Matizes Culturais _INDICE
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Matizes Culturais _INDICE
Índice Palavras prévias .................................................................................... 9 1. Introdução histórica e cultural ........................................................ 11 2. Paradigmas políticos e ideológicos................................................. 45 2.1. O ethos liberal e conservantista .............................................. 54 2.2. Reforma e revolução ............................................................... 94 3. Axiomas da sociedade industrializada .......................................... 141 3.1. O evangelho da riqueza......................................................... 143 3.2. A felicidade da maioria......................................................... 176 4. Dualidades, cruzamentos e confluências culturais........................ 207 4.1. Debate ético e intelectual ...................................................... 214 4.2. Intervenção artística e literária.............................................. 233 5. Representações, adaptações e apropriações: o legado vitoriano... 269 Reflexões finais................................................................................. 293 Bibliografia ....................................................................................... 295 Índice Remissivo............................................................................... 329 Palavras prévias Este volume visa estabelecer uma ponte entre o passado e o presente, demonstrando que as matrizes culturais subjacentes ao século XIX continuam a exercer influência – de um modo implícito ou explícito – nos dias de hoje, igualmente pautados por dualidades culturais, crises de valores, angústias, sonhos e convicções. O estudo que agora se apresenta é fruto de um gosto pessoal pela era vitoriana, espelhado na actividade desenvolvida ao longo de três décadas como docente universitária, a par de investigadora integrada no Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (CETAPS), uma unidade de investigação financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A presente análise procura, assim, reproduzir e acompanhar conteúdos programáticos, quer utilizados em unidades curriculares da área de Cultura Inglesa, quer relacionados com diversas temáticas de investigação académica e científica. O percurso proposto inicia-se com uma introdução histórica e cultural, tendo em vista destacar factos, personalidades, conceitos e temáticas. Os capítulos, se bem que autónomos, articulam-se de modo a apresentar uma perspectiva geral sobre as matrizes culturais em questão, possibilitando um melhor entendimento da Grã-Bretanha oitocentista. Os paradigmas políticos e ideológicos incidem sobre o ethos liberal e conservantista a par das correntes socialistas, proporcionando uma reflexão sobre a evolução das ideologias, enquadrada tanto na reforma parlamentar – em detrimento da acção revolucionária – como na consolidação do Império Britânico e no desenvolvimento da teoria evolucionista. Os axiomas da sociedade industrializada repousam no evangelho da riqueza e na felicidade da maioria, consagrados, respectivamente, pelo liberalismo económico e pelo utilitarismo, num contexto coevo de progresso tecnológico-científico e de fomento do espírito de iniciativa. A análise das dualidades, cruzamentos e confluências culturais evidencia não só o debate ético e intelectual, mas tam- 10 Iolanda Freitas Ramos bém a intervenção artística e literária, tendo por base vozes discordantes do sistema vigente na época. A reflexão final sobre o legado vitoriano explora as vertentes da tradição e da modernidade patentes na era vitoriana, debruçando-se sobre representações contemporâneas da cultura oitocentista e novos rumos de investigação. Importa acrescentar que o volume retoma e complementariza o aparato teórico conducente à tese de doutoramento sobre John Ruskin, cuja versão publicada se cingiu ao corpo central da dissertação. Por esse motivo, manteve-se inédito o texto, agora revisto e actualizado, que aqui se divulga ao público em geral e a estudantes em particular. O subtítulo presente em Matrizes Culturais: Notas para um Estudo da Era Vitoriana aponta para a célebre obra de T. S. Eliot, Notes Towards the Definition of Culture, e a adopção do conceito de notas não é displicente. Por um lado, pretende explicitar que não se trata de uma obra exaustiva, como qualquer obra dificilmente o poderá ser em relação a qualquer temática, sobretudo de ordem cultural. Por outro lado, as notas que acompanham o