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veredas_portada 19 gris copia - Associação Internacional de
NESTE NÚMERO:
BARBARA GORI
Antero de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico alemão
CLAUDETE DAFLON
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas
FILIPA MEDEIROS
«Cantando espalharei por toda a parte» Estratégias de marketing político no Barroco:
os emblemas fúnebres em honra da rainha D. Maria Sofia Isabel
MARIA APARECIDA RIBEIRO
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
MARIA TERESA NASCIMENTO
A devoção mariana no diálogo português do Barroco
REGINA ZILBERMAN
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura
enquanto campo de investigação
ROLF KEMMLER
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
a gramaticografia portuguesa à luz da gramaticografia
latino-portuguesa nos séculos XV a XIX
SARA AUGUSTO
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
SOCORRO DE FÁTIMA P. BARBOSA
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo e
a murmuração da corte no primeiro reinado
19
19
VEREDAS
Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
VOLUME 19
SANTIAGO DE COMPOSTELA
2013
A AIL – Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos
estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua portuguesa. Organiza
congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como co-patrocina
eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se
na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos
directivos são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Directivo e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu patrimônio é formado pelas quotas
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Veredas
Revista de publicação semestral
Volume 19 – Junho de 2013
Diretor:
Elias J. Torres Feijó
Editora:
Raquel Bello Vázquez
Conselho Redatorial:
Andrés José Pociña Lopez, Anna Maria Kalewska, Axel Schönberger, Clara Rowland,
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Pinho, Sérgio Nazar David, Ulisses Infante, Vera Lucia de Oliveira. Por inerência: Benjamin Abdala Junior, Cristina Robalo Cordeiro, Ettore Finazzi-Agrò, Helena Rebelo, Laura
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da Silva, Thomas Earle.
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VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
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Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte – Lisboa, Portugal
Impressão e acabamento:
Campus na nube, Santiago de Compostela, Galiza
ISSN 0874-5102
AS ATIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS TÊM O
APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES
SUMÁRIO
Nota introdutória.....................................................................................................7
BARBARA GORI
Antero de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico alemão...........9
CLAUDETE DAFLON
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas...........................................................................................................25
FILIPA MEDEIROS
«Cantando espalharei por toda a parte» Estratégias de marketing político no
Barroco: os emblemas fúnebres em honra da rainha D. Maria Sofia Isabel.........49
MARIA APARECIDA RIBEIRO
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os
nossos dias............................................................................................................71
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»...................93
MARIA TERESA NASCIMENTO
A devoção mariana no diálogo português do Barroco........................................137
REGINA ZILBERMAN
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura
enquanto campo de investigação........................................................................149
ROLF KEMMLER
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: a gramaticografia portuguesa à luz da gramaticografia latino-portuguesa nos séculos
XV a XIX............................................................................................................173
SARA AUGUSTO
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco......................205
SOCORRO DE FÁTIMA P. BARBOSA
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo e a murmuração da
corte no primeiro reinado....................................................................................229
Nota introdutória
O presente número da revista Veredas é um monográfico dedicado aos estudos devotados a um dos períodos menos atendidos dentro
dos estudos lusófonos, o que decorre entre a morte de Luís de Camões e
o início do Romantismo.
Em 2012, a Associação Internacional de Lusitanistas, ciente da
lacuna que afetava ao referido período, convocou especialistas em diferentes áreas da produção cultural dos séculos XVII e XVIII a participarem num colóquio em Budapeste. Pedia-se a apresentação de trabalhos arriscados, pesquisas em andamento, hipóteses ainda em fase de
comprovação. Após o colóquio, com interessantes e intensos debates.
foi oferecido às pessoas participantes elaborarem as suas comunicações
como artigos e submetê-los a publicação na revista Veredas.
Os textos foram submetidos à revista e avaliados pelo sistema
convencional de duplo cego. Parte deles são agora aqui recolhidos, outros serão publicados em próximos números da revista. Todos eles beneficiaram de um elevado grau de elaboração, e a prova disto é que frente
a um índice de aprovação média que não alcança 50% dos originais
submetidos à Veredas, nesta ocasião a percentagem de aprovação de trabalhos superou 70%. O resultado, é um volume em que aspectos pouco
tratados nos estudos lusófonos são estudados com uma elevada qualidade científica, oferecendo não apenas resultados novos e inovadores, mas
também novos trilhos pelos quais a pesquisa poderá ser desenvolvida
nos próximos anos.
Raquel Bello Vázquez
Editora
VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 9-24
Antero de Quental e o (des)encanto
com o naturalismo metafísico alemão
BARBARA GORI
Universidade de Pádua
RESUMO
O objetivo do artigo é o de investigar quais foram os contatos que Antero de Quental – grande interessado em conhecer, reconstituir e divulgar a filosofia do seu tempo– teve com os autores e as obras que consolidam a Naturphilosophie e quais são,
consequentemente, as influências dos mesmos na sua obra principalmente poética.
Antecipando e sintetizando os resultados, pode-se afirmar que Antero não permanece alheio à extrema importância que o pensamento dos autores da Naturphilosophie
assume na filosofia contemporânea e, incitado pelo imanentismo emergente, não tem
pejo em considerá-los embaixadores do panteísmo espiritualista que, no seu modo de
ver, percorre as essenciais orientações do pensamento moderno. Três são os conceitos
que são desenvolvidos porque considerados permeáveis às influências dos pensadores da Naturphilosophie: evolução, finalidade e espontaneidade. E são os poemas Voz
Interior e Diálogo as composições poéticas em que a concepção sombria do mundo
natural adotada pelos pensadores alemães não deixa de espelhar-se. O poeta dos Sonetos Completos reconhece portanto a importância de Goethe e Schelling na abertura
do espírito das novas gerações e na moderna filosofia da natureza. Contudo, cedo se
acha imobilizado no seio desta forma transcendente de naturalismo. Representantes de
uma filosofia da natureza puramente especulativa, segundo Antero, os autores do naturalismo metafísico alemão traduzem um pensamento demasiadamente contemplativo,
uma mundividência gelada e inerte. Antero acusa-os de falsa religiosidade, afirmação
esta que poderá ser entendida no sentido de que o naturalismo idealista desrespeita,
em última instância, a autonomia e a supremacia essencial do espírito, não operando a
esperada religação entre realidade cósmica e o plano autenticamente metafísico do ser,
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BARBARA GORI
uma vez que, em si mesmo, aniquila o espírito por identificá-lo com a natureza. Por
esse motivo, Antero reduz a opção naturalista, embora a considere elevada e harmónica, a um mero paganismo intelectual e requintado.
Palavras-chave: Antero de Quental; Naturalismo; Johann Wolfgang Goethe; Friedrich Schelling; Naturphilosophie; Filosofia da Natureza.
ABSTRACT
The object of this study is to investigate the contacts that Antero de Quental –much
interested in knowing, reconstructing and spreading the philosophy of his time- had
with the authors and the works that consolidated the Naturphilosophie and which were
the influences of the same in his poetic work. Anticipating the results, we can say that
Antero doesn’t remain oblivious to the extreme importance that the thinking of the
authors of the Naturphilosophie assumes in contemporary philosophy and, spurred by
emerging immanentism, he has no qualms about considering them as spiritual ambassadors of pantheism that runs the essential guidelines of modern thought. There are
three concepts that are considered permeable to the influences of Naturphilosophie
thinkers: evolution, finality and spontaneity. And the poems Voz Interior e Diálogo
are the poetic compositions in which the conception of the natural world adopted by
German thinkers never ceases to mirror themselves. The poet of the Sonetos Completos therefore recognizes the importance of Goethe and Schelling at the opening of the
spirit of the new generations and the modern philosophy of nature. However, early he
finds himself immobilized in this transcendent form of naturalism. Representatives of
a purely speculative philosophy, according to Antero, the authors of German metaphysical naturalism translate a too contemplative thought, a cold and inert worldview. Antero accuses them of false religion, an assertion which can be understood in the sense
that it disrespects the essential autonomy and supremacy of the spirit, not operating at
expected re-connection between cosmic reality and genuinely metaphysical plane of
being, since, in itself, kills the spirit by identifying it with nature. Therefore, Antero
reduces the naturalistic option, despite he considers it high and harmonic, to a mere
intellectual and refined paganism.
Keywords: Antero de Quental; Naturalism; Johann Wolfgang Goethe; Friedrich
Schelling; Naturphilosophie; Philosophy of Nature.
Educado segundo os moldes do ultrarromantismo estabelecido,
Antero de Quental faz soar desde muito cedo, numa atitude romanticamente antirromântica, a sua voz dissidente, recusando curvar e submeter
o seu espírito à herança literária de homens que, em Bom Senso e Bom
Gosto, designava como «apóstolos do dicionário» (Salgado, 1982: 288),
e que tinham em António Feliciano de Castilho o seu mais solene repre-
Antero
alemão
de
Quental
e o
(des)encanto
com o naturalismo metafísico
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sentante. A polémica instaurada pelos estudantes de Coimbra no seio da
Arcádia lisboeta, para a posteridade designada como Questão Coimbrã,
leva Antero a afrontar esse seu antigo professor do Colégio do Pórtico
num tom que tem tanto de cáustico quanto de excessivo, como o próprio
Antero viria a confessar, anos mais tarde, numa carta ao seu tradutor
alemão Wilhelm Storck (Quental, 1989b: 835):
O velho Castilho, o Árcade póstumo, como então lhe chamaram, viu
a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura anacrónica. Houve
em tudo isso muita irreverência e muito excesso. [...] Havia na mocidade uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas
fecunda: Castilho que a não compreendia, julgou poder suprimi-la com
processos de velho pedagogo.
Em causa está a ameaça, levada a cabo pelos círculos académicos dos chamados românticos da primeira geração,1 à liberdade e à
autonomia do espírito e ao consequente compromisso do progresso intelectual, social e, sobretudo, moral de toda a humanidade.2 Os ecos desse
movimento de resistência emergente ressoam na publicação de um vasto
conjunto de opúsculos e críticas contundentes, mas também nas animadas tertúlias estudantis que se tornam fervorosos meios de divulgação
do novo ideário e da consequente agitação social. Segundo as famosas
palavras de Eça de Queirós (s/d: 485):
Coimbra vivia então numa grande actividade, ou antes num grande
tumulto mental. Pelos Caminhos de Ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da
1 Cf. António Machado Pires, 1991: 171. Machado Pires sublinha a distinção
entre as três gerações do Romanismo em Portugal –a primeira de Garrett e
Herculano, a segunda de Camilo Castelo Branco e a terceira da Geração de
70– e refere-se à paradoxal atitude romanticamente antirromântica de Antero
e dos seus companheiros geracionais.
2 Sobre o protesto moral de Antero veja-se em particular: Hernâni Cidade,
1988, pp. 65-67; João Medina, 1972: 43.
BARBARA GORI
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França) torrentes de coisas novas, ideias, systemas, estheticas, formas,
sentimentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo.
E é dos países de além-Pirenéus que surgem, e a partir deles
que se propagam, ideias e orientações de uma forma de romantismo
diferente, desta feita empenhada na viva e profícua comunicação com
as inquietações e angústias do tempo presente. Autores bem familiares a Antero, como Alphonse de Lamartine e Victor Hugo, inscritos no
longo esforço romântico de combater a rígida racionalidade iluminista
dos séculos XVII e XVIII, aliam, nas suas obras, a reflexão à emoção
e ao símbolo estético, e conferem à literatura –e por extensão à Arte– a
corresponsabilização por uma humanidade em profunda mudança. Enquanto importante movimento configurador da cultura europeia do final
do século XVIII, esse romantismo estrutura-se como compreensão total
e integral do mundo e da existência, o que lhe exige uma visão que, ao
invés de isolar o elemento humano, o situa no seio do Cosmos em que
reside.3
E se é verdade que, de regresso ao excerto queirosiano, todas as
referências que estimulam os jovens pensadores portugueses provêm da
França, é também verdade que nem todas têm nela o seu terreno originário. O germanismo também conquista um lugar de destaque entre o frenético caos das leituras de Antero e dos seus companheiros que, diferentemente dos românticos portugueses da primeira geração, assimilam em
profundidade os conceitos dos pensadores alemães dos séculos XVIII e
XIX, que não ficam alheios ao domínio das ciências da natureza. Pelo
contrário, é no saber romântico da natureza que alicerçam o projeto de
restauração de uma filosofia do Homem e do Universo enquanto sujeitos
de um mesmo princípio imanente de inteligibilidade. Essa orientação
germânica da mundividência romântica, desenvolvida entre os finais do
século XVIII e a primeira metade do século XIX, recebe o nome de Naturphilosophie, expressão privilegiada e sem equivalente linguístico, da
3 Cf. Georges Gusdorf, 1993, pp. 361-362.
Antero
alemão
de
Quental
e o
(des)encanto
com o naturalismo metafísico
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qual são arautos o poeta Johann Wolfgang Goethe e o filosofo Friedrich
Schelling.4
O postulado inicial da Naturphilosophie repousa na compreensão unitária da natureza, uma vez que recusa o princípio de objetividade que coloca frente a frente homem e mundo –enquanto domínios
que partilham uma mútua estranheza– e, dessa forma, permite afirmar
uma continuidade e uma integralidade de sentido. Binómios conceptuais
como visível e invisível, matéria e espírito, corpo e alma, microcosmos
e macrocosmos abandonam um registo dicotómico em prol da leitura
que os coloca em íntima e identificativa dinâmica comunicacional. O
homem não é o detentor exclusivo do espírito e do princípio de inteligibilidade, à maneira da modernidade de feição cartesiana, mas antes o
órgão de pensamento e de manifestação da própria natureza.5
Ao conceber o homem como legítimo descendente do Universo,
cuja filiação e pertença naturais são indiscutíveis, a Naturphilosophie
recupera o paradigma grego do Cosmos como horizonte de uma inteligibilidade unitária. Note-se a esse propósito que o título escolhido por
Alexander von Humboldt (1769-1859), naturalista, explorador e botânico alemão, irmão do mais famoso Wilhelm –naturalista lendário segundo Antero (Quental, 1991: 95)– para uma das suas obras é precisamente
Kosmos, palavra que já pela carga etimológica transporta em si as ideias
de proporção, harmonia ou, mais especificamente do Universo como um
todo ordenado. Esta última referência não deixa de ter consequências na
elaboração da conceção anteriana da natureza de que o autor do PrograSobre esta tendência da filosofia alemã, esclarece Georges Gusdorf: «A
Naturphilosophie é o fundamento da visão romântica do mundo. A visão do
mundo não é o olhar do observador que desliza sobre a superfície das coisas;
[...] A visão do mundo é presença no mundo» (Cf. Geoges Gusdorf, 1993, pp.
365-366).
5 A consequência mais marcante desta nova visão do mundo prendese precisamente com o divórcio em relação às tendências mecanicistas
que, insistindo no hiato entre matéria e espírito, perspectivam a primeira
enquanto simples reduto de extensão e movimento. Saindo desta tendência,
a Naturphilosophie liberta o mundo natural da redutibilidade determinística
e confere-lhe o regresso ao profundo sentido da vida e dos valores. Ainda
que se distinga desta leitura, Antero permanecerá sempre devedor da (re)
consideração alemã pela natureza.
4
14
BARBARA GORI
ma para os Trabalhos da Geração Nova se ocupa por volta de 1874.6 Se
considerarmos que um dos capítulos do primeiro volume projetado para
o Programa se intitula precisamente O Cosmos e a Evolução, somos
levados a concluir que a leitura anteriana da obra de Humboldt não é
empresa fortuita ou ocasional.
Grande interessado em conhecer, reconstruir e divulgar a filosofia do seu tempo, Antero inevitavelmente contacta com os autores e as
obras que consolidavam a Naturphilosophie. A leitura e o estudo que o
pensador açoriano vota a Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), e em
especial a Fausto, transformam esta obra numa das responsáveis pelo
acesso anteriano ao pórtico do pensamento germânico e até à própria
língua alemã.7
A intensa impressão causada por Goethe não só em Antero –que
o define como «poeta, artista, naturalista, por cima disso viajante e homem do mundo, tendo também uma clara orientação filosófica»8– mas
em todos os jovens espíritos portugueses do tempo que, como Antero,
vivem ávidos de novas e cada vez mais completas perspectivas sobre a
existência, é comprovada na expressão com que Eça de Queirós (s/d:
485) se lhe refere, no In Memoriam: «Goethe, vasto como o Universo».
Mediante a prática da observação rigorosa e atenta da natureza, o
autor de A Metafísica das Plantas (1790, Versuch die Metamorphose der
6 Veja-se em particular a carta a Oliveira Martins, de 26 de Março de 1874 (Cf.
Antero de Quental, 1989a: 242).
Veja-se a carta autobiográfica a Wilhelm Storck de 14 de Maio de 1887
(Cf. Antero de Quental, 1989b: 834). Segundo José Bruno Carreiro, Antero
terá iniciado a leitura de Goethe nos anos de Coimbra e só mais tarde, por
volta de 1867, terá começado a aprendizagem como autodidata do alemão
(Cf. José Bruno Carreiro, 1991: 402). De notar ainda a vasta presença do
escritor alemão na livraria de Antero que, para além de pelo menos três
edições diferentes de Fausto, está apetrechada com uma edição, de quinze
volumes, das Obras Completas de Goethe. Antero traduz algumas partes do
Fausto, publicadas umas, votadas à destruição outras, como minuciosamente
explica Carolina Michaëlis de Vasconcelos no artigo «Antero e a Alemanha»,
do In Memoriam. O mesmo facto é ainda corroborado pelas cartas de Antero
a Francisco Machado de Faria e Maia de fevereiro/março de 1871 e a Alberto
Sampaio de 8 de abril de 1875 (Cf. Antero de Quental, 1989a, pp. 116; 279).
8 Cf. Antero de Quental, 1991: 131.
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Antero
alemão
de
Quental
e o
(des)encanto
com o naturalismo metafísico
15
Pflanzen zu erklären), porventura a face menos conhecida dos trabalhos
de Goethe, concebe o mundo natural como uma totalidade orgânica e
viva –organizada segundo arquétipos ou princípios internos unificados
existentes nos seres individuais– e um contínuo processo de metamorfose desses princípios espirituais. Num registo muito próximo dos textos
anterianos produzidos entre 1860 e 1866,9 Goethe apresenta uma visão
proteica da natureza enquanto criadora incessante de novas formas que,
por toda a parte, cercam e envolvem o homem. A natureza, utilizadora
de várias máscaras mas cuja face permanece no fundo sempre idêntica,
serpenteia o ser humano que, rodeado por essa teia universal, se torna
duplamente impotente, quer para escapar ao cósmico abraço do mundo, quer para dominar plenamente o conhecimento dos seus meandros.10
Este pensador da Naturphilosophie acentua três importantes aspectos
configuradores da ideia de natureza, posteriormente legados ao pensamento anteriano: há na vida fim e movimento eterno. Pelo primeiro
aspeto denuncia que, para além do plano material fenoménico apreensível pela positividade do conhecimento científico, há no Cosmos lugar
e dimensões irredutíveis ao determinismo mecânico;11 pela segunda referência, sublinha a dimensão teleológica da sua visão; e, pela terceira,
apresenta o Universo segundo um eterno progresso dinâmico.
São as palavras de Antero quando o autor se refere, em «O Sentimento
da Imortalidade», ao universo em suas mil formas e, em «A Bíblia da
Humanidade de Michelet», a Proteu prodigioso de mil formas, de inúmeros
vultos inesperados, em toda a parte diverso, e em toda a parte o mesmo
sempre, todavia! Mil faces, e uma só alma (Cf. Antero de Quental, 1991, pp.
33; 15).
10 Goethe aproxima-se neste ponto da concepção de Pascal que apresenta o
homem face à natureza como um meio termo entre dois abismos, como um
ser maximamente débil pela fragilidade da sua constituição física, porém
maximamente elevado pela dignidade da sua componente inteligível, por isso
denominado vime pensante.
11 Sendo a epistemologia romântica construída com base numa lógica de
implicação e de inclusão das várias dimensões da realidade, é apenas contra
a mistificação científica que se insurge Goethe e não contra toda e qualquer
abordagem científica, até porque o poeta de Fausto foi também ele um homem
de ciência. Também Antero procurará, no seu pensamento filosófico, conciliar
ciência e especulação como única via possível para legitimar uma autêntica
filosofia da natureza.
9
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BARBARA GORI
Mas é sobretudo através do apoio especulativo-filosófico de
Friedrich Schelling (1775-1854) que a Naturphilosophie pode insistir
na constituição hierárquica da natureza, segundo uma dinâmica gradativa que culmina no ser humano. Nas linhas gerais do seu pensamento,
o autor de Ideias para uma Filosofia da Natureza (1797, Ideen zu einer
Philosophie der Natur) concebendo a última como um processo contínuo e unitário, formula as relações entre espírito e natureza no âmbito de uma unidade originária. Natureza e vida constituem dois aspetos
de uma mesma instância, sendo o homem (razão especulativa) pura e
simplesmente matéria espiritualizada e, concomitantemente, a autêntica
razão de ser, ou finalidade, para a qual concorre o princípio evolutivo da
realidade universal.
Friedrich Schelling, ainda hoje para o pensamento contemporâneo conotado como o filósofo da natureza, reconhece a importância
fulcral da filosofia da identidade e equaciona a resolução identificativa
final entre natureza e espírito: derivados a partir de um mesmo princípio originário, a primeira mais não é do que espírito na forma visível e o segundo apenas natureza em forma invisível. Entre o mundo
real objetivo e o subjetivo eu humano, não há uma diferenciação em
termos de substâncias ou essenciais: um e outro animam a odisseia do
espírito, desdobrado na multímoda riqueza da natureza e concentrado
na consciência autorreflexiva do homem. A perfeita compenetração dos
dois planos implica que, por um lado, o espírito só aceda ao conhecimento de si mediante o ponto culminante do processo de ação contínua
que constitui a natureza, ou seja, a racionalidade humana; e, por outro
lado, afirma a idealidade que preside ao mundo natural, instaurando a
natureza como um sistema dinâmico, unificado e teleológico e, por isso
mesmo, revelador do mundo espiritual. Assim sendo, recusando antever o mundo natural como uma coletânea de factos e acontecimentos,
Schelling insiste numa visão holística da ideia de natureza. Enquanto
atividade contínua ou devir, a natureza é animada por um princípio de
movimento espontâneo que, de acordo com o carácter orgânico que lhe
é próprio, a assegura enquanto potência autónoma.
Desta feita, não poderia o professor de Iena contentar-se com a
matriz mecanicista de explicação do movimento natural. Uma vez que
Antero
alemão
de
Quental
e o
(des)encanto
com o naturalismo metafísico
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a ideia de natureza aqui se assume como um processo, uma via dirigida
segundo um princípio organizativo próprio, o fluxo de causas e efeitos
inegavelmente presentes no plano físico comporta fronteiras demasiado
limitadas à sua integral compreensão. Schelling define o movimento natural como uma intensa atividade produtora e, na senda das tendências
da Naturphilosophie, dirige-se para a visão integradora do mecanicismo
na perspectiva organicista. O núcleo essencial que permite ao pensador
alemão concretizar semelhante orientação filosófica reside no conceito
de finalidade. A autonomia e a espontaneidade que definem a evolução
do movimento cósmico exigem o estabelecimento de um determinado
fim que lhe seja inerente. Esta categoria filosófica evidencia, por isso,
a inteligibilidade da natureza enquanto sistema teleológico e cabe precisamente à reflexão especulativa conduzir o espírito, adormecido na
natureza, ao vigilante e consciente regresso a si mesmo. Enquanto parte
integrante da natureza, emergente do seu seio, compete ao homem fazer
despertar o espírito da latência em que se encontra e conduzi-lo ao plano
autocognoscitivo.
Antero não permanece alheio à extrema importância que o pensamento de Schelling assume na filosofia contemporânea.12 Incitado
pelo imanentismo emergente, Antero considera Schelling um dos embaixadores do panteísmo espiritualista que, no seu modo de ver, percorre as orientações essenciais do pensamento moderno.13 E é em particular
12 Pelo que consta no seu espólio bibliográfico, Antero não possuía nenhuma
obra da autoria de Schelling, nem pelo legado epistolar temos qualquer
indicação nesse sentido. Todavia, através da sua prosa conclui-se que teve
conhecimento da obra do filósofo alemão e, de acordo com o catálogo da
livraria de Antero, sabemos inclusivamente que estava na posse de títulos como
Die romantische Schule de Heine (1836) ou Die Geschichte der deutschen
Philosophie seit Leibniz de Zeller (1875) onde, com grande probabilidade,
colheu ensinamentos relativos às teses defendidas por Schelling. Para reiterar
a hipótese deste conhecimento se ter processado por via indireta e através
de obras de feição generalista, ressalvamos que nos textos filosóficos Antero
jamais se dedica a um comentário exclusivo das teses do pensador alemão,
mas pelo contrário referencia Schelling sempre em consonância com outros
filósofos coetâneos, em particular Hegel e até mesmo Fichte.
13 Veja-se a carta a Tommaso Cannizzaro de 5 de setembro de 1886 (Cf. Antero
de Quental, 1989b: 786).
BARBARA GORI
18
o conceito de evolução que Antero assume como vetor determinante do
seu próprio pensamento em torno da ideia de natureza.
O investimento na reconfiguração da noção filosófica de natureza constitui, segundo Antero, não apenas a mais-valia da modernidade como também aquilo que a transforma num período especulativo
essencialmente específico.14 Esta viragem para o naturalismo respeita
a perspectivação dinâmica e autonómica do Universo natural e, nesse
sentido, o pensamento idealista de Schelling assume a evolução como a
matriz do desenvolvimento de todo o ser e não apenas como reduto da
empírica dimensão cósmica. A clarividência do filósofo alemão face à
relevância do conceito de evolução, noção estrutural da modernidade,
coloca-o para Antero entre os autores que não só assinalam uma teoria
geral do desenvolvimento como inevitável orientação filosófica após o
século XVIII,15 mas também, e principalmente, fundam essa mesma teoria no domínio idealista.16
A tradução poética destes conceitos pode ser considerada o soneto Evolução, que pertence à última fase da criação poética de Antero, a
dos anos 1880-1884 (Quental, 2002: 140):
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...
Hoje sou homem –e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...
14 Cf. Antero de Quental, 1991: 111.
15 Ibid: 112.
16 Ibid: 128.
Antero
alemão
de
Quental
e o
(des)encanto
com o naturalismo metafísico
19
Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
Trata-se de uma composição poética de extrema riqueza simbólica, já que cada um dos seus elementos encarna gradativamente um aspeto da existência, desde a imobilidade da rocha até ao homem enquanto
pilar cósmico. Relato do espírito na primeira pessoa, o soneto apreende-o na forma humana, ponto privilegiado do itinerário cósmico pois
permite o balanço e o reconhecimento quer do percurso anterior quer do
rumo posterior. É na passagem da última quadra para o primeiro terceto
que o sujeito poético faz o ponto da situação. Enquanto homem, o espírito antevê-se à maneira de Pascal entre dois infinitos: a escadaria multiforme dos seres naturais aquém e o infinito vácuo da liberdade além. Cidadão de dois mundos, o homem reconhece-se rocha, árvore, onda, fera
e monstro, numa sucessão existencial marcada pela cegueira das forças
orgânicas e naturais, pelo darwiniano «struggle for life» empírico. Mas,
para lá da apreensão desse estado de treva e incógnita, abre-se o infinito
plano da liberdade, ainda tocado de pranto e incerteza: interrogando (n)
o vácuo, o espírito reconhece então o telos que orienta a sua marcha e,
pela decifração de cada um dos graus ônticos de manifestação do ser,
encontra-se apto a compreender o sentido último do processo evolutivo.
António Sérgio considera ser este soneto o espaço privilegiado
de encontro entre as teorias materiais do evolucionismo biológico e o
sistema hegeliano do evolucionismo conceptual (ou metafísico): o primeiro, presente nas duas quadras, retrata a passagem material de uma
espécie para outra; o segundo, patente nos dois tercetos, diz respeito ao
movimento ascensional dialético, cuja causa final é a liberdade.17 Na
desenfreada procura de conciliação entre determinismo e liberdade, Antero promove nesta específica composição uma harmónica visão entre
a evolução de matriz darwiniana e a evolução da Ideia hegeliana. Na
síntese concertada que sempre tencionou defender, Antero demonstra
17 Cf. Antero de Quental, 1984: 222.
20
BARBARA GORI
também aqui ocupar-se da reabilitação dos diversos correlatos da ideia
de evolução. Seja enquanto expressão científica, seja no seu desenvolvimento metafísico, a filosofia deve cultivar a polimórfica matriz do
conceito de evolução, a fim de não empreender uma visão lacunar e
circunscrita da natureza.
Orientado pela influência de Schelling, Antero alarga portanto o
processo de gradativo desenvolvimento do Universo a um fundamento
metafísico, defendendo que a lei suprema das coisas se confunde com
a sua finalidade e que essa é uma finalidade de cariz espiritual.18 Pelo
esforço empreendido em prol da sedimentação transcendental da perspetiva teleológica, Antero atribui a Schelling, em parceria com Hegel,
a paternidade da moderna filosofia da natureza,19 responsável por redimensionar organicamente o Universo. Desta feita, a esfera final ou tipo
último, para utilizar a linguagem anteriana, do dinamismo que anima a
natureza constitui-se pelo espírito que, de forma imanente, instaura a
progressiva hierarquia necessária ao cumprimento do evolver ontológico.
Para além destes aspetos que atestam a proximidade do pensamento de Antero à mundividência filosófica de Schelling, o estudo da
dívida especulativa do poeta-filósofo para com o pensador alemão poderá percorrer aspetos variados ainda dentro do desenvolvimento da ideia
de natureza. Quando se refere à atividade incessantemente criadora que
a anima e constitui, patenteando um princípio de metamorfose ou devir,
Schelling aproxima-a da imagem de Proteu. E se é possível ler pela mão
de tal divindade mítica uma possível proposta anteriana de um determinado regresso especulativo do homem ao seio cósmico, na significação
simbólica de Proteu enquanto representação do inconsciente, devemos
também estabelecer através dessa categoria uma outra contribuição de
Schelling, talvez escudado por Hartmann, para a filosofia anteriana, desta feita já na linha da noção de espontaneidade. Embora Antero não o
mencione no precoce ensaio intitulado precisamente Espontaneidade,
Schelling ocupa um lugar de destaque na galeria de pensadores que es18 Antero de Quental, 1991: 128.
19 Ibid: 105.
Antero
alemão
de
Quental
e o
(des)encanto
com o naturalismo metafísico
21
tão na origem da distinção filosófica essencial, referida nesse texto de
1866, entre espírito e consciência.20
Ainda noutro aspecto aproximativo dos dois pensadores, a conceção sombria do mundo natural adoptada por Schelling, aberta a categorias como o terrível e o violento, não deixa de espelhar-se em composições poéticas do corpus anteriano, como são os casos dos versos de
Voz Interior, quando por exemplo o poeta fala do «Universo monstruoso» (Quental, 2002: 151) ou de Diálogo (Quental, 2002: 102):
A cruz dizia à terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
– Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em luta cega e brava?
Sempre em trabalho, condenada escrava,
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, és só lodo informe e rudo;
Revoltosa, és só fogo e hórrida lava...
Mas a mim não há alta e livre serra
Que me possa igualar!... amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!
Sou o espírito, a luz!... tu és a tristeza,
Oh lodo escuro e vil! – Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!
Mas porventura o mais relevante subsídio implícito de Schelling
no pensamento de Antero encontra-se na componente antropológica
dos seus sistemas. Personificação por excelência da natureza, o homem
constitui para Schelling o culminar da odisseia do espírito, já que, enquanto ser originariamente natural, é o único portador do código de interpretação da evolução cósmica. Por seu turno, Antero termina a sua
20 Ibid: 47.
22
BARBARA GORI
viagem especulativa precisamente no mais íntimo sentimento moral da
consciência humana, ainda que este pensamento esteja em face de um
reducionismo antropológico.
É, portanto, indiscutível a permeabilidade do pensamento anteriano à integral (re)valorização organicista da natureza, em prol da qual
pesam nomes da Naturphilosophie como Goethe e Schelling. O poeta
dos Sonetos reconhece a importância de Goethe na abertura do espírito
das novas gerações e, como vimos, atribui a Schelling a paternidade da
filosofia da natureza moderna. Contudo, cedo o filósofo açoriano se acha
imobilizado no seio desta forma transcendente –ou talvez devesse ter
dito transcendental?– de naturalismo.
Representantes de uma filosofia da natureza puramente especulativa, segundo Antero, os autores do naturalismo metafísico-filosófico
de feição alemã traduzem um pensamento demasiadamente contemplativo, uma Weltanschauung gelada e inerte pela perspetiva truncada que
fornece. E quando Antero pensa nos limites do naturalismo metafísico
alemão, pensa em três filósofos: Goethe, Schelling, mas também Hegel,
embora o autor da Fenomenologia do Espírito seja uma das referências
essenciais do texto da sua maturidade filosófica, as Tendências Gerais
da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Na carta autobiográfica
a Wilhelm Storck, Antero acusa-os de falsa religiosidade, afirmação esta
que –quando revestida da sua mais radical significação etimológica– poderá ser entendida no sentido de que o naturalismo idealista desrespeita,
em última instância, a autonomia e a supremacia essencial do espírito,
não operando a esperada re-ligação entre a realidade cósmica e o plano
autenticamente metafísico do ser, uma vez que, em si mesmo, aniquila o
espírito por identificá-lo com a natureza. Por esse motivo, Antero reduz
a opção naturalista, embora a considere elevada e harmónica, a um mero
paganismo intelectual e requintado. Será através de Leibniz (1646-1716)
que a filosofia do autor das Tendências acede à única perspetiva filosófica que, parecendo traduzir legitimamente a total explicação do Universo, atende à diferenciação entre natureza e espírito enquanto entidades
em si irredutíveis, ainda que intimamente correlacionadas.
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23
REFERÊNCIAS
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Instituto Cultural de Ponta Delgada/Livraria Editora Pax, 1991.
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QUENTAL, Antero de. Sonetos. Organização, introdução e notas de Nuno Júdice. Lisboa:
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QUENTAL, Antero de. Sonetos. Edição, organização e notas de António Sérgio. Lisboa: Sá da
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SALGADO, António. Prosas da Época de Coimbra. Lisboa. Livraria Sá da Costa Editora, 1982.
VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 25-48
Uma proposta de reflexão:
literatura e ciência entre lusobrasileiros setecentistas
CLAUDETE DAFLON
Universidade Federal Fluminense (UFF)
RESUMO
A discussão contemporânea sobre as relações entre literatura e ciência propõe novos
caminhos de reflexão e abre possibilidades renovadas de estudo, uma vez que a crítica
ao realismo científico permite a desmistificação de diferenças e distinções tomadas
como certas e coloca o conhecimento científico como historicamente condicionado.
Além disso, as aproximações e diferenciações estabelecidas entre ciência e literatura
possibilitam compreender como uma e outra se relacionam às questões da sociedade
em diferentes momentos históricos e, por vezes, participam dos mesmos projetos, ainda que de maneira distinta. Sem dúvida, o debate que vem sendo realizado por estudiosos da literatura, da ciência, da história e da filosofia permite compreender que uma
abordagem dessa ordem representa um acesso importante às questões socioculturais
da época. Ou seja, na medida em que as relações entre literatura e ciência favoreceriam
o entendimento sobre o papel que uma e outra vão assumindo, propõe-se considerar
como esse debate pode ser um viés profícuo para estudo da atuação de poetas luso-brasileiros do século XVIII como Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Para
tanto, a produção poética constituirá o foco documental da pesquisa que visa à reflexão
teórica sobre a poesia como meio para o entendimento público da ciência em Brasil
e Portugal. Diante disso, a obra literária de Silva Alvarenga representa um primeiro
momento do processo de investigação. De todo modo, está implicada, nesse debate,
a condição de ilustrados que atribuíam relevância ao conhecimento científico enten-
26
CLAUDETE DAFLON
dido como passaporte obrigatório para o desenvolvimento socioeconômico. Diante
da visão que o homem setecentista tinha sobre a atuação como poeta e a sua relação
com a ciência, é preciso, porém, aferir em que medida, quando na Europa a ciência já
buscava descolar-se da literatura, a poesia, no contexto luso-brasileiro, se constituía
aliada do desenvolvimento científico, no que pese a ambiguidade da aproximação de
discursos que pareciam se encaminhar para fins distintos. Nesse sentido, a necessidade
de difundir a ciência moderna e certificar sua relevância numa sociedade que oferecia
evidentes obstáculos a seu desenvolvimento passaria, obrigatoriamente, por uma atitude pedagógica identificada à escrita poética.
Palavras chave: Ciência; Literatura; Luzes; Escritor Luso-Brasileiro; Século XVIII.
ABSTRACT
The contemporary discussion about the relations between Literature and Science proposes new paths of reflection and opens renewed possibilities of research, since the
criticism to the scientific realism allows the demystification of differences and distinctions considered as assured and situates the scientific knowledge as historically
conditioned. Furthermore, approaches and differentiations between Science and Literature enable us to comprehend how both areas relate to questions of society in
different historical moments and, sometimes, take part in the same projects, even if
in a distinct way. Undoubtedly, the discussion that has been realized by scholars in
Literature, History and Philosophy allows us to understand that this kind of approach
represents an important access to sociocultural issues of the time. In other words,
since the relations between literature and science favor the understanding about the
role that these fields play, we proposes to consider how this discussion can be a fruitful
means for the study of the performance of 18th century Luso-Brazilian poets, namely
Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Thus, the poetic production will be
the documental focus of the research that aims a theoretical reflection about the poetry
as a mean to public understanding of the science in Brazil e Portugal. Accordingly,
the Silva Alvarenga’s literary production represents the first step of the research process. Anyway, the situation of enlightened ones who attributed relevance to scientific
knowledge seen as a required passport to socioeconomic development, is implied in
that discussion. According to the vision that the 18th century people had about the
performance as poets as their relation with science, we need, however, to check the
extent in which, when science aimed to detach itself from literature in Europe, the
poetry, in the Luso-Brazilian context, was an ally of scientific development, in spite
of the ambiguity of the convergence of discourses that seemed to go separate ways. In
this sense, the necessity of disseminating modern science and certifying its relevance
required a pedagogic attitude identified with poetic writing in a society that offered
evident obstacles to its development.
Key words: Science; Literature; Enlightenment; Luso-Brazilian Writer; Eighteenth
Century.
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
27
A reflexão do pensador francês Michel Serres, reconhecida entre
teóricos contemporâneos, tem se notabilizado ao abordar a ciência, muitas vezes em tensão com a literatura, como o próprio filósofo afirma em
entrevista concedida a Jean-Paul Dekiss e publicada em livro em 2003.
Em suas considerações sobre o assunto, observa que Jules Verne, no
século XIX, teria tentado «tornar a ciência cultural» enquanto nós «não
conseguimos tornar cultural a ciência contemporânea» (Serres, 2007:
167 e 168). Esse afastamento, entre cultura e ciência, teria favorecido a
um progressivo divórcio entre literatos e cientistas, de modo que, ainda
na visão de Serres, seria necessário um terceiro homem, especializado e
culto, representado em tempos idos por nomes como Decartes, Diderot
e Voltaire, entre outros (Serres, 2007: 168).
A posição defendida pelo filósofo permite apontar para duas direções. Em primeiro lugar, teria havido uma condição anterior em que
cultura e ciência não estavam apartadas (cujos exemplos remetem a figuras expressivas do século XVIII) e, em segundo lugar, a existência
de uma situação contemporânea caracterizada pela radical dissociação
entre letrados e cientistas. Esta perspectiva, obrigatoriamente, remonta à
polêmica conferência de Charles P. Snow «A Palestra Rede, 1959», proferida em Cambridge como resultado da ampliação de texto publicado
em 1956 na revista New Statesman com o título «As duas culturas». Na
condição de escritor e físico, como faz questão de se apresentar, Snow
defende que cientistas são ignorantes em relação à «cultura» enquanto
os literatos são ignorantes a respeito da ciência (Snow, 1995).
Compreende-se que há implicações no emprego do termo cultura tal como o faz Snow ou ainda Serres e que uma discussão sobre o
significado atribuído ao conceito é necessária. Nos debates realizados
por diferentes autores a respeito das relações entre literatura e ciência,
tem sido relativamente recorrente a referência à cultura. Nas contendas que se seguiram à conferência em Cambridge, o termo foi criticado
ao mesmo tempo em que foi retomado em trabalhos que buscaram desenvolver a discussão sobre o assunto. Isso é reconhecido pelo próprio
Snow quando, no que chama de uma «segunda leitura», numa tentativa
de resposta às críticas que recebera, afirma: «Desde o princípio, a frase
“as duas culturas” provocou alguns protestos. Levantaram objeções à
CLAUDETE DAFLON
28
palavra “cultura” ou “culturas”; e, com muito mais substância, objetou-se ao número dois» (1995: 85). Na defesa do emprego que faz da
palavra cultura, indica dois sentidos que considera aplicáveis ao tema.
O primeiro corresponderia à definição disponibilizada pelo dicionário,
segundo a qual, tratar-se-ia de «desenvolvimento intelectual». Ou de um
modo, que designa como mais refinado, seria uma reflexão derivada de
Coleridge (Snow, 1995: 86):
Coleridge disse cultivation (cultivo) onde diríamos culture (cultura);
e o definiu como “o desenvolvimento harmônico das qualidades e faculdades que caracterizam a nossa humanidade”. Bem, nenhum de nós
consegue lidar com isso; a verdade clara é que qualquer das nossas
culturas, seja ela literária ou científica, merece apenas o nome de subcultura. “Qualidades e faculdades que caracterizam a nossa humanidade”.
Na explicação de Snow, é ratificada a dualidade antes sugerida, uma vez que literatura e ciência, ao não apresentarem um desenvolvimento harmônico, cumpririam apenas parcialmente os aspectos
inerentes à definição de cultura. Daí serem subculturas, como afirma. O
segundo sentido é designado como «antropológico» e, portanto, estaria
relacionado a «um grupo de pessoas que vivem no mesmo ambiente,
ligadas por hábitos comuns, postulados comuns e um modo de vida comum» (Snow, 1995: 88). Ao assumir esse viés, Snow sustenta a polaridade entre literatos e cientistas, uma vez que «existem como culturas
dentro da esfera de ação da antropologia» (1995: 88). A proposta conceitual apresentada, que implica lidar com o conceito de cultura em dupla
chave, bem como a forma como esses conceitos são compreendidos e
incorporados à argumentação abrem uma série de questões. O caráter
problemático do uso do conceito por Snow está expresso na observação
de críticos ao seu trabalho. George Levine, por sua vez, chama a atenção
para a multiplicidade de significados que os termos literatura, ciência e
cultura implicam. Termina por considerar «culture at large»,1 ou seja,
1 «cultura em geral».
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
29
«intelectual, moral, aesthetic, social, economic and political communities»2 (Levine, 1987: 6).
Por outro lado, embora se reconheça a necessidade de reflexão mais detida sobre como esses conceitos aparecem empregados por
autores que tratam da questão, no presente artigo, pretende-se apenas
apresentar, em linhas gerais, um percurso sobre os debates acerca das
relações entre literatura e ciência a partir da polêmica gerada pela publicação de Charles P. Snow. Essa abordagem visa, fundamentalmente,
a colocar em discussão como essas relações têm despertado o interesse de teóricos contemporâneos e que aspectos têm sido levantados em
seus trabalhos. Reconhecer a relevância desse debate significa, de certo
modo, propor seu aprofundamento e, consequentemente, desenvolver
abordagens que possam contribuir para novos caminhos de reflexão.
Após reação, em 1962, marcada pela virulência da contestação
do crítico literário F. R. Lewis ao texto de Charles P. Snow, em ensaio
de 1965, intitulado «One culture and the new sensibility»,3 Susan Sontag retoma a conferência para questionar a visão defendida pelo físico
inglês. A ensaísta nota que a discussão proposta pelo cientista já vinha
sendo feita anteriormente e que a dissociação referida relacionava-se a
uma histórica antipatia, por parte tanto de artistas quanto de literatos,
quanto às mudanças que caracterizam a industrialização e seus efeitos.
Acrescenta que são equivocadas ideias difundidas segundo as quais a
ciência e a tecnologia estão em constante processo de transformação
enquanto as artes permanecem estáticas. Igualmente, deve-se duvidar
da premissa de que a especialização seria exclusividade do pensamento científico. Nesse sentido, a autora busca desfazer a compreensão de
que haveria duas culturas efetivamente separadas por um abismo. Para
Sontag, Snow teria desconsiderado a nova sensibilidade em formação,
expressa, sobretudo, nas experiências da arte contemporânea (Sontag,
1996).
Em 1987, George Levine publica «One culture: Essays in Science and Literature»,4 uma coletânea de artigos editada pela Universidade
2 «comunidades intelectuais, morais, estéticas, sociais, econômicas e políticas».
3 «Uma cultura e a nova sensibilidade».
4 «Uma cultura: ensaios sobre ciência e literatura».
CLAUDETE DAFLON
30
de Wisconsin. No texto de introdução ao volume, em clara alusão à já
citada publicação de Snow, questiona os termos colocados pelo autor
inglês e ressalta a sua superação. O teórico, por outro lado, afirma que
o título dado ao livro –«uma cultura»– não significa a unificação entre ciência e literatura, antes postula que uma e outra sejam abordadas
como discursos derivados de fontes culturais comuns (Levine, 1987:
4). Por esse viés, Levine afirma ser preciso pensar, a partir da possível
convergência entre os discursos, como e por que esse processo se deu. A
abordagem proposta busca afastar-se de um esquema de verificação de
«influências». Desse modo, não se quer simplesmente identificar confluências, mas investigar como elas ocorrem e seus significados, a fim
de que «[...] literature and science can fruitfully be studied as parts of the
same cultural field [...]»5 (Levine, 1987: 4). Em outras palavras, é possível afirmar que a discussão de George Levine aponta para uma reflexão
sobre afastamentos e aproximações, colocando em pauta como esses
processos se dão e como permitem apresentar diferentes campos como
participantes de uma mesma cultura. Se a importância desse debate se
vincula ao movimento de definição das áreas referidas, o encaminhamento proposto possibilita, ainda na perspectiva de Levine, refletir sobre
a maneira como as culturas e as sociedades se encontram em constante
formação. Interessa notar que o viés adotado permite avançar em relação a abordagens centradas em lugares-comuns, visto que, quando se
propõe discutir a relação literatura-ciência, com frequência, acredita-se
tratar do estudo da ficção científica ou do naturalismo ou, simplesmente,
da determinação da influência da ciência sobre a criação literária. Ainda que essas sejam possibilidades a serem efetivamente consideradas,
a complexidade do tema atinge outras esferas. Por isso, como lembra
Levine, é preciso levar em conta que: «[...] science and literature reflect
each other because they draw mutually on one culture, from the same
sources, and they work out in different languages the same project»6
(1987: 7).
5 «literatura e ciência possam ser proveitosamente estudadas como parte do
mesmo campo cultural».
6 «ciência e literatura refletem-se porque se valem mutuamente de uma cultura,
a partir das mesmas fontes, e realizam em diferentes linguagens o mesmo
projeto».
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
31
Diante disso, parece oportuno indagar em que medida a discussão contemporânea que coloca em xeque visões estabelecidas a respeito
da ciência favorece a apreciação sobre a forma como esta tem se situado
historicamente em relação à literatura. Do mesmo modo, isso permite
compreender o lugar dado ao literário. Em suma, debates recentes acenam para a pertinência de se refletir sobre possíveis relações entre ciência e literatura. As discussões desenvolvidas por filósofos e historiadores
têm questionado a autonomia que se atribuiu à ciência moderna assim
como têm considerado as implicações na sua consolidação como campo de conhecimento e no prestígio que alcançou. O questionamento da
autoridade científica, em especial no que diz respeito a princípios como
a neutralidade e a objetividade, que lhe seriam inerentes, afeta a forma
como se compreendem, inclusive em perspectiva histórica, as conexões
entre a esfera literária e a ciência. Por esse ponto de vista, deduz-se que
um estudo assim orientado asseguraria, ao investigar os espaços e papéis
assumidos por literatos e cientistas, um melhor entendimento do contexto sociocultural em que se efetivam aproximações e distanciamentos.
Uma contribuição importante nesse sentido é o trabalho de Wolf
Lepenies de 1985, publicado no Brasil sob o título As Três Culturas.
Não é difícil supor pela indicação do título que mais uma vez se propõe uma alusão à polêmica gerada por Charles P. Snow. A discussão,
contudo, que Lepenies desenvolve diz respeito à formação das ciências
sociais como campo de conhecimento autônomo, daí a referência a uma
terceira cultura. O autor entende que as ciências sociais se formam em
um movimento de disputa com a literatura pela primazia em «fornecer
a orientação-chave da civilização moderna», ao mesmo tempo em que
esboçam uma aproximação com a orientação cientificista das ciências
naturais (Lepenies, 1996: 11). A discussão de Lepenies é esclarecedora
sobre como se processam as relações entre esses campos. Em seu trabalho, considera que, no século XVIII, está em andamento a superação
do amadorismo na ciência sem se tenham, contudo, sido estabelecidas
a profissionalização e a especialização propriamente ditas. Ainda sobre
o Setecentos observa: «No final do século XVIII não é, portanto, possível uma separação nítida entre o modo de produção literária e o da
obra científica» (Lepenies, 1996: 12). A fim de esclarecer sua afirmação,
32
CLAUDETE DAFLON
apresenta Buffon como exemplo, visto que, como homem da ciência,
obteve reconhecimento por seu estilo na escrita quando a forma de escrever sobrepunha-se em importância àquilo que se escrevia, mesmo
enquanto cientista: «Era considerado natural que um homem da ciência
natural se concebesse como escritor: como alguém para quem não importa somente o que diz, mas também como diz, como alguém que não
somente quer instruir seu público, mas divertir instruindo» (Lepenies,
1996: 13). Contudo, o que fora responsável por seu reconhecimento,
progressivamente se tornou razão para que se duvidasse de sua capacidade como cientista, isso porque o que se diz ganhou relevância sobre
o como. Por conta disso, toma curso a cisão entre divertir e instruir, enquanto reflexo da crescente especialização do discurso científico.
Todavia, o processo pelo qual vão se diferenciando literatura
e ciência não acontece de forma linear no tempo, além disso, está sujeito às particularidades nacionais como indica Lepenies ao discutir a
formação da sociologia na França, Inglaterra e Alemanha (Lepenies,
1996). John Neubauer, em seu artigo «Reflections on the ‘convergence’ between Literature and Science»,7 de 2003, considera que a grande
contribuição para reconceitualizações metodológicas que afetaram os
dois campos, individual e conjuntamente, veio de Thomas Kuhn, com
A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), e Michel Foucault, com
As Palavras e as Coisas (1968). Ainda que não tenham tratado especificamente das relações entre literatura e ciência, suas formulações foram decisivas para uma nova reflexão sobre o assunto. Ressalta, então,
que «scholars of the scientific process now give more recognition to
the role of conventions, institutions, and irrational psychological motivations in individual scientists (Paul Feyeraband, Evelyn Fox-Keller,
Bruno Latour)»8 (Neubauer, 2003: 741-742). As mudanças incluíram,
ainda: «another line of research studies the language of scientific texts»9 (Neubauer, 2003: 742). Assim, estudos mais recentes têm discutido
como formas narrativas e dispositivos retóricos encontram-se presentes
7 «Reflexões sobre a ‘convergência’ entre literatura e ciência.»
8 «Estudiosos do processo científico agora reconhecem mais o papel das convenções, instituições e motivações psicológicas irracionais em cientistas individuais (Paul Feyeraband,
Evelyn Fox-Keller, Bruno Latour)».
9 «Outra linha de pesquisas sobre a linguagem dos textos científicos».
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
33
nos textos científicos antes caracterizados como essencialmente denotativos e transparentes, o que fere visões hierarquicamente construídas,
segundo as quais a verdade científica se impunha ao discurso literário.
Desautoriza-se, portanto, a conduta pautada no estabelecimento de influências em que a perspectiva, muitas vezes unívoca, supunha afetar-se,
fundamentalmente, a literatura. Conclui, então, Neubauer que: «[...] the
present focus on the role of literary and rhetorical devices in scientific
discourse turned studies of ‘Literature and Science’ into a two-way traffic»10 (2003: 742). Assumindo essa posição, o autor cita a discussão de
Wolf Lepenies, quando este atribui à literatura função de memória, ou
seja, ideias científicas descartadas ou ultrapassadas hibernariam na literatura, de modo que pudessem ser reativadas em discussões científicas
de momentos posteriores. Conduz, assim, o que chama de um estudo
de caso, quando observa como o pensamento de Lucrécio é reativado
(Neubauer, 2003: 746):
De rerum natura experienced a great revival when mechanistic and
atomistic theories emerged in the new science of the seventeenth century (Gassendi, Newton, Descartes); it then lost popularity once didactic poems went out of fashion around 1800, but was revived when the
atoms triumphed in nineteenth-century physics and chemistry.11
Na citação, está clara a função de memória aludida. Desse modo,
o trabalho de Neubauer aponta para uma relação entre literatura e ciência em outros patamares, explorando a complexidade do assunto. É por
esse caminho que se propõe desenvolver uma reflexão sobre o contexto
luso-brasileiro, em especial o século XVIII.
10 «[...] o presente foco no papel dos dispositivos literários e retóricos no discurso científico
tornou os estudos da ‘Literatura e Ciência’ num tráfego de mão dupla».
11 «De rerum natura experimentou um grande revival quando teorias mecanicistas e atomistas surgiram na nova ciência do século XVIII (Gassendi, Newton, Descartes), então perdeu
popularidade, uma vez que os poemas didáticos saíram de moda em torno de 1800, mas foi
revivido quando os átomos triunfaram na física e química do século XIX».
34
CLAUDETE DAFLON
Ao discutir as vertentes historiográficas da ciência no Brasil, a
historiadora Moema Rezende Vergara, no artigo «Ciência e modernidade no Brasil», de 2004, observa que a herança colonial assim como
a origem portuguesa foram entendidas como fatores do atraso nacional pelos intelectuais brasileiros da geração de 1870. Teria partido daí
a compreensão, que perdurou na história da ciência feita no século XX,
de que não teria havido ciência no período colonial. O elemento luso foi
recalcado, de forma que luso-brasileiros eram designados tão-somente
como brasileiros, ao mesmo tempo em que a ilustração portuguesa foi
desconsiderada, num processo que a autora chama de «purificação da
memória» (Vergara, 2004). A historiadora considera que Fernando de
Azevedo, enquanto importante intelectual brasileiro do século XX, teria
tido seu pensamento formado a partir das ideias do final do Oitocentos.
Em sua obra A Cultura Brasileira, cuja primeira edição data de 1942,
Azevedo critica duramente a educação jesuítica. Atribui-lhe o modelo
de formação intelectual que teria vigorado no Brasil e afetado o desenvolvimento do conhecimento técnico-científico. Em relação aos filhos
da elite colonial, afirma (Azevedo, 1996: 274):
No entanto, a formação intelectual que recebiam, eminentemente literária, orientada não para a técnica e a ação, mas para o cuidado da
forma, adestramento na eloquência e o exercício das funções dialéticas
do espírito, não podia fazer desses mestres em artes e licenciados senão
letrados, imitadores e eruditos, cujo maior prazer intelectual consistia
no contato com os velhos autores latinos. Força de conservação antes
do que instrumento de libertação do espírito, esse ensino de classe,
dogmático e retórico, que modelava todos pelo mesmo padrão de cultura, fundia as minorias ralas de letrados, que flutuavam, estranhas e
superpostas ao meio social, como uma elite intelectual de importação.
