pluralismo teológico e religioso
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pluralismo teológico e religioso
PLURALISMO TEOLÓGICO E RELIGIOSO Jair Dupont Introdução Vivemos na era da “globalização”. A tendência atual é a uniformização cultural. E poderia parecer uma contradição falar de culturas e de interculturalidade neste contexto. A globalização à moda ocidental, chamada de “progresso histórico”, não costuma fazer concessões às culturas locais, antes busca a uniformidade. Porém, este modelo de globalização encontra resistências em diversos movimentos nacionais e mundiais, que se insurgem à imposição de um caminho único, “universal”. A cultura está ligada à identidade de um povo. Falar em ser humano é falar em cultura. Não podemos chegar à “universalidade”, sem passar pelas culturas. Esta questão das culturas é tão pertinente e urgente que na celebreção da Páscoa deste ano, diante de cem mil fiéis que estavam na praça de São Pedro, o papa fez um apelo ao mundo para que evite uma guerra de culturas. Uma ameaça bem atual, sobretudo por causa da guerra contra o Iraque de Saddam Hussein. Mesmo que a causa primeira do conflito seja econômica ou ideológica, o mundo corre o risco de ser envolvido num suposto confronto entre o Ocidente e o Oriente, a cilivização cristã versus a civilização muçulmana. Mas se existe o perigo da colonização ou do conflito, existe o lado positivo que representa o encontro de culturas, em estar permanentemente confrontado com outros valores e princípios, que podem desafiar ao crescimento mútuo. 2 O que tudo isso tem a ver com a teologia? O cristianismo é uma religião do anúncio, nasceu do envio missionário do Ressuscitado a todos os povos. E quem diz povos diz culturas. Minha comunicação teológica parte do risco do colonialismo e da possibilidade do diálogo intercultural. A teologia está diante de um desafio e de um kairos. O desafio: retomar a universalidade e a unicidade cristã, a partir da interculturalidade, e o “kairos”: viver este encontro de culturas, como uma possibilidade de crescimento na verdade e na “salvação”. Passando de uma atitude exclusivista ou inclusivista para um pluralismo religioso e intercultural, que vê a pluralidade como lugar teológico. Num primeiro momento situo a pluralidade interna à teologia cristã. O fim do discurso “universalista” possibilitou o surguimento dos sujeitos teológicos, sujeitos culturais. Num segundo momento proponho o que seria um discurso pluricultural, numa perspectiva da teologia das religiões. E por fim, procuro repensar a unicidade e a universalidade cristã, a partir do diálogo intercultural: possibilidades e redefinições teológicas. 1 - Pluralidade dos Sujeitos teológicos A questão das culturas e o desafio do diálogo intercultural vieram à tona somente no final do século XX, após um longo período de esquecimento no âmbito teológico. Durante muito tempo a teologia se preocupou mais com o “sujeito universal” do que com os sujeitos concretos, históricos e locais. E o resultado desta preocupação foi um discurso universal, conceitualista e abstrato. Sem entrar nos méritos e nos detalhes de tal discurso teológico, que chamaremos aqui de “universalista”, o fato é que a partir do século XX, a teologia iniciou um retorno à história, aos sujeitos concretos. Com isso, o eixo central passou do universal ao particular, do “ser humano” aos seres humanos, situados num contexto histórico. O fim do discurso “universalista”, teve repercussões imediatas na questão dos conteúdos e nos sujeitos, tanto no âmbito interno, como no âmbito externo à teologia cristã, em relação com os outros discursos teológicos e tradições religiosas. Internamente todo o debate desembocou na pluralidade teológica e externamente no pluralismo religioso. As questões referentes ao âmbito externo, da relação com as outras religiões serão tratadas no segundo ponto de nossa comunicação e as questões de conteúdo, sobretudo a unicidade e a universalidade de Cristo serão abordadas no ponto final de nosso trabalho. 