção é um contra-senso, haja vista a ideia de que a burocracia é própria dos gabinetes, dos ambientes fechados. Por “burocracia das ruas” se considera todos aqueles no setor público que prestam serviços à população. Este é um fenômeno ainda pouco considerado, mas não menos importante. Uma observação a fazer é que não toda a SLB está na base da pirâmide do serviço público. Um juiz de paz, por exemplo, faz parte dela. Para a maioria dos cidadãos, sua relação com o Estado ocorre através desses agentes de Estado: o professor, o agente de saúde, o médico, a enfermeira, o técnico de enfermagem, o policial militar, etc. Esses servidores, em suas atividades, provêm serviços públicos, discriminam que tem ou não acesso a serviços e estipulam sanções aos cidadãos. A forma como a burocracia provê benefícios e sanções estrutura e delimita as oportunidades e a vida das pessoas, especialmente a população mais pobre, que tem no Estado a principal porta de acesso a serviços básicos. Há também o seu crescimento numérico e na folha de pagamento, dado a natureza trabalho-intensiva do grosso de suas atividades. Isto dificulta a redução da folha salarial no serviço público. O maior gasto com serviços públicos é para pagar salários, bem como o escopo das atividades da SLB cresce continuamente. Razões demográficas contribui para aumentar a importância desse segmento. No caso dos países desenvolvidos, o envelhecimento da população, bem como as exigências do sistema produtivo, ao demandar níveis educacionais mais elevados da força de trabalho. A melhoria das condições de vida dos mais pobres necessariamente leva à discussão do status dessa burocracia. Também nos anos recentes a SLB vem se organizando em sindicatos, e se transformado em importante força política e social. Ela demonstra capacidade de lobby, barganha e buscar o apoio da população em favor dos seus interesses. Segmentos dela muitas vezes são apoiados pela população que teme a redução de serviços públicos. Sua atuação, enquanto encarnação do Estado impacta, para o bem e o mal, a vida dos cidadãos. Em suma, a literatura norte-americana ressalta a discricionariedade na prestação de serviços por parte da burocracia das ruas. A depender de como ela se relaciona com os usuários de serviços, o exercício da função pública pode ser causa de bem ou mal estar social. O impacto das políticas públicas, em grande parte, depende da ação desta burocracia. Ela personifica a relação do Estado com o cidadão. A literatura prioriza o caráter das relações pessoais no ato da prestação de serviços, de algum modo evidenciando que, na prática, o princípio da impessoalidade, que idealmente norteia a prestação dos serviços públicos, vê-se relativizado, à medida que no ato da prestação de serviços, ressaltam-se elementos subjetivos, à base de traços culturais existentes na sociedade, muitos deles indesejáveis, como racismo, machismo, preconceito social, preconceito sexual, etc. É o caso do agente público que discrimina negros, mulheres, pobres, homossexuais no ato da prestação do serviço público. Se no espírito das leis o Estado busca a neutralidade e a imparcialidade, tratando a todos de forma equânime, com espírito republicano, no âmbito da sua ação concreta, a máquina pública revela-se o contrário disso. Esta atuação explicaria o reduzido impacto que políticas públicas tem sobre determinada populações-alvo. No caso, a política pública pode mesmo ser bem concebida, dispor de recursos adequados: humanos, materiais e financeiros, e mesmo assim revelar baixa eficácia, a depender da atuação do agente público no ato de prestar o serviço. Burocracia das Ruas e as Atividades Fins O conceito SLB também se coaduna com a ideia de “atividades ou funções-fins”, isto é, correspondente às ocupações nas quais o agente público se envolve diretamente com a população, no atendimento ao público. Ao bem da verdade, esta