do oratório O Messias, de GF Handel: análise retórico

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do oratório O Messias, de GF Handel: análise retórico
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Behold! a virgin shall conceive e O thou that tellest good tidings!
do oratório O Messias, de G. F. Handel: análise retórico-musical
Flávio Mateus da Silva
1. Introdução
A Retórica, tanto aplicada às palavras quanto às linguagens das artes – sobretudo
na música –, tem como principal finalidade a persuasão. Persuasão essa que se
dá através de um discurso inteligentemente elaborado a fim de extrair e manipular
os sentimentos – afetos – do ouvinte. Tem suas origens no pensamento grego –
remonta ao século V a.C. – e recebeu seus conceitos fundamentais principalmente
através das obras de Aristóteles, Quintiliano e Cícero.
A partir da Renascença, a utilização da retórica pelos artistas europeus tornou-se
intensa devido à constatação de que tal recurso possuía, além de um resultado
estético deslumbrante, uma expressiva eficácia persuasiva, atendendo
eficientemente as intenções da Igreja de seduzir as massas “sem fé” em meio aos
movimentos de Reforma e Contra-Reforma.
1.1 Objetos do estudo
Optou-se por peças representativas do período barroco que fossem de acesso
relativamente fácil. Trabalhamos com dois fragmentos (partituras no final em
anexo, com as marcações de análise retórica, disposição do discurso e figuras
retóricas; ver 3.2) do oratório O Messias, de G. F. Handel, que se complementam
na estrutura recitativo-ária-coro:
-
n° 8: “Behold! A Virgin Shall Conceive” (Recitativo)
-
n° 9: “O Thou That Tellest good tidings” (Ária e Coro)
2. Handel e o oratório Messias: contextualização
George Friedrich Handel (1685-1759) nasceu na Alemanha, mas foi na Inglaterra
onde maior parte de sua obra foi produzida e reconhecida na época. Sendo assim,
é visto como um dos mais notórios compositores ingleses da história. Foi o maior
compositor de oratórios do período barroco.
O oratório é uma obra escrita para orquestra, coro e solistas e adota como enredo
estórias narradas na Bíblia. Em sua performance, não trabalha com cenários,
ações ou costumes especiais, sendo este um ponto que o diferencia da ópera.
O Messias foi escrito em 1741, quando Handel passou um período de sua vida na
Irlanda. Toda a partitura foi criada e escrita pelo compositor em pouco mais de 20
dias. O oratório teve sua estréia em Dublin, na Irlanda, e diferentemente dos
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demais oratórios de Handel, que têm personagens e uma trama, o texto deste
baseou-se em citações bíblicas. O libretista Charles Jennens foi quem escreveu o
roteiro para a narração de O Messias e os textos utilizados foram: passagens das
Epístolas aos Coríntios e aos Romanos; o Antigo Testamento; o Livro dos Salmos.
3. Análise Retórico-Musical
3.1 Considerações gerais sobre a inventio 1 de O Messias
No oratório O Messias, além da escolha do texto, uma característica marcante a
respeito do seu inventio é a estruturação da obra em três partes:
-
Parte I: ilustra a ânsia do mundo pelo Messias, apresenta as profecias e
o nascimento de Jesus;
-
Parte II: dedica-se à Paixão, ao sofrimento, morte e exaltação de Cristo,
culminando no eternizado "Hallelujah Chorus";
-
Parte III: desenrola-se através da afirmação das verdades maiores do
cristianismo: fé na existência de Deus, na imortalidade da alma, na
ressurreição e na felicidade eterna, com a temática da redenção.
Muitos acontecimentos estruturais importantes (relacionados ao texto e às
proporções entre os compassos) são apontados com modulações, inclusões de
tensões, alternância entre o instrumental (solo ou tutti) e o vocal (solo ou coro);
tanto com relação ao organismo geral da obra quanto internamente nas partes.
3.1.1 Inventio das Peças n° 8 e n° 9 de O Messias
As peças deste estudo seguem, como na maior parte do oratório, o esquema de
recitativo-ária-coro, o que nos leva a olhar estas duas peças como um único
segmento, interligado. Principais características do inventio destas peças:
A) Apresentadas na Parte I do oratório: as peças, localizadas na parte que trata
das profecias até o nascimento de Jesus – o messias –, vêm a ter seus afetos
definidos exatamente pelo próprio contexto ao qual estão inseridas.
