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NESTE NÚMERO: BARBARA GORI Antero de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico alemão CLAUDETE DAFLON Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas FILIPA MEDEIROS «Cantando espalharei por toda a parte» Estratégias de marketing político no Barroco: os emblemas fúnebres em honra da rainha D. Maria Sofia Isabel MARIA APARECIDA RIBEIRO Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» MARIA TERESA NASCIMENTO A devoção mariana no diálogo português do Barroco REGINA ZILBERMAN O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura enquanto campo de investigação ROLF KEMMLER Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: a gramaticografia portuguesa à luz da gramaticografia latino-portuguesa nos séculos XV a XIX SARA AUGUSTO Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco SOCORRO DE FÁTIMA P. BARBOSA A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo e a murmuração da corte no primeiro reinado 19 19 VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas VOLUME 19 SANTIAGO DE COMPOSTELA 2013 A AIL – Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua portuguesa. Organiza congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como co-patrocina eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos directivos são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Directivo e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu patrimônio é formado pelas quotas dos associados e subsídios, doações e patrocínios de entidades nacionais ou estrangeiras, públicas, privadas ou cooperativas. Podem ser membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos aceitos polo Conselho Directivo e cuja admissão seja ratificada pela Assembleia Geral. Conselho Directivo Presidente: Elias Torres Feijó, Univ. de Santiago de Compostela [email protected] 1.º Vice-Presidente: Cristina Robalo Cordeiro, Univ. de Coimbra [email protected] 2.ª Vice-Presidente: Regina Zilberman, UFRGS [email protected] Secretário-Geral: Roberto López-Iglésias Samartim, Univ. da Corunha, [email protected] Vogais: Benjamin Abdala Junior (Univ. São Paulo); Ettore Finazzi-Agrò (Univ. de Roma «La Sapienza»); Helena Rebelo (Univ. da Madeira); Laura Cavalcante Padilha (Univ. Fed. Fluminense); Manuel Brito Semedo (Univ. de Cabo Verde); Onésimo Teotónio de Almeida (Univ. Brown); Pál Ferenc (Univ. ELTE de Budapeste); Petar Petrov (Univ. Algarve); Raquel Bello Vázquez (Univ. Santiago de Compostela); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford). Conselho Fiscal Carmen Villarino Pardo (Univ. Santiago de Compostela); Isabel Pires de Lima (Univ. Porto); Roberto Vecchi (Univ. Bolonha). Associe-se pela homepage da AIL: www.lusitanistasail.org Informações pelos e-mails: [email protected] Veredas Revista de publicação semestral Volume 19 – Junho de 2013 Diretor: Elias J. Torres Feijó Editora: Raquel Bello Vázquez Conselho Redatorial: Andrés José Pociña Lopez, Anna Maria Kalewska, Axel Schönberger, Clara Rowland, Cleonice Berardinelli, Helder Macedo, Maria Luísa Malato Borralho, Sebastião Tavares Pinho, Sérgio Nazar David, Ulisses Infante, Vera Lucia de Oliveira. Por inerência: Benjamin Abdala Junior, Cristina Robalo Cordeiro, Ettore Finazzi-Agrò, Helena Rebelo, Laura Cavalcante Padilha, Manuel Brito Semedo, Onésimo Teotónio de Almeida, Pál Ferenc, Petar Petrov, Regina Zilberman, Roberto López-Iglésias Samartim, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Thomas Earle. Redação: VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas Endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected] Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte – Lisboa, Portugal Impressão e acabamento: Campus na nube, Santiago de Compostela, Galiza ISSN 0874-5102 AS ATIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES SUMÁRIO Nota introdutória.....................................................................................................7 BARBARA GORI Antero de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico alemão...........9 CLAUDETE DAFLON Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas...........................................................................................................25 FILIPA MEDEIROS «Cantando espalharei por toda a parte» Estratégias de marketing político no Barroco: os emblemas fúnebres em honra da rainha D. Maria Sofia Isabel.........49 MARIA APARECIDA RIBEIRO Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias............................................................................................................71 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo»...................93 MARIA TERESA NASCIMENTO A devoção mariana no diálogo português do Barroco........................................137 REGINA ZILBERMAN O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura enquanto campo de investigação........................................................................149 ROLF KEMMLER Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: a gramaticografia portuguesa à luz da gramaticografia latino-portuguesa nos séculos XV a XIX............................................................................................................173 SARA AUGUSTO Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco......................205 SOCORRO DE FÁTIMA P. BARBOSA A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo e a murmuração da corte no primeiro reinado....................................................................................229 Nota introdutória O presente número da revista Veredas é um monográfico dedicado aos estudos devotados a um dos períodos menos atendidos dentro dos estudos lusófonos, o que decorre entre a morte de Luís de Camões e o início do Romantismo. Em 2012, a Associação Internacional de Lusitanistas, ciente da lacuna que afetava ao referido período, convocou especialistas em diferentes áreas da produção cultural dos séculos XVII e XVIII a participarem num colóquio em Budapeste. Pedia-se a apresentação de trabalhos arriscados, pesquisas em andamento, hipóteses ainda em fase de comprovação. Após o colóquio, com interessantes e intensos debates. foi oferecido às pessoas participantes elaborarem as suas comunicações como artigos e submetê-los a publicação na revista Veredas. Os textos foram submetidos à revista e avaliados pelo sistema convencional de duplo cego. Parte deles são agora aqui recolhidos, outros serão publicados em próximos números da revista. Todos eles beneficiaram de um elevado grau de elaboração, e a prova disto é que frente a um índice de aprovação média que não alcança 50% dos originais submetidos à Veredas, nesta ocasião a percentagem de aprovação de trabalhos superou 70%. O resultado, é um volume em que aspectos pouco tratados nos estudos lusófonos são estudados com uma elevada qualidade científica, oferecendo não apenas resultados novos e inovadores, mas também novos trilhos pelos quais a pesquisa poderá ser desenvolvida nos próximos anos. Raquel Bello Vázquez Editora VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 9-24 Antero de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico alemão BARBARA GORI Universidade de Pádua RESUMO O objetivo do artigo é o de investigar quais foram os contatos que Antero de Quental – grande interessado em conhecer, reconstituir e divulgar a filosofia do seu tempo– teve com os autores e as obras que consolidam a Naturphilosophie e quais são, consequentemente, as influências dos mesmos na sua obra principalmente poética. Antecipando e sintetizando os resultados, pode-se afirmar que Antero não permanece alheio à extrema importância que o pensamento dos autores da Naturphilosophie assume na filosofia contemporânea e, incitado pelo imanentismo emergente, não tem pejo em considerá-los embaixadores do panteísmo espiritualista que, no seu modo de ver, percorre as essenciais orientações do pensamento moderno. Três são os conceitos que são desenvolvidos porque considerados permeáveis às influências dos pensadores da Naturphilosophie: evolução, finalidade e espontaneidade. E são os poemas Voz Interior e Diálogo as composições poéticas em que a concepção sombria do mundo natural adotada pelos pensadores alemães não deixa de espelhar-se. O poeta dos Sonetos Completos reconhece portanto a importância de Goethe e Schelling na abertura do espírito das novas gerações e na moderna filosofia da natureza. Contudo, cedo se acha imobilizado no seio desta forma transcendente de naturalismo. Representantes de uma filosofia da natureza puramente especulativa, segundo Antero, os autores do naturalismo metafísico alemão traduzem um pensamento demasiadamente contemplativo, uma mundividência gelada e inerte. Antero acusa-os de falsa religiosidade, afirmação esta que poderá ser entendida no sentido de que o naturalismo idealista desrespeita, em última instância, a autonomia e a supremacia essencial do espírito, não operando a esperada religação entre realidade cósmica e o plano autenticamente metafísico do ser, 10 BARBARA GORI uma vez que, em si mesmo, aniquila o espírito por identificá-lo com a natureza. Por esse motivo, Antero reduz a opção naturalista, embora a considere elevada e harmónica, a um mero paganismo intelectual e requintado. Palavras-chave: Antero de Quental; Naturalismo; Johann Wolfgang Goethe; Friedrich Schelling; Naturphilosophie; Filosofia da Natureza. ABSTRACT The object of this study is to investigate the contacts that Antero de Quental –much interested in knowing, reconstructing and spreading the philosophy of his time- had with the authors and the works that consolidated the Naturphilosophie and which were the influences of the same in his poetic work. Anticipating the results, we can say that Antero doesn’t remain oblivious to the extreme importance that the thinking of the authors of the Naturphilosophie assumes in contemporary philosophy and, spurred by emerging immanentism, he has no qualms about considering them as spiritual ambassadors of pantheism that runs the essential guidelines of modern thought. There are three concepts that are considered permeable to the influences of Naturphilosophie thinkers: evolution, finality and spontaneity. And the poems Voz Interior e Diálogo are the poetic compositions in which the conception of the natural world adopted by German thinkers never ceases to mirror themselves. The poet of the Sonetos Completos therefore recognizes the importance of Goethe and Schelling at the opening of the spirit of the new generations and the modern philosophy of nature. However, early he finds himself immobilized in this transcendent form of naturalism. Representatives of a purely speculative philosophy, according to Antero, the authors of German metaphysical naturalism translate a too contemplative thought, a cold and inert worldview. Antero accuses them of false religion, an assertion which can be understood in the sense that it disrespects the essential autonomy and supremacy of the spirit, not operating at expected re-connection between cosmic reality and genuinely metaphysical plane of being, since, in itself, kills the spirit by identifying it with nature. Therefore, Antero reduces the naturalistic option, despite he considers it high and harmonic, to a mere intellectual and refined paganism. Keywords: Antero de Quental; Naturalism; Johann Wolfgang Goethe; Friedrich Schelling; Naturphilosophie; Philosophy of Nature. Educado segundo os moldes do ultrarromantismo estabelecido, Antero de Quental faz soar desde muito cedo, numa atitude romanticamente antirromântica, a sua voz dissidente, recusando curvar e submeter o seu espírito à herança literária de homens que, em Bom Senso e Bom Gosto, designava como «apóstolos do dicionário» (Salgado, 1982: 288), e que tinham em António Feliciano de Castilho o seu mais solene repre- Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 11 sentante. A polémica instaurada pelos estudantes de Coimbra no seio da Arcádia lisboeta, para a posteridade designada como Questão Coimbrã, leva Antero a afrontar esse seu antigo professor do Colégio do Pórtico num tom que tem tanto de cáustico quanto de excessivo, como o próprio Antero viria a confessar, anos mais tarde, numa carta ao seu tradutor alemão Wilhelm Storck (Quental, 1989b: 835): O velho Castilho, o Árcade póstumo, como então lhe chamaram, viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura anacrónica. Houve em tudo isso muita irreverência e muito excesso. [...] Havia na mocidade uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho que a não compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de velho pedagogo. Em causa está a ameaça, levada a cabo pelos círculos académicos dos chamados românticos da primeira geração,1 à liberdade e à autonomia do espírito e ao consequente compromisso do progresso intelectual, social e, sobretudo, moral de toda a humanidade.2 Os ecos desse movimento de resistência emergente ressoam na publicação de um vasto conjunto de opúsculos e críticas contundentes, mas também nas animadas tertúlias estudantis que se tornam fervorosos meios de divulgação do novo ideário e da consequente agitação social. Segundo as famosas palavras de Eça de Queirós (s/d: 485): Coimbra vivia então numa grande actividade, ou antes num grande tumulto mental. Pelos Caminhos de Ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da 1 Cf. António Machado Pires, 1991: 171. Machado Pires sublinha a distinção entre as três gerações do Romanismo em Portugal –a primeira de Garrett e Herculano, a segunda de Camilo Castelo Branco e a terceira da Geração de 70– e refere-se à paradoxal atitude romanticamente antirromântica de Antero e dos seus companheiros geracionais. 2 Sobre o protesto moral de Antero veja-se em particular: Hernâni Cidade, 1988, pp. 65-67; João Medina, 1972: 43. BARBARA GORI 12 França) torrentes de coisas novas, ideias, systemas, estheticas, formas, sentimentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. E é dos países de além-Pirenéus que surgem, e a partir deles que se propagam, ideias e orientações de uma forma de romantismo diferente, desta feita empenhada na viva e profícua comunicação com as inquietações e angústias do tempo presente. Autores bem familiares a Antero, como Alphonse de Lamartine e Victor Hugo, inscritos no longo esforço romântico de combater a rígida racionalidade iluminista dos séculos XVII e XVIII, aliam, nas suas obras, a reflexão à emoção e ao símbolo estético, e conferem à literatura –e por extensão à Arte– a corresponsabilização por uma humanidade em profunda mudança. Enquanto importante movimento configurador da cultura europeia do final do século XVIII, esse romantismo estrutura-se como compreensão total e integral do mundo e da existência, o que lhe exige uma visão que, ao invés de isolar o elemento humano, o situa no seio do Cosmos em que reside.3 E se é verdade que, de regresso ao excerto queirosiano, todas as referências que estimulam os jovens pensadores portugueses provêm da França, é também verdade que nem todas têm nela o seu terreno originário. O germanismo também conquista um lugar de destaque entre o frenético caos das leituras de Antero e dos seus companheiros que, diferentemente dos românticos portugueses da primeira geração, assimilam em profundidade os conceitos dos pensadores alemães dos séculos XVIII e XIX, que não ficam alheios ao domínio das ciências da natureza. Pelo contrário, é no saber romântico da natureza que alicerçam o projeto de restauração de uma filosofia do Homem e do Universo enquanto sujeitos de um mesmo princípio imanente de inteligibilidade. Essa orientação germânica da mundividência romântica, desenvolvida entre os finais do século XVIII e a primeira metade do século XIX, recebe o nome de Naturphilosophie, expressão privilegiada e sem equivalente linguístico, da 3 Cf. Georges Gusdorf, 1993, pp. 361-362. Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 13 qual são arautos o poeta Johann Wolfgang Goethe e o filosofo Friedrich Schelling.4 O postulado inicial da Naturphilosophie repousa na compreensão unitária da natureza, uma vez que recusa o princípio de objetividade que coloca frente a frente homem e mundo –enquanto domínios que partilham uma mútua estranheza– e, dessa forma, permite afirmar uma continuidade e uma integralidade de sentido. Binómios conceptuais como visível e invisível, matéria e espírito, corpo e alma, microcosmos e macrocosmos abandonam um registo dicotómico em prol da leitura que os coloca em íntima e identificativa dinâmica comunicacional. O homem não é o detentor exclusivo do espírito e do princípio de inteligibilidade, à maneira da modernidade de feição cartesiana, mas antes o órgão de pensamento e de manifestação da própria natureza.5 Ao conceber o homem como legítimo descendente do Universo, cuja filiação e pertença naturais são indiscutíveis, a Naturphilosophie recupera o paradigma grego do Cosmos como horizonte de uma inteligibilidade unitária. Note-se a esse propósito que o título escolhido por Alexander von Humboldt (1769-1859), naturalista, explorador e botânico alemão, irmão do mais famoso Wilhelm –naturalista lendário segundo Antero (Quental, 1991: 95)– para uma das suas obras é precisamente Kosmos, palavra que já pela carga etimológica transporta em si as ideias de proporção, harmonia ou, mais especificamente do Universo como um todo ordenado. Esta última referência não deixa de ter consequências na elaboração da conceção anteriana da natureza de que o autor do PrograSobre esta tendência da filosofia alemã, esclarece Georges Gusdorf: «A Naturphilosophie é o fundamento da visão romântica do mundo. A visão do mundo não é o olhar do observador que desliza sobre a superfície das coisas; [...] A visão do mundo é presença no mundo» (Cf. Geoges Gusdorf, 1993, pp. 365-366). 5 A consequência mais marcante desta nova visão do mundo prendese precisamente com o divórcio em relação às tendências mecanicistas que, insistindo no hiato entre matéria e espírito, perspectivam a primeira enquanto simples reduto de extensão e movimento. Saindo desta tendência, a Naturphilosophie liberta o mundo natural da redutibilidade determinística e confere-lhe o regresso ao profundo sentido da vida e dos valores. Ainda que se distinga desta leitura, Antero permanecerá sempre devedor da (re) consideração alemã pela natureza. 4 14 BARBARA GORI ma para os Trabalhos da Geração Nova se ocupa por volta de 1874.6 Se considerarmos que um dos capítulos do primeiro volume projetado para o Programa se intitula precisamente O Cosmos e a Evolução, somos levados a concluir que a leitura anteriana da obra de Humboldt não é empresa fortuita ou ocasional. Grande interessado em conhecer, reconstruir e divulgar a filosofia do seu tempo, Antero inevitavelmente contacta com os autores e as obras que consolidavam a Naturphilosophie. A leitura e o estudo que o pensador açoriano vota a Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), e em especial a Fausto, transformam esta obra numa das responsáveis pelo acesso anteriano ao pórtico do pensamento germânico e até à própria língua alemã.7 A intensa impressão causada por Goethe não só em Antero –que o define como «poeta, artista, naturalista, por cima disso viajante e homem do mundo, tendo também uma clara orientação filosófica»8– mas em todos os jovens espíritos portugueses do tempo que, como Antero, vivem ávidos de novas e cada vez mais completas perspectivas sobre a existência, é comprovada na expressão com que Eça de Queirós (s/d: 485) se lhe refere, no In Memoriam: «Goethe, vasto como o Universo». Mediante a prática da observação rigorosa e atenta da natureza, o autor de A Metafísica das Plantas (1790, Versuch die Metamorphose der 6 Veja-se em particular a carta a Oliveira Martins, de 26 de Março de 1874 (Cf. Antero de Quental, 1989a: 242). Veja-se a carta autobiográfica a Wilhelm Storck de 14 de Maio de 1887 (Cf. Antero de Quental, 1989b: 834). Segundo José Bruno Carreiro, Antero terá iniciado a leitura de Goethe nos anos de Coimbra e só mais tarde, por volta de 1867, terá começado a aprendizagem como autodidata do alemão (Cf. José Bruno Carreiro, 1991: 402). De notar ainda a vasta presença do escritor alemão na livraria de Antero que, para além de pelo menos três edições diferentes de Fausto, está apetrechada com uma edição, de quinze volumes, das Obras Completas de Goethe. Antero traduz algumas partes do Fausto, publicadas umas, votadas à destruição outras, como minuciosamente explica Carolina Michaëlis de Vasconcelos no artigo «Antero e a Alemanha», do In Memoriam. O mesmo facto é ainda corroborado pelas cartas de Antero a Francisco Machado de Faria e Maia de fevereiro/março de 1871 e a Alberto Sampaio de 8 de abril de 1875 (Cf. Antero de Quental, 1989a, pp. 116; 279). 8 Cf. Antero de Quental, 1991: 131. 7 Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 15 Pflanzen zu erklären), porventura a face menos conhecida dos trabalhos de Goethe, concebe o mundo natural como uma totalidade orgânica e viva –organizada segundo arquétipos ou princípios internos unificados existentes nos seres individuais– e um contínuo processo de metamorfose desses princípios espirituais. Num registo muito próximo dos textos anterianos produzidos entre 1860 e 1866,9 Goethe apresenta uma visão proteica da natureza enquanto criadora incessante de novas formas que, por toda a parte, cercam e envolvem o homem. A natureza, utilizadora de várias máscaras mas cuja face permanece no fundo sempre idêntica, serpenteia o ser humano que, rodeado por essa teia universal, se torna duplamente impotente, quer para escapar ao cósmico abraço do mundo, quer para dominar plenamente o conhecimento dos seus meandros.10 Este pensador da Naturphilosophie acentua três importantes aspectos configuradores da ideia de natureza, posteriormente legados ao pensamento anteriano: há na vida fim e movimento eterno. Pelo primeiro aspeto denuncia que, para além do plano material fenoménico apreensível pela positividade do conhecimento científico, há no Cosmos lugar e dimensões irredutíveis ao determinismo mecânico;11 pela segunda referência, sublinha a dimensão teleológica da sua visão; e, pela terceira, apresenta o Universo segundo um eterno progresso dinâmico. São as palavras de Antero quando o autor se refere, em «O Sentimento da Imortalidade», ao universo em suas mil formas e, em «A Bíblia da Humanidade de Michelet», a Proteu prodigioso de mil formas, de inúmeros vultos inesperados, em toda a parte diverso, e em toda a parte o mesmo sempre, todavia! Mil faces, e uma só alma (Cf. Antero de Quental, 1991, pp. 33; 15). 10 Goethe aproxima-se neste ponto da concepção de Pascal que apresenta o homem face à natureza como um meio termo entre dois abismos, como um ser maximamente débil pela fragilidade da sua constituição física, porém maximamente elevado pela dignidade da sua componente inteligível, por isso denominado vime pensante. 11 Sendo a epistemologia romântica construída com base numa lógica de implicação e de inclusão das várias dimensões da realidade, é apenas contra a mistificação científica que se insurge Goethe e não contra toda e qualquer abordagem científica, até porque o poeta de Fausto foi também ele um homem de ciência. Também Antero procurará, no seu pensamento filosófico, conciliar ciência e especulação como única via possível para legitimar uma autêntica filosofia da natureza. 9 16 BARBARA GORI Mas é sobretudo através do apoio especulativo-filosófico de Friedrich Schelling (1775-1854) que a Naturphilosophie pode insistir na constituição hierárquica da natureza, segundo uma dinâmica gradativa que culmina no ser humano. Nas linhas gerais do seu pensamento, o autor de Ideias para uma Filosofia da Natureza (1797, Ideen zu einer Philosophie der Natur) concebendo a última como um processo contínuo e unitário, formula as relações entre espírito e natureza no âmbito de uma unidade originária. Natureza e vida constituem dois aspetos de uma mesma instância, sendo o homem (razão especulativa) pura e simplesmente matéria espiritualizada e, concomitantemente, a autêntica razão de ser, ou finalidade, para a qual concorre o princípio evolutivo da realidade universal. Friedrich Schelling, ainda hoje para o pensamento contemporâneo conotado como o filósofo da natureza, reconhece a importância fulcral da filosofia da identidade e equaciona a resolução identificativa final entre natureza e espírito: derivados a partir de um mesmo princípio originário, a primeira mais não é do que espírito na forma visível e o segundo apenas natureza em forma invisível. Entre o mundo real objetivo e o subjetivo eu humano, não há uma diferenciação em termos de substâncias ou essenciais: um e outro animam a odisseia do espírito, desdobrado na multímoda riqueza da natureza e concentrado na consciência autorreflexiva do homem. A perfeita compenetração dos dois planos implica que, por um lado, o espírito só aceda ao conhecimento de si mediante o ponto culminante do processo de ação contínua que constitui a natureza, ou seja, a racionalidade humana; e, por outro lado, afirma a idealidade que preside ao mundo natural, instaurando a natureza como um sistema dinâmico, unificado e teleológico e, por isso mesmo, revelador do mundo espiritual. Assim sendo, recusando antever o mundo natural como uma coletânea de factos e acontecimentos, Schelling insiste numa visão holística da ideia de natureza. Enquanto atividade contínua ou devir, a natureza é animada por um princípio de movimento espontâneo que, de acordo com o carácter orgânico que lhe é próprio, a assegura enquanto potência autónoma. Desta feita, não poderia o professor de Iena contentar-se com a matriz mecanicista de explicação do movimento natural. Uma vez que Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 17 a ideia de natureza aqui se assume como um processo, uma via dirigida segundo um princípio organizativo próprio, o fluxo de causas e efeitos inegavelmente presentes no plano físico comporta fronteiras demasiado limitadas à sua integral compreensão. Schelling define o movimento natural como uma intensa atividade produtora e, na senda das tendências da Naturphilosophie, dirige-se para a visão integradora do mecanicismo na perspectiva organicista. O núcleo essencial que permite ao pensador alemão concretizar semelhante orientação filosófica reside no conceito de finalidade. A autonomia e a espontaneidade que definem a evolução do movimento cósmico exigem o estabelecimento de um determinado fim que lhe seja inerente. Esta categoria filosófica evidencia, por isso, a inteligibilidade da natureza enquanto sistema teleológico e cabe precisamente à reflexão especulativa conduzir o espírito, adormecido na natureza, ao vigilante e consciente regresso a si mesmo. Enquanto parte integrante da natureza, emergente do seu seio, compete ao homem fazer despertar o espírito da latência em que se encontra e conduzi-lo ao plano autocognoscitivo. Antero não permanece alheio à extrema importância que o pensamento de Schelling assume na filosofia contemporânea.12 Incitado pelo imanentismo emergente, Antero considera Schelling um dos embaixadores do panteísmo espiritualista que, no seu modo de ver, percorre as orientações essenciais do pensamento moderno.13 E é em particular 12 Pelo que consta no seu espólio bibliográfico, Antero não possuía nenhuma obra da autoria de Schelling, nem pelo legado epistolar temos qualquer indicação nesse sentido. Todavia, através da sua prosa conclui-se que teve conhecimento da obra do filósofo alemão e, de acordo com o catálogo da livraria de Antero, sabemos inclusivamente que estava na posse de títulos como Die romantische Schule de Heine (1836) ou Die Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz de Zeller (1875) onde, com grande probabilidade, colheu ensinamentos relativos às teses defendidas por Schelling. Para reiterar a hipótese deste conhecimento se ter processado por via indireta e através de obras de feição generalista, ressalvamos que nos textos filosóficos Antero jamais se dedica a um comentário exclusivo das teses do pensador alemão, mas pelo contrário referencia Schelling sempre em consonância com outros filósofos coetâneos, em particular Hegel e até mesmo Fichte. 13 Veja-se a carta a Tommaso Cannizzaro de 5 de setembro de 1886 (Cf. Antero de Quental, 1989b: 786). BARBARA GORI 18 o conceito de evolução que Antero assume como vetor determinante do seu próprio pensamento em torno da ideia de natureza. O investimento na reconfiguração da noção filosófica de natureza constitui, segundo Antero, não apenas a mais-valia da modernidade como também aquilo que a transforma num período especulativo essencialmente específico.14 Esta viragem para o naturalismo respeita a perspectivação dinâmica e autonómica do Universo natural e, nesse sentido, o pensamento idealista de Schelling assume a evolução como a matriz do desenvolvimento de todo o ser e não apenas como reduto da empírica dimensão cósmica. A clarividência do filósofo alemão face à relevância do conceito de evolução, noção estrutural da modernidade, coloca-o para Antero entre os autores que não só assinalam uma teoria geral do desenvolvimento como inevitável orientação filosófica após o século XVIII,15 mas também, e principalmente, fundam essa mesma teoria no domínio idealista.16 A tradução poética destes conceitos pode ser considerada o soneto Evolução, que pertence à última fase da criação poética de Antero, a dos anos 1880-1884 (Quental, 2002: 140): Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo Tronco ou ramo na incógnita floresta... Onda, espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiquíssimo inimigo... Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombra urze e giesta; Ou, monstro primitivo, ergui a testa No limoso paul, glauco pascigo... Hoje sou homem –e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, na imensidade... 14 Cf. Antero de Quental, 1991: 111. 15 Ibid: 112. 16 Ibid: 128. Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 19 Interrogo o infinito e às vezes choro... Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro E aspiro unicamente à liberdade. Trata-se de uma composição poética de extrema riqueza simbólica, já que cada um dos seus elementos encarna gradativamente um aspeto da existência, desde a imobilidade da rocha até ao homem enquanto pilar cósmico. Relato do espírito na primeira pessoa, o soneto apreende-o na forma humana, ponto privilegiado do itinerário cósmico pois permite o balanço e o reconhecimento quer do percurso anterior quer do rumo posterior. É na passagem da última quadra para o primeiro terceto que o sujeito poético faz o ponto da situação. Enquanto homem, o espírito antevê-se à maneira de Pascal entre dois infinitos: a escadaria multiforme dos seres naturais aquém e o infinito vácuo da liberdade além. Cidadão de dois mundos, o homem reconhece-se rocha, árvore, onda, fera e monstro, numa sucessão existencial marcada pela cegueira das forças orgânicas e naturais, pelo darwiniano «struggle for life» empírico. Mas, para lá da apreensão desse estado de treva e incógnita, abre-se o infinito plano da liberdade, ainda tocado de pranto e incerteza: interrogando (n) o vácuo, o espírito reconhece então o telos que orienta a sua marcha e, pela decifração de cada um dos graus ônticos de manifestação do ser, encontra-se apto a compreender o sentido último do processo evolutivo. António Sérgio considera ser este soneto o espaço privilegiado de encontro entre as teorias materiais do evolucionismo biológico e o sistema hegeliano do evolucionismo conceptual (ou metafísico): o primeiro, presente nas duas quadras, retrata a passagem material de uma espécie para outra; o segundo, patente nos dois tercetos, diz respeito ao movimento ascensional dialético, cuja causa final é a liberdade.17 Na desenfreada procura de conciliação entre determinismo e liberdade, Antero promove nesta específica composição uma harmónica visão entre a evolução de matriz darwiniana e a evolução da Ideia hegeliana. Na síntese concertada que sempre tencionou defender, Antero demonstra 17 Cf. Antero de Quental, 1984: 222. 