corpo do texto, em número elevado e maioritariamente dedicadas a referências bibliográficas, têm como objectivo específico incentivar um estudo da era vitoriana baseado na leitura de um leque variado de obras, algumas delas fora de circulação mas digitalizadas e, por conseguinte, acessíveis por meio da Internet. Além disso, o recurso frequente a citações permite uma perspectiva dinâmica e multivocal. Nesse sentido, visa não só estabelecer o contacto com as palavras dos próprios autores – sejam eles oitocentistas ou contemporâneos, de maior ou de menor divulgação, mais próximos ou mais afastados do cânone – mas também estimular o conhecimento integral dos textos originais. Tanto as notas como as citações, sustentadas na bibliografia seleccionada, têm como finalidade primordial incentivar o hábito de leitura crítica nos estudantes que contactam pela primeira vez com a matéria aqui apresentada. Espera-se, assim, demonstrar que a vasta informação disponível via Internet, para além de não invalidar a utilização de fontes bibliográficas tradicionais, deve ser sua aliada, de modo a enriquecer a investigação, possibilitar a reflexão em torno de perspectivas originais e constituir mais um veículo na aplicação da metodologia científica. Por último, mas não de somenos importância, deseja-se que esta obra possa corresponder às expectativas de um leque variado de potenciais leitores e satisfazer a curiosidade intelectual por uma época determinante para o nosso entendimento de matrizes culturais da modernidade. 1. Introdução histórica e cultural Na obra que intitulou Portrait of an Age: Victorian England, George Malcolm Young evoca um ditado vitoriano, “Servants talk about People: Gentlefolk discuss Things”,1 elucidativo sobre a mentalidade taxinómica vigente. Com efeito, no século XIX, diversos aspectos da teoria política, económica e social, entre muitas outras “coisas”, foram debatidos vivamente na sociedade britânica, abalada no plano sócio-económico pelas fortes repercussões do processo de industrialização. Também Alasdair Clayre, na abordagem que consagra a Nature and Industrialization, corrobora esta ordem de ideias: “All centuries can claim to be ‘centuries of change’; but perhaps the hundred years from 1760 have a stronger claim than any other”.2 Entre 1780 e 1850, em menos de três gerações, uma revolução sem precedentes na história da Humanidade mudou a face da Inglaterra.3 Como se sabe, este foi o primeiro país, em termos cronológicos, a sofrer quer os benefícios, quer os prejuízos dela decorrentes. Daí em 1 George Malcolm Young, Portrait of an Age: Victorian England, Oxford/New York, Oxford University Press, 1989 (1936), p. iii. 2 Alasdair Clayre (ed.), Nature and Industrialization, Oxford, Oxford University Press/The Open University Press, 1977, p. xix. 3 Apesar de chamar a atenção para a arbitrariedade das datas na divisão da História, Asa Briggs aborda os feitos e os problemas de um período compreendido entre oito décadas, in The Age of Improvement, 1783-1867, London/New York, Longman, 1980 (1959). A consulta de Eric Hobsbawm, The Age of Capital, 1848-1875, London, Abacus, 2006 (1975), é de grande utilidade para uma complementarização da época. 12 Iolanda Freitas Ramos diante, o mundo não voltaria a ser o mesmo. Os historiadores usam frequentemente a palavra “revolução” como sinónimo de mudança radical, mas nenhuma mutação foi tão dramática como a Revolução Industrial, pois alterou totalmente o curso da História, transformando o Homem de pastor-agricultor em manipulador de máquinas impulsionadas por energia inanimada.4 Com efeito, o próprio termo, confinado à indústria, é restritivo, visto terem ocorrido uma galáxia de revoluções que se entroncaram umas nas outras, afectando todo um modo de vida.5 Por conseguinte, o tópico da sociedade industrializada e da civilização moderna, tão presente ainda nos nossos dias, remonta aos finais do século XVIII. A Grã-Bretanha setecentista assistiu aos efeitos transformadores do processo de industrialização,6 cujas consequências 4 Tanto o estudo de Arnold Toynbee, Lectures on the Industrial Revolution in England, London, Rivingtons, 1884, como o de Paul Mantoux, La Révolution Industrielle au XVIIIe Siècle: Essai sur les Commencements de la Grande Industrie Moderne en Angleterre, Paris, s.e., 1906, continuam a ser de leitura indispensável para uma boa compreensão da Revolução Industrial e dos seus efeitos, bem como as análises mais recentes de Martin J. Wiener, English Culture and the Decline of the Industrial Spirit, 1850-1980, London, Penguin Books, 1985 (1981) e de William D. Rubinstein, Capitalism, Culture, and Decline in Britain, 1750-1990, London, Routledge, 1993. Para uma abordagem generalista, ver Phyllis Deane, “The Industrial Revolution in Great Britain”, in Carlo M. Cipolla (ed.), The Fontana Economic History of Europe, vol. 4, Isle of Man, Fontana/Collins, 1978 (1973), pp. 161-227. 