distinção, sob o aspecto ocupacional, não é assim tão simples. Se para algumas ocupações seu caráter de atividade-fim é mais evidente, de acordo com a lógica da SLB, numa perspectiva estritamente organizacional, isso não ocorre. O que dizer, pois, da ocupação de recepcionista em um hospital público? Ela não faz parte das atividades-fins do hospital, embora esse profissional lide diretamente com o público e sua atuação impacte diretamente no bem-estar das pessoas. E mesmo aquelas ocupações que indubitavelmente são consideradas como fins, dependendo do órgão de atuação, têm este seu caráter questionável. Por exemplo, um médico que atende um órgão burocrático, no contexto desse órgão a que está formalmente vinculado ele exerce uma “atividade-meio”. Não há, pois, como definir, a priori, o caráter “meio/fim” das ocupações sem tomar como referência o contexto organizacional no qual se inserem. Desta perspectiva, a distinção entre ocupações-meios e fins tem como parâmetro a finalidade e os objetivos do órgão: as ocupações-fins correspondem ao “núcleo duro” das suas atividades e as ocupações-meios às atividades auxiliares e de apoio. Ademais, em qualquer dos sentidos que se empreguem os termos ocupaçõesmeios e ocupações-fins, esta distinção encerra determinada ordem de preferência. Na visão da SLB as ocupações-fins são fundamentais para o bem-estar social, e, do ponto de vista organizacional, as ocupações-fins conferem existência concreta aos entes públicos. Como resultado, as ocupações-meios são geralmente consideradas como de segunda ordem ou mesmo supérfluas. Porém, a dicotomia meio/fim é insuficiente para dar conta do grande número de ocupações que, a depender da perspectiva, se da burocracia das ruas ou da que considera o contexto organizacional, é, concomitantemente, “meio e fim”. O recepcionista no hospital público e o médico no órgão burocrático ilustram essa dificuldade. Com efeito, reduzido número de ocupações são de ambas as perspectivas, indubitavelmente, apenas ocupações-meios ou ocupações-fins. Além do que, é frágil a ideia de que as ocupaçõesmeios são menos importantes. Guardas e vigias, motoristas de ambulâncias, cozinheiros da merenda escolar, trabalhadores na conservação e manutenção de equipamentos públicos, todas elas são ocupações socialmente relevantes. De qualquer modo, a força de trabalho no setor público é em grande parte identificada com as funções burocráticas e de representação política, o que contribui para o senso comum de que o aumento do emprego público resulta da expansão das ocupações-meios. Por conseguinte, é comum a ideia de que cortes e congelamentos de vagas no setor público reduzem o desperdício e o uso clientelista da máquina, sem prejudicar a provisão de serviços. No entanto, as evidências são de que a evolução histórica do emprego no setor público deveu-se ao desenvolvimento das atividades-fins, ou então das ocupações relevantes do ponto de vista social, e isto, sobretudo nos governos locais. Evidências da Expansão da “Burocracia das ruas” no Brasil: o caso municipal Uma evidência primeira à expansão da burocracia das ruas no Brasil, numa perspectiva de mais longo prazo, pode se ter nos Censos Demográficos, naquelas classes de atividade que predominantemente compõem o setor público. A partir dos anos 1940, os censos demográficos passam a disponibilizar a distribuição do emprego por classes de atividade. Ao se reunir aquelas que perfazem o grosso das atividades públicas, têm-se uma visão aproximada do emprego público por áreas de atuação estatal. A tabela 1 assim procede. Nela, é nítida a grande expansão da atividade ensino público. Ela incorporou no período 1940-2000 o maior contingente de servidores, cerca de 2,1 milhões ou 36% do total. Em segundo lugar, aparece administração pública municipal, com cerca de 800 mil servidores, seguida de assistência médica, com aproximadamente 630 