20 BARBARA GORI também aqui ocupar-se da reabilitação dos diversos correlatos da ideia de evolução. Seja enquanto expressão científica, seja no seu desenvolvimento metafísico, a filosofia deve cultivar a polimórfica matriz do conceito de evolução, a fim de não empreender uma visão lacunar e circunscrita da natureza. Orientado pela influência de Schelling, Antero alarga portanto o processo de gradativo desenvolvimento do Universo a um fundamento metafísico, defendendo que a lei suprema das coisas se confunde com a sua finalidade e que essa é uma finalidade de cariz espiritual.18 Pelo esforço empreendido em prol da sedimentação transcendental da perspetiva teleológica, Antero atribui a Schelling, em parceria com Hegel, a paternidade da moderna filosofia da natureza,19 responsável por redimensionar organicamente o Universo. Desta feita, a esfera final ou tipo último, para utilizar a linguagem anteriana, do dinamismo que anima a natureza constitui-se pelo espírito que, de forma imanente, instaura a progressiva hierarquia necessária ao cumprimento do evolver ontológico. Para além destes aspetos que atestam a proximidade do pensamento de Antero à mundividência filosófica de Schelling, o estudo da dívida especulativa do poeta-filósofo para com o pensador alemão poderá percorrer aspetos variados ainda dentro do desenvolvimento da ideia de natureza. Quando se refere à atividade incessantemente criadora que a anima e constitui, patenteando um princípio de metamorfose ou devir, Schelling aproxima-a da imagem de Proteu. E se é possível ler pela mão de tal divindade mítica uma possível proposta anteriana de um determinado regresso especulativo do homem ao seio cósmico, na significação simbólica de Proteu enquanto representação do inconsciente, devemos também estabelecer através dessa categoria uma outra contribuição de Schelling, talvez escudado por Hartmann, para a filosofia anteriana, desta feita já na linha da noção de espontaneidade. Embora Antero não o mencione no precoce ensaio intitulado precisamente Espontaneidade, Schelling ocupa um lugar de destaque na galeria de pensadores que es18 Antero de Quental, 1991: 128. 19 Ibid: 105. Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 21 tão na origem da distinção filosófica essencial, referida nesse texto de 1866, entre espírito e consciência.20 Ainda noutro aspecto aproximativo dos dois pensadores, a conceção sombria do mundo natural adoptada por Schelling, aberta a categorias como o terrível e o violento, não deixa de espelhar-se em composições poéticas do corpus anteriano, como são os casos dos versos de Voz Interior, quando por exemplo o poeta fala do «Universo monstruoso» (Quental, 2002: 151) ou de Diálogo (Quental, 2002: 102): A cruz dizia à terra onde assentava, Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo: – Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo Vive na dor e em luta cega e brava? Sempre em trabalho, condenada escrava, Que fazes tu de grande e bom, contudo? Resignada, és só lodo informe e rudo; Revoltosa, és só fogo e hórrida lava... Mas a mim não há alta e livre serra Que me possa igualar!... amor, firmeza, Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra! Sou o espírito, a luz!... tu és a tristeza, Oh lodo escuro e vil! – Porém a terra Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza! Mas porventura o mais relevante subsídio implícito de Schelling no pensamento de Antero encontra-se na componente antropológica dos seus sistemas. Personificação por excelência da natureza, o homem constitui para Schelling o culminar da odisseia do espírito, já que, enquanto ser originariamente natural, é o único portador do código de interpretação da evolução cósmica. Por seu turno, Antero termina a sua 20 Ibid: 47. 22 BARBARA GORI viagem especulativa precisamente no mais íntimo sentimento moral da consciência humana, ainda que este pensamento esteja em face de um reducionismo antropológico. É, portanto, indiscutível a permeabilidade do pensamento anteriano à integral (re)valorização organicista da natureza, em prol da qual pesam nomes da Naturphilosophie como Goethe e Schelling. O poeta dos Sonetos reconhece a importância de Goethe na abertura do espírito das novas gerações e, como vimos, atribui a Schelling a paternidade da filosofia da natureza moderna. Contudo, cedo o filósofo açoriano se acha imobilizado no seio desta forma transcendente –ou talvez devesse ter dito transcendental?– de naturalismo. Representantes de uma filosofia da natureza puramente especulativa, segundo Antero, os autores do naturalismo metafísico-filosófico de feição alemã traduzem um pensamento demasiadamente contemplativo, uma Weltanschauung gelada e inerte pela perspetiva truncada que fornece. E quando Antero pensa nos limites do naturalismo metafísico alemão, pensa em três filósofos: Goethe, Schelling, mas também Hegel, embora o autor da Fenomenologia do Espírito seja uma das referências essenciais do texto da sua maturidade filosófica, as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Na carta autobiográfica a Wilhelm Storck, Antero acusa-os de falsa religiosidade, afirmação esta que –quando revestida da sua mais radical significação etimológica– poderá ser entendida no sentido de que o naturalismo idealista desrespeita, em última instância, a autonomia e a supremacia essencial do espírito, não operando a esperada re-ligação entre a realidade cósmica e o plano autenticamente metafísico do ser, uma vez que, em si mesmo, aniquila o espírito por identificá-lo com a natureza. Por esse motivo, Antero reduz a opção naturalista, embora a considere elevada e harmónica, a um mero paganismo intelectual e requintado. Será através de Leibniz (1646-1716) que a filosofia do autor das Tendências acede à única perspetiva filosófica que, parecendo traduzir legitimamente a total explicação do Universo, atende à diferenciação entre natureza e espírito enquanto entidades em si irredutíveis, ainda que intimamente correlacionadas. Antero alemão de Quental e o (des)encanto com o naturalismo metafísico 23 REFERÊNCIAS CARREIRO, José Bruno. Antero de Quental. Subsídios para a Sua Biografia. vol. 1, Braga. Instituto Cultural de Ponta Delgada/Livraria Editora Pax, 1991. CIDADE, Hernâni. Antero de Quental. Lisboa. Editorial Presença, 1988. GUSDORF, Georges. Le Romantisme II: L’Homme et la Nature. Paris. Éditions Payot et Rivages, 1993. MACHADO PIRES, António. «Antero Romântico». Revista de História das Ideias. 13, 1991. MEDINA, João. Eça de Queiroz e o Seu Tempo. Lisboa. Livros Horizonte, 1972. QUEIRÓS, Eça de. Notas Contemporâneas. Lisboa. Livros do Brasil, [s/d]. QUENTAL, Antero de. Sonetos. 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VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 25-48 Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre lusobrasileiros setecentistas CLAUDETE DAFLON Universidade Federal Fluminense (UFF) RESUMO A discussão contemporânea sobre as relações entre literatura e ciência propõe novos caminhos de reflexão e abre possibilidades renovadas de estudo, uma vez que a crítica ao realismo científico permite a desmistificação de diferenças e distinções tomadas como certas e coloca o conhecimento científico como historicamente condicionado. Além disso, as aproximações e diferenciações estabelecidas entre ciência e literatura possibilitam compreender como uma e outra se relacionam às questões da sociedade em diferentes momentos históricos e, por vezes, participam dos mesmos projetos, ainda que de maneira distinta. Sem dúvida, o debate que vem sendo realizado por estudiosos da literatura, da ciência, da história e da filosofia permite compreender que uma abordagem dessa ordem representa um acesso importante às questões socioculturais da época. Ou seja, na medida em que as relações entre literatura e ciência favoreceriam o entendimento sobre o papel que uma e outra vão assumindo, propõe-se considerar como esse debate pode ser um viés profícuo para estudo da atuação de poetas luso-brasileiros do século XVIII como Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Para tanto, a produção poética constituirá o foco documental da pesquisa que visa à reflexão teórica sobre a poesia como meio para o entendimento público da ciência em Brasil e Portugal. Diante disso, a obra literária de Silva Alvarenga representa um primeiro momento do processo de investigação. De todo modo, está implicada, nesse debate, a condição de ilustrados que atribuíam relevância ao conhecimento científico enten- 26 CLAUDETE DAFLON dido como passaporte obrigatório para o desenvolvimento socioeconômico. Diante da visão que o homem setecentista tinha sobre a atuação como poeta e a sua relação com a ciência, é preciso, porém, aferir em que medida, quando na Europa a ciência já buscava descolar-se da literatura, a poesia, no contexto luso-brasileiro, se constituía aliada do desenvolvimento científico, no que pese a ambiguidade da aproximação de discursos que pareciam se encaminhar para fins distintos. Nesse sentido, a necessidade de difundir a ciência moderna e certificar sua relevância numa sociedade que oferecia evidentes obstáculos a seu desenvolvimento passaria, obrigatoriamente, por uma atitude pedagógica identificada à escrita poética. Palavras chave: Ciência; Literatura; Luzes; Escritor Luso-Brasileiro; Século XVIII. ABSTRACT The contemporary discussion about the relations between Literature and Science proposes new paths of reflection and opens renewed possibilities of research, since the criticism to the scientific realism allows the demystification of differences and distinctions considered as assured and situates the scientific knowledge as historically conditioned. Furthermore, approaches and differentiations between Science and Literature enable us to comprehend how both areas relate to questions of society in different historical moments and, sometimes, take part in the same projects, even if in a distinct way. Undoubtedly, the discussion that has been realized by scholars in Literature, History and Philosophy allows us to understand that this kind of approach represents an important access to sociocultural issues of the time. In other words, since the relations between literature and science favor the understanding about the role that these fields play, we proposes to consider how this discussion can be a fruitful means for the study of the performance of 18th century Luso-Brazilian poets, namely Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Thus, the poetic production will be the documental focus of the research that aims a theoretical reflection about the poetry as a mean to public understanding of the science in Brazil e Portugal. Accordingly, the Silva Alvarenga’s literary production represents the first step of the research process. Anyway, the situation of enlightened ones who attributed relevance to scientific knowledge seen as a required passport to socioeconomic development, is implied in that discussion. According to the vision that the 18th century people had about the performance as poets as their relation with science, we need, however, to check the extent in which, when science aimed to detach itself from literature in Europe, the poetry, in the Luso-Brazilian context, was an ally of scientific development, in spite of the ambiguity of the convergence of discourses that seemed to go separate ways. In this sense, the necessity of disseminating modern science and certifying its relevance required a pedagogic attitude identified with poetic writing in a society that offered evident obstacles to its development. Key words: Science; Literature; Enlightenment; Luso-Brazilian Writer; Eighteenth Century. Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 27 A reflexão do pensador francês Michel Serres, reconhecida entre teóricos contemporâneos, tem se notabilizado ao abordar a ciência, muitas vezes em tensão com a literatura, como o próprio filósofo afirma em entrevista concedida a Jean-Paul Dekiss e publicada em livro em 2003. Em suas considerações sobre o assunto, observa que Jules Verne, no século XIX, teria tentado «tornar a ciência cultural» enquanto nós «não conseguimos tornar cultural a ciência contemporânea» (Serres, 2007: 167 e 168). Esse afastamento, entre cultura e ciência, teria favorecido a um progressivo divórcio entre literatos e cientistas, de modo que, ainda na visão de Serres, seria necessário um terceiro homem, especializado e culto, representado em tempos idos por nomes como Decartes, Diderot e Voltaire, entre outros (Serres, 2007: 168). A posição defendida pelo filósofo permite apontar para duas direções. Em primeiro lugar, teria havido uma condição anterior em que cultura e ciência não estavam apartadas (cujos exemplos remetem a figuras expressivas do século XVIII) e, em segundo lugar, a existência de uma situação contemporânea caracterizada pela radical dissociação entre letrados e cientistas. Esta perspectiva, obrigatoriamente, remonta à polêmica conferência de Charles P. Snow «A Palestra Rede, 1959», proferida em Cambridge como resultado da ampliação de texto publicado em 1956 na revista New Statesman com o título «As duas culturas». Na condição de escritor e físico, como faz questão de se apresentar, Snow defende que cientistas são ignorantes em relação à «cultura» enquanto os literatos são ignorantes a respeito da ciência (Snow, 1995). Compreende-se que há implicações no emprego do termo cultura tal como o faz Snow ou ainda Serres e que uma discussão sobre o significado atribuído ao conceito é necessária. Nos debates realizados por diferentes autores a respeito das relações entre literatura e ciência, tem sido relativamente recorrente a referência à cultura. Nas contendas que se seguiram à conferência em Cambridge, o termo foi criticado ao mesmo tempo em que foi retomado em trabalhos que buscaram desenvolver a discussão sobre o assunto. Isso é reconhecido pelo próprio Snow quando, no que chama de uma «segunda leitura», numa tentativa de resposta às críticas que recebera, afirma: «Desde o princípio, a frase “as duas culturas” provocou alguns protestos. Levantaram objeções à CLAUDETE DAFLON 28 palavra “cultura” ou “culturas”; e, com muito mais substância, objetou-se ao número dois» (1995: 85). Na defesa do emprego que faz da palavra cultura, indica dois sentidos que considera aplicáveis ao tema. O primeiro corresponderia à definição disponibilizada pelo dicionário, segundo a qual, tratar-se-ia de «desenvolvimento intelectual». Ou de um modo, que designa como mais refinado, seria uma reflexão derivada de Coleridge (Snow, 1995: 86): Coleridge disse cultivation (cultivo) onde diríamos culture (cultura); e o definiu como “o desenvolvimento harmônico das qualidades e faculdades que caracterizam a nossa humanidade”. Bem, nenhum de nós consegue lidar com isso; a verdade clara é que qualquer das nossas culturas, seja ela literária ou científica, merece apenas o nome de subcultura. “Qualidades e faculdades que caracterizam a nossa humanidade”. Na explicação de Snow, é ratificada a dualidade antes sugerida, uma vez que literatura e ciência, ao não apresentarem um desenvolvimento harmônico, cumpririam apenas parcialmente os aspectos inerentes à definição de cultura. Daí serem subculturas, como afirma. O segundo sentido é designado como «antropológico» e, portanto, estaria relacionado a «um grupo de pessoas que vivem no mesmo ambiente, ligadas por hábitos comuns, postulados comuns e um modo de vida comum» (Snow, 1995: 88). Ao assumir esse viés, Snow sustenta a polaridade entre literatos e cientistas, uma vez que «existem como culturas dentro da esfera de ação da antropologia» (1995: 88). A proposta conceitual apresentada, que implica lidar com o conceito de cultura em dupla chave, bem como a forma como esses conceitos são compreendidos e incorporados à argumentação abrem uma série de questões. O caráter problemático do uso do conceito por Snow está expresso na observação de críticos ao seu trabalho. George Levine, por sua vez, chama a atenção para a multiplicidade de significados que os termos literatura, ciência e cultura implicam. Termina por considerar «culture at large»,1 ou seja, 1 «cultura em geral». Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 29 «intelectual, moral, aesthetic, social, economic and political communities»2 (Levine, 1987: 6). Por outro lado, embora se reconheça a necessidade de reflexão mais detida sobre como esses conceitos aparecem empregados por autores que tratam da questão, no presente artigo, pretende-se apenas apresentar, em linhas gerais, um percurso sobre os debates acerca das relações entre literatura e ciência a partir da polêmica gerada pela publicação de Charles P. Snow. Essa abordagem visa, fundamentalmente, a colocar em discussão como essas relações têm despertado o interesse de teóricos contemporâneos e que aspectos têm sido levantados em seus trabalhos. Reconhecer a relevância desse debate significa, de certo modo, propor seu aprofundamento e, consequentemente, desenvolver abordagens que possam contribuir para novos caminhos de reflexão. Após reação, em 1962, marcada pela virulência da contestação do crítico literário F. R. Lewis ao texto de Charles P. Snow, em ensaio de 1965, intitulado «One culture and the new sensibility»,3 Susan Sontag retoma a conferência para questionar a visão defendida pelo físico inglês. A ensaísta nota que a discussão proposta pelo cientista já vinha sendo feita anteriormente e que a dissociação referida relacionava-se a uma histórica antipatia, por parte tanto de artistas quanto de literatos, quanto às mudanças que caracterizam a industrialização e seus efeitos. Acrescenta que são equivocadas ideias difundidas segundo as quais a ciência e a tecnologia estão em constante processo de transformação enquanto as artes permanecem estáticas. Igualmente, deve-se duvidar da premissa de que a especialização seria exclusividade do pensamento científico. Nesse sentido, a autora busca desfazer a compreensão de que haveria duas culturas efetivamente separadas por um abismo. Para Sontag, Snow teria desconsiderado a nova sensibilidade em formação, expressa, sobretudo, nas experiências da arte contemporânea (Sontag, 1996). Em 1987, George Levine publica «One culture: Essays in Science and Literature»,4 uma coletânea de artigos editada pela Universidade 2 «comunidades intelectuais, morais, estéticas, sociais, econômicas e políticas». 3 «Uma cultura e a nova sensibilidade». 4 «Uma cultura: ensaios sobre ciência e literatura». CLAUDETE DAFLON 30 de Wisconsin. No texto de introdução ao volume, em clara alusão à já citada publicação de Snow, questiona os termos colocados pelo autor inglês e ressalta a sua superação. O teórico, por outro lado, afirma que o título dado ao livro –«uma cultura»– não significa a unificação entre ciência e literatura, antes postula que uma e outra sejam abordadas como discursos derivados de fontes culturais comuns (Levine, 1987: 4). Por esse viés, Levine afirma ser preciso pensar, a partir da possível convergência entre os discursos, como e por que esse processo se deu. A abordagem proposta busca afastar-se de um esquema de verificação de «influências». Desse modo, não se quer simplesmente identificar confluências, mas investigar como elas ocorrem e seus significados, a fim de que «[...] literature and science can fruitfully be studied as parts of the same cultural field [...]»5 (Levine, 1987: 4). Em outras palavras, é possível afirmar que a discussão de George Levine aponta para uma reflexão sobre afastamentos e aproximações, colocando em pauta como esses processos se dão e como permitem apresentar diferentes campos como participantes de uma mesma cultura. Se a importância desse debate se vincula ao movimento de definição das áreas referidas, o encaminhamento proposto possibilita, ainda na perspectiva de Levine, refletir sobre a maneira como as culturas e as sociedades se encontram em constante formação. Interessa notar que o viés adotado permite avançar em relação a abordagens centradas em lugares-comuns, visto que, quando se propõe discutir a relação literatura-ciência, com frequência, acredita-se tratar do estudo da ficção científica ou do naturalismo ou, simplesmente, da determinação da influência da ciência sobre a criação literária. Ainda que essas sejam possibilidades a serem efetivamente consideradas, a complexidade do tema atinge outras esferas. Por isso, como lembra Levine, é preciso levar em conta que: «[...] science and literature reflect each other because they draw mutually on one culture, from the same sources, and they work out in different languages the same project»6 (1987: 7). 5 «literatura e ciência possam ser proveitosamente estudadas como parte do mesmo campo cultural». 6 «ciência e literatura refletem-se porque se valem mutuamente de uma cultura, a partir das mesmas fontes, e realizam em diferentes linguagens o mesmo projeto». Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 31 Diante disso, parece oportuno indagar em que medida a discussão contemporânea que coloca em xeque visões estabelecidas a respeito da ciência favorece a apreciação sobre a forma como esta tem se situado historicamente em relação à literatura. Do mesmo modo, isso permite compreender o lugar dado ao literário. Em suma, debates recentes acenam para a pertinência de se refletir sobre possíveis relações entre ciência e literatura. As discussões desenvolvidas por filósofos e historiadores têm questionado a autonomia que se atribuiu à ciência moderna assim como têm considerado as implicações na sua consolidação como campo de conhecimento e no prestígio que alcançou. O questionamento da autoridade científica, em especial no que diz respeito a princípios como a neutralidade e a objetividade, que lhe seriam inerentes, afeta a forma como se compreendem, inclusive em perspectiva histórica, as conexões entre a esfera literária e a ciência. Por esse ponto de vista, deduz-se que um estudo assim orientado asseguraria, ao investigar os espaços e papéis assumidos por literatos e cientistas, um melhor entendimento do contexto sociocultural em que se efetivam aproximações e distanciamentos. Uma contribuição importante nesse sentido é o trabalho de Wolf Lepenies de 1985, publicado no Brasil sob o título As Três Culturas. Não é difícil supor pela indicação do título que mais uma vez se propõe uma alusão à polêmica gerada por Charles P. Snow. A discussão, contudo, que Lepenies desenvolve diz respeito à formação das ciências sociais como campo de conhecimento autônomo, daí a referência a uma terceira cultura. O autor entende que as ciências sociais se formam em um movimento de disputa com a literatura pela primazia em «fornecer a orientação-chave da civilização moderna», ao mesmo tempo em que esboçam uma aproximação com a orientação cientificista das ciências naturais (Lepenies, 1996: 11). A discussão de Lepenies é esclarecedora sobre como se processam as relações entre esses campos. Em seu trabalho, considera que, no século XVIII, está em andamento a superação do amadorismo na ciência sem se tenham, contudo, sido estabelecidas a profissionalização e a especialização propriamente ditas. Ainda sobre o Setecentos observa: «No final do século XVIII não é, portanto, possível uma separação nítida entre o modo de produção literária e o da obra científica» (Lepenies, 1996: 12). A fim de esclarecer sua afirmação, 32 CLAUDETE DAFLON apresenta Buffon como exemplo, visto que, como homem da ciência, obteve reconhecimento por seu estilo na escrita quando a forma de escrever sobrepunha-se em importância àquilo que se escrevia, mesmo enquanto cientista: «Era considerado natural que um homem da ciência natural se concebesse como escritor: como alguém para quem não importa somente o que diz, mas também como diz, como alguém que não somente quer instruir seu público, mas divertir instruindo» (Lepenies, 1996: 13). Contudo, o que fora responsável por seu reconhecimento, progressivamente se tornou razão para que se duvidasse de sua capacidade como cientista, isso porque o que se diz ganhou relevância sobre o como. Por conta disso, toma curso a cisão entre divertir e instruir, enquanto reflexo da crescente especialização do discurso científico. Todavia, o processo pelo qual vão se diferenciando literatura e ciência não acontece de forma linear no tempo, além disso, está sujeito às particularidades nacionais como indica Lepenies ao discutir a formação da sociologia na França, Inglaterra e Alemanha (Lepenies, 1996). John Neubauer, em seu artigo «Reflections on the ‘convergence’ between Literature and Science»,7 de 2003, considera que a grande contribuição para reconceitualizações metodológicas que afetaram os dois campos, individual e conjuntamente, veio de Thomas Kuhn, com A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), e Michel Foucault, com As Palavras e as Coisas (1968). Ainda que não tenham tratado especificamente das relações entre literatura e ciência, suas formulações foram decisivas para uma nova reflexão sobre o assunto. Ressalta, então, que «scholars of the scientific process now give more recognition to the role of conventions, institutions, and irrational psychological motivations in individual scientists (Paul Feyeraband, Evelyn Fox-Keller, Bruno Latour)»8 (Neubauer, 2003: 741-742). As mudanças incluíram, ainda: «another line of research studies the language of scientific texts»9 (Neubauer, 2003: 742). Assim, estudos mais recentes têm discutido como formas narrativas e dispositivos retóricos encontram-se presentes 7 «Reflexões sobre a ‘convergência’ entre literatura e ciência.» 8 «Estudiosos do processo científico agora reconhecem mais o papel das convenções, instituições e motivações psicológicas irracionais em cientistas individuais (Paul Feyeraband, Evelyn Fox-Keller, Bruno Latour)». 9 «Outra linha de pesquisas sobre a linguagem dos textos científicos». Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 33 nos textos científicos antes caracterizados como essencialmente denotativos e transparentes, o que fere visões hierarquicamente construídas, segundo as quais a verdade científica se impunha ao discurso literário. Desautoriza-se, portanto, a conduta pautada no estabelecimento de influências em que a perspectiva, muitas vezes unívoca, supunha afetar-se, fundamentalmente, a literatura. Conclui, então, Neubauer que: «[...] the present focus on the role of literary and rhetorical devices in scientific discourse turned studies of ‘Literature and Science’ into a two-way traffic»10 (2003: 742). Assumindo essa posição, o autor cita a discussão de Wolf Lepenies, quando este atribui à literatura função de memória, ou seja, ideias científicas descartadas ou ultrapassadas hibernariam na literatura, de modo que pudessem ser reativadas em discussões científicas de momentos posteriores. Conduz, assim, o que chama de um estudo de caso, quando observa como o pensamento de Lucrécio é reativado (Neubauer, 2003: 746): De rerum natura experienced a great revival when mechanistic and atomistic theories emerged in the new science of the seventeenth century (Gassendi, Newton, Descartes); it then lost popularity once didactic poems went out of fashion around 1800, but was revived when the atoms triumphed in nineteenth-century physics and chemistry.11 Na citação, está clara a função de memória aludida. Desse modo, o trabalho de Neubauer aponta para uma relação entre literatura e ciência em outros patamares, explorando a complexidade do assunto. É por esse caminho que se propõe desenvolver uma reflexão sobre o contexto luso-brasileiro, em especial o século XVIII. 10 «[...] o presente foco no papel dos dispositivos literários e retóricos no discurso científico tornou os estudos da ‘Literatura e Ciência’ num tráfego de mão dupla». 11 «De rerum natura experimentou um grande revival quando teorias mecanicistas e atomistas surgiram na nova ciência do século XVIII (Gassendi, Newton, Descartes), então perdeu popularidade, uma vez que os poemas didáticos saíram de moda em torno de 1800, mas foi revivido quando os átomos triunfaram na física e química do século XIX». 