Em linhas gerais, no passado da colônia, estaria a origem de
comportamentos que teriam favorecido o atraso das ciências no Brasil.
A compreensão de que a formação literária e retórica teria permanecido
como danoso legado está declarada quando o autor relaciona a formação
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
35
que considera livresca ao embotamento de uma forma de pensamento e
procedimentos necessários à ciência moderna. Isso porque se dispunha
de um ensino «[...] que se manteve satélite da cultura europeia, no seu
caráter universalista e teórico, e raramente soube transformar-se pela crítica, observação e experimentação, ainda quando orientado para a aprendizagem prática [...]» (Azevedo, 1996: 288). Assinala, então, Azevedo
que se teria constituído, assim, uma tendência intelectualista e literária
que perdurou por mais de três séculos ou ainda: «A cultura, tributária da
religião, passou por essa forma a ser tributária das profissões liberais,
sem se despojar do seu velho conteúdo humanístico e eclesiástico, ao
menos até a segunda metade do século XIX [...]» (Azevedo, 1996: 278).
Uma mudança na forma como têm sido avaliados o papel e o
legado da educação a partir de suas origens coloniais no Brasil associa-se à consideração da importância, antes recalcada entre intelectuais
brasileiros, da Ilustração Portuguesa. Daí a relevância do artigo de Maria Odila Dias, «Aspectos da Ilustração no Brasil», publicado na revista
do IHGB em 1968, pois abriu caminho para a revisão desse posicionamento (Vergara, 2004: 27). Essa reorientação significou, portanto, o
estabelecimento de novas perspectivas frente aos estudos sobre história
da ciência no Brasil. A questão das vertentes historiográficas, no que
diz respeito ao estudo do período colonial, está de certa forma indicada
no livro Prelúdio para uma História: Ciência e Tecnologia no Brasil,
de 2003, organizado por Shozo Motoyama. Em capítulo intitulado «Período colonial: o cruzeiro do sul na terra do pau-brasil», o historiador
observa: «É opinião corrente que não tem sentido falar em Ciência e
Tecnologia (C&T) no Brasil na época colonial. Aparentemente, nada
se fez de importante no campo de atividades científicas e técnicas em
nossas terras, sobretudo no início desse período. Mas seria verdade?»
(Motoyama, 2004: 61). A essa indagação que introduz o texto, responde o autor com afirmações que contradizem as concepções correntes,
como a que diz respeito às acusações feitas aos jesuítas: «Ademais, a
contribuição jesuítica não se restringiu ao campo da história natural e
da etnologia. Igualmente, aventurou-se em áreas físicas e astronômicas, obtendo bons resultados» (Motoyama, 2004: 99). Sem desprezar as
contradições e problemáticas envolvidas na produção de conhecimento
36
CLAUDETE DAFLON
durante o processo de colonização portuguesa na América, Motoyama
aponta para a necessidade de revisar premissas difundidas acerca da história da ciência no Brasil e, quando se trata do Setecentos, acrescenta
(Motoyama, 2004: 113):
[...] os doutores conimbricenses naturais do Brasil, muitos deles mineiros, aprendizes de Domingos Vandelli (1735-1816) –renovador do ensino e da pesquisa científica na Universidade de Coimbra reformada–,
intentavam introduzir uma cultura científica em seu país de origem.
Dessa forma, muitos jovens talentosos dedicaram-se à investigação,
sobretudo, da história natural e de áreas correlatas.
Nesse ponto, convergem as duas linhas de argumentação desenvolvidas até aqui: de um lado, a atualidade de discussões sobre as relações estabelecidas entre literatura e ciência; de outro, a consideração da
complexidade da situação das ciências no período colonial. Em outras
palavras, ao se reconsiderar a existência da ciência no século XVIII em
Portugal e seus domínios, torna-se pertinente investigar que lugar se
conferiu à poesia frente ao progressivo prestígio do conhecimento científico entre ilustrados luso-brasileiros. Essa questão, contudo, não tem
ocupado muito espaço na crítica sobre a literatura do período.
Diante disso, a discussão teórica contemporânea representa uma
contribuição ao colocar em questão:
1. a pertinência do debate sobre as relações entre ciência e literatura, o
qual possibilita acessar o contexto sociocultural em que uma e outra
se estabelecem;
2. a crítica ao realismo científico que possibilita a desmistificação de
diferenças e distinções tomadas como certas e coloca o conhecimento científico como historicamente condicionado;
3. as aproximações e diferenciações estabelecidas entre ciência e literatura possibilitam compreender como uma e outra se relacionam às
questões da sociedade em diferentes momentos históricos e, por ve-
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
37
zes, participam dos mesmos projetos, ainda que de maneira distinta.
A discussão teórica apresentada oferece, assim, formas adicionais
de abordagem e reflexão acerca da produção literária de luso-brasileiros
setecentistas. Nessa perspectiva, soa bastante limitado e empobrecedor
abordar um poeta como Manuel da Silva Alvarenga (1749-1814) sem
compreender as relações que erige com o que entende por ciência e o
que seria a ciência em sua época em Portugal e na América Portuguesa.
O caso de Silva Alvarenga desperta interesse na medida em que
sua trajetória explicita as ambiguidades próprias da condição do ilustrado nascido na América Portuguesa ao mesmo tempo em que representa a prática da poesia integrada à promoção de avanços no campo
científico. Nascido em Vila Rica em 1749, mestiço, de origem humilde,
filho do músico Inácio da Silva e de Felipa Lopes da Fonseca, segue
nos estudos, provavelmente graças à ajuda de amigos, passando pelo
Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana, fundado para
atender à elite mineira dos meados do século XVIII, e onde se matricula
em 1766 para estudar lógica (Autos da Devassa, 2002: 193; Silva, 2005:
55-57; Morato, 2005: XVIII-XIX; Tuna, 2009: 28-29).12 O objetivo, em
última instância, seria o ingresso no curso de Cânones da Universidade
de Coimbra. Autores como Joaquim Norberto e Fernando Morato registram o ingresso na Universidade em 1771; Gustavo Tuna, contudo,
relata que a entrada nos estudos superiores teria acontecido em 1768,
conforme consta no livro de matrículas de Coimbra e na carta de curso
do poeta (Tuna, 2009: 32):
Como previsto pelos Estatutos de 1653, Silva Alvarenga ingressou em
Coimbra matriculando-se primeiramente em Instituta, em 1768, como
está registrado no livro de matrículas da Universidade. A carta de curso
registra que o estudante mineiro «provou cursar» a referida disciplina
entre 1.º de outubro de 1768 até o fim de maio de 1769.
12 Nos Autos da Devassa, Silva Alvarenga declara ser o nome de seu pai Inácio da Silva, embora Joaquim Norberto registre Inácio da Silva Alvarenga. Já a passagem pelo Seminário da
Boa Morte encontra-se indicada na tese de doutoramento de Gustavo Tuna.
38
CLAUDETE DAFLON
Escreveu poemas como «À mocidade portuguesa», que, segundo
estudo de Francisco Topa, embora tivesse sido publicado pela primeira
vez apenas em 1782, dataria de uma década antes, ou seja, quando o
poeta ainda estava em Coimbra (Topa, 1997: 346). Nessa ode, aponta-se
para a necessidade de uma reorientação da juventude, uma vez que se
parte da premissa de que predominariam, entre os estudantes, atitudes
viciosas: «A fastosa indolência,/ Tarda preguiça, e mole ociosidade,/ Tiveste por ciência,/ Infeliz lusitana mocidade» (Alvarenga, 2005: 59). A
preocupação com aspectos relativos ao estudo e à formação educacional está também em obras como «O desertor», poema herói-cômico de
1774, em que a adesão às reformas educacionais do período pombalino
aparece associada a uma atitude pedagógica voltada, sobretudo, para o
comportamento discente. Na sátira, acompanha-se a trajetória do jovem
Gonçalo que, seduzido pela Ignorância, abandona os estudos na Universidade. Nos versos, o elogio ao Marquês de Pombal –o «invicto Marquês»– e a figuras como o reitor Francisco de Lemos –«Prelado formidável»– articula-se à condenação da indolência estudantil, exigindo dos
estudantes atitude afinada ao espírito reformista. Em edição crítica de
2003 de «O desertor», Ronald Polito observa os usos da sátira e encômio
verificáveis no poema de Alvarenga bem como a aproximação com «o
pombalismo entendido como índice de modernização das instituições e
da cultura» (2003: 33). O herói-cômico surge assim na convergência entre a atuação do ilustrado luso-brasileiro nas esferas políticas vigentes e
o exercício da poesia, tendo em vista que a posição favorável a medidas
educacionais e econômicas do período josefino revela-se em uma escrita
comprometida com a instrução.
A experiência como estudante em Coimbra associa-se, por conseguinte, à adesão a diretrizes da reforma da Universidade, em especial
no que diz respeito à relevância atribuída ao desenvolvimento científico, sem o qual seriam improváveis progressos de ordem econômica. O
incentivo a novas atitudes atrela-se à defesa de mudanças educacionais
que favoreceriam o conhecimento das ciências: «O sentido educativo
que assume o poema vem aliado, contudo, a princípios de desenvolvimento científico caros aos ilustrados» (Daflon, 2011: 60). Em seu poema
satírico, portanto, assumir essa posição implicaria a atitude pedagógica
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
39
que buscava atingir os estudantes com a finalidade não apenas de convencê-los da pertinência da reforma, mas de torná-los ilustrados comprometidos com o progresso.
Silva Alvarenga retorna à América Portuguesa em 1774. O seu
estabelecimento na cidade do Rio de Janeiro aparece associado à sua
nomeação como professor régio de Poética e Retórica em 1782 (Tuna,
2009: 76). Reconhecido como poeta, professor e advogado, em 1786
participa da fundação da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, sob a
proteção do Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos. Como ainda afirma Alvarenga quando interrogado no processo da devassa, as atividades da
Sociedade teriam esmorecidos após a saída de Vasconcelos e foram restabelecidas temporariamente com a chegada do novo Vice-Rei o Conde
de Resende (Autos da Devassa, 2002: 194). Sua participação ativa nesse
espaço de sociabilidade lhe renderá o dissabor da prisão em 1794 decorrente de uma devassa que se justificou nos seguintes termos (Autos da
Devassa, 2002: 69):
A que mandou proceder o Ilustríssimo e Excelentíssimo Vice-Rei do
Estado do Brasil para se descobrirem por ela as pessoas que, com escandalosa liberdade, se atreviam a envolver em seus discursos matérias
ofensivas da religião e a falar nos negócios públicos da Europa com
louvor e aprovação do sistema atual da França, e para conhecer-se se
entre as mesmas pessoas havia alguns que, além dos ditos escandalosos
discursos, se adiantassem a formar ou insinuar algum plano de sedição.
A Sociedade corresponderia a um ambiente ilustrado e, como
tal, favoreceria a costura entre discussões de teor político e aquelas atinentes aos estudos científicos. Se ideias iluministas soavam ameaçadoras no contexto colonial, é notável a função assumida por esse tipo de
agremiação tanto no que diz respeito à sua repercussão ao se constituir
como «um campo de dinamismo e transformação científica e cultural»
quanto por encerrar uma concepção de ciência que participa da «política
pombalina de reformas efetivadas a partir da década de 1750» (Kury,
40
CLAUDETE DAFLON
Munteal Filho, 1995: 106). Ainda em seu estudo sobre cultura científica e sociabilidade intelectual na Sociedade Literária do Rio de Janeiro,
Lorelai Kury e Oswaldo Munteal filho assinalam a importância do poeta
originário da capitania de Minas Gerais: «Silva Alvarenga foi a alma da
Sociedade Literária do Rio de Janeiro, além de ter sido mestre de muitos
de seus membros» (1995: 114).
A inter-relação da atividade de poeta com aquelas decorrentes
de sua atuação como ilustrado encontra-se expressa, por exemplo, na
apresentação do poema «Às Artes», recitado no ambiente da Sociedade
Literária, em 1788, em homenagem ao aniversário de D. Maria I. Nos
versos, o desfile das Artes (que inclui a Matemática, a Física Experimental, a História, entre outras áreas de conhecimento, e termina com a
Poesia) caracteriza-se pelo louvor às ciências e define o lugar conferido
à arte poética. Desse modo, são heróis os cientistas que pereceram em
seus ofícios ao mesmo tempo em que cabe à poesia a memória dos feitos: «Mas que ilustre Matrona entre as mais vejo / De verdes louros coroada a frente? Tem nas mãos plectro ebúrneo e lira d’ouro, / Que celebra os Heróis e que eterniza / no templo da Memória o Nome e a Fama /
Dos ínclitos Monarcas» (Alvarenga, 2005: 121). Celebrar e eternizar, ou
ainda, difundir e registrar. A Matemática e a Poesia, enquanto matronas,
efetivariam a relação entre conhecimento e lírica, numa aliança urdida
pela feição política dos versos revelada tanto pelo contexto de exposição
–a Sociedade Literária– quanto na dedicatória à rainha. A atitude pedagógica indicada no poema perpassa, contudo, a obra de Silva Alvarenga,
manifestando-se inclusive em versos de teor encomiástico. Assim como
a sátira, o encômio participa do entendimento da poesia como deleite e
utilidade, pois o louvor dedicado a figuras públicas como o Rei D. José
I e o próprio Marquês de Pombal representa a defesa das políticas por
eles representadas, a exemplo das mudanças educacionais relacionadas
à promoção das ciências.
Silva Alvarenga, entretanto, amarga o confinamento até 1797,
quando é libertado por não haver evidências suficientes de sedição. A
publicação de Glaura: poemas eróticos de um americano, de um modo
geral, apontada como seu melhor trabalho pela crítica que lhe é dedicada, ocorre após sua libertação, em 1799. Vem a falecer em 1814 e deixa
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
41
como legado uma biblioteca particular importante que contava com pelo
menos 1500 volumes (Morato, 2005: LVIII). De todo modo, destaca-se
como, na trajetória do poeta luso-brasileiro, a poesia esteve consideravelmente, integrada à atuação como educador e defensor do progresso
alcançável apenas com o desenvolvimento da ciência moderna. Dessa forma, ainda que se assuma que o pensador do século XVIII estaria
muito mais próximo do realismo científico e ali estão se constituindo
as suas bases, importa, no ponto de vista adotado para a discussão do
período, a compreensão de que há condicionamentos históricos a que
se deve submeter a verdade científica. Nesse sentido, deve-se trabalhar
na tensão que se institui entre a compreensão do pensamento do homem setecentista, sem o que se incorreria em grosseiro anacronismo,
e uma abordagem pautada em uma discussão contemporânea sobre o
tema. Não se pode esquecer de que é precisamente a discussão que tem
sido feita na atualidade que enseja a iniciativa de estudar as relações entre literatura e ciência entre luso-brasileiros do século XVIII. Ou ainda
como afirma Michel Serres: «A vida presente faz viver a de ontem, não
o contrário» (2007: 158). Sem dúvida, o debate que vem sendo realizado
por estudiosos da literatura, da ciência, da história e da filosofia permite compreender que tal abordagem representa um acesso importante
às questões socioculturais da época. Por essa vereda, as relações entre
literatura e ciência alimentariam o entendimento sobre o papel que uma
e outra vão assumindo na América Portuguesa e em Portugal.
Se, em um primeiro momento, o caráter instrutivo do discurso da
ciência não aparecia dissociado ao divertir, como se apontou no caso de
Buffon, essa indissociabilidade também se dava no ofício do escritor, na
medida em que ao poeta caberia igualmente instruir e deleitar. O processo de especialização e a crescente autonomia da ciência significou também a cisão entre o deleite e a instrução, o que se faz sentir na especificidade progressiva do discurso científico, de um lado, e no afastamento
da poesia «didática» praticada no século XVIII. A instrução, contudo, no
contexto luso-brasileiro setecentista, está vinculada concomitantemente
ao conhecimento científico e ao fortalecimento do Estado português,
uma vez que o desenvolvimento da ciência está atrelado a questões políticas e econômicas na medida em que se assume ser função do Estado
42
CLAUDETE DAFLON
promover o progresso. Isso fica especialmente claro nas reformas educacionais ocupadas na formação de homens públicos, como esclarece
Ana Rosa Cloclet da Silva (2003: 26):
Neste sentido, o homem público projetado pelas reformas pombalinas
do ensino revelava-se o homem das Luzes passíveis de serem incorporadas no Portugal setecentista. Ou seja, aquelas que, fecundando o
sentido pragmático do saber –trazido na essência da proposta Iluminista– viabilizassem a formação de indivíduos tecnicamente habilitados
para uma atuação prática, na solução de questões prementes, que fizessem da ciência e da ética nas quais eram versados, aliados incontestáveis na execução de reformas comprometidas, em todos os níveis, com
a preservação do regime político e da ordem social vigentes.
Numa relação, porém, na qual o que dizer torna-se crescentemente mais importante que o como, observa-se igualmente a ascensão
do prestígio da ciência sobre a literatura. A esta, contudo, caberia ainda
uma função instrutiva, ao passo que se recalca a diversão no âmbito do
conhecimento. Nesse sentido, em certa medida, a literatura constituiu-se
enquanto espaço de divulgação científica. Para uma apreciação desse
aspecto, todavia, é necessário compreender a articulação da produção literária com os espaços de sociabilidade, já que agremiações intelectuais
representavam ambientes em que se propunha a difusão do conhecimento com vistas à sua desejável universalização. Bibliotecas, academias e museus exemplificam formas de organização, sistematização e,
consequentemente, de disseminação do saber. A respeito disso, Jonathan
Israel, professor da School of Historical Studies em Princeton, assinala
o progressivo estabelecimento, na Europa iluminista, de uma esfera pública de debate, com troca de ideias e formação de opinião, que incluía
desde enciclopédias, bibliotecas até cafés em conjunto com a crescente
circulação de jornais (2009: 91-92). A divulgação científica parece instituir-se, assim, a partir dessas esferas que se desenvolveram desde o
século XVII, mas, no caso da América Portuguesa, o veto à publicação
pode ter sido um fator importante para o papel dado às sociedades.
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
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Autores como Ildeu Moreira e Luísa Massarini, ao discutirem a
divulgação científica no Brasil, enfatizam, porém, a importância do funcionamento da Imprensa Régia a partir de 1810, pois: «textos e manuais
voltados para a educação científica, embora em número reduzido, começaram a ser publicados ou, pelo menos, difundidos no país» (2002: 45).
Sob esse aspecto, quanto ao conteúdo das publicações de O Patriota,
periódico que circulou entre 1813 e 1814, os autores observam que «vieram à luz vários artigos de cunho científico ou divulgativo, alguns dos
quais remanescentes de textos apresentados à antiga Sociedade Literária.
Silva Alvarenga publicou nele vários poemas nos quais abordava temas
ligados à ciência» (Moreira; Massarini, 2002: 45). Ao apontarem, de um
lado, a publicação da poesia de Alvarenga junto a textos «científicos» ou
«divulgativos» e, de outro, a reprodução de poemas já apresentados em
encontros da academia (caso de «Às artes», no número 6 do jornal, em
1813),13 os pesquisadores expõem o valor de divulgação científica que,
em algum grau, teria sido alcançado por determinada produção literária
da época. Além disso, é relevante a presença de poemas do autor de
Glaura em um periódico que «foi o primeiro jornal brasileiro a publicar
artigos densos e analíticos sobre ciências e artes, cultura e letras» e que
pretendia «formar leitores, agricultores, homens de ciência, escritores»
(Kury, 2007: 9 e 10).
Todavia, a difusão ou promoção, via versos, do conhecimento
científico operava-se no final do Setecentos tanto em reuniões de letrados quanto em publicações aprovadas pelo Estado português, particularmente quando representavam apoio às políticas implementadas e às
medidas destinadas ao desenvolvimento das ciências. O alcance desses
espaços de sociabilidade merece maior investigação, como sugerem em
afirmações como a de Gustavo Tuna (2009: 225):
A publicação do livro de Vicente Coelho Seabra, Elementos de Chimica, dedicado à Sociedade Literária do Rio de Janeiro, sugere que a
13 Nas edições de O Patriota, foram localizados os seguintes poemas de autoria de Silva
Alvarenga: «Apotheosis poetica» [a Luiz de Vasconcelos] (n.º 2, 1813), «No dia da
inauguração da estátua equestre de D. José» (n.º 3, 1813), e, por fim, a sátira «Os vícios» (n.º
4, 1813).
44
CLAUDETE DAFLON
agremiação capitaneada por Silva Alvarenga, com os limites impostos
pela colônia, fez parte de uma rede de intercâmbio científico que suplantava os limites da capitania do Rio de Janeiro.
Nesse contexto, não se pode pensar separadamente a poesia de
seus espaços de publicização, em especial se considerarmos a sua articulação com a promoção das ciências. Ainda nesse sentido, a atuação do
letrado, à maneira de Silva Alvarenga, estaria de acordo com o pragmatismo da ilustração portuguesa. Por conseguinte, para abordar um autor
como o poeta da Sociedade Literária, faz-se necessário, em primeiro
lugar, buscar estabelecer a visão que o homem do século XVIII tinha
sobre a atuação como poeta e a sua relação com a ciência. Para tanto,
tendo em vista o caráter histórico da relação entre literatura e ciência,
deve-se aferir em que medida, quando na Europa a ciência já buscava
descolar-se da literatura, a poesia, no contexto luso-brasileiro, se constituía aliada do desenvolvimento científico, no que pese a ambiguidade
da aproximação de discursos que pareciam se encaminhar para fins distintos. Nesse sentido, a condição de educador efetivamente catalisaria
essa relação, afinal a necessidade de difundir a ciência e certificar sua
relevância numa sociedade que oferecia evidentes obstáculos a seu desenvolvimento passaria, obrigatoriamente, por uma atitude pedagógica.
Diante disso, pretende-se, em vez de recalcar a complexidade
implicada numa abordagem que considere as relações entre ciência e
literatura, explorá-la. De maneira que, no processo de pesquisa, se busque apreender a estrutura reticular constituída por diversas linhas que
seguem em diferentes direções, entrecruzando-se em mais de um ponto
e mais de uma vez. Desse modo, tratar da poesia de um ilustrado e poeta setecentista luso-brasileiro como Manuel da Silva Alvarenga implica
considerar as perspectivas que o atravessam. Para tanto, faz-se necessário seguir as diferentes linhas nas múltiplas direções que seguem: o
entendimento do processo de formação das ciências modernas e o enfrentamento das particularidades do contexto luso-brasileiro; os caminhos dados à educação em Portugal e seus domínios; a reflexão sobre
a Ilustração portuguesa em suas especificidades; e a tradição literária
Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros
setecentistas
45
que aponta os percursos assumidos pela poesia no século XVIII, o que
obriga o estudo do verso tal como praticado, suas filiações e sua inserção
em práticas consolidadas. Essas instâncias entrecruzadas nos oferecem
a imagem reticular postulada. Nela, os pontos de contato entre os fios e
a direção que tomam devem ser permanentemente levados em consideração. O conhecimento oferecido pelos estudos contemporâneos sobre
literatura e ciência aponta para essa complexidade, desconstruindo modelos rígidos na abordagem da questão, como aqueles constituídos por
fórmulas dedicadas à identificação de influências e ratificação de lugares
de poder. A contribuição da filosofia da ciência é realmente importante
nesse sentido, pois coloca sob suspeita a autoridade científica. Por outro
lado, voltar-se para o literato do Setecentos com esse olhar significa
avançar em relação aos debates sobre aspectos da poesia neoclássica e
elementos da nacionalidade atinentes à América Portuguesa, ou seja, representa a possibilidade de colocar em cena outras questões implicadas
na atuação dos homens das letras nesse período.
Por outro lado, embora a estrutura reticular proposta represente
tanto a multidisciplinaridade e a descentralização derivada da multiplicação de pontos de cruzamento, o escopo do trabalho investigativo em
andamento é produzir crítica literária. Em outras palavras, não se tem a
pretensão de desenvolver uma pesquisa de história ou filosofia ou educação, por exemplo. Sem perder de vista o desafio de lidar com a complexidade do objeto tratado, propõe-se uma escritura organizadora, no
caso, a do crítico de literatura. Todavia, é preciso estar ciente do risco
de simplificação ou de reducionismo, muitas vezes, inevitável. Quanto
a isso, é pertinente considerar a discussão metodológica realizada por
Miriam Limoeiro Cardoso na introdução a seu trabalho sobre a ideologia do desenvolvimento no Brasil. Apoiada, entre outras referências, na
contribuição de Gaston Bachelard, a autora apresenta o conhecimento
como uma aproximação, o que se explicaria pelo entendimento do objeto de conhecimento enquanto formulação, construção distinta daquilo
que seria o «objeto real». E, vale destacar, esse processo de construção
seria inerente ao desenrolar da pesquisa. Ou seja, parte-se de um conhecimento que dirige o olhar do pesquisador e assegura-lhe a formulação
de um objeto que, entretanto, termina por lhe impor novas realidades
46
CLAUDETE DAFLON
e exigir renovadas reconstituições. Assim, o dinamismo impresso na
pesquisa supõe uma permanente reformulação que pode terminar por
subverter a teoria que impulsionara o projeto para lhe indicar diretrizes
novas e diversas. E, sobretudo, o objeto de pesquisa se apresenta como
algo não previamente dado em «estado natural» (como poderia fazer
supor uma perspectiva positivista do pensamento), mas como uma construção, uma vez que «a estruturação do real como objeto, longe de ser
um defeito, é o próprio meio pelo qual opera o conhecimento científico»
(Cardoso, 1978: 35).
Logo, não se acredita ser possível a apreensão do objeto estudado em sua totalidade, mas isso não deve ser confundido com o recalque
da complexidade que parte, entre outras coisas, do reconhecimento de
sua natureza multifacetada.
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«Cantando espalharei por toda a parte»
Estratégias de marketing político no
Barroco: os emblemas fúnebres em
honra da rainha D. Maria Sofia Isabel
FILIPA MEDEIROS
Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos (CIEC)
Universidade de Coimbra
RESUMO
Sendo conhecido o aproveitamento político das cerimónias públicas promovido pelas
cortes barrocas, os contornos deste fenómeno no contexto português, na sequência
da Restauração da Independência, constituem uma mais-valia para a recuperação da
imagem do Reino a nível internacional. Entre as estratégias propagandísticas desenvolvidas pela dinastia bragantina, cumpre salientar a aplicação da emblemática às manifestações de arte efémera, que sobreviveram através de testemunhos escritos, como
acontece com a descrição dos emblemas fúnebres em honra da rainha D. Maria Sofia
Isabel. A abordagem hermenêutica destes textos numa perspetiva sociológica torna-se,
portanto, particularmente relevante para os estudos culturais da época, uma vez que
permite estabelecer pontos de ligação intertextual com os livros de emblemas coevos,
ao mesmo tempo que comprova a adaptação à realidade nacional de técnicas de propaganda política de aplicação universal.
Palavras-chave: Emblemática; Arte Efémera; Exéquias; Propaganda; Cortes Barrocas; Repraesentatio Majestatis
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FILIPA MEDEIROS
ABSTRACT
Taking into account the political management of public ceremonies organized by baroque courts in order to promote the royal family, this study intends to analyze the
Portuguese appropriation of that phenomenon, after the Restoration of Independence.
Among the propagandistic strategies supported by the brigantine dynasty, we must
emphasize the contribution of emblematic compositions to develop the ephemeral art,
whose importance was testified by written reports, as the description of funeral emblems in honor of D. Maria Sofia Isabel. Reading this text in a sociological perspective
can provide important information to cultural studies, since it discloses some intertextual connections to contemporaneous emblem books, but also because it demonstrates
the adjustment of universal techniques used by political merchandising.
Keywords: Emblematics; Ephemeral Art; Funeral; Political Marketing; Baroque
Courts; Repraesentatio Majestatis
Volvidos quatrocentos e quarenta anos sobre o dia em que saiu
dos prelos de António Gonçalves a primeira edição d’Os Lusíadas, importa sensibilizar os leitores do século XXI para conhecerem melhor a
finalidade propagandística da obra escrita por Camões, para libertar da
«lei da morte» os feitos e os heróis descendentes de Luso. Confiante de
que o canto épico seria capaz de os «espalhar por toda a parte», se não
lhe faltasse a providencial ajuda de «engenho e arte» (Lusíadas, I.1516), pretendia Luís Vaz exprimir poeticamente o tópico contraste entre
o desejo de eternidade e a consciência da mortalidade, ao mesmo tempo
que perseguia o ideal de Fama, para si, para o seu Povo e para o seu Rei.
Neste sentido, facilmente se estabelece um paralelo entre este mecanismo de divulgação e as estratégias de propaganda ideológica que foram
evoluindo ao longo dos séculos até culminarem nos atuais mecanismos
de publicidade, com ou sem fins comerciais1. Talvez Os Lusíadas pu1 Recorde-se que a «tuba canora e belicosa» inspirada pelas Tágides foi convocada para celebrar a Fama da nação portuguesa num momento em que a dinastia de Avis apresentava
preocupantes sinais de desgaste, assumindo depois de 1580 o estatuto de símbolo patriótico
que veio a acentuar-se na sequência da Restauração da Independência. O «Príncipe dos Poetas» não configurava um mero ícone de orgulho nacionalista, nem a sua epopeia podia ser
equiparada a um vulgar texto de resistência, de que havia inúmeros exemplares na época. A
exaltação da superioridade do génio poético de Luís Vaz envolveu a sua figura com um halo
transcendental, de tal forma que as profecias camonianas e a utopia do Quinto Império são
consideradas «revelações equivalentes da dimensão messiânica da forma mentis do português de Seiscentos» (Pires, 1982: 67). É nesta perspetiva sociológica que deve ser avaliado o
efeito propagandístico da sua obra.
«Cantando espalharei por toda a parte»
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dessem até desenvolver uma receção mais empática com o público hodierno se, em vez de serem apresentados como arquétipo textual de um
género antigo adaptado à história nacional, fosse devidamente valorizado o seu papel político enquanto veículo de transmissão de informação
e, sobretudo, enquanto meio privilegiado de comunicação.
Numa época em que os progressos da imprensa revolucionaram
por completo a circulação de obras literárias e o dinamismo das redes
culturais, as publicações em letra de forma desempenhavam um papel
importante como agentes de propaganda ideológica. Teriam, porém, um
impacto ainda longe da difusão massiva alcançada posteriormente pelos
periódicos e, em tempos mais recentes, pela televisão e pela Internet,
que transformaram o mundo em que vivemos numa «aldeia global»,
como observou McLuhan (2011: 36). Neste universo sem fronteiras,
vigoram as leis do Marketing internacional, ditadas pelos princípios
e pelos fins da sociedade consumista, mas podemos questionar se lhe
podemos verdadeiramente imputar a responsabilidade de ter criado a
máquina propagandística. E até que ponto serão os mecanismos actuais
verdadeiramente inéditos e inovadores?2
Se entendermos a publicidade como a «comunicação paga das
mensagens através de meios impessoais» (Viana e Hortinha, 2009: 379),
imediatamente se percebe que os modernos meios audiovisuais vieram
exponenciar o alcance e os recursos das campanhas de divulgação. No
entanto, se recuarmos no tempo, a definição pode também aplicar-se,
mutatis mutandis, às oitavas camonianas, se as concebermos como
2 Tendo em conta o objetivo de propor novos trilhos de pesquisa sobre o Barroco, pretende-se
com este estudo apresentar uma estratégia de análise textual que estabelece pontos de contacto entre a finalidade pragmática de uma obra propagandística datada de 1699 e os actuais
mecanismos publicitários. Esta abordagem, que procura interpretar os emblemas fúnebres
enquanto produto literário de um determinado contexto histórico-social, pressupõe a aplicação de uma perspectiva hermenêutica já ensaiada por investigadores como Strong (1984),
Grove (2000), Bouzy (2007) e Klecker (2010). Tomando como referência as suas linhas de
orientação, propõe-se, neste trabalho, uma leitura das composições fúnebres como agentes
de propaganda ideológica, de modo a lançar algumas pistas para uma reflexão teórica mais
abrangente sobre o impacto social do fenómeno emblemático em Portugal. Importa, porém,
ressaltar que a aproximação entre as estratégias propagandísticas do Barroco e os mecanismos publicitários hodiernos não implica uma equiparação plena entre a sociedade contemporânea e a realidade do século XVII, trata-se apenas de comparar o funcionamento da máquina
responsável pelas técnicas de propaganda, partindo de um exemplo concreto.
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FILIPA MEDEIROS
agente difusor da autonomia nacional, bem como a outros formatos literários e artísticos que funcionaram como verdadeiros órgãos de manipulação ideológica junto da opinião pública, prestando culto às Musas
e à Coroa portuguesa. Neste domínio, merecem particular destaque as
composições linguístico-visuais que integravam o programa iconográfico dos grandiosos espetáculos festivos das cortes seiscentistas, através
das quais se procurava recriar uma realidade faustosa e capaz de impressionar, apesar do suporte efémero.
De facto, a arte emblemática foi então colocada ao serviço do
Poder das monarquias e barrocas, de modo a explorar até à exaustão a
força persuasiva da retórica sensorial. Para além das pomposas cerimónias, há notícia de outros canais de difusão da propaganda emblemática, como os opúsculos, de que são exemplo expressivo os Emblemes
royales a Louis le grand (1673) de Martinet, publicados em 1673 para
homenagear o Rei-Sol (Grove, 2000: 16). Num momento em que a dinâmica do mapa político europeu agudizava o clima de incerteza, alimentando a volátil rede de influências entre as principais casas reinantes, a
tensão permanente implicou profundas alterações nos esquemas mentais e impulsionou a promoção dos espetáculos. A evolução social ditou,
portanto, a mudança dos códigos estéticos no sentido da exuberância
ornamental, elegendo o convencimento emocional dos sentidos como
veículo preferencial de comunicação entre os diferentes grupos sociais.
Deste modo, a eloquência estética tornou-se uma arma habilmente manuseada pelos governos absolutistas e imperiais, que recorriam a celebrações aparatosas para impressionar os espectadores –diretos e indiretos (Klecker, 2010: 235-262).
Ora, este fenómeno atingiu o auge nas ocasiões festivas de maior
tradição e mais enérgica participação popular –os casamentos e as exéquias reais–, de forma a intensificar, a nível interno, a afinidade com os
governantes, ao mesmo tempo que se publicitava, no exterior, a identidade pátria. De acordo com os princípios da repraesentatio majestatis,
os mecanismos de manipulação demagógica encenavam um convincente teatro didático, transformando as cerimónias públicas num verdadeiro «evento institucionalizado dirigido às massas anónimas e controlado
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pelos detentores do poder monárquico» (Tedim, 2009: 55).3 A instrumentalização política das festas não foi, porém, uma invenção da Idade
Moderna, ainda que tenha florescido nessa época, graças aos expedientes da arte efémera para publicitar os atos comemorativos das famílias
coroadas, recorrendo a ornatos com motivos heráldicos, emblemáticos e
alegóricos em diferentes suportes para construir programas simbólicos
apologéticos da instituição monárquica (Minguez, 2001:130). Procurava-se, acima de tudo, criar uma sinergia popular com epicentro na figura
real, daí que fossem privilegiados os meios de condução das massas
com forte componente visual, que não se limitavam a truques vistosos
como os arcos de triunfo, as máquinas de fogo, os catafalcos e os cortejos. A cenografia espetacular contava também com emblemas, hieróglifos, alegorias e imagens narrativas, misturando os contributos da Pintura
e da Escultura, no sentido de patentear o imaterial pela força persuasiva
do trinómio plasticidade/obscuridade/exemplaridade que estimulava a
memória visual, para conquistar a adesão emotiva do auditório (Bouça, 1996: 10). Assim se fomentava a ilusão de que as congregações e
as associações de fiéis patrocinavam espontaneamente as construções
urbanas de exaltação régia por ocasião das cerimónias, quando, na verdade, eram pressionadas pelas autoridades municipais a contribuir para
os ornamentos das ruas. Por conseguinte, se retomarmos o conceito de
publicidade, podemos afirmar que eram estes festejos os indispensáveis
«meios impessoais» de que os governos se serviam para comunicar a
sua mensagem política, com a agravante de não suportarem a totalidade
dos custos inerentes.
É, portanto, nesta perspetiva que devem ser interpretadas as cerimónias fúnebres que, no verão de 1699, cobriram de galões a capital
do reino para se despedir da sereníssima rainha D. Maria Sofia Isabel.
3 Cumpre advertir que não se pretende inferir da retórica emblemática qualquer intenção de
conferir protagonismo político à massa popular, mas antes mostrar que a sua utilização propagandística procurava assegurar aos governantes a manipulação do povo, seguindo uma
tendência que também se verifica no Siglo de Oro espanhol (Bouzy, 2007). A reconhecida
influência desse movimento sobre a cultura portuguesa do século XVII deve, por isso, ser
tida em consideração para avaliar a pertinência dos laços intertextuais aqui sugeridos entre os
emblemas fúnebres portugueses e as obras de Covarrubias Horozco, Francisco de la Reguera
e Monforte.
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FILIPA MEDEIROS
Tal como nas bodas reais de 1666 e de 1687,4 também no sumptuoso
funeral da mãe de D. João V se apostou na iconografia emblemática para
consolidar a convicção de que Portugal estava a viver uma era dourada.5
A representação plástica dos ideais políticos revestiu os espaços urbanos de encantamento, de modo a reforçar a empatia da sociedade com
o filho do «Restaurador», para que o encontro alegórico entre o cortejo
sepulcral e a turba fortalecesse o sentimento de fidelidade e concórdia,
criando o necessário ambiente de confiança e prosperidade num momento em que o «Pacífico» ainda lutava pela afirmação do seu reinado.
O poder instituído investiu na imagem associada à dinastia de Bragança,
apostando na cultura simbólica para difundir e exaltar a figura régia, ao
mesmo tempo que saíam a lume tratados político-morais na senda dos
specula principis renascentistas.
E se por ocasião da entrada em Lisboa, a receção preparada para
a dama de Neuburg ambicionava coadjuvar D. Pedro II na difícil tarefa
de superar o desgaste provocado pelos acontecimentos dos conturbados
anos de Regência (1668-1683), a verdade é que Tinoco conseguiu arquitetar um programa festivo capaz de apagar da memória o rasto nefando
de D. Maria Francisca de Sabóia. No manuscrito intitulado A Pheniz de
4 À semelhança do álbum intitulado L’Entrée triomphante de Leurs Maiestez Louis XIV... et
Marie Therese d’ Austriche son espouse, dans la ville de Paris (par Jean Tronçon, Chez
Pierre le Petit, 1662), também em Portugal se publicaram registos das bodas reais, de que são
exemplo o Triumpho Lusitano, applausos festivos, sumptuosidades regias nos augustissimos
desposorios do inclito D. Pedro II com a serenissima Maria Sofia Izabel de Baviera, monarchas de Portugal, por Manuel de Leão, Bruxelas, 1688, e a Copea dos reaes aparatos e obras
que se fizeram em Lisboa na ocasião da entrada e dos desposórios de suas Magestades,
Lisboa, 1687. Para além disso, Frei Arcanjo de Aragão editou o Sermão gratulatório e panegírico na próspera e suspirada vinda da Sereníssima senhora Maria Sofia Isabel (Lisboa,
João de Galrão, 1688) e João Coelho de Almeida deu à estampa a Pratica … na entrada que
sua Magestade o Senhor Rei D. Pedro II e a senhora Rainha Maria Sofia Isabel fizeram à Sé
(Lisboa, Miguel Manescal, 1687).
5 Não deixa de ser significativa a incidência da temática política na produção emblemática portuguesa. Para além de o Príncipe dos Patriarcas S. Bento (1683-1690) poder ser entendido
como um manual de educação de príncipes, também o manuscrito das Empresas lusitanas
contra castelhanas empresas e o códice das Festas que se fizeram pelo casamento do rei
D. Afonso VI (1666) estavam comprometidos com a causa régia. Para além disso, há ainda
notícia de um conjunto de emblemas sobre a sucessão espanhola datado de inícios do século
XVIII, no qual é possível verificar que os «jogos de engenho aliam-se à política para dar lugar a uma duríssima diatribe antifrancesa e uma suave condenação antiespanhola» (Martínez
Pereira, 2008: 183).
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Portugal (Ms. 346 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), o
artista deixou um registo ilustrado do espetáculo em que elegeu a mítica
ave como leit-motiv do discurso oficial, de modo a reiterar os augúrios
de renovação e de renascimento para a dinastia bragantina, dependente,
então, do futuro cada vez mais incerto da Infanta Sempre Noiva (Sider,
1997: 67).6
Doze anos mais tarde, o povo português despedia-se da Fénix
alemã, grato pela confirmação dos votos de regeneração anteriormente
formulados. A 4 de Agosto, foi anunciado o passamento da Sereníssima
rainha, cujo corpo foi acolhido em sumptuosos aposentos do paço da
Ribeira, revestidos de carmesim e damasco. Daí saiu o cortejo fúnebre
para São Vicente de Fora, o futuro panteão da Dinastia de Bragança, sob
o pesaroso olhar do rei Pacífico (Braga, 2011: 354). Multiplicaram-se,
depois, as exéquias durante o mês dedicado a Augusto, de modo a difundir o sentimento de pesar por todas as câmaras do Reino e do Império
(Braga, 2011: 358). Estes rituais lutuosos consistiam geralmente numa
pregação evocativa para exaltar as virtudes da defunta, mas podiam ser
enriquecidas com representações iconográficas ou certames poéticos, de
que a impressa coeva deixou farto depoimento.7 Aproveitando a acei6 A missão de Tinoco era associar o nome da nova rainha aos conceitos de bondade, sabedoria
e poder, de modo a suportar a nova dinastia fundada por Pedro II. Para isso, o artífice recorreu
a um símbolo já usado por Leonor de Áustria, rainha de Portugal e de França, na entrada em
Poitiers, quando se oficializou o casamento da irmã de Carlos V com Francisco I. A emblemática desempenhou um papel simbólico muito significativo nas cerimónias fúnebres da família real portuguesa durante o período barroco, tal como demonstrou o estudo de A. Bouça
(1996), e importa recordar que a morte de uma figura régia comovia as estruturas sociais e
proporcionava uma excelente oportunidade para apelar à coesão social. Tornava-se, portanto,
particularmente eficaz a construção de cenas representativas a partir de códigos logo-icónicos, de modo a ampliar o impacto psicológico da mensagem política, combatendo, assim, o
espectro mortuário que se abateu sobre a dinastia de Avis no século XVI. No período filipino,
os rituais fúnebres passaram a apostar na ideia de continuidade e de estabilidade governativa,
ditando uma tendência que se acentuou depois de 1640, enfatizando a dimensão formativa e
performativa da emblemática no programa de afirmação dos monarcas da casa de Bragança.
7 A morte da esposa de D. Pedro II, à semelhança do que acontecera com as bodas, motivou
uma torrente de manifestações literárias e artísticas. Muitas dessas publicações foram impressas In memoriam futuram, como se constata nas recolhas que integram o Catálogo da
Colecção de Miscelâneas da BGUC. Entre os inúmeros títulos, destacamos: Ecco Saudoso
que no Coração do Maior Monarca Justamente Sentido … na Morte… da Senhora D. Maria
Sofia, por Domingos Lopes Coelho, Lisboa, 1699 (Misc. 186, 3221); Eclipse da Fermosura
Observado no espelho da Saudade, por Luís de Siqueira da Gama, Lisboa, Miguel de Deslandes, 1699 (Misc. 186, nº 3222); Epitáfio Saudoso, Despertador Funeral, Escrito na Cinza da
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FILIPA MEDEIROS
tação do público e o consentimento das estruturas administrativas, os
opúsculos desempenharam um papel determinante na construção da
memória da história, na medida em que prolongaram a existência das
cerimónias momentâneas.8 Por outro lado, estes relatos atestam a moda
dos emblemas nas festas e exéquias do império colonial, que viria a
atingir o auge em meados do século XVIII com a figura de D. João V
(Bouça, 1996: 13).
Entre os exemplares evocativos, considera-se de particular interesse o Sermão nas Honras Fúnebres que a Congregação do Oratório
de Lisboa Dedicou à Saudosa Memória da Serenissima Rainha D. Maria Sofia Isabel, pregado pelo Padre António de Faria (Lisboa, Miguel
Deslandes, 1699), uma vez que reproduz um significativo conjunto de
dez emblemas. Apesar de ser conhecida a predileção de Sua Majestade
pelos Jesuítas, não deixara de prover com esmola mensal a assembleia
de fiéis fundada por Bartolomeu do Quental (Braga, 2011: 263), sendo
natural que os Oratorianos retribuíssem, com este tributo, o generoso
Sepultura da Sereníssima Rainha, por Pedro de Azevedo Tojal, Lisboa, Miguel de Deslandes,
1700 (Misc. 186, nº 3220); Ideas da Saudade, Imagens do Sentimento, Formadas na Lamentável Morte da Senhora D. Maria Sofia, por Manuel Pacheco de Valadares, Lisboa, Miguel
Deslandes, 1699 (Misc. 186, 3219); Triunfos da Morte, Despojos da Majestade, por Pedro
de Azevedo Tojal, Lisboa, Manuel Lopes Ferreira, 1699 (Misc. 186, nº 3215); Heptaphonon,
ou Portico de Sete Vozes. Luctuoso Obsequio e Funeral Culto Consagrado à Magestade
Defunta a Sempre Augustíssima Rainha D. Maria Sophia Izabel de Neuburgo, por Pascoal
Ribeiro Coutinho, Lisboa, Manuel Lopes Ferreira, 1699 (Misc. 186, nº 3213). Cumpre ainda
lembrar outras obras de homenagem: Sermão das Exequias da Serenissima Rainha Nossa
Senhora D. Maria Sophia Izabel, pregado na Villa de Santo Amaro das Grotas do Rio de
Sergipe, por Frei António da Piedade, Lisboa, 1703; Sentimento Lamentavel, que a Dor Mais
Sentida em Lagrimas Tributa na Intempestiva Morte da Serenissima Rainha de Portugal
D. Maria Sophia Izabel e Neuburgo, por Bernardino Botelho de Oliveira, Lisboa, 1699;
Oração Funebre nas Exequias da Rainha D. Maria Sophia Izabel, Celebradas na Real Casa
da Misericordia de Lisboa, por D. Diogo da Anunciação Justiniano, Lisboa, 1699; Relaçam
da Magnífica e Sumptuosa Pompa Funeral com que o Real Convento de Palmela da Ordem
Militar de Santiago Celebrou as exéquias da Sereníssima Rainha N. Senhora D. Maria Sofia
Isabel de Neoburg, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Domingos Carneiro, 1699 (Misc. 186,
nº 3214).
8 O falecimento de uma figura régia criava a necessidade de colmatar a falta da pessoa que
representava o centro do mundo político e espiritual, por isso se procurava representar a sua
presença nas exéquias através de imagens simbólicas. Se fosse o rei a morrer, recordava-se
a memória dos seus feitos e vitórias. No caso de ser a rainha, destacava-se as suas virtudes,
procurando associá-la a um ser divino, destacando o seu papel de mediadora entre o soberano
e o povo (Pérez, 2010: 63).
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donativo.9 Se pensarmos que o patrocínio e mecenato constituem, ainda
hoje, excelentes formas de publicidade, no âmbito das relações públicas
(Viana e Hortinha, 2009: 397), percebemos melhor o alcance da relação
interativa do Paço com as instituições da Igreja e torna-se também mais
relevante o facto de ter sido divulgada em suporte perene uma espécie
de «reportagem» da cerimónia.
Para além do sermão, a publicação apresentava uma descrição
pormenorizada dos Emblemas colocados no túmulo honorário que a
Congregação do Oratório de Lisboa dedicou à Sereníssima Rainha (…)
nas exéquias que lhe celebrou em 21 de Agosto de 1699, através da
qual se pode constatar que este monumento in memoriam, embora resultasse de uma iniciativa privada, tinha assimilado a ideologia política
veiculada pelas estruturas propagandísticas coevas. As composições depositadas junto do esquife vazio pretendiam presentificar a figura régia,
evidenciando inegáveis afinidades temáticas com a tendência barroca
para concretizar o ideário governativo em imagens sumptuosas, através da representação simbólica das virtudes principescas. Deste modo,
à semelhança do que acontecia nas festividades nupciais, os artifícios
visuais apareciam dispostos com o objetivo de representar os conceitos
teóricos de forma atrativa e percetível até para os menos cultos (Strong,
1984: 162).
De acordo com o registo que chegou até nós, os emblemas sob
escopo, na sua versão primitiva, seguiam o formato tríplice cristalizado pelo Emblematum liber de Alciato (1531). Envolviam, porém, uma
dimensão hermética mais aligeirada, muito distinta das composições
logo-icónicas acessíveis apenas a leitores eruditos, aptos a mergulhar
nos meandros da hermenêutica para descodificar o labirinto de sentidos entre lema, gravura e epigrama. Na emblemática aplicada, total9 Inspirado pela associação romana fundada por São Filipe Néri, em 1564, Bartolomeu do
Quental instituiu na capital lusa a Congregação do Oratório, no ano de1659. Sendo capelão
e confessor da Casa Real desde 1654, o padre conseguiu o apoio da rainha D. Luísa de Gusmão para o seu projeto. Os estatutos, confirmados pelo Papa Clemente X por breve de 6 de
Maio de 1671, previam a autonomia de cada casa e elegiam como competências essenciais a
assistência aos doentes, aos pobres e aos presos. Acolhida sob a égide dos pais de D. Pedro
II desde os primórdios, seria, portanto, inevitável que a Congregação prestasse o seu tributo
à benemérita rainha.
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FILIPA MEDEIROS
mente direcionada para um público múltiplo e massivo, predominava o
intuito de tornar evidente uma determinada mensagem através de ícones
vulgarizados (Ledda, 2000: 252). Tão vulgarizados se tornaram que as
descrições impressas pouco depois dos festejos raramente copiavam as
ilustrações, substituindo-as por um breve apontamento ecfrástico.10 Garantia-se, deste modo, «a presença de uma ausência» icónica, com a
vantagem de reduzir consideravelmente o orçamento, para além de simplificar o processo editorial, que não podia ultrapassar o período mais
favorável para rentabilizar a oportuna promoção do evento. Recorrendo
ao «fundo comum de figuração plástica» (Infantes, 1996: 104), o relato iconográfico de 1699 procurava, assim, reproduzir uma galeria de
ícones convencionais, com o intuito de retratar as virtudes particulares
de uma Rainha conhecida pela fertilidade, pela devoção extrema e pela
prática de obras de misericórdia, de acordo com os moldes da pietas
austriaca (Braga, 2011: 258).
Torna-se, por isso, necessário explorar o painel em dois níveis de
abordagem, esclarecendo, por um lado, a relação intertextual com a rede
de referentes culturais e, por outro, o mosaico intratextual de elementos
significativos. Estas linhas de análise confluem, de imediato, para eleger
o motivo mais proeminente no conjunto emblemático: o símbolo solar,11
que se reflete de forma direta ou indireta em cinco composições.12 A
10Seguindo a tendência europeia, a emblemática também marcou presença em muitas ocasiões
solenes da corte portuguesa, que foram depois passadas a escrito por espetadores mais ou
menos comprometidos com a causa política. De facto, esses relatos eram sempre pensados
em função de um público-alvo elitista, a quem convinha relembrar e pormenorizar a arquitetura efémera dos programas iconográficos, ainda que o género estivesse longe de atingir
o esplendor das publicações espanholas do mesmo tipo. Na descrição das bodas de D. João
V com Maria Ana de Áustria (1708), disponibilizada pela Idea Poética Epithalamica Panegyrica (Lisboa, Of. de Valentim da Costa Deslandes, 1709), está bem patente a moda da
representação emblemática, que se manteve em momentos estratégicos do reinado joanino,
atingindo o apogeu aquando da célebre troca das princesas (Tedim, 2008: 310).
11Não será de todo mera coincidência o facto de este ícone ocupar também um lugar estratégico
nos emblemas evocativos de outras figuras pertencentes à dinastia bragantina, como acontece
no Tumulus Serenissimi Principis Lusitaniae Theodosii de Luís de Sousa, e na Relação do
Magnífico e Celebre Mausoléu que erigiu a Santa Igreja Cathedral do Porto nas Funerais
Exéquias da Sereníssima Senhora D. Francisca (Lisboa, Bernardo Gaio, 1736), bem como
na Descripção Fúnebre das Exéquias que a Bazilica Patriarcal de S. Maria Dedicou à Memória do Fidelíssimo Senhor Rei D. João V, composta por Bento Morganti (Lisboa, Francisco da Silva, 1750).
12Nos livros de empresas, contrariamente ao que acontece no Emblematum Liber, Hélios gran-
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metáfora heliocêntrica ilustrava perfeitamente a ideologia teocrática da
respublica christiana, porque favorecia a identificação do poder régio
com uma imagem teológica de tradição ancestral. Por outro lado, a predominância de uma figuração luminosa no retábulo sepulcral obedecia
a uma chave de leitura em que as imagens serviam a ideia principal
de elevar a alma à glória eterna (Tedim, 2008: 314). Nesta perspetiva,
importa salientar que os emblemas fúnebres da princesa palatina não só
refletem o ideário político da época como também traduzem um importante depoimento sociológico sobre a figuração tanatológica no remate
do século XVII.
De facto, a pedagogia escatológica apregoada pelas artes moriendi13
influenciou de forma indelével a textura dos emblemas, como fica patente logo na primeira composição:
jeou grande popularidade. No tratado intitulado Dialogo delle Imprese, Giovio estabeleceu
cinco princípios normativos do género, defendendo a justa proporção entre alma e corpo; a
obscuridade mediana; o aspeto agradável; a ausência de formas humanas; e a seleção de um
motto estrangeiro, breve e ritmado (1574: 12). Ora, a terceira regra enunciada sugeria precisamente que a bella vista fosse conseguida através da introdução de corpos celestes, abrindo
caminho à franca utilização destes elementos, o que legitima também o seu lugar de honra na
enciclopédia de Picinello. No capítulo V do livro primeiro, o tratadista apresenta o Sol como
embaixador, por excelência, da Graça divina, do nascimento de Cristo, da sabedoria de Santo
Agostinho e da virtude de Maria. Piério Valeriano, por sua vez, reservou o livro XLIV para
expor o significado do apolíneo astro, da Lua e das estrelas, esclarecendo que o primeiro era
sinal distintivo de Deus, bem como de Cristo renascido, para além de simbolizar a Luz, o Poder supremo, a Verdade e a Vida (1602: 469). Segundo o intérprete dos hieróglifos, o círculo
solar, quando pintado entre as nuvens, evoca o efeito regenerador da Eucaristia e o poder da
Fé sobre as trevas, ou seja, a vitória da Luz sobre o caos, da Verdade sobre a mentira, e da
Omnipotência sobre a mediocridade. Daí que esta carga semântica fosse aproveitada pelas
empresas que constituíam uma parte essencial da linguagem dos festivais régios. Recorde-se,
a título de exemplo, o aproveitamento do ícone solar no carrossel de 1612 para celebrar o
casamento de Luis XIII com Ana de Áustria, sendo essa a figuração decorativa dos escudos
ostentados pelos aristocratas mais importantes. Seria talvez este um passo decisivo no percurso da metáfora heliocêntrica até que, em 1663, Luis XIV a adotou como divisa pessoal,
sob o lema Nec pluribus impar (Strong, 1984: 26).