mil, e saneamento, abastecimento e melhoramentos urbanos, com aproximados 615 mil (ou respectivamente: 15%, 11% e 10% do total de novos servidores). Enfim, quase a metade da expansão do emprego no setor público na segunda metade do século passado se concentra nas áreas de educação e saúde. Tabela 1 – Pessoal por Classe de Atividade no Setor Público no Brasil (1940-2000) Classes de atividade 1940 1960 1970 Transporte ferroviário Serviços postais, telegráficos e de radiocomunicações 157.040 24.853 196.353 38.269 212.898 56.229 169.959 69.070 134.926 74.424 106.730 55.561 32.524 173.703 10.372 15.253 20.944 50.460 143.451 157.468 312.890 Telefones 1950 1980 1991 2000 Saneamento, Abastecimento e Melhoramentos Urbanos 16.750 80.498 72.362 158.428 410.729 632.764 328.918 Ensino Público 75.866 149.088 294.629 735.888 1.240.780 2.175.543 2.136.030 32.677 75.946 132.798 Assistência MédioHospitalar Pública Previdência Social Pública Poder Legislativo 371.511 661.781 624.611 48.815 118.093 114.234 3.833 15.197 12.072 29.388 102.734 117.717 207.780 Justiça e atividades auxiliares 18.969 29.879 48.615 75.678 Administração pública federal 63.212 48.617 47.124 107.988 245.341 207.745 364.032 Administração pública estadual 53.142 68.383 79.618 113.907 262.188 308.432 1.210.329 Administração pública municipal 83.234 75.101 65.932 150.120 455.203 888.292 1.449.804 31.210 18.336 12.909 Administração autárquica Administração pública outras 5.617 3.744 88.847 12.257 60.481 148.093 218.903 253.708 270.636 295.012 301.795 79.103 99.137 130.033 155.663 154.870 160.159 4.453 32.026 39.448 48.749 56.478 69.473 19.453 31.808 49.422 49.296 59.288 65.380 3.738 3.756 6.286 10.779 19.543 40.389 Polícia Militar 40.832 44.929 68.237 149.100 185.365 296.030 Polícia Civil 16.875 35.792 49.587 75.410 102.360 6.378 4.429 6.222 29.854 11.265 20.724 14.656.995 17.336.000 22.538.786 28.959.266 42.271.526 55.293.306 Total das Classes 689.129 1.024.782 1.445.912 2.468.944 4.216.198 6.480.968 7.131.544 Total das Classes que tem em todos os anos 596.720 838.277 1.157.486 1.970.344 4.888.028 6.458.118 Exército Aeronáutica Marinha Corpo de Bombeiros Outros PEA Ocupada 103.009 160.816 10.085 162.971 Forças Armadas 9.242 11.021 3.249.935 139.183 65.629.893 % PEA Ocupada com o total das classes 4,70% 5,91% 6,42% 8,53% 9,97% 11,72% 10,87% % PEA Ocupada com as classes que tem em todos os anos 4,07% 4,84% 5,14% 6,80% 7,69% 8,84% 9,84% Fonte: IBGE. Censos Demográficos. Pesquisa IPEA. Emprego e Trabalho no Setor Público Brasileiro No âmbito da segurança pública, (polícia militar, polícia civil e corpo de bombeiros) todas as classes de atividades apresentam crescimento vigoroso, sobretudo após os anos 1970. Esse desempenho está vinculado ao aprofundamento do processo de urbanização, com os problemas advindos da vida urbana. No período mais recente, dado a evolução federativa do País, em termos da distribuição das atividades e funções públicas, por esferas de governo, tem-se que a esfera municipal concentra o grosso das atividades sociais do Estado. Com efeito, quando se olha pra distribuição do emprego público pelos três níveis de Governo, observa-se a prevalência da esfera municipal. TABELA 2: EMPREGO PÚBLICO POR ESFERA DE GOVERNO NO TRABALHO PRINCIPAL: 1992- 2009 . (em milhares ) Esferas de Governo 1992 1995 1999 2002 2009 Federal 1477 1443 1440 1247 1565 Estadual 3362 3442 3154 3265 3502 Municipal 2666 2958 3228 4101 5426 Total 7505 7843 7949 8613 10493 . Fonte: PNAD. Pesquisa IPEA - Emprego e Trabalho no Setor Público Brasileiro Com efeito, a esfera municipal concentra cerca da metade do emprego público no País e o grosso da burocracia das ruas. TABELA 3 Ocupações mais numerosas da burocracia das ruas no emprego público municipal: 2002-2009 (Em milhares) AS MAIS NUMEROSAS 2002 2009 346.846 Variação Absoluta -100.233 Variação % (-22,0%) Professores com nível médio no ensino fundamental 447.079 Professores com formação de nível superior 322.047 744.024 421.977 131,0% Agentes da saúde e do meio ambiente 220.198 342.003 121.850 55,3% Guardas e vigias 156.510 196.264 39.754 25,4% Técnicos e auxiliares de enfermagem 133.946 181.071 47.125 35,0% Professores leigos 115.395 39.617 -75.778 (-65,0%) Atendentes de enfermagem, parteiras práticas. 