5 Sobre o tema, consulte-se Thomas Southcliffe Ashton, The Industrial Revolution, 1760-1830, London, Oxford University Press, 1968 (1948); Sidney G. Checkland, The Rise of Industrial Society in England, 1815-1885, London, Longman, 1964; Christopher Hill, Reformation to Industrial Revolution, London, Penguin Books, 1992 (1967); Pat Hudson, The Industrial Revolution, London/New York, Edward Arnold, 1993 (1992); e Patrick O’Brien e Roland Quinault (eds.), The Industrial Revolution and British Society, Cambridge, Cambridge University Press, 1993. 6 Jean Heffer e William Serman, “A Industrialização”, in O Século XIX – 1815-1914: Das Revoluções aos Imperialismos, trad. Ana Maria Novais, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, pp. 79-87. Eric Hobsbawm apresenta uma análise de particular interesse para a esfera sócio-económica britânica em Matrizes Culturais 13 mais dramáticas se fizeram sentir durante todo o século XIX, com forte incidência no período ao qual se convencionou chamar época vitoriana. Em Sociedade e Cultura Inglesas, Luísa Leal de Faria constata que a opinião dos britânicos se dividia entre o orgulho na prosperidade que os destacava de outros povos e “uma inquietação crítica que problematizava as conquistas da técnica e os benefícios materiais, e os confrontava com a perda de valores tradicionais, a desorientação moral, a desagregação dos modelos conhecidos”.7 Na verdade, após a vitória sobre os exércitos de Napoleão em 1815, a Grã-Bretanha não se voltou a envolver em conflitos de vulto a nível europeu, à excepção da Guerra da Crimeia (1854-56) – em território imperial, confrontou-se com a Indian Mutiny (1857) dos regimentos de sipaios e, a partir de 1879, com os Zulus e os Boers – conhecendo uma era de paz e de prosperidade que se prolongou até ao alvor da Primeira Guerra Mundial.8 Apesar de os historiadores reconhecerem o contributo do século XVIII como “the vital century” para a história económica moderna, o século XIX ganha relevo ao receber o epíteto “the Great Peace”9 para caracterizar um longo período que permitiu ao país afirmar-se como potência mundial. Além de, a nível externo, o Império Britânico ter beneficiado de antigas possessões francesas que se vinham somar a outras obtidas após a Guerra dos Industry and Empire: An Economic History of Britain since 1750, London, Weidenfeld & Nicolson, 1968, passim. 7 Luísa Leal de Faria, Sociedade e Cultura Inglesas, Lisboa, Universidade Aberta, 1996, p. 463. 8 Ver Christopher Harvie e H. C. G. Matthew, “The Wars Abroad”, in Nineteenth-Century Britain: A Very Short Introduction, Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 22-29; e D. W. Sweet, “Warfare and International Relations: Britain, Europe and the ‘Pax Britannica’”, in Christopher Haigh (ed.), The Cambridge Historical Encyclopedia of Great Britain and Ireland, Cambridge, Cambridge University Press, 1996 (1985), pp. 265-268. 9 David Thomson, England in the Nineteenth Century, 1815-1914, London, Penguin Books, 1991 (1950), pp. 9, 111. Cf. John Rule, The Vital Century: England's Developing Economy, 1714-1815, London, Longman, 1992. Este autor complementa a abordagem económica com a social em Albion’s People: English Society, 1714-1815, London, Longman, 1992. Iolanda Freitas Ramos 14 Sete Anos, o exercício político, a nível interno, foi consolidado pelo equilíbrio entre o poder parlamentar e o monárquico. O primeiro conheceu a evolução das organizações partidárias para verdadeiros partidos políticos.10 O segundo, por seu turno, ganhou respeitabilidade com a monarca cujo próprio nome soava em todas as realizações britânicas, marcando uma era ímpar na História da Inglaterra. O autor de England in the Nineteenth Century, 1815-1914 sublinha as circunstâncias extraordinárias que tinham conduzido ao desenvolvimento da nação, bem como o exemplo de grandeza, estabilidade e paz que esta corporizava aos olhos dos outros países na era vitoriana.11 Com efeito, a jovem Vitória cumpriu a célebre promessa feita em criança, quando soubera que um dia seria rainha: “I will be good”.12 Herdeira da dinastia de Hanover, desde cedo lhe foi transmitida a responsabilidade de restaurar o prestígio da monarquia, fortemente abalado na época. Se tivermos presente o relato da acessão ao trono, registado pela principal protagonista no seu diário particular no dia 20 de Junho de 1837, verifica-se que a inexperiente governante revelava já uma grande determinação: Since it has pleased Providence to place me in this station, I shall do my utmost to fulfil my duty towards my country; I am very young and perhaps in many, though not in all things, inexperienced, but I am sure, that very few have more real good will and more real desire to do what is fit and right than I have.13 10 Ver infra, cap. 2. 