3 1.1- Pluralismo teológico A teologia pode ser definida como hermenêutica: re-interpretação da fé (Boa-nova) num contexto particular. A mensagem da salvação cristã, que passa pela revelação bíblica, dada uma vez por todas, necessita ser atualizada em cada momento da história humana, precisa ser re-editada em cada período histórico, pois é portadora de uma reserva de sentido escatológico, que não se exprime plenamente em nenhuma sistematização ou prática. Existe uma relação dialética entre o que é universal (normativo) e o particular, as culturas. Nesta dialética existem dois perigos, o do relativismo e o da uniformidade. O relativismo eliminaria as possibilidades de passarmos das culturas para o dado universal, isto é, ele afirma a impossibilidade do diálogo e do encontro intercultural. A ênfase dos aspectos locais e culturais, eliminaria toda possibilidade de transcendência de qualquer mensagem religiosa ou não. Por outro lado, com a uniformidade corre-se o risco de eliminar as questões pertinentes de cada cultura. Com isso corre-se o risco de afirmar uma norma objetiva e exterior à vida, sem nenhuma concretude histórica, caindo no puro formalismo e no vazio, no que daria no mesmo, isto é, elimina toda possibilidade de relação entre os povos. Nesta concepção, a essência cristã é pensada como algo a-histórico, capaz de ser definido abstratamente e passível de transferência para não importa aonde. Dada a complexidade das culturas e das realidades do mundo moderno, a universalidade teológica hoje é um problema bastante delicado. E o que muitas vezes é apresentado como a verdadeira e única teologia, nada mais é do que uma produção teológica de um momento histórico, condizente com uma cultura. Durante muitos anos a Igreja tentou impor uma teologia européia como sendo universal e a única legítima. Com isso impediu todos as inovações, as pesquisas e o aprofundamento da verdade. A universalidade foi substituída pela uniformidade de esquemas e padrões teológicos. O grande desafio teológico do século XXI, que é ao mesmo tempo sinal de esperança, está na pluralidade cultural dentro do cristianismo, que ao mesmo tempo fundamenta e desafia o diálogo interno e externo à Igreja. O desafio está em não perder de vista a dimensão da universalidade da revelação cristã, sempre partindo do encontro e do diálogo cultural e religioso. A pluralidade da qual falamos não é provisória ou um detalhe, ela é o lugar teológico (locus theologicus). 4 1.2- Sujeitos teológicos culturais No primeiro momento desta virada teológica histórica, em um contexto europeu, o debate foi dominado pela abertura ao mundo moderno. O desafio consistia em refletir as questões nascidas da sociedade moderna de então: o individualismo, o mundo do trabalho, a secularização, o ateísmo, a liberdade, o existencialismo, o nihilismo, etc. Houve um grande esforço de escuta e de compreensão destes temas, que desembocaram no concílio Vaticano II, marco histórico do diálogo com o mundo. E o resultado desta fase foram as ditas teologias do genitivo: teologia do trabalho, do mundo, política, etc. Sem dúvida esta fase de “modernização” ainda permace muito acadêmica e podemos dizer tradicional. Para muitos teólogos, ela é ainda marcada pelo pensamento a partir de um sujeito universal. Pensa-se ainda de um ponto de vista do “homem moderno”, da “cultura secularizada”. Apesar de todas as mudanças ocorridas, ainda carecia de historicidade e de pluralidade. A grande mudança e a abertura a alteridade teológica aconteceu no segundo momento, quando o debate foi deslocado aos poucos para outros continentes: América Latina, África, Ásia. Com a entrada no debate destes novos povos (que há muito tempo existiam como Igreja, mas de maneira dependentes das sistematizações produzidas no países do Norte), surgiram novos sujeitos teológicos culturais. Agora o debate não é feito a partir de um único interlocutor, ou de um sujeito universal moderno, mas da pluralidade de sujeitos, com nome, rosto e história. A história deixa de ser uma questão de método apenas, e entra em cena a historicidade, a concretude dos que crêem e que desejam refletir sua fé. Podemos afirmar que é neste momento que nasce a pluralidade teológica cultural: pobres, negros, indígenas, africanos de diversas realidades, asiáticos