76.367 55.643 -20.724 (-27,0%) Recepcionistas 67.594 109.458 41.864 62,0% 1539136 2014926 475835 31,0% 4.102.698 5.426.496 1.305.798 31,8% Soma Emprego público municipal Fonte: PNAD. Pesquisa IPEA - Emprego e Trabalho no Setor Público Brasileiro Na tabela 03, as oito ocupações da burocracia das ruas mais numerosas, cresceram, no conjunto delas, cerca de 31% no período 2002-2009, e o emprego municipal, 32%. A propósito, as oito ocupações discriminadas correspondem a 37,5% do emprego municipal na década. TABELA 4 Ocupações que mais cresceram na esfera municipal: 2002-2009 (Em %) As dez primeiras ocupações Psicólogos e psicanalistas Professores com formação de nível superior na educação infantil Fisioterapeutas e afins Enfermeiros de nível superior e afins Policiais e guardas de trânsito Inspetores de alunos Variação relativa 2002-2009 542 505 394 266 181 125 Fonte: Fonte: PNAD. Pesquisa IPEA - Emprego e Trabalho no Setor Público Brasileiro Em 2009 a ocupação de “professor” no governo municipal empregou aproximadamente um milhão e 130 mil servidores, cerca de um quinto do total de servidores municipais. Nos anos 2000 os docentes com formação de nível superior nas séries iniciais do ensino fundamental, 1ª a 4ª série, foi o contingente de servidores com maior expansão absoluta (156 mil servidores), seguido dos professores com formação superior de 5ª a 8ª série do ensino fundamental (em torno de 147 mil). No total, os docentes com nível superior na rede pública municipal aumentaram seu contingente em quase 422 mil. O destaque ficou com os docentes com formação superior no ensino infantil. Eles cresceram 505% no período. Em 2002 eles eram em torno de 14 mil e em 2009 somavam quase 90 mil. Em contraste, os professores com formação de nível médio reduziram o número em quase 105 mil, seguido dos professores leigos no ensino infantil e fundamental: se reduziram em 77 mil. Resta ainda um contingente expressivo de professores nesses níveis de ensino, aproximadamente 380 mil docentes, sem formação de nível superior. Com relação à força de trabalho vinculada à saúde pública municipal, anos 2000, a ocupação “atendentes de enfermagem, parteiras práticas e afins”, foi a única que se reduziu. A hipótese é que esses profissionais foram substituídos pelos da ocupação de “técnicos e auxiliares de enfermagem”. Houve forte expansão do emprego nas ocupações que ultrapassam o escopo mais tradicional dos serviços de saúde. O forte aumento no número de psicólogos e psicanalistas, fisioterapeutas e dentistas evidencia a tendência à diversificação dos serviços municipais de saúde. O número de médicos teve aumento de 64%, um dos menores entre as ocupações da área. Isto provavelmente deveu-se à expansão dos serviços preventivos e básicos, muito a cargo da atuação de outros profissionais. Neste sentido, o maior contingente de servidores adicionados à saúde, nos anos de 2000, foi o de “agentes de saúde e do meio ambiente”. A importância dos serviços de saúde municipal é destacada na Constituição de 1988. Nela, o município é o único ente a quem se atribui explicitamente a competência na provisão de serviços de atendimento à saúde, com “a cooperação técnica e financeira da União e do Estado”.