13No século da Grande Reforma Católica, deu-se uma extraordinária divulgação dos manuais
de preparação para a derradeira viagem, que sofreram concomitantemente uma alteração
significativa face à tradição medieval. Os compêndios mais antigos seguiam de perto o ritual
da extrema-unção, ministrado pelo padre já na iminência do derradeiro suspiro, indicando as
orações e as formalidades a cumprir. O objetivo primordial das artes moriendi renascentistas,
por sua vez, não era o de salvar o moribundo in articulo mortis, mas o de ensinar os vivos a
preparar antecipadamente a morte, através de uma pedagogia ao longo de toda a sua estadia
60
FILIPA MEDEIROS
Emblemas Colocados…, 1699, p. 45, Emblema I (exemplar da BNP, disponível em http://purl.pt/23503).
A nota ecfrástica, cumprindo a dupla intenção de reavivar a memória dos que viram e estimular a imaginação dos que não viram as
pinturas originais (Infantes, 1996: 102), descreve uma águia imperial14
pintada sobre as nuvens, sob o lema Semper augusta. Segue-se uma
explicação que parafraseia o epigrama latino, de modo a relacionar a
origem alemã de D. Maria Sofia com a ave de Zeus, ao mesmo tempo
que esclarece a sua ligação umbilical ao mês de Augusto.15 Para além
na Terra. Um dos pioneiros desta didactologia moralizadora foi Santo Inácio de Loyola que
apresentou, nos Exercícios Espirituais (1548), algumas técnicas de meditação metafísica
para exercitar aturadamente. A formação catequética invadiu, assim, a esfera doméstica de
Católicos e Protestantes, dando origem a um multifacetado fenómeno de receção que também
chegou a Portugal, onde há registo de, pelo menos, uma tradução de Bellarmino (Escada
para subir ao conhecimento do Creador pella consideração das creaturas; traduzida de latim
em portuguez por Belchior Anriquez, Em Lisboa, por Pedro Craesbeeck, 1618) e inúmeras
adaptações autóctones no período barroco.
14Este símbolo universal da paternidade, do poder e da capacidade intelectual, agraciado com
o dom de contemplar o Sol, foi associado a S. João Evangelista e a Cristo, uma vez que
as asas estendidas lembram os recortes do trovão e da cruz (Picinello: 263). Sendo uma
imagem arquetípica de iniciador e psicopompo na cultura oriental, também a tradição cristã
lhe reconhece poderes sobrenaturais, como o rejuvenescimento e a vitória sobre a morte.
15Sendo filha de Filipe Guilherme, duque de Neuburg, de Julich e de Berg, eleitor palatino
«Cantando espalharei por toda a parte»
61
de ser o animal alado mais difundido nas empresas e nos emblemas,
a águia representa o nível supremo de poder, fortaleza e amor (García
Arranz: 154) e quando aparece figurada em voo ascendente, como se
tentasse chegar ao Sol, simboliza o homem que procura a Sabedoria,
ultrapassando todas as adversidades. A empresa de Giovan Battista Rasario, composta por Contile para realçar o percurso do académico indiferente a invejas e críticas (Ragionamento, 1574: 158v),16 exemplifica
cabalmente essa aceção da imagem:
Contile, Ragionamento,1574, f.158v.
O emblema evocativo da consorte de D. Pedro II deve, todavia, ser interpretado no contexto de um discurso tanatológico construído
e sustentado por uma moldura sociológica específica, com o objetivo
de obedecer a motivações concretas, que passavam pela preocupação
propagandística de colorir um retrato post mortem capaz de afirmar a
personalidade régia, vincar a hierarquia social e exaltar a glória humadesde 1585, D. Sofia descendia de um dos príncipes alemães que elegia o sacro imperador
romano-germânico, cujo brasão representava uma águia. No que diz respeito às efemérides
de Agosto aqui aludidas, convém recordar que a rainha nasceu no dia 6 do mesmo mês e
ano em que Lisboa acolhia a primeira mulher de Pedro II (Braga, 2011: 268).
16Também Camerarius reproduziu a ave real sob o mote Non captu facilis para figurar um
ânimo tenaz, que voa por cima das dificuldades (Symbola, 1596, cent. III, emb. 16: 28-29).
FILIPA MEDEIROS
62
na (Bouça, 1996: 24). À luz destes fatores, o ser alado seria entendido
como uma alma desejosa de chegar ao Pai, depois de contornar todos os
obstáculos terrenos, de modo a corporizar a postura devota preconizada
pelas «artes de bem morrer». Tal como a ave imperial, também a Rainha
vivera em função do Astro-Rei, o que correspondia a cumprir com fortaleza os ditames do seu Senhor –leia-se, D. Pedro II, na Terra, e Deus,
nos céus. E este seria, afinal, um modelo completo para colocar diante
dos súbditos.
No emblema seguinte (1699: 46), que toma como corpo o girassol, persiste a apologia da obediência ao poder temporal e à soberania divina, comummente associados ao Sol. Neste caso, recupera-se
a simbologia do heliotrópio, exaltando a sua capacidade de seguir os
apolíneos raios até ao ocaso,18 de modo a louvar o amor que a duquesa
palatina votou a Cristo, imitando-o até na idade com que deixou a Terra,
como se explicita na glosa que esclarece o lema e prepara a interpretação das quadras. Note-se que a introdução deste paratexto que sintetiza
de forma quase redundante as ideias versejadas na subscriptio de cada
composição parece querer suprir o efeito retórico das gravuras. Desprovida da componente visual, a emblemática aplicada via comprometida a
descodificação instintiva e a compreensão imediata das mensagens, que
asseguravam a captação de massas através da «aplicação dos sentidos»
(Praz, 1975: 170). A explicitação dos versos, preferencialmente escritos
em castelhano, à exceção dos epigramas latinos que figuram no primeiro
e no derradeiro emblema, mostrou-se, então, oportuna pelo seu efeito
iterativo, ainda que a opção linguística não levantasse barreiras comunicativas. Quase sessenta anos depois de o sogro de D. Maria Sofia Isabel ter sacudido o domínio filipino, o bilinguismo exercia ainda grande
influência na produção literária nacional e a escolha de um idioma estrangeiro pode também ser avaliada como uma decisão estratégica para
alargar o campo de circulação do opúsculo, como defendem as teorias
de marketing internacional (Viana e Hortinha, 2009: 380).
17
17Este símbolo foi igualmente explorado nas exéquias reais de Maria Luisa de Orleans (Allo
Manero, 2008: 472).
18O ocaso aparece também nas exéquias de Bárbara de Bragança, em Pamplona (1758), para
ilustrar o fim natural da vida (Azanza López, 2008: 350).
«Cantando espalharei por toda a parte»
63
Além disso, o emblema do satélite solar atesta a fortuna de um
ícone já explorado pela produção emblemática de Vasco Mousinho de
Quevedo Castelo Branco (no Discurso sobre a vida e morte de Santa
Isabel, 1596, E. 45), claramente tributária da divisa de Paradino dedicada a Margarida de França (Devises, 1557: 41). Este tipo de diálogo
intertextual comprova a receção, em Portugal, de autores de referência no âmbito da literatura simbólica, como Valeriano (Hieroglyphica,
1579: 423v), Picinello (Mundus symbolicus,1695: 650) e Covarrubias
Horozco. Os espetadores mais cultos poderiam recordar, diante deste
emblema sepulcral, a figura do estiolado heliotrópio debuxada numa das
Empresas morales (1610: f. 112), mas deveriam igualmente reconhecer
a originalidade da associação entre a idade da Rainha e a permanência
de Cristo entre os homens:
Covarrubias Horozco, Empresas Morales. 1610, Cent. 2, emp. 12, f. 112
Ainda que a cultura espanhola marcasse uma presença incontornável nas Letras lusitanas, a coroa portuguesa já não temia o inimigo
ibérico e para a construção dessa estabilidade muito tinha contribuído
aquela que seguiu sempre «al sol de justicia Cristo» e «non pudo vivir
más que el», como se afirma no emblema V, sob o mote «Non omnino
recedo» (‘Não desapareço por completo’). A principal garantia da dinas-
64
FILIPA MEDEIROS
tia bragantina era, sem dúvida, a vasta prole que a princesa de Neuburg
gerara. Apesar de ter falecido o primogénito, D. Maria Sofia deixava
seis estrelas19 para substituir a sua presença luminosa, como se insinuava na gravura desta composição, de modo a enfatizar a esperança
depositada nos descendentes para perpetuar o brilho materno. Segundo as indicações do Mundus Symbolicus, tal imagem sideral costumava
ser aplicada para figurar as graças concedidas pela Virgem Maria, fonte
primordial de luz (Picinello, 1695: 17), enquanto o crepúsculo aparecia
frequentemente associado à morte de Cristo e dos príncipes (Picinello,
1695: 24). A transição natural entre o astro poente e a estrela vespertina
surge, de resto, nos emblemas gizados por Francisco de la Reguera por
ocasião do passamento de Filipe IV (Empresas de los Reyes, c. 1632,
Jeroglifo I: 255), transmitindo aos súbditos uma mensagem de consolação e de expetativa centrada no herdeiro Carlos II (Vistarini, 1999: 746).
No momento de ultrapassar a fronteira do horizonte visível, a esposa do
Pacífico deixava meia dúzia de astros capazes de iluminar a noite dos
portugueses, «substituindo de algum modo a sua real presença», como
se sugere na elucidação do quarteto, compensando largamente a triste
despedida.
Assim se concretizava a função lenitiva da mensagem veiculada pelos compostos logo-icónicos da Congregação do Oratório,
procurando animar os súbditos com promessas de alegrias renovadas.
Perseguindo, por outro lado, o objetivo de cristalizar o retrato panegírico de D. Maria Sofia enquanto alma imaculada, reaparece no emblema VI a imagem do astro-rei, desta feita acompanhado por uma
nuvem escura interposta entre ele e a terra, para ilustrar o lema «Não
me prejudica a mim, mas ao mundo». Significa esta metáfora que o
falecimento da Rainha em nada lesaria o seu percurso celeste, pois
vivera de olhos postos no empíreo, conquistando o direito a entrar
no reino dos Bem-Aventurados. Seriam os outros a sofrer a dor da
sua perda, como se lê no quadra, porque tinha preparado devidamente a sua morte e nada havia a temer diante do Último Juízo. Emana
do cenário recriado nesta composição o desígnio de exaltar a virtude
19No emblema X deste conjunto vinha representada a Ala da Sabedoria, suportada por sete
colunas que correspondiam ao número de infantes gerados por Sophia, explorando a ambivalência onomástica.
«Cantando espalharei por toda a parte»
65
inatingível do monarca, abençoado com a imperecível graça divina
(Picinello, 1695: 13-15). Convém, todavia, acentuar que o composto
lusitano recupera, mais uma vez, uma paisagem adotada num tributo
evocativo a um monarca castelhano. Na Descripcion de las Honras
que se Hicieron a la Catholica Magestad de D. Phelippe Quarto en
el Real Convento de la Encarnacion (Madrid, Francisco Nieto, 1666),
Monforte glosou o mote bíblico «Vsque ad occasum laudabile» para
enfatizar a plenitude virtuosa do percurso traçado pelo seu soberano
(apud Vistarini, 1999: 744). Partindo desta conceção idealizada da figura régia, também a peregrinação terrena da Sereníssima majestade
é apresentada como espelho de virtudes e, portanto, fonte de eterna
saudade para toda a Humanidade.
Esta convicção sobrevém reforçada no último exemplar do corpus heliocêntrico selecionado. De facto, o emblema VII elege como motivo um eclipse lunar20 para ilustrar o lema latino «Terra tegitur, cum lumine plena» (‘A terra esconde-a, quando está cheia de luz’). A ocultação
de Selene mereceu larga fortuna na emblemática política e religiosa,21
contudo, a proposta de Giovio é uma das que mais se aproxima da imagem aqui sugerida, ainda que evolua num sentido distinto:
20No manuscrito da Phenix conservado em Coimbra, datado de 1687, figuram dois emblemas
que revelam a habilidade do autor para manipular o material simbólico. Um deles pinta uma
flor desvanecida, o outro aposta na comparação entre o sol e a lua em termos que poderiam
perfeitamente ter sido usados nas exéquias da rainha (Sider, 1997: 69-73).
21Na obra intitulada Idea de un principe politico christiano pode observar-se uma empresa que
aborda a imagética lunar sob o lema Censurae patent (Saavedra Fajardo, 1655: 90), de modo
a lembrar ao governante a obrigação de transmitir ao reino o brilho inspirado por Deus. O
Mundus Symbolicus, por sua vez, associa o eclipse da Lua à dor de Maria no monte Calvário
e à ingratidão dos soberbos (Picinello, 1695: 45). No entanto, o sentido que mais se adequa
ao contexto fúnebre é talvez o da felicidade incerta, lembrando ao homem a debilidade da sua
condição precária (Picinello, 1695: 46).
66
FILIPA MEDEIROS
Giovio, Dialogo dell’ imprese, 1574: 54.
O teórico italiano pretendia mostrar as consequências nefastas
das trevas que por vezes afastam o Homem do caminho da verdade (Dialogo, 1574, emp. 42: 54). O emblematista português, pelo contrário, visa
associar a Rainha ao exemplo máximo de perfeição moral, aproveitando
o fenómeno astronómico para exprimir de forma poética a condenação
que a obrigava a descer ao reino das sombras, depois de ter preenchido
a vida com «obras de luz» (v. 6). A subscriptio formula, porém, a promessa de «renascer mais clara» (v. 8), reproduzindo a crença cristã na
Ressurreição das almas, que facilmente encontraria eco no coração de
todos os fiéis, espectadores ou leitores dos emblemas fúnebres em honra
da mãe de D. João V.
Ainda que seja impossível reconstituir por completo o papel desempenhado pelos compostos logo-icónicos no palco das exéquias, o
depoimento que debelou as contingências da sua natureza efémera permite, contudo, aferir algumas informações importantes para o retrato
sociológico do evento. Em primeiro lugar, as produções fúnebres sob
escopo revelam total domínio da ars inerente à criação de emblemas
«Cantando espalharei por toda a parte»
67
heróicos, dado que respeitam os preceitos técnicos que previam a criação de uma composição alegórica singular e una, a partir de um modelo
tradicional e de uma estrutura complexa (Picinello, 1695: §II). Por conseguinte, a interpretação de cada um dos exemplares implica uma perspetiva holística, que deve levar em consideração os reflexos do universo
cultural coevo e as características individuais da personalidade evocada.
Nos finais do século XVII, os dispositivos logo-icónicos marcavam presença incontornável no programa das festividades régias,
em Portugal e na Europa, acompanhando a mutação destas iniciativas
propagandísticas, que evoluíram da inicial representação ideológica da
ordem política para a expressão do seu preenchimento na figura do monarca (Strong, 1984: 171). Essa tendência justifica o facto de os emblemas astrológicos terem constituído um verdadeiro subgénero dentro
das figurações festivas, e em particular das exéquias, uma vez que os
príncipes absolutistas absorveram a metáfora do astro-rei, sobretudo no
período correspondente ao reinado de Luís XIV. Em rigor, no mundo
pós-copernicano, tudo girava à volta de Hélios (Strong, 1984: 26), pelo
que o destaque concedido ao motivo solar nos emblemas evocativos da
Fénix portuguesa deve ser entendido à luz da realidade contextual, que
o associava ao poder temporal, ao mesmo tempo que servia a finalidade
pragmática de ilustrar a esperança no renascimento espiritual para além
do ocaso terreno.
Afigura-se-nos, por isso, pertinente observar que essa sintonia
conjuntural respeita cabalmente um dos princípios básicos da retórica publicitária: a adaptação ao público-alvo e ao objetivo pretendido
(Viana e Hortinha, 2009: 382). Os emblemas de 1699 reuniam todas
as condições para estabelecer uma comunicação eficiente com os interlocutores, mais ou menos cosmopolitas, uma vez que apostavam em
idiomas internacionais, satisfaziam as tendências estéticas europeias e
espelhavam a mentalidade da sociedade ocidental. Lançando mão dos
meios disponíveis, aproveitava-se uma ocasião particular para transmitir
uma mensagem universal, de modo a potenciar extra muros a propaganda produzida por agentes domésticos (Viana e Hortinha, 2009: 384).
68
FILIPA MEDEIROS
Também na organização intratextual deste conjunto se percebe
a aplicação de mecanismos de reiteração e de analogia muito típicos
da linguagem do Marketing político. O próprio encadeamento das
composições visa um efeito amplificador através da reincidência de
uma imagem que assume diferentes matizes semânticos. O Sol entra
em cena como metáfora de Cristo e do Príncipe, ambos seguidos pela
Rainha com a fortaleza de uma águia e com a fidelidade constante do
girassol. No entanto, graças a esse esforço de imitação, também D.
Maria Sofia se transforma em fonte de luz: no emblema das estrelas,
ocupa o lugar central para transmitir esperança; ao enfrentar a nuvem,
traduz um exemplo de Fé; na figuração da lua cheia, revela a Virtude
inspirada pelo seu Senhor.22 Pretendia-se, deste modo, figurar três dimensões nobres da princesa de Neuburg, focando a sua dignidade natural, política e moral (Sider, 1997: 78), com o objetivo claro de fixar
um retrato panegírico na memória coletiva do presente e do futuro.23
Reconhece-se, portanto, nestes expedientes logo-icónicos a mesma estratégia dos recursos convocados pelo discurso de sedução das
campanhas publicitárias atuais, uma vez que procuram chamar a atenção com palavras e estimular o interesse com imagens, de modo a criar o
desejo de perceber a mensagem, memorizando-a e pondo-a em prática,
de acordo com os conceitos-chave sintetizados na sigla AIDMA. O efeito persuasor dos emblemas nas massas anónimas foi testado e comprovado, nos séculos XVI e XVII, pelo ensino jesuíta, pelo movimento contrarreformista e pelas instituições políticas, apresentando, afinal, muitas
semelhanças com as estratégias de marketing vorazmente exploradas
22Os restantes emblemas deste conjunto representam outras virtudes morais. Os ponteiros de
um relógio marcam doze anos de Temperança vividos no trono (E. III) e a balança simboliza
a Justiça (E. IV), enquanto a árvore carregada de frutos ilustra a liberalidade da rainha e suas
obras de misericórdia (E. IX). A finalizar a sequência, pinta-se a Piedade sob a forma de duas
coroas (E. IX) e o palácio da Sabedoria (E. X).
23O intuito morigerador é, de resto, proclamado abertamente no sermão que os participantes
das exéquias ouviram enquanto observavam os emblemas fúnebres na cerimónia de 21 de
Agosto de 1699. «Grande parte deste meu sermão é moral, dirigida puramente a introduzir
desenganos e a desterrar pecados» (p. 3), afirmava Frei António de Faria. Seguindo na sua
prédica as orientações do Concílio de Trento, o orador decidiu «pregar anunciando aos fieis
com brevidade e facilidade de palavras os vícios que devem evitar e as virtudes que devem
seguir» (p. 5), por isso viu na morte precoce da Rainha um eloquente protótipo de desengano
e de virtude.
«Cantando espalharei por toda a parte»
69
pela sociedade consumista. A apetência pela iconografia chegou ao clímax no período barroco (Praz, 1975:15), mas vivemos uma nova era em
que a paixão pelos idola ultrapassa todos os limites. Por conseguinte, ao
compararmos os programas propagandísticos das festas organizadas pelas monarquias absolutistas com os hodiernos métodos de promoção política devemos analisar com algum relativismo o conceito de inovação
na arte da comunicação. Será que cada época cria teorias publicitárias
específicas? Ou será que tudo se resume, afinal, à variação de formas,
não muito diferentes, de «cantar» e «espalhar por toda a parte»?
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Moema, um episódio romântico
no Barroco brasileiro e suas
projeções até os nossos dias
MARIA APARECIDA RIBEIRO
Universidade de Coimbra
RESUMO
A história de Caramuru, lendária ou não, foi registrada ainda no século XVII, pela
História e pela Literatura, como demonstram os textos de Frei Vicente do Salvador
e de Gregório de Matos. Foi, porém, com o poema de Durão, em 1781, que ela se
tornou conhecida na Europa. Ferdinand Denis, encantado, divulgou-o. Com o texto,
viajou o romântico episódio de Moema, que nadou atrás do barco de Caramuru até
perder as forças e afogar-se nas águas do mar. Garrett viu na personagem o exotismo
brasileiro, e utilizou-a em O Brasileiro em Lisboa, assim como em Helena, romance
que deixou inacabado. Outros artistas românticos, porém, viram em Moema uma espécie de Ofélia e foi com esse rosto que a personagem figurou em romances, quadros e
óperas, no Brasil e na França. O único autor parnasiano brasileiro que fala de Moema
prefere fazer de sua voz um elemento fantasmagórico da paisagem da Baía de Todos os
Santos e o neorromântico português João de Barros, inscreve-a como «a pobrezinha»
que Caramuru não esquece, numa história para crianças, onde o náufrago português
é o grande herói. O Modernismo brasileiro desconstrói a História e inocula o riso no
episódio de Moema, que deixa de ser a mulher desprezada, para ser a que bateu o record do amor e da natação, na poesia de Murilo Mendes. Mas o fantasmagórico volta
à cena com um Caramuru arrependido, num poema de Eugênio Gomes. Atestando a
difusão e sobrevivência da lenda, Olga Savary, ainda adolescente, retoma-a e escreve
um poema que irá rever para o incluir quando reúne sua obra. No século XXI, o riso e
72
MARIA APARECIDA RIBEIRO
a desconstrução da História voltam a surgir, dessa vez no cinema: Moema não morre e
divide pacificamente com Paraguaçu o amor de Diogo Álvares, mostrando a poligamia
como um traço da cultura brasileira. A última versão conhecida da personagem é a que
constrói António Machado, romancista português nascido em 1952.
Palavras-chave: Literatura Brasileira e Portuguesa; Pintura; Ópera; Cinema.
ABSTRACT
The story of Caramuru, legendary or not, is linked to fiction narratives of Brazilian
foundation. Literature and History speak about it on XVII century, as evidenced by
Frei Vicente do Salvador and Gregorio de Matos’ texts. It was, however, with the epic
poem of Santa Rita Durão, in 1781, that she became well-known in Europe. Fedinand
Denis, delighted with the poem, published it in. With the text, traveled as well a romantic episode, starring Moema, who swam behind Caramuru’s boat to lose strength and
drown in the sea. Garrett saw in Moema Brazilian exoticism, and used it in Helena, an
unfinished novel, and in «O Brasileiro em Lisboa». But other romantic artists viewed
in Moema a sort of Ophelia and with that face the character appeared in novels, operas
and paintings, in Brazil and France. The only Brazilian Parnassian author who speaks
about Moema prefers to turn her voice into a ghostly element of the landscape into the
Bay of Todos os Santos. João de Barros, a Portuguese neo-romantic author, inscribed
Moema as «the poor girl» that Caramuru do not forget, a children’s story, where the
shipwrecked Portuguese is the great hero. The Brazilian Modernism deconstructs the
history and inoculates laughter into Moema’s episode; she is not a scorned woman any
more, becaming the one that broke both the records of love and swimming. That laugh
and this deconstruction of history will still remain in a 21st century film: Moema is not
dead and she peacefully shares with Paraguaçu the love of Diogo Alvares, showing
polygamy as a sing of Brazilian culture. The last known version of the character is the
one built by Antonio Machado, Portuguese novelist born in 1952.
Keywords: Brazilian and Portuguese Litterature; Painting; Opera; Cinema.
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
73
1.
Desde que se tornou conhecida, registrada por Frei Vicente do
Salvador, que diz ter conhecido Paraguaçu, já viúva de Diogo Álvares
Correia, a história de Caramuru foi glosada pela literatura. Andou também a lenda na boca do povo, pois, bem antes do surgimento do poema
épico de Santa Rita Durão, em 1781, os descendentes da índia «que um
branco dormiu no promontório de Passé» foram objeto da sátira mordaz
de Gregório de Matos, que via, nesses mamelucos, «paiaiás» querendo
ser «caramurus» (Matos, 4 840). E, apesar do gosto do barroco pelo
encoberto, o poema não seria inteligível, se os da terra ignorassem os
fatos e o vocabulário. O tema das origens das famílias brasileiras, que
Gregório, apesar de baiano, denigre com seu olhar de branco formado
em Coimbra e olha através da lente barroca graduada pela «limpeza de
sangue», vem à baila outra vez a partir de 1781, em Caramuru, poema
épico do descobrimento da Bahia, que Frei José de Santa Rita Durão
escreveu em Coimbra e no qual introduziu um episódio romântico, o
de Moema. Divulgado por Ferdinand Denis, que o considera paradigmático da nascente literatura brasileira, e Garrett, com menos destaque,
embora aproveite algumas sugestões nele existentes, o poema épico ganhou fama e, com ele, Moema, a quem autores brasileiros e estrangeiros
foram dando novos contornos, de acordo com o pensamento e a dicção
de sua época.
2.
Ao desenhar Moema —que surge no canto VI, depois que Caramuru resolve embarcar para a Europa com Paraguaçu, que desde o
início o encantara por ser diferente da «gente tão nojosa»—, Durão
coloca-a à frente de «uma turba feminil que nada», como se só as
mulheres se despedissem da filha de Gupeva ou como se Diogo Álvares tivesse arrebatado muitos corações.1 «Não vinha menos bela do
que irada», informa-nos o narrador, acrescentando-lhe um outro traço
1 Embora isso Frei José de Santa Rita não explorasse, pois mostra sempre o vianês
como seguidor dos preceitos católicos, apesar da insinuação de que ele deu
alguma atenção a Moema. Cf: c. VI, XLI, 4.
MARIA APARECIDA RIBEIRO
74
negativo —a inveja, que a fazia gemer. E, se por amor, Moema não se
teria incomodado de seguir Diogo Álvares como escrava, essa humildade dá lugar à altivez, quando pensa que teria uma posição subalterna
em relação a Paraguaçu, que ela chama «indigna», «infame», «traidora» e vê «inferior», «néscia» e «feia» (c. VI, 50 4 8), mostrando, mais
uma vez, a inveja que sente da rival.
O romantismo da mulher que, sem forças para lutar mais e mais
dizer, desmaiou, largou o remo ao qual se apegara, afundou, voltou para
dizer «Ah! Diogo cruel!», e, depois, sorveu-se n’água, não podia ser
desprezado pelos autores românticos, encontrando acolhida na França,
em Portugal e no Brasil. Mas nem só estes reescreveram o episódio de
Moema. Também os parnasianos, os modernistas e os pós-modernos
dele se ocuparam, lendo-o com outras lentes.
2. 1. Se Ferdinand Denis divulgou na França o poema de Durão, em
sua Histoire de La Littérature Portugaise suivie de L´Histoire de La Littérature Brésilienne, Gavet e Boucher, dois autores hoje desconhecidos,
mas que em sua época foram uma espécie de best-seller, publicaram, em
1830, Jakaré-Ouassou, que subintitularam «crônica brasileira» e anunciaram como a primeira obra de imaginação escrita sobre o Brasil.
Tentando aproximar-se o mais possível dos cronistas, Gavet e
Boucher procuravam que o livro tivesse «matéria, caracteres e estilo
histórico». Desejando que o texto «não fosse senão uma sequência de
quadros de costumes sob uma forma dramática», ficaram, porém, temerosos de que a aridez do quadro romanesco pudesse «amesquinhar tudo
aquilo que os selvagens e a Natureza do Novo Mundo inspiram» (1830:
XIII-XIV), e resolveram elaborar uma intriga.
Nela —e para o que importa aqui— Moema é prometida de
Tamanduá. Notando o tratamento diferente que este, de um momento
para outro, passou a dispensar-lhe, ela interroga-o e fica a saber que
o índio apaixonou-se por Inês, filha do donatário Francisco Pereira
Coutinho. Triste, Moema lamenta-se na melhor linguagem romântica:
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
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já não será mais a «liana odorífica» que se entrelaçará «na grande árvore» (Tamanduá), mas a «pomba abandonada no ninho» (1830: 45).
O traço de orgulho e altivez, mesclado ao de paixão subserviente que
Durão lhe imprimira também permanece: a índia afirma-se mais bela
que a rival (que, agora, por ser uma portuguesa,2 é «falsa como os seus
amigos» [1830: 44]) e suplica-lhe que a peça em casamento a seu pai,
prometendo que lavrará a terra, plantará mandioca, preparará a bebida
do companheiro, enfim, que cumprirá todas as funções da mulher índia, só que colocadas no texto como predicados da boa esposa.
Mais uma vez, Moema morre de amor, embora, obedecendo a
uma nova versão da história, não desapareça no mar. Uma profecia de
Murucujé anuncia sua morte e ela, desiludida com Tamanduá, começa
realmente a definhar de tristeza. Recusa mesmo o alimento que Caramuru (conhecedor da influência que as profecias têm sobre os indígenas)
lhe oferece, dizendo que este é fonte de vida. Pede entretanto a Diogo
Álvares que traga Inês à sua presença, para dizer à europeia, «parecendo
reprimir um sentimento de ódio» (1830: 61), que não a odeia e contar-lhe o quanto era feliz antes de a branca portuguesa aproximar-se de
Tamanduá.
Se o traço da paixão e do ódio à rival não abandonam Moema,
Gavet e Boucher fazem-na justa e bondosa ante os olhos dos selvagens.
Antes de morrer, cumprindo a profecia, ela manda também chamar Tamanduá, revelando-lhe que Jakaré-Ouassou, seu amigo, não o traiu, e
restabelecendo o laços de amizade entre ambos. Ao expirar, tem entre as
mãos a mão do amado, que chora, junto com os outros índios, a morte
daquela que é «tão doce, tão boa» e que o amor matou.
2 Note-se aí a condenação dos autores franceses à colonização portuguesa (ideia que perpassa
toda a narrativa), para eles, fonte dos males que atacaram os índios e os dizimaram. Uma
verdadeira campanha é feita no texto de Jakaré-Ouassou: a todo momento os índios exprimem
o seu ódio contra os portugueses, e o narrador, baseado em Alphonse Beauchamp, comenta,
ao descrever o incêndio de Salvador provocado pelos da tribo de Tamanduá aliados aos
tamoios, que eles esperaram cinco anos pelo dia da vingança. Na volta às aldeias, cantando
a memória da ocupação da cidade e da vitória sobre os portugueses, os tupinambás lembram
os tempos de opressão e tirania, quando foram perdendo seu território, suas mulheres e seus
hábitos para o estrangeiro.
MARIA APARECIDA RIBEIRO
76
2. 2. Entre os anos de 1820 e 1826, Garrett escreveu várias composições em que o Brasil é permanentemente referido, embora sempre encarado em função da Europa. Data também dessa época, a ode intitulada «O Ananás», que, certamente, o escritor foi buscar na «enciclopédia
do exótico» ostentada no poema de Durão, apesar de os clichês usados
—«rei dos filhos de Pomona», «fruto coroado»— já virem de cronistas
e poetas que lhe são anteriores. Mas as imagens são apenas os comparantes de um símile: fecundo no exílio dos Açores, o ananás é como o
sábio, que produz na solidão da «ríspida ignorância» que o cerca, como
Filinto Elísio, que poetou «no pântanos de Haia».
Em 1826, Garrett publicava o Parnaso Lusitano, seguindo uma
tendência da época, também observável no «Bosquejo da História da
Poesia e da Língua Portuguesa», que lhe servia de introdução. Nele detinha o olhar mais demoradamente no Caramuru, de Santa Rita Durão:
se o assunto não era verdadeiramente histórico, abundava em ricos e
variados quadros, o que representava «um vastíssimo campo para a poesia descritiva». E havia o episódio de Moema, que o autor das Viagens
na Minha Terra lamentou não fosse mais desenvolvido. E, até aí, talvez o exotismo do nome da selvagem —mais que a ação propriamente
dita—tenha ido ao encontro das suas expectativas quanto à pintura com
a paleta local (era uma reação bastante provável num Garrett que, assumindo a máscara de «Brasileiro em Lisboa», escreveu: «O nome da
mulher é uma das minhas manias». E associando nome e nacionalidade,
classificava de «imitação castelhana» o fato de existirem «Conceições e
Piedades, Penhas, Pilares e até Remédios» [Garrett Ms. 108]).
Se, no Bosquejo, o escritor português fez prescrições relativas à
literatura brasileira, mais tarde passou à prática, embora não chegasse
a publicar o que escreveu. O seu primeiro texto «brasileiro» consta de
dezesseis páginas manuscritas, que José Osório de Oliveira revelou na
Revista do Livro. Chama-se Komurahy, o mesmo da personagem principal de «Os Maxakalis», da autoria de Ferdinand Denis, que o inseriu nas
suas Scènes de la Nature sous les Tropiques (1824).
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
77
As primeiras páginas do manuscrito de Garrett apresentam uma
reflexão do narrador, que se assume português, sobre os males da civilização. Imaginando o sentimento do índio ao pensar-se roubado em suas
terras e escravo do branco, ele discorre sobre a situação das mulheres. E
vem à baila, lembrando a leitura do episódio de Durão e o disfórico nela
contido, o nome da «bela Moema, cujos acerbos lamentos repetem ainda
os ecos do Recôncavo» (Garrett, 1984: III 46).
Mas o nome de Moema voltará a frequentar os textos garrettianos. Em 1845, as páginas de A Ilustração publicavam sob o título «O
Brasileiro em Lisboa» uma carta datada de 22 de Junho de 184... [sic]
assinada por Jacaré-Paguá. Ele, um brasileiro que «há seis meses habitava a terra de meus pais», escreve a uma Moema —a quem dá os epítetos
«caju da minha vida, banana da minha alma, beija-flor de meus pensamentos, ouro-preto da minha saudade, cana-de-açúcar da minha alma,
maracujá-açu do meu coração» (Garrett, 1984: IV 43)— para contar a
mesquinhez de Lisboa, se comparada à fartura do Brasil.
Mais uma vez Garrett vem mostrar-se leitor de Durão, recortando do Caramuru não apenas o nome da destinatária, mas também o do
signatário (Jacaré, um dos guerreiros do poema) e a ideia de fartura que
os versos do poema veiculam (Garrett, 1984: IV 43):
Fazes ideia tu, Moema querida, do que é uma laranjeira aqui? É um
mesquinho e rasteiro arbusto comparado com as nossas. Aqui a natureza não coroou o ananás rei das frutas da terra, nem pendurou a jaca
ponderosa do capitel dórico de verdura que sustenta a cúpula frondosa
dos pomares...
Nos outros manuscritos de «O Brasileiro em Lisboa» constantes
do espólio de Garrett, a situação é a mesma. E porque o objetivo do(s)
texto(s) é uma crítica à invasão da capital portuguesa pela mania de
copiar a restante Europa nos hábitos, a exuberância que se traduz nos
epítetos dirigidos à Moema, assim como o indigenismo de seu nome, do
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MARIA APARECIDA RIBEIRO
de Jacaré-Paguá e do de Curitiba passam a ser lidos, na linguagem do
cotidiano, como marcas da identidade brasileira.
Em 1854, novamente o nome feminino colhido no Caramuru
voltaria à mente do escritor português, mas num romance que deixaria incompleto: Helena. Agora Moema seria, de fato, uma personagem.
Ama da falecida Viscondessa de Itaé e mãe de Frei João Índio, apresentada «bela, como não raro que sejam as mulheres de sua raça, notável
por sua supersticiosa aderência às práticas e crenças dos antigos aborígenes» e caracterizada «como o arquivo de todas as antigas memórias e
tradições deles» (Garrett, 1984: II 45), ela aparece em ação, como uma
feiticeira, e Garrett põe em sua boca as seguintes palavras: «Essa gente
aldeã quer acabar com a nossa raça, fazendo aliança com os Negros,
libertando-os e fazendo-nos trabalhar a nós: o índio, porém, nasceu para
ser livre. Os Brancos e os Negros que façam o açúcar, que cavem a terra,
mas que nos deixem a nossa liberdade e os nossos bosques» (Garrett,
1984: II 164-165).
Curiosa observação de quem, no texto de Durão, morreu nas ondas por amor a um branco! Mas a ideia de que havia ódio entre as raças
que habitavam o Brasil veiculada por essa Moema ativista pode ter sido
incutida em Garrett por Gomes de Amorim, seu secretário e amigo, que
chegou mesmo a dedicar-se ao assunto numa de suas peças.
Ainda dentro do Romantismo, mas agora o brasileiro, surge o
nome de Moema, que não chega a ser uma personagem: Castro Alves
o inclui nos poemas «A Maciel Pinheiro» (1860) e «Quem dá aos pobres empresta a Deus» (1867). No primeiro, a índia é apenas mencionada para que se localize a Bahia ou o Brasil: «Verás a terra da infeliz
Moema/ Bem como a Vênus se elevar da águas» (Alves, 1997: 110).3
3 A interpretação de Miyoshi (2010: 99), que ele próprio admite forçada, não parece correta.
Vênus não é aqui citada apenas porque bela saída das águas como Moema, o que a relacionaria ao quadro de Vítor Meireles, como afirma o estudioso. A menção à deusa parece ter
bem mais com o fato de ser ela a defensora dos heróis portugueses em Os Lusíadas, por ver
neles os seus romanos, fato que a torna aguerrida como Moema. Aliás, as próprias referências
de Castro Alves, nesse poema, a figuras da latinidade (fato que Miyoshi anota) levam a essa
leitura. Por outro lado, Vênus poderia ser também protetora dos brasileiros, descendentes dos
portugueses, que iam lutar contra os paraguaios. Mas há mais uma incorreção na leitura feita
por Miyoshi: o que se compara não é Moema, mas a «terra de Moema»; esta última é que,
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
79
No segundo texto, a bravura da personagem criada por Durão, lutando
contra as ondas do mar para seguir o homem que ama, é o comparante
escolhido para os soldados que lutam, por amor à Pátria, na Guerra do
Paraguai (Alves 1997 80-81):4
E foram grandes teus heróis, ó pátria,
—Mulher fecunda, que não cria escravos—,
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
«Parti —soldados, mas voltai-me— bravos!»
E qual Moema desgrenhada, altiva,
Eis tua prole, que se arroja então,
De um mar de glórias apartando as vagas.
Do vasto pampa no funéreo chão
2. 3. Em 1860, Moema passaria a personagem de ópera. Talvez inspirado em Paraguassu (chronique brésilienne), que J. O’Kelly e J. Villeneuve levaram à cena no Théâtre Lyrique de Paris, no ano de 1855,
mas onde a que «sorveu-se n’água» não figura, Francisco Bonifácio
de Abreu, publicou Moema e Paraguassu, Episódio da Descoberta do
Brasil (1860), vertida para o italiano por Ernesto Ferreira de França. A
ópera, com música do maestro italiano Sangiorgi, foi levada à cena a 29
de julho de 1861 pela Ópera Lírica Nacional.
Moema quase volta, nesse texto, a seu papel primitivo, porém
com mais projeção que na epopeia brasileira. Em 1532, os índios devoaguerrida, levantar-se-ia contra o Paraguai. Aliás, a Bahia é, nesses versos de Castro Alves,
implicitamente comparada a Esparta e Atenas: «Terra de glórias, de canções e brios,/ Esparta,
Atenas, que não tem rivais» (Alves 1997 81).
4 Também aqui o texto de Castro Alves desmente a leitura de Myioshi: o estudioso vê em
Moema uma figura materna, que convoca os filhos à defesa da terra natal. A comparação,
como se pode ver, é entre os soldados e o espírito de luta de Moema, o que, aliás, diz Ramos
Júnior (organizador da edição de Espumas Flutuantes para a Ateliê Editorial) citado pelo
estudioso (cf. Miyoshi 2010 97).
80
MARIA APARECIDA RIBEIRO
ram as vítimas de um naufrágio, pois a Europa lhes traz a morte e toma
a terra que lhes deu Tupã (ideias presentes em Basílio da Gama e em
Gonçalves Dias). Diogo Álvares, como no texto de Durão, escapa da
antropofagia. Com o seu arcabuz, ele maravilhou os indígenas ao matar
um papagaio que passava voando e passou a ser chamado Caramuru,
deus do fogo e dragão potente do mar. Pouco depois desse acontecimento, a tribo que acolhera Diogo e cujo chefe era Tabira entrou em guerra
com outra, liderada por Taparica. Diogo, deixando de lado duas índias
(Moema e Paraguaçu) que o atraíram e que se diziam apaixonadas por
ele, ajudou na luta com a sua arma de fogo e Tabira saiu vencedor. Uma
terceira índia surge nessa nova versão: é Palmira, filha de Taparica, que
lhe pede misericórdia para o pai, que acaba por morrer.
Nesse contexto bélico e romântico em que Palmira, filha extremosa, desmaia ao ver Taparica, seu pai, ferido e derrotado, Tabira oferece por prêmio a Caramuru as duas mais belas índias da tribo — Moema
e Paraguaçu, mas o português tem saudades da pátria e vai contemplar
as ondas. Também à praia vai ter Moema, que Diogo estreita em seus
braços.
Surge, então, no horizonte uma vela: vem de Dieppe e os navegantes conhecem Diogo pela fama. Este resolve ir com eles, pensando
em levar Paraguaçu, como prova das suas descobertas. Moema, entretanto, acorda de um sonho em que viu partirem Caramuru e Paraguaçu.
Por isso, caminha pela praia, fora de si, vestida de branco, como uma
Ofélia indígena. Reiterando todo o romantismo que perpassa o texto, a
moça encontra Paraguaçu e lhe conta o ocorrido. Esta chora comovida,
por achar que vai trair a amizade de Moema, mas, mesmo assim, embarca, com Diogo, que canta uma espécie de resposta à «Canção do Exílio» e uma reiteração das palavras de Gonçalves Dias: «Adeus, montes!
Adeus, vales! palmeiras, aves d’aqui! céu, mais belo que o céu/ da terra
onde eu nasci!». Moema lança-se nas ondas e, como no texto de Durão,
sucumbe.
Se o enredo pouco difere daquele que estrutura o poema épico,
o mesmo não se pode dizer do perfil de Moema. Esta continua bela,
mas sem os contornos de ódio e soberba; ao contrário, ganha o traço de
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
81
amizade e fidelidade. Além disso, sua imagem, de delírio e afogamento,
cruza-se com a de Ofélia, morte que Bachelard liga não só ao suicídio
mas à morte que conserva a beleza do afogado: «A água é o elemento
da morte jovem e bela, da morte florida, e nos dramas da vida e da literatura é o elemento da morte sem orgulho nem vingança, do suicídio
masoquista» (Bachelard, 1989: 85).
2. 4. É exatamente com essa imagem de Ofélia, morta e bela, que, em
1859, Pedro Américo, e, em 1866, Vítor Meireles vão eternizar Moema
na tela,5 seguindo uma direção tomada pela pintura internacional nos
anos 60 —a «batalha de nus», como a chamou Henri Zemer, e que engloba quadros como «O Nascimento de Vênus», de Cabanel, que lançou
a moda das ninfas e ondinas nuas e voluptuosas, e o «Almoço na Relva», onde Manet pintou, num piquenique de homens, uma mulher nua.
O óleo sobre tela de Pedro Américo tem um cenário noturno: a
lua brilha no céu, enquanto uma caravela se afasta e o corpo da índia
morta, flutua nas ondas e vai dando à praia. Parcialmente mergulhada
na água, Moema tem uma expressão serena, mas o viço da beleza e a
energia da personagem de Durão, abandonaram-na: tem a postura de um
objeto à mercê das ondas.
Já Vítor Meireles capta a imagem da índia dentro de um possível: a devolução do corpo, intacto e belo, pelas ondas do mar. Ela está
na praia, numa pose delicada, embora um tanto artificial: tem, cobrindo
o sexo, a tanga de penas rompida, sem no entanto parecer molhada; o
mesmo se dá com os cabelos: espalhados pela areia não têm o desalinho
dos de uma afogada, como tão pouco de uma afogada é sua expressão
facial. Na realidade, Moema parece apenas dormir, pois a sensualidade
e a firmeza das formas não abandonaram seu corpo. A tonalidade da luz,
que tanto pode ser da aurora como do crepúsculo, favorece essa ambi5 Para estas duas representações de Moema, assim como para outras imagens dela traçadas por
artistas plásticos, é de consultar-se à tese de Miyoshi 2010.
MARIA APARECIDA RIBEIRO
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guidade: não se sabe se Moema é a beleza que sonha ou a beleza que a
morte não conseguiu apagar, a beleza incorrupta.6
2. 5. O mito de Ofélia ainda era bastante recorrente na poesia brasileira, uma vez que os poetas finisseculares exploravam a loucura e o
desfalecimento da personagem, depois de os românticos buscarem seus
traços de candura e docilidade. Em 1880, bem antes de Bilac publicar
as suas Poesias, que as histórias da literatura consideram inaugurais do
Parnasianismo, Luís de Guimarães Júnior dava à estampa em Roma, o
seu Sonetos e Rimas, que a Garnier hesitara em editar no Rio de Janeiro.
Escrito a bordo do navio Senegal, o soneto «A voz de Moema» seria
incluído nesse volume.
Tomando por epígrafe as palavras que a índia «disse com mágoa» a Caramuru antes de ser tragada pelas ondas no poema de Durão
—«Ah Diogo cruel!»—, Guimarães Júnior pinta o cenário noturno da
Baía de Todos os Santos: brilha a lua, os barcos estão ausentes, tudo
dorme.7 No entanto, «o bardo», «que tudo vê e em tudo colhe o tema/
que amor produz no flácido quebranto,// ouve pairar nos ares sons d’um
Poema...» (Guimarães Júnior, 2010: 68-69).
Ao contrário dos poetas românticos, que privilegiaram a beleza
da índia que seguiu a nado a embarcação em que Diogo Álvares Correia
ia para a Europa, Guimarães Júnior vai ouvir a voz dela: não, porém,
o que diz (que isso nos lembra a epígrafe), mas a poesia existente no
seu tom de amor desprezado,8 que ele, ao gosto dos parnasianos, colo6 Aliás, o crítico Gonzaga Duque, contemporâneo de Vítor Meireles, foi de opinião que «para
uma afogada cuspida à praia, as formas da índia estão demasiado macias e a cor ainda é muito
quente...» (Duque, 1995: 173)
7 Seria essa imagem noturna inspirada no óleo sobre madeira de Pedro Américo?
8 Como o Parnasianismo brasileiro não só gostou dos temas cultos como dos nacionais, pode
ser que «os sons de um Poema» ouvidos pelo poeta sejam não apenas uma questão de sensibilidade do «bardo» que lhe permite captar a poesia onde ela se encontre, mas memória do
texto de Durão, numa demonstração de seus conhecimentos literários. Até porque, a utilização da palavra «bardo» (« [...] O bardo, entanto,/ Que tudo vê e em tudo colhe o tema/ Que
amor produz no flácido quebranto, [...]») remete para os que contavam as histórias lendárias
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
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ca como mais um elemento da silente paisagem pintada no espaço do
soneto («Ai! é a voz, —a voz, rouca de pranto,/ A triste voz da pálida
Moema!» (Guimarães Júnior, 2010: 68-69).
Talvez o poema de Guimarães Júnior tenha inspirado uma escultura de Moema (1895), em tamanho natural, feita por Rodolfo Bernardelli, que estava em Roma, quando o poeta aí exercia funções diplomáticas e publicou Sonetos e Rimas. Bernardelli, como Pedro Américo
em seu esboço, preferiu recorrer ao momento em que o corpo da índia
afogada ainda não chegou completamente à praia, de modo que uma
parte de seu corpo é dada a ver de forma realista, enquanto outra fica
indefinida, porque imersa na água do mar que forma pequenas ondas.
No final do século XIX, Moema voltaria outra vez à ópera. E
agora como única protagonista, mas outra vez vítima do amor por um
homem branco. Da autoria de Assis Pacheco e com libreto de Delgado
de Carvalho, subiu ao palco do Teatro Lírico, no Rio de Janeiro, em
1894. Encontrada por seu pai, Tapir, nos braços de Paulo, um português,
Moema convence o amante a fugir, mas, para furtar-se à cólera paterna,
mata-se com um punhal.
2. 6. Ainda ligando as imagens de Moema e Ofélia, surgirá, em 1922,
um poema de Hermes Fontes em Despertar, onde a índia, que ganha
inúmeros epítetos —«rosa rubra dos trópicos», «alma-virgem das lendas
brasileiras», «Irmã, pela constância, de Iracema», «virginal Dido-Elissa
das florestas»—, será mesmo chamada «imaculada Ofélia brasileira»,
«Ofélia aborígene» (cf. Fontes, 1922: 51-55). Comparando Moema a
Iracema e a Dido, duas mulheres que também morrem por amor, o poeta
exalta-a, colocando-a acima de Lindóia, que não se matou lutando contra as vagas —apenas deixou-se morrer, picada por uma serpente, para
não ser entregue a outro homem. Mas Hermes Fontes não para aí: cria
um novo mito —o de que Moema virou estrela, ao passar dos braços do
mar (uma apropriação da imagem criada por Manuel Botelho de Oliveide seus antepassados, que une identidade brasileira e preservação de sua memória.
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ra para a Ilha de Maré?) aos do Cruzeiro do Sul.
Em 1928, o crítico e poeta baiano Eugênio Gomes lançou, Moema, livro onde incluiu poema homônimo. Curiosamente, quem fala no
texto é um Caramuru arrependido de haver fugido dos braços de Moema
e que, naquele momento, os procura. Invocando o oceano, ele revê a
índia, «no incêndio molhado do mar» (Gomes, 1928: 14). Ela «dançava
e sorria», numa nau, mas, quando Caramuru vai abraçá-la, embarcação
e mulher desfazem-se «numa florada de espuma» (Gomes, 1928: 16).
Esse abraço, que, de certa forma lembra o de Adamastor e Vênus em
Os Lusíadas (embora com o sentido contrário, porque de prêmio e não
de punição), devolve «a visão perdida e a posse do mundo», ao «que se
perdeu da rota dos descobrimentos», porque «o segredo da terra imatura» (Gomes 1928 16) estava guardado pelo corpo da índia. Moema
identifica-se, assim, no poema de Eugênio Gomes, com a própria terra
brasileira, imagem, aliás, já anunciada quando Caramuru pretende sentir
a «pele tostada e crespa», a «alegria selvagem», a «alegria ingênua» da
índia.
2. 7. A primeira metade do século XX em Portugal reservou a Moema
uma breve passagem.9 Em 1935, João de Barros, revitalizando o amor
por Portugal e suas conquistas, escreve O Caramuru. Aventuras Prodigiosas dum Colonizador Português no Brasil, uma adaptação em prosa
e para crianças do poema de Durão, onde fala do amor, do sofrimento
resignado de Moema (cf. Barros, 31972: 86) e de sua tentativa frustrada
de seguir a embarcação em que Diogo Álvares e Paraguaçu iam para
a Europa. João de Barros apaga as imprecações que a índia dirige a
9 O nome Moema dá também origem a uma peça de Alfredo Cortês: Moema, Episódio
Dramático em um Ato. Trata-se de um texto manuscrito, datado de Oliveira de Azemeis,
17 de agosto de 1940, existente no Instituto de Estudos Teatrais Jorge de Faria (Faculdade
de Letras, Universidade de Coimbra) No entanto, Moema é apenas o nome de uma criança
negra, nascida na África Ocidental Portuguesa, que assim foi batizada pelo padre. Tentando
reproduzir no palco a língua dos negros, que, na peça, têm nomes cristãos (embora ditos de
forma estropiada) e nomes nativos, parece que o substantivo próprio «Moema» soou exótico
ao dramaturgo.
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
85
Caramuru, nesses momentos finais, e não menciona a sua beleza, mas
acentua as cores disfóricas de sua morte, além de —o que está de acordo
com seu projeto— ressaltar a fidelidade do herói: «E Diogo, embora leal
a Paraguaçu, e amando-a mais do que ninguém, nunca mais esqueceu
a imagem de Moema, na ansiedade de deter com as frágeis mãos —a
pobrezinha!— a marcha rápida do navio que dela se afastava…» (Barros, 31972: 92). Moema não é aí propriamente a mulher inesquecível; só
existe para maior glória dar a Caramuru.
2. 8. O modernismo brasileiro e sua irreverência inauguram a desconstrução da História, presente, por exemplo, em História do Brasil
(1930), de Murilo Mendes, que aí inclui uma revisão dos acontecimentos relacionados a Diogo Álvares no poema «O alvo de Caramuru». O
título joga com a ambiguidade: o alvo tanto é a ave10 em que Diogo acertou (na história que dele se conta e que lhe deu origem ao apelido), como
Paraguaçu, uma «pomba», que vem arrulhando e a quem ele, como diz
no poema, numa expressão popular, fato caro aos modernistas, «não
nega fogo». Aliás, a poligamia de Caramuru surge no texto, no mesmo
tom e explica sua viagem com Paraguaçu: «Toda índia que me avista/
me pega pra gigolô// Paraguaçu ficou triste/ Levei ela na fragata/ Ver a
rainha da Europa» (Mendes, 1994: 148). O episódio de Moema é tratado
assim, sem nenhum tom disfórico, despindo de qualquer possibilidade
mítica a sua imagem: «Foi nesse dia que Moema,/ o meu flirt mais puxado,/ Bateu o recórd do amor/ Combinado com o recórd mundial de
natação» (Mendes, 1994: 148).
Na esteira dessa desconstrução da História, Guel Arraes e Jorge
Furtado produziram uma minissérie para a Rede Globo —Caramuru. A
Invenção do Brasil— depois tornada DVD e publicada em livro.11 Dio10No poema, uma pomba.
11O título sofreu uma redução de Caramuru –a Invenção do Brasil, na minissérie e no filme,
para A Invenção do Brasil, no livro, que assim comenta o episódio: «Santa Rita Durão
não conhecia o peixe e inventou que Caramuru queria dizer “filho do trovão”, por causa
do famoso tiro de espingarda. Diz também que Moema morreu afogada […]. No Museu
Nacional de Belas Artes, há uma escultura que representa a morte de Moema. Mas ninguém
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MARIA APARECIDA RIBEIRO
go Álvares é um pintor e amante do nu feminino, que acaba deportado
por haver roubado o mapa que conduziria Cabral ao Brasil. Por isso
chegou antes dele e antes dele conheceu Paraguaçu e Moema, duas índias irmãs, que lhe oferecem a «hospitalidade tupinambá», sem que uma
tenha ciúme da outra.
Um dia, porém, Diogo resolve voltar à Europa numa nau francesa, mas diz que só pode levar uma mulher, pois na sua cultura só é permitida a monogamia. Paraguaçu e Moema, não podendo ir juntas, dão,
amistosamente, a vez uma à outra, o que corrói a rivalidade existente no
poema de Durão. Diogo acaba partindo, e as duas nadam para alcançar
o barco. Paraguaçu vai à frente e dá a mão à Moema, que acaba por desprender-se e não conseguir embarcar, tornando à praia.
Voltando da França com Paraguaçu, Diogo encontra Moema,
agora muito experiente da cultura europeia, em virtude da «hospitalidade tupinambá» que concedeu aos marinheiros que aportaram ao Brasil
nesse intervalo de tempo, e faz-lhe o retrato, tornando-a famosa (uma
alusão à pintura de Vítor Meireles, mas sem as tintas melancólicas do
quadro). Vivendo os três juntos, no paraíso brasileiro, com Paraguaçu
alfabetizada e os índios comerciando cada vez mais com os estrangeiros,
reescreve-se a História e funda-se um outro Brasil; não aquele que foi
civilizado por um português, que cristianizou e casou com uma única
índia, mas o que teve origem na poligamia e nas trocas entre os índios e
povos diversos. Moema perde, portanto, o seu caráter mítico, para poder
ser uma das muitas mães do povo brasileiro.
sabe se ela existiu. E, se não existiu, talvez não tenha morrido […].
Frei Vicente conta que o casal voltou ao Brasil, graças às promessas de Paraguaçu
aos marinheiros franceses de que os apresentaria aos tupinambás como seus
parentes. Chegando aqui, Paraguaçu rompeu sua promessa e os tupinambás
devoraram todos os franceses.