34 CLAUDETE DAFLON Ao discutir as vertentes historiográficas da ciência no Brasil, a historiadora Moema Rezende Vergara, no artigo «Ciência e modernidade no Brasil», de 2004, observa que a herança colonial assim como a origem portuguesa foram entendidas como fatores do atraso nacional pelos intelectuais brasileiros da geração de 1870. Teria partido daí a compreensão, que perdurou na história da ciência feita no século XX, de que não teria havido ciência no período colonial. O elemento luso foi recalcado, de forma que luso-brasileiros eram designados tão-somente como brasileiros, ao mesmo tempo em que a ilustração portuguesa foi desconsiderada, num processo que a autora chama de «purificação da memória» (Vergara, 2004). A historiadora considera que Fernando de Azevedo, enquanto importante intelectual brasileiro do século XX, teria tido seu pensamento formado a partir das ideias do final do Oitocentos. Em sua obra A Cultura Brasileira, cuja primeira edição data de 1942, Azevedo critica duramente a educação jesuítica. Atribui-lhe o modelo de formação intelectual que teria vigorado no Brasil e afetado o desenvolvimento do conhecimento técnico-científico. Em relação aos filhos da elite colonial, afirma (Azevedo, 1996: 274): No entanto, a formação intelectual que recebiam, eminentemente literária, orientada não para a técnica e a ação, mas para o cuidado da forma, adestramento na eloquência e o exercício das funções dialéticas do espírito, não podia fazer desses mestres em artes e licenciados senão letrados, imitadores e eruditos, cujo maior prazer intelectual consistia no contato com os velhos autores latinos. Força de conservação antes do que instrumento de libertação do espírito, esse ensino de classe, dogmático e retórico, que modelava todos pelo mesmo padrão de cultura, fundia as minorias ralas de letrados, que flutuavam, estranhas e superpostas ao meio social, como uma elite intelectual de importação. Em linhas gerais, no passado da colônia, estaria a origem de comportamentos que teriam favorecido o atraso das ciências no Brasil. A compreensão de que a formação literária e retórica teria permanecido como danoso legado está declarada quando o autor relaciona a formação Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 35 que considera livresca ao embotamento de uma forma de pensamento e procedimentos necessários à ciência moderna. Isso porque se dispunha de um ensino «[...] que se manteve satélite da cultura europeia, no seu caráter universalista e teórico, e raramente soube transformar-se pela crítica, observação e experimentação, ainda quando orientado para a aprendizagem prática [...]» (Azevedo, 1996: 288). Assinala, então, Azevedo que se teria constituído, assim, uma tendência intelectualista e literária que perdurou por mais de três séculos ou ainda: «A cultura, tributária da religião, passou por essa forma a ser tributária das profissões liberais, sem se despojar do seu velho conteúdo humanístico e eclesiástico, ao menos até a segunda metade do século XIX [...]» (Azevedo, 1996: 278). Uma mudança na forma como têm sido avaliados o papel e o legado da educação a partir de suas origens coloniais no Brasil associa-se à consideração da importância, antes recalcada entre intelectuais brasileiros, da Ilustração Portuguesa. Daí a relevância do artigo de Maria Odila Dias, «Aspectos da Ilustração no Brasil», publicado na revista do IHGB em 1968, pois abriu caminho para a revisão desse posicionamento (Vergara, 2004: 27). Essa reorientação significou, portanto, o estabelecimento de novas perspectivas frente aos estudos sobre história da ciência no Brasil. A questão das vertentes historiográficas, no que diz respeito ao estudo do período colonial, está de certa forma indicada no livro Prelúdio para uma História: Ciência e Tecnologia no Brasil, de 2003, organizado por Shozo Motoyama. Em capítulo intitulado «Período colonial: o cruzeiro do sul na terra do pau-brasil», o historiador observa: «É opinião corrente que não tem sentido falar em Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil na época colonial. Aparentemente, nada se fez de importante no campo de atividades científicas e técnicas em nossas terras, sobretudo no início desse período. Mas seria verdade?» (Motoyama, 2004: 61). A essa indagação que introduz o texto, responde o autor com afirmações que contradizem as concepções correntes, como a que diz respeito às acusações feitas aos jesuítas: «Ademais, a contribuição jesuítica não se restringiu ao campo da história natural e da etnologia. Igualmente, aventurou-se em áreas físicas e astronômicas, obtendo bons resultados» (Motoyama, 2004: 99). Sem desprezar as contradições e problemáticas envolvidas na produção de conhecimento 36 CLAUDETE DAFLON durante o processo de colonização portuguesa na América, Motoyama aponta para a necessidade de revisar premissas difundidas acerca da história da ciência no Brasil e, quando se trata do Setecentos, acrescenta (Motoyama, 2004: 113): [...] os doutores conimbricenses naturais do Brasil, muitos deles mineiros, aprendizes de Domingos Vandelli (1735-1816) –renovador do ensino e da pesquisa científica na Universidade de Coimbra reformada–, intentavam introduzir uma cultura científica em seu país de origem. Dessa forma, muitos jovens talentosos dedicaram-se à investigação, sobretudo, da história natural e de áreas correlatas. Nesse ponto, convergem as duas linhas de argumentação desenvolvidas até aqui: de um lado, a atualidade de discussões sobre as relações estabelecidas entre literatura e ciência; de outro, a consideração da complexidade da situação das ciências no período colonial. Em outras palavras, ao se reconsiderar a existência da ciência no século XVIII em Portugal e seus domínios, torna-se pertinente investigar que lugar se conferiu à poesia frente ao progressivo prestígio do conhecimento científico entre ilustrados luso-brasileiros. Essa questão, contudo, não tem ocupado muito espaço na crítica sobre a literatura do período. Diante disso, a discussão teórica contemporânea representa uma contribuição ao colocar em questão: 1. a pertinência do debate sobre as relações entre ciência e literatura, o qual possibilita acessar o contexto sociocultural em que uma e outra se estabelecem; 2. a crítica ao realismo científico que possibilita a desmistificação de diferenças e distinções tomadas como certas e coloca o conhecimento científico como historicamente condicionado; 3. as aproximações e diferenciações estabelecidas entre ciência e literatura possibilitam compreender como uma e outra se relacionam às questões da sociedade em diferentes momentos históricos e, por ve- Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 37 zes, participam dos mesmos projetos, ainda que de maneira distinta. A discussão teórica apresentada oferece, assim, formas adicionais de abordagem e reflexão acerca da produção literária de luso-brasileiros setecentistas. Nessa perspectiva, soa bastante limitado e empobrecedor abordar um poeta como Manuel da Silva Alvarenga (1749-1814) sem compreender as relações que erige com o que entende por ciência e o que seria a ciência em sua época em Portugal e na América Portuguesa. O caso de Silva Alvarenga desperta interesse na medida em que sua trajetória explicita as ambiguidades próprias da condição do ilustrado nascido na América Portuguesa ao mesmo tempo em que representa a prática da poesia integrada à promoção de avanços no campo científico. Nascido em Vila Rica em 1749, mestiço, de origem humilde, filho do músico Inácio da Silva e de Felipa Lopes da Fonseca, segue nos estudos, provavelmente graças à ajuda de amigos, passando pelo Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana, fundado para atender à elite mineira dos meados do século XVIII, e onde se matricula em 1766 para estudar lógica (Autos da Devassa, 2002: 193; Silva, 2005: 55-57; Morato, 2005: XVIII-XIX; Tuna, 2009: 28-29).12 O objetivo, em última instância, seria o ingresso no curso de Cânones da Universidade de Coimbra. Autores como Joaquim Norberto e Fernando Morato registram o ingresso na Universidade em 1771; Gustavo Tuna, contudo, relata que a entrada nos estudos superiores teria acontecido em 1768, conforme consta no livro de matrículas de Coimbra e na carta de curso do poeta (Tuna, 2009: 32): Como previsto pelos Estatutos de 1653, Silva Alvarenga ingressou em Coimbra matriculando-se primeiramente em Instituta, em 1768, como está registrado no livro de matrículas da Universidade. A carta de curso registra que o estudante mineiro «provou cursar» a referida disciplina entre 1.º de outubro de 1768 até o fim de maio de 1769. 12 Nos Autos da Devassa, Silva Alvarenga declara ser o nome de seu pai Inácio da Silva, embora Joaquim Norberto registre Inácio da Silva Alvarenga. Já a passagem pelo Seminário da Boa Morte encontra-se indicada na tese de doutoramento de Gustavo Tuna. 38 CLAUDETE DAFLON Escreveu poemas como «À mocidade portuguesa», que, segundo estudo de Francisco Topa, embora tivesse sido publicado pela primeira vez apenas em 1782, dataria de uma década antes, ou seja, quando o poeta ainda estava em Coimbra (Topa, 1997: 346). Nessa ode, aponta-se para a necessidade de uma reorientação da juventude, uma vez que se parte da premissa de que predominariam, entre os estudantes, atitudes viciosas: «A fastosa indolência,/ Tarda preguiça, e mole ociosidade,/ Tiveste por ciência,/ Infeliz lusitana mocidade» (Alvarenga, 2005: 59). A preocupação com aspectos relativos ao estudo e à formação educacional está também em obras como «O desertor», poema herói-cômico de 1774, em que a adesão às reformas educacionais do período pombalino aparece associada a uma atitude pedagógica voltada, sobretudo, para o comportamento discente. Na sátira, acompanha-se a trajetória do jovem Gonçalo que, seduzido pela Ignorância, abandona os estudos na Universidade. Nos versos, o elogio ao Marquês de Pombal –o «invicto Marquês»– e a figuras como o reitor Francisco de Lemos –«Prelado formidável»– articula-se à condenação da indolência estudantil, exigindo dos estudantes atitude afinada ao espírito reformista. Em edição crítica de 2003 de «O desertor», Ronald Polito observa os usos da sátira e encômio verificáveis no poema de Alvarenga bem como a aproximação com «o pombalismo entendido como índice de modernização das instituições e da cultura» (2003: 33). O herói-cômico surge assim na convergência entre a atuação do ilustrado luso-brasileiro nas esferas políticas vigentes e o exercício da poesia, tendo em vista que a posição favorável a medidas educacionais e econômicas do período josefino revela-se em uma escrita comprometida com a instrução. A experiência como estudante em Coimbra associa-se, por conseguinte, à adesão a diretrizes da reforma da Universidade, em especial no que diz respeito à relevância atribuída ao desenvolvimento científico, sem o qual seriam improváveis progressos de ordem econômica. O incentivo a novas atitudes atrela-se à defesa de mudanças educacionais que favoreceriam o conhecimento das ciências: «O sentido educativo que assume o poema vem aliado, contudo, a princípios de desenvolvimento científico caros aos ilustrados» (Daflon, 2011: 60). Em seu poema satírico, portanto, assumir essa posição implicaria a atitude pedagógica Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 39 que buscava atingir os estudantes com a finalidade não apenas de convencê-los da pertinência da reforma, mas de torná-los ilustrados comprometidos com o progresso. Silva Alvarenga retorna à América Portuguesa em 1774. O seu estabelecimento na cidade do Rio de Janeiro aparece associado à sua nomeação como professor régio de Poética e Retórica em 1782 (Tuna, 2009: 76). Reconhecido como poeta, professor e advogado, em 1786 participa da fundação da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, sob a proteção do Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos. Como ainda afirma Alvarenga quando interrogado no processo da devassa, as atividades da Sociedade teriam esmorecidos após a saída de Vasconcelos e foram restabelecidas temporariamente com a chegada do novo Vice-Rei o Conde de Resende (Autos da Devassa, 2002: 194). Sua participação ativa nesse espaço de sociabilidade lhe renderá o dissabor da prisão em 1794 decorrente de uma devassa que se justificou nos seguintes termos (Autos da Devassa, 2002: 69): A que mandou proceder o Ilustríssimo e Excelentíssimo Vice-Rei do Estado do Brasil para se descobrirem por ela as pessoas que, com escandalosa liberdade, se atreviam a envolver em seus discursos matérias ofensivas da religião e a falar nos negócios públicos da Europa com louvor e aprovação do sistema atual da França, e para conhecer-se se entre as mesmas pessoas havia alguns que, além dos ditos escandalosos discursos, se adiantassem a formar ou insinuar algum plano de sedição. A Sociedade corresponderia a um ambiente ilustrado e, como tal, favoreceria a costura entre discussões de teor político e aquelas atinentes aos estudos científicos. Se ideias iluministas soavam ameaçadoras no contexto colonial, é notável a função assumida por esse tipo de agremiação tanto no que diz respeito à sua repercussão ao se constituir como «um campo de dinamismo e transformação científica e cultural» quanto por encerrar uma concepção de ciência que participa da «política pombalina de reformas efetivadas a partir da década de 1750» (Kury, 40 CLAUDETE DAFLON Munteal Filho, 1995: 106). Ainda em seu estudo sobre cultura científica e sociabilidade intelectual na Sociedade Literária do Rio de Janeiro, Lorelai Kury e Oswaldo Munteal filho assinalam a importância do poeta originário da capitania de Minas Gerais: «Silva Alvarenga foi a alma da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, além de ter sido mestre de muitos de seus membros» (1995: 114). A inter-relação da atividade de poeta com aquelas decorrentes de sua atuação como ilustrado encontra-se expressa, por exemplo, na apresentação do poema «Às Artes», recitado no ambiente da Sociedade Literária, em 1788, em homenagem ao aniversário de D. Maria I. Nos versos, o desfile das Artes (que inclui a Matemática, a Física Experimental, a História, entre outras áreas de conhecimento, e termina com a Poesia) caracteriza-se pelo louvor às ciências e define o lugar conferido à arte poética. Desse modo, são heróis os cientistas que pereceram em seus ofícios ao mesmo tempo em que cabe à poesia a memória dos feitos: «Mas que ilustre Matrona entre as mais vejo / De verdes louros coroada a frente? Tem nas mãos plectro ebúrneo e lira d’ouro, / Que celebra os Heróis e que eterniza / no templo da Memória o Nome e a Fama / Dos ínclitos Monarcas» (Alvarenga, 2005: 121). Celebrar e eternizar, ou ainda, difundir e registrar. A Matemática e a Poesia, enquanto matronas, efetivariam a relação entre conhecimento e lírica, numa aliança urdida pela feição política dos versos revelada tanto pelo contexto de exposição –a Sociedade Literária– quanto na dedicatória à rainha. A atitude pedagógica indicada no poema perpassa, contudo, a obra de Silva Alvarenga, manifestando-se inclusive em versos de teor encomiástico. Assim como a sátira, o encômio participa do entendimento da poesia como deleite e utilidade, pois o louvor dedicado a figuras públicas como o Rei D. José I e o próprio Marquês de Pombal representa a defesa das políticas por eles representadas, a exemplo das mudanças educacionais relacionadas à promoção das ciências. Silva Alvarenga, entretanto, amarga o confinamento até 1797, quando é libertado por não haver evidências suficientes de sedição. A publicação de Glaura: poemas eróticos de um americano, de um modo geral, apontada como seu melhor trabalho pela crítica que lhe é dedicada, ocorre após sua libertação, em 1799. Vem a falecer em 1814 e deixa Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 41 como legado uma biblioteca particular importante que contava com pelo menos 1500 volumes (Morato, 2005: LVIII). De todo modo, destaca-se como, na trajetória do poeta luso-brasileiro, a poesia esteve consideravelmente, integrada à atuação como educador e defensor do progresso alcançável apenas com o desenvolvimento da ciência moderna. Dessa forma, ainda que se assuma que o pensador do século XVIII estaria muito mais próximo do realismo científico e ali estão se constituindo as suas bases, importa, no ponto de vista adotado para a discussão do período, a compreensão de que há condicionamentos históricos a que se deve submeter a verdade científica. Nesse sentido, deve-se trabalhar na tensão que se institui entre a compreensão do pensamento do homem setecentista, sem o que se incorreria em grosseiro anacronismo, e uma abordagem pautada em uma discussão contemporânea sobre o tema. Não se pode esquecer de que é precisamente a discussão que tem sido feita na atualidade que enseja a iniciativa de estudar as relações entre literatura e ciência entre luso-brasileiros do século XVIII. Ou ainda como afirma Michel Serres: «A vida presente faz viver a de ontem, não o contrário» (2007: 158). Sem dúvida, o debate que vem sendo realizado por estudiosos da literatura, da ciência, da história e da filosofia permite compreender que tal abordagem representa um acesso importante às questões socioculturais da época. Por essa vereda, as relações entre literatura e ciência alimentariam o entendimento sobre o papel que uma e outra vão assumindo na América Portuguesa e em Portugal. Se, em um primeiro momento, o caráter instrutivo do discurso da ciência não aparecia dissociado ao divertir, como se apontou no caso de Buffon, essa indissociabilidade também se dava no ofício do escritor, na medida em que ao poeta caberia igualmente instruir e deleitar. O processo de especialização e a crescente autonomia da ciência significou também a cisão entre o deleite e a instrução, o que se faz sentir na especificidade progressiva do discurso científico, de um lado, e no afastamento da poesia «didática» praticada no século XVIII. A instrução, contudo, no contexto luso-brasileiro setecentista, está vinculada concomitantemente ao conhecimento científico e ao fortalecimento do Estado português, uma vez que o desenvolvimento da ciência está atrelado a questões políticas e econômicas na medida em que se assume ser função do Estado 42 CLAUDETE DAFLON promover o progresso. Isso fica especialmente claro nas reformas educacionais ocupadas na formação de homens públicos, como esclarece Ana Rosa Cloclet da Silva (2003: 26): Neste sentido, o homem público projetado pelas reformas pombalinas do ensino revelava-se o homem das Luzes passíveis de serem incorporadas no Portugal setecentista. Ou seja, aquelas que, fecundando o sentido pragmático do saber –trazido na essência da proposta Iluminista– viabilizassem a formação de indivíduos tecnicamente habilitados para uma atuação prática, na solução de questões prementes, que fizessem da ciência e da ética nas quais eram versados, aliados incontestáveis na execução de reformas comprometidas, em todos os níveis, com a preservação do regime político e da ordem social vigentes. Numa relação, porém, na qual o que dizer torna-se crescentemente mais importante que o como, observa-se igualmente a ascensão do prestígio da ciência sobre a literatura. A esta, contudo, caberia ainda uma função instrutiva, ao passo que se recalca a diversão no âmbito do conhecimento. Nesse sentido, em certa medida, a literatura constituiu-se enquanto espaço de divulgação científica. Para uma apreciação desse aspecto, todavia, é necessário compreender a articulação da produção literária com os espaços de sociabilidade, já que agremiações intelectuais representavam ambientes em que se propunha a difusão do conhecimento com vistas à sua desejável universalização. Bibliotecas, academias e museus exemplificam formas de organização, sistematização e, consequentemente, de disseminação do saber. A respeito disso, Jonathan Israel, professor da School of Historical Studies em Princeton, assinala o progressivo estabelecimento, na Europa iluminista, de uma esfera pública de debate, com troca de ideias e formação de opinião, que incluía desde enciclopédias, bibliotecas até cafés em conjunto com a crescente circulação de jornais (2009: 91-92). A divulgação científica parece instituir-se, assim, a partir dessas esferas que se desenvolveram desde o século XVII, mas, no caso da América Portuguesa, o veto à publicação pode ter sido um fator importante para o papel dado às sociedades. Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 43 Autores como Ildeu Moreira e Luísa Massarini, ao discutirem a divulgação científica no Brasil, enfatizam, porém, a importância do funcionamento da Imprensa Régia a partir de 1810, pois: «textos e manuais voltados para a educação científica, embora em número reduzido, começaram a ser publicados ou, pelo menos, difundidos no país» (2002: 45). Sob esse aspecto, quanto ao conteúdo das publicações de O Patriota, periódico que circulou entre 1813 e 1814, os autores observam que «vieram à luz vários artigos de cunho científico ou divulgativo, alguns dos quais remanescentes de textos apresentados à antiga Sociedade Literária. Silva Alvarenga publicou nele vários poemas nos quais abordava temas ligados à ciência» (Moreira; Massarini, 2002: 45). Ao apontarem, de um lado, a publicação da poesia de Alvarenga junto a textos «científicos» ou «divulgativos» e, de outro, a reprodução de poemas já apresentados em encontros da academia (caso de «Às artes», no número 6 do jornal, em 1813),13 os pesquisadores expõem o valor de divulgação científica que, em algum grau, teria sido alcançado por determinada produção literária da época. Além disso, é relevante a presença de poemas do autor de Glaura em um periódico que «foi o primeiro jornal brasileiro a publicar artigos densos e analíticos sobre ciências e artes, cultura e letras» e que pretendia «formar leitores, agricultores, homens de ciência, escritores» (Kury, 2007: 9 e 10). Todavia, a difusão ou promoção, via versos, do conhecimento científico operava-se no final do Setecentos tanto em reuniões de letrados quanto em publicações aprovadas pelo Estado português, particularmente quando representavam apoio às políticas implementadas e às medidas destinadas ao desenvolvimento das ciências. O alcance desses espaços de sociabilidade merece maior investigação, como sugerem em afirmações como a de Gustavo Tuna (2009: 225): A publicação do livro de Vicente Coelho Seabra, Elementos de Chimica, dedicado à Sociedade Literária do Rio de Janeiro, sugere que a 13 Nas edições de O Patriota, foram localizados os seguintes poemas de autoria de Silva Alvarenga: «Apotheosis poetica» [a Luiz de Vasconcelos] (n.º 2, 1813), «No dia da inauguração da estátua equestre de D. José» (n.º 3, 1813), e, por fim, a sátira «Os vícios» (n.º 4, 1813). 44 CLAUDETE DAFLON agremiação capitaneada por Silva Alvarenga, com os limites impostos pela colônia, fez parte de uma rede de intercâmbio científico que suplantava os limites da capitania do Rio de Janeiro. Nesse contexto, não se pode pensar separadamente a poesia de seus espaços de publicização, em especial se considerarmos a sua articulação com a promoção das ciências. Ainda nesse sentido, a atuação do letrado, à maneira de Silva Alvarenga, estaria de acordo com o pragmatismo da ilustração portuguesa. Por conseguinte, para abordar um autor como o poeta da Sociedade Literária, faz-se necessário, em primeiro lugar, buscar estabelecer a visão que o homem do século XVIII tinha sobre a atuação como poeta e a sua relação com a ciência. Para tanto, tendo em vista o caráter histórico da relação entre literatura e ciência, deve-se aferir em que medida, quando na Europa a ciência já buscava descolar-se da literatura, a poesia, no contexto luso-brasileiro, se constituía aliada do desenvolvimento científico, no que pese a ambiguidade da aproximação de discursos que pareciam se encaminhar para fins distintos. Nesse sentido, a condição de educador efetivamente catalisaria essa relação, afinal a necessidade de difundir a ciência e certificar sua relevância numa sociedade que oferecia evidentes obstáculos a seu desenvolvimento passaria, obrigatoriamente, por uma atitude pedagógica. Diante disso, pretende-se, em vez de recalcar a complexidade implicada numa abordagem que considere as relações entre ciência e literatura, explorá-la. De maneira que, no processo de pesquisa, se busque apreender a estrutura reticular constituída por diversas linhas que seguem em diferentes direções, entrecruzando-se em mais de um ponto e mais de uma vez. Desse modo, tratar da poesia de um ilustrado e poeta setecentista luso-brasileiro como Manuel da Silva Alvarenga implica considerar as perspectivas que o atravessam. Para tanto, faz-se necessário seguir as diferentes linhas nas múltiplas direções que seguem: o entendimento do processo de formação das ciências modernas e o enfrentamento das particularidades do contexto luso-brasileiro; os caminhos dados à educação em Portugal e seus domínios; a reflexão sobre a Ilustração portuguesa em suas especificidades; e a tradição literária Uma proposta de reflexão: literatura e ciência entre luso-brasileiros setecentistas 45 que aponta os percursos assumidos pela poesia no século XVIII, o que obriga o estudo do verso tal como praticado, suas filiações e sua inserção em práticas consolidadas. Essas instâncias entrecruzadas nos oferecem a imagem reticular postulada. Nela, os pontos de contato entre os fios e a direção que tomam devem ser permanentemente levados em consideração. O conhecimento oferecido pelos estudos contemporâneos sobre literatura e ciência aponta para essa complexidade, desconstruindo modelos rígidos na abordagem da questão, como aqueles constituídos por fórmulas dedicadas à identificação de influências e ratificação de lugares de poder. A contribuição da filosofia da ciência é realmente importante nesse sentido, pois coloca sob suspeita a autoridade científica. Por outro lado, voltar-se para o literato do Setecentos com esse olhar significa avançar em relação aos debates sobre aspectos da poesia neoclássica e elementos da nacionalidade atinentes à América Portuguesa, ou seja, representa a possibilidade de colocar em cena outras questões implicadas na atuação dos homens das letras nesse período. Por outro lado, embora a estrutura reticular proposta represente tanto a multidisciplinaridade e a descentralização derivada da multiplicação de pontos de cruzamento, o escopo do trabalho investigativo em andamento é produzir crítica literária. Em outras palavras, não se tem a pretensão de desenvolver uma pesquisa de história ou filosofia ou educação, por exemplo. Sem perder de vista o desafio de lidar com a complexidade do objeto tratado, propõe-se uma escritura organizadora, no caso, a do crítico de literatura. Todavia, é preciso estar ciente do risco de simplificação ou de reducionismo, muitas vezes, inevitável. Quanto a isso, é pertinente considerar a discussão metodológica realizada por Miriam Limoeiro Cardoso na introdução a seu trabalho sobre a ideologia do desenvolvimento no Brasil. Apoiada, entre outras referências, na contribuição de Gaston Bachelard, a autora apresenta o conhecimento como uma aproximação, o que se explicaria pelo entendimento do objeto de conhecimento enquanto formulação, construção distinta daquilo que seria o «objeto real». E, vale destacar, esse processo de construção seria inerente ao desenrolar da pesquisa. Ou seja, parte-se de um conhecimento que dirige o olhar do pesquisador e assegura-lhe a formulação de um objeto que, entretanto, termina por lhe impor novas realidades 46 CLAUDETE DAFLON e exigir renovadas reconstituições. Assim, o dinamismo impresso na pesquisa supõe uma permanente reformulação que pode terminar por subverter a teoria que impulsionara o projeto para lhe indicar diretrizes novas e diversas. E, sobretudo, o objeto de pesquisa se apresenta como algo não previamente dado em «estado natural» (como poderia fazer supor uma perspectiva positivista do pensamento), mas como uma construção, uma vez que «a estruturação do real como objeto, longe de ser um defeito, é o próprio meio pelo qual opera o conhecimento científico» (Cardoso, 1978: 35). Logo, não se acredita ser possível a apreensão do objeto estudado em sua totalidade, mas isso não deve ser confundido com o recalque da complexidade que parte, entre outras coisas, do reconhecimento de sua natureza multifacetada. REFERÊNCIAS ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. Obras Poéticas: Poemas Líricos, Glaura, O Desertor. Introd. e org. Fernando Morato. São Paulo. Martins Fontes, 2005. ALVERANGA, Manuel Inácio da Silva. O Desertor: Poema-Herói Cômico. Campinas, SP. Editora da Unicamp, 2003. Autos da devassa: Prisão dos Letrados do Rio de Janeiro, 1794. 2-ª ed. Rio de Janeiro. EDUERJ, 2002. AZEVEDO, Fernando de. 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Entre as estratégias propagandísticas desenvolvidas pela dinastia bragantina, cumpre salientar a aplicação da emblemática às manifestações de arte efémera, que sobreviveram através de testemunhos escritos, como acontece com a descrição dos emblemas fúnebres em honra da rainha D. Maria Sofia Isabel. A abordagem hermenêutica destes textos numa perspetiva sociológica torna-se, portanto, particularmente relevante para os estudos culturais da época, uma vez que permite estabelecer pontos de ligação intertextual com os livros de emblemas coevos, ao mesmo tempo que comprova a adaptação à realidade nacional de técnicas de propaganda política de aplicação universal. Palavras-chave: Emblemática; Arte Efémera; Exéquias; Propaganda; Cortes Barrocas; Repraesentatio Majestatis 50 FILIPA MEDEIROS ABSTRACT Taking into account the political management of public ceremonies organized by baroque courts in order to promote the royal family, this study intends to analyze the Portuguese appropriation of that phenomenon, after the Restoration of Independence. Among the propagandistic strategies supported by the brigantine dynasty, we must emphasize the contribution of emblematic compositions to develop the ephemeral art, whose importance was testified by written reports, as the description of funeral emblems in honor of D. Maria Sofia Isabel. Reading this text in a sociological perspective can provide important information to cultural studies, since it discloses some intertextual connections to contemporaneous emblem books, but also because it demonstrates the adjustment of universal techniques used by political merchandising. Keywords: Emblematics; Ephemeral Art; Funeral; Political Marketing; Baroque Courts; Repraesentatio Majestatis Volvidos quatrocentos e quarenta anos sobre o dia em que saiu dos prelos de António Gonçalves a primeira edição d’Os Lusíadas, importa sensibilizar os leitores do século XXI para conhecerem melhor a finalidade propagandística da obra escrita por Camões, para libertar da «lei da morte» os feitos e os heróis descendentes de Luso. Confiante de que o canto épico seria capaz de os «espalhar por toda a parte», se não lhe faltasse a providencial ajuda de «engenho e arte» (Lusíadas, I.1516), pretendia Luís Vaz exprimir poeticamente o tópico contraste entre o desejo de eternidade e a consciência da mortalidade, ao mesmo tempo que perseguia o ideal de Fama, para si, para o seu Povo e para o seu Rei. Neste sentido, facilmente se estabelece um paralelo entre este mecanismo de divulgação e as estratégias de propaganda ideológica que foram evoluindo ao longo dos séculos até culminarem nos atuais mecanismos de publicidade, com ou sem fins comerciais1. Talvez Os Lusíadas pu1 Recorde-se que a «tuba canora e belicosa» inspirada pelas Tágides foi convocada para celebrar a Fama da nação portuguesa num momento em que a dinastia de Avis apresentava preocupantes sinais de desgaste, assumindo depois de 1580 o estatuto de símbolo patriótico que veio a acentuar-se na sequência da Restauração da Independência. O «Príncipe dos Poetas» não configurava um mero ícone de orgulho nacionalista, nem a sua epopeia podia ser equiparada a um vulgar texto de resistência, de que havia inúmeros exemplares na época. A exaltação da superioridade do génio poético de Luís Vaz envolveu a sua figura com um halo transcendental, de tal forma que as profecias camonianas e a utopia do Quinto Império são consideradas «revelações equivalentes da dimensão messiânica da forma mentis do português de Seiscentos» (Pires, 1982: 67). É nesta perspetiva sociológica que deve ser avaliado o efeito propagandístico da sua obra. «Cantando espalharei por toda a parte» 51 dessem até desenvolver uma receção mais empática com o público hodierno se, em vez de serem apresentados como arquétipo textual de um género antigo adaptado à história nacional, fosse devidamente valorizado o seu papel político enquanto veículo de transmissão de informação e, sobretudo, enquanto meio privilegiado de comunicação. Numa época em que os progressos da imprensa revolucionaram por completo a circulação de obras literárias e o dinamismo das redes culturais, as publicações em letra de forma desempenhavam um papel importante como agentes de propaganda ideológica. Teriam, porém, um impacto ainda longe da difusão massiva alcançada posteriormente pelos periódicos e, em tempos mais recentes, pela televisão e pela Internet, que transformaram o mundo em que vivemos numa «aldeia global», como observou McLuhan (2011: 36). Neste universo sem fronteiras, vigoram as leis do Marketing internacional, ditadas pelos princípios e pelos fins da sociedade consumista, mas podemos questionar se lhe podemos verdadeiramente imputar a responsabilidade de ter criado a máquina propagandística. E até que ponto serão os mecanismos actuais verdadeiramente inéditos e inovadores?2 Se entendermos a publicidade como a «comunicação paga das mensagens através de meios impessoais» (Viana e Hortinha, 2009: 379), imediatamente se percebe que os modernos meios audiovisuais vieram exponenciar o alcance e os recursos das campanhas de divulgação. No entanto, se recuarmos no tempo, a definição pode também aplicar-se, mutatis mutandis, às oitavas camonianas, se as concebermos como 2 Tendo em conta o objetivo de propor novos trilhos de pesquisa sobre o Barroco, pretende-se com este estudo apresentar uma estratégia de análise textual que estabelece pontos de contacto entre a finalidade pragmática de uma obra propagandística datada de 1699 e os actuais mecanismos publicitários. Esta abordagem, que procura interpretar os emblemas fúnebres enquanto produto literário de um determinado contexto histórico-social, pressupõe a aplicação de uma perspectiva hermenêutica já ensaiada por investigadores como Strong (1984), Grove (2000), Bouzy (2007) e Klecker (2010). Tomando como referência as suas linhas de orientação, propõe-se, neste trabalho, uma leitura das composições fúnebres como agentes de propaganda ideológica, de modo a lançar algumas pistas para uma reflexão teórica mais abrangente sobre o impacto social do fenómeno emblemático em Portugal. Importa, porém, ressaltar que a aproximação entre as estratégias propagandísticas do Barroco e os mecanismos publicitários hodiernos não implica uma equiparação plena entre a sociedade contemporânea e a realidade do século XVII, trata-se apenas de comparar o funcionamento da máquina responsável pelas técnicas de propaganda, partindo de um exemplo concreto. 