§ Ao município cabe também formular a política local, bem como planejar, contratar, avaliar e controlar os estabelecimentos de saúde. A ampliação e diversificação das funções na saúde, como consequência dos princípios da descentralização e hierarquização que nortearam o processo de construção da política de saúde no país, e que culminou na criação do Sistema Único de Saúde (Sus), fez crescer, desde finais dos anos 1970, o emprego municipal na área. Desde então o município experimenta a expansão dos serviços de saúde. O processo de descentralização foi impulsionado nos anos 1990, com a atuação da “Comissão Intergestora Tripartite” (CIT), que passou a definir as normas operacionais – básicas e assistenciais - com respeito às relações entre as esferas de governo, bem como os instrumentos para a sua execução. Em 2006, o estabelecimento do “Novo Pacto pela Saúde” levou o processo de descentralização a patamar superior. Com ele, superou-se a figura de “habilitação” dos municípios e estados a alguma “condição de gestão”. Ademais, houve o deslocamento para os estados – no âmbito das “Comissões Intergestoras Bipartites” (CIBs), de decisões antes tomadas no âmbito federal com relação a critérios e regras de funcionamento do Sistema. Atualmente a esfera municipal provê também serviços de maior complexidade em ambulatórios e hospitais. Alguns números dão ideia da evolução recente dos serviços municipais na área: dos 5,6 mil municípios existentes, pelo menos 5,2 mil deles contavam, em 2009, com equipes de saúde da família. Há 15 anos, em 1994, praticamente inexistiam tais equipes. Em relação aos leitos hospitalares, em 1992, dos § Constituição Federal de 1988, Título III, Cap. IV, Art. 30, Item VII. 135 mil leitos na rede pública, apenas 26% deles eram municipais. Em 2005 havia quase 149 mil na rede pública e a esfera municipal respondia por 47% deles. E em relação ao número de empregos médicos, em 1992, dos cerca de 150 mil existentes na rede pública de saúde, 46% deles eram no município. Em 2005 existiam 243,3 mil empregos médicos no setor público, 65% deles nos municípios.** Uma novidade do emprego municipal foi o crescimento numérico da ocupação “policiais e guardas de trânsito”. No período 2002-2009 o pessoal cresceu na ocupação 181%. Em 2002 eram quase 51 mil e em 2009 atingem pouco mais de 116 mil. A criação de guardas municipais em caráter facultativo foi previsto na Constituição de 1988, Parágrafo 8º do Artigo nº 144, com a finalidade de proteção de bens, instalações e serviços municipais. No entanto, as guardas municipais desde o início dos anos 2000 vêm ampliando o escopo de suas funções. Hoje suas atividades abrangem, além da proteção de bens, a segurança em eventos, a ronda escolar, o auxílio à polícia militar, o auxílio no atendimento do conselho tutelar, o auxílio no ordenamento do trânsito, o auxílio à polícia civil, a segurança do prefeito, ações educativas, atividades de defesa civil, e ainda o controle de ambulantes. “Burocracia das Ruas” e a questão salarial no serviço público brasileiro A política de remuneração no serviço público foi historicamente concebida no contexto de criação da alta burocracia, imune às vicissitudes políticas, por meio da estabilidade no emprego e do sistema de progressão em carreiras, e pelo usufruto das melhores condições e benefícios laborais. A estabilidade no emprego, o desenvolvimento profissional mediante a progressão em carreiras, e a política de benefícios, em particular, a remuneratória, constituíam as bases da profissionalização do serviço público. Na segunda metade do século XX o fenômeno da expansão massiva do emprego público, com a diversificação e a ampliação das funções do Estado, sobretudo na área social, com o desenvolvimento da Street Level Bureaucracy e o processo de ** Ver em Nogueira (2010) Cap. VII, p. 253, Tabela 2 e p. 254, Gráfico 1. sindicalização de categorias de servidores, fez do pagamento de salários e outros benefícios laborais importantes itens do gasto público. A política de remuneração passou a refletir também os potenciais impactos da folha de salários sobre a despesa pública Enfim, a antiga lógica de remuneração no serviço público teve sua