Diogo foi feito cavaleiro real de Portugal por sua ajuda a Tomé de Sousa, em
1549. Foi graças a ele que os portugueses fundaram Salvador, a primeira capital
do Brasil. O Caramuru reinou entre os tupinambás por mais de 50 anos.
O resto é mentira» (Furtado e Arraes, 2000: 8).
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
até os nossos dias
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2. 9. Ainda no século XX, no intervalo entre o riso do modernista
Murilo Mendes e o pós-moderno de Guel Arraes e Jorge Furtado, surgiu
uma como que elegia, escrita em 1951, por Olga Savary, por encomenda
de um jornal carioca: «Morte de Moema», texto que a autora reescreveu
em 1996 e incluiu em Repertório Selvagem (1998: 303-309). Fruto de
seu interesse pela temática indígena, Olga evoca a morte da bela selvagem, a partir do momento em que seu corpo vem dar à praia, como uma
interferência de um «anhangá» ou de um «anhanguera». A partir disso,
lembra o episódio em que a índia nadou atrás da embarcação que levava
Diogo Álvares, e transforma num lamento a curta expressão com que,
no poema épico, Moema reclama do desprezo que Diogo Álvares devotou a seu amor: «Preciso de ti. Chamei de manhã à noite, o Sol ouviu-me
chamar-te, a Lua ouviu o teu nome/ mas nem assim entendeste,/ não
atendeste ao meu chamado,// não pudeste me escutar». E ainda dentro
desse clima um tanto fantasmagórico, ouve-se a voz de Caramuru, «num
vago murmúrio», que o «mar bravo devora»: «Eu não te esqueci», o que
de certa forma reitera a ideia contida no texto infantil de João de Barros
(Savary, 1998: 303-304).
Numa advertência, ouve-se a voz da narradora (que faz questão
de marcar seu olhar feminino, nomeando-se «autora»), chamando à realidade a índia «vestida de sonho» que luta contra as ondas: «Este amor
te mata» (1998: 304). «Mouca», «carrasca consigo» é como se refere
àquela para quem a pátria passa a ser o mar. O «solveu-se n’água» de
Durão passa a «desmancha-se na água/ do Mar Oceano» e traz para a
cena a imagem de Vênus surgindo das ondas, já desenhada nos versos
de Castro Alves acima citados («Do mar alto/ altas ondas/ a tomaram
das águas, /espumas a arrebatam /do remoinho das vagas»), para em
seguida, voltando à praia, assumir, a pouco e pouco, a figura do quadro
de Vítor Meireles, sem faltar o enquadramento da paisagem: «Do flanco
delgado/ descera o enduape […] e desfazem-se as penas/ num rito de dor
[…] os braços inertes,/ fatal abandono[…] No ar consternado/ da praia
deserta/ agora é só sombra/ a natureza/ antes em festa» (Savary, 1998:
308-309).
MARIA APARECIDA RIBEIRO
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2. 10. Depois de mais de meio século afastada do imaginário dos escritores portugueses, Moema volta a surgir num livro em que, se não é
a protagonista, apesar de o título o insinuar, divide com a personagem
principal esse papel. Aliás, o uso da primeira pessoa do plural, no título
com que António Machado batizou o seu volume, publicado em 2002,
mostra essa divisão de papeis: Moema. Ainda Pensamos no Amor.
Português que vive no Brasil, o protagonista encontrou Luísa no
Napolitana, um bar de Belém do Pará, onde trabalhava. Num primeiro
encontro, a moça causa-lhe um impacto: «sentiu o tempo parar e a corda
metálica do coração acelerar um ritmo impossível» e o «olhar de ambos
se cruzou sem réplica nem tréguas» (Machado, 2002: 74). Passou então
a buscar, anunciada pelo perfume, a mulher dos «olhos de amêndoa»,
«olhos negros, brilhantes e profundos pousados sabiamente na pele de
cobre do rosto num mistério felino, atraente e temível como a floresta
que encobre por entre folhagens gigantes e poentes de sonho a aventura,
a tentação, o perigo, o desejo, a onipotência, a conquista, a afirmação e
os medos» (Machado, 2002: 80).
Num segundo e ocasional encontro, conhece-lhe a voz «oriunda de lendas e planícies de índios pacíficos, dos mistérios ardentes das
fogueiras de África a alaranjar a noite, modelada com perfumes do ocidente, funda como um gemido de cântico no eco de uma catedral e perfeita, suave, límpida, doce, como se só a ela fosse possível ter uma voz
assim». (Machado, 2002: 97-98)
A essa imagem ao mesmo tempo carnal e mítica, soma-se outra,
de extrema importância —uma espécie de síntese, memória e identidade—, conhecida no prolongamento desse encontro que dura por três
dias. Luísa diz que descende de português e índia e explica-lhe uma gravura (semelhante ao quadro de Vítor Meireles) na parede de seu apartamento, «o centro daquele universo» —uma índia (Moema), nua, numa
praia, e «uma cobra assassina em contemplações oblíquas» (Machado,
Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções
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2002: 104).12 A índia, morreu na praia à espera de «um marinheiro das
naus de Cabral que prometeu voltar para casar com ela» (2002: 105).
Nesse encontro, o mítico e o exótico vão cada vez mais sendo
incorporados à moça: ela é o (Machado, 2002: 108 e 109).
corpo cobreado nascido da mão de Deus ou, por ordem deste, do Miguel Ângelo português que buscou, nos mistérios e silêncios da floresta
amazônica, a índia perfeita para a escultura mais ousada que agora se
debruçava sobre ele com palavras de ritual, em segredo sussurradas, e
untava-lhe o corpo de poções exuberantes com a maciez da seda das
mãos e com os seios eretos de mamilos rijos cor de lábios […] Era
uma mulher proibida, inventada, daquelas que apenas se olha uma vez
por não se acreditar ser possível. […] É a fronteira do permitido com a
irrealidade […] essa certeza que não se toca mas de que não se duvida,
uma mulher com a infinidade de um horizonte, que domina sem palavras, apenas com os olhos, apenas com um sorriso líquido de aguarela,
uma mulher única que se choca com a simplicidade de uma beleza superior, uma rainha de um país inventado […] aquela que lhe sussurrava
de florestas distantes.
A partir daí, Luísa e Moema confundem-se a ponto de o protagonista, sempre em busca do amor, designá-la com o nome da índia.
Quando ele parte, aquilo que Luísa/Moema lhe diz é uma recriação das
palavras daquela que seguiu a nau de Diogo Álvares: «Eu sei que você
tem que ir, mas não fale nada, não fale sequer que vai voltar» (Machado,
2002: 119).
Luísa/Moema passa a ser uma ideia fixa, uma permanente imagem que ele procura sempre, uma obsessão, que o leva a marcar consulta num psiquiatra. Mas que também o leva a descartar-se de todas as
12 Curiosamente, o autor aqui funde a história de Lindóia (heroína d’O Uraguay)
com a de Moema, o que une duas índias pertencentes a projetos épicos diferentes:
o de Durão, conciliando portugueses e índios; o de Basílio da Gama lamentando
que o vento e o mar tivessem levado os europeus ao Novo Mundo. Apesar
disso, porém, as duas mulheres morreram em consequência do contato com os
portugueses.
MARIA APARECIDA RIBEIRO
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mulheres (as que ainda são memória e as do presente), pois, como diz à
Marga, durante a viagem explicando o porquê do «fantasma» (Machado, 2002: 119):
nunca conseguirás entender que a vida já acabou quando parece que
tudo pode começar, mas apenas começa a busca do que se perdeu na
fronteira que nos divide do passado, apenas começa uma ténue imitação do verdadeiro que nos mata em cada detalhe que denuncia a diferença, apenas se atinge o plágio, o semelhante, mas nunca o original,
nunca o completo, nunca a perfeição nem nunca o amor.
E porque ainda pensava no amor, ele sobrevoaria o mar, «ainda
que em forma de cinzas, a caminho daquele manto laranja tão lindo que
o sol escolhe para adormecer» (Machado, 2002: 179). Afinal, «uma índia o esperaria nas areias brancas de um Atlântico diferente do de Matosinhos», e ele lhe «prometera inverter o sentido da rotação da terra para
se projetar para sempre na lisura acrílica de sua pele, para viver e morrer
nos aromas de selva que lhe invadiam o hálito e os gestos» (Machado,
2002: 179).
Renova-se, assim, o mito de Moema criado por Santa Rita Durão:
por um lado, António Machado acrescenta à beleza da figura o exotismo
e a sensualidade, marcas, para os portugueses, da mulher brasileira; por
outro, apaga os traços disfóricos da mulher desprezada e em desespero,
para imprimir-lhe os da mulher segura de si, da mulher desejada, para
quem o português tem intenção de voltar. Com essa Moema/Luísa, Eros
vence Tânatos e faz dessa narrativa uma permanente fundação individual.
3.
Prometida de Tamanduá e rival não de Paraguaçu, mas de uma
branca portuguesa, Moema morre de amor e em sua própria terra, na primeira apropriação do Caramuru de Durão, um texto escrito na França,
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até os nossos dias
91
por Gavet e Boucher. Bela, estranha e ligada a práticas fetichistas, vista
com certa ironia, o nome Moema teve para Garrett sabor e exotismo
brasileiros. Outros autores românticos, porém, associaram-na a Ofélia
e ela foi a beleza que a morte não corrompeu, ou simplesmente aquela
que, por amor, morreu nas águas. A ópera manteve-a rival de Paraguaçu, mas também a pintou sozinha, vítima de amor correspondido, mas
reprovado, o que a leva ao suicídio com um punhal.
O Parnasianismo brasileiro fez da voz de Moema elemento da
paisagem, enquanto o Modernismo e o Pós-Modernismo oscilaram entre o sacralizar e o dessacralizar sua figura. Em Portugal, no século XX,
ela foi apenas memória da «pobrezinha», para um Caramuru herói, que
serviu de exemplo às crianças, na história contada por João de Barros.
Já no século XXI, no romance de Antonio Machado, voltou a ser um
sinônimo de amor, de exotismo e de Brasil.
Bela, irada, altiva, morta por amor no mar ou na terra, um nome
estranho, índia velha, sabedora dos segredos da natureza, adivinha, rival desprezada, vítima de amor correspondido ou não, Ofélia brasileira, estrela, criatura melancólica, aguerrida, amiga fiel, boa filha, vítima
da invasão dos brancos, espécie de Rebeca, recordista de natação e de
amor, elemento do primeiro triângulo amoroso brasileiro, sinônimo de
exotismo e de Brasil, mãe dos brasileiros, a figura de Moema tem sido
contemplada pela literatura, pela ópera, pela pintura e pelo cinema, do
Barroco aos nossos dias, assumindo contornos que se excluem ou se
contaminam uns aos outros. Que rosto lhe estará destinado nos próximos tempos?
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Antônio de Pádua Danesi. São Paulo. Martins Fontes, 1989.
92
MARIA APARECIDA RIBEIRO
BARROS, João de. O Caramuru. Aventuras Prodigiosas dum Português Colonizador do Brasil.
Adaptação em prosa do poema épico de Frei José de Santa Rita Durão. Lisboa. Livraria Sá
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2010. (Col. Afrânio Peixoto, 93).
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Acesso 16/06/2013.
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das Cruzes. Multimais Editorial Produções; Universidade de Mogi das Cruzes. Rio de Janeiro. Fundação Biblioteca Nacional, 1998.
VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 93-108
D. Francisco Manuel de Melo, autor
e ator da «comédia do tempo»
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
Università degli Studi di Napoli «L’Orientale»
RESUMO
No antigo tribunal grego, a ampulheta ditava quanto tempo os advogados possuíam
à disposição para aduzirem os próprios argumentos de defesa e de acusação. Saber
dosar o tempo, ou seja, saber contar quanta areia se gastava numa exposição a favor
ou contra uma determinada tese, era um sinal de posse autêntica de uma técnica que
tanto podia matar uma vida quanto salvá-la. Imaginemos uma situação um pouco semelhante transportada para o século XVII português, mais precisamente para um canto
esquecido e poeirento da oficina de um caldeireiro, onde dois relógios apresentam as
próprias defesas e justificações por se encontrarem ali. Com este encontro casual e sem
horário marcado se dá início à extraordinária «comédia do tempo». Em boa verdade,
trata-se de uma espécie de peça teatral cadenciada e joeirada pela areia temporal da
crítica, da sátira e da moral. Autor, encenador e, por vezes, ponto desta pièce é D.
Francisco Manuel de Melo. Queremos nortear a análise do primeiro apólogo sobretudo
pelo conceito de tempo tomado de vários pontos de fuga. Começaríamos por afirmar
que neste apólogo D. Francisco Manuel de Melo emprega múltiplos jogos de palavras,
de trocadilhos e de outras estratégias linguísticas como se estas fossem secções cronológicas, isto é, como se cada uma delas servisse de instrumento para ser usado no
momento exato em que o espírito crítico do leitor se encontra pronto e mais idóneo
para perfecionar o objetivo que o autor se propõe. Todo o apólogo primeiro, em que se
dá a interlocução de um relógio citadino com um aldeão, poderia então ser lido como
uma metáfora do tempo, isto é, como uma exposição crítica das fases da vida humana,
e quem melhor para cronometrar senão dois relógios?
94
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
Palavras-chave: Francisco Manuel De Melo; Apólogo; Teatro; Tempo; Sátira
ABSTRACT
In the ancient Greek courthouse, the hourglass reigned supreme for it and it alone administrated the amount of time the advocates possessed to present their arguments of
both defense and complaint. He who could master that amount of time available and
by that I mean, knowing precisely the quantity of sand consumed while presenting a
dispute either for or against said argument, would mean dominating a technique that
could literary save or forfeit a person’s life. Let us then envision a situation somewhat
similar conveyed to Portugal in the seventeenth century, more specifically in a dusty
old forgotten corner in a coppersmith’s workshop, where two clocks present their own
defenses and validations for being in that particular place. With this casual and impromptu encounter, we are presented to an astonishing «comedy of time». It is in fact a
sort of rhythmic type of theatrical play winnowed by the everlasting critique, satire and
moral. The playwright, director and, sometimes, prompter of this pièce is D. Francisco
Manuel de Melo. We would like to start the analysis of the first apologue by taking
special interest in the vanishing points in the concept of time. First and foremost we
can assert that in this apologue, D. Francisco Manuel de Melo uses multiple jousting,
witticisms and other linguistic strategies as if they were chronologic sections, or in
other words, as if each and every one of them acted as an instrument to be used in the
precise moment when the reader’s acute sense of critique is ready to perceive the purpose previously set by the author. The sum of the first apologue, in which the dialogue
between a city clock and a village one, could then be viewed as a metaphor for time
itself, or, in other words, as an exposé of the different stages of life of the human being,
and who better to time it but two clocks?
Keywords: Francisco Manuel de Melo; Apologue; Theatre; Time; Satire
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
95
Figura incontornável do século XVII, D. Francisco Manuel de
Melo causa ainda hoje algum desconforto devido à sua capacidade de
escorregar por entre os dedos do estudioso ou do leitor moderno que
dele se aproximem. Capacidade deveras invejável se tivermos em consideração as metamorfoses que a sua escrita contemplou: crónica, história, novela, poesia, teatro, etc. Bastaria uma simples pesquisa para o
apresentar como o único autor de apólogos dialogais de todo o século
XVII português, facto que por si só merece menção.
Contudo, não pretendemos delongar-nos especificamente na
supramencionada capacidade, mas sobre este tipo de composições, os
Apólogos Dialogais,1 isto é, textos de explícito objetivo moralizante e
moralizador onde as personagens principais apresentadas são objetos
materiais do nosso quotidiano, participantes efetivos da nossa existência –tais como fontes, livros, moedas ou relógios– e que, portanto,
podem ser vistas ou, de certa forma, intuídas como juízes alter ego das
próprias ações humanas; tudo ambientado numa mesa de jogo prosopopeico tão ao gosto deste poliédrico escritor seiscentista.
Logo, interessa-nos examinar o apólogo dialogal primeiro. Para
cumprir esse propósito, nortearemos a nossa análise sobretudo pelo
conceito de tempo tomado de vários pontos de fuga. Começaríamos
por afirmar que neste apólogo D. Francisco Manuel de Melo emprega
múltiplos jogos de palavras, trocadilhos e outras estratégias linguísticas (Chacoto, 2011) como se estas fossem secções cronológicas, isto
é, como se cada uma delas servisse de instrumento para ser usado no
momento exato em que o espírito crítico do leitor se encontra pronto e
mais idóneo para percecionar o objetivo que o autor se propõe. Todo o
apólogo dialogal primeiro, em que se dá a interlocução de um relógio
1 Os Apólogos Dialogais mais conhecidos de D. Francisco Manuel de Melo são quatro: Relógios Falantes, Escritório Avarento, Visita das Fontes e Hospital das Letras. Todavia, no
Hospital das Letras alude-se a um quinto apólogo, isto é, A Feira dos Anexins. D. Carolina
Michaelis (1915) encontrou num manuscrito referência também a um sexto apólogo: O Cabido dos Coches. Apesar de a edição do prof. José Pereira Tavares ter adoptado uma ordem
diferente da da ordem de elaboração do autor (Relógios, 1654; Escritório, 1655; Fontes,
1657; Hospital, 1657), obtendo assim dois volumes grosso modo do mesmo tamanho (vol.
I, Relógios Falantes e Visita das Fontes; vol. II, Escritório Avarento e Hospital das Letras),
optei igualmente por usá-la, pois me pareceu que a sua transcrição, comparada com a edição
de 2007, seguia mais de perto o espírito do autor. Cf. infra.
96
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
citadino com um aldeão, poderia então ser lido como uma metáfora do
tempo, isto é, como uma exposição crítica das fases da vida humana,
pois tal como há um momento para o ludismo e outro para a seriedade,
um momento para o crescimento e a maturidade e outro para a velhice,
a «comédia do tempo» de que fala D. Francisco Manuel de Melo não é
senão o desmantelamento desse relógio que é a sociedade humana, seccionando os seus vícios e as suas virtudes. Portanto, quem melhor para
cronometrar e medir o tiquetaque da vida humana do que dois relógios
que acompanham cada momento seu?
Antes, porém, de nos concentrarmos nas personagens do primeiro apólogo, é mister gastarmos algum tempo com as aventuras do nosso
autor. E aqui as datas, ou seja, a cadência temporal, desempenham um
papel importantíssimo na compreensão da obra em exame.
A 20 de setembro de 1654, conforme se lê na dedicatória ao doutor António de Sousa Tavares, D. Francisco Manuel de Melo conclui a
redação dos seus apólogos. Seriam necessários 67 anos (1721) para vir
a lume a primeira edição impressa e póstuma dos Apólogos Dialogais.
A razão pela qual a sua publicação se delongou bastante, talvez tenha a
ver com as próprias vicissitudes do autor, mas o certo é que o período
de Inquisição que Portugal vivia também contribuiu decisivamente para
esse atraso. A nossa afirmação pode ser confirmada pelo simples folhear
das várias licenças que os diálogos tiveram de obter antes de serem finalmente publicados (cf. Melo, 1959 [1721]: 5-12).
Através dos estudos efetuados por Edgar Prestage (1922: 83-84),
seguidos por José Pereira Tavares (1959: XIII), sabe-se que em 1637
D. Francisco Manuel de Melo fora aprisionado no castelo de S. Jorge
em Lisboa (Esteves, 1969), embora se desconheçam os motivos reais
de tal detenção e a duração da mesma. O facto curioso, e porventura
até casual, para não arriscarmos usar o termo causal, é que esse mesmo
ano coincide com a nomeação de D. Francisco Manuel a acompanhador
do 4.º conde de Linhares, D. Miguel de Noronha (1585-1647), na sua
viagem a Évora, cuja missão era pôr cobro às revoltas populares aí originadas ou então tentar apaziguá-las. Este levantamento insurrecional
testemunhado pelo autor terá sido depois joeirado e posto por escrito em
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
97
outras composições de teor maiormente político (cf. Epanáfora Política; Lourenço, 2011; Vila-Santa, 2011).
Ora, a capacidade de adaptação às situações mais adversas que
se lhe iam apresentando fez com que a confiança que a corte depositava
no nosso autor não fosse ainda posta em causa, motivo pelo qual D.
Francisco Manuel de Melo continuou a obter encargos de elevado prestígio e consequentes prémios pelos serviços prestados.
Por ser filho de pai português e de mãe espanhola (por conseguinte, fluente em ambas as línguas), por ter tido acesso privilegiado a
uma cultura jesuítica e por ter privado com a corte espanhola, que dominava as letras da península ibérica seiscentista, a vida do nosso aventureiro-escritor seguiu um rumo de certa forma ditado e acompanhado
pelas transformações político-sociais do século.
Aquando da Restauração portuguesa em 1640, D. Francisco Manuel de Melo alia-se ao governo espanhol mas nem com essa decisão
consegue manter alguns dos benefícios que granjeara (Lourenço, 2011:
299-305).
Sabemos que é novamente preso e solto passado pouco tempo
(Prestage, 1922: 143; Tavares, 1959: XV). Viaja pela Europa em 1641,
assistindo às negociações de paz entre França e Inglaterra. Por essa época, decide tomar o partido de D. João IV. A sua larga experiência faz dele
um válido aliado nos anos de transição pós-Restauração, porém esse
camaleonismo político não permite que a sua fortuna permaneça por
muito tempo. Em 1644, é novamente encarcerado por suposto crime de
homicídio. Nas palavras de Saraiva-Lopes (172001: 452-3):
Viveu pelo menos quatro anos sob prisão, na Torre de Belém, na Torre Velha da Outra Banda ou no Castelo de Lisboa, com alternativas
de reclusão severa e de simples residência fixa sob menagem, como
competia aliás à sua categoria de comendador da Ordem de Cristo,
ora preparando uma grande parte do espólio que deixou, ora lutando
quer pela reabilitação e liberdade, através das sucessivas instâncias do
julgamento, quer pelo indulto ou comutação da pena em degredo para
98
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
o Ultramar. De estranhar é que, apesar de numerosas diligências, incluindo dois memoriais ao rei, todos repassados de eloquência, e de
uma intercessão pessoal de Luís XIV, o mais que conseguiu foi partir
degredado para o Brasil (1655). À falta do processo, tem-se recorrido,
para explicar o caso, às tradições linhagistas, que ora aludem a um
romance amoroso complicado pela rivalidade de D. João IV, ora possíveis desconfianças deste relativamente à lealdade do fidalgo. Os livros
escritos na prisão trazem a seguir ao nome «Quare?» (Por quê?).
A tomar as palavras de Saraiva-Lopes como fidedignas, deveríamos
imaginar que por «livros escritos na prisão» se deve entender todo o período
negro da vida do autor que vai da efetiva detenção, isto é, 1644, à sua partida
para o degredo no Brasil, em 1655, ou até durante esse exílio. Dado que os
Apólogos Dialogais foram, segundo datação do próprio autor, escritos em
1654, isso far-nos-ia pensar que o objetivo dos mesmos não é somente de
teor moralizante e moralizador –característica aplicável à maior parte dos
textos barrocos–, como também de explícita crítica à injustiça sofrida, uma
espécie de denúncia velada da sua situação pessoal. Assim sendo, creio que
classificar o primeiro apólogo apenas como a aplicação das expressões do
movimento barroco, seria desvirtuar as potencialidades literárias do texto.
Gonçalves (2011: 37), por exemplo, ao afirmar que
O teor da conversa travada pelos relógios falantes (Chagas e Belas)
no primeiro Apólogo da colectânea é o pretexto selecionado por Dom
Francisco Manuel de Melo para dar corpo ao velho tópico literário do
«menosprezo da cidade e elogio da aldeia», bem como aos do «desconcerto e loucura do mundo», do «mundo ao avesso» ou do «mundo
como teatro», tão em voga na tradição literária europeia dos séculos
dourados, com especial incidência para os barrocos.
parece-me querer chamar a atenção sobretudo para as suas características barrocas. Os Apólogos Dialogais, mais especificamente o primeiro,
que será objeto do nosso exame, podem ser considerados jogos de pres-
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
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tígio linguístico em que arte de saber fazer batota e arte de satirizar se
identificam totalmente, isto é, onde o jogo é ganho e a vida é salva se
não se mostrarem os ases escondidos na manga (Profeti, 2011).
Na dedicatória ao doutor António de Sousa Tavares, desembargador dos Agravos, Juiz da Coroa e Primeiro Ministro da Junta de Estado de Bragança, D. Francisco Manuel de Melo (1959 [1721]: 15) parece
aludir precisamente a essa capacidade de se saber fazer batota (Profeti,
2011), de se conseguir mostrar o contrário do que verdadeiramente se
pensa e se quer afirmar: «Já ouviríeis a graciosa indecência com que
disse um dos nossos discretos que a imaginação era curral do conselho,
onde, por não ter portas, todo o animal tinha entrada! Se isto alguma vez
foi verdade, na imaginação dos solitários se verefica» .
Na nossa opinião, o incipit desta dedicatória revela muitos indícios das reais motivações do autor para escrever os apólogos. Em primeiro lugar, ele parte da verificação de que a imaginação, faculdade o
mais ambígua possível, no dizer dos religiosos é o recinto do conselho,
isto é, a faculdade pensante e deliberativa.
Ora, nós consultámos duas edições: a de 1959, ao cuidado de
José Pereira Tavares, e a de 2007, que repropõe a edição de 1968 publicada por Maria Judite Fernandes de Miranda. A edição de 2007 (4),
por exemplo, propõe a palavra «concelho» no lugar de «conselho». A
nosso ver esta correção ou substituição não funciona para os propósitos
do autor. Trata-se de analogias entre imaginação-curral e conselho-casa que resulta precisamente porque nos pratos da balança se encontram
termos do mesmo âmbito familiar. Se substituirmos conselho por concelho a analogia aparece manca e deixa de servir o seu objetivo. Por essa
razão, afirmamos que os animais que entram livremente nesse curral
aberto seriam os pensamentos mais indecorosos e malévolos. Pois bem,
D. Francisco Manuel de Melo, que vê nesta asserção uma ponta de «graciosa indecência», justifica-a usando-a para se defender. Os «animais»
só conseguem entrar no curral se este estiver desamparado, ou seja, se
não estiver protegido ou cercado. Por proteção ou cerco se deve entender a presença material de um recinto ou de um guardião. Dada a ausência deste, só na imaginação=curral dos solitários, daqueles que não têm
100
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
quem os acompanhe, penetra todo e qualquer animal. É precisamente
porque se encontra sozinho em degredo («imaginação dos solitários»)
que o autor admite a hipótese de poder usar de todos meios («todo o
animal») possíveis para construir a sua defesa.
Pensamos poder asserir que D. Francisco Manuel de Melo de
certeza tinha em mente apresentar de maneira sub-reptícia as suas vicissitudes e as do país, por meio de uma mistura magistralmente conseguida pela crítica dos costumes. Tal crítica faz passar pelo crivo os conceitos de aparência e de engano para indicar, também de alguma forma,
que o autor foi injustamente acusado. Digamos que para demonstrar a
sua inocência, D. Francisco Manuel precisará de uma grande dose de
engenho e de imaginação para fazer ver, velando, que o mundo caminha
ao contrário e anda de passo desacertado. A escolha dos relógios, paradigmas da exatidão e da certeza, objetos por excelência representativos
do compasso concertado da sociedade humana, é a melhor forma de pôr
em ato «a comédia do tempo».
Dado que a sociedade a que se refere D. Francisco Manuel se
veste quer com panos citadinos quer rurais, apresentar dois relógios
como bodes expiatórios das maleitas causadas por cada modo de vida
parece-nos a forma perfeita de encenar tal confronto de ideias.
A nosso ver, o primeiro apólogo dialogal pode ele mesmo ser
metafórica e visualmente representado por um relógio a pêndulo. Neste
objeto é necessário haver uma regularidade perfeita na sua oscilação
para que seja um medidor de tempo preciso. Portanto, o mecanismo, no
seu movimento isócrono, deve manter constante a amplitude da oscilação, para evitar variações temporais. Poucos graus são suficientes para
adiantar o relógio, para colocá-lo fora do seu tempo. Eis então a função
do pêndulo, o peso que cadenceia o processo cronológico.
Peguemos nesta breve exposição do mecanismo relojoeiro,2
transportemo-la e sobreponhamo-la à estrutura deste apólogo: em pri2 Em boa verdade, só em 1673, em Horologium oscillatorium, Christiaan Huygens exporia os
princípios da teoria do pêndulo simples e composto, valendo-se da sua experiência parisiense
como construtor de relógios, mas decerto D. Francisco Manuel de Melo, nas suas viagens pela
Europa, deve ter tido a oportunidade de conhecer vários modelos, mesmo os experimentais.
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
101
meiro lugar, o espaço da ação revela-nos que dois relógios, acusados
de mau funcionamento e avaria, se acham agora fora do lugar, isto é,
num canto esquecido e poeirento da oficina de um caldeireiro. Trata-se de uma característica recorrente, pois antes de se encontrarem
neste local, o Relógio da Aldeia dissera: «[...] encomendaram-me a
um alveitar que vivia junto de mim, o qual aceitou logo a comissão,
muito persuadido de que, por eu ser de ferro e ele tratar de ferraduras,
atalharia logo meus desconcertos (Melo, 1959 [1721]: 28); «Relógio
da Aldeia: [...], como vossa mercê melhor sabe, que ninguém val pelo
que é, senão pelo lugar em que o vemos» (Melo, 1959 [1721]: 44).
Em segundo lugar, o tempo. Como tentaremos demonstrar, a
estrutura temporal do apólogo é representada pela escolha das personagens: dois relógios (medidores do tempo acusados de não saberem
medi-lo, portanto, de estarem desafinados, fora de tempo) que discorrem
sobre os tempos que correm. A sua forma de discorrer, que mais não é
do que uma medida, pode ser comparada às fases do crescimento do ser
humano. Vejamos como:
Na infância e na adolescência, dada a imaturidade dos indivíduos, tende a prevalecer o gosto pelo jogo e pela brincadeira. Os dois
relógios que se encontram na velha oficina travam conhecimento por
meio de trocadilhos, interagem através de frases que pretendem espicaçar reciprocamente o adversário, procurando tatear o terreno antes de se
abrirem a maiores e possíveis confidências (Melo, 1959 [1721]: 20-1):
Relógio da Aldeia: Sou, com perdão de vossa mercê, o relógio da vila
de Belas, ou sem perdão, para melhor dizer, porque nunca fiz erro que
se me perdoasse. Parece que só para mim anda o mundo concertado!
Relógio da Cidade: Tá tá tá! Vossa mercê é o relógio de Belas? Grandes cousas tenho ouvido de seu bom gosto! Dizem por cá, finalmente,
que vossa mercê é o relógio de Belas, mas não belo relógio.
[...]
Relógio da Cidade: Quem gostaríeis vós que eu seja? Sou esse cansado, esse negro, esse maldito relógio das Chagas, de Lisboa.
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MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
Relógio da Aldeia: Chagado e ferrugento vejo eu a vossa mercê, para
ser tão grande e tão antigo cortesão, de quem a fama publica mil galantarias.
Relógio da Cidade: Ó saloio, por bom modo me desonrais de mentiroso!
Relógio da Aldeia: E vós a mim de vilão, com bem mau modo!
Torna-se claro pelos trocadilhos –tais como «relógio de Belas...
mas não belo relógio», «relógio das Chagas... que anda chagado», «por
bom modo... com bem mau modo»– e pelos jogos de palavras trocados
pelos dois protagonistas que D. Francisco Manuel de Melo põe em cena
o feitio jocoso e infantil que emerge de um primeiro contacto entre seres
que não se conhecem. As personagens acham-se ainda em fase de ambientação, verificam ingenuamente que está tudo fora do lugar, eles mesmos se acham fora do seu espaço natural; e todavia as aparências dizem
o oposto. Como duas crianças, que se maravilham com a contrariedade
das próprias ações e das de outrem, os relógios meditam precisamente
sobre essa ambiguidade, da qual sobressai um forte relativismo, perigoso sobretudo numa época em que vigorava um absolutismo dogmático.
Em suma, tornam-se relógios amadurecidos. Contudo esse relativismo
das posições aparece disfarçado nos jogos linguísticos do autor, principalmente ao início do diálogo (Melo, 1959 [1721]: 20):
Relógio da Cidade: [...] Contudo, vossa mercê me diga como se chama, que sua gentil presença me promete grande achado em tão boa
companhia.
Relógio da Aldeia: Não se fie em aparências, senhor relógio, porque
dessa maneira nos está enganando todo o mundo e até o mesmo céu,
que cada dia nos aparece azul, não tendo cor alguma. O ofício dos
olhos é ver, chorar e enganar.
Relógio da Cidade: Sem embargo, a agradável presença é como sobrescrito de boa letra, que mostra será a carta da mesma mão.
Relógio da Aldeia: Também nessa pouquidade nos trapaceam os grandes, porque de ordinário o corte não é do mesmo pano que a amostra.
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
103
Relógio da Cidade: Nem a nota, irmã da firma. Mas deixemos para
outra hora o ler por sentença [...].
Desta sucinta troca de galhardetes podemos retirar algumas ilações importantes e significativas. Em primeiro lugar, pensamos ser sintomática a inserção do sentido da vista após se ter dado como exemplo
o céu. Isto porque ao lado das duas funções específicas dos olhos –ver e
chorar– D. Francisco Manuel de Melo acrescenta outra que aponta para
âmbitos bem mais problemáticos, tais como o horizonte do engano. Se
todo o mundo nos engana, inclusive o céu, é porque os nossos olhos não
sabem ver para lá das meras aparências, conceção esta que se liga ao
«curral» mencionado na dedicatória, ou seja, ao facto de não se porem
cercas ao recinto que rodeia o «conselho».
Com estas breves considerações jocosas sobre as aparências, que
levam os dois protagonistas a não se renderem ainda totalmente à aceitação do desengano e da ilusão representados pela realidade, D. Francisco
Manuel de Melo faz um truque de magia para mostrar que, considerando-se apresentados os dois relógios, podem ocupar-se de assuntos mais
graves (Melo, 1959 [1721]: 22): «Relógio da Cidade: Ora, pois todos
somos de campanário, será bom que nos vejamos os jogos, como bons
parceiros. A que vindes a esta casa?».
Trata-se então de um jogo sério que pressupõe a exibição das
cartas que se têm em mãos. Um jogo de adultos, portanto. Como se
verá, os dois protagonistas não voltarão a criticar-se com brincadeiras
infantis, como fazem as crianças. O motivo da sua conversa estender-se-á a assuntos sobre os quais as crianças só sabem pronunciar ingénuas
verdades.
Todavia, a gravidade da situação em que se acham é de certa forma atenuada pela forma como os relógios a enfrentam, de maneira que
pensamos ser central a afirmação do Relógio da aldeia «[...] porque na
comédia do tempo são já tais os nossos feitos, que todos podemos dizer
nossos ditos» (Melo, 1959 [1721]: 27). Esta sentença pode ser tomada,
na nossa opinião, como perno de todo o diálogo. Os dois relógios sen-
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MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
tem-se à vontade para dizer tudo o que pensam dado que os seus feitos já
são conhecidos. Mas em boa verdade, que feitos são conhecidos? Apenas aqueles que parecem ser de domínio geral, ou seja, que «[...] anda
o mundo desconcertado, e o pior é que nos põe a culpa» (Melo, 1959
[1721]: 21).
Por conseguinte, se os factos são estes –e os feitos também–, é
preciso, porém, que se conheçam as razões, é mister que estas sejam
expostas e interpretadas. Eis porque nos parece que se pode também
comparar este primeiro diálogo com um antigo tribunal grego, onde os
advogados eram obrigados a reger-se por um compasso de espera, por
assim dizer. A ampulheta ditava o tempo de que dispunham para aduzirem os próprios argumentos de defesa e de acusação. Saber dosar o
tempo, ou seja, saber contar quanta areia se gastava numa exposição a
favor ou contra uma determinada tese, era um sinal de posse autêntica de
uma técnica que tanto podia matar uma vida quanto salvá-la (cf. Platão,
Teeteto 172 D-E; Butti, 2002: 91-96).
Mas os nossos relógios não tencionam simplesmente contar o
tempo, pelo contrário, é este que conta para eles. Nem estão interessados
em salvar a própria vida. É preciso que no breve tempo que ainda tinham
à disposição se faça clareza sobre a ordem, ou ausência desta, no mundo.
Assim, o medo da morte, face aos ditos e aos feitos sucedidos, não será
decerto o último grão de areia a escorrer na ampulheta do tempo (Melo
1959 [1721]: 25):
Relógio da Aldeia: Cala-te, que te fundirão!
Relógio da Cidade: Pois que importa? Farão de mim campainhas e
então lhes direi por cem bocas o que não querem ouvir de uma! Par
Deus, mas que me fundam, mas que me confundam. Eu hei-de tanger
sempre a verdade!
[...]
Relógio da Aldeia: E tu, amigo, que ganhas em desenganar o mundo,
que se não quer desenganar? O sumo grau da sandice é perder-se um
pelo ganho do outro.
Relógio da Cidade: É nobreza de coração, e ainda proximidade, não
deixar perseverar a ninguém no seu engano.
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
105
Portanto, é de nobreza de alma que falamos, de longe superior
às comodidades que uma vida abastada, embora de enganos, comporta.
Voltando à nossa metáfora, se estivéssemos ainda a olhar para
o pêndulo da nossa sobreposição exegética, veríamos que estaria neste
preciso momento a tocar 18 horas, quer dizer, o desabafo do Relógio
da Cidade em não recear morrer por dizer a verdade estaria a marcar a
passagem da maturidade inicial para a meia-idade avançada.
Ao som do tiquetaque que se apressa a indicar o final do dia,
que é ao mesmo tempo o fim de uma vida (ou de duas, a conclusão do
diálogo permanece em aberto), os nossos dois protagonistas debruçam-se sobre as contrariedades da vida humana, da qual se veem fautores:
«Relógio da Aldeia: [...] Cansado ofício temos: julgar aqueles de quem
havemos de ser julgados!» (Melo, 1959 [1721]: 43).
Não obstante estejam convencidos de que a culpa dos contratempos do mundo depende também da conivência que ambos tiveram
em favorecer a realização de alguns pequenos vícios humanos, os dois
relógios consideram (Melo, 1959 [1721]: 49):
Relógio da Cidade: Dir-vos-ei: todos somos relógios e sabemos que
não há cousa que não tenha a sua hora no mundo. O rir, o chorar, o trabalho, o descanso, a fome e a fartura, tudo tem sua hora: donde procede
que não é fora de razão que os homens tratem tal vez de seu cómodo e
tal de seu aproveitamento, pois é certo que para se regerem e dirigirem
a bons fins e a termos úteis lhes deu Deus entendimento, [...].
O problema é quando se perdem de vista os meios adequados e
justos que levam à compreensão de cada instante, e cada um começa a
usar as horas alheias em proveito próprio, minando assim o sistema que
rege todo o mecanismo. Roubando um pouco de areia ao próximo ou
enchendo até à orla a própria ampulheta, se criam os atritos que levarão
à descompensação do mundo.
106
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
O final da vida, que costuma ser o momento em que se fazem
contas com o que se foi e que se fez, é chamado pelos nossos protagonistas velhice, isto é (Melo, 1959 [1721]: 52-3),
Relógio da Cidade: Eis aí o maior dos mortais, porque a velhice é uma
piedosa estalagem que Deus pôs entre a morte e a gentileza, brio, esforço e saúde. [...] Da mesma maneira, e ainda muito mais necessária,
interpôs a Providência a velhice entre a vida e a morte, para que ali
se domasse a fúria dos afectos e demenuísse a sobejidão do amor da
vida, e o homem fosse perdendo o receio à morte pela conversação dos
achaques e companhia dos acidentes próprios da velhice.
Com este apólogo primeiro, D. Francisco Manuel de Melo recria
uma sociedade que se rege pelo perno do engano e das aparências, onde
cada grão de areia tenta fugir ao seu destino de morte, sobrepondo-se
aos outros tantos grãos de areia que o imitam no desejo e muitas vezes
na forma: prevaricando, lesando e cometendo injustiças. Ao fazê-lo, o
autor além de traçar um esquisso da sociedade seiscentista, desenha ao
mesmo tempo um mapa da sua história pessoal, que o situa como protagonista e padecente dos mesmos enganos supracitados, onde as misérias
do tempo se cruzam com as suas vicissitudes pessoais, onde todos os
grãos de areia se tornam mais iguais uns dos outros. A única diferença,
diferença de peso, que faz pender a balança para o seu lado, é que o
nosso autor consegue satirizar, ironizar mas, sobretudo, raciocinar sobre
o mundo, mostrando abertamente como ele na realidade é: uma comédia. Embora a sua descrição nos possa por vezes soar a tragédia, pela
grande familiaridade que logo sentimos com a nossa realidade hodierna,
D. Francisco Manuel de Melo revela-se um leitor exímio do Banquete
de Platão, pois «[...] o mesmo homem que sabe compor tragédias sabe
também compor comédias» (223 D 2).
Mesmo não possuindo a estrutura de uma peça teatral, o apólogo
primeiro ensina e leva o leitor a esboçar aquele sorriso de cumplicidade
que só se pode verificar entre duas mentes que viajam na mesma linha
D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»
107
de pensamento, ou seja, quando dois ponteiros coincidem para marcar
um toque em uníssono. Tal sorriso, que se deve tornar um riso um pouco
triste, não deve, porém, causar-nos embaraço, pois a larga experiência
do autor ensina-nos também que é preciso saber rir de si mesmo, se se
quiser melhorar a si mesmo e ao mundo (Melo, 1959 [1721]: 55):
Relógio da Aldeia: Bom é saber; e, por mais que se riam de nós, como
dizeis, ninguém vos tire a ciência que sois relógio velho da cidade,
por quem, havendo passado muitas horas, é força que hajam passado
muitos dias, semanas, meses e anos, que são os bancos da escola da
experiência.
Falou assim D. Francisco Manuel de Melo para as orelhas que o
sabiam ouvir, «Relógio da Cidade: [...] Mas não digas que eu to disse!»
(Melo, 1959 [1721]: 65).
REFERÊNCIAS
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MELO, D. Francisco Manuel de. Relógios Falantes. Coimbra: Centro de Estudos de Linguística
Geral e Aplicada (CELGA) da Universidade de Coimbra (a partir da edição de 1968 publicada por Maria Judite Fernandes de Miranda), 2007.
Bibliografia passiva
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2002.
CHACOTO, Lucília. «A presença dos provérbios na obra de D. Francisco Manuel de Melo».
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Melo, Quevedo apócrifo». A.I.O.N. vol. XI, fascículo 1, 1969, pp. 53-76.
GONÇALVES, Artur Henrique Ribeiro. «Dom Francisco Manuel de Melo e a Picaresca: relógios, moedas, fontes e livros falantes». Maria do Rosário PIMENTEL; Maria do Rosário
MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de Melo: O Mundo É Comédia. Lisboa. Edições
Colibri, 2011, pp. 27-41.
108
MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA
HUYGENS, Christiaan. Horologium oscillatorium, cive de motu pendolorum ad horologia aptato demonstrationes geometricae. In La piccola Treccani. Dizionario enciclopedico. vol.
V, Roma. Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1995, pp. 685-6.
LOURENÇO, Victor. «Francisco Manuel de Melo, andanças de um militar». Maria do Rosário PIMENTEL; Maria do Rosário MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de Melo: O
Mundo É Comédia. Lisboa. Edições Colibri, 2011, pp. 299-308.
MICHAELIS, Carolina. «Notas relativas a manuscritos da Biblioteca da Universidade de Coimbra». Boletim Bibliográfico da Biblioteca da Univ. de Coimbra. vol. II, n.os 1 e 2, 1915.
PIMENTEL, Maria do Rosário; Maria do Rosário MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de
Melo: O Mundo É Comédia. Lisboa. Edições Colibri, 2011.
PLATÃO. O Banquete. Trad., intr. e notas Maria Teresa Schiappa de AZEVEDO. Lisboa. Edições 70, 1991.
PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela NOGUEIRA, Marcelo Boeri. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
PRESTAGE, Edgar. D. Francisco Manuel de Melo. Oxford. University Press, 1922.
PROFETI, Maria Grazia (a cura di). Norme per lo spettacolo/Norme per lo spettatore. Firenze.
Alinea 2011.
SARAIVA, António José; Óscar LOPES. «Capítulo II D. Francisco Manuel de Melo». História
da Literatura Portuguesa. Porto. Porto Editora, 172001, pp. 451-70.
TOCCO, Valeria. Breve storia della letteratura portoghese. Roma: Carocci editore, 2011.
VILA-SANTA, Nuno. D. Afonso de Noronha (Vice-Rei da Índia). Perspectivas Políticas do
Reino e do Império em Meados de Quinhentos. Lisboa: CHAM. 2011.
VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 109-120
A devoção mariana no diálogo
português do Barroco
MARIA TERESA NASCIMENTO
Universidade da Madeira e Centro Interuniversitário
de Estudos Camonianos.
RESUMO
Com Fr. Amador Arrais, primeiro, com João Rebelo, depois, através da multiplicidade
de micro-narrativas milagrosas, ou ainda com Brito Alão, no caso particular de Nossa
Senhora da Nazaré, o diálogo português havia já sido expressão de devoção mariana.
A Miscelânea de Miguel Leitão de Andrada, publicada em 1629, prosseguindo na esteira desta vertente religiosa do diálogo, confirma o hibridismo genológico do género
que, se na anterior produção portuguesa não passara despercebido, agora supera essa
propensão. Temas e formas conjugam-se para fazer desta obra um dos mais criativos
diálogos publicados até à altura.
Palavras-chave Diálogo; Miscelânea; Devoção Mariana; Hibridismo; Barroco.
ABSTRACT
With Friar Amador Arrais, initially, then with João Rebelo, through a multitude of miraculous micro-narratives, or even with Brito Alão, in the particular case of Our Lady
of Nazareth, Portuguese dialogue already expressed Marian devotion.
Miguel Leitão de Andrada’s Miscelânea, published in 1629, continuing in the wake
of this religious strand of dialogue, confirms the genologic hybridity of the genre. If
in the previous Portuguese production this had not gone unnoticed, now it overcomes
such propensity. Themes and forms combine to turn this dialogue into one of the most
creative dialogues published to date.
Keywords Dialogue; Miscellany; Marian Devotion; Hybridism; Baroque.
110
MARIA TERESA NASCIMENTO
A Miscelânea, de Miguel Leitão de Andrada, de seu título completo Miscelânea do Sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão Grande, aparecimento de sua santa imagem, fundação do seu convento e da
sé de Lisboa, expugnação dela, perda del rei Sebastiam. E que seja Nobreza, Senhor, Senhorio, Vassalo del-rei, Rico-homem, infanção, Corte,
Cortesia, Misura, Reverência, e Tirar o chapéu, e prodígios. Com muitas Curiosidades e Poesias Diversas, é um longo texto publicado em
1629.
O título, menos habitual no conjunto das publicações em diálogo da Literatura Portuguesa, corre o risco de passar despercebido na
inventariação a que se proceda de um corpus do género. O livro, poucas
vezes objecto de estudo,1 também o não foi ainda na perspectiva da sua
definição genológica.
Muito embora o autor não se refira nunca ao diálogo como forma
de expressão adoptada para o seu texto, preferindo acentuar a vertente
miscelânica, é inegável a inclusão desta obra no grande conjunto em que
também a Literatura Portuguesa quis marcar presença, de modo contínuo até pelo menos ao século XIX. À altura da saída da Miscelânea, o
século XVII tinha já assistido à publicação da História dos Milagres do
Rosário (1602), de João Rebelo, dos Diálogos do Sítio de Lisboa (1608),
de Luís Mendes de Vasconcelos, dos Diálogos sobre a Vida e Morte do
Muito Religioso Sacerdote Bartolomeu da Costa Tesoureiro Mór da Sé
de Lisboa (1611), do Diálogo das Grandezas do Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão, da Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo, e da Antiguidade de Nossa Senhora da Nazaré, de Brito
Alão, este último apenas anterior em um ano ao presente diálogo.
Em três destes diálogos, o culto mariano é nota comum. Depois
de Fr. Amador Arrais no Séc. XVI ter já enaltecido a Virgem, em diálogo, o século XVII volta a insistir na via salvífica que o homem pode
obter por sua intercessão. É esse o sentido dos diálogos de João Rebelo,
de Brito Alão e de Miguel Leitão de Andrada. Neste último autor, o
1 A obra tem sobretudo merecido o interesse daqueles que nela têm procurado identificar composições poéticas, cuja autoria não é indicada no texto da Miscelânea. Igualmente susceptíveis de estimular o interesse dos estudiosos têm sido os capítulos referentes ao desastre de
Alcácer Quibir.
A devoção mariana no diálogo português do Barroco
111
propósito devocional torna-se explícito desde o poema de abertura, um
misto de dedicatória e de invocação à Virgem –«Vós, nom Calíope, me
sei favorável, dando-me azas de dom virtuoso,/ Vós que sois luz, e hum
sol luminoso,/ Que fale de vós, me dai que seja habel» (XV). O Prólogo
ao Leitor Benévolo reforça a declaração do rendido preito à Senhora
da Luz e a necessidade de divulgar as inúmeras mercês recebidas. Miguel Leitão de Andrada, que em nome pessoal se expressará, é o sujeito
sobre quem recaíram as graças de Nossa Senhora. O diálogo assume,
consequentemente, um cunho de veridicção indesmentível, explicado
a partir deste mesmo texto liminar. Falar de si próprio encontraria, nas
suas palavras, justificação em Sto. Agostinho, S. Jerónimo, Júlio César,
Santa Teresa de Jesus, Cornélio Tácito ou Trogo Pompeio que assim
procederam.2 E a natureza do empreendimento legitima a analogia que
o autor funda nas melhores autoridades.
A devoção mariana surge como o único fio condutor capaz de
conferir alguma unidade à multiplicidade de temas que invadem o diálogo de Miguel Leitão de Andrada. Dessa heterogeneidade estava o autor
consciente quando por mais do que uma vez se refere ao seu texto como
uma «selada»:3 «Bem estou vendo que muitos me hão de notar, por verem neste livro (a que me pareceu chamar Miscellanea ou selada, pola
diversidade de cousas que nele vão misturadas)», afirma ele no Prólogo
aos Leitores Benévolos (Andrada, 1867: XX).
Composta por vinte diálogos, a interlocução da Miscelânea envolve primeiro Devoto e Galácio até ao Diálogo X. A partir deste, Crispo vem enriquecer o elenco de personagens, onde se cruzam, de forma
não linear, diversos tempos e espaços: no presente, processa-se a jornada entre Lisboa e o Sítio da Senhora da Luz; no passado, remontando
até à evocação das fabulosas origens de Pedrógão Grande, ou mesmo da
Lusitânia, percorre-se a genealogia dos Leitão de Andrada, com demora
autobiográfica num dos seus descendentes, a personagem de Devoto,
2 A esta última alusão, se referiu já, como provavelmente infundada por se terem perdido os livros deste historiador, Manuel Duarte, na sua introdução à edição mais recente da Miscelânea
(Duarte, 1993: 36 ).
3 Ver, por exemplo, o paratexto que dirige ao «Padre Prior e mais Padres do Convento de Nossa
Senhora da Luz do Pedrógão Grande».
112
MARIA TERESA NASCIMENTO
muito particularmente na sua participação como soldado em Alcácer-Quibir.
Parte significativa do diálogo ocorre com os interlocutores em
movimento, ao longo de diversas jornadas. No início, entre Lisboa e Pedrógão, depois, aqui chegados, em vários dos seus espaços privilegiados
pela Natureza, e previamente agendados de dia para dia.
A abrir o primeiro diálogo, nisso quase só se demorando, ocorre a extensa caracterização do lugar de Pedrógão Grande. A descrição,
profusa, na enumeração e na superlativação dos elementos, atenta à fertilidade do lugar, à riqueza das infindáveis águas que brotam do solo ou
dos penhascos, ao verde exuberante do arvoredo ou às flores de cores
variegadas, à multiplicidade de aves, de peixes, de frutas e de legumes,
oferece contornos edénicos indesmentíveis. A linguagem faz-se poesia e
são agora as muitas ermidas do lugar e dos seus arredores em honra de
S. Sebastião, de S. Dinis, de Nossa Senhora da Conceição, a ser exalçadas em verso, por meio de canção, sonetos, romances, quintilhas, trovas
ou epigramas.
A Devoto, que partira de Lisboa em companhia de Galácio, para
pagar a promessa devida a Nossa Senhora da Luz, caberá em várias
ocasiões, para além da extensa fala inicial, corroborar a excelência do
sítio para onde se dirigem, de bons ares e de boa gente. Será este, cumpre-nos aqui registar, o enquadramento perfeito para a conversação que
mais tarde ocorrerá sob o topos do locus amoenus, numa tradição a que
o texto da Miscelânea se conforma4 e que desde a Antiguidade Greco-latina tem servido de matriz ao género do diálogo. Mas, por enquanto,
Pedrógão é apenas um destino ao qual as personagens só chegarão depois de algumas jornadas. Até lá, Devoto e o conterrâneo Galácio dialogarão sobre diversas matérias, sejam as suscitadas pela sucessividade
de espaços que percorrem, sejam aquelas que mais estritamente se ligam
à devoção mariana, como é o caso de todo o diálogo terceiro, ao longo
do qual Devoto, respondendo à solicitação do interlocutor, dá conta, de
uma forma mais sistemática, das inúmeras mercês com que diz ter sido
4 Consulte-se, a este propósito, Fr. Heitor Pinto. Imagem da Vida Cristã. Lisboa. Sá da Costa,
1940.
A devoção mariana no diálogo português do Barroco
113
favorecido ao longo da vida, desde os sinais da presença divina que lhe
foi dado experimentar logo em tenra idade até aos repetidos modos de
salvamento e sinais milagrosos com que Nossa Senhora quis livrá-lo.
A cada graça, há lugar para promessas renovadas, para a expressão de uma fé em que toda a família dos Leitões se oferece como exemplo, até mesmo em provas de santidade.
O culto mariano é também objecto em Miguel Leitão de Andrada
de manifestações de espiritualidade expressas em diferentes géneros do
modo lírico, contidos tanto na dedicatória como no Prólogo aos Leitores, sem esquecer diversas formas de louvor e de oração propiciadas
pelo desenvolvimento do diálogo e também elas, objecto de poetização.
A presença de Devoto em Alcácer-Quibir como soldado, o relato
da batalha e da consequente retirada ocupam três diálogos. A personagem prodigaliza-nos uma circunstanciada narrativa dos diferentes lances aventurosos em que se viu envolvida, afirmando, contudo, ao leitor:
«o meu intento não é de história (deixando isto aos cronistas) senão
contar-vos de mim na memória das muitas mercês que a Virgem Nossa
Senhora da Luz me fez» (Andrada, 1867: 164).
Se, no que diz respeito ao diálogo terceiro, a narrativa se construiu de modo condensado e retrospectivo relativamente a todo um percurso de vida, agora, em Alcácer-Quibir, acompanhamos Devoto, passo
a passo, não apenas limitando-se a receber ou a interpretar a intercessão mariana, mas intentando antecipar os seus efeitos, através de uma
rogativa que contém quer uma confissão de culpa, quer sobretudo as
virtualidades de uma promessa condicional. Devoto promete uma festa
de celebração da Virgem, se Ela o levar a salvamento. Ouçamos as suas
palavras (Andrada, 1867: 172):
Senhora vós sabeis o que eu posso, e o estado em que meus pecados
me tem posto, isso que eu puder ajudar melhor será pera vos ir fazer
uma festa na vossa casa e sítio, o que vos prometo se lá me levares com
liberdade. Feito este voto e contrato com minha Senhora, permitiu ela
MARIA TERESA NASCIMENTO
114
que desde aqui crecessem ainda mais os trabalhos e perseguições, pera
que eu visse que só ela me tirava deles como por milagre.