52 FILIPA MEDEIROS agente difusor da autonomia nacional, bem como a outros formatos literários e artísticos que funcionaram como verdadeiros órgãos de manipulação ideológica junto da opinião pública, prestando culto às Musas e à Coroa portuguesa. Neste domínio, merecem particular destaque as composições linguístico-visuais que integravam o programa iconográfico dos grandiosos espetáculos festivos das cortes seiscentistas, através das quais se procurava recriar uma realidade faustosa e capaz de impressionar, apesar do suporte efémero. De facto, a arte emblemática foi então colocada ao serviço do Poder das monarquias e barrocas, de modo a explorar até à exaustão a força persuasiva da retórica sensorial. Para além das pomposas cerimónias, há notícia de outros canais de difusão da propaganda emblemática, como os opúsculos, de que são exemplo expressivo os Emblemes royales a Louis le grand (1673) de Martinet, publicados em 1673 para homenagear o Rei-Sol (Grove, 2000: 16). Num momento em que a dinâmica do mapa político europeu agudizava o clima de incerteza, alimentando a volátil rede de influências entre as principais casas reinantes, a tensão permanente implicou profundas alterações nos esquemas mentais e impulsionou a promoção dos espetáculos. A evolução social ditou, portanto, a mudança dos códigos estéticos no sentido da exuberância ornamental, elegendo o convencimento emocional dos sentidos como veículo preferencial de comunicação entre os diferentes grupos sociais. Deste modo, a eloquência estética tornou-se uma arma habilmente manuseada pelos governos absolutistas e imperiais, que recorriam a celebrações aparatosas para impressionar os espectadores –diretos e indiretos (Klecker, 2010: 235-262). Ora, este fenómeno atingiu o auge nas ocasiões festivas de maior tradição e mais enérgica participação popular –os casamentos e as exéquias reais–, de forma a intensificar, a nível interno, a afinidade com os governantes, ao mesmo tempo que se publicitava, no exterior, a identidade pátria. De acordo com os princípios da repraesentatio majestatis, os mecanismos de manipulação demagógica encenavam um convincente teatro didático, transformando as cerimónias públicas num verdadeiro «evento institucionalizado dirigido às massas anónimas e controlado «Cantando espalharei por toda a parte» 53 pelos detentores do poder monárquico» (Tedim, 2009: 55).3 A instrumentalização política das festas não foi, porém, uma invenção da Idade Moderna, ainda que tenha florescido nessa época, graças aos expedientes da arte efémera para publicitar os atos comemorativos das famílias coroadas, recorrendo a ornatos com motivos heráldicos, emblemáticos e alegóricos em diferentes suportes para construir programas simbólicos apologéticos da instituição monárquica (Minguez, 2001:130). Procurava-se, acima de tudo, criar uma sinergia popular com epicentro na figura real, daí que fossem privilegiados os meios de condução das massas com forte componente visual, que não se limitavam a truques vistosos como os arcos de triunfo, as máquinas de fogo, os catafalcos e os cortejos. A cenografia espetacular contava também com emblemas, hieróglifos, alegorias e imagens narrativas, misturando os contributos da Pintura e da Escultura, no sentido de patentear o imaterial pela força persuasiva do trinómio plasticidade/obscuridade/exemplaridade que estimulava a memória visual, para conquistar a adesão emotiva do auditório (Bouça, 1996: 10). Assim se fomentava a ilusão de que as congregações e as associações de fiéis patrocinavam espontaneamente as construções urbanas de exaltação régia por ocasião das cerimónias, quando, na verdade, eram pressionadas pelas autoridades municipais a contribuir para os ornamentos das ruas. Por conseguinte, se retomarmos o conceito de publicidade, podemos afirmar que eram estes festejos os indispensáveis «meios impessoais» de que os governos se serviam para comunicar a sua mensagem política, com a agravante de não suportarem a totalidade dos custos inerentes. É, portanto, nesta perspetiva que devem ser interpretadas as cerimónias fúnebres que, no verão de 1699, cobriram de galões a capital do reino para se despedir da sereníssima rainha D. Maria Sofia Isabel. 3 Cumpre advertir que não se pretende inferir da retórica emblemática qualquer intenção de conferir protagonismo político à massa popular, mas antes mostrar que a sua utilização propagandística procurava assegurar aos governantes a manipulação do povo, seguindo uma tendência que também se verifica no Siglo de Oro espanhol (Bouzy, 2007). A reconhecida influência desse movimento sobre a cultura portuguesa do século XVII deve, por isso, ser tida em consideração para avaliar a pertinência dos laços intertextuais aqui sugeridos entre os emblemas fúnebres portugueses e as obras de Covarrubias Horozco, Francisco de la Reguera e Monforte. 54 FILIPA MEDEIROS Tal como nas bodas reais de 1666 e de 1687,4 também no sumptuoso funeral da mãe de D. João V se apostou na iconografia emblemática para consolidar a convicção de que Portugal estava a viver uma era dourada.5 A representação plástica dos ideais políticos revestiu os espaços urbanos de encantamento, de modo a reforçar a empatia da sociedade com o filho do «Restaurador», para que o encontro alegórico entre o cortejo sepulcral e a turba fortalecesse o sentimento de fidelidade e concórdia, criando o necessário ambiente de confiança e prosperidade num momento em que o «Pacífico» ainda lutava pela afirmação do seu reinado. O poder instituído investiu na imagem associada à dinastia de Bragança, apostando na cultura simbólica para difundir e exaltar a figura régia, ao mesmo tempo que saíam a lume tratados político-morais na senda dos specula principis renascentistas. E se por ocasião da entrada em Lisboa, a receção preparada para a dama de Neuburg ambicionava coadjuvar D. Pedro II na difícil tarefa de superar o desgaste provocado pelos acontecimentos dos conturbados anos de Regência (1668-1683), a verdade é que Tinoco conseguiu arquitetar um programa festivo capaz de apagar da memória o rasto nefando de D. Maria Francisca de Sabóia. No manuscrito intitulado A Pheniz de 4 À semelhança do álbum intitulado L’Entrée triomphante de Leurs Maiestez Louis XIV... et Marie Therese d’ Austriche son espouse, dans la ville de Paris (par Jean Tronçon, Chez Pierre le Petit, 1662), também em Portugal se publicaram registos das bodas reais, de que são exemplo o Triumpho Lusitano, applausos festivos, sumptuosidades regias nos augustissimos desposorios do inclito D. Pedro II com a serenissima Maria Sofia Izabel de Baviera, monarchas de Portugal, por Manuel de Leão, Bruxelas, 1688, e a Copea dos reaes aparatos e obras que se fizeram em Lisboa na ocasião da entrada e dos desposórios de suas Magestades, Lisboa, 1687. Para além disso, Frei Arcanjo de Aragão editou o Sermão gratulatório e panegírico na próspera e suspirada vinda da Sereníssima senhora Maria Sofia Isabel (Lisboa, João de Galrão, 1688) e João Coelho de Almeida deu à estampa a Pratica … na entrada que sua Magestade o Senhor Rei D. Pedro II e a senhora Rainha Maria Sofia Isabel fizeram à Sé (Lisboa, Miguel Manescal, 1687). 5 Não deixa de ser significativa a incidência da temática política na produção emblemática portuguesa. Para além de o Príncipe dos Patriarcas S. Bento (1683-1690) poder ser entendido como um manual de educação de príncipes, também o manuscrito das Empresas lusitanas contra castelhanas empresas e o códice das Festas que se fizeram pelo casamento do rei D. Afonso VI (1666) estavam comprometidos com a causa régia. Para além disso, há ainda notícia de um conjunto de emblemas sobre a sucessão espanhola datado de inícios do século XVIII, no qual é possível verificar que os «jogos de engenho aliam-se à política para dar lugar a uma duríssima diatribe antifrancesa e uma suave condenação antiespanhola» (Martínez Pereira, 2008: 183). «Cantando espalharei por toda a parte» 55 Portugal (Ms. 346 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), o artista deixou um registo ilustrado do espetáculo em que elegeu a mítica ave como leit-motiv do discurso oficial, de modo a reiterar os augúrios de renovação e de renascimento para a dinastia bragantina, dependente, então, do futuro cada vez mais incerto da Infanta Sempre Noiva (Sider, 1997: 67).6 Doze anos mais tarde, o povo português despedia-se da Fénix alemã, grato pela confirmação dos votos de regeneração anteriormente formulados. A 4 de Agosto, foi anunciado o passamento da Sereníssima rainha, cujo corpo foi acolhido em sumptuosos aposentos do paço da Ribeira, revestidos de carmesim e damasco. Daí saiu o cortejo fúnebre para São Vicente de Fora, o futuro panteão da Dinastia de Bragança, sob o pesaroso olhar do rei Pacífico (Braga, 2011: 354). Multiplicaram-se, depois, as exéquias durante o mês dedicado a Augusto, de modo a difundir o sentimento de pesar por todas as câmaras do Reino e do Império (Braga, 2011: 358). Estes rituais lutuosos consistiam geralmente numa pregação evocativa para exaltar as virtudes da defunta, mas podiam ser enriquecidas com representações iconográficas ou certames poéticos, de que a impressa coeva deixou farto depoimento.7 Aproveitando a acei6 A missão de Tinoco era associar o nome da nova rainha aos conceitos de bondade, sabedoria e poder, de modo a suportar a nova dinastia fundada por Pedro II. Para isso, o artífice recorreu a um símbolo já usado por Leonor de Áustria, rainha de Portugal e de França, na entrada em Poitiers, quando se oficializou o casamento da irmã de Carlos V com Francisco I. A emblemática desempenhou um papel simbólico muito significativo nas cerimónias fúnebres da família real portuguesa durante o período barroco, tal como demonstrou o estudo de A. Bouça (1996), e importa recordar que a morte de uma figura régia comovia as estruturas sociais e proporcionava uma excelente oportunidade para apelar à coesão social. Tornava-se, portanto, particularmente eficaz a construção de cenas representativas a partir de códigos logo-icónicos, de modo a ampliar o impacto psicológico da mensagem política, combatendo, assim, o espectro mortuário que se abateu sobre a dinastia de Avis no século XVI. No período filipino, os rituais fúnebres passaram a apostar na ideia de continuidade e de estabilidade governativa, ditando uma tendência que se acentuou depois de 1640, enfatizando a dimensão formativa e performativa da emblemática no programa de afirmação dos monarcas da casa de Bragança. 7 A morte da esposa de D. Pedro II, à semelhança do que acontecera com as bodas, motivou uma torrente de manifestações literárias e artísticas. Muitas dessas publicações foram impressas In memoriam futuram, como se constata nas recolhas que integram o Catálogo da Colecção de Miscelâneas da BGUC. Entre os inúmeros títulos, destacamos: Ecco Saudoso que no Coração do Maior Monarca Justamente Sentido … na Morte… da Senhora D. Maria Sofia, por Domingos Lopes Coelho, Lisboa, 1699 (Misc. 186, 3221); Eclipse da Fermosura Observado no espelho da Saudade, por Luís de Siqueira da Gama, Lisboa, Miguel de Deslandes, 1699 (Misc. 186, nº 3222); Epitáfio Saudoso, Despertador Funeral, Escrito na Cinza da 56 FILIPA MEDEIROS tação do público e o consentimento das estruturas administrativas, os opúsculos desempenharam um papel determinante na construção da memória da história, na medida em que prolongaram a existência das cerimónias momentâneas.8 Por outro lado, estes relatos atestam a moda dos emblemas nas festas e exéquias do império colonial, que viria a atingir o auge em meados do século XVIII com a figura de D. João V (Bouça, 1996: 13). Entre os exemplares evocativos, considera-se de particular interesse o Sermão nas Honras Fúnebres que a Congregação do Oratório de Lisboa Dedicou à Saudosa Memória da Serenissima Rainha D. Maria Sofia Isabel, pregado pelo Padre António de Faria (Lisboa, Miguel Deslandes, 1699), uma vez que reproduz um significativo conjunto de dez emblemas. Apesar de ser conhecida a predileção de Sua Majestade pelos Jesuítas, não deixara de prover com esmola mensal a assembleia de fiéis fundada por Bartolomeu do Quental (Braga, 2011: 263), sendo natural que os Oratorianos retribuíssem, com este tributo, o generoso Sepultura da Sereníssima Rainha, por Pedro de Azevedo Tojal, Lisboa, Miguel de Deslandes, 1700 (Misc. 186, nº 3220); Ideas da Saudade, Imagens do Sentimento, Formadas na Lamentável Morte da Senhora D. Maria Sofia, por Manuel Pacheco de Valadares, Lisboa, Miguel Deslandes, 1699 (Misc. 186, 3219); Triunfos da Morte, Despojos da Majestade, por Pedro de Azevedo Tojal, Lisboa, Manuel Lopes Ferreira, 1699 (Misc. 186, nº 3215); Heptaphonon, ou Portico de Sete Vozes. Luctuoso Obsequio e Funeral Culto Consagrado à Magestade Defunta a Sempre Augustíssima Rainha D. Maria Sophia Izabel de Neuburgo, por Pascoal Ribeiro Coutinho, Lisboa, Manuel Lopes Ferreira, 1699 (Misc. 186, nº 3213). Cumpre ainda lembrar outras obras de homenagem: Sermão das Exequias da Serenissima Rainha Nossa Senhora D. Maria Sophia Izabel, pregado na Villa de Santo Amaro das Grotas do Rio de Sergipe, por Frei António da Piedade, Lisboa, 1703; Sentimento Lamentavel, que a Dor Mais Sentida em Lagrimas Tributa na Intempestiva Morte da Serenissima Rainha de Portugal D. Maria Sophia Izabel e Neuburgo, por Bernardino Botelho de Oliveira, Lisboa, 1699; Oração Funebre nas Exequias da Rainha D. Maria Sophia Izabel, Celebradas na Real Casa da Misericordia de Lisboa, por D. Diogo da Anunciação Justiniano, Lisboa, 1699; Relaçam da Magnífica e Sumptuosa Pompa Funeral com que o Real Convento de Palmela da Ordem Militar de Santiago Celebrou as exéquias da Sereníssima Rainha N. Senhora D. Maria Sofia Isabel de Neoburg, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Domingos Carneiro, 1699 (Misc. 186, nº 3214). 8 O falecimento de uma figura régia criava a necessidade de colmatar a falta da pessoa que representava o centro do mundo político e espiritual, por isso se procurava representar a sua presença nas exéquias através de imagens simbólicas. Se fosse o rei a morrer, recordava-se a memória dos seus feitos e vitórias. No caso de ser a rainha, destacava-se as suas virtudes, procurando associá-la a um ser divino, destacando o seu papel de mediadora entre o soberano e o povo (Pérez, 2010: 63). «Cantando espalharei por toda a parte» 57 donativo.9 Se pensarmos que o patrocínio e mecenato constituem, ainda hoje, excelentes formas de publicidade, no âmbito das relações públicas (Viana e Hortinha, 2009: 397), percebemos melhor o alcance da relação interativa do Paço com as instituições da Igreja e torna-se também mais relevante o facto de ter sido divulgada em suporte perene uma espécie de «reportagem» da cerimónia. Para além do sermão, a publicação apresentava uma descrição pormenorizada dos Emblemas colocados no túmulo honorário que a Congregação do Oratório de Lisboa dedicou à Sereníssima Rainha (…) nas exéquias que lhe celebrou em 21 de Agosto de 1699, através da qual se pode constatar que este monumento in memoriam, embora resultasse de uma iniciativa privada, tinha assimilado a ideologia política veiculada pelas estruturas propagandísticas coevas. As composições depositadas junto do esquife vazio pretendiam presentificar a figura régia, evidenciando inegáveis afinidades temáticas com a tendência barroca para concretizar o ideário governativo em imagens sumptuosas, através da representação simbólica das virtudes principescas. Deste modo, à semelhança do que acontecia nas festividades nupciais, os artifícios visuais apareciam dispostos com o objetivo de representar os conceitos teóricos de forma atrativa e percetível até para os menos cultos (Strong, 1984: 162). De acordo com o registo que chegou até nós, os emblemas sob escopo, na sua versão primitiva, seguiam o formato tríplice cristalizado pelo Emblematum liber de Alciato (1531). Envolviam, porém, uma dimensão hermética mais aligeirada, muito distinta das composições logo-icónicas acessíveis apenas a leitores eruditos, aptos a mergulhar nos meandros da hermenêutica para descodificar o labirinto de sentidos entre lema, gravura e epigrama. Na emblemática aplicada, total9 Inspirado pela associação romana fundada por São Filipe Néri, em 1564, Bartolomeu do Quental instituiu na capital lusa a Congregação do Oratório, no ano de1659. Sendo capelão e confessor da Casa Real desde 1654, o padre conseguiu o apoio da rainha D. Luísa de Gusmão para o seu projeto. Os estatutos, confirmados pelo Papa Clemente X por breve de 6 de Maio de 1671, previam a autonomia de cada casa e elegiam como competências essenciais a assistência aos doentes, aos pobres e aos presos. Acolhida sob a égide dos pais de D. Pedro II desde os primórdios, seria, portanto, inevitável que a Congregação prestasse o seu tributo à benemérita rainha. 58 FILIPA MEDEIROS mente direcionada para um público múltiplo e massivo, predominava o intuito de tornar evidente uma determinada mensagem através de ícones vulgarizados (Ledda, 2000: 252). Tão vulgarizados se tornaram que as descrições impressas pouco depois dos festejos raramente copiavam as ilustrações, substituindo-as por um breve apontamento ecfrástico.10 Garantia-se, deste modo, «a presença de uma ausência» icónica, com a vantagem de reduzir consideravelmente o orçamento, para além de simplificar o processo editorial, que não podia ultrapassar o período mais favorável para rentabilizar a oportuna promoção do evento. Recorrendo ao «fundo comum de figuração plástica» (Infantes, 1996: 104), o relato iconográfico de 1699 procurava, assim, reproduzir uma galeria de ícones convencionais, com o intuito de retratar as virtudes particulares de uma Rainha conhecida pela fertilidade, pela devoção extrema e pela prática de obras de misericórdia, de acordo com os moldes da pietas austriaca (Braga, 2011: 258). Torna-se, por isso, necessário explorar o painel em dois níveis de abordagem, esclarecendo, por um lado, a relação intertextual com a rede de referentes culturais e, por outro, o mosaico intratextual de elementos significativos. Estas linhas de análise confluem, de imediato, para eleger o motivo mais proeminente no conjunto emblemático: o símbolo solar,11 que se reflete de forma direta ou indireta em cinco composições.12 A 10Seguindo a tendência europeia, a emblemática também marcou presença em muitas ocasiões solenes da corte portuguesa, que foram depois passadas a escrito por espetadores mais ou menos comprometidos com a causa política. De facto, esses relatos eram sempre pensados em função de um público-alvo elitista, a quem convinha relembrar e pormenorizar a arquitetura efémera dos programas iconográficos, ainda que o género estivesse longe de atingir o esplendor das publicações espanholas do mesmo tipo. Na descrição das bodas de D. João V com Maria Ana de Áustria (1708), disponibilizada pela Idea Poética Epithalamica Panegyrica (Lisboa, Of. de Valentim da Costa Deslandes, 1709), está bem patente a moda da representação emblemática, que se manteve em momentos estratégicos do reinado joanino, atingindo o apogeu aquando da célebre troca das princesas (Tedim, 2008: 310). 11Não será de todo mera coincidência o facto de este ícone ocupar também um lugar estratégico nos emblemas evocativos de outras figuras pertencentes à dinastia bragantina, como acontece no Tumulus Serenissimi Principis Lusitaniae Theodosii de Luís de Sousa, e na Relação do Magnífico e Celebre Mausoléu que erigiu a Santa Igreja Cathedral do Porto nas Funerais Exéquias da Sereníssima Senhora D. Francisca (Lisboa, Bernardo Gaio, 1736), bem como na Descripção Fúnebre das Exéquias que a Bazilica Patriarcal de S. Maria Dedicou à Memória do Fidelíssimo Senhor Rei D. João V, composta por Bento Morganti (Lisboa, Francisco da Silva, 1750). 12Nos livros de empresas, contrariamente ao que acontece no Emblematum Liber, Hélios gran- «Cantando espalharei por toda a parte» 59 metáfora heliocêntrica ilustrava perfeitamente a ideologia teocrática da respublica christiana, porque favorecia a identificação do poder régio com uma imagem teológica de tradição ancestral. Por outro lado, a predominância de uma figuração luminosa no retábulo sepulcral obedecia a uma chave de leitura em que as imagens serviam a ideia principal de elevar a alma à glória eterna (Tedim, 2008: 314). Nesta perspetiva, importa salientar que os emblemas fúnebres da princesa palatina não só refletem o ideário político da época como também traduzem um importante depoimento sociológico sobre a figuração tanatológica no remate do século XVII. De facto, a pedagogia escatológica apregoada pelas artes moriendi13 influenciou de forma indelével a textura dos emblemas, como fica patente logo na primeira composição: jeou grande popularidade. No tratado intitulado Dialogo delle Imprese, Giovio estabeleceu cinco princípios normativos do género, defendendo a justa proporção entre alma e corpo; a obscuridade mediana; o aspeto agradável; a ausência de formas humanas; e a seleção de um motto estrangeiro, breve e ritmado (1574: 12). Ora, a terceira regra enunciada sugeria precisamente que a bella vista fosse conseguida através da introdução de corpos celestes, abrindo caminho à franca utilização destes elementos, o que legitima também o seu lugar de honra na enciclopédia de Picinello. No capítulo V do livro primeiro, o tratadista apresenta o Sol como embaixador, por excelência, da Graça divina, do nascimento de Cristo, da sabedoria de Santo Agostinho e da virtude de Maria. Piério Valeriano, por sua vez, reservou o livro XLIV para expor o significado do apolíneo astro, da Lua e das estrelas, esclarecendo que o primeiro era sinal distintivo de Deus, bem como de Cristo renascido, para além de simbolizar a Luz, o Poder supremo, a Verdade e a Vida (1602: 469). Segundo o intérprete dos hieróglifos, o círculo solar, quando pintado entre as nuvens, evoca o efeito regenerador da Eucaristia e o poder da Fé sobre as trevas, ou seja, a vitória da Luz sobre o caos, da Verdade sobre a mentira, e da Omnipotência sobre a mediocridade. Daí que esta carga semântica fosse aproveitada pelas empresas que constituíam uma parte essencial da linguagem dos festivais régios. Recorde-se, a título de exemplo, o aproveitamento do ícone solar no carrossel de 1612 para celebrar o casamento de Luis XIII com Ana de Áustria, sendo essa a figuração decorativa dos escudos ostentados pelos aristocratas mais importantes. Seria talvez este um passo decisivo no percurso da metáfora heliocêntrica até que, em 1663, Luis XIV a adotou como divisa pessoal, sob o lema Nec pluribus impar (Strong, 1984: 26). 13No século da Grande Reforma Católica, deu-se uma extraordinária divulgação dos manuais de preparação para a derradeira viagem, que sofreram concomitantemente uma alteração significativa face à tradição medieval. Os compêndios mais antigos seguiam de perto o ritual da extrema-unção, ministrado pelo padre já na iminência do derradeiro suspiro, indicando as orações e as formalidades a cumprir. O objetivo primordial das artes moriendi renascentistas, por sua vez, não era o de salvar o moribundo in articulo mortis, mas o de ensinar os vivos a preparar antecipadamente a morte, através de uma pedagogia ao longo de toda a sua estadia 60 FILIPA MEDEIROS Emblemas Colocados…, 1699, p. 45, Emblema I (exemplar da BNP, disponível em http://purl.pt/23503). A nota ecfrástica, cumprindo a dupla intenção de reavivar a memória dos que viram e estimular a imaginação dos que não viram as pinturas originais (Infantes, 1996: 102), descreve uma águia imperial14 pintada sobre as nuvens, sob o lema Semper augusta. Segue-se uma explicação que parafraseia o epigrama latino, de modo a relacionar a origem alemã de D. Maria Sofia com a ave de Zeus, ao mesmo tempo que esclarece a sua ligação umbilical ao mês de Augusto.15 Para além na Terra. Um dos pioneiros desta didactologia moralizadora foi Santo Inácio de Loyola que apresentou, nos Exercícios Espirituais (1548), algumas técnicas de meditação metafísica para exercitar aturadamente. A formação catequética invadiu, assim, a esfera doméstica de Católicos e Protestantes, dando origem a um multifacetado fenómeno de receção que também chegou a Portugal, onde há registo de, pelo menos, uma tradução de Bellarmino (Escada para subir ao conhecimento do Creador pella consideração das creaturas; traduzida de latim em portuguez por Belchior Anriquez, Em Lisboa, por Pedro Craesbeeck, 1618) e inúmeras adaptações autóctones no período barroco. 14Este símbolo universal da paternidade, do poder e da capacidade intelectual, agraciado com o dom de contemplar o Sol, foi associado a S. João Evangelista e a Cristo, uma vez que as asas estendidas lembram os recortes do trovão e da cruz (Picinello: 263). Sendo uma imagem arquetípica de iniciador e psicopompo na cultura oriental, também a tradição cristã lhe reconhece poderes sobrenaturais, como o rejuvenescimento e a vitória sobre a morte. 15Sendo filha de Filipe Guilherme, duque de Neuburg, de Julich e de Berg, eleitor palatino «Cantando espalharei por toda a parte» 61 de ser o animal alado mais difundido nas empresas e nos emblemas, a águia representa o nível supremo de poder, fortaleza e amor (García Arranz: 154) e quando aparece figurada em voo ascendente, como se tentasse chegar ao Sol, simboliza o homem que procura a Sabedoria, ultrapassando todas as adversidades. A empresa de Giovan Battista Rasario, composta por Contile para realçar o percurso do académico indiferente a invejas e críticas (Ragionamento, 1574: 158v),16 exemplifica cabalmente essa aceção da imagem: Contile, Ragionamento,1574, f.158v. O emblema evocativo da consorte de D. Pedro II deve, todavia, ser interpretado no contexto de um discurso tanatológico construído e sustentado por uma moldura sociológica específica, com o objetivo de obedecer a motivações concretas, que passavam pela preocupação propagandística de colorir um retrato post mortem capaz de afirmar a personalidade régia, vincar a hierarquia social e exaltar a glória humadesde 1585, D. Sofia descendia de um dos príncipes alemães que elegia o sacro imperador romano-germânico, cujo brasão representava uma águia. No que diz respeito às efemérides de Agosto aqui aludidas, convém recordar que a rainha nasceu no dia 6 do mesmo mês e ano em que Lisboa acolhia a primeira mulher de Pedro II (Braga, 2011: 268). 16Também Camerarius reproduziu a ave real sob o mote Non captu facilis para figurar um ânimo tenaz, que voa por cima das dificuldades (Symbola, 1596, cent. III, emb. 16: 28-29). FILIPA MEDEIROS 62 na (Bouça, 1996: 24). À luz destes fatores, o ser alado seria entendido como uma alma desejosa de chegar ao Pai, depois de contornar todos os obstáculos terrenos, de modo a corporizar a postura devota preconizada pelas «artes de bem morrer». Tal como a ave imperial, também a Rainha vivera em função do Astro-Rei, o que correspondia a cumprir com fortaleza os ditames do seu Senhor –leia-se, D. Pedro II, na Terra, e Deus, nos céus. E este seria, afinal, um modelo completo para colocar diante dos súbditos. No emblema seguinte (1699: 46), que toma como corpo o girassol, persiste a apologia da obediência ao poder temporal e à soberania divina, comummente associados ao Sol. Neste caso, recupera-se a simbologia do heliotrópio, exaltando a sua capacidade de seguir os apolíneos raios até ao ocaso,18 de modo a louvar o amor que a duquesa palatina votou a Cristo, imitando-o até na idade com que deixou a Terra, como se explicita na glosa que esclarece o lema e prepara a interpretação das quadras. Note-se que a introdução deste paratexto que sintetiza de forma quase redundante as ideias versejadas na subscriptio de cada composição parece querer suprir o efeito retórico das gravuras. Desprovida da componente visual, a emblemática aplicada via comprometida a descodificação instintiva e a compreensão imediata das mensagens, que asseguravam a captação de massas através da «aplicação dos sentidos» (Praz, 1975: 170). A explicitação dos versos, preferencialmente escritos em castelhano, à exceção dos epigramas latinos que figuram no primeiro e no derradeiro emblema, mostrou-se, então, oportuna pelo seu efeito iterativo, ainda que a opção linguística não levantasse barreiras comunicativas. Quase sessenta anos depois de o sogro de D. Maria Sofia Isabel ter sacudido o domínio filipino, o bilinguismo exercia ainda grande influência na produção literária nacional e a escolha de um idioma estrangeiro pode também ser avaliada como uma decisão estratégica para alargar o campo de circulação do opúsculo, como defendem as teorias de marketing internacional (Viana e Hortinha, 2009: 380). 17 17Este símbolo foi igualmente explorado nas exéquias reais de Maria Luisa de Orleans (Allo Manero, 2008: 472). 18O ocaso aparece também nas exéquias de Bárbara de Bragança, em Pamplona (1758), para ilustrar o fim natural da vida (Azanza López, 2008: 350). «Cantando espalharei por toda a parte» 63 Além disso, o emblema do satélite solar atesta a fortuna de um ícone já explorado pela produção emblemática de Vasco Mousinho de Quevedo Castelo Branco (no Discurso sobre a vida e morte de Santa Isabel, 1596, E. 45), claramente tributária da divisa de Paradino dedicada a Margarida de França (Devises, 1557: 41). Este tipo de diálogo intertextual comprova a receção, em Portugal, de autores de referência no âmbito da literatura simbólica, como Valeriano (Hieroglyphica, 1579: 423v), Picinello (Mundus symbolicus,1695: 650) e Covarrubias Horozco. Os espetadores mais cultos poderiam recordar, diante deste emblema sepulcral, a figura do estiolado heliotrópio debuxada numa das Empresas morales (1610: f. 112), mas deveriam igualmente reconhecer a originalidade da associação entre a idade da Rainha e a permanência de Cristo entre os homens: Covarrubias Horozco, Empresas Morales. 