11 Consulte-se Thomson, England in the Nineteenth Century, passim, em especial “Britain in 1815”, in ibid., pp. 11-34, para os tópicos supramencionados. 12 Andrew Langley, Victorian Britain, 1837 to 1901, London, Heinemann, 1994, p. 6, e Roger Ellis, Who’s Who in Victorian Britain, London, Shepheard-Walwyn, 1997, p. 2. Veja-se “Queen Victoria”, in ibid., pp. 1-8. 13 Christopher Hibbert, Queen Victoria in her Letters and Journals, Phoenix Mill, Sutton Publishing, 2000 (1984), p. 23. Itálicos nossos. Cf. Gordon S. Haight (ed.), The Portable Victorian Reader, London, Penguin Books, 1976 (1972), p. 20. A firmeza de carácter, regida pela ética de self-help, constituiu um dos apanágios da época. Ver infra, cap. 3.2. Matrizes Culturais 15 A sua intuição política traduziu-se no facto de, ao contrário dos monarcas antecessores, se ter apoiado desde o início no poder civil. Nos primeiros anos de reinado contou com a preciosa colaboração de Lord Melbourne, o paternal Primeiro-Ministro whig por quem nutria uma verdadeira amizade, sentimento análogo ao que viria a sentir, décadas mais tarde, por Disraeli. Embora o seu casamento com um príncipe estrangeiro, Alberto de Saxe-Coburgo, em 1840, tivesse suscitado a desconfiança inicial dos súbditos,14 no final do longo reinado de 63 anos, o mais extenso que a Grã-Bretanha conheceu até aos dias de hoje, a soberana tinha ganhado não só o respeito mas também o afecto do seu povo.15 A sua imagem popular identificava-a como “Mother, Wife, and Queen”, o epíteto com que Alfred, Lord Tennyson se lhe dirigira no poema The Queen (1851). O analista Raymond Chapman esclarece: Less for what she did than for what she was, and because so much of good and bad lay both in her and in the time, Victoria deserved to have that long period remembered by her name. The small woman had expressed in herself so many of the ideals of her people, so much of their pride and their insecurity, their sense of duty and their personal tensions.16 Com efeito, a rainha conseguiu estabelecer um padrão de comportamento irrepreensível, que suscitou a admiração de todas as classes sociais, e tornou-se ela própria o símbolo da nação. Um pormenor, como o facto de bastar a sua efígie nos selos postais para identificar o Reino Unido em todo o mundo,17 é revelador do seu carisma. 14 Consulte-se “Queen, Prince, and Court”, in Briggs, The Age of Improvement, pp. 454-462. 15 Cf. Dorothy Marshall, The Life and Times of Victoria, London, Weidenfeld and Nicolson, 1972. 16 Raymond Chapman, The Victorian Debate: English Literature and Society, 1832-1901, New York, Basic Books, 1968, p. 24. 17 O Penny Black de 1840 e o Penny Red do ano seguinte foram os primeiros selos colantes do mundo. Cf. Paul Atterbury e Suzanne Fagence Cooper, Victorians at Home and Abroad, London, V&A Publications, 2001, p. 10. Iolanda Freitas Ramos 16 Numa era em que o país conheceu a sua maior prosperidade, bem como profundas convulsões políticas e sociais, a figura perene de Vitória reforçava o vínculo com o passado glorioso e mantinha a esperança num futuro próspero. À semelhança de uma fortaleza indestrutível, garantia a estabilidade nacional contra a anarquia e o perigo de uma “nova ordem”. A opinião de Monica Charlot e de Roland Marx, expressa numa obra que acentua o “triunfo das desigualdades”, atesta o ponto de vista aqui veiculado: Vitória torna-se, pouco a pouco, a “mãe da pátria” e a encarnação segura de uma estabilidade a que uma sociedade algo farta das mudanças anteriores ou em curso, parece aspirar.18 De igual modo, o comentário de Raymond Chapman parece-nos digno de nota: “The Industrial Revolution was only one of many things of which the Victorians inherited the reality, struggled with the effects and were afterwards blamed for the consequences”.19 O historiador Asa Briggs, por seu turno, coloca a questão noutros termos: The adjective ‘Victorian’ […] is a more fitting label to apply to a highly distinctive age than labels like ‘industrial society.’ It carries with it all the conflicts and compromises of the times, and all their self-consciousness and pride.20 O capítulo no qual insere estas reflexões intitula-se “Victorianism: Prelude, Expression, Aftermath”,21 uma enunciação generalista que reflecte um percurso em sintonia com o desenrolar das três fases habitualmente apontadas para a época. São elas o período vitoriano 18 Monica Charlot e Roland Marx (eds.), Londres, 1851-1901: A Era Vitoriana ou O Triunfo das Desigualdades, trad. Ana Mónica Faria de Carvalho, Lisboa, Terramar, 1995 (1990), p. 10. 19 Chapman, The Victorian Debate, p. 36. 20 Asa Briggs, A Social History of England, London, Penguin Books, 1991 (1983), p. 268. 21 Ibid., pp. 266-291. Matrizes Culturais 17 inicial (Early Victorian Period), médio (Mid-Victorian Period) e tardio (Late Victorian Period). Alguns analistas, porém, mantêm a tridivisão mas optam por categorias mais explicitamente relacionadas com parâmetros sócio-político-económicos. É o caso de Clarence Brinton, que prefere uma abordagem em torno de “The Revolution of 1832”, “Chartism” e “The Prosperous Victorians”.22 Como é do conhecimento comum, a era adoptou o nome da monarca reinante, o que aponta para o período compreendido entre a sua acessão ao trono, em 1837, e a sua morte, em 1901.23 Dada a extensão do reinado e o impacto na nação, sobretudo se comparado com o período eduardiano, de apenas nove anos,24 é possível conceber de forma mais alargada a era vitoriana, identificando-a com todo o século XIX. Em termos meramente numéricos, a acepção mais comum para o conceito de um século é que ele abarca cem anos. Contudo, e mesmo sem existir uma opinião consensual sobre balizas temporais, muitas vezes os historiadores privilegiam acontecimentos marcantes no curso da História, que consideram responsáveis por profundas alterações de ordem social, económica e política. Por esse motivo, os conceituados historiadores Christopher Harvie e Henry Colin Matthew iniciam o seu estudo sobre a Grã-Bretanha oitocentista com as consequências da Revolução Francesa, em 1789, e 22 Ver Clarence Crane Brinton, English Political Thought in the Nineteenth Century, London, Ernest Benn Limited, 1949 (1933). Cf. David Churchill Somervell, English Thought in the Nineteenth Century, Westport, Conn., Greenwood Press, 1977 (1929). Os três períodos são analisados, respectivamente e sob uma óptica complementar, por J. F. C. Harrison, Early Victorian Britain, 1832-51, London, Fontana Press, 1988 (1971), Geoffrey Best, Mid-Victorian Britain, 1851-75, London, Fontana Press, 1985 (1971), e J. F. C. Harrison, Late Victorian Britain, 1875-1901, London, Fontana Press, 1990. 23 A emoção com que Vitória viveu a notícia de que se tornara rainha, em 20 de Junho de 1837, e o dia da sua coroação, em 28 de Junho de 1838, está patente no seu diário. Ver Hibbert, Queen Victoria in her Letters and Journals, pp. 23-24 e 33-36, respectivamente. A última entrada do diário data de 12 de Janeiro de 1901, tendo a monarca falecido dez dias depois. Cf. ibid., p. 349. 24 Eduardo VII reinou de 1901 a 1910. O reinado de Jorge V, de 1910 a 1936, acolheu o primeiro conflito a nível mundial e testemunhou a génese da Segunda Grande Guerra. 18 Iolanda Freitas Ramos terminam-no com a entrada do Império Britânico na Primeira Guerra Mundial, em 1914.25 A concepção de um longo século XIX vai ao encontro da abordagem do consagrado Eric Hobsbawm, que lhe dedica três volumes – seleccionando os tópicos da revolução para classificar os anos charneira de 1789-1848, do capital para 1848-1875 e do Império para 1875-1914 – e apenas um ao século XX, significativamente intitulado Age of Extremes: The Short Twentieth Century.26 Também no domínio das Letras se opta por dar relevo ao impacto das obras literárias, mais do que à viragem numérica de um século. A académica Margaret Stonyk, por exemplo, considera que a literatura vitoriana permaneceu intrinsecamente ligada ao Romantismo, estando os leitores coevos conscientes das suas raízes culturais e tradições literárias. Nessa medida, enquadra a sua abordagem da literatura inglesa oitocentista entre 1798, o que corresponde à publicação das Lyrical Ballads de William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, e 1901, o que coincide tanto com a publicação da obra de Thomas Hardy, Poems of the Past and the Present, como com a morte de Vitória.27 25 Cf. Harvie e Matthew, “Chronology”, in Nineteenth-Century Britain, pp. 153-158. Acrescente-se que a consulta de cronologias em diferentes Histórias de Inglaterra confirma a disparidade de perspectivas. Remetemos, a título de exemplo, para a listagem factual de Kenneth O. Morgan (ed.), “Chronology”, in The Oxford History of Britain, Oxford/New York, Oxford University Press, 1989 (1984), pp. 699-702; e para a