Estabelecido o contrato, e posto Devoto em salvamento, ei-lo
perante a necessidade obrigada de cumprir a promessa feita. E é na persecução desse intento que encontramos, desde o início do diálogo, como
já dissemos, as duas personagens a caminho de Pedrógão Grande. Esperaríamos, logo após a fala esporádica de um Cavaleiro, vindo a receber
os peregrinos à chegada, poder ir assistindo aos festejos em honra de
Nossa Senhora da Luz, no decurso da conversação. Não é isso, contudo,
o que verificamos. O relato ulterior do acontecido pertencerá a Galácio
e será propiciado pelo pretexto da ausência de Crispo que, em peregrinação a Santiago, não tinha tido ensejo de participar nesses quatro dias
de festividades.
Galácio não se escusará a tudo descrever, desde o aparecimento
do arauto da Fama, em fantasiada alegoria, até aos pormenores de abundância na hospitalidade com que os peregrinos eram providos. Mais do
que isso, no seu discurso serão lembradas todas as celebrações com que
de forma divina ou profana se quis honrar a Senhora da Luz, a partir de
8 de Setembro de 1612. E não estamos a falar da simples alusão à representação de entremeses ou de uma comédia de Lope de Vega, A Ocasião
Perdida, estamos, sim, a realçar o modo como no diálogo confluem outros registos literários, de entre os quais se destaca o dramático.
O diálogo incorpora, assim, três representações. Na primeira,
desfilam perante o nosso olhar, uma a uma, as nove musas, guiadas por
Calíope metonimicamente, acompanhadas de livros que remetem para
a sua arte, e recitando versos de rendido preito à Senhora da Luz, pelo
saber mais alto que ela detém. Atentemos em alguns excertos (Andrada,
1867: 218-219):
Diz Clio:
De meu saber confusa,
A devoção mariana no diálogo português do Barroco
115
Me venho aos pés diante,
D’outra musa mais nobre e elegante
……………………………………..
Ou Tália:
Já pago vassalagem,
A quem o Céu reserva,
Por quem sendo Senhora já sou serva.
…………………………………….
Ou ainda Melpomene cantará:
…………………………………..
Com alegres discantes,
Direi divinas prosas,
Que logo Virgem o são quando são vossas
A representação, longa, e dançada, contempla ainda a entrada de
meninos a quem as Ninfas fizeram portadores de ramalhetes de flores
que, depois de entregues às Musas, serão por elas oferecidos à Senhora.
Após esta dança, surge um Colóquio em verso, em castelhano,
representando, sob vestimenta de pastores, as três pessoas da Santíssima
Trindade, competindo entre si para ver que atributos cada uma daria
a Nossa Senhora. Esta dramatização, que não será já, como as anteriores, objecto de reprodução integral do texto, agora optando Galácio,
algumas vezes, por resumir alguns dos seus passos, é nas suas palavras,
«sutilíssima e de excelentes conceitos, e pontos tão subidos de ponto,
quanto vos não sei encarecer» (Andrada, 1867: 224).
Ainda no segundo dos diálogos (Diálogo XII) consagrado ao relato das festividades, é a vez da dramatização de um passo da Senhora
da Anunciação. A alegoria é a figura preponderante, desde a concepção
cénica até à natureza das personagens envolvidas. Céu, Terra, Anjos,
Trono, Potestades, Principados, Dominâncias contracenam em versos
deleitosos de homenagem à Virgem. Primeiro, Céu e Terra, em disputa
pela posse da Senhora, depois, rendida a Terra ao lugar que a Senhora
deverá ocupar no Céu… O soneto final, sob forma dialogada, maiorita-
116
MARIA TERESA NASCIMENTO
riamente assente no esquema de pergunta-resposta entre um Querubim e
um Serafim, marca a Ascensão de Nossa Senhora, depois de confirmada
a sua identidade. A antítese que se estabelece entre os dois últimos versos do segundo terceto, marcados pelo paralelismo de construção, é bem
ao gosto barroco: «Porque da Terra Vem? Seraph: Porque é humana/ E
porque sobe ao Céu? Seraph: Porque é divina» (Andrada, 1867: 236).
Terminada a descrição das festas em honra de Nossa Senhora, ricas em variedade, novidade e abundância, de que aqui apenas deixamos
o que importa à emergência de outros registos no diálogo, os três interlocutores agendarão novo encontro para o dia seguinte –nada de novo,
portanto, neste modo de antecipação prévia da conversação, nem menos
ainda naquilo que nos parece uma reminiscência platónico-ciceroniana
da escolha da melhor relva para assento.
Agora, o diálogo prossegue a senda começada com a narrativa de
Galácio, no sentido de o protagonismo inicial de Devoto se ter esbatido
em proveito do dos outros interlocutores. Será, por isso, a vez de Crispo,
investido das funções de narrador, trazer até nós uma fábula de sentido
alegórico, cujo conteúdo embora de forma mais imediata aponte para a
origem geográfica e topográfica do Sítio de Pedrógão Grande –e por isso
aqui a trazemos pela contiguidade que estabelece com Nossa Senhora da
Luz– denota um alcance mais profundo como já veremos.
A acção remonta ao tempo do Reino de Arounce, situado algures
em Colímbria e retrata numa primeira fase o ambiente palaciano feminino e o modo como os pretendentes concorrem nos amores de Peralta, a
princesa, filha do rei de Arounce, ou no de Iria, sua aia, as quais sempre
olharão com desdém aqueles que incansavelmente as presenteavam com
declarações amorosas expressas em infindáveis missivas líricas.
A fábula, que já de si constitui uma ramificação no diálogo, vindo inclusive a enxertar-se nele como outro nível diegético, vive neste
caso concreto na dependência de diversas formas poéticas à custa das
quais a intriga vai evoluindo. Falamos em particular da maneira pela
qual se tenta edificar um sistema de comunicação de natureza amorosa assente na acumulação de diferentes géneros do modo lírico. Jamais
veremos algum dos pretendentes da Princesa Peralta ou da sua aia Iria
A devoção mariana no diálogo português do Barroco
117
manifestarem-se de outro modo que não seja através da poesia, com especial preferência para o soneto que, no caso particular das declarações
de Escalor, atinge o número de catorze ocorrências, sem com elas obter
o menor vislumbre de correspondência amorosa.
Vénus, disfarçada, virá pôr cobro a este estado de sobranceria e
desdém feminino, instilando em Arounce o estigma da destruição, que
culminará com a aniquilação do reino e a metamorfose dos pares amorosos e de alguns dos seus próximos em diversos acidentes de natureza
orográfica ou geológica. A moralidade da alegoria barroca afirma-se por
duas vezes: «Que tais são as felicidades, e cousas desse mundo caducas, e merecedeiras, sem ter firmeza alguma mais que em a não ter em
nada» (Andrada, 1867: 301); «Bom espelho nos pode ser esse pera nos
não confiar das cousas, e prosperidades deste mundo, nem nelas cousa
alguma» (Andrada, 1867: 304).
Durante mais três diálogos prosseguirá a conversação, até ao final da Miscelânea, mas o fio da devoção mariana que a norteara até à
chegada a Pedrógão Grande e ao relato das festas perde-se, para acabar
de cumprir a promessa do título. Será a vez de discorrer sobre muitas
mais curiosidades, nelas incluídos diversos prodígios do tempo, em homens e animais. Espaço significativo ocupará ainda a reflexão sobre a
essência da verdadeira nobreza e alguns dos seus títulos. Ao diálogo
assomará igualmente a vertente alegórica que se iniciara e parecera terminada com a narrativa do reino de Arounce, desta vez, para mostrar
o amor de Vénus aos Lusitanos. A ínsula divina que há-de preparar no
meio do Oceano é afinal proveniente de uma pedra arrancada da própria
Lusitânia.5 Com um romance castelhano de enaltecimento a alguns dos
heróis lusitanos (Sertório, Nun’Álvares Pereira ou os descendentes dos
Leitões) terminará a Miscelânea, sem que o leitor se tivesse apercebido
de que se encaminhava para o seu fim.
É também tempo para nós de findar esta breve abordagem à Miscelânea de Miguel Leitão de Andrade com algumas conclusões.
5 Sobre a relação entre Os Lusíadas e a Miscelânea, nomeadamente no que diz respeito ao significado de Vénus, leia-se António Cirurgião (1989).
118
MARIA TERESA NASCIMENTO
No diálogo português do Renascimento tínhamos já deparado
com diversas manifestações de hibridismo que apenas vieram confirmar
uma tendência que afectara o género desde a Antiguidade Clássica. Fica
aqui registado o caso de autores como Samuel Usque, Fr. Amador Arrais, Fr. Heitor Pinto, Pedro de Mariz e Vasco Mousinho de Quevedo.6
Com a Miscelânea de Miguel Leitão de Andrada, o diálogo vê
extremada esta orientação. Agora estamos perante a emergência sistemática de outros géneros dentro do diálogo, num efeito que algumas
vezes caracterizaríamos de arborescente.
A contaminação do diálogo com outros registos literários na
Miscelânea havia sido devidamente salvaguardada por Miguel Leitão
de Andrada no paratexto, de uma forma particularmente sugestiva (Andrada, 1867: XX):
Algumas [cousas] que lhe parecerão alheias, e ditos também alheios; a
quem se responde que me mostrem um só livro de quantos té hoje são
escritos, que não tenha cousas alheias, e antes algumas inteiramente
tresladadas. Porque, que cousa se pode dizer, que não seja já dita? Nihil
sub sole recens, diz o Sábio.
A primeira parte da afirmação de Miguel Leitão de Andrada antecipa aquilo que nenhum dos teorizadores modernos da intertextualidade
tem ignorado, a de que qualquer texto se inscreve numa vasta rede de
citações. No que diz respeito aos textos inteiramente «tresladados», não
fosse a inexistente identificação dos seus autores e talvez a Miscelânea
fosse até aqui ainda menos visitada, nesse exercício que tem conduzido ao reconhecimento de alguns poetas quinhentistas incorporados no
diálogo, como sejam Camões, Estêvão Rodrigues de Castro, D. Juan da
Silva, o Conde de Linhares, Manuel Soares de Albergaria, entre outros
(Bernardes, 1995: 259 col. 1), (Duarte, 1993: 37-40), (Silva, 1994: 6771).
6 Ver, a este propósito, Maria Teresa Nascimento (2011).
A devoção mariana no diálogo português do Barroco
119
Em pleno Barroco, constituirá a Miscelânea uma autêntica viragem no panorama do diálogo português? Parece-nos que este diálogo,
do ponto de vista formal, apenas vem acentuar, até à exaustão, aquilo
que desde Platão ficara já insinuado como marca do género, o seu carácter proteico de que falam Snyder (1989: 7) ou Herrero (1988: 173)
fugidio, também diremos.
De facto, um aspecto que aqui queríamos deixar assinalado é
que, se o diálogo, no caso da Miscelânea, passou a acusar uma maior
dependência no que diz respeito a formas poéticas e dramáticas aparentemente alheias, ele adquire maior autonomia relativamente ao peso
das autoridades da antiguidade greco-latina e da patrística, muito menos
presentes, agora, do que na prática anterior dos diálogos quinhentistas.
Trata-se, de qualquer modo, de conclusões provisórias que precisam ainda de ser alargadas aos demais diálogos do Barroco.
REFERÊNCIAS
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pt/12032/4/.
ANDRADA, Miguel Leitão de. Miscelânea do Sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão
Grande, Aparecimento de sua Santa Imagem, Fundação do seu Convento e da Sé de Lisboa, Expugnação dela, Perda del rei Sebastiam. E que Seja Nobreza, Senhor, Senhorio,
Vassalo del-rei, Rico-Homem, Infanção, Corte, Cortesia, Misura, Reverência, e Tirar o
Chapéu, e Prodígios. Com Muitas Curiosidades e Poesias Diversas. Lisboa. Imprensa Nacional, 1867. Digitalizado por Google Books.
ANDRADE, Miguel Leitão de. Miscelânea. Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.
ARRAIS, Fr. Amador. Diálogos (intr. e revisão M. Lopes de Almeida). Porto. Lello & Irmão,
1974 (1589).
BERNARDES, José Augusto Cardoso. «Andrada, Miguel Leitão de». Biblos. Lisboa, S. Paulo.
Verbo, 1995, col. A, p. 259, vol. 1.
CIRURGIÃO, António. «Camões e Miguel Leitão de Andrade». Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 108, Mar. 1989, pp. 18-26.
DUARTE, Manuel Marques. «Introdução». Miscelânea. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
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HERRERO, Ana Vian. «La Ficción Conversacional en el dialogo renacentista». Edad de Oro,
VII, Madrid. Ediciones de la Universidad Autónoma de Madrid, Universidad Internacional
Menéndez Pelayo, 1988, pp. 173-186.
120
MARIA TERESA NASCIMENTO
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REBELO, Padre João. História dos Milagres do Rosário. Évora. Manoel Carvalho Impressor da
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SNYDER, Jon R. Writing the Scene of Speaking. Theories of Dialogue in the Late Italian Renaissance. California. Stanford University Press, 1989.
VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 121-144
O Resumo de História Literária, de
Ferdinand Denis: história da literatura
enquanto campo de investigação
REGINA ZILBERMAN
Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
O livro Resumo da História Literária de Portugal, Seguido do Resumo da História
do Brasil [Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire
littéraire du Brésil], de Ferdinand Denis, publicado em 1826, aborda, em dois segmentos, a literatura de Portugal, examinada desde o século XIV, e a literatura do Brasil,
considerada unidade independente. Para redigir a obra, Denis valeu-se dos documentos e fontes disponíveis a seu tempo; e fundamentou-se nos conceitos correntes de caráter nacional e cor local. A importância de seu trabalho decorre do fato de ter estabelecido e fixado critérios fundadores da então emergente historiografia das literaturas em
língua portuguesa. Além disso, o livro faculta uma reflexão sobre o papel retrospectivo
e prospectivo da pesquisa focada na História da Literatura enquanto gênero literário e
campo de conhecimento.
Palavras-chave: Ferdinand Denis; História da Literatura; Caráter Nacional; Cor Local.
ABSTRACT
Ferdinand Denis’ Summary of the Literary History of Portugal, Followed by the
Summary of the Literary History of Brazil [Résumé de l’histoire littéraire du Portu-
REGINA ZILBERMAN
122
gal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil], published in 1826, examines
separately the literature of Portugal since the 14th century, and the literature of Brazil,
considered as an independent unity. To write this work, Denis employed documents
and sources available at his time; and he based himself upon the then prevalent concepts of national character and local color. The importance of his work results from the
fact that it was him who provided founding patterns to the developing historiography
of the literatures in Portuguese language. Besides, his book allows an understanding
about the retrospective and prospective function of the research focused in the History
of Literature as a genre and field of investigation.
Keywords: Ferdinand Denis; History of Literature; National Character; Local Color.
Muito pouco, quase nada se tem dito desse homem singular, que teve a inexplicável
singularidade de, sendo estrangeiro, ser amigo de Portugal, sendo parisiense, conhecer alguma coisa mais do que Paris, sendo escritor, escrever de preferência sobre
portugueses, sendo erudito, aumentar e enriquecer a sua erudição com o conhecimento vasto e minucioso de tudo quanto respeita à nacionalidade portuguesa, pondo em
acentuado relevo, e sempre, e em tudo, o lado heroico da nossa raça, as superiores
qualidades étnicas da nossa nacionalidade, a grandeza viril do nosso passado.
Victor (1890)
1. O autor
Jean Ferdinand Denis (1798-1890) nasceu em Paris, filho, segundo Georges Le Gentil, «dum funcionário do Ministério dos negócios
estrangeiros» (Le Gentil, 1928: 293). Deixou a França em 1816, aparentemente na direção das Índias, na busca de autonomia financeira.1
Acabou por desembarcar no Rio de Janeiro, à época em que ali residia a Família Real Portuguesa, sob a regência de D. João (1767-1826),
portando carta de recomendação de Francisco Manuel do Nascimento
(1734-1819), Filinto Elísio na Arcádia Lusitana, de quem Denis era amigo e admirador (Le Gentil, 1928: 295). Seis meses depois, seguiu para
1 Luís Gastão de Escragnolle Doria supõe que Ferdinand Denis aguardaria, no Rio de Janeiro,
embarcação para Goa. (Doria, 1912: 219-230; Le Gentil, 1928: 295).
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
123
a Bahia, para trabalhar junto a representantes comerciais da França, que
sofriam a concorrência dos ingleses no que diz respeito à troca, entre
seus respectivos países e a colônia portuguesa, de produtos naturais e
industrializados.2
No Brasil, lembra Jean-Paul Bruyas, «Denis se tornara amigo de
Hippolyte Taunay (1793-1864), filho do pintor Nicolas Taunay (17551830), membro da missão artística francesa, enviado ao Rio, em 1816»
(Bruyas, 1979: XXII), amizade que rendeu a produção de um livro em
parceria, Le Brésil, ou Histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce royame, publicado em seis volumes, entre 1821 e 1822. Sinal
de que, ao deixar a Bahia, o jovem retornou à cidade natal, dedicando-se
doravante à atividade literária, com ênfase na escrita de obras relativas à
América e a Portugal, sobretudo, e ao trabalho de bibliotecário, e depois
curador, da Bibliothèque Sainte-Geneviève, em Paris, posto que obteve
em 1838 e conservou até a morte, em 1890. Antes, porém, viajou por outros países da América, conforme relata Joaquim Norberto (1820-1891),
no necrológio dedicado à memória do historiador francês, em sessão do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Norberto, 1890).
Também em 1821 e na França, Denis publicou a carta de Pero
Vaz de Caminha (c. 1450-1500) sobre o descobrimento do Brasil. O
texto, que apareceu no fascículo 28, do tomo 7, do Journal de voyages,
découvertes et navigations modernes, ou Archives géographiques et statistiques du XVIe siècle, é, conforme Maria Helena Rouanet, a «primeira
publicação da Carta em outra língua que não o português» (Rouanet,
1991: 300). Em Le Brésil, Denis reproduziu o documento de Caminha,
segundo observa a pesquisadora.
Em 1823, Ferdinand Denis voltou-se a temas lusitanos: organizou o volume consagrado ao teatro português, para a coleção «Obras-primas dos Teatros Estrangeiros», lançadas em 1823 por Ladvocat, editor de grande prestígio na época, incluindo, além da apresentação do
volume, intitulada «Notícia sobre o teatro português» (Denis, 1823),3
as peças Nova Castro, de Batista Gomes (c. 1775-1803); A Conquis2 Relativamente à permanência de Ferdinand Denis no Brasil, em especial na Bahia, cf.
Bourdon, 1958.
3 A tradução da «Notícia», sob nossa responsabilidade, foi publicada em Zilberman, 2007.
124
REGINA ZILBERMAN
ta do Peru, tragédia, e Caráter dos Lusitanos, tragédia, de Pimenta de
Aguiar (1765-1832); e Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do
Gordo Sancho Pança, de Antônio José da Silva (1705-1739). Também
em 1823 teria redigido Camoens et Jozé Indio, biografia ficcionalizada
dos últimos anos do épico português. Conhece-se apenas a edição de
1824, colocada ao final de Scènes de la nature sous les tropiques et de
leur influence sur la poésie, coleção de ensaios lançada naquele ano. Em
Scènes encontram-se duas outras experiências na área da ficção, «Palmares» e «Os maxacalis», que, embora lidem com temas relativos à
história do Brasil e assumam premonitória perspectiva indianista, permaneceram sem tradução por mais de 150 anos (Denis, 1979 e 1997).
Em 1825, Ferdinand Denis escreveu um de seus livros mais bem
sucedidos, o Résumé de l’histoire du Brésil et de la Guyane, que alcançou duas edições no mesmo ano. Foi traduzido no Brasil por Henrique
Luís de Niemeyer Bellegarde (1802-1839) e, conforme Joaquim Norberto, «adotado por circular do governo às câmaras municipais do império
para leitura das escolas primárias» (Norberto, 1890). Talvez o sucesso
desse trabalho tenha-o estimulado a redigir os resumos de história da literatura, publicados num único volume em 1826. Esse texto, porém, não
foi traduzido na época,4 embora tenha constituído leitura obrigatória,
pelo menos, dos românticos brasileiros, conforme se verifica em ensaios
de Joaquim Norberto e João Manuel Pereira da Silva (1817-1898), que
calcaram seus juízos sobre obras literárias pertencentes ao patrimônio
brasileiro nas teses do estudioso francês.
Denis publicou livros e ensaios com assuntos que se estendem da
biblioteconomia à cultura oriental, de que era igualmente admirador. Seu
interesse pelo Brasil e pela América Latina nunca esmoreceu, haja vista
o lançamento de obras como o Résumé de l’histoire de Buenos-Ayres, du
Paraguay et des provinces de La Plata, suivi du Résumé de l’histoire du
Chili, de 1827, a Histoire géografique du Brésil, de 1833 (reimpressa em
1834 e 1835), Brésil, de 1837, Une fête brésilienne célébrée à Rouen en
1550, de 1850, e Voyage dans les forêts de la Guyane, de 1853.
4 Guilhermino Cesar (1908-1993), em 1968, traduziu e publicou os capítulos relativos à
literatura brasileira (Denis, 1968; Cesar, 1978).
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
125
A cultura e a história portuguesa igualmente o atraíam, destacando-se a admiração por Luís de Camões (1524?-1580?), tema do estudo
introdutório à edição francesa de 1841 de Os Lusíadas. Em 1835, traduziu duas peças de Antônio Ferreira, a tragédia Castro, que denomina
Inez de Castro, e a comédia O Cioso, Le jaloux na versão de Denis. A
história do Frei Luís de Sousa, figura sobre a qual se detém em 1826,
em um dos capítulos do Resumo da História Literária de Portugal, rendeu-lhe outra obra, também de 1835, Luís de Sousa, em dois volumes,
a qual suscitou polêmica, por ocasião do lançamento da tragédia de Almeida Garrett (1799-1854), de título similar (Le Gentil, 1928).
2. O Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du
Résumé de l’histoire littéraire du Brésil
O livro Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil (doravante denominado Résumé),
de Ferdinand Denis, foi publicado em 1826, em um volume in 8.o, editado por Louis Janet, que já lançara as Scènes de la nature sous les tropiques e pertencia a uma renomada família de impressores e livreiros.
Consta de um «Discurso preliminar», que dá conta dos paradigmas adotados pelo autor (Zilberman, 2006b), e de duas partes, sendo a primeira
dedicada ao «Resumo da história literária de Portugal», com 35 capítulos (repete-se a numeração do capítulo dezessete), e a segunda ao «Resumo da história literária do Brasil», com oito capítulos. Fecham o livro
as «Notas», que incluem informações adicionais, obtidas provavelmente
quando o texto já se encontrava na gráfica e não podia ser alterado. A
obra soma 625 páginas.
Até então, nenhum estudo em forma de livro independente fora
dedicado inteiramente às literaturas em língua portuguesa. Não significa
que o assunto fosse ignorado, e podem-se relacionar os precedentes:
a) na forma de livro, cabe destacar a Biblioteca Lusitana, de
Diogo Barbosa Machado (1682-1772), catálogo bibliográfico impresso
entre 1741 e 1759. Dicionários de autores já tinham sido produzidos no
século XVII, como o Theatrum Lusitaniae litterarium, sive Bibliothe-
126
REGINA ZILBERMAN
ca Scriptorum omnium Lusitanorum, manuscrito não publicado de João
Soares de Brito (1611-1664), e a Bibliotheca Hispana nova, de Nicolau
Antônio (1617-1684), também do século XVII, que inclui autores nascidos em Portugal.
Depois da Biblioteca Lusitana, a Academia Real das Ciências de
Lisboa providenciou um «Catálogo de autores», que precede o primeiro
e único volume do Dicionário da Língua Portuguesa, organizado por
Pedro José da Fonseca (1737-1816).
b) Também na forma de livro, mas distribuído o tema entre outras expressões nacionais, as literaturas de língua portuguesa aparecem
no quarto volume da História da Poesia e da Eloquência, de Friedrich
Bouterwek (1765-1828), e em De la littérature du Midi de l’Europe, de
1813, cujo autor, Simonde de Sismondi (1773-1842), consagra os cinco
últimos capítulos a escritores de procedência lusitana;
c) na forma de prefácios a coletâneas de poesias, como o ensaio
de Alexandre-Marie Sané (c. 1773-1818), «Introduction sur la littérature portugaise», que precede o livro Poésie lyrique portugaise ou Choix
des Odes de Francisco Manuel, publicado em Paris em 1808. Citem-se
igualmente as «Notas ao poema», de Timóteo Lecussan-Verdier (1754?1831), que acompanha a edição de O Hissope, de Antônio Dinis da Cruz
e Silva (1731-1799), lançada em 1821;
d) na forma de ensaio, colocados em revistas dedicadas à literatura e cultura, como o de José Correia da Serra (1750-1823), «De l’état
des sciences et des lettres en Portugal, à la fin du dix-huitième siècle»,
encontrável no primeiro volume dos Archives Littéraires de l’Europe,
ou Melanges de Littérature, d’Histoire et de Philosophie, de 1804; e o
de Alexandre-Marie Sané, «Coup d’oeil sur la littérature portugaise»,
em duas partes, divulgado em dois tomos do Mercure Étranger, ou Annales de la Littérature Étrangère, em 1813.
Particularizam a obra assinada por Ferdinand Denis os seguintes
fatores:
a) dirige-se predominantemente ao público francês, o que dá
continuidade ao trabalho que ele desenvolvia, ao publicar livros como
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
127
Le Brésil, ou Histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce
royame, ou ao traduzir dramas portugueses para compor Obras-primas
dos Teatros Estrangeiros.
Este intuito manifesta-se desde as primeiras páginas de seu livro
(Denis, 1826: VIII-IX. Tradução nossa):
Um autor comparou com muita justeza o Portugal literário a uma destas ilhas, cujas praias são avistadas pelos navegadores, mas cujas riquezas ficaram completamente ignoradas. Bouterwek deu os primeiros
passos, Sismondi o seguiu; contudo, consagraram a Portugal apenas
uma pequena parte de suas estimáveis obras; devemos a eles as obrigações, como as que se devem aos primeiros exploradores que avistaram
rapidamente, mas que avistaram primeiro: a história literária de Portugal ainda está por ser feita.
Ocupando-me da obra que agora ofereço ao público, estou convencido
de sua necessidade; surpreendido com as riquezas que se apresentavam
diante de mim, ficou-me o pesar de só poder dar a conhecer uma pequena parte: desta vez, seria preciso reunir a maior parte dos documentos necessários a uma história literária antes de fazer seu resumo. Obrigado a rejeitar uma porção de detalhes, de examinar incessantemente
sem poder dizer o que descobria, restou-me a certeza de ter feito sobre
a literatura portuguesa um trabalho mostrando a necessidade de uma
obra mais extensa. A minha talvez possa tornar-se de alguma utilidade
aos amigos das Letras, porque sempre bebi nas fontes.
b) com o objetivo de divulgar uma literatura que, segundo Denis, precisa ser tão conhecida quanto a espanhola, por exemplo, busca
reproduzir o maior número possível de trechos das obras literárias, apresentadas em tradução, sinalizando, também por este ângulo, a preocupação com a difusão de um patrimônio cultural.
c) as literaturas em língua portuguesa até então reconhecidas são
divididas em dois grupos, considerando a procedência geográfica dos
128
REGINA ZILBERMAN
escritores e o espaço de sua circulação. Assim, identifica um núcleo português e um núcleo brasileiro, dando visibilidade a esse último em um
período em que o país acabara de conquistar, em 1822, e consolidar, em
1825, a emancipação política.
Para compor o livro, Ferdinand Denis valeu-se, além da leitura
das obras literárias que teve a seu alcance, de uma bibliografia secundária, constituída pelas fontes disponíveis a seu tempo, algumas já citadas:
1) a Biblioteca Lusitana, de onde retira a maior parte das informações biográficas relativas aos autores citados;
2) as histórias da literatura que examinaram as literaturas de Portugal e do Brasil, como as de Bouterwek e de Sismondi;
3) os prefácios, ensaios e estudos assinados por portugueses,
como Correia da Serra e Timóteo Lecussan-Verdier, ou franceses, como
Alexandre-Marie Sané e François-Juste-Marie Raynouard (1761-1836).
A esse material relativo à Literatura Portuguesa, acrescentou sua
própria pesquisa, extraindo informações sobretudo dos seguintes autores e obras:
I) dentre o material de procedência portuguesa:
I.a) a obra Europa Portuguesa, de Manuel de Faria e Sousa
(1590-1649), bem como os livros desse autor dedicados à poesia de Camões: Rimas Várias de Luis de Camões e Lusíadas de Luís de Camões,
edições, ambas, precedidas por uma «Vida do poeta», citada com frequência pelo historiador francês;
I.b) as notas de Francisco Dias Gomes (1745-1795) a seus poemas, publicados postumanente no livro Obras Poéticas, de 1799; a Coleção de Livros Inéditos da História Portuguesa, organizada por Correia
da Serra e publicada em 1790; os Discursos Políticos, de Manuel Severim de Faria (1583-1665), de 1624, republicados em 1791;
I.c) os memoriais produzidos pela Academia Real das Ciências
de Lisboa, publicados a partir de 1792, a saber:
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
129
– Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, onde se
encontram a «Memória sobre a poesia bucólica dos poetas portugueses», de Joaquim de Foios (1733-1811), de 1797, e a «Memória sobre
o teatro português», de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato
(1777-1838), de 1817, trabalho este que embasa concepções e dados
utilizados por Denis quando aborda a dramaturgia lusitana, expressa na
coletânea preparada para a editora de Ladvocat e no Résumé;
– Memórias de Literatura Portuguesa, em oito volumes, lançados entre 1792 e 1812, com consulta sobretudo aos ensaios «Análise e
combinações filológicas sobre a elocução e o estilo de Sá de Miranda,
Ferreira, Bernardes, Caminha e Camões», de Francisco Dias Gomes,
«Ensaio sobre a Filologia Portuguesa por meio do exame e comparação
da locução e estilo dos nossos mais insignes poetas, que floresceram no
século XVI», de Antônio das Neves Pereira (17??-1818), e «Em defesa
de Camões contra Monsieur de la Harpe», de Antônio de Araújo Azevedo (1754-1817);
– História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, coleção publicada a partir de 1815, com referências particularmente aos estudos «Sobre o estabelecimento da Arcádia de Lisboa e sobre a
sua influência na restauração da nossa literatura», de Francisco Manuel
Trigoso de Aragão Morato, de 1819, «Memória histórica e crítica acerca
de Fr. Luís de Sousa e das suas obras», de Francisco Alexandre Lobo
(1763-1844), de 1823, e «Exame crítico das primeiras cinco edições dos
Lusíadas», de Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821), de
1823.
– a edição de Os Lusíadas promovida em 1817 por José Maria
de Sousa Botelho (1758-1825), o Morgado de Mateus, cujo ensaio introdutório, «Vida de Camões», fomenta a biografia do poeta lusitano em
Camões e José Índio e no Résumé.
II) Dentre o material publicado na França:
II.a) a obra do geógrafo e estatístico italiano Adriano Balbi
(1782-1848), Essai statistique sur le royaume de Portugal et d’Algarve,
comparé aux autres états de l’Europe, et suivi d’un coup d’oeil sur l’état
130
REGINA ZILBERMAN
actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les productions
portugais des deux hémisphères, de 1822, que lhe propiciou informações sobre os primeiros tempos da língua e da poesia em Portugal;
II.b) os volumes dos Anais das Ciências, das Artes e das Letras,
produzido por uma Sociedade de Portugueses Residentes em Paris, sob
a direção de José Diogo Mascarenhas Neto (1752-1826), e publicado
entre 1818 e 1822,
II.c) os ensaios sobre literatura portuguesa lançados, desde o
século XVIII, no Journal Étranger, periódico parisiense editado entre
1754 e 1764, que tinha Antoine François Prévost (1697-1763) entre
seus diretores; em Les Soirées Littéraires, ou Mélanges de traductions
nouvelles des plus beaux morceaux de l’antiquité, de pièces instructives
et amusantes, françaises et étrangères, publicação periódica de textos
clássicos e modernos, iniciada em 1795 e encerrada em 1801, sob a
direção de Jean Marie Louis Coupé (1732-1818); no Mercure Étranger,
periódico mantido entre 1813 e 1816, sob a direção de Louis-Mathieu
Langlès (1763-1824), Amaury Duval (1760-1838) e Pierre-Louis Ginguené (1748-1816); no Journal de Savants, periódico nascido em 1665,
onde François-Juste-Marie Raynouard publicou, em 1825, resenha sobre
a tradução, por J. B. Millié (1772-1826), de Os Lusíadas, de Camões;
II.d) a produção dos pesquisadores franceses dedicados aos assuntos lusófonos, alguns já citados:
– Alexandre-Marie Sané, autor de Nouvelle grammaire portugaise, suivie de plusieurs essais de traduction française interlinéaire
e de différentes morceaux de prose et de poésie, extraits des meilleurs
classiques portugais, e estudioso e tradutor de poemas de Filinto Elísio,
publicados em 1808, em Poésie lyrique portugaise, ou Choix des odes
de Francisco Manuel, traduits en français, avec le texte en regard, précedées d’une notice sur l’auteur et d’une introduction sur la littérature portugaise, avec des notes historiques, géographiques et littéraires.
Alexandre-Marie Sané publicou também resenha sobre O Hissope, poema herói-cômico de Antônio Dinis da Cruz e Silva, no Mercure Étranger, em 1813;
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
131
– François-Juste-Marie Raynouard, historiador, filólogo e dramaturgo, autor, entre outras obras, de Éléments de la grammaire de la
langue romane (1816) e da Grammaire des troubadours (1816), autor
também de Camões: ode, de 1819, que Ferdinand Denis reproduz ao
final de seu Camões e José Índio;
– Timóteo Lecussan-Verdier, autor da introdução a O Hissope,
de Antônio Diniz da Cruz e Silva; Lecussan-Verdier traduziu ainda a
l’Ode a Camoens, de François-Juste-Marie Raynouard, responsabilizando-se pelas notas que acompanham o texto, material consultado e
referido no Résumé;
– G. Hamonière (1789-18??), gramático francês, autor, entre
outras obras, de Coleção de Pedaços em Prosa/ Recueil de morceaux
en prose, extraído dos melhores autores franceses e portugueses, de
1818, da Grammaire portugaise divisés en quatre parties, de 1820, e da
Grammaire espagnole divisée en quatre parties, de 1821.
Quando examina a obra de Luís de Camões, Denis mobiliza a
bibliografia francesa então disponível a respeito do épico português,
destacando-se L’essai sur la poésie épique, que acompanha La Henriade, de Voltaire (1694-1778), e o verbete dedicado àquele na Biographie
universelle, elaborado por Madame de Staël (1766-1817), em 1812. Recorre igualmente às traduções da epopeia lusitana, produzidas na França
por Duperron de Castera (1705-1752), em 1735, por Jean-François de
La Harpe (1739-1803) e Nicolas-Gabriel Vaquette d’Hermilly (17051778), em 1776, e por Jean-Baptiste Millié, em 1825, além de conhecer
e citar a versão em inglês, de responsabilidade de William Julius Mickle
(1735-1788), lançada entre 1771 e 1775. É na Histoire philosophique
et politique des établisssemens et du commerce des européens dans les
deux Indes, do abade Guillaume-Thomas Raynal (1711-1796), que o
historiador francês localiza e referencia a tradução do «Sermão pelo
bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda», do jesuíta
Antônio Vieira (1608-1697), matéria de exame detalhado no capítulo
XXIII.
Obras de historiadores, como a de Alphonse Rabbe (1784(?)1829), Résumé de l’histoire de Portugal, e de viajantes, como as de
132
REGINA ZILBERMAN
Charles François Dumouriez (1739-1823), État present du Royaume de
Portugal en l’année 1766, de 1775, e Campagnes du Maréchal Schomberg en Portugal, de 1662 a 1668, de 1807, de Heinrich Friedrich Link
(1767-1851), Voyage en Portugal depuis 1797 jusqu’en 1799 (cujo capítulo XXXVIII, do volume 2, intitula-se «Sur la littérature et la langue
portugaise»), lançada originalmente em alemão entre 1803 e 1805, e
de Jean François Bourgoing (1748-1811), Voyage du ci-devant duc Du
Châtelet en Portugal, de 1801, igualmente subsidiaram a pesquisa de
Ferdinand Denis.
Optando por alinhar seu texto à História da Literatura, citada no
título do livro e gênero emergente nas décadas finais do século XVIII,
mas consolidado nas primeiras décadas do XIX, Denis não perdeu de
vista as obras que, na ocasião, estruturavam esse campo intelectual,
como as de:
– Pierre-Louis Ginguené, crítico literário e musical, encarregado, à época de Napoleão Bonaparte (1769-1821), de escrever a história
literária da França, contribuindo com os volumes que apareceram em
1814, 1817 e 1820. Seu trabalho mais importante, modelado a partir da
obra de Girolamo Tiraboschi (1731-1794), é Histoire littéraire d’Italie,
em 14 volumes, publicado entre 1811 e 1835, sendo os últimos volumes
escritos por Francesco Salfi (1759-1832) e revisados por Pierre Danou
(1761-1840);
– Juan Andrés (1740-1817), padre jesuíta espanhol, que redigiu,
em sete volumes, Dell’Origine del Progressi e dello Stato Attuale d’ogni Letteratura (1782-1799), em que há referências às letras portuguesas.
A confluência dessas obras e do pensamento romântico em ascensão a seu tempo, de que é exemplo a história da literatura elaborada
por Simonde de Sismondi, determinou os paradigmas e valores por meio
dos quais Denis organiza seu material e qualifica o universo literário
com que se depara.
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
133
3. A história da literatura
Destacam-se três aspectos que balizam as posições assumidas
por Ferdinand Denis, ao organizar e avaliar o patrimônio literário em
língua portuguesa:
a) a divisão por nacionalidades e a opção pela ordem cronológica.
O autor do Resumo segue as palavras de ordem de seu tempo,
compondo sua obra a partir da divisão em nacionalidades distintas, razão porque separa os conjuntos lusitano e brasileiro. Cada um deles é
ordenado segundo cronologias que lhes seriam próprias (sem que as
entrecruze ou compare), apresentada em perspectiva crescente, sendo
as repartições determinadas pelos séculos. O século XVI, por exemplo,
época marcada pelo sucesso das grandes navegações e pelo aparecimento de poetas e dramaturgos do porte de Sá de Miranda (1481/1485?1558?), Luís de Camões, Antônio Ferreira (1528-1569), historiadores
como Damião de Góis (1502-1574), João de Barros (1496-c. 1570) e
Diogo do Couto (1524-1616), humanistas como Jerônimo Osório (15141580), será qualificado como «o grande século», emulando a classificação adotada pela literatura francesa, que confere esse atributo ao período
de Luís XIV (1638–1715). Quando os recortes literários não coincidem
com os segmentos de tempo, Ferdinand Denis recorre a conceitos como
os de transição, por exemplo, garantindo, por meio deste expediente, a
articulação entre as épocas.
Ao lado do recorte cronológico, encontra-se o critério evolutivo,
já que a literatura pode avançar – por exemplo, da «barbárie» dos séculos anteriores ao XVI ao progresso corporificado por essa época – ou
então decair, estando o declínio assinalado pela imitação dos nomes do
passado, pela perda da autenticidade ou pela rejeição da língua materna.
Sob esse aspecto, a produção do século XVII é modelar, pois são muitos
os emuladores de Camões, bem como os escritores lusitanos que redigem em castelhano.
Compõe ainda esse quadro historiográfico o relacionamento entre a produção literária e os eventos políticos. Assim, a formação do
Estado português, entre os séculos XIV e XV, virá acompanhada de uma
134
REGINA ZILBERMAN
literatura ainda primitiva, que não se realizou plenamente até porque
não encontrou a língua em que se expressar, sendo o emprego do galego,
por exemplo, considerado sintoma da rudeza primeva. Quando Portugal
torna-se uma das principais potências da Europa e ocupa posição de
liderança no que diz respeito às conquistas ultramarinas, a literatura é
pujante e original, servindo de inspiração para seus vizinhos geográficos, como a Espanha e a Itália. Quando Portugal perde a autonomia,
passando a fazer parte do império filipino, a literatura decai, a língua
portuguesa ocupa um segundo plano, prevalece a imitação.
Ferdinand Denis pode não ter inventado esse formato de compor
a história da literatura, aliás hegemônico até o século XX, mesmo quando a divisão em séculos foi substituída pela repartição em escolas e estilos literários. Mas aplicou-o de modo disciplinado e coerente, mostrando-se bom discípulo dos historiadores da literatura que o precederam.
b) Caráter nacional, cor local e manifestação da emoção alçados
a critérios de avaliação.
A divisão das literaturas por recortes geográficos não constitui
apenas um critério de organização do material; ele precisa corresponder
à marca de nacionalidade. Assim, se produzidas no espaço português,
a poesia, a prosa e a dramaturgia lusitanas devem expressar o universo
de onde provêm, traduzido especialmente pelo ambiente físico. Daqui
emerge a cor local, exigência que atravessa o Résumé e que pode servir
para valorizar positiva ou negativamente uma obra.
A cor local atesta o caráter nacional, e a manifestação desse
afiança a qualidade, mesmo quando falham os elementos composicionais. Assim, não apenas significa possibilidade de ajuizar, mas também
de resgatar obras, incorporando-as à história da literatura, vale dizer,
ao cânone, na terminologia contemporânea. Ferdinand Denis é bastante
rigoroso a respeito deste critério; quando a cor local não pode ser identificada, resta uma única alternativa –a manifestação de autêntica emoção
por parte de um criador. A expressão de sentimentos espontâneos por
parte dos escritores pode redimi-los de outros erros, e não são poucos os
casos em que Denis apela para essa alternativa.
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
135
Sentimentos legítimos, por sua vez, são os de índole amorosa;
como, segundo Denis, os poetas são as pessoas mais propensas à paixão,
nada mais provável que uma literatura plena de experiências afetivas
para se mostrar verdadeira, digna de crédito e elogiável. Por causa disso, a poesia assume perfil autobiográfico, e essa associação entre vida
e criação literária é constante no Résumé, sendo a lírica de Luís de Camões a demonstração mais cabal das concepções de Ferdinand Denis.
c) O possível interesse do público francês.
O Résumé foi redigido para orientar o público francês na direção
da literatura portuguesa. Ferdinand Denis já se responsabilizara pelas
traduções do teatro lusitano, e talvez entendesse que poderia alargar esse
mercado, chamando a atenção dos leitores para um material até então
praticamente desconhecido. À época de lançamento de sua obra, Denis podia contar com poucos livros editados em sua língua materna –os
Lusíadas, de Camões,5 Marília de Dirceu,6 de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810)–, ao lado do reaproveitamento de mitos de procedência
lusitana, como o de Inês de Castro, inspirador das tragédias de Antoine
Houdar de La Motte (1672-1731), de 1723, e de Firmin Didot (17641836), La reine de Portugal, de 1824. Mas a esfera de circulação de
obras portuguesas traduzidas em território francês não ultrapassava esse
limite estreito.
Por essa razão, justifica a validade de sua matéria e preocupa-se
em citar em francês trechos das obras, providenciando, ele mesmo, as
traduções. Lamenta quando falta espaço para a inclusão de maior número de excertos, e observa seguidamente o quanto os lusitanos anteciparam a literatura de outras nações, destacando sobretudo os avanços do
século XVI, quando Portugal não apenas expandiu-se territorialmente,
mas foi capaz também de oferecer à Europa modelos de poemas épicos,
5 Cf. La Lusiade de Camoens: poeme heroique sur la decouverte des Indes Orientales. Trad.
de Duperron de Castera. Paris: Huart, 1735. 3v. La Lusiade de Louis de Camoëns. Poëme
héroïque, em diz chants. Trad. de Jean-François de La Harpe e Nicolas-Gabriel Vaquette
d’Hermilly. Paris, Nyon aîné, Librairie, 1776. Les Lusiadas ou Les Portugais, poeme de
Camoëns en dix chants: traduction nouvelle, avec des notes, par J. B. Millié. Paris: Firmin
Didot, 1823-1824.
6 Cf. Marilie. Chants élégiaques de Gonzaga. Trad. de E. de Moglave e P. Chalas. Paris:
Panckoucke, 1825.
REGINA ZILBERMAN
136
graças a Luís de Camões e Jerônimo Corte Real (1530?-1588), de teatro
sacro e profano, graças a Gil Vicente (1469?-1536?) e Antônio Ferreira,
de historiografia, graças a Jerônimo Osório, o humanista que coloca em
primeiro lugar entre suas predileções, João de Barros e Damião de Góis.
Assim sendo, o Résumé pode ser classificado como Literatura
Portuguesa –ou do Brasil, conforme o caso– para estrangeiros, em uma
época em que a França efetivamente abria espaço para a integração com
outras culturas da Europa, da Ásia e da América. O Résumé, contudo,
não alcançou o público desejado; seus principais cultores situavam-se
no Brasil, onde o livro obteve alguma repercussão, especialmente entre a primeira geração romântica. Por outro lado, Ferdinand Denis não
perdeu seu tempo: continuou a fornecer traduções para o francês, como
as de Inês de Castro e O Cioso, publicadas em 1835 em Le théâtre portugais, de 1835, e a redigir prefácios a publicações de obras de autores
lusitanos, como «Antonio Diniz da Cruz e Sylva, notice biographique»,
prólogo à Le goupillon (O Hissope), de 1867.
4. Questões de ordem metodológica
Passados quase duzentos anos desde a publicação da única edição dos Résumés, pode parecer que proceder à sua tradução e comentários, com notas explicativas, é trabalho de antiquário.
Machado de Assis (1880: 254-255), pela voz de Brás Cubas, descreve essa figura em um dos capítulos de Memórias Póstumas:
Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho,
que não ama nenhuma outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a
pagina anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra, e as
restantes, examina-as por dentro e por fóra, por todos os lados, contra
a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o
mesmo desproposito.
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
137
É um bibliomano. Não conhece o autor; este nome de Braz Cubas não
vem nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso,
no pardieiro de um buquinista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar
unico... Unico! Vós, que não só amaes os livros, senão que padeceis a
mania delles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes,
portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a corôa das Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os houvesse
de trocar por esse unico exemplar; e não porque seja o das minhas
Memorias; faria a mesma cousa com o Almanak de Laemmert, uma
vez que fosse unico.
O peor é o desproposito. Lá continúa o homem inclinado sobre a pagina, com uma lente no olho direito, todo entregue á nobre a aspera
funcção de decifrar o desproposito. Já prometteu a si mesmo escrever
uma breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta
da sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao
cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro,
mira-o, remira-o, chega-se á janella e mostra-o ao sol. Um exemplar
unico! Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um
Cromwell, a caminho do poder. Elle dá de hombros, fecha a janella,
estira-se na rede e folhea o livro de vagar, com amor, aos goles... Um
exemplar unico!
Essa impressão, porém, não se confirma em decorrência de, pelo
menos, dois aspectos:
a) o Résumé teve grande impacto sobre os intelectuais brasileiros
da primeira geração romântica, que copiaram muitas de suas afirmações
sobre a necessidade de a literatura exibir um caráter nacional e dar vazão
à cor local. Embora Ferdinand Denis não tenha sido o único a tomar essa
posição –que se encontra igualmente no «Bosquejo da história da poesia
e língua portuguesa», de Almeida Garrett (Garrett, 1826), prólogo do
Parnaso Lusitano, de 1826– suas ideias foram utilizadas para reiterar a
importância do trabalho pioneiro concretizado, por exemplo, por Gonçalves de Magalhães (1811-1882) nos anos 30 do século XIX. Também
em Portugal a repercussão do trabalho de Denis foi notável, conforme
testemunha o necrológio publicado em O Ocidente, parcialmente repro-
138
REGINA ZILBERMAN
duzido aqui na epígrafe.
Logo, a interpretação da formação do cânone das literaturas em
língua portuguesa não pode descartar a presença de um de seus fundadores mais atuantes.
b) os critérios empregados por Ferdinand Denis foram provavelmente os que mais impregnaram a História da Literatura enquanto
gênero literário e área de conhecimento.
A História da Literatura, alinhada à História, de que passou a
constituir um de seus ramos, assenta-se, desde seu aparecimento, em
um princípio cronológico, narrando os inícios, as transformações e os
modos como desemboca no presente. Enquanto gênero literário, corresponde ao das grandes narrativas (Lyotard, 1986), elegendo um início
mítico –a fundação (Zilberman, 1994), a que se segue uma trajetória
ascendente até, de preferência, a atualidade do historiador que a redige e do público visado. Adota, por causa disso, foco evolutivo, calcada
sobre a noção de progresso (ou o seu avesso, o declínio), utilizada para
evidenciar as mudanças ocorridas nos planos, de um lado, artístico, de
outro, político.
À grade temporal associa-se uma proposição de ordem judicativa –a representação do caráter nacional, decorrente da manifestação
espontânea da cor local. É por ocasião do Romantismo que o caráter
nacional alça-se à condição de palavra de ordem da expressão artística,
afetando sua produção e recepção. O vínculo não é ocasional, pois o período assiste à emergência e consolidação do Estado-nação, cuja territorialidade é garantida não apenas pela conformação de uma comunidade
imaginada, conforme conceituação de Benedict Anderson (1989), mas
também por uma cultura, dentre a qual sobressai a literatura, que, por
meio de tipos humanos, uma história e uma natureza, valida a verdade
de sua existência, origem e propagação.
A História da Literatura participou intensamente deste projeto,
narrando como esse caráter nacional se apresenta na obra de autores locais. Como migrou para o ensino e ali se instalou com bastante propriedade, segundo observação de Hans Robert Jauss (1969; 1970; 1973),
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
139
fortaleceu-se e, assim, sobreviveu às mudanças políticas, sociais e ideológicas que levaram à falência do Estado-nação de onde recebia seus
principais insumos. Por isso, muitos critérios originalmente propostos
pela História da Literatura permaneceram, sobretudo em conjuntos literários em que a busca de autonomia e autenticidade persiste, como
ocorre a algumas das expressões nacionais das literaturas de língua
portuguesa. Assim, a questão permanece viva na Literatura Brasileira e
retorna, com alguma intensidade, na formatação das histórias das literaturas das emergentes nações africanas de língua portuguesa.
Nada mais pertinente, pois, do que buscar no Résumé, de Ferdinand Denis, uma das pontas dessa rede de relações que embasa a produção, a circulação, o consumo e a recepção das literaturas de língua
portuguesa. Além disso, o livro de Ferdinand Denis colabora para uma
reflexão sobre a natureza e a trajetória da História da Literatura enquanto gênero literário e campo de investigação, campo este que contou com
o precioso subsídio da escola e do ensino para sua consolidação.
Reconhece-se em Hans Robert Jauss uma das lideranças relativamente a uma tomada de posição quanto à natureza e trajetória da História da Literatura. Em ensaios produzidos entre o final dos anos 1960
e começo dos 1970, ele examinou não apenas as causas da decadência
da História da Literatura enquanto disciplina, mas também as aporias
que a levaram ao declínio, em uma época em que se presenciava a hegemonia quase incontestável do Estruturalismo, em especial na Europa
Ocidental.
Jauss atribuiu à Estética da Recepção, posicionamento teórico e
sobretudo metodológico de que era o principal porta-voz, a possibilidade de superar os dilemas com que se deparavam os estudos históricos
dirigidos à literatura no âmbito da pesquisa e da docência. Praticante
da ciência de que era o fundador e mais renomado expoente, Jauss foi
capaz de renovar as possibilidades de exame da obra literária desde uma
perspectiva histórico-estética que não repetisse os, na sua opinião, equívocos do passado.
Talvez não tenha dado completamente conta da tarefa, mesmo
porque não evitou reproduzir alguns dos pecados cometidos por uma
140
REGINA ZILBERMAN
ciência da literatura circunscrita ao âmbito do texto. Ainda que valorizasse a leitura e a recepção enquanto horizonte resultante das interpretação de uma obra ao longo do tempo, nunca se deteve na materialidade da
produção de um livro impresso, nas diversidades de público, no modo
de funcionamento dos negócios artísticos. A recusa em levar em conta
a literatura de massa, os meios de reprodução mecânica, as condições
de circulação dos objetos artísticos enquanto mercadoria encolheu seu
enfoque, fazendo-o provar o próprio veneno.
Contudo, não se pode negar o papel desempenhado pela Estética
da Recepção no processo de resgate da História da Literatura, e toda
pesquisa que eleja uma obra pertencente a esse gênero não pode deixar
de revisar os aportes metodológicos oferecidos por Hans Robert Jauss
ao longo de sua trajetória acadêmica. Por outro lado, também não é mais
possível deixar de articular tais pressupostos às linhas de investigação
que se expandiram ao longo das décadas de 1980 e 1990, associadas, de
uma parte, à História da Leitura e do Livro, de outro, ao Desconstrutivismo, aos Estudos de Gêneros e aos Estudos Pós-Coloniais, enquanto
alternativas de polemização do cânone, incluindo-se aí questões relativas à sua formação, imposição e derrocada.
A esses aspectos, de ordem teórica e metodológica, soma-me o
ângulo prático decorrente do objetivo de traduzir e comentar a obra de
Ferdinand Denis, e sobretudo entender seu autor.
Proceder à tradução de Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil que Ferdinand Denis produziu e publicou em 1826, com 28 anos, significa compreender o
leitor que ele foi até a época em que redigiu sua obra. Ou, colocado em
outros termos, corresponde a desenhar o horizonte de possibilidades de
leitura das literaturas em língua portuguesa naquele período de renovação de um dos conjuntos –o de Portugal– e de formação ou afirmação de
outro –o do Brasil. Sob esse aspecto, Denis não se configura enquanto
um leitor idiossincrático ou privilegiado, mas se evidencia como um
expoente do que o(s) sistema(s) literário(s) português e brasileiro poderia(m) oferecer a um letrado no tempo em que se alicerçavam suas
respectivas identidades e diferenças.
O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis:
141
Para alcançar esse resultado, de ordem interpretativa, cabe:
– acompanhar sua pesquisa;
– identificar o material que ele teve à disposição na época, depois
de suas passagens pelo Brasil e por Portugal e então residindo em Paris;
– discriminar o que corresponde a leituras pessoais e o que consiste repetição de juízos anteriores, decorrentes muitas vezes do fato de
o historiador não dispor dos originais, como se passa, por exemplo, no
capítulo dedicado às peças escritas e encenadas por Gil Vicente (Zilberman, 2006a);
– apontar como ele interpretou e avaliou as obras lidas;
– reconhecer a ação que exerceu sobre ele, de um lado, a emergente crítica romântica, representada por Staël e Sismondi, de outro, a
formação clássica de que foi objeto, sintetizada na poética de Boileau
(1636-1711), então ainda vigente.
Dessa maneira, torna-se necessário recuperar suas fontes, expressas por suas leituras, que se manifestam em citações diretas e indiretas. A identificação das fontes nem sempre é tarefa de fácil execução,
pois se verificam citações incompletas, truncadas e até equivocadas, ao
lado de traduções que muitas vezes não correspondem ao original, já
que o autor procede a reduções e simplificações semânticas, sobretudo
ao verter versos para prosa.
De todo modo, trata-se de um trabalho que supõe um posicionamento retrospectivo, ao procurar evidenciar como, de forma específica,
se constitui o campo literário em língua portuguesa, e, de forma geral,
como opera a construção de um cânone desde a elaboração de uma história da literatura. E que supõe igualmente um posicionamento prospectivo, pois induz a uma reflexão sobre as possibilidades de elaboração de
uma História da Literatura que, na era do declínio e do esgotamento do
Estado-nação, disponha de parâmetros e ferramentas para se reinventar,
suplantando seu compromisso com as grandes narrativas, sem abrir mão
da identificação e do exame da historicidade e materialidade da literatura.