dos diversos países, sobretudo os indianos, etc. A diversidade é tanta, que é difícil elencar a totalidade dos nomes dos novos sujeitos teológicos. Esta caminhada teológica foi sendo sistematiza na década de 70 e culminou em torno do conceito de inculturação. Inculturação não entendida como adaptação ou aculturação da Boanova, mas processo de re-interpretação da fé a partir do universo cultural local. A definição do padre Arruda nos anos 70 expressa muito bem esta problemática: “A inculturação é a encarnação da vida e da mensagem cristãs num ambiente cultural concreto, de tal modo que não somente esta experiência se exprima com os elementos própria à cultura em voga (o que não passaria de uma adaptação superficial), mais ainda, que esta mesma experiência se transforme num princípio de inspiração, ao mesmo tempo norma e força de unificação, que transforma e recria esta cultura, sendo assim o começo de uma nova cultura”. 1 1 Bruno CHENU, Théologies chrétiennes des tiers mondes, Paris, Centurion, 1987, p. 142. 5 O desafio da inculturação vai além da simples adapatação de alguns ritos, conceitos ou da tradução dos dogmas. Ela penetra no âmago da identidade cristã e perpassa todas as esferas da manifestação da fé. Não se pode reduzir a inculturação a algumas áreas periféricas, pois estaríamos incorrendo o risco de eliminar o que de melhor existe na diversidade das culturas.2 1.3- Sujeitos teológicos e universalidade cristã Se enterdermos cultura sob esta perspectiva, o debate teológico ganha outro contexto. O que acabamos de afirmar, transposto no âmbito religioso, nos leva a afirmar que existe uma ligação muito forte entre cultura e religião. Ligação essa tão profunda, que torna impossível pensar numa religião “universal”, sem passar por um definição cultural, isto é, parcial e local. O desafio é: Como pensar o universal na contextualidade, como valorizar a pluralidade, a diversidade e suas conseqüências. Os esforços feitos até agora têm alcançado alguns avanços teóricos e sobretudo práticos. Mas as dificuldades ainda são enormes. Ainda vivemos sob a “ameaça” constante do espectro da uniformidade, muitas vezes confundida com a unidade. A tradição ocidental, seja ela filosófica ou teológica, sempre foi marcada pela obseção do “uno” grego, pela “mesmice”, que tem dificuldades em aceitar a alteridade, o não padronizado ou simplesmente o diferente. E no que tange à fé cristã, a uniformização passou e passa pela pretensão à universalização de seu discurso. Um discurso que sempre se preocupou mais com a “normatividade” do que com a realidades particulares. E os espaços concedidos à pluralidade sempre foram limitados à questões secundárias, sem importância. O resultado dessa mentalidade se fazem sentir em todos os domínios da teologia: liturgia, moral, pastoral, sacramentos, etc. Os frutos colhidos após décadas de debate são ainda muito limitados. Se pegarmos o exemplo da liturgia, aspecto mais visível da Igreja, veremos que apesar dos esforços de todas as comissões de trabalho e das experiências de base nesta área, os resultados são ínfimos. Os avanços concedidos não vão além de alguns aspectos simbólicos e/ou externos à celebração. Ainda persiste uma estrutura modelar, que desde o início do 2 Antes de continuarmos no debate dos sujeitos teológicos, acho prudente definir o que penso por cultura. Dentre os conceitos presentes hoje no meio filosófico e teológico, me alinho com os que defendem a concepção de cultura como uma segunda natureza humana. Como diz Libânio, cultura é: “o conjunto de sentidos e significações, de valores e padrões, incorporados e subjacentes aos fenômenos perceptíveis da vida de um grupo humano ou sociedade concreta. Este conjunto, consciente ou inconsciente, é vivido e assumido pelo grupo como expressão própria de sua realidade humana e passa de geração em geração, conservando assim como foi recebido ou transformado efetiva ou pretensamente pelo próprio grupo.” (J.B. LIBÂNIO e Afonso MURAD, Introdução à Teologia Perfil, Enfoques, Tarefas, São Paulo, Loyola, 1996p. 275). 