B) Escolha do texto: o texto do recitativo para contralto “Behold! A Virgin Shall
Conceive” (n° 8) foi extraído dos textos bíblicos de Isaías e Mateus:
“Behold, a virgin shall conceive and bear a Son, and shall call His name
EMMANUEL, God with us”.2
1
Inventio: Na arte retórica, trata-se do momento em que são coletados os elementos musicais com
que o discurso irá se desenvolver. Engloba aspectos como a escolha da tonalidade, andamento,
construção do tema principal da obra, instrumentação, forma, caráter sacro ou secular etc.
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O texto da ária (para contralto) e coro “O thou that tallest good tidings!” (n° 9) foi
extraído de textos bíblicos de Isaías:
“O thou that tellest good tidings to Zion, get thee up into the high mountain: O thou
that tellest good tidings to Jerusalem, lift up thy voice with strength; lift it up, be not
afraid; say unto the cities of Judah, Behold your God! Arise, shine, for thy light is
come, and the glory of the Lord is risen upon thee”.3
C) Tonalidade de “ré maior”: é a tonalidade “central” do oratório; mesma
tonalidade do consagrado coro "Hallelujah!". Tratadistas como Rameau,
Mattheson e Rousseau associam a esta tonalidade as palavras “regozijo”, “alegria”
e “grandiosidade”.
D) Andamento: para a ária e coro, definiu-se o andamento como Andante.
Encontramos em Mattheson, nos afetos que este estabelece para os andamentos,
a palavra “esperança” relacionada ao Andante (CANO, 2000, p. 68).
E) Instrumentação: vozes e orquestra. Seguindo a estrutura recitativo-ária-coro,
presente na maior parte do oratório, a voz de contralto foi definida como a solista
(recitativo e ária) destas peças. É possível que a escolha de uma voz feminina
tenha sido em alegoria à “virgem” e é fato que a tessitura da voz contralto encaixase muito bem à tonalidade de “ré maior” - nestas peças, Handel escreveu as
melodias para a contralto no âmbito do lá2 ao lá3, quintas da tonalidade
(eventualmente atinge o si3, em momentos de maior pathos).
3.2 Decoratio4 e Dispositio5
3.2.1 Decoratio
O decoratio – ou as figuras retóricas propriamente ditas – acompanha cada
momento do dispositio. Figuras retóricas são vistas como “ferramentas” (de
transformação de melodia, de harmonia ou de outros elementos musicais) usadas
para provocar afetos específicos nos ouvintes e são empregadas em função das
intenções de cada momento do dispositio. Está catalogada 6 uma quantidade
2
Tradução para leitura direta juntamente com o libreto: “Eis, uma virgem conceberá e terá um
Filho, e chamará Seu nome EMMANUEL, Deus conosco”.
3
Tradução para leitura direta juntamente com o libreto: “Ó tu que dizes boas novas a Sião, sobe
a um alto monte: Ó tu que dizes boas novas a Jerusalém, levanta tua voz com força; levanta-a, não
tenha medo; dize às cidades de Judá, Eis vosso Deus! Levanta, resplandece, pois tua luz é vinda,
e a glória do Senhor está surgindo sobre ti”.
4
Decoratio: trata-se das figuras retóricas; estas figuras especiais alteram a ordem natural do
discurso, embelezam-no, e são usadas para provocar os afetos nos ouvintes; segundo Cano
(2000), é a parte mais conhecida do sistema retórico e confunde-se com freqüência com o mesmo;
5
Dispositio: é toda a distribuição e ordenação das idéias – oriundas da inventio – ao longo do
discurso; visa a estruturação de um discurso o mais eficaz possível perante seus propósitos
persuasivos, trabalhando de forma lógica e orgânica todos os afetos que se queira extrair do
ouvinte.
6
Certamente existem ainda muitas outras que não identificamos no presente estudo.
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muito grande destas figuras por conta das inúmeras utilizações – por parte dos
compositores – identificadas ao longo da história.