142
REGINA ZILBERMAN
Afiançado esse resultado, o pesquisador talvez suplante os perigos que cercam o «bibliomano» desenhado por Machado de Assis, ao
mesmo tempo em que justifica a ciência que pratica, sem ter de abandonar o foco dirigido para o tempo passado e para, às vezes, terras distantes.
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VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 145-176
Para uma melhor compreensão da
história da gramática em Portugal:
a gramaticografia portuguesa à
luz da gramaticografia latinoportuguesa nos séculos XV a XIX
ROLF KEMMLER
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
RESUMO
A modos de servir como ponto de partida de futuros estudos, o presente artigo visa
enquadrar a gramaticografia latino-portuguesa dentro do âmbito das obras metalinguísticas dedicadas à língua portuguesa. Ao procurar respostas sobre a velha questão
das origens ideológicas das gramáticas portuguesas supostamente mais tradicionais,
visa-se fornecer algumas achegas de como o trilho de um reforço da investigação na
gramaticografia latino-portuguesa poderá ser esclarecedor para a gramaticografia da
língua portuguesa.
Para isso, o artigo considera os manuais metalinguísticos portugueses e latino-portugueses conhecidos desde finais do século XV até 1834, quer tenham sido impressos
em Portugal ou escritos por autores portugueses, tendo sido publicados no estrangeiro.
Com base no levantamento bibliográfico em que são destacadas as principais obras das
duas tradições, procura-se estabelecer uma visão global da produção metalinguística
portuguesa e latino-portuguesa naquele período
Palavras-chave: Historiografia Linguística; Gramática; Ortografia; Português; Latim.
ROLF KEMMLER
146
ABSTRACT
In order to serve as a starting point for future studies, the present paper aims to fit
the Latin-Portuguese grammaticographic tradition within the scope of metalinguistic works dedicated to the Portuguese language. While searching for answers to the
ancient question of the ideological origins of the supposedly ‘more traditional’ Portuguese grammars, some lines are provided that illuminate how the trail of an increase
in investigation in Latin-Portuguese grammaticography might be enlightening for Portuguese grammaticography .
For this means, the paper considers the known Portuguese and Latin-Portuguese
metalinguistic manuals since the late fifteenth century until 1834, be they printed in
Portugal or written by Portuguese authors, having been published abroad. Based on
the bibliographic survey in which the more essential works of the two traditions are
highlighted, a comprehensive overview of the Portuguese and Latin-Portuguese metalinguistic production at that time is undertaken.
Keywords: Historiography of Linguistics, Grammar; Spelling; Portuguese; Latin
1. Introdução
Quatro décadas após a impressão da primeira gramática de uma
língua vernácula, nomeadamente a Gramática de la lengua Castellana (1492) do espanhol Elio Antonio de Nebrija (1444-1522), a história da linguística portuguesa teve o seu início com a publicação da
Grammatica da lingoagem Portuguesa (1536) de Fernão de Oliveira
(1507-ca.1581) e da Grammatica da Lingua Portuguesa (1540) de João
de Barros (1496-1570). No entanto, é de constatar que à divulgação de
gramáticas em vernáculo cabia somente um papel secundário em toda a
Europa renascentista, visto que a língua dominante no sistema de ensino
(e também na maioria da produção metalinguística) era o latim, que continuou a preencher um papel preponderante até meados do século XIX.
Alguns dos aspetos essenciais relacionados com a tradição gramatical da língua portuguesa desde o século XVI até ao século XIX
foram estudados nos trabalhos monográficos de Schäfer-Prieß (2000),
Moura (2012) e Santos (2010), sendo, para além disso, de destacar
os trabalhos de Assunção (2000), Fernandes (2002), Moura (2002) e
Kemmler (2007) que se debruçam sobre algumas obras em particular.
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
147
Graças a estes trabalhos académicos e ao número cada vez maior de
artigos científicos publicados em livros de atas, miscelâneas e revistas
científicas, dispomos de uma compreensão cada vez maior do desenvolvimento dos primeiros séculos da gramaticografia portuguesa.
Os estudos até agora dedicados à gramaticografia histórica portuguesa já permitiram algumas conclusões, se bem que preliminares,
sobre o enquadramento de algumas das obras estudadas dentro da tradição portuguesa e mesmo europeia. Se é verdade (como comprovaram
Schäfer-Prieß 2000 e Santos 2010) que as gramáticas mais inovadoras
sobretudo da primeira metade do século XIX foram beber à fonte de
autores franceses, representantes das várias correntes da grammaire génerale, julgamos que as gramáticas latino-portuguesas –e entre elas especialmente as que têm o português como metalinguagem– poderão fornecer respostas à pergunta sobre as origens ideológicas das gramáticas
supostamente mais tradicionais. É neste sentido que visamos fornecer
algumas achegas de como o trilho de uma investigação na gramaticografia latino-portuguesa poderá ser esclarecedor para a gramaticografia
da língua portuguesa.
A seguir, apresentaremos as obras pertencentes às duas tradições,
das quais temos notícia certa, quer por via dos livros originais, de reproduções, quer por consulta de catálogos de bibliotecas públicas.1
2. Tratados metalinguísticos dedicados à língua portuguesa
Desde os primórdios da gramaticografia portuguesa, deparamos
com uma atividade algo reduzida. Assim contam-se no século XVI os
seguintes quatro tratados metalinguísticos dedicados à língua portuguesa:
1 Utilizámos a Historiografia Gramatical (1500-1920) de Simão Cardoso (1994) como ponto
de partida, conferindo as referências às localizações com base nos catálogos on-line das
bibliotecas consultadas. Não serão referidas as obras das quais não conseguimos localizar
qualquer exemplar. Por razões de pertinência, somente são consideradas obras impressas
para o presente estudo, dado que as obras manuscritas conservadas não chegam a fornecer
uma imagem representativa da produção metagramatical naqueles séculos.
148
ROLF KEMMLER
– Fernão de Oliveira: Grammatica da lingoagem portuguesa
(1536)2
– João de Barros: Grammatica da lingua Portuguesa (1540)3
– Pero de Magalhães de Gandavo: Regras que ensinam a maneira de escrever e Orthographia da lingua Portuguesa, com hum Dialogo
que adiante se segue em defensam da mesma lingua (1574)4
– Duarte Nunes de Leão: Orthographia da Lingoa Portvgvesa
(1576)5
Entre as obras quinhentistas observa-se, portanto, que somente
duas são identificadas como gramáticas (incluindo, no entanto, considerações sobre a ortografia portuguesa), ao passo que as outras duas obras
devem ser classificadas como tratados metaortográficos independentes.
Também para o século XVII a situação não é muito diferente,
pois conhecem-se somente as seguintes obras:
– Amaro de Roboredo: Methodo grammatical para todas as lingvas (1619)6
2 Depois de um longo intervalo, a obra de Oliveira chegou a ser impressa somente no ano
de 1871 por iniciativa por Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca (1809-1876), o
primeiro Visconde de Azevedo, e Tito Augusto Duarte de Noronha (1834-1896). Durante o
século XX, a obra foi reeditada várias vezes. Um dos projetos de edição mais recentes desta
gramática é a nona edição, publicada em 2007 por Amadeu Torres (1924-2012) e Carlos
Assunção.
3 A obra de João de Barros (ca. 1496-1570) somente teve reedições póstumas, datando a
segunda edição de 1785. A terceira edição de 1971 reúne um estudo introdutório por Maria
Leonor Carvalhão Buescu (cf. Buescu em Barros, 1971), uma edição dos textos e o facsímile das obras didáticas de João de Barros, uma vez que estas hoje em dia se encontram
conservadas em bibliotecas diferentes.
4 Ainda no século XVI, o tratado metaortográfico de Gandavo chegou a ser inserido no compêndio didático de Manuel Barata, o que se pode verificar na edição recente (Barata, 2009).
Para além disso há duas edições do texto de 1961 (Emmanuel Pereira Filho) e de 1969 (Rolf
Nagel), bem como uma edição fac-similada de 1981 (cf. Kemmler, 2001: 169-170).
5 Desde a segunda edição póstuma (Leão, 1784), esta obra vem acompanhada pela obra Origens da Lingoa Portuguesa (11606), de maneira que o conjunto passa a ser intitulado desde
então Origem e Orthographia da Lingoa Portugueza (31864, 41983; cf. Kemmler, 2001: 175177).
6 Sem qualquer reimpressão contemporânea, a obra de Roboredo foi sujeita a duas edições facsimiladas, (22002, 32007). Esta última deve ser considerada a edição mais completa uma vez
que os esforços investigativos de Gonçalo Fernandes permitiram a inclusão do suplemento
intitulado «Recopilaçam da grãmatica portugueza, e latina, pela qual com as 1141 sentenças
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
149
– Alvaro Ferreira de Vera: Orthographia, ov modo para escrever
certo na lingua portuguesa (1631)
– João Franco Barreto: Orthographia da lingva portvgveza
(1671)7
– Bento Pereira: Regras Gerays, breves, & comprehensivas da
melhor orthografia com que se podem evitar erros no escrever da lingua
Latina, & Portugueza: Para se ajuntar â Prosodia (1666)8
– Bento Pereira: Ars grammaticæ pro lingua lusitana addiscenda
latino idiomate proponitur (1672)9
Dentro das obras seiscentistas que a tradição historiográfico-linguística portuguesa costuma contar entre as obras pertencentes à tradição
vernácula, encontramos, em primeiro lugar, com o Methodo grammatical uma gramática que –apesar de uma preocupação notável com a
língua portuguesa– julgamos seria tratada de forma mais adequada se
viesse a ser classificada como pertencendo à tradição latino-portuguesa.
De forma semelhante, a inserção da Ars grammaticæ dentro das
gramáticas portuguesas é problemática, por ficar evidente que se trata
de uma das primeiras gramáticas do português como língua estrangeira
(PLE). Parece evidente que a intenção pedagógica do autor teria sido
fornecer um manual metalinguístico para um público maioritariamente
não-lusófono, optando para este efeito por utilizar o latim como metalinguagem. Por causa da metalinguagem julgamos lícito incluir também
esta obra na tradição latino-portuguesa, já que esta deveria ainda ser
considerada como pertencente aos manuais de PLE.
insertas na arte se podem entender ambas as linguas» que se encontra entre as páginas 78 e
79 da obra de Roboredo, e que falta na maioria dos exemplares hoje conhecidos.
7 Para aspetos gramaticais na obra de Barreto, cf. o artigo recente de Ponce de León Romeo
(2006a).
8 Pouco tempo depois, o mesmo gramático jesuíta aproveitou parte do conteúdo deste
opúsculo no âmbito de uma tradução parcial latina dentro da Ars grammaticæ (1672). Para
além disso o tratado metaortográfico chegou a ser reeditado postumamente em 1733 (cf.
Kemmler, 2001: 194).
9 A gramática de Bento Pereira teve uma reedição póstuma debaixo do título Grammatica
Lvsitana: Latino Idiomate Proposita, et in qvinqve classes, instrvctas, svbsellvs recto ordine
distribvtis, divisa, vt ab omnibvs, tvm domesticis tvm exteris freqventari possint (Lisboa,
1806).
150
ROLF KEMMLER
Deixando de lado o fantasma bibliográfico das Regras da orthographia portugueza (1615) de Amaro de Roboredo, uma publicação
avulsa da qual parece não restar qualquer vestígio,10 conhecem-se três
tratados metaortográficos do século XVII. De entre estas obras, o tratado bastante volumoso de Barreto (1671) constitui a primeira obra metalinguística a dedicar-se a aspetos da descrição gramatical da língua
portuguesa.
No atinente à produção do século das luzes em Portugal, julgamos pertinente considerar uma divisão entre o período joanino e o
período josefino ou pombalino.11 No primeiro período do século XVIII
chegaram a ser publicadas as seguintes obras metalinguísticas:
– Jerónimo Contador de Argote: Regras da lingua portugueza,
Espelho da lingua Latina, ou disposiçam para facilitar o ensino da lingua Latina pelas regras da Portugueza (1721, 1725)12
– João de Morais Madureira Feijó: Orthographia, ou Arte de escrever, e Pronunciar com acerto a Lingua Portugueza (1734, 1739)
10 Já constatámos em Kemmler (2001: 188) que não nos fora possível encontrar qualquer
vestígio desta publicação. Fruto da investigação mais pormenorizada sobre a obra roborediana
de Gonçalo Fernandes e Carlos Assunção (2007: XV) constatam o seguinte: «As Regras,
ainda hoje desaparecidas, eram, para o P.e Francisco Alves (Abade de Baçal), constituídas
apenas por uma “uma folha raríssima” (1931: 449), que o P.e Vitorino José da Costa, sob o
pseudónimo Bento da Vitória, (re-)edita, mais de um século depois, possivelmente em 1738».
11 Esta periodização já foi apresentada na introdução do artigo intitulado «Iluminismo e
pensamento linguístico em Portugal» (Gonçalves, 2006: 2-3) com as seguintes palavras:
«Em Portugal, o século XVIII divide-se em dois momentos políticos bem distintos: por um
lado, o período joanino, culturalmente assinalado pela magnificência régia, possível graças
aos réditos do ouro brasileiro que propiciou obras extraordinárias; por outro lado, o período
josefino ou pombalino, mais ligado à acção do famoso Ministro do que ao próprio Rei».
Como se sabe, o reinado de D. João V durou de 1707 até 1750, seguindo-se os reinados de
D. José (1750-1777) e D. Maria I (1777-1816, sendo regente o príncipe e futuro rei D. João
VI desde 1792). Considerando que o surgimento de novas obras metalinguísticas se deve
sobretudo ao reformismo pombalino em todos os níveis de ensino (isto é, no ensino primário,
secundário e superior), julgamos pertinente incluir os anos pós-pombalinos 1777 até 1799 no
período pombalino.
12A primeira edição foi publicada debaixo do pseudónimo «Padre Caetano Maldonado
da Gama». Como comprovámos em Kemmler (2012b) com base em dados biográficos e
genealógicos, não cabe qualquer dúvida de que este pseudónimo somente poderá corresponder
a D. Jerónimo Contador de Argote. A segunda edição da gramática (Argote, 1725) já foi
publicada sob o verdadeiro nome do autor.
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
151
– Luís Caetano de Lima: Orthographia da lingua portugueza
(1736).
Dentro destas obras torna-se desde logo evidente que tanto a gramática de Jerónimo Contador de Argote (1676-1749)13 como a ortografia de Luís Caetano de Lima (1671-1757) foram elaboradas por clérigos
regulares teatinos que ambos eram sócios-fundadores da Academia Real
da História Portuguesa (1720-1776). Já a ortografia de Feijó, por mais
volumoso que fosse o tomo, é o complemento ortográfico ao cartapácio
da Arte explicada (1728-1732) do mesmo autor.
No período pombalino, a produção de tratados metalinguísticos
dedicados à língua portuguesa somente começa relativamente tarde, isto
é, em finais da década de sessenta, adquirindo, a partir daí, alguma importância:
– Luís do Monte Carmelo: Compendio de orthografia [...] (1767)
– João Pinheiro Freire da Cunha: Breve tratado da orthografia
para os que não frequentaram os estudos (1769)14
– António José dos Reis Lobato: Arte da grammatica da lingua
portugueza (1770)15
13É digno de nota que a gramática de Argote foi a primeira gramática da língua portuguesa
a ter mais do que uma edição em tempo de vida do autor. Entre as principais alterações
da primeira para a segunda edição deve-se contar a introdução da quarta parte (relativa à
variação diassistemática da língua portuguesa, cf. Argote 1725: 291-309) e de um breve
tratado ortográfico (Argote, 1725: 341-356).
14A primeira edição foi publicada sob o pseudónimo «Domingos Dionísio Duarte Daniel». Já
a segunda edição vem atribuída ao verdadeiro autor que intervém pessoalmente no processo
censório (cf. Kemmler, 2007: 135). Houve um total de nove edições, tendo as últimas três
sido publicadas após a morte do autor em 1811 (71813, 81814, 91815).
15Fruto de ampla investigação bibliográfica, na sua monografia de 2000, Carlos Assunção
conseguiu identificar quarenta edições da Arte de Lobato. Observa-se, no entanto, que
o universo das edições lobatianas ainda é mais diverso, uma vez que de vez em quando
surgem edições, cuja localização anteriormente não tinha sido possível. Um dos exemplos
mais chamativos é a existência de Lobato (1792) que no rosto é identificada como ‘terceira
impressão’ (no entanto depois de 1770, 1771 e 1788) e que julgamos deve ser considerada
como a edição de última mão por constar que o gramático já estava morto em 1794 (cf.
Kemmler, 2006: 100-103).
152
ROLF KEMMLER
– Bernardo de Lima e Melo Bacelar: Grammatica philosophica,
e orthographia racional da Lingua Portugueza; Para se pronunciarem,
e escreverem com acerto os vocabulos d’este idiôma (1783)16
– Francisco Félix Carneiro Souto-Maior: Orthographia da lingua portugueza, ou regras para escrever certo (1783)
– Francisca de Chantal Álvares: Breve Compendio da grammatica portugueza (1786)
– Francisco Nunes Cardoso: Arte, ou novo Methodo de ensinar
a ler a Lingua Portugueza, a que se prepoim hum novo Systema da sua
Orthografia, dedicada á Critica Portugueza (1788)
– Francisco Nunes Cardoso: Exame critico das Regras da Orthografia Portugueza. Mais acrescentado, e a que tambem se ajunta a Arte
da mesma Orthografia conforme o Novo Systema (1790)
– João Joaquim Casimiro: Methodo grammatical resumido da
lingua portugueza (1792)17
– Pedro José de Figueiredo: Arte da Grammatica portugueza,
ordenada em methodo breve, facil e claro (1799)18
– Pedro José da Fonseca: Rudimentos da Grammatica portugueza, Commodos á instrucção da Mocidade, e confirmados com selectos
exemplos de bons Autores (1799)
Observa-se, desde já, que os três primeiros autores de obras
metalinguísticas no período josefino são personagens que com todo o
direito podem ser identificadas como figuras pombalinas. Trata-se do
carmelita Luís do Monte Carmelo que era censor da Real Mesa Censória
(estabelecida em 1768) e de João Pinheiro Freire da Cunha (1738-1811)
que foi professor régio de língua latina desde 1760 até 1770, tendo desde
16Este conjunto metalinguístico chegou ainda a ser publicado em anexo ao dicionário
monolingue do mesmo autor em 1783, sendo, para além disso, sujeito a uma reedição facsimilada em 1996.
17A gramática escolar de Casimiro teve pelo menos oito edições (Schäfer-Prieß, 2000: 29
enumera as edições de 1792, 1803, 1811, 1814, 1815, 1818, 1822 e 1838).
18A gramática de Figueiredo teve cinco edições até 1837, cf. Schäfer-Prieß (2000: 31). Para
esclarecimentos sobre as edições, inclusive alguns documentos inéditos relativos às edições
da gramática de Figueiredo, cf. Duarte (no prelo).
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
153
1772 sido fundador e promotor da Academia Orthográfica Portugueza.
Finalmente, António José dos Reis Lobato chegou a ser o primeiro gramático, cuja obra fosse declarada como gramática obrigatório do ensino
primário em Portugal e Colónias.
As obras de Bacelar (1783), Soutomaior (1783) e Cardoso (1788,
1790) não conseguiram até agora muita atenção da parte da investigação
moderna. O mesmo pode ser afirmado sobre a gramática de Álvares
(1786) de que somente se sabe a verdadeira autoria há pouco tempo.19
Já a gramática de Casimiro (1792), bem como as duas gramáticas de
Figueiredo e Fonseca (que ambas efetivamente só chegaram a ser divulgadas em 1800 e não em 1799 como alega os rostos) tiveram algo mais
impacto ao longo da primeira metade do século XIX.
No dealbar do século XIX, a produção metagramatical aumenta
de forma exponencial. Num período em que Portugal sofreu as invasões
napoleónicas e a transferência da corte para o Rio de Janeiro (18081821), bem como o surgimento do liberalismo e do miguelismo que
culminaram na guerra civil (1828-1834), foram publicadas as seguintes
dezasseis gramáticas da língua portuguesa:20
– Anónimo: Compendio de Grammatica Portugueza (1804)
– Manuel Dias de Sousa: Grammatica portugueza ordenada
segundo a doutrina dos mais celebres Gramaticos conhecidos, assim
nacionaes como estrangeiros para Facilitar á mocidade Portugueza o
estudo de lêr e escrevêr a sua propria Lingua, e a inteligencia das outras em que se quizer instruir [...] (1804)
– António de Morais Silva: Epitome da Grammatica da Lingua
Portugueza [...] (1806)
19Barbara Schäfer-Prieß (2000: 28-29) é a primeira investigadora moderna a mencionar esta
obra que merece especial atenção por ter sido a primeira gramática da língua portuguesa a
ser escrita por uma mulher e para um público do sexo feminino. Para o estabelecimento da
autoria cf. Kemmler, Assunção, Fernandes (2010).
20Apesar de existirem obras atribuíveis a protagonistas dos dois partidos, o relacionamento
entre a produção metagramatical portuguesa e as lides entre miguelistas e liberais portugueses
ainda não foi estudado. Por ser notório, porém, que a língua portuguesa foi adquirindo um
estatuto gradualmente mais forte no ensino escolar português após a vitória do partido liberal,
pareceu-nos adequado traçar esta divisória para o presente estudo.
ROLF KEMMLER
154
– Jerónimo Soares Barbosa: As duas linguas, ou Grammatica
Philosophica da Lingua Portugueza, Comparada com a Latina, Para
Ambas se aprenderam ao mesmo tempo (1807)
– José da Virgem Maria: Novo methodo de educar os meninos e
meninas, principalmente nas villas e cidades (1815)
– António José Batista: Compendio de grammatica e orthographia portugueza (1816)
– João Crisóstomo do Couto e Melo: Gramática Filosófica da
Linguagem Portuguêza (1818)
– Francisco Soares Ferreira: Elementos de grammatica portugueza, ordenados segundo a doutrina dos melhores grammaticos (1819)
– António Leite Ribeiro: Theoria do Discurso: Applicada á Lingoa Portugueza; em que se mostra a estreita relação, e mutua dependencia das quatro Sciencias intellectuaes, a saber Ideologia, Grammatica, Logica, e Rhetorica (1819)
– Sebastião José Guedes de Albuquerque: Grammatica portugueza (1820)
– Manuel Borges Carneiro: Grammatica, Orthographia e Arithmetica Portugueza, ou Arte de Falar, Escrever e Contar (1820)
– Jerónimo Soares Barbosa: Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza ou Principios da Grammatica Geral applicados á Nossa Linguagem (1822)
– Anónimo: Grammatica Portugueza (1826)
– Jaulino Lopes Arneiro: Grammatica portugueza em analogia com as linguas de que toma origem, principalmente latina e grega
(1827)
– Francisco Solano Constâncio: Grammatica analytica da Lingua Portugueza, offerecida á mocidade estudiosa de Portugal e do Brasil (1831)
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
155
– Luís Francisco Midosi: O Expositor portuguez, ou rudimentos
de ensino da lingua materna (1831)
– Emílio Aquiles Monteverde: Elementos de grammatica portugueza, desenvolvidos com a maior clareza possivel para uso das aulas
(1833)
Como testemunham os estudos de Schäfer-Prieß (2000) e Santos
(2010), a maioria destas obras não se limitou a reproduzir ideias provindas da gramaticografia tradicional latino-portuguesa. A partir de Sousa
(1804) e Silva (1806) observa-se uma influência maciça das várias correntes da gramaticografia francesa contemporânea.21 Perante o caráter
experimental de muitas das obras, pouco admira que a maioria delas não
tenha tido mais do que uma edição. Assim, a obra de Silva (1806) teve
uma projeção extraordinária, uma vez que o Epitome chegou a ser anexo a todas as edições do Diccionario da Lingua Portugueza do mesmo
autor desde a segunda edição de 1813. De entre as obras publicadas na
segunda década do século, somente conta ter havido uma reedição da
obra de Ribeiro (1836). Já as obras publicadas em 1831-1833 tiveram
todas várias reedições até meados do século.
No entanto, merece especial destaque aquilo que muitos investigadores hoje encaram pertinentemente como o apogeu da gramaticografia portuguesa até então: a Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza de Jerónimo Soares Barbosa (1737-1816), que fora professor
de retórica no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Como
descobrimos há pouco (Kemmler, 2012a) com base em documentação
inédita, o manuscrito daquela obra que viria a ser publicada como gramática académica durante 59 anos (desde 11822 até 71881) foi legado
à Academia das Ciências de Lisboa pelo próprio gramático, que assim
visava encher a lacuna de uma gramática filosófica daquela instituição a
que pertencia desde 1789.
Já a obra As duas linguas do mesmo autor (e similarmente a gramática de Arneiro, 1827) poderia ser classificada igualmente como per21Quer dizer desde a gramática geral racionalista de Nicolas Beauzée (1767), a gramática
universalista de Antoine Court de Gébelin (1774, 1776) até à gramática sensualista de
Antoine Destutt de Tracy (1803).
156
ROLF KEMMLER
tencendo ao grupo das gramáticas latino-portuguesas. Dado, porém, que
tanto o título como o conteúdo destas obras evidenciam a preocupação
da parte dos autores com a aprendizagem da língua portuguesa, optámos
por incluí-las no grupo da gramáticas portuguesas.
Entre os gramáticos, surgem pela primeira vez personagens que
misturaram a suas ideias didáticas com uma agenda política. Tanto Manuel Borges Carneiro (1774-1833) como Luís Francisco Midosi (17961877) eram conhecidos representantes do partido liberal e também o
estrangeirado Francisco Solano Constâncio (1777-1846) não era alheio
às novas tendências políticas.
No campo da ortografia observamos a publicação de pelo menos
dezasseis opúsculos no mesmo período. Se bem que tentámos fazer um
levantamento tão exaustivo quanto possível, não se pode mesmo ter certeza absoluta de que a seguinte lista inclua todas as obras do género que
tenham sido publicadas naquele período:22
– Joaquim José Caetano Pereira e Sousa: Noções sobre a ortografia da lingua portugueza (1807)
– Pedro José da Fonseca: Rudimentos da orthographia da lingua
portugueza (1809)
– Luís Gonçalves Coutinho: Resumo orthographico da lingua
portugueza, extrahido dos melhores authores [...] (1812)
– Compendio Orthographico ou orthographia resumida para os
meninos e para todos aquelles que a quizerem aprender, e para uso das
escolas, nas quaes devem os meninos argumentar com seus condiscipulos, tão necessarios e uteis principios (1812)
– Luís Gonçalves Coutinho: Breve tratado, ou explicação do que
é Grammática, Oração Portugueza [...] (1814)
22Optámos por mencionar as obras de Batista (1816) e Carneiro (1820) somente entre
as gramáticas, mesmo que os títulos igualmente chamem a atenção para a componente
ortográfica destas duas obras.
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
157
– João Crisóstomo do Couto e Melo: Nôvo Método de ensinar
e aprender a pronunciação e lêitura da linguagêe portuguêza pâra úso
das escólas particulares do exército [...] (1817)
– Rodrigo Ferreira da Costa: Tratado de Orthographia Portugueza, deduzida das suas tres bases, a pronunciação, a etymologia, e o
uso dos doutos: e accommodado á intelligencia das pessoas que ignoram o grego e o latim (1818)
– João Crisóstomo do Couto e Melo: Ortografia filosófica da
linguagem portuguêza (1818)
– Rodrigo Ferreira da Costa: Reflexões e observações previas
sobre a escolha do melhor systema de Orthographia portugueza [...]
(1821)
– José Joaquim Bordalo: Tratado d´orthografia (1824)
– F.P.C.: Novo resumo de ortografia da lingua portugueza (1824)
– Joaquim José Apolinário: Resumo orthographico, ou regras
geraes de orthographia da lingua portugueza, para uso dos meninos
(1826)
– Joaquim Ferreira Codesso: Breve Tractado da Orthographia,
para os que frequentão os estudos, ou diálogo Sobre as mais principais
Regras da Orthographia util para o povo menos instruido e para que
os que não tendo frequentado as Aulas, se achão já empregados nos
escriptorios publicos e desejão acertar na prática sem grande multiplicidade de regras, que lhes são dificeis de comprehender e muito mais
proveitoso aos Meninos que frequentão as Eschólas (1826)
– Joaquim Ferreira Codesso: Appendice ao Breve Tractado da
Orthographia (1826)
– António Gil Gomes: Regras elementares sobre a pontuação,
segunda parte da Orthographia (1831)
– António Maria Barker: Dialogo orthographico da lingua portugueza, com reflexões, e notas sobre as differentes opiniões dos orthographos (1834)
158
ROLF KEMMLER
Numa altura em que a tradição editorial da Orthographia de Feijó
tinha sido reiniciada (no século XIX houve edições desta obra em 1802,
1806, 1814, 1815, 1818, 1824, 1836 e 1861), os primeiros tratados metaortográficos do século XIX constituem essencialmente manuais para
o ensino escolar da ortografia. Tal como acontece com Fonseca (1809),
Bordalo (1824), Apolinário (1826) e outros opúsculos do género, várias
destas obras chegaram a ser anexas a edições da gramática de Lobato.23
3. A tradição gramatical latino-portuguesa impressa
A modos de definição, consideramos como gramaticografia latino-portuguesa (propriamente dita) todas as manifestações de gramática
latina que foram publicadas em Portugal ou que se devem a autores
portugueses, mesmo que tenham sido publicadas noutros países. Neste
âmbito, não interessa somente saber em que medida pode ter havido
relações entre a gramaticografia latino-portuguesa e a gramaticografia
portuguesa, mas também em que medida ideias metalinguísticas de gramáticos portugueses evoluíram e chegaram a ser introduzidas nas respetivas obras. Uma vez que este aspeto não parece essencial para a nossa
perspetiva comparativa, não iremos tomar em consideração a discussão
da periodização da gramaticografia quatrocentista e quinhentista latino-portuguesa que encontramos em Verdelho (1995: 90) e Ponce de León
Romeo (no prelo: capítulo 1). Esta tradição teve os seus inícios em 1497:
– Pastrana, Juan de/ Rombo, Pedro: Grammatica pastrane [...]
siue tractatus intitulatus: Thesaurus pauperum siue speculum puerorum
editum a magistro Johanne de pastrana (1497)
– Rombo, Pedro: Materiarum editio ex baculo cecorum a petro
rombo in artibus baccalario breuiter collecta (1497)
– Martins, António: Antonij martini primi quondam huius artis
pastrane in alma vniuersitate Ulixbonensi preceptoris, materierum editio
a baculo cecorum breuiter collecta (1497)
Entre 27 de maio e 20 de junho de 1497, o impressor de origem alemã Valentim Fernandes da Morávia imprimiu em Lisboa as três
23Para informações sobre as edições da gramática de Lobato e os anexos metaortográficos, cf.
Assunção (2000: 29-39).
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
159
partes do conjunto de obras metalinguísticas latinas, nomeadamente o
Thesaurus pauperum de Juan de Pastrana com anotações marginais de
Pedro Rombo, bem como as versões da segunda parte da gramática de
Pastrana que tinham sido elaboradas pelo mesmo Pedro Rombo e por
António Martins (Dias/ IBNL. 1995: 63). Não deixa de ser notável que
dentro da obra de Rombo se observem alguns (embora raros) exemplos
em língua portuguesa, o que torna ainda mais evidente que todo este
conjunto deve justamente ser considerado como o início da gramaticografia latino-portuguesa impressa.24
Temos conhecimento ou notícia segura das seguintes gramáticas
latino-portuguesas do século XVI:
– Estevão Cavaleiro: Noua grammatices Marie matris dei virginis ars cuius author est magister Stephanus eques lusitanus (1516)
– Máximo de Sousa: Institutiones tum lucide, tum compendiose
latinarum literarum (1535)
– Duarte Pinhel: Latinæ Grammatices Compendia (1543)
– Nicolau Clenardo: Jnstitutiones Grammaticæ Latinæ (1538)25
– Jerónimo Cardoso: Grammaticae introductiones breuiores &
lucidiores [...] (1552)26
– Jan van Pauteren: Carmina Ioannis Despauterij De arte
grammatica cum quibusdam alijs ad puerorum institutionem necessarijs (1555)27
24Agradecemos ao Prof. Rogelio Ponce de León Romeo que chamou a nossa atenção para o
valor das obras de 1497 dentro da cronologia desta tradição gramaticográfica.
25Trata-se da primeira edição da gramática latina do gramático flamengo Nicolas Cleynaerts
(também conhecido como Clenaerts, Cleynarts, Kleinharts, Clenardus or Clenard) que
durante alguns anos viveu em Braga (cf. Cleynaerts, 1538).
26Consta que esta obra foi posteriormente editada debaixo do título Institutiones in linguam
latinam breviores et lucidiores (1557, 1562).
27Cardoso (1994: 147) afirma existirem dois exemplares de outra edição portuguesa anterior na
Biblioteca Pública de Évora (Coimbra, 1555). Gusmão (1964: 83-84) documenta a existência
da edição de 1555 (cota Res. 230), bem como de outra edição bracarense de 1561 (cota Res.
259-A). Ainda não tivemos acesso a estas edições, mas às duas edições posteriores de Braga
(Pauteren 1563) e Coimbra (Pauteren, 1570) que se encontram disponíveis na rede.
160
ROLF KEMMLER
– Fernando Soares Homem: Grammatices duo Compendia eo
modo in methodum contracta ut nihil redundet, aut desit (1557)
– Ruy López de Segura: Grammaticae institutiones a Roderico
Lopez a Sigura nuper aeditae (1563)
– Manuel Álvares: De Institutione Grammatica libri tres (1572)
–ARS MAIOR
– Manuel Álvares: De Institutione Grammatica libri tres (1573)
–ARS MINOR
– Francisco Martins: Grammaticæ artis integra institutio (1588)
Dentro destas dez obras, três devem-se a autores estrangeiros,
nomeadamente as Jnstitutiones Grammaticæ Latinæ (Braga, 1538) do
flamengo Nicolau Clenardo (1495-1542), as Carmina de arte grammatica do flamengo Jan van Pauteren (ca. 1460-1520) e as Grammaticae
institutiones (Lisboa, 1563) do espanhol Ruy López de Segura (ca.
1540-ca. 1580).
Dentro das gramáticas latino-portuguesas quinhentistas merece,
no entanto, especial destaque a obra De Institutione Grammatica libri
tres do jesuíta madeirense Manuel Álvares (1526-1583). Descobrimos
há pouco que logo a seguir à celebérrima edição princeps de 1572 (que
deverá ser chamada ARS MAIOR ou ‘arte grande’) foi publicada uma
ARS MINOR ou ‘arte pequena’ de 1573 que reúne a doutrina gramatical
na sua totalidade, mas sem a maioria dos escólios.
Por ter sido consagrada como gramática oficial do ensino linguístico jesuítico na Ratio Studiorum de 1599, a gramática alvaresiana
foi objeto de um número imenso de edições em muitos países em pelo
menos três continentes. Apesar do labor de vários investigadores nas
últimas décadas, hoje ainda não existem informações conclusivas sobre
o verdadeiro universo editorial daquela gramática.
Em termos quantitativos, a produção de gramáticas originais latino-portuguesas no século XVII é de importância algo reduzida, o que
julgamos dever-se à importância que cabia à gramática de Álvares dentro do sistema de ensino português, dominado pela Companhia de Jesus:
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
161
– Pedro Sanches: Arte de grammatica pera em breve saber latim,
composta em linguagem e verso portuguez (1610)28
– Amaro de Roboredo: Verdadeira grammatica latina para se
bem saber em breve tempo, escripta na lingua portugueza, com muitos
exemplos na latina (1615)
– Amaro de Roboredo: Grammatica latina mais breve e facil que
as publicadas até agora, na qual precedem os exemplos ás regras (1625)
– Domingos de Araújo: Grammatica latina: Novamente ordenada, e Conuertida em Portugues pera menos trabalho dos que a começaõ
aprender (1627)
– Frutuoso Pereira: Arte de grammatica latina: ordenada em
portuguez, pera mayor facilidade deste estudo (1643)29
Em 1610 chegou à luz a primeira gramática latino-portuguesa
que usa o português como metalinguagem –uma caraterística, aliás, que
esta obra partilha com as demais gramáticas latinas publicadas pela primeira vez no século XVII. Trata-se da Arte de grammatica de Pedro
Sanches (?-1635), primo do gramático espanhol Francisco Sánchez de
las Brozas (1523-1600). A esta obra seguiram-se a Verdadeira grammatica latina (1615) e a Grammatica latina (1625), bem como o já mencionado Methodo grammatical para todas as lingvas (1619) de Amaro de
Roboredo. Com três edições, a obra de Frutuoso Pereira teve maior êxito
no século XVII, pelo qual mereceria um estudo separado.
Também no século XVII surgiu a tradição epistemológica dos
cartapácios, que constituem na sua essência comentários da gramática
latina de Manuel Álvares em língua portuguesa.30 Mesmo que o número
absoluto de cartapácios seja algo reduzido, não deixa de ser notável que
28Veja-se a reedição fac-similada em Sánchez (2008).
29Parece que a primeira edição data de 1636 e consta que a terceira é de 1652.
30Tanto as Explicationes in praecipuam partem totius artis (1670) de José Soares como as
Explicationes in omnes partes Totius Artis de João de Morais Madureira Feijó (que constitui
a primeira edição do primeiro volume da Arte Explicada do mesmo autor) são tratados
metalinguísticos em língua portuguesa que somente apresentam o rosto e paratextos em
latim, respeitando, de resto, a disposição da gramática alvaresiana.
ROLF KEMMLER
162
pelo menos as obras de Chorro, Feijó, Franco, Freire e Soares tenham
tido um impacto considerável através de várias edições:31
– Bartolomeu Rodrigues Chorro: Curiosas advertencias da boa
grammatica no compendio e exposição do P. Manuel Alvares (1619)
– João Nunes Freire: Annotaçoens aos generos e preteritos da
Arte nova (1635)
– João Nunes Freire: Annotaçoens ad rudimenta Grammaticae
nas regras mais geraes della com huma instrucção brevissima para se
começar a compôr, e construir (1643)
– João Nunes Freire: Margens da Syntaxe, com a construcção em
Portuguez, posta na interlinea do texto das regras d’ella pela Arte do P.
Manuel Alvares (1653)
– José Soares: Explicationes in praecipuam partem totius artis P.
Emmanuelis Alvari quae syntaxim complectitur (1670)
– António Franco: Promptuario da Syntaxe, dividido em duas
partes (1699)32
João Antunes de Brito: Mappa da Grammatica Latina dividido
em cinco partes com admiravel brevidade, & clareza, de modo, que possaõ bem saberse em pouco tempo os preceitos della (1714)
–
– João de Morais Madureira Feijó: Explicationes in omnes partes Totius Artis. R. P. Emmanuelis Alvarez è Societate Jesu [...] (1729)
31Apesar de já terem sido referenciados em obras que se debruçam sobre as reformas pombalinas
no ensino (cf. Kemmler, 2007: 16-17), falta até hoje um estudo (com um levantamento
bibliográfico exaustivo) de maior envergadura sobre este conjunto de obras. Julgamos que
será útil como ponto de partida para este efeito o artigo «El Álvarez en vernáculo: Las
exégesis de los De institutione grammatica libri tres en Portugal durante el siglo XVII» de
Rogelio Ponce de León Romeo (2001b).
32Dado que as Contramina grammatical com que se desvanecem diversas notas e assumptos,
que um curioso imprimiu contra os grammaticos e em especial contra a Arte do Padre
Manuel Alvares (1731) do mesmo autor foram elaboradas no âmbito de uma resposta à
polémica obra antijesuítica Exame da syntaxe e reflexoens sobre as suas regras (1729) de
Manuel Coelho de Sousa (Ponce de León Romeo, 2005: 813) cremos que não será adequada
a sua inclusão entre o número dos cartapácios, como afirmámos em Kemmler (2007: 17).
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
163
– João de Morais Madureira Feijó: Arte explicada (restantes dois
volumes em vários tomos; 1730-1732)
– Matias Rodrigues Portela/ Inácio Leão de Sá: Cartapacio de
syllaba, e figuras, conforme a ordem dos mais cartapacios de grammatica, ordenado para melhor commodo dos estudantes desta faculdade
nos pateos da Companhia de Jesu (1738)
Bastante menos importante é a atividade editorial no domínio
das ortografias latinas, nas quais o português como metalinguagem somente se vai impondo a partir de meados do século XVIII:
– Aires Barbosa: De Orthographia (1517)
– Luís António Verney (1747): De Orthographia Latina liber.
– António Álvares (1758-1759): Orthographia da lingua latina.
– António Pereira de Figueiredo (1765): Observações sobre a
lingua e orthographia latina, tiradas dos mármores, bronzes e medalhas
...
– José Pedro Soares (1790): Orthographia latina, ou regras para
escrever e pronunciar com acerto a lingua latina.
No período joanino do século XVIII encontram-se as seguintes
obras, publicadas entre 1722 e 1746:
– Bartolomeu Soares da Fonseca: Rudimenta ou explicação das
oito partes da oração grammatical, por estylo breve e claro, para melhor intelligência dos principiantes (1722)
– Bartolomeu Soares da Fonseca: Lucerna grammatical em que
se explica com brevidade e clareza o modo de escrever, pronunciar e
compor as partes da oração (1728)
– Paulo Gomes da Silva Barbosa: Desafios para os meninos da
escola dos primeiros rudimentos da Grammatica com toda a variedade,
e medições dos versos lyricos de Horacio, e figuras mala principaes da
rhetorica (1731)
164
ROLF KEMMLER
– António Félix Mendes: Grammatica latina do bacharel Domingos de Araujo, reformada, accrescentada, e reduzida a methodo
mais facil (1737)
– António Félix Mendes: Grammatica portugueza da lingua latina para uso dos cavalheros e nobres, que tem Mestre em suas casas
[...] (1741)
– Jacôme da Conceição: Methodo facilissimo de aprender
Grammatica (1743)
– Simão Crispim de Toro Cardoso: Arte da grammatica, composição dos seus preceitos (1746)
– Manuel Monteiro: Novo methodo para se aprender a grammatica latina, ordenada para uso das Eschólas da Congregação do Oratorio na Casa da N. Senhora das Necessidades (1746)
São de especial importância as gramáticas publicadas pelo professor lisboeta de língua latina António Félix Mendes (1706-1790). Para
além de ter reformulado a já mencionada gramática seiscentista de Domingos de Araújo (11627) em 1737, Mendes passou a publicar a gramática sob o seu nome.33 Esta obra que estava pensada para ser utilizada
no âmbito de um regime declaradamente escolar (daí a referência aos
mestres nas casas dos educandos), passou a ser uma das duas gramáticas
oficiais do ensino público aquando da primeira reforma pombalina do
ensino em 1759.
Também a Gramática oratoriana visou desde logo uma aplicação
mais ampla. Destinada a ser utilizada para as escolas da Congregação do
Oratório em Lisboa, o primeiro tomo do Novo methodo para se aprender a grammatica latina foi publicado pelo oratoriano Manuel Monteiro
(1667-1758). Parece que o projeto editorial não terá tido continuidade,
pois ignora-se a existência de uma segunda parte.34
33Para uma descrição bibliográfica completa, cf. a referência relativa a Mendes (1741).
34Silva (1893, XVI: 271) afirma o seguinte sobre a segunda parte da obra: «A parte 2.ª da
primeira edição do Novo methodo (n.° 1114) foi impressa em 1749. 8.º de 16 (innumeradas)
- 104 pag.». Dado, porém, que não parece conservar-se qualquer exemplar de uma segunda
parte, não podemos deixar de ficar na dúvida...
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
165
No período pombalino, a produção metagramatical latino-portuguesa teve o seu início precisamente com a continuação dos esforços
oratorianos para a elaboração de uma gramática latina em língua portuguesa que se afastasse do paradigma alvaresiano. A primeira de muitas
edições do Novo methodo da grammatica latina do jovem oratoriano
António Pereira de Figueiredo (1725-1897) foi publicada em dois tomos
em 1752 e 1753, vindo a ser estabelecida como gramática oficial do
ensino público pombalino por força do Alvará de 28 de junho de 1759
(Kemmler 2007: 33):
– António Pereira de Figueiredo: Novo methodo da grammatica
latina, para uso das escholas da Congregação do Oratorio (1752-1753)
– Luís António Verney: Grammatica latina, tratada por um metodo novo, claro e facil: Para uzo Daquelas pesoas, que querem aprendela brevemente, e solidamente (1758)
– António Pereira Xavier: Arte da grammatica latina pra uso das
escolas destes reinos e instrucção da mocidade portugueza (1773)
– António Rodrigues Dantas: Arte Latina ou nova collecçaõ dos
melhores preceitos para, se aprender breve e solidamente a grammatica
da lingua Latina (1773)
– Tomás António da Silva: Nova instituição da Grammatica latina, dividida em tres partes (1779)
– Manuel dos Santos Leal: Grammatica lusitano-latina, que ensina a lingua latina, regulada na maior parte pela Portugueza, sem discrepancia dos Escriptores Latinos (1783)
– Domingos Nunes de Oliveira: Methodo novissimo para aprender a grammatica latina, fundamentalmente e com brevidade [...] (1786)
– Manuel Rodrigues Maia: Arte da grammatica latina (1793)
– Manuel Luís de Magalhães: Reflexões sobre as quatro partes
da grammatica latina, etymologia, orthographia, prosodia e syntaxe
(1794)
166
ROLF KEMMLER
– Diogo de Melo e Meneses: Novo epitome da grammatica latina moderna ou verdadeiro methodo de ensinar latim a hum principiante
[...] (1795)
– Emídio José David Leitão: Novo compendio de Grammatica
latina para uso das Escholas da Universidade e do Reino (1796)
– António Venâncio da Costa: Novo methodo da grammatica latina para uso do Real Collegio de N. S. da Conceição (1799)
Ao lado da referida obra de Figueiredo, a Grammatica latina do
estrangeirado Luís António Verney (1713-1792) é de especial importância. Trata-se de uma obra bastante extensa que Verney publicou anonimamente em 1758, devendo provavelmente ser encarada como mais um
contributo daquele reformador do sistema de ensino.
As restantes gramáticas latinas da segunda metade do século
XVIII partilham a caraterística de ter sido redigidas por professores públicos ou privados de latim, sendo destinadas para fins didáticos mais
ou menos explícitos. Dentro destas gramáticas, a de Xavier (11773) teve
pelo menos três edições até 1784, a de Dantas (11773) até teve quatro
edições até 179435 e a de Maia (1793) teve várias reedições até pelo menos 1824. Semelhantemente, a obra de Meneses teve várias reedições
sob vários títulos até à publicação da Grammatica racional da lingua
latina em 1835.
Para as primeiras décadas do século XIX observa-se o surgimento de um número reduzido de novas gramáticas latino-portuguesas. Mas
isto não quer dizer que o latim tivesse perdido a importância como disciplina essencial do ensino escolar. Para além da existência da já referida obra As duas linguas (1807) de Soares Barbosa, que alcança a sua
importância pela então atividade do autor como deputado da Junta da
Directoria Geral dos Estudos desde 1799, julgamos que a explicação
mais óbvia será a existência de reedições de gramáticas latinas setecentistas no mercado livreiro de inícios do século XIX:36
35 Conforme estabelecemos em Kemmler (2001: 269-272), o gramático lisboeta João Pinheiro
Freire da Cunha promoveu a impressão da quarta edição (póstuma) da gramática de Dantas,
o que se tornou problemático devido a problemas de formatação e layout.
36 Por crermos que os títulos prometem ocupar-se somente daqueles aspetos parciais da
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
167
– Miguel de Bourdiec: Elementos da Grammatica latina, exposta em nova ordem (1816)
– Joaquim José de Campos Abreu e Lemos: Grammatica elementar da lingua latina, por systema philosophico [...] (1822)
– José Vicente Gomes de Moura: Compendio de Grammatica
Latina e Portugueza (1829)
No grupo destas gramáticas latino-portuguesas oitocentistas,
merece especial destaque o Compendio de Grammatica Latina e Portugueza de José Vicente Gomes de Moura (1769-1854). Com efeito, esta
obra viria a desempenhar um papel essencial no ensino público das línguas latina e portuguesa durante a primeira metade do século XIX,37
contando-se um total de doze edições até 1876.
4. Conclusões
Ao longo do presente artigo, referimos um total de 113 obras
metalinguísticas conhecidas (sem incluir obras que declaradamente só
se dedicam a partes da gramática como a sintaxe ou questões morfológicas), que foram impressas em Portugal ou em prelos estrangeiros, tendo,
neste caso, gramáticos portugueses como autores.
gramática latina, nomeadamente dos campos da sintaxe figurada e da prosódia, optámos por
excluir duas obras de José Pedro Soares que não conseguimos consultar: Grammatica latina
figurada, confrontada com a grammatica materna (1802) e Prosodia novissima reduzida a
compendio: regra preciosa dos accentos para se pronunciarem acertada e fundamentalmente
as palavras latinas: com um epigramma das regras das quantidades das syllabas (1817).
37 Conforme estabelecemos em Kemmler (2010: 471-472), a obra de Moura alcançou o estatuto de gramática oficial do ensino público em Portugal por resolução de D. Miguel I «[...] até
ser paulatinamente substituído pela Grammatica Elementar da Lingua Latina de Joaquim Alves de Sousa (1857) e pela Nova Grammatica Portu­gueza de Bento José de Oliveira (1862)»
ROLF KEMMLER
168
século XIX
século
XVIII
século
XVII
século XV
Categoria
século XVI
Tabela 1.
1. gramaticografia portuguesa
1.1. português língua materna
2
1.2. ortografias portuguesas
2
1.3. PLE (metalinguagem: latim)
7
17
7
16
5
20
3
6
3
3
1
2. gramaticografia latino-portuguesa
2.1. metalinguagem: latim
3
11
2.2. metalinguagem: português
2.3. cartapácios (em português)
2.4. ortografias da língua latina
1
4
Na tradição gramaticográfica portuguesa de 1536 até 1833 deve
considerar-se pelo menos o número de 26 obras metalinguísticas originais que são dedicadas à língua portuguesa, acrescentando-se a gramática latina de Bento Pereira (1672). Com 28 publicações desde 1574 até
1834, os tratados metaortográficos somente se apresentam num número
ligeiramente mais elevado. Torna-se evidente que nem sempre é possível distinguir as gramáticas e as ortografias de forma muito nítida,
por um lado porque a ortografia é uma das partes da gramática e pode
mesmo ser uma parte integrante de uma determinada obra, por outro,
porque existem tratados metaortográficos com uma forte componente
metagramatical (tais como Barreto 1671, Feijó 1734, Cunha 1769).
Na gramaticografia latino-portuguesa de 1497 até 1829 devemos
distinguir entre obras que (a) usam o latim como metalinguagem e aquelas que (b) usam o português como metalinguagem. Nas 14 gramáticas
dos séculos XV e XVI verifica-se que todas pertencem ao primeiro grupo. Nestas obras, o português parece limitado ao papel auxiliar, como
nos exemplos ou dentro dos paradigmas verbais (tal como acontece na
gramática de Manuel Álvares). Já nas gramáticas latino-portuguesas
seiscentistas, o português é utilizado como metalinguagem, o que vem
acompanhado pela exigência de esse mesmo idioma vir a ser usado no
Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal:
169
ensino linguístico. Desde 1610 até 1829 contamos 28 obras que pertencem a esta categoria.
Torna-se evidente que os cartapácios à gramática de Manuel Álvares constituem uma tradição independente, na qual contámos nove
obras desde 1619 até 1738, muitas das quais, convém lembrá-lo, foram
objeto de bastantes reedições até ao século XVIII.
Já o campo das ortografias da língua latina evidentemente era
considerado como sendo de menor importância. Contamos apenas cinco
obras desde 1615 até 1790.
Voltando aos textos metagramaticais, o período de 1497 até 1834
oferece-nos pelo menos 27 obras dedicadas principalmente à língua portuguesa, que contrastam com 42 obras dedicadas sobretudo ao latim. Seria de enorme interesse podermos incluir nesta lista e nas nossas considerações todo o universo das reedições, variações tipográficas, etc. que
as obras em questão conheceram.
Mas a verdade é que mesmo que já existam as teses de doutoramento de Gómez Gómez (2002) e Ponce de León Romeo (2002a),
como o grande número de artigos de especialistas na gramaticografia
latino-portuguesa, tais como, entre outros, de Gómez Gómez (2000,
2002b, 2003, 2005), Ponce de León Romeo (1996, 2001a/b, 2002b/c,
2003, 2004a/b/c, 2005, 2006a/b, 2007, 2008a/b, 2009a/b), etc., ainda
não estamos próximos de conhecer todas as obras que pertencem ao
universo metalinguístico latino-português, para não falar das reedições
e variantes tipográficas.
Os estudos já realizados evidenciam que as gramáticas latino-portuguesas podem trazer contributos importantes para os estudos da
gramaticografia portuguesa. No entanto, estamos convencidos que os
frutos verdadeiramente interessantes surgirão quando a historiografia
linguística portuguesa vier a dedicar mais atenção ao ramo da tradição
latino-portuguesa...
170
ROLF KEMMLER
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Centro de Literatura Portuguesa
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
RESUMO
A produção ficcional barroca levanta questões pertinentes no que diz respeito à representação alegórica. Com efeito, a alegoria constitui um dos seus elementos constantes,
mas tem raízes profundas tanto na tradição clássica como na tradição medieval, de que
o barroco representa uma síntese complexa. Desta tradição conjunta vem o conceito
de alegoria como tropo retórico, que se manteve nos manuais até ao século XVII. Este
fundamenta a alegoria na translatio, facto potenciado sobretudo pela analogia entre
dois universos, o da ficção e o da leitura. Mas essa tradição levantou outros aspetos
nucleares: a relação entre fictio e alegoria, a fuga ao discurso mimético, a extrema
capacidade visual e plástica, e a função didático-moral.
Tendo em conta estes aspetos, a alegoria permitiu a arrumação cronológica e genológica da ficção romanesca produzida em Portugal entre 1600 e 1750, definindo a estrutura narrativa e a sua funcionalidade no contexto literário. Permitiu ainda considerar
a visualidade como característica essencial, pelo recurso aos emblemas, à descrição,
à ecfrasis e à metáfora, que proporcionam a varietas e o ornatus, determinantes para
conseguir o duplo objectivo do prodesse ac delectare.
Palavras-chave: Literatura Barroca; Alegoria; Ficção; Ut Pictura Poesis; Prodesse
ac Delectare; Paratexto.
SARA AUGUSTO
178
ABSTRACT
Baroque fictional production raises pertinent questions concerning alegoric representation. Allegory is indeed one of its constant elements, being deeply rooted both
in the classical and medieval traditions, of which the baroque is a complex synthesis.
From this joint tradition arises the concept of allegory as a rhetorical trope, which
was maintained in grammar compendiums until the 17th century. The concept bases
allegory in translatio, and this process is strengthened mainly by the analogy between
two universes, the universe of fiction and the universe of reading. This tradition also
raises other important issues: the relation between fictio and allegory, the allegory’s
refusal of mimetic discourse, its the extreme visual and plastic capacities and its moral
and didactic functions.
Bearing these aspects in mind, I have ordered the fiction produced in Portugal between
1600 and 1750 chronologically and in terms of genre. The study of allegory has allowed me to define the texts’ narrative structure and their functionality in the Baroque
literary context. It also allowed me to consider visuality as an essential feature of
allegory –due to the use of emblems, description, ekphrasis and metaphors- which
allows strategies such as varietas and ornatus, vital to achieve the double objective of
prodesse ac delectare.