6 debate já é apresentada como intocável, como “eterna”. Da mesma maneira ocorre nos outros domínios, onde persiste a preocupação da uniformidade, que reduz as possibilidades de mudança de antemão. Esta postura da Igreja, mais do que da teologia, era até compreensível num discurso “universalista”, mas é impensável agora na pluralidade dos sujeitos teológicos. Uma conclusão provisória que chegamos sobre este ponto, que será retomado no final de nossa comunicação, é a de que a normatividade se dá num determinado contexto histórico, sempre “parcial” e relacional às outras definições. Podemos dizer que o que se define por “essência do cristianismo” não é uma verdade a-histórica, não cultural e abstrata. O que temos são valores e atitudes, que ao longo da história vêm se revelando como coerentes com o Espírito do Ressuscitado, e que servem de balizas para guiar a reflexão. Mas muito mais do que pontos de chegada são pontos de partida. E somente no conjunto das produções teológicas podemos atingir um maior grau de sentido e de universalidade. 1- O Pluralismo Religioso Como falamos de um pluralismo teológico, que busca refletir a pluralidade cultural no interior do cristianismo, podemos falar de um pluralismo religioso, que reflete a pluralidade cultural e dos sujeitos, no âmbito das tradições religiosas. São duas impostações do mesmo tema, que está na origem desta reflexão. Gostaríamos de partir de uma constatação e de uma afirmação. A constatação é que vivemos um contexto de pluralismo de fato. É comum nos depararmos com pessoas e grupos de diversas confissões religiosas não-cristãs. Nas últimas décadas o Ocidente foi invadido (ou se fez invadir) por diversas tradições religiosas orientais, entre outras. Estamos longe do espírito hegemônico que predominou por séculos na Cristandade. Hoje co-existem experiências religiosas de tradições milenares, com diversas matizes culturais. Todas elas se afirmam como caminhos de salvação. A afirmação que fazemos decorrente desta constatação é a de que mais importante que o pluralismo de fato é o pluralismo de princípio. Como afirma Claude Geffré: “A partir do momento em que o pluralismo religioso em si não é a conseqüência da cegueira causada pelo pecado dos homens e nem o resultado do fracasso da missão 7 da Igreja, eu falaria em efeito de um pluralismo religioso, não mais simplesmente de fato, mas de princípio.”3 Se partimos desta afirmação, a questão do pluralismo religioso deixa de ser um tropeço histórico e passa a ser um sinal da riqueza do Mistério divino. A existência de outras religiões atesta ao mesmo tempo a abundância de Deus e a multiforme resposta da humanidade nas diversas culturas. Assim: “O pluralismo religioso deve ser acolhido com gratidão, como um sinal das superabundantes riquezas do Mistério divino que transborda sobre a humanidade e como uma excepcional ocasião de enriquecimento recíproco, de ‘fecundação cruzada’ e de ‘transformação’ das próprias tradições.”4 O debate é pertinente e essencial para a identidade cristã, bem como para a questão da evangelização. Nos países asiáticos, o tema vem sendo refletido há muitos anos. No Ocidente, o tema vem ganhando importância na medida em que se enfraquece a hegemonia cristã e se afirmam outras confissões religiosas. É preciso aprofundar o diálogo na busca de uma nova teologia, que para o cristianismo precisa ser capaz de responder ao mesmo tempo à questão da centralidade cristológica (uma cristologia normativa) e à questão do pluralismo religioso. Como conciliar o pluralismo de revelações, com a afirmação da unicidade e universalidade de Jesus Cristo? Como se dá a presença de Cristo nas outras tradições religiosas, uma vez que a Bíblia afirma que “Pois não há sob o céu outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos” (At 4,12). Qual o papel reservado aos cristãos, especificamente à Igreja Católica, se afirmamos a ação de Cristo nas religiões? Quando partimos da positividade do pluralismo religioso, mudamos o enfoque da abordagem da problemática. Então aquilo que poderia ser impecilho instransponível para o diálogo entre as religiões, devido à distância cultural e religiosa, se torna uma oportunidade de crescimento mútuo. Não queremos chegar a uma religião mundial, que nada