viabilidade reduzida à medida que o serviço público passou a abranger parcela razoável da população empregada, com direito de organização sindical e de greve, sobretudo na área social do Estado, onde atua a Street Level Bureaucracy (SLB). No Brasil, a lógica de remunerações no serviço público segue a lógica que podemos denominar:“small is beautiful”. Por esfera de governo, porque 50% da força de trabalho se concentram na esfera municipal, suas remunerações médias são inferiores a da esfera estadual (35% da força de trabalho) e estas, por sua vez, inferiores à esfera federal (15% da força de trabalho). Por poderes da República, porque o grosso da força de trabalho encontra-se no Executivo, suas remunerações médias são inferiores às do Judiciário e Legislativo. Essa diferenciação salarial se reproduz no âmbito das categorias. Aquelas mais numerosas têm salários médios inferiores às menos numerosas. Desse modo, grande parte da “Burocracia das Ruas” efetivamente aufere os mais baixos salários no setor público no País. Desta perspectiva, a remuneração da SLB tem como parâmetro básico a necessidade de compressão do gasto com salários. Esta lógica, por sua vez, mostra-se problemática. No âmbito das categorias mais numerosas ela concorre para maior rotatividade e absenteísmo, e, do ponto de vista estratégico, cria dificuldades à estruturação de um quadro de servidores mais qualificados. Burocracia das Ruas e as novas formas de gestão no serviço público As reformas gerenciais da administração pública, iniciadas pela Inglaterra e EUA nos anos Reagan e Thatcher, pressupõe que nenhum agente de Estado é confiável na missão de atender ao interesse público, e por isso advoga terceirizar serviços, minimizar custos com a folha de salários, e avaliar e supervisionar servidores por mecanismos de mercado. Sob o lema cost less and work better, as instituições que permanecem na órbita do serviço público devem se orientar o máximo pelas formas de gestão prevalecentes na iniciativa privada, constituindo-se em organizações “quase-mercado”. Nos países anglo saxões as formas não estatais de gestão ficaram conhecidas como devolved employment e devolved government. Este processo consiste basicamente em conceder autonomia às organizações públicas, e estabelecer com elas contratos de serviços. No Brasil, este processo ganha corpo mais na área da saúde, onde as unidades assistenciais mais complexas: ambulatórios, maternidades e hospitais – funcionam como pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, sob a forma de fundações de apoio, fundações estatais, organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs) e organizações sociais (OSs).†† No tocante à gestão da força de trabalho, a vantagem dessas novas formas é tornar mais ágil e flexível o processo de contratação e dispensa, bem como de se ter política mais autônoma de remunerações. Essas organizações não se orientam pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que cria obstáculos à expansão e remuneração da força de trabalho, nem da Lei de Licitações, que torna o processo licitatório moroso. Ademais, evidencia-se que o regime estatutário mostra-se inadequado para atrair as especialidades médicas muito requisitadas, a exemplo dos oftalmologistas, que se recusam a prestar concurso, e quando o fazem, é comum não assumires o cargo. Neste sentido, as normas do Direito Público, a Legislação Orçamentária, o Estatuto dos Servidores Civis e a Lei nº 8.666 obstáculos ao adequado funcionamento das unidades públicas de saúde. Assim, propõe-se à Administração Direta contratar serviços de organizações privadas sem fins lucrativos, que dispõem de autonomia financeira e gerencial. Os que se posicionam contrários a isto colocam em dúvida a capacidade da Administração Direta de fazer cumprir adequadamente os contratos, com o risco de se haver transferido patrimônio e recursos públicos