Keywords: Baroque Literature; Allegory; Fiction; Ut Pictura Poesis; Prodesse ac
Delectare; Paratext.
1.
A forma como a literatura se aproximou das artes visuais na
época barroca, retomando procedimentos antigos, condicionou e deixou uma herança poderosa na literatura posterior. Nunca como na época
contemporânea, explorando campos artísticos que vão além das artes
visuais e alcançando outros âmbitos de representação artística, a relação
entre arte e literatura se revelou de forma tão estreita. Nesta relação, que
assume contornos de complexa teorização, não tem menor importância
o índice de ficcionalidade assumido pelas diversas artes, que se torna
evidente na capacidade de «contar histórias», ou seja, na construção de
uma narrativa, na representação simbólica e na figuração de uma mundividência.
Mas os pressupostos da relação literatura e pictura não são definitivamente os de hoje, muito menos as motivações dessa relação.
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
179
Houve uma altura que a motivação da associação entre arte e literatura
era ética, uma altura em que a extrema visualidade do enunciado, capaz de seduzir espírito, se tornava antes de tudo conveniente e útil. Foi
sobre esse tempo, um longo período que cobriu a produção ficcional
pastoril e as novelas alegóricas da primeira metade do século XVIII,
que trabalhei em A Alegoria na Ficção Romanesca do Maneirismo e do
Barroco, publicada em 2010. Tratou-se de um projeto de doutoramento
de amplitude teórica significativa e com um corpus de trabalho considerável, que atingiu a leitura e o comentário de três dezenas de títulos
de ficção distribuídas por uma extensão temporal de um século e meio.
Foi esta amplitude que permitiu mostrar como a alegoria, que implica
uma específica relação entre literatura e pictura, se impôs como procedimento preferido, pela sua capacidade plástica, pela versatilidade de
representação, mas também pela capacidade de concretização de pontos
de doutrina e exemplo. São alguns dos aspetos desse trabalho que aqui
recupero, enfatizando algumas linhas que me parecem hoje fundamentais: os fundamentos da ficção e da alegoria; a ordenação da ficção alegórica; a dupla orientação da ficção barroca como argumento essencial
no processo da sua legitimação.
Tendo em conta a relação clássica entre as duas funções complementares da literatura, retomo o título deste trabalho, ut pictura fictio,
que estabelece uma correspondência evidente e propositada com a decisiva afirmação horaciana, ut pictura poesis, declarada no verso 361 da
Epistola ad Pisones. Trata-se de uma afirmação essencial no contexto
desta Ars Poetica, tendo em conta as virtudes da poesia, entendida no
sentido mais geral de «literatura», enquanto «arte» discursiva capaz de
invocar e «dar a ver» realidades e conceitos, mas também pela correspondência com o contexto em que foi produzida, fazendo com que a
leitura fosse determinada pelas valências decorrentes desse facto. É neste sentido, aliás, que a teoria horaciana se tornou particularmente bem
recebida pelo pensamento crítico do Renascimento (Augusto, 2010: 2125).
Mas esta capacidade de representação tem o seu principal fundamento na teoria poética aristotélica. Se bem que Aristóteles não aborde
especificamente a relação privilegiada entre poesia e pintura, tal inter-
180
SARA AUGUSTO
ligação atravessa não só a Retórica mas também a Poética, a partir da
noção de poesia como imitação ou a partir do desenho coerente dos
caracteres das personagens. Na Parte III da Retórica, discorrendo sobre
a expressão enunciativa, Aristóteles distingue claramente os processos
que diferenciam o discurso poético, mais solene e elegante, do discurso
em prosa. Da utilização da metáfora proviria grande parte da elegância das expressões, mas a sua eficácia dependeria do cumprimento de
um critério considerado essencial: que fizesse com que o objeto saltasse
para «diante dos olhos», colocando-o em evidência, produzindo a sua
visualização (Aristóteles, 1998: 196-200). Esta capacidade de «dispor o
objeto diante dos olhos» dependeria, contudo, da representação de uma
ação, tendo mais impacto neste processo as metáforas que utilizavam o
inanimado como animado, atribuindo-lhe vida, movimento e ação. A visualização implicaria então a representação de uma ação, facto que nos
coloca eficazmente no campo da ficção e da alegoria, as duas matérias
que neste trabalho me interessa ter em conta.
O procedimento descrito, de «dispor o objeto diante dos olhos»,
no sentido da concretização e da representação de conceitos abstratos,
implica a consideração da alegoria não só enquanto recurso estilístico,
mas sobretudo como forma preferencial da estrutura narrativa ficcional.
Determinadas constantes desta estrutura, como a construção disjuntiva
de personagens, figurantes da dicotomia Bem e Mal, o desenvolvimento
da ação fora dos limites da mimese, e a ênfase num discurso moralizador, constituem elementos alegóricos que, de forma evidente, orientam a
leitura e obrigam o leitor a um exercício de interpretação, de acordo com
preceitos impostos pelo contexto de produção ficcional.
Trata-se de um recurso tão antigo como a literatura e nem sempre de utilização pacífica. Relembro que Platão reagiu veementemente
ao excesso de alegoria e de interpretação alegórica, não só de Homero
mas também de outros mitólogos (Augusto, 2010: 22). A crítica literária a que procede em A República, se bem que não atinja a essência da
poesia, ainda assim condena severamente as intenções, a ignorância e a
imoralidade das fábulas, considerando que «quem é novo não é capaz de
distinguir o que é alegórico do que não é» (Platão, 1987: 87). A recusa
da validade dos mitos assenta na sua consideração como ficção gratuita
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
181
e incapaz de oferecer qualquer espécie de verdade. Contudo, enquanto
narrativa simbólica, plena de significação, neste sentido utilizada nos
Livros VI e VII, onde apresenta a conhecida «alegoria da caverna», já se
aproxima da verdadeira opinião e procura o melhor modo de expressar
o verosímil e a probabilidade, capaz de conter e de transmitir conteúdos
e ensinamentos.
Esta reflexão apresentada em A República, e em outros tratados
de Platão, levanta duas possibilidades interessantes para este trabalho:
a utilidade de que a poesia (enquanto atividade literária) se deve revestir, e a responsabilidade que as formas poéticas devem assumir na vida
humana e social; em segundo lugar, a possibilidade e a necessidade de
interpretar alegoricamente os mitos, tornando-os aceitáveis em termos
de moralidade e de conhecimento. Assim, a expressão alegórica passa a
configurar uma narrativa de carácter simbólico, investida de responsabilidade por ser capaz de conter e de transmitir conteúdos e ensinamentos
(Laborderie, 1978: 71-89; Pépin, 1976: 112-120).
Da realização alegórica viveu toda a Idade Média, transfigurando
universos humanos e terrenos em repositórios e virtudes e vícios em
guerra, de aves simbólicas, cortes imperiais, castelos perigosos, jardins
e hortos do paraíso (Augusto, 2010: 368-375). Em Literatura europea y
Edad Media latina, E. R. Curtius (1989) mostrou como a representação
alegórica, viva e exuberante, ganhou contornos ricos e poderosos, desenhando alegorias que perduraram pelo tempo. A sensibilidade estética
e os processos mentais resultaram numa visão simbólico-alegórica do
universo (Augusto, 2010: 34), em que a estilização e a convenção rodeavam cada gesto e cada momento da vida. Mas foi sobretudo o pensamento religioso que, devido ao alto grau de abstração que o carateriza,
tendeu a cristalizar-se em imagens, tornando o mistério sensível logo
que revestido de uma forma representável. Com esta aliança entre as
potencialidades imaginativas e didascálicas, a função pedagógica viu o
seu efeito reforçado. Deste modo, a construção e a leitura de alegorias
seriam fonte de deleite, mesmo que implicassem um certo esforço interpretativo (Augusto, 2010: 34-42).
182
SARA AUGUSTO
A literatura do século XVII, por entre páginas de parenética, tratados espirituais, ficção e poesia, retomou a topica, as metáforas e os
exempla medievais, relendo-os à luz da mundividência barroca. Contudo, para além dessa visão do mundo, baseada nos efeitos criativos
da coincidência de pares opositivos (Silva, 1983: 444-449), a literatura
barroca assentou numa considerável autonomia dos procedimentos estilísticos. Assim, as matérias mais antigas assumiram novas formas, de
maior exuberância e refinamento, ampliando os enunciados, prolongando o procedimento metafórico. Enquanto compêndio indispensável da
codificação do barroco, a Nova Arte de Conceitos, publicada por Francisco Leitão Ferreira em duas partes, respetivamente em 1718 e 1721,
proporcionou reflexões de fundo sobre a teoria da metáfora. Tendo como
referência o Il Cannochiale Aristotelico, de Emanuel Tesauro, primeiramente editado em 1654, Leitão Ferreira estabelece regras para definir a
legitimidade das analogias que serviam de base à metáfora, submetendo-as ao decoro, segundo regras de proporção e clareza. A consideração da alegoria, apresentada como «tropo de oração», implicando que a
«comutação engenhosa» fosse aplicada numa estrutura mais complexa,
é feita no contexto da definição da verdade e da falsidade dos conceitos
e dos argumentos (Ferreira, 1721: 183). Ponderando o valor da verdade,
que dependeria da conformidade entre os objetos e o entendimento, Leitão Ferreira encontra igual legitimidade na verosimilhança, que implicaria uma analogia ou proporção dos objetos metafóricos com a mesma
potência intelectiva. Assim, para além da verdade, como oposto de falsidade, seria perfeitamente aceitável uma verdade indireta que, segundo
a Nova Arte de Conceitos, se encontraria presente em qualquer alegoria,
e que, apesar de poder ter como finalidade «enganar» alguém, serviria
igualmente objetivos mais dignos como ensinar e persuadir (Ferreira,
1721: 184).
Sem dúvida que esta aproximação de Francisco Leitão Ferreira
reitera o princípio pedagógico da alegoria, mas não chega à complexa
teorização de Baltazar Gracián, de que o teorizador português discordou em determinadas circunstâncias (Augusto, 2010: 50-64). Contudo,
no tratado Agudeza y arte de ingenio, publicado pela primeira vez em
Madrid em 1642, Gracián estabeleceu uma relação fundamental entre
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
183
ficção e alegoria. Partiu do conceito básico de «agudeza» para explicar a «agudeza composta» (Gracián, 1944: 243), sendo que o segundo
género que a compunha era constituído pela «ficção», onde se incluiriam as «alegorias continuadas». A ficção constituía, neste caso, uma
das possibilidades de unificação da estrutura composta por um conjunto de metáforas. Assim, quando no Discurso LV se tratou da agudeza
composta «fingida», ou seja, por ficção, logo se destacou no início do
apólogo transcrito a presença de uma estrutura narrativa, ordenadora das
analogias e de outras agudezas que o compunham (Gracián, 1944: 255).
Esta «invenção fingida» assentava predominantemente na semelhança,
tornando-se a sua agudeza evidente nessa translação entre o «mentido»
e o verdadeiro. E como esta construção ficcional se tornava fácil e doce
ao intelecto, compreendia-se que grandes autores se tivessem servido
deste género de agudeza composta, conduzindo à «la sagacidad y la enseñanza prudente» (264). Não se tratava só de literatura edificativa, moral ou exemplar, mas contemplava «diferentes rumbos de la invención
y agudeza», uma varietas que lembrarei a propósito da estratégia de
legitimação da ficção narrativa levada a cabo nos paratextos das edições
portuguesas (Gracián, 1944: 257):
Homero con sus epopeyas, Esopo con sus fábulas, Séneca con sus
sentencias, Ovidio con sus metamorfosis, Juvenal con sus sátiras, Pitágoras con sus enigmas, Luciano con sus diálogos, Alciato con sus
emblemas, Erasmo con sus refranes, el Bocalino con sus alegorías y el
príncipe don Manuel con sus cuentos.
Gracián manifestou uma posição diferente em relação aos estudos retóricos do seu tempo no sentido de uma maior fruição estética do
texto. Assim, a agudeza por ficção, sendo sobretudo «viveza e espíritu»,
enquadramento correto para a alegoria, não encontrou a sua essência
nas preocupações formais da composição poética, mas realizou-se de
forma mais plena no texto em prosa, livre de cânones mais rígidos. Por
outro lado, para o vasto campo de aplicação da construção alegórica
muito deve ter contribuído o facto de esta se constituir como uma es-
184
SARA AUGUSTO
pécie de macro construção, uma vez que todo o artifício conceptual por
ficção, tendo em conta a definição de conceito artificioso apresentada
por Gracián, dela participa. Tal participação torna-se mais visível com
o apólogo, com a parábola e com a fábula, consideradas «espécies» da
alegoria, por se fundarem num processo de analogia e veicularem preferencialmente conteúdos de carácter moralizante. Sobre este assunto, o
autor deixa bem claro que, para além do cuidado a ter com o artifício da
traça e do artifício da ficção, «siempre há de atender el arte al fruto de la
moralidad, que es el fin de lo dulce y entretenido» (Gracián, 1944: 259;
Batllori, 1958: 247-250).
Interessa-me considerar ainda, na legitimação do meu ut pictura
fictio, que o carácter visual da ficção discursiva, bem evidente na expressão de Gracián, «las cosas espirituales se pintan en figura de cosas materiales y visibles» (260), está presente em outras espécies da «agudeza
fingida» (265-266), como as empresas, os hieróglifos e os emblemas.
Também nesta invenção, a que Gracián chama figurada, é preponderante
a analogia do figurado com o figurante. Contudo, apesar de muitas vezes
a palavra utilizar os instrumentos da pintura para exprimir os seus conceitos, deve considerar-se que «el mote es alma de la pintura, siempre
há de incluir agudeza» (266). E se a alegoria não estiver no mote, pois a
significação da pintura pode ser tão clara que não precise de letra, assim
mesmo a alegoria estará na sua leitura e na sua interpretação.
Esta teorização de Gracián distancia-se completamente da redução da alegoria a tropo de oração ou a metáfora continuada, formulação constante dos compêndios de retórica. Continuando centrada na
analogia, segundo a definição de conceito, a alegoria impõe-se todavia
pela sua estrutura ficcional, pelas suas invenções artificiosas, pela sua
visualidade, tornando-se mais ampla e mais livre na sua aplicação, ou
seja, tornando-se um instrumento preferencial no estudo da narrativa
ficcional barroca.
Tendo em conta esta presença inequívoca da alegoria na ficção
narrativa dos séculos XVII e XVIII, é possível perceber, contudo, os
movimentos de metamorfose no sentido de uma utilização mais intensiva. Com efeito, o exercício da alegoria mudou, acentuando-se claramen-
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
185
te no correr do século XVII: passou da alegoria temática, segundo os
termos definidos por Northrop Frye, ou seja, da possibilidade da leitura
alegórica, da alegorese, para o domínio da alegoria «real» ou «contínua», construindo universos alegóricos amplos e complexos (Augusto,
2010: 94-97).
A consideração destes dois passos, da interpretação alegórica à
alegoria, potenciou mesmo uma classificação da ficção narrativa romanesca produzida entre 1600 e 1750. Se a convenção pastoril, que codificou a produção ficcional entre 1600 e 1630, permitiu uma leitura temática, com base em sequências e episódios alegóricos mas sobretudo numa
interpretação do desengano amoroso, também a novela de entretenimento e aventura, produzida a partir de 1625, vê intensificado o seu sentido
moral, mostrando como as personagens e a ação que desempenham se
tornam espelho de comportamentos negativos ou positivos.
Quanto às novelas morais, produzida na primeira metade do século XVIII, não são alegóricas, mas acentuam a sua intenção alegórica,
na forma como conjugam o entretenimento e a exemplificação de grandes verdades morais, adquirindo o discurso um sentido mais persuasor,
diretivo e sentencioso. Em contraste, a novela alegórica, produzida em
ambiente conventual e religioso a partir de 1680, distingue-se claramente, pela sua coerência interna muito específica, da ficção mimética. O
procedimento era facilmente reconhecido: a dupla estrutura, que oferecia a agradabilidade do enredo ao mesmo tempo que cumpria um sério propósito doutrinário e moral, e o conteúdo religioso, matéria sobre
a qual se fundava a analogia. Todas estas narrativas obedecem a um
percurso comum, que facilmente permite a representação esquemática,
passível de representação visual diagramática. Num tempo imaginário,
as personagens evoluem num espaço onde o Bem o Mal se digladiam,
num processo de recuo e de aperfeiçoamento até alcançarem um estádio
final. Entre modelos de ação bem determinados (a psicomaquia e a peregrinatio), balanceados entre momentos de avanço e de recuo, a narrativa
alegórica deveria manifestar uma segunda leitura, de sentido moral e
espiritual, que não deixasse qualquer dúvida no espírito do leitor quanto
à verdade proclamada (Fletcher, 1964: 307-308).
186
SARA AUGUSTO
Se esta técnica contrapontística é uma característica fundamental, outra não menos importante, e em grande parte por ela determinada,
é o carácter visual e diagramático da alegoria, que já referi e confirmei.
Utilizada preferencialmente para a eficaz concretização de conceitos e
de abstrações variadas, devem ser tidos em conta diversos aspetos. Em
primeiro lugar, é necessário considerar a tradição de representação conjunta da imagem e da letra. A emblemática, desenvolvida a partir do
século XVI, sobretudo com Alciato, e depois fortemente enriquecida
pelos séculos XVII e XVIII, ofereceu aos artistas, e também à literatura,
uma fonte inesgotável de configurações, capazes de representarem figuras e conceitos, dos mais simples aos mais complexos. Pela descrição
de personagens e de ações e pela ecfrasis, capaz de contar histórias de
quadros e imagens, a narrativa alegórica encheu-se de formas, de cores,
de movimentos, em constante mutação e confronto. Na verdade, alcançou requintes de fantasia e imaginação, sem nunca deixar de ensaiar e
de apresentar ao leitor a reinterpretação das alegorias fundamentais da
espiritualidade humana, ou seja, a vida como peregrinação; a vida como
luta interior, e a vida como procura da perfeição.
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
187
2.
A partir do último quartel do século XVII, a ficção romanesca
assumiu uma definitiva forma alegórica. Para além da História do Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito (1682), do Padre Alexandre de
Gusmão, e do Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728 e
1733), de Nuno Marques Pereira, ganharam especial relevância as novelas alegóricas, prefigurações da alma na sua peregrinação terrena em
direção, produzidas em ambiente conventual por Soror Maria do Céu
e Soror Madalena da Glória. Para além dos apólogos de Maria do Céu
(Escarmentos de Flores, 1681; Aves Ilustradas, 1734; Metáforas das
Flores, 1735; Apólogos das Pedras Preciosas, 1735), as longas novelas
implicam um desenvolvimento do enredo, desdobrado em sucessivas
analogias integradas no fio narrativo. É a ficção que as unifica e lhe dá
um macro sentido, tal como observou Baltazar Gracián, prefigurando
as etapas, em lentos passos de engano e desengano, do homo viator em
roupagens de pastoras e peregrinas.
De Soror Madalena da Glória é a segunda parte dos Brados do
Desengano, de 1739, e o Reino da Babilónia, de 1749. Quanto à primeira obra, cuja primeira parte foi publicada em 1736, constitui um dos
modelos da novela exemplar e moral da época barroca; mas a segunda
parte representa a opção definitiva da autora pela expressão alegórica,
entendida como a mais adequada à matéria moral e ao seu estado religioso, contrastando com o primeiro enredo profano da história de Alexandre, protagonista das duas partes da novela.
No que diz respeito a Soror Maria do Céu, A Preciosa, impressa em 1731, cuja edição foi levada a cabo por Ana Hatherly, em 1990,
continua a ser a configuração mais perfeita das novelas alegóricas da
literatura barroca portuguesa. Toda a leitura é orientada no sentido de a
interpretação dos diversos passos da vida da «pastora do vale» ser adequada aos conteúdos doutrinários relacionados com as alegorias mais
significativas da espiritualidade. À margem do texto foram colocadas
indicações do significado literal de cada um dos espaços e de cada uma
das personagens, tal como logo no início da narrativa foi incluída uma
«Declaraçam desta moral allegoria». A associação das personagens à
188
SARA AUGUSTO
ilustração de um conceito moral, através da simbologia dos nomes, obriga desde logo o leitor a fazer uma constante remissão para o conteúdo
moral da narrativa (Augusto, 2010: 419-433).
Contudo, vou exemplificar o procedimento recorrendo a outra
novela da mesma autora, os Enganos do Bosque, Desenganos do Rio, de
1736, cujas duas partes foram reunidas na edição de António Isidoro da
Fonseca, em 1741, e de que retirei as citações deste trabalho (Augusto,
2012: 289-300).
A bipartição do título desde logo denuncia a dualidade dos espaços entre os quais de move a Peregrina, evidente prefiguração da alma
humana na sua vida terrena e da sua capacidade de opção. Com efeito,
como se afirma no «Prólogo», na edição de 1736, paratexto fundamental para o estudo da alegoria desenvolvida e para a sua legitimação, «a
todos os que nascem, se lhes mostram dous caminhos, um dos vícios,
outro das virtudes, assim o representa esta Peregrina».
Trata-se de um percurso balanceado entre o Vergel do Pastor e
o Bosque do Caçador, um caminho feito de erros e de enganos que permitem um crescimento sofrido em direção à verdade e ao desengano.
A descrição antagónica, entre «horror» e «alegria» encerra em si uma
segunda oposição que se revelará no final da novela, o contraste entre
a aparência e a realidade, uma construção quiasmática que atravessa,
como trave mestra, toda a estrutura da novela (2):
[...] um parecia Corte de Primavera, o outro esquecimento de Abril,
este todo espinhos, todo silvas, todo abrolhos, aquele todo flores, todo
rosas, todo gala, um era capela de aves músicas, ao outro se arrojavam
voos tristes, em um se ouvia o canto, de outro se podia fazer o lamento, de um só se viam verdes mansões, de outro se avistavam ásperas
subidas, este oferecia tudo tropeços, aquele mostrava tudo seguros, um
convidava a fadigas, o outro chamava a lisonjas, um era horror à planta
delicada, o outro alegria aos olhos descuidados; tais os caminhos, neles
vacilava a Peregrina duvidosa [...].
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
189
Contudo, esta metamorfose foi-se revelando ainda ao longo da
novela, quando no capítulo III (26-29), se descreveu o Bosque e o Caçador. Foi sob o domínio do engano que a Peregrina percorreu as moradas
dos deuses do bosque, entregue às artimanhas das ninfas e das caçadoras. Durante seis capítulos (III-VIII) visitou os seis ídolos adorados no
Bosque. A construção de cada episódio é paralela e contempla a descrição de cada ídolo, recorrendo a uma representação visual, emblemática,
de que se vai descodificar o sentido e que resulta sempre numa lição
que acentua o desengano. Assim, a «nobreza» identificava-se por uma
«coroa de flores», que «vista era coroa, palpada era ar»; a «fermosura»,
com uma rosa, «gala murcha, sua beleza afeiada»; a «Discrição humana», com uma pena, que «voou ligeira»; a «esperança do mundo», com
uma «tesoura» na «mão vazia»; a «riqueza» com uma maçã de ouro que
se desfez em terra; e o «amor-próprio», com um ramo de flores de onde
saltou «venenoso aspid». A descrição da Riqueza associa os adereços
típicos a uma leitura moral, procedimento que se repete com cada um
dos outros ídolos (82):
Era uma mulher de luzidos olhos, prateada tez, dourados cabelos, vestia de tela de prata, e assim manto como roupa bordava de botões de
ouro, gala que estudar-se-lhe o ser, fora injuria, a cabeça era um tesouro de joias, e quanto mais leve na consideração, mais capaz de fazia
para o peso.
No final de cada episódio inscreve-se o respetivo desengano,
num processo de enumeração e recolha, de interrogação sequencial e devida confirmação, que acentuam a pretendida moralização final (84-85):
Que vales riqueza? Vales uma alma? Não, que a condenas. Vales uma
vida? Não, que a arriscas. Vales um sossego? Não, que o destróis. Vales
um alívio? Não, que és peso. Vales um descanso? Não, que és cuidado.
Vales uma respiração? Não, que és afogo. Arriscas a vida de quem
te busca; condenas a alma de quem te guarda; destróis o sossego de
190
SARA AUGUSTO
quem te conserva; fazes do sono cuidado, do alívio carga, da respiração receio, e és tesouro? Adonde pois está o teu valor, que se o achou
a estimação, eu não o descubro na realidade; contigo poderá o homem
comprar mais mundo; porém não poderá o homem comprar mais vida.
Depois de confrontada com a vanidade dos seis ídolos do bosque, a Peregrina decidiu-se a abandonar aquele «labirinto de enganos».
O caminho para o Vergel, que constitui a segunda parte da obra, implica
um percurso de profundo despojamento e luta interior, de combate ao
amor-próprio e aos rumores do mundo. Nesta condução da Peregrina,
vão ser fundamentais as figuras dos pastores, prefiguração de mulheres
e homens santos, que surgem no enredo como lição e incentivo. A Peregrina foi-se despojando das galas, mortificando os sentidos, cultivando
as virtudes, e terminou a peregrinação quando chegou ao termo da sua
vida. Tendo alcançado a excelência interior, capaz de ver para além da
aparência, o que era «horror» transformou-se em exuberante «paraíso»,
cumprindo-se o quiasmo que anteriormente referi. A descrição atinge
o seu maior efeito não só pela visualidade reforçada, pelo pormenor
descritivo, em regime de acumulação, mas também pela construção sinestésica.
Apesar da longa citação, transcrevo a tentativa de descrição deste «éden», retomando as palavras finais e prudentes de Soror Maria do
Céu, «e não continue minha ignorância esta pintura, porque já ouço que
nela todo o homem mente» (162-163):
[...] se achou em um delicioso Vergel, reverdeceu o celeste Paraíso,
nova esfera de luzes, raro labirinto de flores, lugar de que só era digna
a admiração. Ali toda a vista era graça, toda a flor maravilha, toda a
planta esmeralda; as fontes eram pérolas líquidas, os ares flores sem
cor pela fragância, as respirações alentos divinos e nada parecia do ser
humano, os cravos brotavam incêndios, as rosas não padeciam desmaios, os jacintos padeciam ciúmes, as murtas não significavam dor,
a beleza das flores correspondia à fermosura das árvores de pomos, de
nenhuma parecia mãe a terra, de todas sim creador o Sol, e as maçãs,
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
191
que no primeiro jardim foram discórdias, aqui eram amores. As aves
vestiam de pena e cantavam de glória; estavam paradas porque não
tinham adonde levantar o voo; o cristal que a pedaços se via, brilhava
ouro, o ouro nos pomos transparente como o cristal. As ruas deste paraíso calçavam pedras preciosas; as portas adornavam pérolas finas, os
muros alabrastos superiores. No meio se via uma fonte de vida; a cujas
águas corriam as almas sendo seu ruído mais suave que de doce cítara
a branda voz.
Nas «ruas deste paraíso», a Peregrina recebeu «o prémio de seus
trabalhos», encontrou «o fim de seu caminho, o porto de sua navegação, o achado de seu amor, e quem seguir a mesma via para a virtude,
descobrirá o mesmo Vergel para a eternidade» (168). A moralização final, afirmando a infinita misericórdia divina, fecha o universo narrativo.
Sem grandes arroubos de fantasia, pelo menos ao nível extremo d’A
Preciosa, esta história da Peregrina segue as regras da alegoria moral:
mantém a estrutura alegórica contínua, apresentando dois sentidos em
paralelo; segue os modelos esperados da progressão e do combate interior, incluindo a alegoria dos desposórios, na última parte. A figura do
Pastor e o motivo da «água viva», presente também no rio dos desenganos, de águas claras, contrastando com a sombra do bosque, símbolo do
mundo e dos seus enganos, são outros aspetos que ganham maior relevo
no título dual e bipartido de Enganos do Bosque, Desenganos do Rio.
3.
O comentário e a transcrição de passos mais longos da novela
de Soror Maria do Céu permitiu esclarecer a forma como a alegoria
se tornou um dos procedimentos mais valorizados exatamente pela sua
«capacidade de representação», de «dar a ver», prefigurando conceitos.
E foi capaz de fazê-lo ao nível imediato da metáfora, na composição de
personagens e de cenários, mas sobretudo teve o alcance de organizar
toda a estrutura narrativa em função da demonstração ou do cumprimento de um princípio ou de um conjunto de princípios morais.
192
SARA AUGUSTO
Mas este «modo alegórico», enquanto processo de codificação
do discurso segundo a teoria de Angus Fletcher, apresentada em 1964
com a publicação de Allegory: the Theory of a Simbolic Mode, serviu
muito mais que o gosto pela metáfora e o prazer lúdico da literatura barroca. Tornou-se também decisivo na consideração entre esse gosto e as
suas potencialidades pedagógicas. Retomo assim a dicotomia horaciana
do prodesse ac delectare, que se manteve válida durante a Idade Média,
se viu acentuada no século XVI (Weinberg, 1963: I, 71), e reforçada na
época barroca. A noção de que a literatura tinha como duplo objetivo
ensinar e deleitar tornou-se decisiva entre os comentadores de Horácio,
aqueles que constituíam a «Horatian-rhetorical tradition», no Renascimento italiano, entre 1546 e 1560 (Weinberg, 1963: I, 150), sem contudo perder de vista que a tarefa essencial era o ensinamento, fosse de
carácter moral ou político, facilitado através de processos que o tornam
mais agradável. Ainda assim, não foi um equilíbrio fácil: a focalização
na utilidade, no proveito e no exemplo, permitiram uma medida que se
tornou o necessário contraponto ao furor aristotélico barroco, como tão
bem explicou Aníbal Pinto de Castro num dos seus mais importantes estudos, «Os códigos poéticos em Portugal do Renascimento ao Barroco»,
de 1985.
Com razão, e proveito, a produção ficcional invocou esta submissão do deleite ao desígnio moral, no longo caminho que teve de percorrer para atingir uma «autonomização» que ainda assim a época barroca
não lhe reconheceu devidamente. Este facto, o do não reconhecimento,
definiu o caminho da ficção barroca, da novela de aventuras até à novela
alegórica, como de seguida explicarei.
Antes de referir a «luta» da ficção narrativa pela conquista de
um espaço legítimo de produção e leitura, é necessário ter em conta
como o contexto social, moral e religioso, que incorporara os princípios
pós-tridentinos de uma regularização da espiritualidade, condicionou a
produção literária. As aprovações do Santo Ofício, que resultaram em
longos textos que delineavam princípios de produção e leitura, acentuando o valor moral e doutrinário, são um exemplo desse facto, tal
como também o são os Prólogos do Autor, cujas protestações «sentidas»
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
193
de «moralidade» devem ter valido a publicação de muitas obras de cariz
profano.
Tendo em conta o estudo que eu própria levei a cabo em alguns
capítulos de A Alegoria na Ficção Romanesca do Maneirismo e do Barroco, publicado em 2010, mas sobretudo o trabalho sistemático de Maria Inês Nemésio (2010), «Exemplares Novelas» e Novelas Exemplares:
os Paratextos da Ficção em Prosa no Século XVII, tese defendida nesse
mesmo ano, não se torna difícil concluir como pelos prólogos, dedicatórias e censuras da Inquisição e do Paço, correu uma parte significativa da
teorização sobre a legitimação da novela, no ciclo completo de produção
e leitura.
Na base deste processo de validação esteve presente a invocação
dos dois princípios referidos, o prodesse e o delectare, sendo que em
qualquer dos casos a analogia entre poesia e pintura se torna pertinente,
proporcionando a sedução dos sentidos e facilitando o ensino.
Um dos símiles mais significativos dos paratextos é o «símile»
da abelha, lido no «Prólogo ao Leitor» da Constante Florinda, na edição
de 1672, com as suas duas partes publicadas respetivamente em 1625
e 1633, e recolhido por Gaspar Pires Rebelo em Plínio, onde se afirma
que «as abelhas (…) não só de uma flor fazem o favo, mas de muitas
e várias que colhem, dispostas pela ordem que a natureza lhes ensina,
fazem e aperfeiçoam seu doce mel». A vantagem desta varietas torna-se
evidente na explicação («Prólogo ao Leitor»):
[...] pois nem só os livros e lições espirituais e divinas a nosso entendimento aproveitam se não aqueles que em humanidades e lições várias
se fundam: e estes também mereçam ser estimados, pois em seu género
ajudam a perfeição, ou ao menos fazem com que a bondade dos outros
mais resplandeça, para que de todos possa ser mais estimada.
Esta justificação da leitura de obras profanas conjuga-se com a
defesa da sua produção ou da inclusão de profanidades. Neste sentido
194
SARA AUGUSTO
a «Protestação do Autor», datada de 1672, na edição dos Cristais da
Alma, de Gerardo de Escobar, equaciona a «liberdade poética», colocando formulações menos ortodoxas no domínio do exercício ficcional:
«Uso de deidades, adorações, sacrifícios, entregues da alma e outros
hipérboles introduzidos como licenças poéticas, frases amorosas e não
em verdadeiro sentir, enquanto são gala do dizer e não desvios do sentir
católico».
Sintomáticos, e mais estruturados, são os paratextos da longa
novela do Padre Mateus Ribeiro, o Alívio de Tristes e Consolação de
Queixosos, nas edições de 1648, 1672 e 1688 (Augusto, 2010: 300-305).
Aos seus leitores, tomando os exemplos de Séneca, Cícero, Plutarco,
Pitágoras, Ovídio, S. Gregório Papa e Santo Ambrósio, no sentido de
que «a consolação para ser bem recebida há-de incluir suavidade que
divirta, e não severidade, ou aspereza, que magoe», diz Mateus Ribeiro,
na edição de 1688 («Prólogo ao Leitor»):
Meu intento é aproveitar com este piqueno volume a todos os que no
mar deste mundo navegam derrotados de sentimentos, molestados de
tristezas, queixando-se continuamente das que se chamam erradamente desgraças e infortúnios. O maior prémio para mi deste trabalho será
que todos com ele suas aflições aliviem, e suas queixas consolem, advertindo juntamente aos descuidados para que não se fiem das bonanças, encaminhando aos queixosos, para que não desanimem com as
tormentas desta peregrinação, em quanto não chegamos à tranquilidade, e consolação verdadeira das alegrias da glória, a que Deus nos leve,
por sua infinita bondade. Amen. Vale.
«Aliviar aflições e consolar as queixas»: este sentido edificante justificava que o Padre Mateus Ribeiro se dedicasse às novelas de
amor e de entretenimento. E como o sucesso foi significativo, apesar
das vozes adversas a estratégia foi repetida nas novelas seguintes. Os
dois prólogos que constam na edição de 1754, em dois tomos, da qual
retirei as citações, são muito significativos em termos de legitimação da
novela de entretenimento cortês. Como afirma Luis de Moraes e Castro,
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
195
que custeou a edição e pode ter sido o autor dos longos prólogos, «falta
só uma breve Apologia do assunto que ele escolheu, para a maior parte
dela, pois não faltam censores presumidos de austeros que condenem a
um Eclesiástico compor Novelas».
Entre os argumentos da defesa de Mateus Ribeiro constou a indicação do sucesso que as obras do autor tinham mas sobretudo a indicação de outros homens da igreja, bispos e santos que «nos poemas
trataram em verso as mesmas matérias que os autores das novelas escreveram em prosa». Mas há dois argumentos que apresentam fundamentações teóricas de grande significado.
O primeiro diz respeito ao opúsculo sobre a origem da novela romanesca, com o título Liber de origine Fabularum Romanensium, lido
na edição de 1757, da autoria de Pedro (Pierre) Daniel Huet. Na sua definição de «novela» e dos procedimentos típicos a ela associados, Pedro
Huet contempla desde logo a descrição da estrutura (carácter ficcional
e escolha da prosa) e do conteúdo preferenciais (de carácter amoroso),
correspondendo a uma longa tradição que desdobra no seu opúsculo.
Essa mesma tradição considerava a utilização da alegoria, adequada ad
voluptatem et utilitatem legentium. Com efeito, os escritores teriam de
ter em conta que o enredo deveria apelar ao comportamento virtuoso,
mostrando claramente o prémio merecido pela virtude, tal como também manifestos seriam os efeitos de atitudes viciosas. Já que o homem
dificilmente se prendia por textos doutrinários, a novela teria como função conduzir e orientar suavemente a vontade pela escolha de exemplos
oportunos, ut doceat animos moresque corrigat. Como afirma o editor
(Prólogo I):
O eruditíssimo Pedro Daniel Huet, Bispo de Abranches, e segundo
Mestre do Delfim, escreveu em Latim e em Francês um doutíssimo
tratado da origem e bom uso das novelas, e quando estas são como
devem ser exemplares, pouco importa que um Eclesiástico debaixo de
uma ficção engenhosa mostre o prémio e estimação da virtude, o castigo e abominação do vício.
SARA AUGUSTO
196
O segundo argumento tem em conta o conceito da eutrapélia,
valorizada por Aristóteles, na Ética a Nicómano: dizia respeito à capacidade e à necessidade demonstrada por certos homens de se entregarem,
nos momentos de repouso e de tempo livre, quando o corpo precisa de
descansar das fadigas e a alma precisa do alívio e da descontração, a um
divertimento sem excessos, ocupando-se em conversação engenhosa e
divertida, para voltarem ao trabalho com as forças renovadas (Aristóteles, 1981: 164-166).
A eutrapélia, «virtud reguladora de las recreaciones á veces necessarias para el reposo del ánimo», foi integrada por São Tomás de
Aquino na doutrina cristã (1882: 984), e a sua abordagem permite uma
adaptação da teoria aristotélica ao campo da produção literária de entretenimento de matérias profanas. Na questão CLXVIII da Suma Teológica, São Tomás trata do ornato e da eutrapélia, virtudes consideradas no
campo da modéstia, controlando as atitudes pelo decoro, pela compostura e pela moderação. A eutrapélia, a alegria sã e lícita, torna-se uma
virtude social, convocando para o jogo, para a diversão, para o gracejo
e para a festa, mas sempre condenando o exagero e a corrupção do carácter. Assim se justifica o comentário do editor: «(...) que a virtude da
Eutrapélia, que o Doutor Angélico louva e a Filosofia aprova, é precisa
para que os tristes tenham algum alívio, os cuidados algum retiro, e a
desigualdade da roda da fortuna, alguma consolação de que tanto necessitam os beneméritos e felizes».
4.
Voltamos ao título deste trabalho: ut pictura fictio. A relação
entre imagem e ficção foi-se desenhando ao longo desta apresentação,
levantando considerações fundamentais para qualquer estudo na área
da narrativa ficcional maneirista e barroca. Em primeiro lugar, os procedimentos que têm a ver com a extrema visualidade da literatura desta
época não são específicos da narrativa, sendo partilhados largamente
com a poesia e outros géneros. Mas adquirem na narrativa ficcional uma
amplitude que os torna mais visíveis e mais significativos, sobretudo
Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco
197
quando conjugam o recurso insistente à metáfora e à descrição. E tornam-se mais expressivos ainda quando falamos de alegoria.
Mas este comprazimento na figuração, na representação visual,
embora possa ser visto como consequência lógica do exercício da imaginação barroca, deve ser considerado a um nível mais elevado, enquanto fator decisivo na dimensão exemplar que percorreu toda a ficção
barroca. Com efeito, a figuração dos conceitos, através da ação e das
personagens que lhe dão forma, ordenando as analogias em relações
de causa-efeito, deleitando os sentidos e alimentando o espírito, são os
fundamentos do título deste trabalho, ut pictura fictio.
Terminada esta etapa do estudo da ficção romanesca do maneirismo e do barroco, outras se têm cumprido e ainda outras se anunciam,
potenciando uma imagem mais completa da literatura barroca. O certo
é que um dos caminhos mais significativos terá de passar por um estudo sistemático das estruturas emblemáticas e a relação que estabelecem com a narrativa ficcional. Com efeito, a literatura barroca, nas suas
mais diversas manifestações, da poesia à prosa, da literatura religiosa à
literatura profana, deverá forçosamente ser considerada como um dos
repositórios mais significativos das estruturas visuais e da emblemática
na sua época.
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A introdução às Cartas Chilenas ou
Epístola a Critilo e a murmuração
da corte no primeiro reinado1
Socorro de Fátima P. Barbosa
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), CNPq
RESUMO
Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa sobre a escrita epistolar em periódicos brasileiros do século XIX e tem como objetivo restaurar os sentidos da «Introdução às Cartas chilenas» ou «Epístola a Critilo», publicada no Jornal Científico,
Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens,
Poesias, e Anedota, em 1826. A autoria dessa epístola é tema corrente nos estudos da história da literatura, sempre a considerar a sua íntima relação com a Inconfidência mineira.
Esta análise, ao contrário, se aproxima do objeto a partir de suas condições de produção
de escrita à época, considerando dois aspectos precípuos, comummente esquecidos por
críticos literários e historiadores, a sátira como escrita regrada, cujo assunto é o tempo
presente, e o jornal no início do século XIX, com o uso recorrente da alegoria como
prática de escrita. Assim, considerando a murmuração dos jornais e impressos da época,
esta abordagem retoma os atos discursivos do tempo –o ano de 1826– para demonstrar a
relação que a carta mantém com os desvios de conduta do imperador D. Pedro I.
Palavras-chave: Jornais e Periódicos do Século XIX; Escrita Epistolar; Sátira; D.
Pedro I
1 Este artigo apresenta resultados parciais da pesquisa «A escrita epistolar nos quadros da cultura luso-brasileira: (1808 -1840)», em andamento, financiada com bolsa de produtividade do
CNPq, cuja pesquisa é o desdobramento de uma investigação realizada de 2009 a 2011 sobre
a escrita epistolar nos periódicos.
Socorro de Fátima P. Barbosa
202
ABSTRACT
This paper shows results of a research on the epistolary writing in Brazilian newspapers of nineteenth century and aims to restore the right sense
of the “Introdução às Cartas Chilenas” or “Epístola a Critilo,” published
on Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedota, in 1826. This
is a frequent topic in the studies on the History of Literature, which
is always considering the aspects of authorship and its intimate relationship with the «Inconfidência Mineira». The present analysis, in contrast, approaches the subject from the conditions of writing production
at that time, considering two relevant aspects, commonly overlooked
by literary critics and historians: satire as a ruled writing mode, whose
subject is the present time, and the newspaper in the beginning of nineteenth century, with the allegory recurrent uses as a writing practice.
Thus, considering the murmuring of both newspapers and printed texts
at that time, this approach drives to the discursive acts of the time –the
year 1826- to demonstrate the relationship that the letter keeps with the
misconduct of the emperor D. Pedro I.
Keywords: 19th Century Newspapers and Periodicals; Epistolary Writing; Satire; D.
Pedro I.
1. Sobre manuscritos, pseudônimos e apócrifos em periódicos do século XIX
Este estudo tem como objetivo considerar o processo de escrita
da «Introdução às cartas chilenas» ou «Epístola a Critilo», publicada no
Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças,
Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas, em 1826, e assinada
com as iniciais C. M. C,2 lidas como as letras do nome do mineiro Claudio Manoel da Costa. A epístola, consagrada pela história da literatura
brasileira, foi-lhe primeiramente atribuída por Varnhagen (1850), que
logo depois abandonou esta hipótese em favor de Alvarenga Peixoto,
retificando-a posteriormente. Atualmente, a autoria da «Epístola a Critilo» é atribuída a Tomás Antonio Gonzaga quando foi incorporada às
Cartas chilenas (1957; 1958), um conjunto de epístolas, primeiramente
2 Conferir os Anexos com a publicação da epístola no periódico Jornal Científico, Econômico,
e Literário.
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
203
publicado no periódico Minerva Brasiliense, em 1845.3 A autoria das
cartas e sua íntima relação com a Inconfidência mineira, como libelo e
pasquim libertário, é tema corrente nos estudos da historiografia da literatura brasileira desde o século XIX (Silva, 1865; Lapa, 1957 e 1958;
Oliveira, 1972). Este trabalho, ao contrário, se aproxima desse objeto a
partir das condições de produção de sua escrita à época, considerando
dois aspectos precípuos a esta epístola, comummente esquecidos por
críticos literários e historiadores: a sátira como escrita regrada, que tem
como assunto o tempo histórico de sua enunciação e a cultura escrita
que a carrega, no caso dessa epistola, o jornal do início do século XIX,
que utilizou sobremaneira a alegoria como prática escriturária (Barbosa,
2007).
Ao retomar o estudo desta epístola, a partir de sua primeira publicação no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de
Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas, em
1826, sem considerar as apropriações, as adaptações e os vários usos
que dela foram feitos pela posteridade, compreendo que a pesquisa dos
objetos literários, em periódicos do século XIX, não deve retirar os
textos escolhidos do seu contexto de produção, mas confrontá-los com
os modos de ler e de escrever do tempo que, geralmente, são diversos
daqueles elaborados pelos historiadores. Para tanto, não basta enunciar
a filiação política dos jornais, tampouco considerar este suporte como
arquivo morto, depositário de relíquias preciosas da literatura brasileira
(Barbosa, 2007), mas analisar os procedimentos de escrita adotados pelo
proprietário ou pelo redator, bem como o diálogo que o periódico estabelece com outros jornais e os discursos do seu tempo dos quais se julga
suficiente apenas extrair os indícios de realidade.4
3 Neste trabalho evito as questões célebres sobre autoria, originalidade, paródia, crítica e,
principalmente, a que estabelece uma relação entre os versos desta Epístola e as Cartas
Chilenas (1845), de Tomás Antonio Gonzaga já editadas (Gonzaga, 1957; Gonzaga, 1958).
Para maiores informações, remeto o leitor para o exaustivo trabalho de Joaci Furtado (1997),
no qual encontrará além de uma bibliografia completa sobre o assunto, uma acalorada
discussão sobre todas as apropriações que as Cartas Chilenas tiveram desde o século XIX. O
trabalho do escritor, contudo, não aborda a versão publicada no Jornal Científico (1826).
4 Foi na construção desta pesquisa metodológica, desenvolvida desde 2009, quando dei
início a uma investigação sobre a escrita epistolar nos periódicos, que passei a questionar
a construção desta epístola, publicada primeiramente em um periódico, com todos os
mecanismos de escrita próprios às práticas de funcionamento dos periódicos do século XIX,
204
Socorro de Fátima P. Barbosa
O Jornal Científico tinha como redatores Felisberto Inácio
Januário Cordeiro, que serviu diversos cargos públicos, e José Vitorino
dos Santos, professor de geometria descritiva da Real Academia Militar,
desde o período joanino teve apenas três números, maio, junho e julho
de 1826, e deixou de circular por ter conseguido apenas 5 assinantes, o
que não dava para pagar as despesas de impressão, como sugere a sua
lacônica despedida: «e está, portanto, paralisada uma empresa, aliás louvável e proveitosa, por isso mesmo que, –sendo ditas despesas bastantemente avultadas, não é possível aos abaixo assinados efetuá-las sem
o auxílio de suficientes subscrições» (Jornal Científico, 1826, 270, V.
III).5 E seria mais um entre as dezenas de periódicos da época, esquecidos pela história da literatura, não fosse a publicação do poema «Vila
Rica» e da «Introdução à Epístola a Critilo», dois textos aos quais se
pode aplicar a categoria segundo a qual, alguns escritos anteriores ao
romantismo são «capturados como prenúncio do Advento, prefigurando
o progresso futuro da Identidade Nacional» (Hansen, 1997: 12).
A história da construção deste monumento tem início quando
Rodrigues Lapa, confiante nas informações recebidas de terceiros, registra haver no Jornal Científico referências que indicam serem as Cartas
Chilenas de autoria de Gonzaga. Ao contrário do que afirma Rodrigues
Lapa, não há nos três números do Jornal Científico qualquer referência
às Cartas Chilenas. O historiador e maior estudioso deste assunto, no
afã de comprovar a sua hipótese de ser o poeta mineiro o autor da epístola, constrói este fato literário sem ter consultado o jornal, tampouco ter
lido Helio Viana, a quem atribui a informação de encontrar-se no Jornal
Científico dados relativos à autoria da carta. Como revela em nota de
rodapé,6 esta informação, reproduzida sempre como fato comprovado,
lhe foi transmitida de segunda mão, por Afonso Pena (Lapa, 1958: 12).
mas romanticamente apropriada por historiadores daquele tempo. Conferir VARNHAGEN
(1850).
5 Para efeito de uniformização, nas citações da «Epístola a Critilo» usarei apenas os dois
primeiros nomes: «Jornal Científico», seguido das iniciais C. M. C.
6 A nota afirma o seguinte: «não podendo haver à mão, no momento em que escrevíamos isto,
livro de Hélio Viana, devemos estas informações ao Dr. Afonso Pena Júnior, que consultou
pessoalmente o referido prospeto»(Lapa, 1958: 12).
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
205
Decerto que os redatores tinham como objetivo a publicação de
manuscritos, como se observa na passagem a seguir extraída do primeiro número de o Jornal Científico (grifos meus):
O de publicar de várias maneiras, vantajosa para o Brasil, onde parece
ter havido omissão em se vulgarizarem pela Imprensa, (por este, ou por
outro algum meio útil) muitas e excelente obras, raros e interessantes
manuscritos que tanto no nosso idioma como nas línguas estrangeiras existem e são dignos de chegar ao conhecimento dos Brasileiros[...].
Lida na perspectiva daquele tempo presente deve-se considerar
que os manuscritos elencados pelos editores estão no rol dos impressos
existentes à época, os quais se constituíam em uma das formas de publicação de escritos, mas representavam um modo de divulgação da cultura
escrita que não se opunha, nem se confrontava aos impressos (Chartier,
2002). Esta tese também é defendida por Lisboa (2011: 19) que estuda
as gazetas manuscritas de Portugal. Para ele, «os mundos do impresso e os mundos do manuscrito relacionavam-se, competiam, completavam-se por toda a Europa, entre o século XV e XVIII». No Brasil, a
circulação de manuscritos não ocorreu, como romanticamente nos foi
transmitido, apenas como um modo de subversão às proibições da coroa
portuguesa de impressão na Colônia. É Lisboa (2011) quem dá notícias
do artigo de Ferlini (1984), que reproduz e analisa um manuscrito do
período colonial com o título de Gazeta de Pernambuco. Ademais, ao
contrário de uma concepção romântica e anacrônica, os manuscritos não
devem ser concebidos apenas como tesouros não publicados dos grandes autores da literatura brasileira, mas devem ser incluídos no rol das
publicações populares, de uma prática de escrita na qual estão inseridos
«outros escritos expostos (anúncios, libelos, pasquins, grafite etc.) [que]
trazem um conteúdo subversivo: difamam os indivíduos, ridicularizam
os poderosos, denunciam os poderes» (Chartier, 2002: 81). Com isso,
refuta-se outra concepção anacrônica e romântica sobre os manuscritos,
atualizada em várias leituras sobre o século XIX, que lhes atribui certo
206
Socorro de Fátima P. Barbosa
caráter subversivo, de objeto escondido, que teria ficado intocado, sem
qualquer circulação ao longo dos anos. Os manuscritos, como demonstram as devassas, os testamentos e a história da leitura e dos impressos,
circulavam entre os leitores do mesmo modo que os livros, sendo a cópia uma das práticas correntes de leitura e de escrita7. Segundo Chartier,
desde o século XVI que a Europa testemunha em inventários a importância e a frequência desses papeis manuscritos, «escritos do cotidiano
e do privado» que assumem formas como «livros de contas, livros de
razão, cartas, bilhetes etc» (Chartier, 2002: 83). No mundo luso tem-se
o caso de O Reino da Estupidez, de Mello Franco, uma sátira à Universidade de Coimbra, que teria circulado em forma manuscrita em 1785,
quando da saída do seu autor da prisão. Ademais, não se deve esquecer o fascínio que os manuscritos perdidos exerceram sobre a história
de várias obras, entre elas Cardenio, de Shakespeare (Chartier, 2012),
«cujo desaparecimento cria uma falta intolerável». No caso português,
trata-se de um topos recorrente desde a Crônica do Imperador Clarimundo, de João de Barros, no século XVI. A abordagem da «Epístola a
Critilo» (Jornal Científico: C. M. C., 1826), no contexto deste artigo, é
uma tentativa de desarticular os princípios de uma «ordem do discurso»,
nascida em começos do século XVIII, que se baseava, segundo Chartier
(2012: 266) «na individualização da escrita, na originalidade das obras
e na canonização do autor». A esta «nascente ordem do discurso» no
caso brasileiro foram acrescidos dois novos ingredientes: a Inconfidência Mineira e o nacionalismo literário que, como afirma Hansen (1997:
12), já citado anteriormente, via em todas as obras o prenúncio de uma
«Identidade Nacional».
7 É o que se observa nas palavras de Manuel Ignacio Silva Alvarenga, ao responder à
diligência do Desembargador Antonio Diniz da Cruz: «E logo foi mais perguntado por ele,
Desembargador-chanceler, se, com efeito, se havia feito a dita sátira, se ele, respondente,
fora o autor dela, ou se a vira e a publicara, e contra quem ela se dirigia. [...]. Respondeu
que ele não fora o seu autor, mas que só a vira por lha introduzirem por baixo da porta;
que ela constava de diversos sonetos que demonstravam se feitos por diversos, não só pela
diversidade das letras, mas pela diversidade dos estilos; e que o sujeito contra quem os
mesmo sonetos se dirigiam era um religioso ou dois Santo Antonio, dos quais só lhe parece
chamar- se um Frei Raimundo». Autos da Devassa: prisão dos letrados do Rio de Janeiro,
1794. [Fábio Lucas et al]. 2.ª ed. Rio de Janeiro. Eduerj, 2002, p. 149.
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
207
2. A sátira: fere para corrigir
Ao abordar o Jornal Científico o leitor da atualidade não pode
deixar de observar que, em 1826, os jornais da corte dividiam-se entre
os áulicos, como era o caso de O Spectador Brasileiro, o Diário Fluminense e a Gazeta do Brasil e os de oposição, alguns censurados, como
O Verdadeiro Liberal, «cujo diretor Pierre Chapuis foi expulso do país»
(Sodré, 1997: 99). O Diário do Rio de Janeiro, por sua vez, pregava
isenção política mas se não tinha o caráter áulico, também se prestou a
publicar declarações e editais do Império, e não apenas os anúncios de
manteiga e de outras mercadorias que lhe valeram o epíteto de «Diário
da Manteiga» e «Diário do Vintém». Em dois momentos, observa-se que
o Jornal Científico buscou se diferençar daqueles de oposição, no que
tinham de virulentos e na maneira como abordariam o tema de interesse
central dos periódicos da época: a política. Nesse primeiro momento,
representado pela passagem a seguir, os redatores demonstram o tom do
seu jornal já na sua apresentação. Não se trata de mais um libelo contra
a Coroa, mas de uma obra patriótica, motivo que corrobora o teor de
correção dos costumes, e não de oposição ao governo, observados na
«Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» (Jornal Científico,1826: 3/4. Grifos meus):
A empresa em que vão entrar os dois Amadores das Ciências, e das
Artes, é entre os testemunhos de Patriotismo um dos que mais acreditam aqueles que se interessam vivamente pela glória, e prosperidade
Nacional. Este Periódico digna produção dos Autores dos Anais
Científicos nos vem vingar da vergonha que tem lançado sobre nós
algumas folhas, em outros tempos apareceram; e que hoje recomeçam a aparecer com o mesmo execrando rito.