Nas peças aqui abordadas7, identificamos uma rica variedade de figuras retóricas
aplicadas em ênfase ao texto cantado. Ao longo do oratório, o diálogo entre a
parte instrumental e a vocal, sob a forma de figuras melódicas de repetição
(palillogia8, synonimia9, paronomasia10, polyptoton11, mimesis12, apocope13), revela
um discurso musical preocupado em equilibrar a instrumentação, valorizando a
compreensão e retenção de idéias. As figuras retóricas também aparecem
diversas vezes em combinação umas com as outras – tende a intensificar os
afetos possivelmente pretendidos por Handel. Juntamente com o gradatio14, por
exemplo, encontramos as figuras retóricas anabasis15 (c. 93-97) e também
catabasis16 (c. 121-123). Nos c. 107-114, aparecem synonimia, polyptoton e
mimesis na “circulação canônica” do tema entre as vozes do coro – reforça o
pathos. Em outro caso, o variatio17 (c. 32-33) vem acompanhado pelo circulatio18 e
gradatio, reforçando o conteúdo melódico sinuoso sobre a palavra “mountain”. A
figura assyndeton19 (c. 92-93) assemelha-se muito com o circulatio. É também
recorrente, ao longo da obra, a reapresentação de motivos (com eventuais
variações, variatio) sob conteúdos textuais diferentes, ou seja, palavras diferentes
para melodias similares:
7
Todas as referências aos números dos compassos (c.) serão relacionadas ao trecho da ária e
coro, por ser a parte maior e com mais informações extraídas; a título de diferenciação, somente os
compassos do recitativo serão devidamente especificados.
8
Palillogia: repetição exata de um fragmento musical; exemplos: constantes aparições do tema
principal (c. 1-3 no trecho de ária e coro – ver partitura em anexo) tanto na seção instrumental
quanto vocal; exemplos (ária e coro): c. 50-53, c. 72-74.
9
Synonimia: repetição transposta de um fragmento musical, podendo receber variações pouco
expressivas; exemplos (ária e coro): c. 107-114
10
Paronomasia: repetição de um fragmento com forte adição ou variação; exemplos (ária e coro):
referentes aos c. 17-19, vê-se paronomasia deste trecho nos c. 25-29 e c. 30-36;
11
Polyptoton: repetição de um fragmento musical similar em outra voz; exemplos (ária e coro):
c. 13-16, c. 107-114; c. 115-117.
12
Mimesis: repetição de um fragmento musical similar em uma voz de registro mais agudo;
exemplos (ária e coro): c. 13-16, c. 21-25, c. 58-62, c. 72-76, c. 84-85, c. 99-101, c. 107-114, c.
130-131.
13
Apocope: repetição incompleta de um fragmento musical; exemplos (ária e coro): c. 43-44,
c. 110-111, c. 114-115.
14
Gradatio: repetição melódica ascendente ou descendente em forma de seqüência, gradativa;
exemplos (ária e coro): c. 4-8, 32-33, c. 44-49, c. 55-60, c. 61-63, c. 80-82, c. 86-88, c. 93-97, c. 99101, c. 121-123, c. 130-131.
15
Anabasis: linha melódica ascendente de extensão expressiva; segundo Kircher, provoca
sentimentos de ascensão, exaltação.
16
Catabasis: linha melódica descendente de extensão expressiva; segundo Kircher, provoca
sentimentos de inferioridade, humilhação; exemplos (ária e coro): c. 10, c. 27, c. 34, c. 54, c. 63-64,
c. 68, c. 91, c. 102, c. 122, c. 132, c. 135.
17
Variatio: ornamentação melódica sobre o texto; exemplos (ária e coro): c. 17-21, c. 32-36, c. 4243, c.47-49, c. 76-80, c.80-83.
18
Circulatio: ornamentação melódica oscilante ao redor de uma nota; segundo Kircher, utiliza-se
em palavras que expressam circularidade: exemplos (ária e coro): c. 8-9, c. 32-33, c. 86-88.
19
Assyndeton: múltipla e ininterrupta repetição de uma mesma figura; segundo Jacobson,
intensifica o pathos; exemplos (ária e coro): c.92-93, c. 103-104, c. 136-137.