1610, Cent. 2, emp. 12, f. 112 Ainda que a cultura espanhola marcasse uma presença incontornável nas Letras lusitanas, a coroa portuguesa já não temia o inimigo ibérico e para a construção dessa estabilidade muito tinha contribuído aquela que seguiu sempre «al sol de justicia Cristo» e «non pudo vivir más que el», como se afirma no emblema V, sob o mote «Non omnino recedo» (‘Não desapareço por completo’). A principal garantia da dinas- 64 FILIPA MEDEIROS tia bragantina era, sem dúvida, a vasta prole que a princesa de Neuburg gerara. Apesar de ter falecido o primogénito, D. Maria Sofia deixava seis estrelas19 para substituir a sua presença luminosa, como se insinuava na gravura desta composição, de modo a enfatizar a esperança depositada nos descendentes para perpetuar o brilho materno. Segundo as indicações do Mundus Symbolicus, tal imagem sideral costumava ser aplicada para figurar as graças concedidas pela Virgem Maria, fonte primordial de luz (Picinello, 1695: 17), enquanto o crepúsculo aparecia frequentemente associado à morte de Cristo e dos príncipes (Picinello, 1695: 24). A transição natural entre o astro poente e a estrela vespertina surge, de resto, nos emblemas gizados por Francisco de la Reguera por ocasião do passamento de Filipe IV (Empresas de los Reyes, c. 1632, Jeroglifo I: 255), transmitindo aos súbditos uma mensagem de consolação e de expetativa centrada no herdeiro Carlos II (Vistarini, 1999: 746). No momento de ultrapassar a fronteira do horizonte visível, a esposa do Pacífico deixava meia dúzia de astros capazes de iluminar a noite dos portugueses, «substituindo de algum modo a sua real presença», como se sugere na elucidação do quarteto, compensando largamente a triste despedida. Assim se concretizava a função lenitiva da mensagem veiculada pelos compostos logo-icónicos da Congregação do Oratório, procurando animar os súbditos com promessas de alegrias renovadas. Perseguindo, por outro lado, o objetivo de cristalizar o retrato panegírico de D. Maria Sofia enquanto alma imaculada, reaparece no emblema VI a imagem do astro-rei, desta feita acompanhado por uma nuvem escura interposta entre ele e a terra, para ilustrar o lema «Não me prejudica a mim, mas ao mundo». Significa esta metáfora que o falecimento da Rainha em nada lesaria o seu percurso celeste, pois vivera de olhos postos no empíreo, conquistando o direito a entrar no reino dos Bem-Aventurados. Seriam os outros a sofrer a dor da sua perda, como se lê no quadra, porque tinha preparado devidamente a sua morte e nada havia a temer diante do Último Juízo. Emana do cenário recriado nesta composição o desígnio de exaltar a virtude 19No emblema X deste conjunto vinha representada a Ala da Sabedoria, suportada por sete colunas que correspondiam ao número de infantes gerados por Sophia, explorando a ambivalência onomástica. «Cantando espalharei por toda a parte» 65 inatingível do monarca, abençoado com a imperecível graça divina (Picinello, 1695: 13-15). Convém, todavia, acentuar que o composto lusitano recupera, mais uma vez, uma paisagem adotada num tributo evocativo a um monarca castelhano. Na Descripcion de las Honras que se Hicieron a la Catholica Magestad de D. Phelippe Quarto en el Real Convento de la Encarnacion (Madrid, Francisco Nieto, 1666), Monforte glosou o mote bíblico «Vsque ad occasum laudabile» para enfatizar a plenitude virtuosa do percurso traçado pelo seu soberano (apud Vistarini, 1999: 744). Partindo desta conceção idealizada da figura régia, também a peregrinação terrena da Sereníssima majestade é apresentada como espelho de virtudes e, portanto, fonte de eterna saudade para toda a Humanidade. Esta convicção sobrevém reforçada no último exemplar do corpus heliocêntrico selecionado. De facto, o emblema VII elege como motivo um eclipse lunar20 para ilustrar o lema latino «Terra tegitur, cum lumine plena» (‘A terra esconde-a, quando está cheia de luz’). A ocultação de Selene mereceu larga fortuna na emblemática política e religiosa,21 contudo, a proposta de Giovio é uma das que mais se aproxima da imagem aqui sugerida, ainda que evolua num sentido distinto: 20No manuscrito da Phenix conservado em Coimbra, datado de 1687, figuram dois emblemas que revelam a habilidade do autor para manipular o material simbólico. Um deles pinta uma flor desvanecida, o outro aposta na comparação entre o sol e a lua em termos que poderiam perfeitamente ter sido usados nas exéquias da rainha (Sider, 1997: 69-73). 21Na obra intitulada Idea de un principe politico christiano pode observar-se uma empresa que aborda a imagética lunar sob o lema Censurae patent (Saavedra Fajardo, 1655: 90), de modo a lembrar ao governante a obrigação de transmitir ao reino o brilho inspirado por Deus. O Mundus Symbolicus, por sua vez, associa o eclipse da Lua à dor de Maria no monte Calvário e à ingratidão dos soberbos (Picinello, 1695: 45). No entanto, o sentido que mais se adequa ao contexto fúnebre é talvez o da felicidade incerta, lembrando ao homem a debilidade da sua condição precária (Picinello, 1695: 46). 66 FILIPA MEDEIROS Giovio, Dialogo dell’ imprese, 1574: 54. O teórico italiano pretendia mostrar as consequências nefastas das trevas que por vezes afastam o Homem do caminho da verdade (Dialogo, 1574, emp. 42: 54). O emblematista português, pelo contrário, visa associar a Rainha ao exemplo máximo de perfeição moral, aproveitando o fenómeno astronómico para exprimir de forma poética a condenação que a obrigava a descer ao reino das sombras, depois de ter preenchido a vida com «obras de luz» (v. 6). A subscriptio formula, porém, a promessa de «renascer mais clara» (v. 8), reproduzindo a crença cristã na Ressurreição das almas, que facilmente encontraria eco no coração de todos os fiéis, espectadores ou leitores dos emblemas fúnebres em honra da mãe de D. João V. Ainda que seja impossível reconstituir por completo o papel desempenhado pelos compostos logo-icónicos no palco das exéquias, o depoimento que debelou as contingências da sua natureza efémera permite, contudo, aferir algumas informações importantes para o retrato sociológico do evento. Em primeiro lugar, as produções fúnebres sob escopo revelam total domínio da ars inerente à criação de emblemas «Cantando espalharei por toda a parte» 67 heróicos, dado que respeitam os preceitos técnicos que previam a criação de uma composição alegórica singular e una, a partir de um modelo tradicional e de uma estrutura complexa (Picinello, 1695: §II). Por conseguinte, a interpretação de cada um dos exemplares implica uma perspetiva holística, que deve levar em consideração os reflexos do universo cultural coevo e as características individuais da personalidade evocada. Nos finais do século XVII, os dispositivos logo-icónicos marcavam presença incontornável no programa das festividades régias, em Portugal e na Europa, acompanhando a mutação destas iniciativas propagandísticas, que evoluíram da inicial representação ideológica da ordem política para a expressão do seu preenchimento na figura do monarca (Strong, 1984: 171). Essa tendência justifica o facto de os emblemas astrológicos terem constituído um verdadeiro subgénero dentro das figurações festivas, e em particular das exéquias, uma vez que os príncipes absolutistas absorveram a metáfora do astro-rei, sobretudo no período correspondente ao reinado de Luís XIV. Em rigor, no mundo pós-copernicano, tudo girava à volta de Hélios (Strong, 1984: 26), pelo que o destaque concedido ao motivo solar nos emblemas evocativos da Fénix portuguesa deve ser entendido à luz da realidade contextual, que o associava ao poder temporal, ao mesmo tempo que servia a finalidade pragmática de ilustrar a esperança no renascimento espiritual para além do ocaso terreno. Afigura-se-nos, por isso, pertinente observar que essa sintonia conjuntural respeita cabalmente um dos princípios básicos da retórica publicitária: a adaptação ao público-alvo e ao objetivo pretendido (Viana e Hortinha, 2009: 382). Os emblemas de 1699 reuniam todas as condições para estabelecer uma comunicação eficiente com os interlocutores, mais ou menos cosmopolitas, uma vez que apostavam em idiomas internacionais, satisfaziam as tendências estéticas europeias e espelhavam a mentalidade da sociedade ocidental. Lançando mão dos meios disponíveis, aproveitava-se uma ocasião particular para transmitir uma mensagem universal, de modo a potenciar extra muros a propaganda produzida por agentes domésticos (Viana e Hortinha, 2009: 384). 68 FILIPA MEDEIROS Também na organização intratextual deste conjunto se percebe a aplicação de mecanismos de reiteração e de analogia muito típicos da linguagem do Marketing político. O próprio encadeamento das composições visa um efeito amplificador através da reincidência de uma imagem que assume diferentes matizes semânticos. O Sol entra em cena como metáfora de Cristo e do Príncipe, ambos seguidos pela Rainha com a fortaleza de uma águia e com a fidelidade constante do girassol. No entanto, graças a esse esforço de imitação, também D. Maria Sofia se transforma em fonte de luz: no emblema das estrelas, ocupa o lugar central para transmitir esperança; ao enfrentar a nuvem, traduz um exemplo de Fé; na figuração da lua cheia, revela a Virtude inspirada pelo seu Senhor.22 Pretendia-se, deste modo, figurar três dimensões nobres da princesa de Neuburg, focando a sua dignidade natural, política e moral (Sider, 1997: 78), com o objetivo claro de fixar um retrato panegírico na memória coletiva do presente e do futuro.23 Reconhece-se, portanto, nestes expedientes logo-icónicos a mesma estratégia dos recursos convocados pelo discurso de sedução das campanhas publicitárias atuais, uma vez que procuram chamar a atenção com palavras e estimular o interesse com imagens, de modo a criar o desejo de perceber a mensagem, memorizando-a e pondo-a em prática, de acordo com os conceitos-chave sintetizados na sigla AIDMA. O efeito persuasor dos emblemas nas massas anónimas foi testado e comprovado, nos séculos XVI e XVII, pelo ensino jesuíta, pelo movimento contrarreformista e pelas instituições políticas, apresentando, afinal, muitas semelhanças com as estratégias de marketing vorazmente exploradas 22Os restantes emblemas deste conjunto representam outras virtudes morais. Os ponteiros de um relógio marcam doze anos de Temperança vividos no trono (E. III) e a balança simboliza a Justiça (E. IV), enquanto a árvore carregada de frutos ilustra a liberalidade da rainha e suas obras de misericórdia (E. IX). A finalizar a sequência, pinta-se a Piedade sob a forma de duas coroas (E. IX) e o palácio da Sabedoria (E. X). 23O intuito morigerador é, de resto, proclamado abertamente no sermão que os participantes das exéquias ouviram enquanto observavam os emblemas fúnebres na cerimónia de 21 de Agosto de 1699. «Grande parte deste meu sermão é moral, dirigida puramente a introduzir desenganos e a desterrar pecados» (p. 3), afirmava Frei António de Faria. Seguindo na sua prédica as orientações do Concílio de Trento, o orador decidiu «pregar anunciando aos fieis com brevidade e facilidade de palavras os vícios que devem evitar e as virtudes que devem seguir» (p. 5), por isso viu na morte precoce da Rainha um eloquente protótipo de desengano e de virtude. «Cantando espalharei por toda a parte» 69 pela sociedade consumista. A apetência pela iconografia chegou ao clímax no período barroco (Praz, 1975:15), mas vivemos uma nova era em que a paixão pelos idola ultrapassa todos os limites. Por conseguinte, ao compararmos os programas propagandísticos das festas organizadas pelas monarquias absolutistas com os hodiernos métodos de promoção política devemos analisar com algum relativismo o conceito de inovação na arte da comunicação. Será que cada época cria teorias publicitárias específicas? Ou será que tudo se resume, afinal, à variação de formas, não muito diferentes, de «cantar» e «espalhar por toda a parte»? REFERÊNCIAS: ALLO MANERO, Maria. «Antonio Palomino y las exéquias reales de Mª Luisa de Orleáns». César CHAPARRO, José Julio GARCÍA, José ROSO, Jesús UREÑA (eds.). Paisajes emblemáticos, la construcción de la imagen simbólica en Europa y América, vol. II. Mérida: Junta de Extremadura, 2008, pp. 457-476. AZANZA LÓPEZ, José. «Jeroglíficos en las exequias pamplonesas de una reina portuguesa: Bárbara de Braganza (1758)». César CHAPARRO, José Julio GARCÍA, José ROSO, Jesús UREÑA (eds.). Paisajes emblemáticos, Vol. I, Mérida: Junta de Extremadura, 2008, pp. 339-360. 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O único autor parnasiano brasileiro que fala de Moema prefere fazer de sua voz um elemento fantasmagórico da paisagem da Baía de Todos os Santos e o neorromântico português João de Barros, inscreve-a como «a pobrezinha» que Caramuru não esquece, numa história para crianças, onde o náufrago português é o grande herói. O Modernismo brasileiro desconstrói a História e inocula o riso no episódio de Moema, que deixa de ser a mulher desprezada, para ser a que bateu o record do amor e da natação, na poesia de Murilo Mendes. Mas o fantasmagórico volta à cena com um Caramuru arrependido, num poema de Eugênio Gomes. Atestando a difusão e sobrevivência da lenda, Olga Savary, ainda adolescente, retoma-a e escreve um poema que irá rever para o incluir quando reúne sua obra. No século XXI, o riso e 72 MARIA APARECIDA RIBEIRO a desconstrução da História voltam a surgir, dessa vez no cinema: Moema não morre e divide pacificamente com Paraguaçu o amor de Diogo Álvares, mostrando a poligamia como um traço da cultura brasileira. A última versão conhecida da personagem é a que constrói António Machado, romancista português nascido em 1952. Palavras-chave: Literatura Brasileira e Portuguesa; Pintura; Ópera; Cinema. ABSTRACT The story of Caramuru, legendary or not, is linked to fiction narratives of Brazilian foundation. Literature and History speak about it on XVII century, as evidenced by Frei Vicente do Salvador and Gregorio de Matos’ texts. It was, however, with the epic poem of Santa Rita Durão, in 1781, that she became well-known in Europe. Fedinand Denis, delighted with the poem, published it in. With the text, traveled as well a romantic episode, starring Moema, who swam behind Caramuru’s boat to lose strength and drown in the sea. Garrett saw in Moema Brazilian exoticism, and used it in Helena, an unfinished novel, and in «O Brasileiro em Lisboa». But other romantic artists viewed in Moema a sort of Ophelia and with that face the character appeared in novels, operas and paintings, in Brazil and France. The only Brazilian Parnassian author who speaks about Moema prefers to turn her voice into a ghostly element of the landscape into the Bay of Todos os Santos. João de Barros, a Portuguese neo-romantic author, inscribed Moema as «the poor girl» that Caramuru do not forget, a children’s story, where the shipwrecked Portuguese is the great hero. The Brazilian Modernism deconstructs the history and inoculates laughter into Moema’s episode; she is not a scorned woman any more, becaming the one that broke both the records of love and swimming. That laugh and this deconstruction of history will still remain in a 21st century film: Moema is not dead and she peacefully shares with Paraguaçu the love of Diogo Alvares, showing polygamy as a sing of Brazilian culture. The last known version of the character is the one built by Antonio Machado, Portuguese novelist born in 1952. Keywords: Brazilian and Portuguese Litterature; Painting; Opera; Cinema. Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 73 1. Desde que se tornou conhecida, registrada por Frei Vicente do Salvador, que diz ter conhecido Paraguaçu, já viúva de Diogo Álvares Correia, a história de Caramuru foi glosada pela literatura. Andou também a lenda na boca do povo, pois, bem antes do surgimento do poema épico de Santa Rita Durão, em 1781, os descendentes da índia «que um branco dormiu no promontório de Passé» foram objeto da sátira mordaz de Gregório de Matos, que via, nesses mamelucos, «paiaiás» querendo ser «caramurus» (Matos, 4 840). E, apesar do gosto do barroco pelo encoberto, o poema não seria inteligível, se os da terra ignorassem os fatos e o vocabulário. O tema das origens das famílias brasileiras, que Gregório, apesar de baiano, denigre com seu olhar de branco formado em Coimbra e olha através da lente barroca graduada pela «limpeza de sangue», vem à baila outra vez a partir de 1781, em Caramuru, poema épico do descobrimento da Bahia, que Frei José de Santa Rita Durão escreveu em Coimbra e no qual introduziu um episódio romântico, o de Moema. Divulgado por Ferdinand Denis, que o considera paradigmático da nascente literatura brasileira, e Garrett, com menos destaque, embora aproveite algumas sugestões nele existentes, o poema épico ganhou fama e, com ele, Moema, a quem autores brasileiros e estrangeiros foram dando novos contornos, de acordo com o pensamento e a dicção de sua época. 2. Ao desenhar Moema —que surge no canto VI, depois que Caramuru resolve embarcar para a Europa com Paraguaçu, que desde o início o encantara por ser diferente da «gente tão nojosa»—, Durão coloca-a à frente de «uma turba feminil que nada», como se só as mulheres se despedissem da filha de Gupeva ou como se Diogo Álvares tivesse arrebatado muitos corações.1 «Não vinha menos bela do que irada», informa-nos o narrador, acrescentando-lhe um outro traço 1 Embora isso Frei José de Santa Rita não explorasse, pois mostra sempre o vianês como seguidor dos preceitos católicos, apesar da insinuação de que ele deu alguma atenção a Moema. Cf: c. VI, XLI, 4. MARIA APARECIDA RIBEIRO 74 negativo —a inveja, que a fazia gemer. E, se por amor, Moema não se teria incomodado de seguir Diogo Álvares como escrava, essa humildade dá lugar à altivez, quando pensa que teria uma posição subalterna em relação a Paraguaçu, que ela chama «indigna», «infame», «traidora» e vê «inferior», «néscia» e «feia» (c. VI, 50 4 8), mostrando, mais uma vez, a inveja que sente da rival. O romantismo da mulher que, sem forças para lutar mais e mais dizer, desmaiou, largou o remo ao qual se apegara, afundou, voltou para dizer «Ah! Diogo cruel!», e, depois, sorveu-se n’água, não podia ser desprezado pelos autores românticos, encontrando acolhida na França, em Portugal e no Brasil. Mas nem só estes reescreveram o episódio de Moema. Também os parnasianos, os modernistas e os pós-modernos dele se ocuparam, lendo-o com outras lentes. 2. 1. Se Ferdinand Denis divulgou na França o poema de Durão, em sua Histoire de La Littérature Portugaise suivie de L´Histoire de La Littérature Brésilienne, Gavet e Boucher, dois autores hoje desconhecidos, mas que em sua época foram uma espécie de best-seller, publicaram, em 1830, Jakaré-Ouassou, que subintitularam «crônica brasileira» e anunciaram como a primeira obra de imaginação escrita sobre o Brasil. Tentando aproximar-se o mais possível dos cronistas, Gavet e Boucher procuravam que o livro tivesse «matéria, caracteres e estilo histórico». Desejando que o texto «não fosse senão uma sequência de quadros de costumes sob uma forma dramática», ficaram, porém, temerosos de que a aridez do quadro romanesco pudesse «amesquinhar tudo aquilo que os selvagens e a Natureza do Novo Mundo inspiram» (1830: XIII-XIV), e resolveram elaborar uma intriga. Nela —e para o que importa aqui— Moema é prometida de Tamanduá. Notando o tratamento diferente que este, de um momento para outro, passou a dispensar-lhe, ela interroga-o e fica a saber que o índio apaixonou-se por Inês, filha do donatário Francisco Pereira Coutinho. Triste, Moema lamenta-se na melhor linguagem romântica: Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 75 já não será mais a «liana odorífica» que se entrelaçará «na grande árvore» (Tamanduá), mas a «pomba abandonada no ninho» (1830: 45). O traço de orgulho e altivez, mesclado ao de paixão subserviente que Durão lhe imprimira também permanece: a índia afirma-se mais bela que a rival (que, agora, por ser uma portuguesa,2 é «falsa como os seus amigos» [1830: 44]) e suplica-lhe que a peça em casamento a seu pai, prometendo que lavrará a terra, plantará mandioca, preparará a bebida do companheiro, enfim, que cumprirá todas as funções da mulher índia, só que colocadas no texto como predicados da boa esposa. Mais uma vez, Moema morre de amor, embora, obedecendo a uma nova versão da história, não desapareça no mar. Uma profecia de Murucujé anuncia sua morte e ela, desiludida com Tamanduá, começa realmente a definhar de tristeza. Recusa mesmo o alimento que Caramuru (conhecedor da influência que as profecias têm sobre os indígenas) lhe oferece, dizendo que este é fonte de vida. Pede entretanto a Diogo Álvares que traga Inês à sua presença, para dizer à europeia, «parecendo reprimir um sentimento de ódio» (1830: 61), que não a odeia e contar-lhe o quanto era feliz antes de a branca portuguesa aproximar-se de Tamanduá. Se o traço da paixão e do ódio à rival não abandonam Moema, Gavet e Boucher fazem-na justa e bondosa ante os olhos dos selvagens. Antes de morrer, cumprindo a profecia, ela manda também chamar Tamanduá, revelando-lhe que Jakaré-Ouassou, seu amigo, não o traiu, e restabelecendo o laços de amizade entre ambos. Ao expirar, tem entre as mãos a mão do amado, que chora, junto com os outros índios, a morte daquela que é «tão doce, tão boa» e que o amor matou. 2 Note-se aí a condenação dos autores franceses à colonização portuguesa (ideia que perpassa toda a narrativa), para eles, fonte dos males que atacaram os índios e os dizimaram. Uma verdadeira campanha é feita no texto de Jakaré-Ouassou: a todo momento os índios exprimem o seu ódio contra os portugueses, e o narrador, baseado em Alphonse Beauchamp, comenta, ao descrever o incêndio de Salvador provocado pelos da tribo de Tamanduá aliados aos tamoios, que eles esperaram cinco anos pelo dia da vingança. Na volta às aldeias, cantando a memória da ocupação da cidade e da vitória sobre os portugueses, os tupinambás lembram os tempos de opressão e tirania, quando foram perdendo seu território, suas mulheres e seus hábitos para o estrangeiro. MARIA APARECIDA RIBEIRO 76 2. 2. Entre os anos de 1820 e 1826, Garrett escreveu várias composições em que o Brasil é permanentemente referido, embora sempre encarado em função da Europa. Data também dessa época, a ode intitulada «O Ananás», que, certamente, o escritor foi buscar na «enciclopédia do exótico» ostentada no poema de Durão, apesar de os clichês usados —«rei dos filhos de Pomona», «fruto coroado»— já virem de cronistas e poetas que lhe são anteriores. Mas as imagens são apenas os comparantes de um símile: fecundo no exílio dos Açores, o ananás é como o sábio, que produz na solidão da «ríspida ignorância» que o cerca, como Filinto Elísio, que poetou «no pântanos de Haia». Em 1826, Garrett publicava o Parnaso Lusitano, seguindo uma tendência da época, também observável no «Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa», que lhe servia de introdução. Nele detinha o olhar mais demoradamente no Caramuru, de Santa Rita Durão: se o assunto não era verdadeiramente histórico, abundava em ricos e variados quadros, o que representava «um vastíssimo campo para a poesia descritiva». E havia o episódio de Moema, que o autor das Viagens na Minha Terra lamentou não fosse mais desenvolvido. E, até aí, talvez o exotismo do nome da selvagem —mais que a ação propriamente dita—tenha ido ao encontro das suas expectativas quanto à pintura com a paleta local (era uma reação bastante provável num Garrett que, assumindo a máscara de «Brasileiro em Lisboa», escreveu: «O nome da mulher é uma das minhas manias». E associando nome e nacionalidade, classificava de «imitação castelhana» o fato de existirem «Conceições e Piedades, Penhas, Pilares e até Remédios» [Garrett Ms. 108]). Se, no Bosquejo, o escritor português fez prescrições relativas à literatura brasileira, mais tarde passou à prática, embora não chegasse a publicar o que escreveu. O seu primeiro texto «brasileiro» consta de dezesseis páginas manuscritas, que José Osório de Oliveira revelou na Revista do Livro. Chama-se Komurahy, o mesmo da personagem principal de «Os Maxakalis», da autoria de Ferdinand Denis, que o inseriu nas suas Scènes de la Nature sous les Tropiques (1824). Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 77 As primeiras páginas do manuscrito de Garrett apresentam uma reflexão do narrador, que se assume português, sobre os males da civilização. Imaginando o sentimento do índio ao pensar-se roubado em suas terras e escravo do branco, ele discorre sobre a situação das mulheres. E vem à baila, lembrando a leitura do episódio de Durão e o disfórico nela contido, o nome da «bela Moema, cujos acerbos lamentos repetem ainda os ecos do Recôncavo» (Garrett, 1984: III 46). Mas o nome de Moema voltará a frequentar os textos garrettianos. Em 1845, as páginas de A Ilustração publicavam sob o título «O Brasileiro em Lisboa» uma carta datada de 22 de Junho de 184... [sic] assinada por Jacaré-Paguá. Ele, um brasileiro que «há seis meses habitava a terra de meus pais», escreve a uma Moema —a quem dá os epítetos «caju da minha vida, banana da minha alma, beija-flor de meus pensamentos, ouro-preto da minha saudade, cana-de-açúcar da minha alma, maracujá-açu do meu coração» (Garrett, 1984: IV 43)— para contar a mesquinhez de Lisboa, se comparada à fartura do Brasil. Mais uma vez Garrett vem mostrar-se leitor de Durão, recortando do Caramuru não apenas o nome da destinatária, mas também o do signatário (Jacaré, um dos guerreiros do poema) e a ideia de fartura que os versos do poema veiculam (Garrett, 1984: IV 43): Fazes ideia tu, Moema querida, do que é uma laranjeira aqui? É um mesquinho e rasteiro arbusto comparado com as nossas. Aqui a natureza não coroou o ananás rei das frutas da terra, nem pendurou a jaca ponderosa do capitel dórico de verdura que sustenta a cúpula frondosa dos pomares... Nos outros manuscritos de «O Brasileiro em Lisboa» constantes do espólio de Garrett, a situação é a mesma. E porque o objetivo do(s) texto(s) é uma crítica à invasão da capital portuguesa pela mania de copiar a restante Europa nos hábitos, a exuberância que se traduz nos epítetos dirigidos à Moema, assim como o indigenismo de seu nome, do 78 MARIA APARECIDA RIBEIRO de Jacaré-Paguá e do de Curitiba passam a ser lidos, na linguagem do cotidiano, como marcas da identidade brasileira. Em 1854, novamente o nome feminino colhido no Caramuru voltaria à mente do escritor português, mas num romance que deixaria incompleto: Helena. Agora Moema seria, de fato, uma personagem. Ama da falecida Viscondessa de Itaé e mãe de Frei João Índio, apresentada «bela, como não raro que sejam as mulheres de sua raça, notável por sua supersticiosa aderência às práticas e crenças dos antigos aborígenes» e caracterizada «como o arquivo de todas as antigas memórias e tradições deles» (Garrett, 1984: II 45), ela aparece em ação, como uma feiticeira, e Garrett põe em sua boca as seguintes palavras: «Essa gente aldeã quer acabar com a nossa raça, fazendo aliança com os Negros, libertando-os e fazendo-nos trabalhar a nós: o índio, porém, nasceu para ser livre. Os Brancos e os Negros que façam o açúcar, que cavem a terra, mas que nos deixem a nossa liberdade e os nossos bosques» (Garrett, 1984: II 164-165). Curiosa observação de quem, no texto de Durão, morreu nas ondas por amor a um branco! Mas a ideia de que havia ódio entre as raças que habitavam o Brasil veiculada por essa Moema ativista pode ter sido incutida em Garrett por Gomes de Amorim, seu secretário e amigo, que chegou mesmo a dedicar-se ao assunto numa de suas peças. Ainda dentro do Romantismo, mas agora o brasileiro, surge o nome de Moema, que não chega a ser uma personagem: Castro Alves o inclui nos poemas «A Maciel Pinheiro» (1860) e «Quem dá aos pobres empresta a Deus» (1867). No primeiro, a índia é apenas mencionada para que se localize a Bahia ou o Brasil: «Verás a terra da infeliz Moema/ Bem como a Vênus se elevar da águas» (Alves, 1997: 110).3 3 A interpretação de Miyoshi (2010: 99), que ele próprio admite forçada, não parece correta. Vênus não é aqui citada apenas porque bela saída das águas como Moema, o que a relacionaria ao quadro de Vítor Meireles, como afirma o estudioso. A menção à deusa parece ter bem mais com o fato de ser ela a defensora dos heróis portugueses em Os Lusíadas, por ver neles os seus romanos, fato que a torna aguerrida como Moema. Aliás, as próprias referências de Castro Alves, nesse poema, a figuras da latinidade (fato que Miyoshi anota) levam a essa leitura. Por outro lado, Vênus poderia ser também protetora dos brasileiros, descendentes dos portugueses, que iam lutar contra os paraguaios. Mas há mais uma incorreção na leitura feita por Miyoshi: o que se compara não é Moema, mas a «terra de Moema»; esta última é que, Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 79 No segundo texto, a bravura da personagem criada por Durão, lutando contra as ondas do mar para seguir o homem que ama, é o comparante escolhido para os soldados que lutam, por amor à Pátria, na Guerra do Paraguai (Alves 1997 80-81):4 E foram grandes teus heróis, ó pátria, —Mulher fecunda, que não cria escravos—, Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos: «Parti —soldados, mas voltai-me— bravos!» E qual Moema desgrenhada, altiva, Eis tua prole, que se arroja então, De um mar de glórias apartando as vagas. Do vasto pampa no funéreo chão 2. 3. Em 1860, Moema passaria a personagem de ópera. Talvez inspirado em Paraguassu (chronique brésilienne), que J. O’Kelly e J. Villeneuve levaram à cena no Théâtre Lyrique de Paris, no ano de 1855, mas onde a que «sorveu-se n’água» não figura, Francisco Bonifácio de Abreu, publicou Moema e Paraguassu, Episódio da Descoberta do Brasil (1860), vertida para o italiano por Ernesto Ferreira de França. A ópera, com música do maestro italiano Sangiorgi, foi levada à cena a 29 de julho de 1861 pela Ópera Lírica Nacional. Moema quase volta, nesse texto, a seu papel primitivo, porém com mais projeção que na epopeia brasileira. Em 1532, os índios devoaguerrida, levantar-se-ia contra o Paraguai. Aliás, a Bahia é, nesses versos de Castro Alves, implicitamente comparada a Esparta e Atenas: «Terra de glórias, de canções e brios,/ Esparta, Atenas, que não tem rivais» (Alves 1997 81). 4 Também aqui o texto de Castro Alves desmente a leitura de Myioshi: o estudioso vê em Moema uma figura materna, que convoca os filhos à defesa da terra natal. A comparação, como se pode ver, é entre os soldados e o espírito de luta de Moema, o que, aliás, diz Ramos Júnior (organizador da edição de Espumas Flutuantes para a Ateliê Editorial) citado pelo estudioso (cf. Miyoshi 2010 97). 80 MARIA APARECIDA RIBEIRO ram as vítimas de um naufrágio, pois a Europa lhes traz a morte e toma a terra que lhes deu Tupã (ideias presentes em Basílio da Gama e em Gonçalves Dias). Diogo Álvares, como no texto de Durão, escapa da antropofagia. Com o seu arcabuz, ele maravilhou os indígenas ao matar um papagaio que passava voando e passou a ser chamado Caramuru, deus do fogo e dragão potente do mar. Pouco depois desse acontecimento, a tribo que acolhera Diogo e cujo chefe era Tabira entrou em guerra com outra, liderada por Taparica. Diogo, deixando de lado duas índias (Moema e Paraguaçu) que o atraíram e que se diziam apaixonadas por ele, ajudou na luta com a sua arma de fogo e Tabira saiu vencedor. Uma terceira índia surge nessa nova versão: é Palmira, filha de Taparica, que lhe pede misericórdia para o pai, que acaba por morrer. Nesse contexto bélico e romântico em que Palmira, filha extremosa, desmaia ao ver Taparica, seu pai, ferido e derrotado, Tabira oferece por prêmio a Caramuru as duas mais belas índias da tribo — Moema e Paraguaçu, mas o português tem saudades da pátria e vai contemplar as ondas. Também à praia vai ter Moema, que Diogo estreita em seus braços. Surge, então, no horizonte uma vela: vem de Dieppe e os navegantes conhecem Diogo pela fama. Este resolve ir com eles, pensando em levar Paraguaçu, como prova das suas descobertas. Moema, entretanto, acorda de um sonho em que viu partirem Caramuru e Paraguaçu. Por isso, caminha pela praia, fora de si, vestida de branco, como uma Ofélia indígena. Reiterando todo o romantismo que perpassa o texto, a moça encontra Paraguaçu e lhe conta o ocorrido. Esta chora comovida, por achar que vai trair a amizade de Moema, mas, mesmo assim, embarca, com Diogo, que canta uma espécie de resposta à «Canção do Exílio» e uma reiteração das palavras de Gonçalves Dias: «Adeus, montes! Adeus, vales! palmeiras, aves d’aqui! céu, mais belo que o céu/ da terra onde eu nasci!». Moema lança-se nas ondas e, como no texto de Durão, sucumbe. Se o enredo pouco difere daquele que estrutura o poema épico, o mesmo não se pode dizer do perfil de Moema. Esta continua bela, mas sem os contornos de ódio e soberba; ao contrário, ganha o traço de Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 81 amizade e fidelidade. Além disso, sua imagem, de delírio e afogamento, cruza-se com a de Ofélia, morte que Bachelard liga não só ao suicídio mas à morte que conserva a beleza do afogado: «A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida, e nos dramas da vida e da literatura é o elemento da morte sem orgulho nem vingança, do suicídio masoquista» (Bachelard, 1989: 85). 