listagem seleccionada de George Macaulay Trevelyan, “Chronological Outline”, in A Shortened History of England, London, Penguin, 1985 (1942), pp. 581-584. Trevelyan diferencia os tópicos “Queen Victoria, 1837-67”, “The Second British Empire” e “The New Reform Era, 1868-1901”, in ibid. 26 Veja-se, de Eric Hobsbawm, The Age of Revolution: Europe 1789-1848, London, Abacus, 1977; The Age of Capital, 1848-1875, London, Abacus, 2006 (1975); The Age of Empire, 1875-1914, London, Abacus, 1999 (1987); e Age of Extremes: The Short Twentieth Century 1914-1991, London, Abacus, 2001 (1994). O também historiador Kenneth O. Morgan situa o século XX entre a Primeira Guerra Mundial e o Milénio. Ver “Chronology”, in Twentieth-Century Britain: A Very Short Introduction, Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 115-118. 27 Cf. Margaret Stonyk, Nineteenth-Century English Literature, London, Macmillan, 1984, p. 271. Ver “Chronological Table”, in ibid., pp. 280-299. Matrizes Culturais 19 Em consonância com uma perspectiva abrangente, pode dizer-se que os Estudos Vitorianos incidem sobre o período que se estende desde a década de 30 do século XIX até ao início da I Guerra Mundial. É frequente indicar a primeira Lei de Reforma Parlamentar (1832), a Grande Exposição Internacional de Londres (1851) e a crise económica da década de 70 para delimitar a divisão entre as diversas fases da era vitoriana.28 É possível, também, quebrar-se a tripartição e seleccionar as datas de 1832, 1848, 1870 e 1897 para assinalar como momentos mais significativos o início da alteração das leis eleitorais, as actividades revolucionárias em território europeu e o cartismo em Inglaterra, o conjunto de legislação em torno de direitos dos trabalhadores, crianças e mulheres, e a celebração do Jubileu de Diamante do reinado de Vitória.29 Esta perspectiva não impede que o Mid-Victorian Period, categorizado por G. M. Young como “the Victorian noon-time”, seja aquele que mais se identifica na consciência colectiva com o apogeu da época.30 28 Consulte-se, por exemplo, Ernest Edward Kellett, Religion and Life in the Early Victorian Age, London, Epworth Press, 1938 para a fase inicial; Geoffrey Tillotson e Kathleen Tillotson, Mid-Victorian Studies, London, Athlone Press, 1965 para as décadas intermédias; e Terry Gourvish e Alan O'Day, Later Victorian Britain, 1867-1900, Basingstoke, Macmillan, 1988 para o período vitoriano tardio. O declínio económico do país é analisado com pormenor por William P. Kennedy, Industrial Structure, Capital Markets and the Origins of British Economic Decline, 1870-1914, Cambridge, Cambridge University Press, 1987; Sidney Pollard, Britain's Prime and Britain's Decline: The British Economy, 1870-1914, London, Edward Arnold, 1989; Keith Robbins, The Eclipse of a Great Power: Modern Britain, 1870-1975, London/New York, Longman, 1983; e Samuel Berrick Saul, The Myth of the Great Depression, 1873-1896, London, Macmillan, 1985 (1969). 29 Cf. Herbert F. Tucker (ed.), A Companion to Victorian Literature & Culture, Oxford, Blackwell, 1999, pp. 3-65. 30 G. M. Young, Victorian Essays, ed. William Day Handcock, Oxford, Oxford University Press, 1962, pp. 133-142. Cf. Donald Read, “The Victorian Turning Point, 1868-1880”, in England 1868-1914: The Age of Urban Democracy, London/New York, Longman, 1979, pp. 3-207. 20 Iolanda Freitas Ramos O autor de The Victorian Debate: English Literature and Society, 1832-1901 apresenta uma perspectiva complementar, que importa transcrever: In the outward signs of life, in fashion and furniture and ways of spending money, there were three Victorian ages. In the realm of ideas, attitudes and beliefs, there were two, overlapping and sometimes conflicting. The decade of the sixties saw the main transition […]. The first generation struggled with the problems which it had inherited: thrust headlong into the modern world, it succeeded in holding together the society which was threatening to disintegrate. The second generation found new uncertainties and suffered the realization that society had avoided revolution but was still far from perfect balance and stability.31 Pelos motivos que foram apontados, conclui-se que a determinação liminar de balizas cronológicas para uma época que se caracteriza pelo sentido de mudança é paradoxal, arbitrária e restritiva,32 por se aplicar a uma tomada de consciência da própria ideia de mudança. Esta abrangeu inúmeras áreas do conhecimento, operando uma complexa consciencialização sobre todo um modo de vida individual e social. Uma das áreas mais afectadas foi a vida comunitária nos novos centros urbanos, exemplificando a dicotomia cultura/civilização: In the new towns of the industrial North had emerged a totally new type of community, in which the old techiniques of social living had broken down. The new society was torn by the conflicts of attitudes and interests which marked the disintegration of a traditional culture and the emergence of a wider, technical civilisation.33 31 Chapman, The Victorian Debate, p. 2. Itálicos nossos. Remetemos para o capítulo “The Victorian Age”, in ibid., pp. 1-35. 