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Fig. 1 – Respectivamente: c. 80-83, c. 99-101, c. 130-131; reincidência de mesmos motivos em gradatio – figuras retóricas
de repetição – sob textos diferentes, “pontua” palavras importantes da obra como uma espécie de exclamação –
20
exclamatio .
Harmonicamente, identificamos que a “ária e coro” é uma peça essencialmente
voltada para a tonalidade de “ré maior”. Não há modulações nem direcionamento
melódico para tonalidades menores – alterariam o pathos significativamente. Em
linhas gerais, a harmonia transita entre a região da tônica (“ré maior”), da
subdominante (“sol maior”) e da dominante (“lá maior”); predominam os afetos de
“alegria” e “regozijo” inerentes ao “ré maior”. Em determinados momentos do texto,
especificamente quando se trata das palavras “God” (c. 55-58) e “Lord” (c. 92-93),
observa-se a utilização de acordes com função dominante (tríades ou tétrades
com a sétima em alguns casos) que ressaltam a imagem de uma figura suprema,
a glória do Deus “dominante”, Pai do messias que está por vir. São momentos
bem claros dentro da peça em que se pode perceber que Handel quis pautar todo
o respeito que se deve ter pela figura do Senhor (Pai), mesmo sob a euforia da
boa nova sobre a vinda do messias. Além da presença constante de uma
catabasis antecedendo estes acordes “dominantes”, o pathos destes trechos é
intensificado através de figuras retóricas que afetam a harmonia [prolongatio21,
antecipatio notae22, pathopoeia23, noema24 (mimesis noema25), anapocle26, faux
bourdon27]. A valorização da voz da contralto (metabasis28) em meio ao coro (c.
20
Exclamatio: salto melódico ascendente ou descendente inesperado (em geral, de quartas ou
quintas justas e, eventualmente, de terças maiores ou menores); gesto importante para provocar
afetos; o exclamatio pode ser visto também como um movimento melódico em direção a
determinada nota através de um crescendo ou decrescendo (c. 115-117); exemplos (recitativo):
c. 1-2, 4-6; (ária e coro): c. 1-2, c. 13-14, c. 44-49, c. 61-63, c. 115-117, c. 120-121, c. 129-131.
21
Prolongatio: prolongação considerável de uma dissonância; exemplos (ária e coro): c. 27-28,
c. 65-66, c. 92-93, c. 103-104, c. 133, c. 136-137.
22
Antecipatio Notae: dissonância antecipada de estrutura harmônica ainda por vir: exemplos (ária
e coro): c. 27-29, c. 65-67.
23
Pathopoeia: figuras de dissonância utilizadas para reforçar o pathos; exemplos (ária e coro):
c. 65-67, c. 92-93, c. 103-104, c. 123-133, c. 136-137.
24
Noema: acorde ou contexto homofônico inserido em contexto polifônico; exemplos (ária e coro):
c. 55-58, c. 65-67, c. 92-93, c. 103-104, c. 123-133, c. 136-137.
25
Mimesis Noema: repetição imediata de um noema, mas com alterações; exemplos (ária e coro):
c. 56-58, c. 66-67.
26
Anapocle: repetição imediata de um noema por um segundo coro; exemplos (ária e coro): c. 129130.
27
Faux Bourdon: repetição de um mesmo noema em alturas (registros) distintas; exemplos (ária e
coro): c. 107.
28
Metabasis: pôr em destaque uma voz; pode vir através de cruzamento de vozes; exemplos (ária
e coro): c. 123, c. 134-137.
38
123, c. 134-137) sugere ainda a presença da solista, agora em um importante
“ponto harmônico” – de reforço ao texto – dentro do coro.
Estruturalmente, existem algumas figuras retóricas que “balizam” a organização do
dispositio (ver 3.2.2). As figuras retóricas de repetição (de estruturas melódicas)
observadas foram anaphora29, epistrophe30 e distributio recaptulativa31. Quanto a
estruturas adicionais ao corpo da obra, identificamos uma paragoge32 (c. 105-107)
repleta de noemas, que funciona como transição da ária para a entrada do coro.