2. 4. É exatamente com essa imagem de Ofélia, morta e bela, que, em 1859, Pedro Américo, e, em 1866, Vítor Meireles vão eternizar Moema na tela,5 seguindo uma direção tomada pela pintura internacional nos anos 60 —a «batalha de nus», como a chamou Henri Zemer, e que engloba quadros como «O Nascimento de Vênus», de Cabanel, que lançou a moda das ninfas e ondinas nuas e voluptuosas, e o «Almoço na Relva», onde Manet pintou, num piquenique de homens, uma mulher nua. O óleo sobre tela de Pedro Américo tem um cenário noturno: a lua brilha no céu, enquanto uma caravela se afasta e o corpo da índia morta, flutua nas ondas e vai dando à praia. Parcialmente mergulhada na água, Moema tem uma expressão serena, mas o viço da beleza e a energia da personagem de Durão, abandonaram-na: tem a postura de um objeto à mercê das ondas. Já Vítor Meireles capta a imagem da índia dentro de um possível: a devolução do corpo, intacto e belo, pelas ondas do mar. Ela está na praia, numa pose delicada, embora um tanto artificial: tem, cobrindo o sexo, a tanga de penas rompida, sem no entanto parecer molhada; o mesmo se dá com os cabelos: espalhados pela areia não têm o desalinho dos de uma afogada, como tão pouco de uma afogada é sua expressão facial. Na realidade, Moema parece apenas dormir, pois a sensualidade e a firmeza das formas não abandonaram seu corpo. A tonalidade da luz, que tanto pode ser da aurora como do crepúsculo, favorece essa ambi5 Para estas duas representações de Moema, assim como para outras imagens dela traçadas por artistas plásticos, é de consultar-se à tese de Miyoshi 2010. MARIA APARECIDA RIBEIRO 82 guidade: não se sabe se Moema é a beleza que sonha ou a beleza que a morte não conseguiu apagar, a beleza incorrupta.6 2. 5. O mito de Ofélia ainda era bastante recorrente na poesia brasileira, uma vez que os poetas finisseculares exploravam a loucura e o desfalecimento da personagem, depois de os românticos buscarem seus traços de candura e docilidade. Em 1880, bem antes de Bilac publicar as suas Poesias, que as histórias da literatura consideram inaugurais do Parnasianismo, Luís de Guimarães Júnior dava à estampa em Roma, o seu Sonetos e Rimas, que a Garnier hesitara em editar no Rio de Janeiro. Escrito a bordo do navio Senegal, o soneto «A voz de Moema» seria incluído nesse volume. Tomando por epígrafe as palavras que a índia «disse com mágoa» a Caramuru antes de ser tragada pelas ondas no poema de Durão —«Ah Diogo cruel!»—, Guimarães Júnior pinta o cenário noturno da Baía de Todos os Santos: brilha a lua, os barcos estão ausentes, tudo dorme.7 No entanto, «o bardo», «que tudo vê e em tudo colhe o tema/ que amor produz no flácido quebranto,// ouve pairar nos ares sons d’um Poema...» (Guimarães Júnior, 2010: 68-69). Ao contrário dos poetas românticos, que privilegiaram a beleza da índia que seguiu a nado a embarcação em que Diogo Álvares Correia ia para a Europa, Guimarães Júnior vai ouvir a voz dela: não, porém, o que diz (que isso nos lembra a epígrafe), mas a poesia existente no seu tom de amor desprezado,8 que ele, ao gosto dos parnasianos, colo6 Aliás, o crítico Gonzaga Duque, contemporâneo de Vítor Meireles, foi de opinião que «para uma afogada cuspida à praia, as formas da índia estão demasiado macias e a cor ainda é muito quente...» (Duque, 1995: 173) 7 Seria essa imagem noturna inspirada no óleo sobre madeira de Pedro Américo? 8 Como o Parnasianismo brasileiro não só gostou dos temas cultos como dos nacionais, pode ser que «os sons de um Poema» ouvidos pelo poeta sejam não apenas uma questão de sensibilidade do «bardo» que lhe permite captar a poesia onde ela se encontre, mas memória do texto de Durão, numa demonstração de seus conhecimentos literários. Até porque, a utilização da palavra «bardo» (« [...] O bardo, entanto,/ Que tudo vê e em tudo colhe o tema/ Que amor produz no flácido quebranto, [...]») remete para os que contavam as histórias lendárias Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 83 ca como mais um elemento da silente paisagem pintada no espaço do soneto («Ai! é a voz, —a voz, rouca de pranto,/ A triste voz da pálida Moema!» (Guimarães Júnior, 2010: 68-69). Talvez o poema de Guimarães Júnior tenha inspirado uma escultura de Moema (1895), em tamanho natural, feita por Rodolfo Bernardelli, que estava em Roma, quando o poeta aí exercia funções diplomáticas e publicou Sonetos e Rimas. Bernardelli, como Pedro Américo em seu esboço, preferiu recorrer ao momento em que o corpo da índia afogada ainda não chegou completamente à praia, de modo que uma parte de seu corpo é dada a ver de forma realista, enquanto outra fica indefinida, porque imersa na água do mar que forma pequenas ondas. No final do século XIX, Moema voltaria outra vez à ópera. E agora como única protagonista, mas outra vez vítima do amor por um homem branco. Da autoria de Assis Pacheco e com libreto de Delgado de Carvalho, subiu ao palco do Teatro Lírico, no Rio de Janeiro, em 1894. Encontrada por seu pai, Tapir, nos braços de Paulo, um português, Moema convence o amante a fugir, mas, para furtar-se à cólera paterna, mata-se com um punhal. 2. 6. Ainda ligando as imagens de Moema e Ofélia, surgirá, em 1922, um poema de Hermes Fontes em Despertar, onde a índia, que ganha inúmeros epítetos —«rosa rubra dos trópicos», «alma-virgem das lendas brasileiras», «Irmã, pela constância, de Iracema», «virginal Dido-Elissa das florestas»—, será mesmo chamada «imaculada Ofélia brasileira», «Ofélia aborígene» (cf. Fontes, 1922: 51-55). Comparando Moema a Iracema e a Dido, duas mulheres que também morrem por amor, o poeta exalta-a, colocando-a acima de Lindóia, que não se matou lutando contra as vagas —apenas deixou-se morrer, picada por uma serpente, para não ser entregue a outro homem. Mas Hermes Fontes não para aí: cria um novo mito —o de que Moema virou estrela, ao passar dos braços do mar (uma apropriação da imagem criada por Manuel Botelho de Oliveide seus antepassados, que une identidade brasileira e preservação de sua memória. MARIA APARECIDA RIBEIRO 84 ra para a Ilha de Maré?) aos do Cruzeiro do Sul. Em 1928, o crítico e poeta baiano Eugênio Gomes lançou, Moema, livro onde incluiu poema homônimo. Curiosamente, quem fala no texto é um Caramuru arrependido de haver fugido dos braços de Moema e que, naquele momento, os procura. Invocando o oceano, ele revê a índia, «no incêndio molhado do mar» (Gomes, 1928: 14). Ela «dançava e sorria», numa nau, mas, quando Caramuru vai abraçá-la, embarcação e mulher desfazem-se «numa florada de espuma» (Gomes, 1928: 16). Esse abraço, que, de certa forma lembra o de Adamastor e Vênus em Os Lusíadas (embora com o sentido contrário, porque de prêmio e não de punição), devolve «a visão perdida e a posse do mundo», ao «que se perdeu da rota dos descobrimentos», porque «o segredo da terra imatura» (Gomes 1928 16) estava guardado pelo corpo da índia. Moema identifica-se, assim, no poema de Eugênio Gomes, com a própria terra brasileira, imagem, aliás, já anunciada quando Caramuru pretende sentir a «pele tostada e crespa», a «alegria selvagem», a «alegria ingênua» da índia. 2. 7. A primeira metade do século XX em Portugal reservou a Moema uma breve passagem.9 Em 1935, João de Barros, revitalizando o amor por Portugal e suas conquistas, escreve O Caramuru. Aventuras Prodigiosas dum Colonizador Português no Brasil, uma adaptação em prosa e para crianças do poema de Durão, onde fala do amor, do sofrimento resignado de Moema (cf. Barros, 31972: 86) e de sua tentativa frustrada de seguir a embarcação em que Diogo Álvares e Paraguaçu iam para a Europa. João de Barros apaga as imprecações que a índia dirige a 9 O nome Moema dá também origem a uma peça de Alfredo Cortês: Moema, Episódio Dramático em um Ato. Trata-se de um texto manuscrito, datado de Oliveira de Azemeis, 17 de agosto de 1940, existente no Instituto de Estudos Teatrais Jorge de Faria (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra) No entanto, Moema é apenas o nome de uma criança negra, nascida na África Ocidental Portuguesa, que assim foi batizada pelo padre. Tentando reproduzir no palco a língua dos negros, que, na peça, têm nomes cristãos (embora ditos de forma estropiada) e nomes nativos, parece que o substantivo próprio «Moema» soou exótico ao dramaturgo. Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 85 Caramuru, nesses momentos finais, e não menciona a sua beleza, mas acentua as cores disfóricas de sua morte, além de —o que está de acordo com seu projeto— ressaltar a fidelidade do herói: «E Diogo, embora leal a Paraguaçu, e amando-a mais do que ninguém, nunca mais esqueceu a imagem de Moema, na ansiedade de deter com as frágeis mãos —a pobrezinha!— a marcha rápida do navio que dela se afastava…» (Barros, 31972: 92). Moema não é aí propriamente a mulher inesquecível; só existe para maior glória dar a Caramuru. 2. 8. O modernismo brasileiro e sua irreverência inauguram a desconstrução da História, presente, por exemplo, em História do Brasil (1930), de Murilo Mendes, que aí inclui uma revisão dos acontecimentos relacionados a Diogo Álvares no poema «O alvo de Caramuru». O título joga com a ambiguidade: o alvo tanto é a ave10 em que Diogo acertou (na história que dele se conta e que lhe deu origem ao apelido), como Paraguaçu, uma «pomba», que vem arrulhando e a quem ele, como diz no poema, numa expressão popular, fato caro aos modernistas, «não nega fogo». Aliás, a poligamia de Caramuru surge no texto, no mesmo tom e explica sua viagem com Paraguaçu: «Toda índia que me avista/ me pega pra gigolô// Paraguaçu ficou triste/ Levei ela na fragata/ Ver a rainha da Europa» (Mendes, 1994: 148). O episódio de Moema é tratado assim, sem nenhum tom disfórico, despindo de qualquer possibilidade mítica a sua imagem: «Foi nesse dia que Moema,/ o meu flirt mais puxado,/ Bateu o recórd do amor/ Combinado com o recórd mundial de natação» (Mendes, 1994: 148). Na esteira dessa desconstrução da História, Guel Arraes e Jorge Furtado produziram uma minissérie para a Rede Globo —Caramuru. A Invenção do Brasil— depois tornada DVD e publicada em livro.11 Dio10No poema, uma pomba. 11O título sofreu uma redução de Caramuru –a Invenção do Brasil, na minissérie e no filme, para A Invenção do Brasil, no livro, que assim comenta o episódio: «Santa Rita Durão não conhecia o peixe e inventou que Caramuru queria dizer “filho do trovão”, por causa do famoso tiro de espingarda. Diz também que Moema morreu afogada […]. No Museu Nacional de Belas Artes, há uma escultura que representa a morte de Moema. Mas ninguém 86 MARIA APARECIDA RIBEIRO go Álvares é um pintor e amante do nu feminino, que acaba deportado por haver roubado o mapa que conduziria Cabral ao Brasil. Por isso chegou antes dele e antes dele conheceu Paraguaçu e Moema, duas índias irmãs, que lhe oferecem a «hospitalidade tupinambá», sem que uma tenha ciúme da outra. Um dia, porém, Diogo resolve voltar à Europa numa nau francesa, mas diz que só pode levar uma mulher, pois na sua cultura só é permitida a monogamia. Paraguaçu e Moema, não podendo ir juntas, dão, amistosamente, a vez uma à outra, o que corrói a rivalidade existente no poema de Durão. Diogo acaba partindo, e as duas nadam para alcançar o barco. Paraguaçu vai à frente e dá a mão à Moema, que acaba por desprender-se e não conseguir embarcar, tornando à praia. Voltando da França com Paraguaçu, Diogo encontra Moema, agora muito experiente da cultura europeia, em virtude da «hospitalidade tupinambá» que concedeu aos marinheiros que aportaram ao Brasil nesse intervalo de tempo, e faz-lhe o retrato, tornando-a famosa (uma alusão à pintura de Vítor Meireles, mas sem as tintas melancólicas do quadro). Vivendo os três juntos, no paraíso brasileiro, com Paraguaçu alfabetizada e os índios comerciando cada vez mais com os estrangeiros, reescreve-se a História e funda-se um outro Brasil; não aquele que foi civilizado por um português, que cristianizou e casou com uma única índia, mas o que teve origem na poligamia e nas trocas entre os índios e povos diversos. Moema perde, portanto, o seu caráter mítico, para poder ser uma das muitas mães do povo brasileiro. sabe se ela existiu. E, se não existiu, talvez não tenha morrido […]. Frei Vicente conta que o casal voltou ao Brasil, graças às promessas de Paraguaçu aos marinheiros franceses de que os apresentaria aos tupinambás como seus parentes. Chegando aqui, Paraguaçu rompeu sua promessa e os tupinambás devoraram todos os franceses. Diogo foi feito cavaleiro real de Portugal por sua ajuda a Tomé de Sousa, em 1549. Foi graças a ele que os portugueses fundaram Salvador, a primeira capital do Brasil. O Caramuru reinou entre os tupinambás por mais de 50 anos. O resto é mentira» (Furtado e Arraes, 2000: 8). Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 87 2. 9. Ainda no século XX, no intervalo entre o riso do modernista Murilo Mendes e o pós-moderno de Guel Arraes e Jorge Furtado, surgiu uma como que elegia, escrita em 1951, por Olga Savary, por encomenda de um jornal carioca: «Morte de Moema», texto que a autora reescreveu em 1996 e incluiu em Repertório Selvagem (1998: 303-309). Fruto de seu interesse pela temática indígena, Olga evoca a morte da bela selvagem, a partir do momento em que seu corpo vem dar à praia, como uma interferência de um «anhangá» ou de um «anhanguera». A partir disso, lembra o episódio em que a índia nadou atrás da embarcação que levava Diogo Álvares, e transforma num lamento a curta expressão com que, no poema épico, Moema reclama do desprezo que Diogo Álvares devotou a seu amor: «Preciso de ti. Chamei de manhã à noite, o Sol ouviu-me chamar-te, a Lua ouviu o teu nome/ mas nem assim entendeste,/ não atendeste ao meu chamado,// não pudeste me escutar». E ainda dentro desse clima um tanto fantasmagórico, ouve-se a voz de Caramuru, «num vago murmúrio», que o «mar bravo devora»: «Eu não te esqueci», o que de certa forma reitera a ideia contida no texto infantil de João de Barros (Savary, 1998: 303-304). Numa advertência, ouve-se a voz da narradora (que faz questão de marcar seu olhar feminino, nomeando-se «autora»), chamando à realidade a índia «vestida de sonho» que luta contra as ondas: «Este amor te mata» (1998: 304). «Mouca», «carrasca consigo» é como se refere àquela para quem a pátria passa a ser o mar. O «solveu-se n’água» de Durão passa a «desmancha-se na água/ do Mar Oceano» e traz para a cena a imagem de Vênus surgindo das ondas, já desenhada nos versos de Castro Alves acima citados («Do mar alto/ altas ondas/ a tomaram das águas, /espumas a arrebatam /do remoinho das vagas»), para em seguida, voltando à praia, assumir, a pouco e pouco, a figura do quadro de Vítor Meireles, sem faltar o enquadramento da paisagem: «Do flanco delgado/ descera o enduape […] e desfazem-se as penas/ num rito de dor […] os braços inertes,/ fatal abandono[…] No ar consternado/ da praia deserta/ agora é só sombra/ a natureza/ antes em festa» (Savary, 1998: 308-309). MARIA APARECIDA RIBEIRO 88 2. 10. Depois de mais de meio século afastada do imaginário dos escritores portugueses, Moema volta a surgir num livro em que, se não é a protagonista, apesar de o título o insinuar, divide com a personagem principal esse papel. Aliás, o uso da primeira pessoa do plural, no título com que António Machado batizou o seu volume, publicado em 2002, mostra essa divisão de papeis: Moema. Ainda Pensamos no Amor. Português que vive no Brasil, o protagonista encontrou Luísa no Napolitana, um bar de Belém do Pará, onde trabalhava. Num primeiro encontro, a moça causa-lhe um impacto: «sentiu o tempo parar e a corda metálica do coração acelerar um ritmo impossível» e o «olhar de ambos se cruzou sem réplica nem tréguas» (Machado, 2002: 74). Passou então a buscar, anunciada pelo perfume, a mulher dos «olhos de amêndoa», «olhos negros, brilhantes e profundos pousados sabiamente na pele de cobre do rosto num mistério felino, atraente e temível como a floresta que encobre por entre folhagens gigantes e poentes de sonho a aventura, a tentação, o perigo, o desejo, a onipotência, a conquista, a afirmação e os medos» (Machado, 2002: 80). Num segundo e ocasional encontro, conhece-lhe a voz «oriunda de lendas e planícies de índios pacíficos, dos mistérios ardentes das fogueiras de África a alaranjar a noite, modelada com perfumes do ocidente, funda como um gemido de cântico no eco de uma catedral e perfeita, suave, límpida, doce, como se só a ela fosse possível ter uma voz assim». (Machado, 2002: 97-98) A essa imagem ao mesmo tempo carnal e mítica, soma-se outra, de extrema importância —uma espécie de síntese, memória e identidade—, conhecida no prolongamento desse encontro que dura por três dias. Luísa diz que descende de português e índia e explica-lhe uma gravura (semelhante ao quadro de Vítor Meireles) na parede de seu apartamento, «o centro daquele universo» —uma índia (Moema), nua, numa praia, e «uma cobra assassina em contemplações oblíquas» (Machado, Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 89 2002: 104).12 A índia, morreu na praia à espera de «um marinheiro das naus de Cabral que prometeu voltar para casar com ela» (2002: 105). Nesse encontro, o mítico e o exótico vão cada vez mais sendo incorporados à moça: ela é o (Machado, 2002: 108 e 109). corpo cobreado nascido da mão de Deus ou, por ordem deste, do Miguel Ângelo português que buscou, nos mistérios e silêncios da floresta amazônica, a índia perfeita para a escultura mais ousada que agora se debruçava sobre ele com palavras de ritual, em segredo sussurradas, e untava-lhe o corpo de poções exuberantes com a maciez da seda das mãos e com os seios eretos de mamilos rijos cor de lábios […] Era uma mulher proibida, inventada, daquelas que apenas se olha uma vez por não se acreditar ser possível. […] É a fronteira do permitido com a irrealidade […] essa certeza que não se toca mas de que não se duvida, uma mulher com a infinidade de um horizonte, que domina sem palavras, apenas com os olhos, apenas com um sorriso líquido de aguarela, uma mulher única que se choca com a simplicidade de uma beleza superior, uma rainha de um país inventado […] aquela que lhe sussurrava de florestas distantes. A partir daí, Luísa e Moema confundem-se a ponto de o protagonista, sempre em busca do amor, designá-la com o nome da índia. Quando ele parte, aquilo que Luísa/Moema lhe diz é uma recriação das palavras daquela que seguiu a nau de Diogo Álvares: «Eu sei que você tem que ir, mas não fale nada, não fale sequer que vai voltar» (Machado, 2002: 119). Luísa/Moema passa a ser uma ideia fixa, uma permanente imagem que ele procura sempre, uma obsessão, que o leva a marcar consulta num psiquiatra. Mas que também o leva a descartar-se de todas as 12 Curiosamente, o autor aqui funde a história de Lindóia (heroína d’O Uraguay) com a de Moema, o que une duas índias pertencentes a projetos épicos diferentes: o de Durão, conciliando portugueses e índios; o de Basílio da Gama lamentando que o vento e o mar tivessem levado os europeus ao Novo Mundo. Apesar disso, porém, as duas mulheres morreram em consequência do contato com os portugueses. MARIA APARECIDA RIBEIRO 90 mulheres (as que ainda são memória e as do presente), pois, como diz à Marga, durante a viagem explicando o porquê do «fantasma» (Machado, 2002: 119): nunca conseguirás entender que a vida já acabou quando parece que tudo pode começar, mas apenas começa a busca do que se perdeu na fronteira que nos divide do passado, apenas começa uma ténue imitação do verdadeiro que nos mata em cada detalhe que denuncia a diferença, apenas se atinge o plágio, o semelhante, mas nunca o original, nunca o completo, nunca a perfeição nem nunca o amor. E porque ainda pensava no amor, ele sobrevoaria o mar, «ainda que em forma de cinzas, a caminho daquele manto laranja tão lindo que o sol escolhe para adormecer» (Machado, 2002: 179). Afinal, «uma índia o esperaria nas areias brancas de um Atlântico diferente do de Matosinhos», e ele lhe «prometera inverter o sentido da rotação da terra para se projetar para sempre na lisura acrílica de sua pele, para viver e morrer nos aromas de selva que lhe invadiam o hálito e os gestos» (Machado, 2002: 179). Renova-se, assim, o mito de Moema criado por Santa Rita Durão: por um lado, António Machado acrescenta à beleza da figura o exotismo e a sensualidade, marcas, para os portugueses, da mulher brasileira; por outro, apaga os traços disfóricos da mulher desprezada e em desespero, para imprimir-lhe os da mulher segura de si, da mulher desejada, para quem o português tem intenção de voltar. Com essa Moema/Luísa, Eros vence Tânatos e faz dessa narrativa uma permanente fundação individual. 3. Prometida de Tamanduá e rival não de Paraguaçu, mas de uma branca portuguesa, Moema morre de amor e em sua própria terra, na primeira apropriação do Caramuru de Durão, um texto escrito na França, Moema, um episódio romântico no Barroco brasileiro e suas projeções até os nossos dias 91 por Gavet e Boucher. Bela, estranha e ligada a práticas fetichistas, vista com certa ironia, o nome Moema teve para Garrett sabor e exotismo brasileiros. Outros autores românticos, porém, associaram-na a Ofélia e ela foi a beleza que a morte não corrompeu, ou simplesmente aquela que, por amor, morreu nas águas. A ópera manteve-a rival de Paraguaçu, mas também a pintou sozinha, vítima de amor correspondido, mas reprovado, o que a leva ao suicídio com um punhal. O Parnasianismo brasileiro fez da voz de Moema elemento da paisagem, enquanto o Modernismo e o Pós-Modernismo oscilaram entre o sacralizar e o dessacralizar sua figura. Em Portugal, no século XX, ela foi apenas memória da «pobrezinha», para um Caramuru herói, que serviu de exemplo às crianças, na história contada por João de Barros. Já no século XXI, no romance de Antonio Machado, voltou a ser um sinônimo de amor, de exotismo e de Brasil. Bela, irada, altiva, morta por amor no mar ou na terra, um nome estranho, índia velha, sabedora dos segredos da natureza, adivinha, rival desprezada, vítima de amor correspondido ou não, Ofélia brasileira, estrela, criatura melancólica, aguerrida, amiga fiel, boa filha, vítima da invasão dos brancos, espécie de Rebeca, recordista de natação e de amor, elemento do primeiro triângulo amoroso brasileiro, sinônimo de exotismo e de Brasil, mãe dos brasileiros, a figura de Moema tem sido contemplada pela literatura, pela ópera, pela pintura e pelo cinema, do Barroco aos nossos dias, assumindo contornos que se excluem ou se contaminam uns aos outros. Que rosto lhe estará destinado nos próximos tempos? 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Saber dosar o tempo, ou seja, saber contar quanta areia se gastava numa exposição a favor ou contra uma determinada tese, era um sinal de posse autêntica de uma técnica que tanto podia matar uma vida quanto salvá-la. Imaginemos uma situação um pouco semelhante transportada para o século XVII português, mais precisamente para um canto esquecido e poeirento da oficina de um caldeireiro, onde dois relógios apresentam as próprias defesas e justificações por se encontrarem ali. Com este encontro casual e sem horário marcado se dá início à extraordinária «comédia do tempo». Em boa verdade, trata-se de uma espécie de peça teatral cadenciada e joeirada pela areia temporal da crítica, da sátira e da moral. Autor, encenador e, por vezes, ponto desta pièce é D. Francisco Manuel de Melo. Queremos nortear a análise do primeiro apólogo sobretudo pelo conceito de tempo tomado de vários pontos de fuga. Começaríamos por afirmar que neste apólogo D. Francisco Manuel de Melo emprega múltiplos jogos de palavras, de trocadilhos e de outras estratégias linguísticas como se estas fossem secções cronológicas, isto é, como se cada uma delas servisse de instrumento para ser usado no momento exato em que o espírito crítico do leitor se encontra pronto e mais idóneo para perfecionar o objetivo que o autor se propõe. Todo o apólogo primeiro, em que se dá a interlocução de um relógio citadino com um aldeão, poderia então ser lido como uma metáfora do tempo, isto é, como uma exposição crítica das fases da vida humana, e quem melhor para cronometrar senão dois relógios? 94 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA Palavras-chave: Francisco Manuel De Melo; Apólogo; Teatro; Tempo; Sátira ABSTRACT In the ancient Greek courthouse, the hourglass reigned supreme for it and it alone administrated the amount of time the advocates possessed to present their arguments of both defense and complaint. He who could master that amount of time available and by that I mean, knowing precisely the quantity of sand consumed while presenting a dispute either for or against said argument, would mean dominating a technique that could literary save or forfeit a person’s life. Let us then envision a situation somewhat similar conveyed to Portugal in the seventeenth century, more specifically in a dusty old forgotten corner in a coppersmith’s workshop, where two clocks present their own defenses and validations for being in that particular place. With this casual and impromptu encounter, we are presented to an astonishing «comedy of time». It is in fact a sort of rhythmic type of theatrical play winnowed by the everlasting critique, satire and moral. The playwright, director and, sometimes, prompter of this pièce is D. Francisco Manuel de Melo. We would like to start the analysis of the first apologue by taking special interest in the vanishing points in the concept of time. First and foremost we can assert that in this apologue, D. Francisco Manuel de Melo uses multiple jousting, witticisms and other linguistic strategies as if they were chronologic sections, or in other words, as if each and every one of them acted as an instrument to be used in the precise moment when the reader’s acute sense of critique is ready to perceive the purpose previously set by the author. The sum of the first apologue, in which the dialogue between a city clock and a village one, could then be viewed as a metaphor for time itself, or, in other words, as an exposé of the different stages of life of the human being, and who better to time it but two clocks? Keywords: Francisco Manuel de Melo; Apologue; Theatre; Time; Satire D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 95 Figura incontornável do século XVII, D. Francisco Manuel de Melo causa ainda hoje algum desconforto devido à sua capacidade de escorregar por entre os dedos do estudioso ou do leitor moderno que dele se aproximem. Capacidade deveras invejável se tivermos em consideração as metamorfoses que a sua escrita contemplou: crónica, história, novela, poesia, teatro, etc. Bastaria uma simples pesquisa para o apresentar como o único autor de apólogos dialogais de todo o século XVII português, facto que por si só merece menção. Contudo, não pretendemos delongar-nos especificamente na supramencionada capacidade, mas sobre este tipo de composições, os Apólogos Dialogais,1 isto é, textos de explícito objetivo moralizante e moralizador onde as personagens principais apresentadas são objetos materiais do nosso quotidiano, participantes efetivos da nossa existência –tais como fontes, livros, moedas ou relógios– e que, portanto, podem ser vistas ou, de certa forma, intuídas como juízes alter ego das próprias ações humanas; tudo ambientado numa mesa de jogo prosopopeico tão ao gosto deste poliédrico escritor seiscentista. Logo, interessa-nos examinar o apólogo dialogal primeiro. Para cumprir esse propósito, nortearemos a nossa análise sobretudo pelo conceito de tempo tomado de vários pontos de fuga. Começaríamos por afirmar que neste apólogo D. Francisco Manuel de Melo emprega múltiplos jogos de palavras, trocadilhos e outras estratégias linguísticas (Chacoto, 2011) como se estas fossem secções cronológicas, isto é, como se cada uma delas servisse de instrumento para ser usado no momento exato em que o espírito crítico do leitor se encontra pronto e mais idóneo para percecionar o objetivo que o autor se propõe. Todo o apólogo dialogal primeiro, em que se dá a interlocução de um relógio 1 Os Apólogos Dialogais mais conhecidos de D. Francisco Manuel de Melo são quatro: Relógios Falantes, Escritório Avarento, Visita das Fontes e Hospital das Letras. Todavia, no Hospital das Letras alude-se a um quinto apólogo, isto é, A Feira dos Anexins. D. Carolina Michaelis (1915) encontrou num manuscrito referência também a um sexto apólogo: O Cabido dos Coches. Apesar de a edição do prof. José Pereira Tavares ter adoptado uma ordem diferente da da ordem de elaboração do autor (Relógios, 1654; Escritório, 1655; Fontes, 1657; Hospital, 1657), obtendo assim dois volumes grosso modo do mesmo tamanho (vol. I, Relógios Falantes e Visita das Fontes; vol. II, Escritório Avarento e Hospital das Letras), optei igualmente por usá-la, pois me pareceu que a sua transcrição, comparada com a edição de 2007, seguia mais de perto o espírito do autor. Cf. infra. 96 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA citadino com um aldeão, poderia então ser lido como uma metáfora do tempo, isto é, como uma exposição crítica das fases da vida humana, pois tal como há um momento para o ludismo e outro para a seriedade, um momento para o crescimento e a maturidade e outro para a velhice, a «comédia do tempo» de que fala D. Francisco Manuel de Melo não é senão o desmantelamento desse relógio que é a sociedade humana, seccionando os seus vícios e as suas virtudes. Portanto, quem melhor para cronometrar e medir o tiquetaque da vida humana do que dois relógios que acompanham cada momento seu? Antes, porém, de nos concentrarmos nas personagens do primeiro apólogo, é mister gastarmos algum tempo com as aventuras do nosso autor. E aqui as datas, ou seja, a cadência temporal, desempenham um papel importantíssimo na compreensão da obra em exame. A 20 de setembro de 1654, conforme se lê na dedicatória ao doutor António de Sousa Tavares, D. Francisco Manuel de Melo conclui a redação dos seus apólogos. Seriam necessários 67 anos (1721) para vir a lume a primeira edição impressa e póstuma dos Apólogos Dialogais. A razão pela qual a sua publicação se delongou bastante, talvez tenha a ver com as próprias vicissitudes do autor, mas o certo é que o período de Inquisição que Portugal vivia também contribuiu decisivamente para esse atraso. A nossa afirmação pode ser confirmada pelo simples folhear das várias licenças que os diálogos tiveram de obter antes de serem finalmente publicados (cf. Melo, 1959 [1721]: 5-12). Através dos estudos efetuados por Edgar Prestage (1922: 83-84), seguidos por José Pereira Tavares (1959: XIII), sabe-se que em 1637 D. Francisco Manuel de Melo fora aprisionado no castelo de S. Jorge em Lisboa (Esteves, 1969), embora se desconheçam os motivos reais de tal detenção e a duração da mesma. O facto curioso, e porventura até casual, para não arriscarmos usar o termo causal, é que esse mesmo ano coincide com a nomeação de D. Francisco Manuel a acompanhador do 4.