para entes privados. Há ainda o temor de que a situação resulte em tratamento desigual dos usuários, a depender da forma de acesso aos serviços. A diversidade no acesso comprometeria na área da saúde os princípios da equidade e a universalidade que norteiam o SUS. Alega-se também a †† Para essa discussão, ver Nogueira (2010). probabilidade de haver, numa mesma unidade assistencial, profissionais com regimes de trabalho e níveis salariais diferenciados, sendo um fator desmotivador de segmentos do quadro de pessoal. Vários estados e municípios vêm se utilizando das novas formas de gestão dos serviços públicos.‡‡ Os países anglo-saxões foram os pioneiros. Desde os anos 1990 que alguns países passaram a conceder autonomia formal a órgãos públicos provedores de serviços, passando a Administração Direta a “contratar” essas organizações para prestar serviços. Muitas deixam de fazer parte do setor público e passam a trabalhar para o setor público. No Reino Unido, um importante desenvolvimento do serviço civil desde 1998 foi o estabelecimento das agências denominadas New steps. Num primeiro momento, seu staff de pessoal permaneceu no serviço civil, mas posteriormente algumas delas foram privatizadas e o Governo Central passou a contratar seus serviços. Como consequência, os funcionários perderam o status de servidores civis e deixaram de trabalhar no governo para trabalhar para o governo (HOGWOOD, 2008). Em suma, a tendência é de que parcelas das burocracias das ruas percam o status de servidores civis, o que conhecemos como o vínculo estatutário, deixando de trabalhar no governo e passando a trabalhar para o governo. Considerações Finais Uma nova força política emergiu do processo de construção do Estado Social no Pós Guerra: a “burocracia das ruas”. No Brasil, o fenômeno é mais recente, se iniciando nas últimas décadas do século passado, e com ímpeto maior após a Constituição de 1988. Seu peso numérico e no gasto público, bem como sua ação reivindicatória e suas demandas por participação nas decisões de políticas públicas, põe em cheque a ‡‡ Em Nogueira (2010, p. 204-205), tem-se que em 2009 o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) registra 106 unidades assistenciais de OSs funcionando no SUS no país. O autor alerta que este dado provavelmente está subestimado, haja vista que só no Estado de São Paulo a Secretaria Estadual da Saúde divulgou a existência de pelo menos 35 unidades assistenciais funcionando nos moldes de OSs. O autor também alerta para a distinção entre unidade gestora, como OS, da unidade assistencial mantida. No caso, a gestora pode manter mais de uma unidade assistencial. capacidade de o Estado cumprir suas funções sociais-redistributivas, bem como a legitimidade dos governantes. Frente a isto a ação estatal ganha novos contornos e nuances e se torna mais complexa. A distinção público/privada é cada vez menos nítida à medida que novas formas de organizações, nem públicas nem privadas emergem, e a força de trabalho, em particular a burocracia das ruas, perde o seu status de civil service. Para críticos como John Gray, que se remete ao caso da Inglaterra, o serviço público não é empresa e a crença de que o Estado é uma grande companhia de serviços fez dele um leviatã cambaleante. Em suas palavras, “a renovação do Estado surge como a tarefa política do nosso tempo, pois, se ela não for realizada, nenhum outro objetivo poderá ser atingido”, e isto, necessariamente passa, também por uma adequada gestão da burocracia das ruas. Referências Bibliográficas: BOSSAERT, D. The flexibilization of the employment status of civil servants: from life tenure to more flexible employment relations? Luxemburg: European Institute of Public Administration, Jun. 2005. Disponível em: <http://www.forum.europa.eu.int.> Acessado em: 14 fev.de 2010. BREMAEKER, F. E. J. 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