3.2.2 Dispositio
Sobre o dispositio: “los retóricos distinguieron hasta seis momentos principales en
el desarollo de un discurso: Exordium33, Narratio34, Propositio35, Confutatio36,
Confirmatio37, Peroratio38”, Cano (2000, p. 82). Estes momentos no discurso
possuem conteúdos e afetos específicos e podem ter suas ordens alteradas –
internamente no dispositio –, repetirem-se, serem omitidos ou até mesmo
aparecerem outros novos momentos secundários – existem inúmeras
nomenclaturas criadas a partir do que se identifica nas composições.
Diante dos conceitos apresentados por Cano (2000) sobre a determinação do
dispositio, estabelecemos a seguinte ordem para o grupo recitativo-ária-coro:
DISPOSITIO
SUBDIVISÃO
EXORDIUM
1)CAPTATIO BENEVOLENTIAE
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2)PARTITIO
c. 1-6 (RECITATIVO inteiro)
c. 1-13 (ÁRIA E CORO)
NARRATIO
-------------------------------------------
c. (13)14-44 (ÁRIA E CORO)
PROPOSITIO
-------------------------------------------
c. (44)45-49 (ÁRIA E CORO)
CONFUTATIO
-------------------------------------------
c. 50-68 (ÁRIA E CORO)
29
COMPASSOS
Anaphora: repetição de um mesmo fragmento no início de várias sessões; exemplos (ária e
coro): c. 21-25, c. 69-72.
30
Epistrophe: repetição de um mesmo fragmento no final de várias sessões; exemplos (ária e
coro): c. 36-41.
31
Distributio recaptulativa: repetição condensada de fragmentos anteriores; exemplos (ária e
coro): c. 139-151.
32
Paragoge: coda, adorno ou desvio ao final de um fragmento musical; exemplos (ária e coro):
c. 105-107.
33
Exordium: é entendido como a introdução ao discurso, a passagem do o silêncio para o som;
caracterizado por afetos de intensidade moderada.
34
Narratio: é a apresentação dos fatos; fundamentalmente um relato descritivo, uma
contextualização objetiva.
35
Propositio: enunciação da tese fundamental a ser defendida e sustentada ao longo do discurso.
36
Confutatio: é a defesa da tese fundamental, valendo-se de argumentos e contra-argumentos em
que o orador se “antecipa” às possíveis contestações; controle dos afetos afim de despertar o
conteúdo lógico dos argumentos.
37
Confirmatio: retoma a tese principal, re-expondo seu ponto de vista; neste ponto, o orador valese de grande intensidade de pathos, objetivando mover os afetos do ouvinte.
38
Peroratio: é o encerramento do discurso, o seu epílogo; reapresentação condensada do que foi
exposto com uma conclusão; forte intenção de mover os afetos do ouvinte.
39
Partitio: momento do exordium em que se apresenta ao ouvinte uma visão geral do conteúdo e
da organização do discurso.
39
CONFIRMATIO (NARRATIO)
-------------------------------------------
c. (68)69-90 (ÁRIA E CORO)
CONFUTATIO
-------------------------------------------
c. (90)91-107 (ÁRIA E CORO)
CONFIRMATIO (NARRATIO; entrada do coro)
-------------------------------------------
c. (107)108-117 (ÁRIA E CORO)
CONFUTATIO
-------------------------------------------
c. (117)118-125 (ÁRIA E CORO)
PERORATIO
-------------------------------------------
c. (125)126-151 (ÁRIA E CORO)
Fig. 2 – Tabela que representa a ordenação da dispositio ao longo do recitativo-ária-coro.
O recitativo para contralto “Behold! A Virgin Shall Conceive” serve como exordium
para “O thou that tallest good tidings!”, ária (para contralto) e coro. Uma vez que o
recitativo é construído sob uma textura suave e calma, atraindo a atenção do
ouvinte com uma eficiente brandura, entendemos que ele seja o captatio
benevolentiae 40 do exordium do grupo recitativo-ária-coro. O uso da figura
melódica de retórica exclamatio reforça o texto e pode ser notada, neste caso
(saltos de terça maior e quarta justa), como uma figura de afeto moderado. O
partitio do exordium (c. 1-13) abre a ária e coro “O thou that tallest good tidings!”.