mais seria do que um amontoado de ritos superficiais e sem identidade. Queremos afirmar ao contrário, a manutenção da pluralidade, sob o diálogo religioso e teológico, a partir das pertenças religiosas e culturais. Assim podemos afirmar que é possível uma globalização na diversidade e no respeito das diferenças. Ao longo da história a reflexão sobre o tema passour por diversas transformações. Destacam-se algumas teorias: a teoria do cumprimento, também chamada de atitude exclusivista, e a teoria da presença de Cristo nas religiões, conhecida como inclusivista. É no interior deste segundo grupo que se trabalha um novo enfoque teológico, o pluralismo 3 Claude GEFFRE, Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle ?, Entretiens avec Gwendoline Jarczyk, Paris, Albin Michel, 1999, 139. 4 Jacques DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do Pluralismo Religioso, São Paulo: Paulinas, 1999, p. 278. 8 religioso, que afirma a presença de Cristo nas religiões, sem eliminar suas especifidades. O conceito chave é: diálogo inter-religioso; diálogo inter-cultural; teologia das religiões. Aqui retomamos o que já fora dito no ponto anterior a respeito dos sujeitos teológicos: a pluralidade vai além de um problema circunstancial, ela se constitui em lugar teológico (locus theologicus). A pertinência do diálogo inter-religioso, possibilidades e limites, será retomada na seqüência do trabalho, no que se refere à normatividade de Cristo dentro de uma possível teologia das religiões. 1- A Unicidade e Universalidade de Cristo A grande aporia atual da teologia cristã, em relação ao pluralismo teológico e religioso é a questão da unicidade e universalidade de Cristo. Esta afirmação cristológica precisa ser retomada agora sob nova ôtica. A possibilidade do diálogo interreligioso ou da teologia das religiões passa pela resolução desta questão crucial. O cristianismo se fundamenta na unicidade e na universalidade de Cristo. E é justamente este o ponto central do debate no que se refere ao diálogo interreligioso. Quando procuramos refletir esta afirmação face à pluralidade das religiões, nós somos obrigados a repenser a relação entre a pessoa de Jesus Cristo, sua particularidade e o alcance universal de seu ser (ontológico) e de sua ação (funcional). É o que se nomeia de normatividade cristã. A teologia das religiões retoma a cristologia, não mais a partir de Calcedônia, (concílio que definiu o dogma da divindade de Jesus no século V), mas a partir de Jesus Cristo que nos foi testemunhado na narratividade dos evangelhos. Assim sendo, o ponto central passa da ontologia abstrata e conceitualista para uma ontologia histórica e narrativa. E nesta perspectiva ganha força alguns aspectos que até então eram tidos como secundários: o paradoxo da inculturação, distinção entre o universalidade do Cristo e o cristianismo histórico, a dimensão escatológica do projeto de Deus, o pluralismo religioso, a pluralidade da verdade e a teoria do consenso. 3.1- O paradoxo da encarnação 9 O cristianismo sempre afirmou a humanidade de Jesus, sua encarnação na história de um povo concreto, numa tradição religiosa e cultural. Esta é a característica da fé cristã. Nós não falamos de um Deus que está num além, que envia sua lei para o mundo ou que estabelece mensageiros exteriores a Ele mesmo. O Deus cristão é um Deus que se fez homem, e que viveu em plenitude a condição humana. E é a encarnação que possibilita ao mesmo tempo a particularidade e a universalidade de Cristo, sem cair ou no imaginário abstrato ou num particularismo integrista. A afirmação de sua particularidade incorre no risco de reduzi-lo a uma situação histórica, de tal maneira que sua vida e obra não teriam pertinência para a humanidade. Vendo-o a partir desta particularidade, podemos perguntar: O que nos assegura sua pertinência universal? E que tipo de universalidade Ele trouxe? Sua universalidade deriva de sua obra particular e não de um princípio metafísico ou de um mito. Ele respondeu com sua vida às necessidades de um povo. Suas questões são as questões locais de seu tempo. Questões estas que correspondem as espectativas de toda a humanidade. Nele