º conde de Linhares, D. Miguel de Noronha (1585-1647), na sua viagem a Évora, cuja missão era pôr cobro às revoltas populares aí originadas ou então tentar apaziguá-las. Este levantamento insurrecional testemunhado pelo autor terá sido depois joeirado e posto por escrito em D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 97 outras composições de teor maiormente político (cf. Epanáfora Política; Lourenço, 2011; Vila-Santa, 2011). Ora, a capacidade de adaptação às situações mais adversas que se lhe iam apresentando fez com que a confiança que a corte depositava no nosso autor não fosse ainda posta em causa, motivo pelo qual D. Francisco Manuel de Melo continuou a obter encargos de elevado prestígio e consequentes prémios pelos serviços prestados. Por ser filho de pai português e de mãe espanhola (por conseguinte, fluente em ambas as línguas), por ter tido acesso privilegiado a uma cultura jesuítica e por ter privado com a corte espanhola, que dominava as letras da península ibérica seiscentista, a vida do nosso aventureiro-escritor seguiu um rumo de certa forma ditado e acompanhado pelas transformações político-sociais do século. Aquando da Restauração portuguesa em 1640, D. Francisco Manuel de Melo alia-se ao governo espanhol mas nem com essa decisão consegue manter alguns dos benefícios que granjeara (Lourenço, 2011: 299-305). Sabemos que é novamente preso e solto passado pouco tempo (Prestage, 1922: 143; Tavares, 1959: XV). Viaja pela Europa em 1641, assistindo às negociações de paz entre França e Inglaterra. Por essa época, decide tomar o partido de D. João IV. A sua larga experiência faz dele um válido aliado nos anos de transição pós-Restauração, porém esse camaleonismo político não permite que a sua fortuna permaneça por muito tempo. Em 1644, é novamente encarcerado por suposto crime de homicídio. Nas palavras de Saraiva-Lopes (172001: 452-3): Viveu pelo menos quatro anos sob prisão, na Torre de Belém, na Torre Velha da Outra Banda ou no Castelo de Lisboa, com alternativas de reclusão severa e de simples residência fixa sob menagem, como competia aliás à sua categoria de comendador da Ordem de Cristo, ora preparando uma grande parte do espólio que deixou, ora lutando quer pela reabilitação e liberdade, através das sucessivas instâncias do julgamento, quer pelo indulto ou comutação da pena em degredo para 98 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA o Ultramar. De estranhar é que, apesar de numerosas diligências, incluindo dois memoriais ao rei, todos repassados de eloquência, e de uma intercessão pessoal de Luís XIV, o mais que conseguiu foi partir degredado para o Brasil (1655). À falta do processo, tem-se recorrido, para explicar o caso, às tradições linhagistas, que ora aludem a um romance amoroso complicado pela rivalidade de D. João IV, ora possíveis desconfianças deste relativamente à lealdade do fidalgo. Os livros escritos na prisão trazem a seguir ao nome «Quare?» (Por quê?). A tomar as palavras de Saraiva-Lopes como fidedignas, deveríamos imaginar que por «livros escritos na prisão» se deve entender todo o período negro da vida do autor que vai da efetiva detenção, isto é, 1644, à sua partida para o degredo no Brasil, em 1655, ou até durante esse exílio. Dado que os Apólogos Dialogais foram, segundo datação do próprio autor, escritos em 1654, isso far-nos-ia pensar que o objetivo dos mesmos não é somente de teor moralizante e moralizador –característica aplicável à maior parte dos textos barrocos–, como também de explícita crítica à injustiça sofrida, uma espécie de denúncia velada da sua situação pessoal. Assim sendo, creio que classificar o primeiro apólogo apenas como a aplicação das expressões do movimento barroco, seria desvirtuar as potencialidades literárias do texto. Gonçalves (2011: 37), por exemplo, ao afirmar que O teor da conversa travada pelos relógios falantes (Chagas e Belas) no primeiro Apólogo da colectânea é o pretexto selecionado por Dom Francisco Manuel de Melo para dar corpo ao velho tópico literário do «menosprezo da cidade e elogio da aldeia», bem como aos do «desconcerto e loucura do mundo», do «mundo ao avesso» ou do «mundo como teatro», tão em voga na tradição literária europeia dos séculos dourados, com especial incidência para os barrocos. parece-me querer chamar a atenção sobretudo para as suas características barrocas. Os Apólogos Dialogais, mais especificamente o primeiro, que será objeto do nosso exame, podem ser considerados jogos de pres- D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 99 tígio linguístico em que arte de saber fazer batota e arte de satirizar se identificam totalmente, isto é, onde o jogo é ganho e a vida é salva se não se mostrarem os ases escondidos na manga (Profeti, 2011). Na dedicatória ao doutor António de Sousa Tavares, desembargador dos Agravos, Juiz da Coroa e Primeiro Ministro da Junta de Estado de Bragança, D. Francisco Manuel de Melo (1959 [1721]: 15) parece aludir precisamente a essa capacidade de se saber fazer batota (Profeti, 2011), de se conseguir mostrar o contrário do que verdadeiramente se pensa e se quer afirmar: «Já ouviríeis a graciosa indecência com que disse um dos nossos discretos que a imaginação era curral do conselho, onde, por não ter portas, todo o animal tinha entrada! Se isto alguma vez foi verdade, na imaginação dos solitários se verefica» . Na nossa opinião, o incipit desta dedicatória revela muitos indícios das reais motivações do autor para escrever os apólogos. Em primeiro lugar, ele parte da verificação de que a imaginação, faculdade o mais ambígua possível, no dizer dos religiosos é o recinto do conselho, isto é, a faculdade pensante e deliberativa. Ora, nós consultámos duas edições: a de 1959, ao cuidado de José Pereira Tavares, e a de 2007, que repropõe a edição de 1968 publicada por Maria Judite Fernandes de Miranda. A edição de 2007 (4), por exemplo, propõe a palavra «concelho» no lugar de «conselho». A nosso ver esta correção ou substituição não funciona para os propósitos do autor. Trata-se de analogias entre imaginação-curral e conselho-casa que resulta precisamente porque nos pratos da balança se encontram termos do mesmo âmbito familiar. Se substituirmos conselho por concelho a analogia aparece manca e deixa de servir o seu objetivo. Por essa razão, afirmamos que os animais que entram livremente nesse curral aberto seriam os pensamentos mais indecorosos e malévolos. Pois bem, D. Francisco Manuel de Melo, que vê nesta asserção uma ponta de «graciosa indecência», justifica-a usando-a para se defender. Os «animais» só conseguem entrar no curral se este estiver desamparado, ou seja, se não estiver protegido ou cercado. Por proteção ou cerco se deve entender a presença material de um recinto ou de um guardião. Dada a ausência deste, só na imaginação=curral dos solitários, daqueles que não têm 100 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA quem os acompanhe, penetra todo e qualquer animal. É precisamente porque se encontra sozinho em degredo («imaginação dos solitários») que o autor admite a hipótese de poder usar de todos meios («todo o animal») possíveis para construir a sua defesa. Pensamos poder asserir que D. Francisco Manuel de Melo de certeza tinha em mente apresentar de maneira sub-reptícia as suas vicissitudes e as do país, por meio de uma mistura magistralmente conseguida pela crítica dos costumes. Tal crítica faz passar pelo crivo os conceitos de aparência e de engano para indicar, também de alguma forma, que o autor foi injustamente acusado. Digamos que para demonstrar a sua inocência, D. Francisco Manuel precisará de uma grande dose de engenho e de imaginação para fazer ver, velando, que o mundo caminha ao contrário e anda de passo desacertado. A escolha dos relógios, paradigmas da exatidão e da certeza, objetos por excelência representativos do compasso concertado da sociedade humana, é a melhor forma de pôr em ato «a comédia do tempo». Dado que a sociedade a que se refere D. Francisco Manuel se veste quer com panos citadinos quer rurais, apresentar dois relógios como bodes expiatórios das maleitas causadas por cada modo de vida parece-nos a forma perfeita de encenar tal confronto de ideias. A nosso ver, o primeiro apólogo dialogal pode ele mesmo ser metafórica e visualmente representado por um relógio a pêndulo. Neste objeto é necessário haver uma regularidade perfeita na sua oscilação para que seja um medidor de tempo preciso. Portanto, o mecanismo, no seu movimento isócrono, deve manter constante a amplitude da oscilação, para evitar variações temporais. Poucos graus são suficientes para adiantar o relógio, para colocá-lo fora do seu tempo. Eis então a função do pêndulo, o peso que cadenceia o processo cronológico. Peguemos nesta breve exposição do mecanismo relojoeiro,2 transportemo-la e sobreponhamo-la à estrutura deste apólogo: em pri2 Em boa verdade, só em 1673, em Horologium oscillatorium, Christiaan Huygens exporia os princípios da teoria do pêndulo simples e composto, valendo-se da sua experiência parisiense como construtor de relógios, mas decerto D. Francisco Manuel de Melo, nas suas viagens pela Europa, deve ter tido a oportunidade de conhecer vários modelos, mesmo os experimentais. D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 101 meiro lugar, o espaço da ação revela-nos que dois relógios, acusados de mau funcionamento e avaria, se acham agora fora do lugar, isto é, num canto esquecido e poeirento da oficina de um caldeireiro. Trata-se de uma característica recorrente, pois antes de se encontrarem neste local, o Relógio da Aldeia dissera: «[...] encomendaram-me a um alveitar que vivia junto de mim, o qual aceitou logo a comissão, muito persuadido de que, por eu ser de ferro e ele tratar de ferraduras, atalharia logo meus desconcertos (Melo, 1959 [1721]: 28); «Relógio da Aldeia: [...], como vossa mercê melhor sabe, que ninguém val pelo que é, senão pelo lugar em que o vemos» (Melo, 1959 [1721]: 44). Em segundo lugar, o tempo. Como tentaremos demonstrar, a estrutura temporal do apólogo é representada pela escolha das personagens: dois relógios (medidores do tempo acusados de não saberem medi-lo, portanto, de estarem desafinados, fora de tempo) que discorrem sobre os tempos que correm. A sua forma de discorrer, que mais não é do que uma medida, pode ser comparada às fases do crescimento do ser humano. Vejamos como: Na infância e na adolescência, dada a imaturidade dos indivíduos, tende a prevalecer o gosto pelo jogo e pela brincadeira. Os dois relógios que se encontram na velha oficina travam conhecimento por meio de trocadilhos, interagem através de frases que pretendem espicaçar reciprocamente o adversário, procurando tatear o terreno antes de se abrirem a maiores e possíveis confidências (Melo, 1959 [1721]: 20-1): Relógio da Aldeia: Sou, com perdão de vossa mercê, o relógio da vila de Belas, ou sem perdão, para melhor dizer, porque nunca fiz erro que se me perdoasse. Parece que só para mim anda o mundo concertado! Relógio da Cidade: Tá tá tá! Vossa mercê é o relógio de Belas? Grandes cousas tenho ouvido de seu bom gosto! Dizem por cá, finalmente, que vossa mercê é o relógio de Belas, mas não belo relógio. [...] Relógio da Cidade: Quem gostaríeis vós que eu seja? Sou esse cansado, esse negro, esse maldito relógio das Chagas, de Lisboa. 102 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA Relógio da Aldeia: Chagado e ferrugento vejo eu a vossa mercê, para ser tão grande e tão antigo cortesão, de quem a fama publica mil galantarias. Relógio da Cidade: Ó saloio, por bom modo me desonrais de mentiroso! Relógio da Aldeia: E vós a mim de vilão, com bem mau modo! Torna-se claro pelos trocadilhos –tais como «relógio de Belas... mas não belo relógio», «relógio das Chagas... que anda chagado», «por bom modo... com bem mau modo»– e pelos jogos de palavras trocados pelos dois protagonistas que D. Francisco Manuel de Melo põe em cena o feitio jocoso e infantil que emerge de um primeiro contacto entre seres que não se conhecem. As personagens acham-se ainda em fase de ambientação, verificam ingenuamente que está tudo fora do lugar, eles mesmos se acham fora do seu espaço natural; e todavia as aparências dizem o oposto. Como duas crianças, que se maravilham com a contrariedade das próprias ações e das de outrem, os relógios meditam precisamente sobre essa ambiguidade, da qual sobressai um forte relativismo, perigoso sobretudo numa época em que vigorava um absolutismo dogmático. Em suma, tornam-se relógios amadurecidos. Contudo esse relativismo das posições aparece disfarçado nos jogos linguísticos do autor, principalmente ao início do diálogo (Melo, 1959 [1721]: 20): Relógio da Cidade: [...] Contudo, vossa mercê me diga como se chama, que sua gentil presença me promete grande achado em tão boa companhia. Relógio da Aldeia: Não se fie em aparências, senhor relógio, porque dessa maneira nos está enganando todo o mundo e até o mesmo céu, que cada dia nos aparece azul, não tendo cor alguma. O ofício dos olhos é ver, chorar e enganar. Relógio da Cidade: Sem embargo, a agradável presença é como sobrescrito de boa letra, que mostra será a carta da mesma mão. Relógio da Aldeia: Também nessa pouquidade nos trapaceam os grandes, porque de ordinário o corte não é do mesmo pano que a amostra. D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 103 Relógio da Cidade: Nem a nota, irmã da firma. Mas deixemos para outra hora o ler por sentença [...]. Desta sucinta troca de galhardetes podemos retirar algumas ilações importantes e significativas. Em primeiro lugar, pensamos ser sintomática a inserção do sentido da vista após se ter dado como exemplo o céu. Isto porque ao lado das duas funções específicas dos olhos –ver e chorar– D. Francisco Manuel de Melo acrescenta outra que aponta para âmbitos bem mais problemáticos, tais como o horizonte do engano. Se todo o mundo nos engana, inclusive o céu, é porque os nossos olhos não sabem ver para lá das meras aparências, conceção esta que se liga ao «curral» mencionado na dedicatória, ou seja, ao facto de não se porem cercas ao recinto que rodeia o «conselho». Com estas breves considerações jocosas sobre as aparências, que levam os dois protagonistas a não se renderem ainda totalmente à aceitação do desengano e da ilusão representados pela realidade, D. Francisco Manuel de Melo faz um truque de magia para mostrar que, considerando-se apresentados os dois relógios, podem ocupar-se de assuntos mais graves (Melo, 1959 [1721]: 22): «Relógio da Cidade: Ora, pois todos somos de campanário, será bom que nos vejamos os jogos, como bons parceiros. A que vindes a esta casa?». Trata-se então de um jogo sério que pressupõe a exibição das cartas que se têm em mãos. Um jogo de adultos, portanto. Como se verá, os dois protagonistas não voltarão a criticar-se com brincadeiras infantis, como fazem as crianças. O motivo da sua conversa estender-se-á a assuntos sobre os quais as crianças só sabem pronunciar ingénuas verdades. Todavia, a gravidade da situação em que se acham é de certa forma atenuada pela forma como os relógios a enfrentam, de maneira que pensamos ser central a afirmação do Relógio da aldeia «[...] porque na comédia do tempo são já tais os nossos feitos, que todos podemos dizer nossos ditos» (Melo, 1959 [1721]: 27). Esta sentença pode ser tomada, na nossa opinião, como perno de todo o diálogo. Os dois relógios sen- 104 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA tem-se à vontade para dizer tudo o que pensam dado que os seus feitos já são conhecidos. Mas em boa verdade, que feitos são conhecidos? Apenas aqueles que parecem ser de domínio geral, ou seja, que «[...] anda o mundo desconcertado, e o pior é que nos põe a culpa» (Melo, 1959 [1721]: 21). Por conseguinte, se os factos são estes –e os feitos também–, é preciso, porém, que se conheçam as razões, é mister que estas sejam expostas e interpretadas. Eis porque nos parece que se pode também comparar este primeiro diálogo com um antigo tribunal grego, onde os advogados eram obrigados a reger-se por um compasso de espera, por assim dizer. A ampulheta ditava o tempo de que dispunham para aduzirem os próprios argumentos de defesa e de acusação. Saber dosar o tempo, ou seja, saber contar quanta areia se gastava numa exposição a favor ou contra uma determinada tese, era um sinal de posse autêntica de uma técnica que tanto podia matar uma vida quanto salvá-la (cf. Platão, Teeteto 172 D-E; Butti, 2002: 91-96). Mas os nossos relógios não tencionam simplesmente contar o tempo, pelo contrário, é este que conta para eles. Nem estão interessados em salvar a própria vida. É preciso que no breve tempo que ainda tinham à disposição se faça clareza sobre a ordem, ou ausência desta, no mundo. Assim, o medo da morte, face aos ditos e aos feitos sucedidos, não será decerto o último grão de areia a escorrer na ampulheta do tempo (Melo 1959 [1721]: 25): Relógio da Aldeia: Cala-te, que te fundirão! Relógio da Cidade: Pois que importa? Farão de mim campainhas e então lhes direi por cem bocas o que não querem ouvir de uma! Par Deus, mas que me fundam, mas que me confundam. Eu hei-de tanger sempre a verdade! [...] Relógio da Aldeia: E tu, amigo, que ganhas em desenganar o mundo, que se não quer desenganar? O sumo grau da sandice é perder-se um pelo ganho do outro. Relógio da Cidade: É nobreza de coração, e ainda proximidade, não deixar perseverar a ninguém no seu engano. D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 105 Portanto, é de nobreza de alma que falamos, de longe superior às comodidades que uma vida abastada, embora de enganos, comporta. Voltando à nossa metáfora, se estivéssemos ainda a olhar para o pêndulo da nossa sobreposição exegética, veríamos que estaria neste preciso momento a tocar 18 horas, quer dizer, o desabafo do Relógio da Cidade em não recear morrer por dizer a verdade estaria a marcar a passagem da maturidade inicial para a meia-idade avançada. Ao som do tiquetaque que se apressa a indicar o final do dia, que é ao mesmo tempo o fim de uma vida (ou de duas, a conclusão do diálogo permanece em aberto), os nossos dois protagonistas debruçam-se sobre as contrariedades da vida humana, da qual se veem fautores: «Relógio da Aldeia: [...] Cansado ofício temos: julgar aqueles de quem havemos de ser julgados!» (Melo, 1959 [1721]: 43). Não obstante estejam convencidos de que a culpa dos contratempos do mundo depende também da conivência que ambos tiveram em favorecer a realização de alguns pequenos vícios humanos, os dois relógios consideram (Melo, 1959 [1721]: 49): Relógio da Cidade: Dir-vos-ei: todos somos relógios e sabemos que não há cousa que não tenha a sua hora no mundo. O rir, o chorar, o trabalho, o descanso, a fome e a fartura, tudo tem sua hora: donde procede que não é fora de razão que os homens tratem tal vez de seu cómodo e tal de seu aproveitamento, pois é certo que para se regerem e dirigirem a bons fins e a termos úteis lhes deu Deus entendimento, [...]. O problema é quando se perdem de vista os meios adequados e justos que levam à compreensão de cada instante, e cada um começa a usar as horas alheias em proveito próprio, minando assim o sistema que rege todo o mecanismo. Roubando um pouco de areia ao próximo ou enchendo até à orla a própria ampulheta, se criam os atritos que levarão à descompensação do mundo. 106 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA O final da vida, que costuma ser o momento em que se fazem contas com o que se foi e que se fez, é chamado pelos nossos protagonistas velhice, isto é (Melo, 1959 [1721]: 52-3), Relógio da Cidade: Eis aí o maior dos mortais, porque a velhice é uma piedosa estalagem que Deus pôs entre a morte e a gentileza, brio, esforço e saúde. [...] Da mesma maneira, e ainda muito mais necessária, interpôs a Providência a velhice entre a vida e a morte, para que ali se domasse a fúria dos afectos e demenuísse a sobejidão do amor da vida, e o homem fosse perdendo o receio à morte pela conversação dos achaques e companhia dos acidentes próprios da velhice. Com este apólogo primeiro, D. Francisco Manuel de Melo recria uma sociedade que se rege pelo perno do engano e das aparências, onde cada grão de areia tenta fugir ao seu destino de morte, sobrepondo-se aos outros tantos grãos de areia que o imitam no desejo e muitas vezes na forma: prevaricando, lesando e cometendo injustiças. Ao fazê-lo, o autor além de traçar um esquisso da sociedade seiscentista, desenha ao mesmo tempo um mapa da sua história pessoal, que o situa como protagonista e padecente dos mesmos enganos supracitados, onde as misérias do tempo se cruzam com as suas vicissitudes pessoais, onde todos os grãos de areia se tornam mais iguais uns dos outros. A única diferença, diferença de peso, que faz pender a balança para o seu lado, é que o nosso autor consegue satirizar, ironizar mas, sobretudo, raciocinar sobre o mundo, mostrando abertamente como ele na realidade é: uma comédia. Embora a sua descrição nos possa por vezes soar a tragédia, pela grande familiaridade que logo sentimos com a nossa realidade hodierna, D. Francisco Manuel de Melo revela-se um leitor exímio do Banquete de Platão, pois «[...] o mesmo homem que sabe compor tragédias sabe também compor comédias» (223 D 2). Mesmo não possuindo a estrutura de uma peça teatral, o apólogo primeiro ensina e leva o leitor a esboçar aquele sorriso de cumplicidade que só se pode verificar entre duas mentes que viajam na mesma linha D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da «comédia do tempo» 107 de pensamento, ou seja, quando dois ponteiros coincidem para marcar um toque em uníssono. Tal sorriso, que se deve tornar um riso um pouco triste, não deve, porém, causar-nos embaraço, pois a larga experiência do autor ensina-nos também que é preciso saber rir de si mesmo, se se quiser melhorar a si mesmo e ao mundo (Melo, 1959 [1721]: 55): Relógio da Aldeia: Bom é saber; e, por mais que se riam de nós, como dizeis, ninguém vos tire a ciência que sois relógio velho da cidade, por quem, havendo passado muitas horas, é força que hajam passado muitos dias, semanas, meses e anos, que são os bancos da escola da experiência. Falou assim D. Francisco Manuel de Melo para as orelhas que o sabiam ouvir, «Relógio da Cidade: [...] Mas não digas que eu to disse!» (Melo, 1959 [1721]: 65). REFERÊNCIAS Bibliografia ativa MELO, D. Francisco Manuel de. «Relógios falantes». Apólogos Dialogais. Vol. I. ed. José Pereira Tavares. Lisboa. Livraria Sá da Costa [1.a edição de 1721], 1959, pp. 13-65. MELO, D. Francisco Manuel de. Relógios Falantes. Coimbra: Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA) da Universidade de Coimbra (a partir da edição de 1968 publicada por Maria Judite Fernandes de Miranda), 2007. Bibliografia passiva BUTTI DE LIMA, Paulo. Platone. Esercizi di filosofia per il giovane Teeteto. Venezia. Marsilio, 2002. CHACOTO, Lucília. «A presença dos provérbios na obra de D. Francisco Manuel de Melo». Maria do Rosário PIMENTEL; Maria do Rosário MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de Melo: O Mundo É Comédia. Lisboa. Edições Colibri, 2011, pp. 59-67. ESTEVES, Maria Helena Frascione de Almeida. «Três cartas da prisão –Marino, Manuel de Melo, Quevedo apócrifo». A.I.O.N. vol. XI, fascículo 1, 1969, pp. 53-76. GONÇALVES, Artur Henrique Ribeiro. «Dom Francisco Manuel de Melo e a Picaresca: relógios, moedas, fontes e livros falantes». Maria do Rosário PIMENTEL; Maria do Rosário MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de Melo: O Mundo É Comédia. Lisboa. Edições Colibri, 2011, pp. 27-41. 108 MARIA DA GRAÇA GOMES DE PINA HUYGENS, Christiaan. Horologium oscillatorium, cive de motu pendolorum ad horologia aptato demonstrationes geometricae. In La piccola Treccani. Dizionario enciclopedico. vol. V, Roma. Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1995, pp. 685-6. LOURENÇO, Victor. «Francisco Manuel de Melo, andanças de um militar». Maria do Rosário PIMENTEL; Maria do Rosário MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de Melo: O Mundo É Comédia. Lisboa. Edições Colibri, 2011, pp. 299-308. MICHAELIS, Carolina. «Notas relativas a manuscritos da Biblioteca da Universidade de Coimbra». Boletim Bibliográfico da Biblioteca da Univ. de Coimbra. vol. II, n.os 1 e 2, 1915. PIMENTEL, Maria do Rosário; Maria do Rosário MONTEIRO (org.). D. Francisco Manuel de Melo: O Mundo É Comédia. Lisboa. Edições Colibri, 2011. PLATÃO. O Banquete. Trad., intr. e notas Maria Teresa Schiappa de AZEVEDO. Lisboa. Edições 70, 1991. PLATÃO. Teeteto. Trad. 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Amador Arrais, primeiro, com João Rebelo, depois, através da multiplicidade de micro-narrativas milagrosas, ou ainda com Brito Alão, no caso particular de Nossa Senhora da Nazaré, o diálogo português havia já sido expressão de devoção mariana. A Miscelânea de Miguel Leitão de Andrada, publicada em 1629, prosseguindo na esteira desta vertente religiosa do diálogo, confirma o hibridismo genológico do género que, se na anterior produção portuguesa não passara despercebido, agora supera essa propensão. Temas e formas conjugam-se para fazer desta obra um dos mais criativos diálogos publicados até à altura. Palavras-chave Diálogo; Miscelânea; Devoção Mariana; Hibridismo; Barroco. ABSTRACT With Friar Amador Arrais, initially, then with João Rebelo, through a multitude of miraculous micro-narratives, or even with Brito Alão, in the particular case of Our Lady of Nazareth, Portuguese dialogue already expressed Marian devotion. Miguel Leitão de Andrada’s Miscelânea, published in 1629, continuing in the wake of this religious strand of dialogue, confirms the genologic hybridity of the genre. If in the previous Portuguese production this had not gone unnoticed, now it overcomes such propensity. Themes and forms combine to turn this dialogue into one of the most creative dialogues published to date. Keywords Dialogue; Miscellany; Marian Devotion; Hybridism; Baroque. 110 MARIA TERESA NASCIMENTO A Miscelânea, de Miguel Leitão de Andrada, de seu título completo Miscelânea do Sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão Grande, aparecimento de sua santa imagem, fundação do seu convento e da sé de Lisboa, expugnação dela, perda del rei Sebastiam. E que seja Nobreza, Senhor, Senhorio, Vassalo del-rei, Rico-homem, infanção, Corte, Cortesia, Misura, Reverência, e Tirar o chapéu, e prodígios. Com muitas Curiosidades e Poesias Diversas, é um longo texto publicado em 1629. O título, menos habitual no conjunto das publicações em diálogo da Literatura Portuguesa, corre o risco de passar despercebido na inventariação a que se proceda de um corpus do género. O livro, poucas vezes objecto de estudo,1 também o não foi ainda na perspectiva da sua definição genológica. Muito embora o autor não se refira nunca ao diálogo como forma de expressão adoptada para o seu texto, preferindo acentuar a vertente miscelânica, é inegável a inclusão desta obra no grande conjunto em que também a Literatura Portuguesa quis marcar presença, de modo contínuo até pelo menos ao século XIX. À altura da saída da Miscelânea, o século XVII tinha já assistido à publicação da História dos Milagres do Rosário (1602), de João Rebelo, dos Diálogos do Sítio de Lisboa (1608), de Luís Mendes de Vasconcelos, dos Diálogos sobre a Vida e Morte do Muito Religioso Sacerdote Bartolomeu da Costa Tesoureiro Mór da Sé de Lisboa (1611), do Diálogo das Grandezas do Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão, da Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo, e da Antiguidade de Nossa Senhora da Nazaré, de Brito Alão, este último apenas anterior em um ano ao presente diálogo. Em três destes diálogos, o culto mariano é nota comum. Depois de Fr. Amador Arrais no Séc. XVI ter já enaltecido a Virgem, em diálogo, o século XVII volta a insistir na via salvífica que o homem pode obter por sua intercessão. É esse o sentido dos diálogos de João Rebelo, de Brito Alão e de Miguel Leitão de Andrada. Neste último autor, o 1 A obra tem sobretudo merecido o interesse daqueles que nela têm procurado identificar composições poéticas, cuja autoria não é indicada no texto da Miscelânea. Igualmente susceptíveis de estimular o interesse dos estudiosos têm sido os capítulos referentes ao desastre de Alcácer Quibir. A devoção mariana no diálogo português do Barroco 111 propósito devocional torna-se explícito desde o poema de abertura, um misto de dedicatória e de invocação à Virgem –«Vós, nom Calíope, me sei favorável, dando-me azas de dom virtuoso,/ Vós que sois luz, e hum sol luminoso,/ Que fale de vós, me dai que seja habel» (XV). O Prólogo ao Leitor Benévolo reforça a declaração do rendido preito à Senhora da Luz e a necessidade de divulgar as inúmeras mercês recebidas. Miguel Leitão de Andrada, que em nome pessoal se expressará, é o sujeito sobre quem recaíram as graças de Nossa Senhora. O diálogo assume, consequentemente, um cunho de veridicção indesmentível, explicado a partir deste mesmo texto liminar. Falar de si próprio encontraria, nas suas palavras, justificação em Sto. Agostinho, S. Jerónimo, Júlio César, Santa Teresa de Jesus, Cornélio Tácito ou Trogo Pompeio que assim procederam.2 E a natureza do empreendimento legitima a analogia que o autor funda nas melhores autoridades. A devoção mariana surge como o único fio condutor capaz de conferir alguma unidade à multiplicidade de temas que invadem o diálogo de Miguel Leitão de Andrada. Dessa heterogeneidade estava o autor consciente quando por mais do que uma vez se refere ao seu texto como uma «selada»:3 «Bem estou vendo que muitos me hão de notar, por verem neste livro (a que me pareceu chamar Miscellanea ou selada, pola diversidade de cousas que nele vão misturadas)», afirma ele no Prólogo aos Leitores Benévolos (Andrada, 1867: XX). Composta por vinte diálogos, a interlocução da Miscelânea envolve primeiro Devoto e Galácio até ao Diálogo X. A partir deste, Crispo vem enriquecer o elenco de personagens, onde se cruzam, de forma não linear, diversos tempos e espaços: no presente, processa-se a jornada entre Lisboa e o Sítio da Senhora da Luz; no passado, remontando até à evocação das fabulosas origens de Pedrógão Grande, ou mesmo da Lusitânia, percorre-se a genealogia dos Leitão de Andrada, com demora autobiográfica num dos seus descendentes, a personagem de Devoto, 2 A esta última alusão, se referiu já, como provavelmente infundada por se terem perdido os livros deste historiador, Manuel Duarte, na sua introdução à edição mais recente da Miscelânea (Duarte, 1993: 36 ). 3 Ver, por exemplo, o paratexto que dirige ao «Padre Prior e mais Padres do Convento de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão Grande». 