32 Cf. Briggs, “Introduction: Period and Problems”, in The Age of Improvement, pp. 1-7. 33 Harrison, Early Victorian Britain, p. 133. Matrizes Culturais 21 O tópico da “era das grandes cidades” foi, de resto, outro dos pólos aglutinadores do debate na época, com a enunciação de argumentos populares como “Adam and Eve were created and placed in a garden. Cities are the result of the fall”.34 Com efeito, a maior dificuldade sentida na investigação em torno dos Estudos Vitorianos no nosso tempo é a profusão de material sobre todo os aspectos da vida do século passado, o que nos recorda o célebre título Eminent Victorians e o cunho irónico das palavras de Lytton Strachey: “The history of the Victorian Age will never be written: we know too much about it”.35 O seu estudo continua a ser considerado o documento fulcral na reacção contra a mentalidade vitoriana. Marcando a diferença face à proficuidade literária dos autores vitorianos, que se encontra patente em Thomas Carlyle, John Ruskin ou Robert Browning, por exemplo, bem como em relação às inúmeras biografias monumentais produzidas na época, Strachey apresentou quatro curtos retratos biográficos, condensados apenas num volume. Para cumprir a sua missão de iconoclasta dos mitos vitorianos, apresentando-os com as qualidades e os defeitos dos comuns dos mortais, escolheu o cardeal Manning, Florence Nightingale, Thomas Arnold e o general Gordon. Saliente-se, contudo, que consagrou um volume inteiro à rainha Vitória. Para além de o ter dedicado a Virginia Woolf, o que por si só é significativo, utilizou um estilo próprio dos romances literários, narrando quer episódios caricatos, como a alteração da escolha do nome Elizabeth para Alexandrina Victoria no baptizado da futura monarca, entre outros, quer momentos intimistas, como a sua reacção à morte do marido, por exemplo.36 34 Asa Briggs faculta uma análise indispensável sobre o tema em Victorian Cities, London, Penguin Books, 1990 (1963). Consultar, em especial, “City and Society: Victorian Attitudes”, in ibid., pp. 59-87. 35 Lytton Strachey, Eminent Victorians, London, Penguin Books, 1986 (1918), p. 9. 36 Ver Lytton Strachey, Queen Victoria, San Diego, Harcourt, 1991 (1921), pp. 18-19, 225-227. Em detrimento da preferência manifestada pelo pai da 22 Iolanda Freitas Ramos Setenta anos depois do impacto inigualável da publicação de Strachey, o premiado escritor Andrew Norman Wilson lançou uma obra propositadamente com o mesmo título,37 visando relembrar uma época excepcional em inquietações intelectuais e em mudanças de todo um modo de vida. Wilson optou, à semelhança de Strachey, por apresentar curtas biografias de seis vitorianos. A saber, o príncipe Alberto, que modernizou a imagem da monarquia, Charlotte Brontë, autora dos mais apreciados romances de gosto romântico na época, William Gladstone, o maior estadista do seu tempo, John Henry Newman, o clérigo anglicano que se converteu ao catolicismo e se notabilizou como cardeal, a feminista e reformadora social Josephine Butler, bem como a fotógrafa Julia Cameron, tia-avó de Vanessa Bell e de Virginia Woolf. Numa época pautada pelo chamado “thatcherismo”, caracterizado pelo renascimento de valores políticos, económicos e morais conservadores, Wilson procurou demonstar que uma maior distância temporal podia proporcionar novas e laudatórias percepções da época, diferentes das sentidas por Strachey e pelos seus contemporâneos. Na verdade, em 1983, Margaret Thatcher afirmou: “Victorian values were the values when our country became great”.38 Importa ressalvar que, no século XVI, Isabel I reinou durante 45 anos e a sua época gloriosa ficou conhecida como a era isabelina, mas Vitória foi a única monarca na História britânica que deu o nome a um “ismo”. O próprio vitorianismo posicionou-se entre o romantismo e o modernismo, não deixando, contudo, de os influenciar e de ser influenciado por ambos. Aliás, dados os contrastes que dominaram a era vitoriana, qualquer análise que se faça à mentalidade vigente na época está sujeita a pecar tanto por defeito como por omissão: criança, o Duque de Kent, a escolha do nome foi da responsabilidade do tio, o Regente, que subiria ao trono como Jorge IV. 37 A. N. Wilson, Eminent Victorians, London, BBC Books, 1989. Wilson é também autor de The Victorians, London, Arrow Books, 2003 (2002) e de After the Victorians, London, Arrow Books, 2006 (2005). 