O outro aspecto que interessa de perto à leitura que se propõe
neste artigo é o de observar o modo como os redatores pretendem incluir
a política no repertório de assuntos do jornal. A citação é longa, mas fundamental para a compreensão da hipótese que defendo, segundo a qual,
208
Socorro de Fátima P. Barbosa
a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» é uma composição de 1826, que utiliza a sátira para criticar o comportamento obsceno
do Imperador (Jornal Científico,1826: 95/96. Grifos meus):
Temos, porém certeza de que, alguns sujeitos tem condenado no
Jornal a falta de mais um título geral, qual o de = Política =, por
isso mesmo que este ramo é talvez aquele que, bem ou mal entendidamente, mais os interessa […]. As Considerações sobre a Liberdade da
Imprensa = a Memória sobre a divisão e assoreamento dos terrenos, =
e as Providências = que lembramos serem indispensavelmente precisa,
&c. &c., parece-nos que bem demonstram, que o artigo = Política =
será indireta, útil e circunspectamente por nós desenvolvido, independente do maior aparato, que poderia dar-lhe um outro Título
geral reservado para a sua explanação.
Para os leitores da época, era possível ler a epístola a partir de
uma relação indireta estabelecida entre aquilo que estava escrito no jornal e a sua matéria. Outro aspecto fundamental desta epístola retirado de suas versões posteriores foram as notas de rodapé, presentes na
publicação original que, conforme veremos, duplicavam o seu sentido,
favorecendo a sua leitura. O redator refere-se, sobretudo, à linguagem
alegórica, tão presente à época, capaz de abordar de forma segura os
mais variados assuntos. No dizer de Lopes Gama (1846: 146), um homem daquele tempo, «a alegoria é muitas vezes um meio astucioso de
dar lições a homens, a quem a cegueira das paixões ou orgulho do poder
faria cegos, ou rebeldes à verdade. A alegoria torna-se necessariamente
o tropo usual do escravo que quer dar a entender suas queixas legítimas
sem o risco de ofender ao seu senhor». Razão pela qual, justifica-se o
estilo empregado –a sátira, uma forma de linguagem alegórica– para
consertar os vícios do imperador, a partir de uma das maneiras mais eficazes de escrever política de forma «indireta, útil e circunspecta», como
o querem os redatores do Jornal Científico.
Em face de todas essas considerações, lê-se aqui esta epístola
como sendo produzida, como já foi dito anteriormente, a partir de duas
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
209
considerações de ordem teórico-metodológica: trata-se de escrito de um
gênero específico, a sátira, concebido como uma escrita regrada, cuja
referência não deve ser «postulada fora do funcionamento de um tipo
(ou tipos) e de uma convenção literária no discurso poético» (Hansen,
1989: 36). Escrita e compreendida a partir da sua publicação em um periódico do início do século XIX, aplica-se nesta leitura da «Introdução
às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» todas as estratégias de escrita
previstas pelo gênero sátira e pelo suporte jornal, entre as quais estão o
anonimato, o uso de iniciais, a dissimulação e o disfarce como estratégias retóricas de convencimento e de encobrimento, sendo todas compreendidas e decifradas pelos seus leitores contemporâneos (Barbosa,
2011). Dessa forma, passa-se a tratar a «Introdução às Cartas chilenas
ou Epístola a Critilo» a partir dos critérios previstos para a sátira, os
quais compreendem a sua «função social de reconhecimento», supondo
que sua historicidade «de modo algum [é] exterior ou posterior à sua
própria história», por isso, não é conveniente interpretar a sátira, uma
vez que «nada oculta», mas «antes relacioná-la com outras práticas e
eventos contemporâneos dela» (Hansen, 1987: 472). Depois, é preciso considerar que, no que concerne à sátira, desde sempre houve uma
relação muito estreita entre ela e a política no sentido mais amplo. Segundo
Hodgart (2009: 38):
a sátira não é apenas a forma mais comum da literatura política, mas,
na medida em que tenta influenciar o comportamento do público, é a
parte mais política de toda a literatura [...].
Os inimigos da sátira são tirania e provincianismo, que muitas vezes
andam juntos. Tiranos não gostam de qualquer forma de crítica, porque
nunca sabem onde levará e na vida provincial livre crítica é sentida
como subversiva da ordem e da decência [...]. Sátira política precisa de
[...] um pouco de sofisticação: sofisticação política (tanto o humorista
como o seu público devem compreender alguns dos processos de política) e sofisticação estética (o humorista deve ser capaz de contemplar
o cenário político com humor e desprendimento, bem como com paixão, ou ele vai produzir apenas polêmica bruta).
210
Socorro de Fátima P. Barbosa
A sátira é, portanto, uma escrita do tempo presente e como forma mista «implica apropriação, interpolação, alteração, falsa atribuição
etc. Nela, o plágio é estrutural» (Hansen, 1989: 44). Por isso, pode-se
compreender ao mesmo tempo como arranjo da sátira e da escrita jornalística a publicação da «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a
Critilo» antecedendo o canto do poema Vila Rica, que é publicado sob
o nome completo de Claudio Manuel da Costa e do seu pseudônimo,
enquanto que à epístola é apenas associado o conjunto de iniciais C.
M. da Costa. O efeito é programático e visa sustentar o verossímil da
persona satírica e, ao contrário do que supõe Furtado (1997: 40), as
iniciais não estabelecem «uma clara associação entre o nome de Cláudio
Manuel da Costa e essa parte da sátira». Dessa forma, se atentamos para
as relações de autoria da época (Foucault, 1992), podemos ler os versos de Vila Rica como uma interpolação, uma vez que as inicias C. M.
da Costa obrigatoriamente não remetem à pessoa do poeta. Dizendo de
outro modo, observa-se na estratégia de criação desta epístola um modo
verossímil com o que se concebia e se conhecia sobre os manuscritos à
época (Chartier, 2002: 96):
O manuscrito moderno herda essa estrutura livresca que associa em
um mesmo objeto textos de autores e, às vezes, gêneros diferentes. A
consequência é o desaparecimento da «função-autor» (para retomar a
expressão de Foucault), isto é, a atribuição da obra ou das obras presentes em um mesmo livro a um nome próprio identificável em sua
singularidade.
A favor deste argumento dois dados históricos: o primeiro é proveniente do corpo do próprio jornal quando informa em nota de rodapé
sob o título de Poesia e Belas Letras: «todos os versos, de qualquer
natureza que sejam, que debaixo deste título geral foram incluídos nos
diferentes números deste Jornal sem declaração de nome de autor, são
feitos por um dos Redatores». (n. II: 147). O pseudônimo à época não
era considerado «declaração do nome de autor»; o segundo, considera a
informação do Dicionário de Pseudônimos e Iniciais de Escritores Por-
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
211
tugueses no qual se observa que um dos redatores do jornal, Felisberto
Inácio Januário Cordeiro, escrevia com as seguintes iniciais: D. J. A. C.;
T. J. J. C. e as que representavam o seu nome, F. I. J. C.; além dos pseudônimos Falmeno e Um Lisbonense. Como se observa, apenas uma das
indicações de suposta autoria com letras corresponde às iniciais do seu
nome, revelando-se, portanto, que sua presença na assinatura de textos
da época não mantinha uma relação de obviedade ou de transparência
com o nome do autor. Este último dado deve ser considerado como norma para a leitura de textos poéticos, retóricos e políticos publicados nos
periódicos pelo menos até meados do século XIX.
Em linhas gerais, a poesia nos periódicos da época, na qual está
incluída a epístola satírica objeto deste estudo, deve ser compreendida à
luz de alguns pressupostos: o primeiro deles diz respeito à presença das
regras da retórica e da poética, partilhadas pelos leitores, que previam
aquela escrita como didática ou de convencimento; segundo compreende que a linguagem alegórica garantiu aos jornalistas a chave para uma
escrita livre e insolente, ao mesmo tempo em que deu aos leitores a possibilidade de ler nos textos ali publicados sempre o sentido figurado que
carregavam (Barbosa, 2011). Seguindo o percurso investigativo levado
a cabo por João Adolfo Hansen (1989) no estudo da sátira atribuída a
Gregório de Matos, no qual propõe recuperar os atos discursivos contemporâneos a partir das «Atas da Câmara e das Cartas do Senado»,
esta abordagem retoma os atos discursivos do tempo –o ano de 1826–
através dos periódicos da época, do relato de estrangeiros, das cartas de
Leopoldina e das de D. Pedro para Domitila. Considerando que estes
contêm os atos discursivos da parcela letrada da população, traduzidos
em opiniões, murmurações, narrações, críticas, elogios sobre a figura do
Imperador. Assim, os periódicos e estes relatos, tal qual as atas e cartas
da Bahia do Dezessete, utilizadas por Hansen, «permitem estabelecer
uma cartografia móvel de eventos e posições que, na circunstância de
sua representação discursiva, relacionam-se ora de modo conflitivo, ora
de modo adesivo, entre si e com seus objetos de intervenção segundo a
hierarquia» (Hansen, 1989: 72).
Dito isto, ratifica-se a hipótese de que a «Introdução às Cartas
chilenas ou Epístola a Critilo» não é uma crítica à Monarquia ou um
212
Socorro de Fátima P. Barbosa
libelo contra o Imperador, mas a encenação do que seria uma prática
decorosa e virtuosa para o Rei. Tampouco, refere-se aos desmandos do
Governador Luís da Cunha Menezes, ou mesmo à corrupção, como a
considerou a crítica romântica do século XIX, endossada pelos historiadores do século XX (Furtado, 1997). Observe-se, nos versos abaixo o
melhor argumento retórico para corroborar com a hipótese aqui defendida. A persona satírica não revela qualquer discordância com relação ao
regime monárquico, mas apenas exige do seu herdeiro a prudência e o
bom senso, prerrogativas de um soberano justo, segundo os argumentos
de Critilo, personagem da obra de Baltazar Gracian (C. M. da C., 1826:
235):
De uma estéril mortal genealogia,
Que o mérito produz de seus Maiores,
Eles, Amigo, argumentar não devem
Propalados talentos. A virtude
Nem sempre aos netos, por herança, desce.
Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,
Manso, afável, pacífico e prudente:
Não se segue daí que um ímpio filho
Perverso, infame, díscolo e malvado,
Não desordene de seus pais a glória.
Foi Afonso Arinos de Melo (1940) quem primeiro estabeleceu
a relação do nome Critilo como sendo a referência a um personagem
célebre de Baltazar Gracian, da sua obra máxima El Criticon (1946).
Contudo, como estava preocupado com a questão da autoria, não levou
adiante o processo de imitação, citação e paráfrase como algo próprio da
escrita do tempo. Aliás, sua alusão à obra do jesuíta deve-se tão somente ao fato de seus livros terem sido encontrados no acervo de Claudio
Manuel da Costa, argumento tomado por aqueles que queriam transformá-lo em autor das Cartas Chilenas.8 El Criticon é um tratado sobre a
8 É interessante observar como são criados os fatos literários. No caso das Cartas Chilenas,
este é construído pelo nome mais autorizado a falar deste assunto: Rodrigues Lapa. Assim,
quando faz referência a Critilo também o associa ao livro de Gracian encontrado na biblioteca
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
213
moral e a condição humana, escrito de forma alegórica. Tem início com
a viagem de Critilo, um filósofo que naufragou e foi salvo em uma
ilha por um habitante, a quem o náufrago deu, não apenas o nome de
Andrenio, mas o introduziu, através do aprendizado da língua, no universo do humano, através da união de dogmas da igreja católica, como
os pecados capitais, com a filosofia greco-romana. A viagem no livro
de Gracian está dividida em três partes ou idades, também presentes na
«Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» nos versos «Critilo amado, Que teus escritos, de uma idade a outra Passarão, sempre
de esplendor cingidos», sendo que a primeira ocorre «Na primavera da
infância e no verão da juventude», a segunda, «Na sábia filosofia cortesã
(o outono da idade viril)» e, por fim, «No inverno da velhice» , onde se
encontra a sabedoria. Vivendo esta idade, «Critilo é o sábio, o prudente,
o culto, o varão» que foi perseguido. Alegoria da alegoria, a persona
Critilo da epístola remete a este de Gracian, um sábio, que conhece e
prega ao seu parceiro de viagem, Andrenio, as virtudes e as verdades do
reino humano, ao confrontá-lo com todos os vícios e enganos, ou o «anfiteatro de monstruosidades». Ao dirigir-se a Critilo, aquele que escreve
a carta está apresentando-lhe o seu soberano, ao mesmo tempo em que
lhe pede observância sobre a postura de seu rei. Segundo Gracian, um
príncipe de grande autoridade deve possuir grande modéstia (1943: 63). Das
potências da alma –memória, entendimento e vontade–, o entendimento
ocupa o mais puro e sublime lugar entre elas pois «é a rainha e senhora
das ações e da vida penetra, sutileza, corre, atende e entende: ele estabeleceu
o seu trono em uma libré própria cândido ileso, da alma, tudo oscuridade faltando
no conceito e toda a mancha nos afetos, massa macia e flexível, apoiando as hade Cláudio Manuel da Nóbrega, contudo, como seu trabalho visa a autoria das cartas,
estabelece rapidamente uma hierarquia entre os nomes Critilo e Doroteu sem considerar, por
exemplo, que não há qualquer menção ao último na «Epístola a Critilo», tampouco o autor
da epístola que ora analisamos tem um autor nomeado: «O autor a si mesmo se dá o nome
de Critilo, personagem conhecida do Criticon, obra do jesuíta espanhol Baltasar Grácian,
existente na livraria de Claudio Manuel da Costa. É um nome sem significação especial.
O mesmo não sucede já com o seu correspondente, Doroteu, em que parece haver, quanto
a nós, um propósito mistificador. Doroteu seria, em rigor, o namorado de Dorotéia, e este,
como se sabe, era um dos nomes de Marilia. Por isso se poderia pensar, a levarmos a sério,
que o noivo de Marília não seria o autor mas o destinatário das famosas Cartas. É hoje
opinião unanime que esse criptônimo esconde a figura do dileto amigo de Gonzaga, o Dr.
Claudio Manuel da Costa (Lapa, 1958: 151. Grifos meus).
214
Socorro de Fátima P. Barbosa
bilidades de docilidade, temperança e prudência (1943: 83). Critilo é o censor
facundo a quem o autor da epístola em análise se dirige para, através
dos versos, enfeiar os delitos com o intuito de buscar a Cândida Virtude
e a Sã doutrina (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 239). Na epístola,
seus ensinamentos são traduzidos pela persona satírica em versos, com
observações morais: «Vejo, ó Critilo, do chileno chefe, Tão bem pintada
a história nos teus versos. Que não sei decidir qual seja a cópia, Qual
seja o original».
Etimologicamente, o termo persona significa máscara. Na sátira,
a persona é uma convenção, ou seja, uma máscara aplicada pelo poeta
para figurar as duas espécies aristotélicas do cômico, «o ridículo e a maledicência, ou o vício não nocivo, que causa riso, e o vício nocivo, que
causa horror» (Hansen, 2004: 459). É possível observar na epístola em
análise que a persona, em princípio, se divide entre ambas as espécies,
na tentativa de encontrar o estilo que melhor se adapte ao que pretende
narrar (Jornal Científico, C. M. de C., 1826: 233):
Vejo ó Critilo, do Chileno Chefe
Tão bem pintada a historia nos teus versos,
Que não sei decidi qual seja a copia,
Qual seja o original. Dentro em minha alma
Que diversas paixões, que afetos vários
A um tempo se sujeitam! Gelo e tremo,
Umas vezes de horror, de mágoa e susto;
Outras vezes do riso apenas posso
Resistir aos impulsos. Igualmente
Me sinto vacilar entre os combates
Da raiva e do prazer. Mas ah! que disse!
A sátira permite a inconsistência da persona em duas vertentes: a
peripatética e a estoica. Na primeira, a persona interpreta «o homem honesto, civil, o cidadão, que se indigna contra os viciosos e os vícios que
corrompem sua Cidade». Na vertente estoica, a indignação da persona
é indigna, porque «irracional ou excessiva como qualquer outro vício»
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
215
(Hansen, 2004: 461/462). Muito embora tentado e vacilante, a persona
opta pela vertente peripatética e assume o caráter de cidadão exemplar,
de «censor fecundo» que, com o castigado metro, afeia os delitos, em
busca «Da cândida virtude a sã doutrina!» (Jornal Científico, C.M. de
C., 1826: 233-234):
Vejo que um Calígula se empenha
Em fazer que de Roma ao Consulado,9
Se jure o seu cavalo por Colega.
Vejo que os cidadãos, e as tropas arma
O filho de Agripina, que os transporta
Em grossos vasos sobre o Tibre, e logo
Por inimigos lhes assina os matos,
Que atacar manda com guerreiro estrondo:
Direi que me recreia esta loucura?
Que devo rir-me e sufocar o pranto
Que pula dos meus olhos? Não, Critilo,
Não é esta a moção que n’alma provo;
Por entre estes delírios, insensível,
Me conduz a razão, brilhante e sábia,
A gemer igualmente na desgraça
Dos míseros vassalos, que honrar devem,
De um Tirano o poder, o Trono, o Cetro.
Dizendo de outro modo, compreende-se que a sátira, quando trata de homens célebres e ilustres, se obriga a representar seus personagens
com exemplos conhecidos da história. Como afirma Hansen, «a sátira não
está, de modo algum, contra a moral. Ocorre nela, é certo, alguma desproporção entre a racionalidade que prescreve e o desenvolvimento dos
temas» (1987: 35, grifos do autor). No caso em apreço, a imagem da
desproporção é representada pelo imperador Calígula e sua estultice:
«Eu vejo que um Calígula se empenha Em fazer que de Roma ao Consulado, Se jure o seu cavalo por colega». Esta estratégia concede ao autor a
liberdade de «o leitor poder aplicar esses exemplos para a cena contemporânea»,
9 Ver nota no Anexo 3.
Socorro de Fátima P. Barbosa
216
ao mesmo tempo em que o inocenta de qualquer intenção subversiva (Hodgart,
2009: 38).
Em 1826, concebia-se a epístola satírica, conforme o Dicionário
da Língua Portuguesa, de António Morais Silva, como um «poema censório dos costumes, e defeitos, públicos, ou de algum particular»; o que
significa que a epístola propõe a partir de exemplos consagrados tanto
de virtude, como de falta de decoro restituir, através do grotesco e do
monstruoso, a justa medida de um reino fundado na prudência (Jornal
Científico, C. M. de C., 1826: 233):
Trata-se aqui da humanidade aflita;
Exige a natureza os seus deveres:
Nem da mofa, ou do riso pode a ideia
Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos
Se propõem do teu Chefe a infame história.
Quem me dirá, que da estultice as obras
Infestas à virtude, e dirigidas
A despertar o escândalo, conseguem,
No prudente varão, mover o riso?
A «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» é, portanto, uma sátira ao Imperador D. Pedro I, cujo comportamento não
condizia com sua posição, como revelam as suas várias biografias e os
testemunhos dos estrangeiros que por aqui passaram. Em 1826, sua conduta assumiu proporções obscenas ao misturar o público com o privado. Sobre este ano, antigos e novos biógrafos do imperador (Graham,10
2010; Monteiro, 1982; Sousa, 1988; Macaulay, 1986 e Lustosa, 2007)
ressaltam-no, como aquele em que a relação dele com Domitila se torna
pública. Contudo, ainda de acordo com esses biógrafos, não era apenas
a vida amorosa e adúltera do monarca motivo para sátira, pois todos são
10Graham (2010: 81) cita vários exemplos da falta de decoro do imperador, entre os quais:
«durante o tempo em que as fragatas estavam se preparando, a atividade do Imperador era
antes a de um jovem oficial recentemente nomeado do que um soberano que iria nomear os
outros chefes».
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
217
unânimes em ressaltar a sua natureza intempestiva, a sua brutalidade e
a falta de temperança, sendo essas características de caráter psicológico
ressaltadas por uma postura muito pouco condizente com o lugar que
ocupava. No que tange à sua vida amorosa, «seu apetite sexual foi sempre excessivo e não conhecia limites nem diante da honra da família ou
do marido da mulher desejada. Não havia mulher a quem ele não lançasse um olhar avaliador!» (Lustosa, 2007: 93). É possível, através desses
dados e da analogia com Calígula que, assim como D. Pedro, mantinha
uma vida sexual promíscua (Suetônio, 2002: 262-263) e escandalosa11
compreender, como muito provavelmente o fizeram os leitores da época,
o efeito programático dos seguintes versos (Jornal Científico, C.M. de
C., 1826: 237):
Outro vai que, lascivo, e desenvolto
Só da carne as paixões adora e segue.
Honras, decoros, vós sereis despojos
Do seu bruto apetite. Em vão, cansados
Pais de família, zelareis vós outros
Da vossa casa o pundonor herdado.
Aos vis ataques do atrevido orgulho
Hão de ceder as prevenções mais fortes.
Vítimas da voraz sensualidade
Vossas filhas serão vossas mulheres.
Que direi do soberbo, do vaidoso,
Do colérico, e de outros vários monstros,
Que freio algum não conhecendo, passam
A sustentar no autorizado Cargo
Tudo quanto a paixão lhes dita e manda!
Os desmandos e a falta de freio do imperador no que concerne a
sua vida amorosa levam-no a fazer uso dos jornais e periódicos da épo11Segundo Suêtonio (2002: 262-263), Calígula «entreteve com todas as suas irmãs um comércio sexual vergonhoso. [...] Acreditava-se que tenha desvirginado Drúsila, quando ainda
envergava a toga pretexta, pois fora surpreendido com ela por sua avó, Antonia, na casa em
que ambos se criaram» [...] «Não dedicou às suas outras irmãs um amor impetuoso, nem lhes
dispensou consideração: ele as prostituía, muitas vezes, com os seus próprios favoritos».
218
Socorro de Fátima P. Barbosa
ca, conforme se verá mais adiante, bem como dos homens públicos, para
desempenhar a sua função de amante ardoroso e apaixonado, quebrando todas as regras do decoro. Na sátira, segundo Hansen (1987: 338),
«construído como irracional, o tipo vicioso não é livre, pois em todas as
ocasiões só obedece à vontade, que o escraviza: não deseja, é desejado
do seu desejo, como um ladrão levado a furto que leva». Ao trazer a
tópica do sexo como crime contra naturam, a persona demonstra que
este «corrompe a harmonia do bem comum» e, por isso, a figuração
do medo que a persona inculca nos pais faz parte daquilo que Hansen
–no contexto da sátira atribuída a Gregório de Matos, mas perfeitamente
aplicado à sátira em questão– chama de «teatro do medo» (1989: 338).
Considerando-se D. Pedro I como a cabeça do Império, sua corrupção é
espelho para todos os súbditos, propondo-o culpado, «propõe ao público
culpado de desejos a representação caricata e monstruosa deles guiada
pela pastoral da sua prudência para a cena sacrificial do remorso e da
catarse» (Hansen, 1989: 338), como revelam os versos a seguir: «Que
pula dos meus olhos? Não, Critilo, –Não é esta a moção que n’alma
provo. Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhante e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que
honrar devem, –De um tirano o poder, o trono, o cetro». Do sexo ilícito,
nasce Isabel Maria em 1824, filha de Domitila, a quem o imperador, em
20 de maio de 1826, através de Decreto, reconhece como filha legítima
e no mês seguinte apresenta oficialmente à imperatriz, quando passou
a frequentar o palácio a fim de partilhar a educação com suas irmãs12
(Lustosa, 2007: 231).
Desde 1823 que Domitila de Castro fazia parte da vida de D. Pedro I na condição de sua amante. Em princípios desse ano, o Imperador
trouxe toda a sua família para o Rio. Em junho, quando cavalgava desacompanhado pela região do subúrbio de Mata Porcos, local da residência
da paulista, D. Pedro sofreu um grave acidente. Nesta época o romance
dele com Domitila ainda não se tornara público e a queda do cavalo
suscitou a curiosidade da corte sobre o que fazia naquela região sem a
companhia de sua guarda. Maria Graham reporta o momento quando,
convalescendo do acidente, o imperador recebera uma carta acusando
12Para Maria Graham (2010), esta teria sido a maior das humilhações sofrida pela imperatriz.
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
219
os Andrada: «uma senhora, cujo nome havia sido até então sussurrado
no tom mais suave do mexerico, havia ultimamente se mudado de São
Paulo» (Graham, 2010: 92). Embora soubesse das pequenas traições do
marido, murmuradas pelas ruas e pelos empregados, a imperatriz afirmava em carta de 10 de setembro de 1824, dirigida à irmã Maria Luisa,
que não podia confiar nele, mas não demonstrava ter conhecimento ou
se importar com os seus casos.13 A partir de 1825, alguns incidentes não
só deram publicidade ao caso, como o transformaram em assunto de
fuxicos internacionais. Do caso com Domitila conhecido internacionalmente, que será adiante tratado mais amiúde, à postura cotidiana, D.
Pedro I desobedecia as mais rudimentares das posturas que lhe exigiam
o cargo, faltando-lhe, portanto, decoro. Maria Graham (2010: 102) narra
o momento do seu encontro com ele, «estava como se tivesse levantado
da sesta, de chinelos sem meias, calças e casaco leve de algodão listado,
e um chapéu de palha forrado e amarrado de verde». Sousa (1998: 174)
afirma que a «Quinta da Boa Vista mais parecia uma típica propriedade
rural de brasileiro rico do que um paço imperial. Como fazendeiro zeloso de seus bens e aprazendo-se no papel de simples feitor, o monarca
cuidava atentamente de tudo».
À falta de decoro na vida pessoal, juntam-se os problemas relacionados à virtude política, como se uma estivesse entrelaçada à outra,
características que aliadas à sua pouca educação, ao temperamento, à
vida dupla são atributos pertinentes para o vitupério baseado no lugar-comum da condição (Hansen, 1989). Em 1826, a situação do monarca
era complicada e sua posição não parecia firme nem para os portugueses
nem para brasileiros. Desde 1825 enfrentava a cisão da província da
Cisplatina e sua anexação pelas Províncias Unidas do Rio da Prata, que
culminaria com a guerra, em 1826. Ademais, a execução de Frei Caneca
teria causado grande comoção popular, pelo fato de ele não ter perdoado
a um religioso.14 Outro dado que poderia afastar o Imperador do campo
da virtude política era a sua posição contrária à escravidão que feria no
13«Infelizmente não consigo encontrar ninguém em quem possa depositar minha plena confiança, nem mesmo em meu esposo, porque, para meu grande sofrimento, não me inspira
mais respeito, por mais que me supere e me controle» (Leopoldina, 2006: 429).
14Para o conhecimento dos problemas políticos por que passavam o Brasil e o imperador, consultar: (Monteiro, 1982; Sousa, 1988; Macaulay, 1986 e Lustosa, 2007).
Socorro de Fátima P. Barbosa
220
coração os proprietários rurais do Brasil, todos escravocratas (Macaulay, 1993: 192 e 242).
«Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhante e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que
honrar devem, –De um tirano o poder, o trono, o cetro». O que se quer
ressaltar aqui é a desproporção observada nos retratos feitos sobre o
Imperador, que ressaltavam, sobretudo, uma postura ambígua com que
levava a vida pessoal. Segundo Monteiro (1982: 92, V. II),
O grande mal, que pesava sobre o reinado de D. Pedro I, e juntava-se
à dúvida do povo quanto às suas ligações com Portugal para diminuir-lhe a majestade, era o concubinato que afrontava os melindres da
gente honesta, contaminava pelo mau exemplo a gente de moral fraca,
impunha à Imperatriz a humilhação pública do seu repúdio. A desfaçatez com que produzia tamanha imoralidade justificava os excessos
oposicionistas contra ele.
O interessante desta sátira é que o seu autor conjuga o estilo grave e o patético com as imagens e alusões risíveis ao comparar analogamente o Imperador a Calígula e Domitila a seu cavalo. Tomando-se o
episódio do cavalo como aquele mais conhecido e mais jocoso, já que
Calígula também é reconhecido pela crueldade e pela «natureza feroz e
depravada» (Suetonio, 2002: 250), dados que, supostos pouco conhecidos dos leitores da epístola, são arrolados em nota de fim de página no
Jornal.15 Assim, a persona que narra na epístola sugere para D. Pedro I
o oposto da justiça e da temperança, atributos que faltaram ao monarca,
quando da execução sumária do frei Caneca. Esta desproporção é verossímil porque na sátira «as transferências metafóricas incongruentes são
programáticas». Assim, sabendo-se ser verdadeiro o gesto do imperador
romano, o ato do imperador brasileiro também é satirizado, observando-se que «quanto mais é incongruente o efeito, mais ativa é a função
valorativa da enunciação que dramatiza a incongruência adequada para
15 Conferir Anexos 3 e 4.
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
221
o destinatário» (Hansen, 1987: 295). Desde 1823 observa-se o desejo de
D. Pedro I de afrontar a sociedade que murmurava a boca pequena a sua
relação com Domitila. Em carta endereçada à amante, ele informa sobre
a joia –um colar de ametistas– que deveria combinar com o vestido que
ele insistia que ela fizesse na madame Josefine, a mais afamada modista
do reino à época. Para tanto, ele sugeria que ela ali fosse com o Barão
de Sorocaba, Boaventura Delfim Pereira, casado com a irmã de Domitila. Como revelam as palavras do Imperador, na carta, ele não apenas
queria que ela «apareça publicamente», mas que «apareças bem vestida
e decente». Contudo, escreveu o Imperador, quando o fizesse esperava
«que isto faça para se apresentar na Glória enervando todas que lá aparecerem» (Rezzutti, 2011: 92, Carta 2). Contrariando a postura de um rei
probo, sóbrio, decente e de temperança, o Imperador além de infringir
as leis do sexo honesto, o faz com escárnio à população. Na epístola em
análise, o trecho abaixo reforça o lugar-comum da sátira, segundo o qual
«a corrupção do corpo falseia a ordem natural expressa no bem comum
pela irrupção do gozo impuro» (Hansen, 1989: 329). Os versos «Nem
sempre as águias de outras águias nascem, Nem sempre de leões, leões
se geram, Quantas vezes as pombas e os Cordeiros São partos dos leões,
das águias partos!» revelam a monstruosidade do sexo ilícito, a desproporção. Neste caso, é a descendência o tipo satirizado de acordo com o
lugar-comum da origem, numa alegoria perfeita, posto que Germânico,
pai de Calígula, gozava de respeito e de admiração dos seus súditos,
assim como D. João VI (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 235-236):
Pode o pai ser piedoso, sábio e justo,
Manso, afável, pacífico e prudente:
Não se segue daqui, que um ímpio filho,
Perverso, infame, díscolo e malvado,
Não desordene de seus pais a glória.
Nem sempre as águias de outras águias nascem,
Nem sempre de Leões leões se geram16,
16 Neste verso, encontra-se a nota b: «Como se dissera, que nem sempre sucede o que diz
Horacio no liv. 4.º das Odes, O. 4. Fortes creantur fortibus et bonis/ est in iuuencis, est
in equis patrum/ virtus neque inbellem feroces/ progenerant aquilae columbam» (Jornal
Científico, 1826: 239-240).
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Quantas vezes as pombas e os Cordeiros
São partos dos leões, das águias partos!
Com efeito, como já foi mencionado, em maio de 1824 nasce
a filha de Domitila com o Imperador, Isabel, a quem nas cartas tratará
sempre por Belinha, fato que irá promover a desordem «natural» da linhagem dinástica: «perverso, infame, díscolo e malvado», leão que não
gera outro leão, mas a aberração. A partir de 1825, acontece a «institucionalização» do romance entre os dois. Ao Imperador já não interessava apenas incomodar as mulheres com a beleza de Domitila, pois como
afirma em carta «já esta tarde começam os desavergonhados a saber
quem eu sou, e quem é [sic] mecê e quanto eu a estimo»17 (Rezzutti,
2011, Carta 25). Na sátira, esta conduta pode ser associada aos versos
seguintes:
Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso!
É o estúpido, enfim é o demente
O que ao vivo aparece nesta empresa.
Tu, severo Catão,18 tu repreendes,
Com teu mudo semblante a pátria Roma;
Nem seus teatros de lascívia cheios
Sofrem teus olhos nobremente irados.19
Isto ocorreu a partir do incidente que assumiu proporções impensáveis no qual Domitila foi destratada pela Baronesa de Goytacaz
ao tentar assistir missa na tribuna reservada às damas do paço, na Ca17 E assim continua: «Mandei por uma fechadura na porta das tribunas para se fechar a porta,
que não será aberta venha quem vier enquanto mecê não vier, e assim ficam todos sem lugar.
Além disso, hei de tratar os maridos de bonito modo, e eu lhe prometo que mais nada hão de
fazer aos amores»(Rezzutti, 2011, Carta 25).
18 Também denominado «o censor», foi um romano considerado exemplo de homem virtuoso
pelos seus pares. Cf. Lima (2007: 33). Disponível em: http://www.hottopos.com/notand15/
aless.pdf. Acesso em 19/12/2012.
19Conferir a última nota, a de letra (d), no Anexo 4.
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
223
pela Imperial. Isto fez com que fosse nomeada, por decreto de «Dona
Leopoldina»,20 como Dama Camarista da Imperatriz, cargo que lhe conferiu em abril de 1825 que, além do direito de usufruir da tal tribuna, a
colocava em primazia sobre as demais damas de honra, «e o direito de
estar presente a todas as reuniões e acompanhar a imperatriz a todas as
excursões; assumir o lugar de honra logo após Sua Majestade em todas
as ocasiões» (Graham, 2010: 218). A petição que conferiu a Domitila
seu lugar de camareira-mor de Leopoldina foi deferida no dia do aniversário da princesa Maria da Glória, ocasião «em que toda a corte, mesmo
grosseira como era, caiu em consternação».21 A fofoca e os murmúrios,
próprios ao conteúdo da sátira, foram registrados por outros estrangeiros a quem muito espantava a sua relação com Domitila, como revela
Schlichthorst, em seu diário: «a primeira Camareira de Sua Majestade
a Imperatriz, a paulista D. Dimitila de Castro e Canto, Viscondessa de
Santos, é a amante declarada do Imperador» ([s/d]: 62).
O ano de 1826 vai ser lembrado pela morte de D. João VI, pela
instalação da Assembléia Geral Legislativa, quando enfim os deputados
e senadores puderam participar do processo legislativo brasileiro, regulamentando os dispositivos constitucionais, mas na vida de Pedro I,
este ano será aquele da viagem que fez à Bahia e causou indignação aos
brasileiros e a estrangeiros. Monteiro (1982: 101) afirma que «dias antes
da partida afixavam-se pasquins nas paredes das ruas e cartas anônimas
choviam em palácio com expressões de espanto acerca de tão escandalosa companhia». Com efeito, esta viagem tornou ostensiva a «mancebia, a princípio discreta» (Monteiro, 1982: 101). Sobre a viagem, Maria
Graham (2010: 226) assim comenta:
20Segundo Macaulay (1993: 213), D. Pedro I «convenceu D. Leopodina a escolher Domitila
como uma das suas damas de companhia; a ingênua imperatriz pensou que se tratasse de
uma recompensa por serviços prestados a seu marido pelo pai da indicada, o coronel João de
Castro».
21Segundo Graham (2010: 218), ao nomear Domitila como primeira dama da imperatriz, D.
Pedro infligia «à Imperatriz o mais odiosos dos incômodos, isto é, sua presença –desde o
momento em que saía de seus apartamentos privados. Na primeira explosão de indignação
geral, várias das primeiras damas recusaram visitar a favorita, mas em breve fizeram-lhe
compreender que a teimosia não resultaria em nenhum bem à Imperatriz».
224
Socorro de Fátima P. Barbosa
Ela com o imperador e as Princesinhas, havia embarcado para a Bahia;
concordou, ainda que passasse mal no mar, na esperança de escapar da
vista da Domitila de Castro, então elevada a Viscondessa de Santos.
Qual não teria sido o seu desapontamento ao entrar em seu camarote,
em ver Mme. de Santos já ali estabelecida, além do mais, nas funções
de seu ofício.
Nesta viagem, Domitila se integrou na condição de dama de companhia de D. Leopoldina e dividiu com o imperador aposentos do palácio do governo da Bahia, enquanto a imperatriz hospedou-se no edifício
da Relação. Em carta a seu pai, escrita no dia 28/04/1826, a imperatriz
comenta que a viagem foi «extremamente desagradável em todos os
sentidos», lamento repetido em carta a Maria Graham, de 29/04/1826,
como uma «viagem bem penosa à Bahia e uma permanência de dois
meses eternos» (Leopoldina, 2006: 446).22 Nesta data, dona Leopoldina ainda não havia tomado conhecimento do que se considera o golpe
definitivo nesta oficialização de Domitila: o reconhecimento como filha
legítima de Isabel Maria, em 20 de maio, e em 24 do mesmo mês ela
recebe o título de duquesa de Goiás, com o tratamento de Alteza. Para
Graham (2010: 234), chamou a atenção tanto o fato em si, que submetia
a Imperatriz à humilhação, quanto o fato de fazê-lo «expedindo um ato
governamental para declará-la legítima, e depois publicando essa loucura nas gazetas e jornais do Brasil, seguiu D. Pedro o exemplo de Luiz
XIV, como uma justificação do ato vicioso e violento».
Teatro «das paixões humanas», a epístola representa este espetáculo promovido pelo monarca assinalando ao mesmo tempo o seu efeito trágico e cômico, com a presença de Tália e Melpomene deusas da
comédia e da tragédia respectivamente (Jornal Científico, C. M. da C.,
1826: 234):
Dos míseros vassalos, que honrar devem,
22 Em carta de sete de junho de 1826, escrita à amiga Maria Graham, ela afirma em P. S.: «Perdoai-me a má letra, mas depois de minha viagem por mar apanhei umas dores reumáticas nos
dedos da mão direita, que me dificultam muito a escrita» (Leopoldina, 2006: 446).
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
225
De um Tirano o poder, o Trono, o Cetro.
Se Tália, e Melpomene nos pintam
Nos seus Teatros, paixões humanas,
Ao ridículo gesto, ou ao semblante
Da Cena, que o coturno me apresenta:
Eu me conformo ao interesse, quando
Aborre [sic] o a maldade, e quando rendo
À formosa Virtude os dignos votos.
A despeito do constrangimento e dos mexericos, ao voltar para o
Rio de Janeiro, D. Pedro demanda da população um espetáculo. E como
sempre, utiliza-se dos periódicos áulicos para fazê-lo. O Spectador Brasileiro do dia 31 de março registra a expectativa da população do Rio de
Janeiro com a chegada da família real, «Muitas pessoas se aventuraram
a fazerem apostas sobre o dia por todos esperado». Em O Verdadeiro
Liberal, de 21 de março, observa-se uma nota na qual o redator informa
sobre a apreensão dos moradores para festejar a volta de SS. MM. II e
«segundo todas as aparências as festas hão de ser magníficas». Contudo,
a julgar pelo que afirma o mercenário alemão Schlichthorst, esta expectativa poderia ser de outra natureza e não pelo amor ao imperador. Do
ponto de vista desse estrangeiro, a população ignorou a chegada do navio D. Pedro I, no qual vinham a família real e Domitila (Schlichthorst,
[s/d]:184, Grifos meus):
A cidade pôs luminárias. Plantou-se uma aleia de palmeiras novas, ligadas por festões de flores e grinaldas de lâmpadas, do ponto de desembarque ao arco de triunfo levanta do à esquina do Arsenal. No dia
seguinte, por volta do meio-dia, Sua Majestade desembarcou. Teve recepção muito fria, mal se ouvindo raros vivas. Até as tropas mercenárias alemãs, em espalier espaçadamente do Arsenal até a Ca
pela Imperial, permaneceram impassíveis. D. Pedro parecia muito
descontente.23
23Ainda de acordo com o testemunho de Schlichthorst ([s/d]: 204), «no teatro, também na
plateia dirigiram um discurso ao Imperador. Apesar do orador estar vestido decentemente,
falando com fluência e elegância, toda a gente tinha opinião formada sobre essa efusão es-
Socorro de Fátima P. Barbosa
226
O último aspecto a salientar nesta epístola diz respeito a relação
estabelecida entre a Igreja católica no exercício de seus atos festivos e
o Imperador. A igreja sempre comungou com os atos obscenos, como
pode ser entrevisto acima, estando, portanto, o imperador acima das leis
do mundo e das de Deus. Nisto a persona satírica é quase literal, ainda
mais quando se sabe que ele «era um frequentador assíduo da igreja»
(Macaulay, 1993: 201), principalmente da igreja da Glória para onde ia
a cavalo quase todas as manhãs (Jornal Científico, C. M. da C., 1826:
238):
Aqui vê-se o soberbo, que pensando
Do resto dos mais homens nada serem
Mais que humildes insetos; só de fúrias
Nutre o vil coração, e a seus pés calca
A pobre humanidade. Aqui se encontra
O ímpio, o libertino, que ultrajando
Tudo quanto é sagrado, tem por timbre
Ao público mostrar, que o Santo culto
Que nos intima a religião, somente
Aos pequenos obriga, e que por arte
Os conserva a ilusão no Fanatismo,
Porque da obediência às Leis se dobrem;
Nesta passagem se verifica a crítica não à Igreja Católica, mas ao
descumprimento dos seus princípios pelo imperador. Não bastassem as
aparições públicas com Domitila, a viagem, com o reconhecimento da
filha Isabel Maria, ele assumia publicamente ter sido o seu batizado de
dois anos atrás, um embuste, «onde a menina recebera os santos óleos
como filha de pais incógnitos» (Monteiro, 1982: 102). A sátira era, naquele contexto, o modo seguro de apontar os desmandos do monarca e
da religião católica, tendo em vista o fato de a Constituição de 1824 «espontânea da mais profunda dedicação e do mais ardente patriotismo. O Imperador dá muito
valor a essas demonstrações de amor do povo, apesar de saber muito bem que são regiamente
pagas, embora cada um dos cantores desses coros laudatórios receba pessoalmente muito
pouco. Somente dois tostões! disse chistosamente um desses infelizes».
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
227
tabelecer o catolicismo romano como religião de Estado e ao declarar
«inviolável» a pessoa do imperador, ela impedia, na opinião da maioria
dos políticos e jornalistas brasileiros, os ataques diretos à Igreja e ao
monarca» (Monteiro, 1982: 257).
O problema, no que concerne não apenas a «Epístola a Critilo»,
mas a todos os escritos que são retirados do seu contexto de produção
e aos quais são indiferentemente aplicados critérios alheios ao tempo,
é perder de vista aquilo que Pécora (2011) chama de «legibilidades verossímeis». No caso de a «Epístola a Critilo», um escrito produzido em
1826, em um jornal com três números apenas, o paradigma que ditou
sua leitura nos quadros da história da literatura brasileira foi o de se
valorizar sua autoria, a pretensa relação com outro texto também publicado em jornal vinte anos mais tarde. A obsessão pela autoria desse
texto, o seu papel como libelo revolucionário e o caráter de nacionalidade que se poderia aferir a um escrito anterior ao século XIX inscreveram este escrito na tradição da literatura brasileira, deslocando-o da
sua historicidade. Evidentemente que não se trata de uma prerrogativa
da historiografia literária brasileira, mas de uma ordem de discurso que
se estabeleceu no século XIX, com a «consagração do escritor», a «fetichização do manuscrito autógrafo» e a «garantia de autenticidade da
obra» (Chartier, 2012: 266). Estas noções, lidas pelo avesso, permitem
compreender outras formas de escrita e circulação dos escritos dos periódicos, na primeira metade do século XIX. Elas mostram, sobretudo,
que os periódicos proporcionavam a instabilidade e a mobilidade que os
textos tinham, quando eram extraídos, adaptados, recortados, reescritos,
interpolados e escritos com falsa atribuição.
Este estudo tentou mostrar como ainda sabemos pouco sobre a
literatura no jornal do século XIX (Zilberman, 2004). Seu papel de arquivo já está muito bem posto por estudos clássicos e absolutamente
importantes na história da literatura, mas é preciso concebê-lo como
suporte, pois como bem afirma Mckenzie (2004), os gêneros novos e
as transformações dos antigos nascem da exigência dos novos leitores e
das formas tipográficas que lhe informam.
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Socorro de Fátima P. Barbosa
Ao inscrever a «Epístola a Critilo» no contexto de produção dos
periódicos, da década de 20 do século XIX, e associar a sátira à figura
de D. Pedro I, este artigo parte de critérios compatíveis com as condições de produção de escrita nos jornais. Assim, é possível identificar, de
forma verossímil, os mecanismos por ele engendrados, para dar conta
dos assuntos políticos do seu tempo, entre eles, a vida desregrada do Imperador. Outra proposição apresentada por este artigo é o de considerar
a produção cultural anterior ao mito fundador do romantismo, lendo-a
e dela se apropriando sem ignorar, ao mesmo tempo, que as regras de
composição dos gêneros retórico-poéticos prescreviam estes escritos, e
que termos como originalidade e de validade estética eram alheios ao
tempo. Com isto, evita-se a abordagem anacrônica destes escritos que
consiste segundo Hansen (1997: 12), em tomar estes produtos literários
como «expressão psicológica de uma subjetividade que, sendo homogênea com seu tempo, é generalizada como válida para todos os tempos».
Neste estudo, buscou-se sair deste paradigma, principalmente, ao considerar a epístola satírica a partir dos pressupostos poéticos previstos para
o gênero. Assim, compreendida como escrito histórico concernente ao
tempo presente, ou seja, o ano de 1826, a «Epístola a Critilo» pôde ser
relacionada ao comportamento desregrado de D. Pedro I e ser lida como
apologia às regras da monarquia e não como libelo, anticolonialista ou
antimonarquista. Neste sentido, considera-se com Lisboa (1987: 275),
que a imprensa conseguiu «apoderar-se da ficção, da retórica e da poética, adaptando-se e adaptando os seus estilos com bastante facilidade de
reconversão», para «impor uma nova leitura».
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Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações,
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O Spectador Brasileiro: Diário Político, Literário e Comercial. Rio de Janeiro, 1824-1827.
O Diário do Rio de Janeiro:Rio de Janeiro. 1821-1826.
Livros, revistas e obras de referência:
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
229
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A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
231
ANEXO 1
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
ANEXO 2
[...]
233
Socorro de Fátima P. Barbosa
234
ANEXO 3
A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ...
ANEXO 4
235
As Autoras e Os Autores
Barbara Gori: Professora na Faculdade de Letras da Universidade de
Pádua (Itália), onde leciona a língua e a literatura portuguesa e brasileira, ocupa-se de língua e literaura portuguesa, de literatura brasileira e
de língua e literatura africana de expressão portuguesa. Tem a suo cargo
ensaios e livros sobre literatura portuguesa, em particular sobre a Geração de ’70 e as figuras de Eça de Queirós e Antero de Quental, traduções
de poesias e ensaios, livros, artigos e ensaios sobre língua portuguesa,
artigos sobre literatura e língua africana de expressão portuguesa.
Claudete Daflon: Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), atualmente ocupa o cargo de Professora Adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense (UFF), na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Desenvolve o projeto de pesquisa Uma síntese delicada: literatura e
ciência no Brasil em que discute as relações entre literatos e conhecimento científico no século XVIII. A respeito de questões relativas ao
Setecentos, publicou o capítulo de livro «Caminhos do saber: literatos
e cientistas do Setecentos», em A legislação pombalina sobre o ensino
de línguas: suas implicações na educação brasileira, em 2010, e o artigo «Uma pedagogia da escrita: intelectuais luso-brasileiros do século
XVIII», na Revista Matraga (Rio de Janeiro), em 2011.
Filipa Medeiros: Licenciada em Lí­­­nguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde obteve também o grau de Mestre em Línguas Clássicas, Especialidade em
Ensino e Tradução do Latim, com a dissertação intitulada “Interpretatio e
Imitatio no ‘De amore’ de Marsilio Ficino’. Trabalhou como bolseira de
investigação no projecto “Curso Conimbricense e Verney”. Prepara actualmente a tese de doutoramento em Literatura Comparada, que desenvolverá o tema: “Verba significant, res significantur: a recepção dos
Emblemata de Alciato na produção literária do Barroco em Portugal”,
238
As Autoras e Os Autores
sob orientação do Doutor Manuel Ferro. É bolseira da Fundação para a
Ciência e Tecnologia e membro colaborador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e da Sociedade Espanhola de Emblemática.
Maria Aparecida Ribeiro: Licenciada em Português e Literatura, pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1967, e em Didática da
Linguagem e Literatura Infanto-Juvenil também pela UERJ, obteve o
título de Mestre, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a
dissertação A Mitogênese no Teatro de Bernardo Santareno, e doutorouse em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em1980,
com a tese Gil Vicente e a Nostalgia da Ordem.
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por mais de
vinte anos, colaborou também com a Universidade Federal Fluminense
e com a Uni-Rio. A partir de 1990, como Professora da Universidade de
Coimbra, dirigiu o Instituto de Estudos Brasileiros e lecionou Literatura
Brasileira, Cultura Brasileira, na licenciatura e nos cursos de Mestrado
e Doutoramento, dos quais orientou e orienta várias dissertações e teses.
Autora de Literatura Brasileira (Lisboa, Universidade Aberta, 1995)
e dos roteiros para vídeo para áudio que a complementam e vêm sendo
divulgados através da televisão e do rádio, é uma das coordenadoras de
Biblos, Enciclopédia Verbo de Literatura Portuguesa, onde tem verbetes sobre as literaturas brasileira, africana e portuguesa.
Estudiosa do Romantismo brasileiro, em geral, e, em particular, de
José de Alencar, sobre quem escreveu vários ensaios, sendo responsável
pelas edições de O Guarani, Iracema e Cartas sobre “A Confederação
dos Tamoios” (Coimbra, 1994), tem ainda publicados inúmeros artigos
em revistas especializadas de Portugal e do estrangeiro. Entre suas obras
destacam-se: A Mitogênese no Teatro de Bernardo Santareno (Rio de
Janeiro, 1980), Gil Vicente e a Nostalgia da Ordem (Rio de Janeiro,
1983), História Crítica da Literatura Portuguesa - o Realismo (Lisboa,
1994), Teatro de Francisco Gomes de Amorim. Ódio de Raça. O Cedro
Vermelho. (edição do texto e introdução, em colab. com Fernando Matos
Oliveira; Braga, 2000), Teatro Brasileiro. Textos de Fundação. Glória e
Infortúnio ou A Morte de Camões. António José ou O Poeta e a Inqui-
As Autoras e Os Autores
239
sição. O Juiz de Paz da Roça (A Coruña, 2002); A Carta de Caminha
e seus Ecos (Coimbra, 2003); Drummon(d)tezuma - correspondência
entre Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Montezuma de Carvalho, Coimbra, FLUC, 2004 (em colab. com Eliane Vasconcellos). Col.
Estudos, 43; Drummond em Coimbra (org), Coimbra, FLUC, 2004, Col.
Estudos, 49; Erico Veríssimo em Terras de Portugal. A viagem de 1959.
Porto Alegre, Edipuc, 2008. Atualmente prepara Questões de identidade: Diálogos com José de Alencar e Camões, personagem dramática,
uma coleção de vários volumes.
É membro integrado do Centro de Literatura Portuguesa e membro
colaborador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e do
Centro de Literaturas de Língua Portuguesa das Universidades de Lisboa.
Maria Teresa Nascimento: Professora Auxiliar da Universidade da
Madeira e Investigadora do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos. É Doutorada em Literatura Portuguesa pela Universidade de
Coimbra, e autora de diversos ensaios na área da Literatura Portuguesa,
com destaque para O Diálogo na Literatura Portuguesa. Renascimento
e Maneirismo, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2011.
Regina Zilberman: É doutora em Romanística pela Universidade de
Heidelberg (Alemanha), professora do Instituto de Letras, da UFRGS,
e pesquisadora 1A, do CNPq. Publicou, em 2012, o livro Brás Cubas
autor Machado de Assis leitor e organizou as coletâneas Moacyr Scliar:
A poesia das coisas simples e Mario Quintana: Poemas para ler na escola. Endereço eletrônico: [email protected].
Rolf Kemmler: Natural de Reutlingen (Alemanha), é investigador da área
da historiografia linguística do Centro de Estudos em Letras (CEL) da
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD, Vila Real), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, desde julho de 2009.
240
As Autoras e Os Autores
Doutorado em Filologia Românica (Dr. phil.) pela Universidade de
Bremen em 2005 (Alemanha), com a tese intitulada A Academia Orthográfica Portugueza na Lisboa do Século das Luzes: Vida, obras e
atividades de João Pinheiro Freire da Cunha (1738-1811), publicada
em 2007.
Mestre (M.A.) em Filologia Românica desde 1997 pela EberhardKarls Universität de Tübingen (Alemanha) com uma tese intitulada Esboço para uma História da Ortografia Portuguesa (publicada em 2001
como artigo na revista Lusorama sob o título «Para uma História da
Ortografia Portuguesa: o texto metaortográfico e a sua periodização do
século XVI até à reforma ortográfica de 1911»).
Com grande número de publicações dedicadas à disciplina da historiografia linguística desde 1996, sou especialista nas áreas da história
da ortografia da língua portuguesa desde o século XVI e da história da
gramaticografia portuguesa e latino-portuguesa dos séculos XVI-XIX.
Sara Augusto: Licenciada em Humanidades (Universidade Católica Portuguesa, 1991), Mestre em Literaturas de Expressão Portuguesa
(Universidade de Lisboa, 1995, com a tese O Compêndio Narrativo do
Peregrino da América de Nuno Marques Pereira), e Doutorada em Literatura Portuguesa (Época Moderna), com a tese A Alegoria na ficção
romanesca do Maneirismo e do Barroco (Universidade Católica Portuguesa, 2005); pós-doutoramento em Literatura Portuguesa barroca, Literatura de Viagens na época barroca: viagens de portugueses a Roma.
Foi professora auxiliar convidada do Departamento de Letras da
Univ. Católica Portuguesa, onde lecionou desde 1991 a 2007, no âmbito
da Literatura Portuguesa e das Literaturas de Língua Portuguesa. Foi
bolseira de Pós-Doutoramento da FCT com o tema «Literatura de viagens na época barroca», entre 2007 e 2009, investigação que continuou
enquanto Investigadora Auxiliar no Centro de Literatura Portuguesa,
Universidade de Coimbra. Lecionou na Faculdade de Ciências Humanas
da Universidade Católica (Leiria), nos Cursos de Férias da Universidade
de Coimbra, nos cursos Uniclássica (Foco) da Universidade de Lisboa
(Literatura Brasileira), e realizou seminários de mestrado na Universi-
As Autoras e Os Autores
241
dade do Porto, no campo da Literatura Barroca Portuguesa. Foi bolseira
da Fundação Calouste Gulbenkian (1987-1992), investigadora do CLCPB (Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira), e colaboradora do CLEPUL (Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da
Univ. de Lisboa); é membro da APSA (American Portugueses Studies
Association) e da ABIL (Association of British and Irish Lusitanists).
Atualmente é investigadora principal, responsável pelo projeto «Literatura de Viagens na Época Barroca» e colaboradora em projetos relacionados com a Literatura Portuguesa, Literatura Comparada e Literaturas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, afeta ao Centro de Literatura Portuguesa e ao Instituto de
Investigação Interdisciplinar.
No âmbito das suas áreas de formação, de lecionação e investigação
(Literaturas de Expressão Portuguesa, Literatura Portuguesa; Literatura Portuguesa do Maneirismo e do Barroco, Alegoria e Ficção barroca,
Emblemática, Narrativa de viagem), apresentou trabalhos em conferências, congressos e reuniões científicas, em Portugal e no estrangeiro; e
publicou artigos em atas e revistas nacionais e estrangeiras, além capítulos em livros sobre as matérias já indicadas.
Socorro de Fátima Pacífico Barbosa: É professora da UFPB. Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa que vem desenvolvendo
sobre a escrita epistolar em jornais e periódicos do século XIX e sua
atuação no campo literário luso-brasileiro. A pesquisa «A escrita epistolar nos quadros da cultura luso-brasileira: (1808-1840)» é financiada
pelo CNPq, com bolsa de produtividade em pesquisa.