Nestes compassos, apresentam-se condensadamente praticamente todos os
temas e figuras retóricas (exclamatio, gradatio, circulatio, catabasis) que serão
desenvolvidos ao longo da peça. O final do c. 13 marca o início do narratio com o
a entrada da voz solista (contralto). O tema principal 41 (c. 1-3) é exposto de várias
formas agora sob o texto – bastante descritivo. Ponto a ser destacado no narratio
é um longo variatio sobre a palavra “mountain” (c. 32-36), descrevendo
melodicamente a “imagem” desta. Consideramos que o propositio aparece a
partir do c. 44, pela presença excessiva da figura exclamatio, em acordo com a
função do propositio, enunciando com clareza a tese fundamental do discurso:
divulgar a profecia do nascimento do messias. Segue-se então, a partir do c. 50,
uma série de alternâncias entre confutatio e confirmatio, equilibrando pathos e
ethos no discurso. O confirmatio vale-se de elementos do narratio (tema principal
em palillogia, variatio etc.) e do propositio (uso de exclamatio), e atinge seu pathos
mais intenso possivelmente no início do coro (c. 107/108). Pela sua própria
característica, o confutatio retoma elementos desde o partitio até o narratio para
construir toda uma “curva” de afetos, que é inerente a este momento do dispositio;
no confutatio estão presentes as catabasis que antecedem acordes de função
dominante (c. 91-92), percebidos como os pontos de maior pathos neste discurso
de Handel. Com início nos c. 125/126, o peroratio retoma resumidamente o texto,
o tema e motivos (figuras retóricas) que foram expostos ao longo da obra. Em
meio ao coro, a voz da contralto aparece em destaque (metabasis) em dois
momentos: c. 123, c. 134-137; mostra-se uma interessante coerência no
encerramento discurso o destaque à voz que outrora atuou como solista.
40
Capatio Benevolentiae: momento do exordium em que o orador “seduz” conquista a confiança do
ouvinte.
41
O tema principal é marcado pelo exclamatio inicial, atendendo o propósito temático de anunciar
com vigor a “boa nova”: a profecia do nascimento do messias através de uma virgem. Neste
recitativo-ária-coro, o exclamatio reincide sobre expressões e palavras como “behold” ,“o thou”,
“get thee up”, “lift up”, “thy voice”, “with strenght “, “Judah”, “arise”.
40
Resgatando os muitos afetos da peça, o peroratio encerra a ária e coro valendo-se
ainda da figura distributio recaptulativa, com uma “colagem” do próprio partitio42.
4. Conclusões
Através desta breve análise retórico-musical, identificamos uma variedade muito
grande de figuras retóricas – catalogadas na bibliografia utilizada. Observamos
que o exclamatio talvez seja a figura principal não só das peças aqui estudadas
mas também do oratório inteiro. Os intervalos de quinta justa bem como sua
inversão, a quarta justa, reforçam o texto e estão presentes na grande maioria dos
temas iniciais e construções motívicas importantes das peças de O Messias.
Diante dos dados encontrados, conclui-se que Handel, em sintonia com o
pensamento de sua época, possuía completo domínio de toda a construção do
dispositio bem como da utilização de figuras retóricas para compor o decoratio.
Todas as seções de seu discurso nas peças n° 8 e n° 9 de O Messias, vistas em
um plano geral, são portadoras de uma clara “lógica retórica”, deixando-nos
entender e contemplar ainda mais o brilhantismo musical e, agora, a eficiência
retórico-musical de uma das obras mais conhecidas da humanidade.
5. Referências bibliográficas
CANO, Ruben López. Música y retórica en el barroco. Cidade do México, D.F.:
Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.
KALMUS, Edwin F..The Messiah, a sacred oratorio (1741) by G. F. Handel.
Kalmus Vocal Scores, New York: Publisher of Music, s. d..
SANTOS, Luis Otavio. Rhetoric and Music:An Approach through the Analysis of
Monteverdi´s Combatimento di Tanvredi e Clorinda and Bach´s Erbarme dich from
Mathaus Passion.(não publicado)
42
Em estrita concordância com Quintiliano (CANO, 2002, p. 83): “jamás parece largo aquello cuyo
término se anuncia”.
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