38 Apud Briggs, A Social History of England, p. 266. Matrizes Culturais 23 […] there were many changes in attitudes and styles during Victoria’s long reign. The notion of a single, shared moral code, to which the label ‘Victorianism’ has been attached, becomes absurd […].39 Convém, por esse motivo, sublinhar a pluralidade que se encontra subjacente ao conceito de vitorianismo(s), embora se tenha convencionado utilizar o termo no singular. Com efeito, apesar do eclectismo patente na época, os analistas são unânimes em reconhecer a existência de uma cultura comum, à qual se aplica o termo “vitorianismo”. Gertrude Himmelfarb destaca a manutenção do ethos vitoriano após a morte da rainha, em consonância com o reputado estudo de Walter Houghton, que consagra a complexidade da mentalidade vitoriana em torno de atitudes emocionais, intelectuais e morais.40 Monica Charlot e Roland Marx, por sua vez, propõem o qualificativo de “albertianos”41 para o conjunto de valores habitualmente identificados como pilares da cultura vitoriana, apontando para as noções interligadas de família, gentleman, trabalho, riqueza, self-made man, utilitarismo, self-help, Império e religião. Tendo em consideração as dicotomias do pensamento político e social na Grã-Bretanha oitocentista, bem como a constante dualidade da era vitoriana em relação ao que T. S. Eliot identificou como os três sentidos da cultura, estabelecidos a nível do indivíduo, do grupo ou classe e da sociedade,42 é lícito aceitar a coexistência de um conjunto 39 Ibid., p. 268. Cf. W. E. S. Thomas, “Culture: Revolution, Romanticism and Victorianism”, in Christopher Haigh (ed.), The Cambridge Historical Encyclopedia of Great Britain and Ireland, Cambridge, Cambridge University Press, 1996 (1985), pp. 282-286. 40 Consulte-se Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds: Essays on Nineteenth Century Intellectuals, London, Weidenfeld & Nicolson, 1968 (1952), pp. 275-299, e Walter E. Houghton, The Victorian Frame of Mind, 1830-1870, New Haven/London, Yale University Press, 1985 (1957), p. xv, vii-ix. Também Luísa Leal de Faria aplicou à abordagem da época a designação “O Vitorianismo”, in Sociedade e Cultura Inglesas, pp. 455-524. 41 Charlot e Marx, Londres, 1851-1901, p. 11. 42 T. S. Eliot, Notes Towards the Definition of Culture, London/Boston, Faber and Faber, 1983 (1948), p. 21. 24 Iolanda Freitas Ramos de valores heterogéneos e mesmo antagónicos, abarcados por uma série de concepções doutrinárias. A título de exemplo, aponte-se as antinomias reforma/revolução, ciência/religião, mulher-anjo/mulher-demónio, esfera pública/esfera privada, e os inúmeros “ismos” da época, convergentes no vitorianismo, tais como liberalismo e conservantismo, utilitarismo e radicalismo, criacionismo e evolucionismo, espiritualismo e materialismo, imperialismo e jingoísmo, entre outros. O modo eufemista e revelador de um elevado grau de hipocrisia com que os vitorianos se referiam à prostituição como the great social evil é sintomático das clivagens sociais e de um padrão duplo de valores. A própria capital, que se consagra como o palco do mundo moderno em 1851, destaca-se também no submundo do crime e surge como a Babilónia do norte da Europa. Chega mesmo a ganhar, por analogia com a classificação do país como sendo the workshop of the world, o irónico epíteto the whoreshop of the world.43 Nas reflexões que emitem sobre o tema, sob o significativo título “A Sociedade Dualista por Excelência!”, os autores do texto dão expressão à dualidade de Londres e da sociedade que ela, simultaneamente, regia e espelhava: A riqueza e as múltiplas tentações de uma grande sociedade de consumo atraem a delinquência e o crime. A “outra Inglaterra” – a do “submundo” – é particularmente numerosa e aterrorizadora sob vários aspectos. […] Londres é, sem dúvida, a cidade de todos os contrastes, a sociedade “dualista” por excelência.44 John Fletcher Harrison, por seu turno, ao comentar o período vitoriano inicial, coloca a tónica na questão cultural subjacente à polarização da sociedade: 43 Sobre o tema, remetemos, a título de exemplo, para Kellow Chesney, The Victorian Underworld, London, Penguin, 1979 (1970) e para o artigo de Keith Robbins, “A Hierarquia das Prostitutas”, in Charlot e Marx, Londres, 1851-1901, pp. 138-150. 44 Charlot e Marx, Londres, 1851-1901, p. 10.