foi apresentado um caminho para aquilo que a humanidade procura desde sempre através dos tempos: o sentido da vida, de onde viemos, para onde vamos, etc.... A revelação que Ele trouxe através de sua encarnação, ultrapassa a espectativa de Israel e tem valor universal por sua pertinência e sua profundidade de sentido. E o que nos permite afirmar ao mesmo tempo a particularidade de Jesus e sua universalidade, sem cair numa concepção totalitarista é sua “kénose”. Ele renunciou sua condição de Deus e se encarnou na história pela ação do Espírito Santo. E é justamente a kénose que nos permite afirmar a particularidade e a universalidade do cristianismo, numa relação dialética entre o particular e o universal, o que possibilita o diálogo interreligioso. Se o cristianismo tem um pretenção ao universal, o que poderia ser um problema para os não-cristãos, ele não abdica de sua particularidade, o que o situa sempre num contexto histórico e cultural. Este paradoxo da encarnação, que afirma que o particular é passagem obrigatória para o universal, é o elemento de equilíbrio para o diálogo interreligioso. Para Claude Geffré, não podemos pensar em teologia hoje sem levar a sério o paradoxo da encarnação. Ele diz: “Eu chegaria mesmo a afirmar que o universal que não se fundamenta no particular é um universal abstrato que não me interessa. Toda a questão é de saber qual é o particular que pode ter um valor universal (...); esta religião é a que levaria ao máximo aquilo que Paul Tillich chamava de união paradoxal do universal e do particular”.5 5 Claude GEFFRE, Op. Cit., p. 98. 10 Mesmo afirmando a encarnação como elemento central do cristianismo, poderíamos incorrer numa atitude inclusivista em relação aos outros. Afinal, poderíamos pensar que temos a verdade e as outras tradições religiosas (e culturais) são meras coadjuvantes do diálogo religioso, pois o cristianismo é o único que provém de Deus mesmo. Os outros são caminhos incompletos e provisórios. 3.2- A universalidade do Cristo e do cristianismo histórico A economia do Verbo encarnado é o sacramento de uma economia mais vasta, que é aquela do Verbo eterno. E esta coincide com a história religiosa de toda a humanidade e nenhuma religião pode ser dar o direito de falar em nome exclusivo deste processo. A verdade absoluta não é alcançada por uma parcialidade, ela permanece mistério de Deus. Somente Ele poderá revelá-la na plenitude dos tempos. Assim sendo, toda revelação conta com a ação da graça divina, mesmo antes de ser aceita como mensagem revelada. E, como tais, as tradições religiosas podem dar testemunho, em graus diferentes, de uma auto-revelação de Deus na ação do Verbo. Em cada experiência religiosa é Deus revelado em Jesus Cristo que entra de modo escondido e secreto, na vida dos homens e das mulheres. Enquanto nas religiões proféticas se salienta o êxtase do encontro com Deus, na experiência de outras religiões orientais é salientada a dimensão de “ínstase” (a busca de um Absoluto desconhecido “na gruta do coração”). E embora “elas não se beneficiam da revelação “particular” de Deus na história de Israel, e a fortiori, da auto-revelação decisiva de Deus em Jesus Cristo”6, é sempre o Deus de Jesus Cristo que se comunica a eles. Nas várias tradições religiosas existem elementos de verdade, existem revelações divinas, que são fruto da economia da “aliança cósmica”. Como conciliar esta afirmação com a questão do evento-Cristo, o revelador perfeito do Pai? Primeiramente, afirmando que ele é o revelador perfeito e definitivo do Pai. Ele revelou a salvação de Deus através de sua vida, paixão, morte e ressurreição, e nele Deus pronunciou sua palavra decisiva para toda a humanidade. A revelação atinge sua plenitude qualitativa no Filho de Deus. Isto é, nenhuma outra revelação pode se igualar àquela do Filho divino encarnado, que viveu numa consciência humana, a sua própria identidade de Filho de Deus. Porém, como homem, Jesus esteve limitado a seu contexto histórico-cultural e à realidade humana. Por isso que a revelação que ele trouxe não pode ser absoluta na quantidade. Ela 6 Jacques DUPUIS, Op. Cit., p. 335. 11 atinge a plenitude absoluta na qualidade e não na quantidade, pois Jesus tinha consciência humana e portanto limitada. Como diz Mário de França Miranda: “Já foi observado que o mistério infinito de Deus não consegue se expressar como é na consciência humana de Jesus, sem falarmos da limitação imposta pelo contexto sócio-cultural. Consequentemente se reconhece em Jesus Cristo a plenitude da salvação, não quantitativa, mas qualitativa.”7 Limitado pelo contexto cultural e pela kénose, ele não poderia expressar plenamente o mistério infinito de Deus. Por isso que a afirmação da plenitude qualitativa da revelação em Jesus Cristo, abre a possibilidade de continuidade da auto-revelação divina, por meio dos profetas e sábios de outras tradições religiosas. Todas estas convergem para Cristo e nenhuma delas é superior à de Jesus, seja antes como depois de seu evento histórico. “A expansividade da vida interna de Deus, que transborda para fora da Divindade, é, em última análise, a causa radical da existência, na história humana, de itinerários convergentes, que conduzem a uma única meta: o mistério absoluto da Divindade que atrai a si todos os itinerários no mesmo momento em que, primeiramente, os faz ser.” 8 Assim se pode explicar a auto-manifestação de Deus nas culturas humanas e nas tradições religiosas fora da órbita de influência da mensagem cristã. Sempre é Deus se manifestando na universalidade da presença ativa do Verbo na história da salvação e, especificamente, nas tradições religiosas da humanidade. Ao longo da história houve uma identificação entre a universalidade de Cristo, o Filho de Deus, e a universalidade do cristianismo, como religião histórica. Tal identificação está na origem da atitude exclusivista do cristianismo. É Deus que é o centro do processo, que somente será pleno na parusia, o que dá uma certa relatividade à caminhada presente. Tudo o que podemos afirmar é provisório e relativo, no sentido de que depende de uma plenitude que não aconteceu ainda, e que somente acontecerá no final dos tempos e que está também presente nas outras religiões. Não cabe ao cristianismo histórico pronunciar a palavra final sobre o que é verdadeiro e bom ou não nas tradições religiosas. Somente Deus pode fazer isso e o fará no futuro. 3.3- O Projeto Divino da Salvação e as diversas mediações Ainda permanece a questão da possibilidade ou não de reconhecimento da verdade e da revelação nas outras religiões. Através do que vem sendo exposto, fica claro que não existe 7 Mário de França MIRANDA, “Jesus Cristo, obstáculo ao diálogo inter-religioso?”, in: REB/57, Fasc. 226, junho de 1997, p. 261. 8 Jacques DUPUIS, Op. Cit., p. 293. 12 contradição nem relativismo, por parte do cristianismo, em aceitar a manifestação de Deus em outras tradições. Deus se manifestou de diversas maneiras ao mundo e em todas elas houve uma relação pessoal de Deus com suas criaturas; em todas elas houve uma “intervenção divina” na história dos povos, da qual as tradições religiosas da humanidade são as testemunhas privilegiadas. Em todos elas Deus é o mesmo, mas captado de forma humana, sempre parcial e imperfeita e sujeita a deformações múltiplas. Sob este enfoque universal, nenhuma aliança pode ser excluída a priori da pertença à história da salvação. Em todas elas se pressupõem eventos, que, em função de um carisma profético, são interpretados como intervenções divinas. Em todas elas – a seu modo – está presente a ação do Espírito Santo, manifestando certos traços do rosto de Deus. Ao afirmarmos que em todas as tradições religiosas se encontram expressões da automanifestação de Deus, e portanto fazem parte da revelação divina, não queremos situar essas revelações todas num mesmo patamar. Queremos afirmar que existe uma única história da salvação na diversidade. Todas elas são autênticas enquanto se constituem em mediações à resposta humana ao apelo divino de salvação. Através de suas práticas, elas exprimem, defendem e sustentam o encontro de seus fiéis com Deus. Essa relação de complementariedade se manifesta também nos livros sagrados das religiões. O Espírito Santo não está ausente desses livros, pois inspira tudo o que há de bom neles, tornando-os portadores de uma certa revelação de Deus. Neste sentido, eles são autênticos e dignos de respeito, embora não sejam perfeitos e completos. Claude Geffré se expressa assim a respeito: “Sim, pode existir certas revelações - imperfeitas, inaptas, incompletas – que poderiam ser uma chance para uma melhor interpretação da revelação cristã.”9 Na relação com essas religiões, ao contemplar seus escritos sagrados, os cristãos podem descobrir alguns aspectos do mistério divino que não cessa de manifestar suas virtualidades para a inteligência humana. Podemos falar aqui de revelação progressiva e diferenciada, conceito análogo ao de inspiração das escrituras. As culturas não são apenas lugares pacíficos de recepção do Evangelho. Elas são um lugar de re-interpretação do cristianismo. Elas despertam nele virtualidades que não foram até então evidenciadas e que estão presentes como possibilidade. E este encontro com o outro cultural e religioso é decisivo para a descoberta destas virtualidades, que não eram exprimidas na linguagem e que os meios culturais até então predominantes não permitiam. 9 Claude GEFFRE, Op. Cit., p. 142-143. 13 Conclusão A aceitação da positividade da pluralidade religiosa-cultural, introduz a humanidade numa nova fase, não mais da racionalidade grega e nem técnica, mas numa racionalidade comunicacional. Diante da definiva pluralidade dos discursos teológicos e religiosos, somos convidados a pensar num outro modelo de pensamento e ação, baseado mais na participação e no consenso, do que na exclusão e na totalidade. Todas as religiões são portadoras de verdades diferenciadas, que nascem dentro de um contexto cultural, e são chamadas à partilhar com os outros esta parcela da verdade. Nenhuma religião ou discurso teológico pode ter a pretensão de sistematizar toda a riqueza das manifestações de Deus e da verdade, pois incorreria o risco de tomar o lugar de Deus. E como diz Claude Geffré, “Apesar de todos os erros, imperfeições e mesmo perversões de numerosas tradições religiosas da humanidade, parece legítimo pensar que existe mais de verdade de ordem religiosa na concerto polifônico das religiões do mundo que somente no cristianismo”10. O diálogo entre o cristianismo e as outras religiões deve se basear na busca conjunta do autêntico encontro com Deus. Assim sendo, podemos concluir que quanto à pluralidade religiosa, longe de se constituir um defeito de evangelização, ela manifesta a riqueza do mistério divino revelado, e a plenitude da verdade ainda por vir. E a pluralidade cultural, longe de ser um simples meio de manifestação e um empecilho ao diálogo, é um convite ao crescimento mútuo na busca de uma unidade na diversidade. Em ambos os casos, a pluralidade se contitui como locus theologicus. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Jacques DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do Pluralismo Religioso, São Paulo: Paulinas, 1999. Claude GEFFRE, Profession théologien. Quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle ?, Entretiens avec Gwendoline Jarczyk, Paris, Albin Michel, 1999. Claude Geffré, « Pour un christianisme mondial », Recherches de Sciences religieuses, janvier-mars, 1998, p. 53-75. 10 Claude GEFFRE, « Pour un christianisme mondial », Recherches de Sciences religieuses, janviermars, 1998, p. 67. 14 Mário de França MIRANDA, “Salvação ou Salvações? A Salvação cristão num contexto inter-religioso”, in: REB/58 Fasc. 229, março de l998, pp. 136-163. Mário de França MIRANDA, “Jesus Cristo, Obstáculo ao Diálogo Inter-religioso”, in: REB/57 Fasc. 226, junho de l997, pp. 243-264. Faustino TEIXEIRA, Teologia das Religiões, Uma visão panorâmica, São Paulo: Paulinas, 1995. João Batista LIBÂNIO e Afonso MURAD, Introdução à Teologia Perfil, Enfoques, Tarefas, São Paulo, Loyola, 1996, pp. 245-284. Karl RAHNER, “O Pluralismo na Teologia e a Unidade da Fé da Igreja” in: CONCILIUM, 6(1969): 87-105. Karl RAHNER, Le courage du théologien, Paris, Les éditions du CERF, 1985, pp. 137-146 e 199-203. Bruno CHENU, Théologies chrétiennes des tiers mondes, Paris, Centurion, 1987.
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