112 MARIA TERESA NASCIMENTO muito particularmente na sua participação como soldado em Alcácer-Quibir. Parte significativa do diálogo ocorre com os interlocutores em movimento, ao longo de diversas jornadas. No início, entre Lisboa e Pedrógão, depois, aqui chegados, em vários dos seus espaços privilegiados pela Natureza, e previamente agendados de dia para dia. A abrir o primeiro diálogo, nisso quase só se demorando, ocorre a extensa caracterização do lugar de Pedrógão Grande. A descrição, profusa, na enumeração e na superlativação dos elementos, atenta à fertilidade do lugar, à riqueza das infindáveis águas que brotam do solo ou dos penhascos, ao verde exuberante do arvoredo ou às flores de cores variegadas, à multiplicidade de aves, de peixes, de frutas e de legumes, oferece contornos edénicos indesmentíveis. A linguagem faz-se poesia e são agora as muitas ermidas do lugar e dos seus arredores em honra de S. Sebastião, de S. Dinis, de Nossa Senhora da Conceição, a ser exalçadas em verso, por meio de canção, sonetos, romances, quintilhas, trovas ou epigramas. A Devoto, que partira de Lisboa em companhia de Galácio, para pagar a promessa devida a Nossa Senhora da Luz, caberá em várias ocasiões, para além da extensa fala inicial, corroborar a excelência do sítio para onde se dirigem, de bons ares e de boa gente. Será este, cumpre-nos aqui registar, o enquadramento perfeito para a conversação que mais tarde ocorrerá sob o topos do locus amoenus, numa tradição a que o texto da Miscelânea se conforma4 e que desde a Antiguidade Greco-latina tem servido de matriz ao género do diálogo. Mas, por enquanto, Pedrógão é apenas um destino ao qual as personagens só chegarão depois de algumas jornadas. Até lá, Devoto e o conterrâneo Galácio dialogarão sobre diversas matérias, sejam as suscitadas pela sucessividade de espaços que percorrem, sejam aquelas que mais estritamente se ligam à devoção mariana, como é o caso de todo o diálogo terceiro, ao longo do qual Devoto, respondendo à solicitação do interlocutor, dá conta, de uma forma mais sistemática, das inúmeras mercês com que diz ter sido 4 Consulte-se, a este propósito, Fr. Heitor Pinto. Imagem da Vida Cristã. Lisboa. Sá da Costa, 1940. A devoção mariana no diálogo português do Barroco 113 favorecido ao longo da vida, desde os sinais da presença divina que lhe foi dado experimentar logo em tenra idade até aos repetidos modos de salvamento e sinais milagrosos com que Nossa Senhora quis livrá-lo. A cada graça, há lugar para promessas renovadas, para a expressão de uma fé em que toda a família dos Leitões se oferece como exemplo, até mesmo em provas de santidade. O culto mariano é também objecto em Miguel Leitão de Andrada de manifestações de espiritualidade expressas em diferentes géneros do modo lírico, contidos tanto na dedicatória como no Prólogo aos Leitores, sem esquecer diversas formas de louvor e de oração propiciadas pelo desenvolvimento do diálogo e também elas, objecto de poetização. A presença de Devoto em Alcácer-Quibir como soldado, o relato da batalha e da consequente retirada ocupam três diálogos. A personagem prodigaliza-nos uma circunstanciada narrativa dos diferentes lances aventurosos em que se viu envolvida, afirmando, contudo, ao leitor: «o meu intento não é de história (deixando isto aos cronistas) senão contar-vos de mim na memória das muitas mercês que a Virgem Nossa Senhora da Luz me fez» (Andrada, 1867: 164). Se, no que diz respeito ao diálogo terceiro, a narrativa se construiu de modo condensado e retrospectivo relativamente a todo um percurso de vida, agora, em Alcácer-Quibir, acompanhamos Devoto, passo a passo, não apenas limitando-se a receber ou a interpretar a intercessão mariana, mas intentando antecipar os seus efeitos, através de uma rogativa que contém quer uma confissão de culpa, quer sobretudo as virtualidades de uma promessa condicional. Devoto promete uma festa de celebração da Virgem, se Ela o levar a salvamento. Ouçamos as suas palavras (Andrada, 1867: 172): Senhora vós sabeis o que eu posso, e o estado em que meus pecados me tem posto, isso que eu puder ajudar melhor será pera vos ir fazer uma festa na vossa casa e sítio, o que vos prometo se lá me levares com liberdade. Feito este voto e contrato com minha Senhora, permitiu ela MARIA TERESA NASCIMENTO 114 que desde aqui crecessem ainda mais os trabalhos e perseguições, pera que eu visse que só ela me tirava deles como por milagre. Estabelecido o contrato, e posto Devoto em salvamento, ei-lo perante a necessidade obrigada de cumprir a promessa feita. E é na persecução desse intento que encontramos, desde o início do diálogo, como já dissemos, as duas personagens a caminho de Pedrógão Grande. Esperaríamos, logo após a fala esporádica de um Cavaleiro, vindo a receber os peregrinos à chegada, poder ir assistindo aos festejos em honra de Nossa Senhora da Luz, no decurso da conversação. Não é isso, contudo, o que verificamos. O relato ulterior do acontecido pertencerá a Galácio e será propiciado pelo pretexto da ausência de Crispo que, em peregrinação a Santiago, não tinha tido ensejo de participar nesses quatro dias de festividades. Galácio não se escusará a tudo descrever, desde o aparecimento do arauto da Fama, em fantasiada alegoria, até aos pormenores de abundância na hospitalidade com que os peregrinos eram providos. Mais do que isso, no seu discurso serão lembradas todas as celebrações com que de forma divina ou profana se quis honrar a Senhora da Luz, a partir de 8 de Setembro de 1612. E não estamos a falar da simples alusão à representação de entremeses ou de uma comédia de Lope de Vega, A Ocasião Perdida, estamos, sim, a realçar o modo como no diálogo confluem outros registos literários, de entre os quais se destaca o dramático. O diálogo incorpora, assim, três representações. Na primeira, desfilam perante o nosso olhar, uma a uma, as nove musas, guiadas por Calíope metonimicamente, acompanhadas de livros que remetem para a sua arte, e recitando versos de rendido preito à Senhora da Luz, pelo saber mais alto que ela detém. Atentemos em alguns excertos (Andrada, 1867: 218-219): Diz Clio: De meu saber confusa, A devoção mariana no diálogo português do Barroco 115 Me venho aos pés diante, D’outra musa mais nobre e elegante …………………………………….. Ou Tália: Já pago vassalagem, A quem o Céu reserva, Por quem sendo Senhora já sou serva. ……………………………………. Ou ainda Melpomene cantará: ………………………………….. Com alegres discantes, Direi divinas prosas, Que logo Virgem o são quando são vossas A representação, longa, e dançada, contempla ainda a entrada de meninos a quem as Ninfas fizeram portadores de ramalhetes de flores que, depois de entregues às Musas, serão por elas oferecidos à Senhora. Após esta dança, surge um Colóquio em verso, em castelhano, representando, sob vestimenta de pastores, as três pessoas da Santíssima Trindade, competindo entre si para ver que atributos cada uma daria a Nossa Senhora. Esta dramatização, que não será já, como as anteriores, objecto de reprodução integral do texto, agora optando Galácio, algumas vezes, por resumir alguns dos seus passos, é nas suas palavras, «sutilíssima e de excelentes conceitos, e pontos tão subidos de ponto, quanto vos não sei encarecer» (Andrada, 1867: 224). Ainda no segundo dos diálogos (Diálogo XII) consagrado ao relato das festividades, é a vez da dramatização de um passo da Senhora da Anunciação. A alegoria é a figura preponderante, desde a concepção cénica até à natureza das personagens envolvidas. Céu, Terra, Anjos, Trono, Potestades, Principados, Dominâncias contracenam em versos deleitosos de homenagem à Virgem. Primeiro, Céu e Terra, em disputa pela posse da Senhora, depois, rendida a Terra ao lugar que a Senhora deverá ocupar no Céu… O soneto final, sob forma dialogada, maiorita- 116 MARIA TERESA NASCIMENTO riamente assente no esquema de pergunta-resposta entre um Querubim e um Serafim, marca a Ascensão de Nossa Senhora, depois de confirmada a sua identidade. A antítese que se estabelece entre os dois últimos versos do segundo terceto, marcados pelo paralelismo de construção, é bem ao gosto barroco: «Porque da Terra Vem? Seraph: Porque é humana/ E porque sobe ao Céu? Seraph: Porque é divina» (Andrada, 1867: 236). Terminada a descrição das festas em honra de Nossa Senhora, ricas em variedade, novidade e abundância, de que aqui apenas deixamos o que importa à emergência de outros registos no diálogo, os três interlocutores agendarão novo encontro para o dia seguinte –nada de novo, portanto, neste modo de antecipação prévia da conversação, nem menos ainda naquilo que nos parece uma reminiscência platónico-ciceroniana da escolha da melhor relva para assento. Agora, o diálogo prossegue a senda começada com a narrativa de Galácio, no sentido de o protagonismo inicial de Devoto se ter esbatido em proveito do dos outros interlocutores. Será, por isso, a vez de Crispo, investido das funções de narrador, trazer até nós uma fábula de sentido alegórico, cujo conteúdo embora de forma mais imediata aponte para a origem geográfica e topográfica do Sítio de Pedrógão Grande –e por isso aqui a trazemos pela contiguidade que estabelece com Nossa Senhora da Luz– denota um alcance mais profundo como já veremos. A acção remonta ao tempo do Reino de Arounce, situado algures em Colímbria e retrata numa primeira fase o ambiente palaciano feminino e o modo como os pretendentes concorrem nos amores de Peralta, a princesa, filha do rei de Arounce, ou no de Iria, sua aia, as quais sempre olharão com desdém aqueles que incansavelmente as presenteavam com declarações amorosas expressas em infindáveis missivas líricas. A fábula, que já de si constitui uma ramificação no diálogo, vindo inclusive a enxertar-se nele como outro nível diegético, vive neste caso concreto na dependência de diversas formas poéticas à custa das quais a intriga vai evoluindo. Falamos em particular da maneira pela qual se tenta edificar um sistema de comunicação de natureza amorosa assente na acumulação de diferentes géneros do modo lírico. Jamais veremos algum dos pretendentes da Princesa Peralta ou da sua aia Iria A devoção mariana no diálogo português do Barroco 117 manifestarem-se de outro modo que não seja através da poesia, com especial preferência para o soneto que, no caso particular das declarações de Escalor, atinge o número de catorze ocorrências, sem com elas obter o menor vislumbre de correspondência amorosa. Vénus, disfarçada, virá pôr cobro a este estado de sobranceria e desdém feminino, instilando em Arounce o estigma da destruição, que culminará com a aniquilação do reino e a metamorfose dos pares amorosos e de alguns dos seus próximos em diversos acidentes de natureza orográfica ou geológica. A moralidade da alegoria barroca afirma-se por duas vezes: «Que tais são as felicidades, e cousas desse mundo caducas, e merecedeiras, sem ter firmeza alguma mais que em a não ter em nada» (Andrada, 1867: 301); «Bom espelho nos pode ser esse pera nos não confiar das cousas, e prosperidades deste mundo, nem nelas cousa alguma» (Andrada, 1867: 304). Durante mais três diálogos prosseguirá a conversação, até ao final da Miscelânea, mas o fio da devoção mariana que a norteara até à chegada a Pedrógão Grande e ao relato das festas perde-se, para acabar de cumprir a promessa do título. Será a vez de discorrer sobre muitas mais curiosidades, nelas incluídos diversos prodígios do tempo, em homens e animais. Espaço significativo ocupará ainda a reflexão sobre a essência da verdadeira nobreza e alguns dos seus títulos. Ao diálogo assomará igualmente a vertente alegórica que se iniciara e parecera terminada com a narrativa do reino de Arounce, desta vez, para mostrar o amor de Vénus aos Lusitanos. A ínsula divina que há-de preparar no meio do Oceano é afinal proveniente de uma pedra arrancada da própria Lusitânia.5 Com um romance castelhano de enaltecimento a alguns dos heróis lusitanos (Sertório, Nun’Álvares Pereira ou os descendentes dos Leitões) terminará a Miscelânea, sem que o leitor se tivesse apercebido de que se encaminhava para o seu fim. É também tempo para nós de findar esta breve abordagem à Miscelânea de Miguel Leitão de Andrade com algumas conclusões. 5 Sobre a relação entre Os Lusíadas e a Miscelânea, nomeadamente no que diz respeito ao significado de Vénus, leia-se António Cirurgião (1989). 118 MARIA TERESA NASCIMENTO No diálogo português do Renascimento tínhamos já deparado com diversas manifestações de hibridismo que apenas vieram confirmar uma tendência que afectara o género desde a Antiguidade Clássica. Fica aqui registado o caso de autores como Samuel Usque, Fr. Amador Arrais, Fr. Heitor Pinto, Pedro de Mariz e Vasco Mousinho de Quevedo.6 Com a Miscelânea de Miguel Leitão de Andrada, o diálogo vê extremada esta orientação. Agora estamos perante a emergência sistemática de outros géneros dentro do diálogo, num efeito que algumas vezes caracterizaríamos de arborescente. A contaminação do diálogo com outros registos literários na Miscelânea havia sido devidamente salvaguardada por Miguel Leitão de Andrada no paratexto, de uma forma particularmente sugestiva (Andrada, 1867: XX): Algumas [cousas] que lhe parecerão alheias, e ditos também alheios; a quem se responde que me mostrem um só livro de quantos té hoje são escritos, que não tenha cousas alheias, e antes algumas inteiramente tresladadas. Porque, que cousa se pode dizer, que não seja já dita? Nihil sub sole recens, diz o Sábio. A primeira parte da afirmação de Miguel Leitão de Andrada antecipa aquilo que nenhum dos teorizadores modernos da intertextualidade tem ignorado, a de que qualquer texto se inscreve numa vasta rede de citações. No que diz respeito aos textos inteiramente «tresladados», não fosse a inexistente identificação dos seus autores e talvez a Miscelânea fosse até aqui ainda menos visitada, nesse exercício que tem conduzido ao reconhecimento de alguns poetas quinhentistas incorporados no diálogo, como sejam Camões, Estêvão Rodrigues de Castro, D. Juan da Silva, o Conde de Linhares, Manuel Soares de Albergaria, entre outros (Bernardes, 1995: 259 col. 1), (Duarte, 1993: 37-40), (Silva, 1994: 6771). 6 Ver, a este propósito, Maria Teresa Nascimento (2011). A devoção mariana no diálogo português do Barroco 119 Em pleno Barroco, constituirá a Miscelânea uma autêntica viragem no panorama do diálogo português? Parece-nos que este diálogo, do ponto de vista formal, apenas vem acentuar, até à exaustão, aquilo que desde Platão ficara já insinuado como marca do género, o seu carácter proteico de que falam Snyder (1989: 7) ou Herrero (1988: 173) fugidio, também diremos. De facto, um aspecto que aqui queríamos deixar assinalado é que, se o diálogo, no caso da Miscelânea, passou a acusar uma maior dependência no que diz respeito a formas poéticas e dramáticas aparentemente alheias, ele adquire maior autonomia relativamente ao peso das autoridades da antiguidade greco-latina e da patrística, muito menos presentes, agora, do que na prática anterior dos diálogos quinhentistas. Trata-se, de qualquer modo, de conclusões provisórias que precisam ainda de ser alargadas aos demais diálogos do Barroco. REFERÊNCIAS ALÃO, Manuel de Brito. Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa S. de Nazareth: Grandezas de seu Sitio, Casa, e Jurisdiçaõ Real, Sita junto à Villa da Pederneira. Lisboa. Pedro Crasbeeck Impressor del Rei, 1628-1637, 2 vols. Digitalizado pela BNP: http://purl. pt/12032/4/. ANDRADA, Miguel Leitão de. Miscelânea do Sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão Grande, Aparecimento de sua Santa Imagem, Fundação do seu Convento e da Sé de Lisboa, Expugnação dela, Perda del rei Sebastiam. E que Seja Nobreza, Senhor, Senhorio, Vassalo del-rei, Rico-Homem, Infanção, Corte, Cortesia, Misura, Reverência, e Tirar o Chapéu, e Prodígios. Com Muitas Curiosidades e Poesias Diversas. Lisboa. Imprensa Nacional, 1867. Digitalizado por Google Books. ANDRADE, Miguel Leitão de. Miscelânea. Lisboa. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993. ARRAIS, Fr. Amador. Diálogos (intr. e revisão M. Lopes de Almeida). Porto. Lello & Irmão, 1974 (1589). BERNARDES, José Augusto Cardoso. «Andrada, Miguel Leitão de». Biblos. Lisboa, S. Paulo. Verbo, 1995, col. A, p. 259, vol. 1. CIRURGIÃO, António. «Camões e Miguel Leitão de Andrade». Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 108, Mar. 1989, pp. 18-26. DUARTE, Manuel Marques. «Introdução». Miscelânea. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 11-77. HERRERO, Ana Vian. «La Ficción Conversacional en el dialogo renacentista». Edad de Oro, VII, Madrid. Ediciones de la Universidad Autónoma de Madrid, Universidad Internacional Menéndez Pelayo, 1988, pp. 173-186. 120 MARIA TERESA NASCIMENTO NASCIMENTO, Maria Teresa. O Diálogo na Literatura Portuguesa. Renascimento e Maneirismo. Coimbra. Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2011. REBELO, Padre João. História dos Milagres do Rosário. Évora. Manoel Carvalho Impressor da Universidade, 1619 (1602). SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. «Notas sobre o Cânone da Lírica (II)». Camões: Labirintos e Fascínios. Lisboa. Edições Cotovia, 1994, pp. 57-71. SNYDER, Jon R. Writing the Scene of Speaking. Theories of Dialogue in the Late Italian Renaissance. California. Stanford University Press, 1989. VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 121-144 O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura enquanto campo de investigação REGINA ZILBERMAN Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS) RESUMO O livro Resumo da História Literária de Portugal, Seguido do Resumo da História do Brasil [Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil], de Ferdinand Denis, publicado em 1826, aborda, em dois segmentos, a literatura de Portugal, examinada desde o século XIV, e a literatura do Brasil, considerada unidade independente. Para redigir a obra, Denis valeu-se dos documentos e fontes disponíveis a seu tempo; e fundamentou-se nos conceitos correntes de caráter nacional e cor local. A importância de seu trabalho decorre do fato de ter estabelecido e fixado critérios fundadores da então emergente historiografia das literaturas em língua portuguesa. Além disso, o livro faculta uma reflexão sobre o papel retrospectivo e prospectivo da pesquisa focada na História da Literatura enquanto gênero literário e campo de conhecimento. Palavras-chave: Ferdinand Denis; História da Literatura; Caráter Nacional; Cor Local. ABSTRACT Ferdinand Denis’ Summary of the Literary History of Portugal, Followed by the Summary of the Literary History of Brazil [Résumé de l’histoire littéraire du Portu- REGINA ZILBERMAN 122 gal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil], published in 1826, examines separately the literature of Portugal since the 14th century, and the literature of Brazil, considered as an independent unity. To write this work, Denis employed documents and sources available at his time; and he based himself upon the then prevalent concepts of national character and local color. The importance of his work results from the fact that it was him who provided founding patterns to the developing historiography of the literatures in Portuguese language. Besides, his book allows an understanding about the retrospective and prospective function of the research focused in the History of Literature as a genre and field of investigation. Keywords: Ferdinand Denis; History of Literature; National Character; Local Color. Muito pouco, quase nada se tem dito desse homem singular, que teve a inexplicável singularidade de, sendo estrangeiro, ser amigo de Portugal, sendo parisiense, conhecer alguma coisa mais do que Paris, sendo escritor, escrever de preferência sobre portugueses, sendo erudito, aumentar e enriquecer a sua erudição com o conhecimento vasto e minucioso de tudo quanto respeita à nacionalidade portuguesa, pondo em acentuado relevo, e sempre, e em tudo, o lado heroico da nossa raça, as superiores qualidades étnicas da nossa nacionalidade, a grandeza viril do nosso passado. Victor (1890) 1. O autor Jean Ferdinand Denis (1798-1890) nasceu em Paris, filho, segundo Georges Le Gentil, «dum funcionário do Ministério dos negócios estrangeiros» (Le Gentil, 1928: 293). Deixou a França em 1816, aparentemente na direção das Índias, na busca de autonomia financeira.1 Acabou por desembarcar no Rio de Janeiro, à época em que ali residia a Família Real Portuguesa, sob a regência de D. João (1767-1826), portando carta de recomendação de Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), Filinto Elísio na Arcádia Lusitana, de quem Denis era amigo e admirador (Le Gentil, 1928: 295). Seis meses depois, seguiu para 1 Luís Gastão de Escragnolle Doria supõe que Ferdinand Denis aguardaria, no Rio de Janeiro, embarcação para Goa. (Doria, 1912: 219-230; Le Gentil, 1928: 295). O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 123 a Bahia, para trabalhar junto a representantes comerciais da França, que sofriam a concorrência dos ingleses no que diz respeito à troca, entre seus respectivos países e a colônia portuguesa, de produtos naturais e industrializados.2 No Brasil, lembra Jean-Paul Bruyas, «Denis se tornara amigo de Hippolyte Taunay (1793-1864), filho do pintor Nicolas Taunay (17551830), membro da missão artística francesa, enviado ao Rio, em 1816» (Bruyas, 1979: XXII), amizade que rendeu a produção de um livro em parceria, Le Brésil, ou Histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce royame, publicado em seis volumes, entre 1821 e 1822. Sinal de que, ao deixar a Bahia, o jovem retornou à cidade natal, dedicando-se doravante à atividade literária, com ênfase na escrita de obras relativas à América e a Portugal, sobretudo, e ao trabalho de bibliotecário, e depois curador, da Bibliothèque Sainte-Geneviève, em Paris, posto que obteve em 1838 e conservou até a morte, em 1890. Antes, porém, viajou por outros países da América, conforme relata Joaquim Norberto (1820-1891), no necrológio dedicado à memória do historiador francês, em sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Norberto, 1890). Também em 1821 e na França, Denis publicou a carta de Pero Vaz de Caminha (c. 1450-1500) sobre o descobrimento do Brasil. O texto, que apareceu no fascículo 28, do tomo 7, do Journal de voyages, découvertes et navigations modernes, ou Archives géographiques et statistiques du XVIe siècle, é, conforme Maria Helena Rouanet, a «primeira publicação da Carta em outra língua que não o português» (Rouanet, 1991: 300). Em Le Brésil, Denis reproduziu o documento de Caminha, segundo observa a pesquisadora. Em 1823, Ferdinand Denis voltou-se a temas lusitanos: organizou o volume consagrado ao teatro português, para a coleção «Obras-primas dos Teatros Estrangeiros», lançadas em 1823 por Ladvocat, editor de grande prestígio na época, incluindo, além da apresentação do volume, intitulada «Notícia sobre o teatro português» (Denis, 1823),3 as peças Nova Castro, de Batista Gomes (c. 1775-1803); A Conquis2 Relativamente à permanência de Ferdinand Denis no Brasil, em especial na Bahia, cf. Bourdon, 1958. 3 A tradução da «Notícia», sob nossa responsabilidade, foi publicada em Zilberman, 2007. 124 REGINA ZILBERMAN ta do Peru, tragédia, e Caráter dos Lusitanos, tragédia, de Pimenta de Aguiar (1765-1832); e Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, de Antônio José da Silva (1705-1739). Também em 1823 teria redigido Camoens et Jozé Indio, biografia ficcionalizada dos últimos anos do épico português. Conhece-se apenas a edição de 1824, colocada ao final de Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie, coleção de ensaios lançada naquele ano. Em Scènes encontram-se duas outras experiências na área da ficção, «Palmares» e «Os maxacalis», que, embora lidem com temas relativos à história do Brasil e assumam premonitória perspectiva indianista, permaneceram sem tradução por mais de 150 anos (Denis, 1979 e 1997). Em 1825, Ferdinand Denis escreveu um de seus livros mais bem sucedidos, o Résumé de l’histoire du Brésil et de la Guyane, que alcançou duas edições no mesmo ano. Foi traduzido no Brasil por Henrique Luís de Niemeyer Bellegarde (1802-1839) e, conforme Joaquim Norberto, «adotado por circular do governo às câmaras municipais do império para leitura das escolas primárias» (Norberto, 1890). Talvez o sucesso desse trabalho tenha-o estimulado a redigir os resumos de história da literatura, publicados num único volume em 1826. Esse texto, porém, não foi traduzido na época,4 embora tenha constituído leitura obrigatória, pelo menos, dos românticos brasileiros, conforme se verifica em ensaios de Joaquim Norberto e João Manuel Pereira da Silva (1817-1898), que calcaram seus juízos sobre obras literárias pertencentes ao patrimônio brasileiro nas teses do estudioso francês. Denis publicou livros e ensaios com assuntos que se estendem da biblioteconomia à cultura oriental, de que era igualmente admirador. Seu interesse pelo Brasil e pela América Latina nunca esmoreceu, haja vista o lançamento de obras como o Résumé de l’histoire de Buenos-Ayres, du Paraguay et des provinces de La Plata, suivi du Résumé de l’histoire du Chili, de 1827, a Histoire géografique du Brésil, de 1833 (reimpressa em 1834 e 1835), Brésil, de 1837, Une fête brésilienne célébrée à Rouen en 1550, de 1850, e Voyage dans les forêts de la Guyane, de 1853. 4 Guilhermino Cesar (1908-1993), em 1968, traduziu e publicou os capítulos relativos à literatura brasileira (Denis, 1968; Cesar, 1978). O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 125 A cultura e a história portuguesa igualmente o atraíam, destacando-se a admiração por Luís de Camões (1524?-1580?), tema do estudo introdutório à edição francesa de 1841 de Os Lusíadas. Em 1835, traduziu duas peças de Antônio Ferreira, a tragédia Castro, que denomina Inez de Castro, e a comédia O Cioso, Le jaloux na versão de Denis. A história do Frei Luís de Sousa, figura sobre a qual se detém em 1826, em um dos capítulos do Resumo da História Literária de Portugal, rendeu-lhe outra obra, também de 1835, Luís de Sousa, em dois volumes, a qual suscitou polêmica, por ocasião do lançamento da tragédia de Almeida Garrett (1799-1854), de título similar (Le Gentil, 1928). 2. O Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil O livro Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil (doravante denominado Résumé), de Ferdinand Denis, foi publicado em 1826, em um volume in 8.o, editado por Louis Janet, que já lançara as Scènes de la nature sous les tropiques e pertencia a uma renomada família de impressores e livreiros. Consta de um «Discurso preliminar», que dá conta dos paradigmas adotados pelo autor (Zilberman, 2006b), e de duas partes, sendo a primeira dedicada ao «Resumo da história literária de Portugal», com 35 capítulos (repete-se a numeração do capítulo dezessete), e a segunda ao «Resumo da história literária do Brasil», com oito capítulos. Fecham o livro as «Notas», que incluem informações adicionais, obtidas provavelmente quando o texto já se encontrava na gráfica e não podia ser alterado. A obra soma 625 páginas. Até então, nenhum estudo em forma de livro independente fora dedicado inteiramente às literaturas em língua portuguesa. Não significa que o assunto fosse ignorado, e podem-se relacionar os precedentes: a) na forma de livro, cabe destacar a Biblioteca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado (1682-1772), catálogo bibliográfico impresso entre 1741 e 1759. Dicionários de autores já tinham sido produzidos no século XVII, como o Theatrum Lusitaniae litterarium, sive Bibliothe- 126 REGINA ZILBERMAN ca Scriptorum omnium Lusitanorum, manuscrito não publicado de João Soares de Brito (1611-1664), e a Bibliotheca Hispana nova, de Nicolau Antônio (1617-1684), também do século XVII, que inclui autores nascidos em Portugal. Depois da Biblioteca Lusitana, a Academia Real das Ciências de Lisboa providenciou um «Catálogo de autores», que precede o primeiro e único volume do Dicionário da Língua Portuguesa, organizado por Pedro José da Fonseca (1737-1816). b) Também na forma de livro, mas distribuído o tema entre outras expressões nacionais, as literaturas de língua portuguesa aparecem no quarto volume da História da Poesia e da Eloquência, de Friedrich Bouterwek (1765-1828), e em De la littérature du Midi de l’Europe, de 1813, cujo autor, Simonde de Sismondi (1773-1842), consagra os cinco últimos capítulos a escritores de procedência lusitana; c) na forma de prefácios a coletâneas de poesias, como o ensaio de Alexandre-Marie Sané (c. 1773-1818), «Introduction sur la littérature portugaise», que precede o livro Poésie lyrique portugaise ou Choix des Odes de Francisco Manuel, publicado em Paris em 1808. Citem-se igualmente as «Notas ao poema», de Timóteo Lecussan-Verdier (1754?1831), que acompanha a edição de O Hissope, de Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), lançada em 1821; d) na forma de ensaio, colocados em revistas dedicadas à literatura e cultura, como o de José Correia da Serra (1750-1823), «De l’état des sciences et des lettres en Portugal, à la fin du dix-huitième siècle», encontrável no primeiro volume dos Archives Littéraires de l’Europe, ou Melanges de Littérature, d’Histoire et de Philosophie, de 1804; e o de Alexandre-Marie Sané, «Coup d’oeil sur la littérature portugaise», em duas partes, divulgado em dois tomos do Mercure Étranger, ou Annales de la Littérature Étrangère, em 1813. Particularizam a obra assinada por Ferdinand Denis os seguintes fatores: a) dirige-se predominantemente ao público francês, o que dá continuidade ao trabalho que ele desenvolvia, ao publicar livros como O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 127 Le Brésil, ou Histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce royame, ou ao traduzir dramas portugueses para compor Obras-primas dos Teatros Estrangeiros. Este intuito manifesta-se desde as primeiras páginas de seu livro (Denis, 1826: VIII-IX. Tradução nossa): Um autor comparou com muita justeza o Portugal literário a uma destas ilhas, cujas praias são avistadas pelos navegadores, mas cujas riquezas ficaram completamente ignoradas. Bouterwek deu os primeiros passos, Sismondi o seguiu; contudo, consagraram a Portugal apenas uma pequena parte de suas estimáveis obras; devemos a eles as obrigações, como as que se devem aos primeiros exploradores que avistaram rapidamente, mas que avistaram primeiro: a história literária de Portugal ainda está por ser feita. Ocupando-me da obra que agora ofereço ao público, estou convencido de sua necessidade; surpreendido com as riquezas que se apresentavam diante de mim, ficou-me o pesar de só poder dar a conhecer uma pequena parte: desta vez, seria preciso reunir a maior parte dos documentos necessários a uma história literária antes de fazer seu resumo. Obrigado a rejeitar uma porção de detalhes, de examinar incessantemente sem poder dizer o que descobria, restou-me a certeza de ter feito sobre a literatura portuguesa um trabalho mostrando a necessidade de uma obra mais extensa. A minha talvez possa tornar-se de alguma utilidade aos amigos das Letras, porque sempre bebi nas fontes. b) com o objetivo de divulgar uma literatura que, segundo Denis, precisa ser tão conhecida quanto a espanhola, por exemplo, busca reproduzir o maior número possível de trechos das obras literárias, apresentadas em tradução, sinalizando, também por este ângulo, a preocupação com a difusão de um patrimônio cultural. c) as literaturas em língua portuguesa até então reconhecidas são divididas em dois grupos, considerando a procedência geográfica dos 128 REGINA ZILBERMAN escritores e o espaço de sua circulação. Assim, identifica um núcleo português e um núcleo brasileiro, dando visibilidade a esse último em um período em que o país acabara de conquistar, em 1822, e consolidar, em 1825, a emancipação política. Para compor o livro, Ferdinand Denis valeu-se, além da leitura das obras literárias que teve a seu alcance, de uma bibliografia secundária, constituída pelas fontes disponíveis a seu tempo, algumas já citadas: 1) a Biblioteca Lusitana, de onde retira a maior parte das informações biográficas relativas aos autores citados; 2) as histórias da literatura que examinaram as literaturas de Portugal e do Brasil, como as de Bouterwek e de Sismondi; 3) os prefácios, ensaios e estudos assinados por portugueses, como Correia da Serra e Timóteo Lecussan-Verdier, ou franceses, como Alexandre-Marie Sané e François-Juste-Marie Raynouard (1761-1836). A esse material relativo à Literatura Portuguesa, acrescentou sua própria pesquisa, extraindo informações sobretudo dos seguintes autores e obras: I) dentre o material de procedência portuguesa: I.a) a obra Europa Portuguesa, de Manuel de Faria e Sousa (1590-1649), bem como os livros desse autor dedicados à poesia de Camões: Rimas Várias de Luis de Camões e Lusíadas de Luís de Camões, edições, ambas, precedidas por uma «Vida do poeta», citada com frequência pelo historiador francês; I.b) as notas de Francisco Dias Gomes (1745-1795) a seus poemas, publicados postumanente no livro Obras Poéticas, de 1799; a Coleção de Livros Inéditos da História Portuguesa, organizada por Correia da Serra e publicada em 1790; os Discursos Políticos, de Manuel Severim de Faria (1583-1665), de 1624, republicados em 1791; I.c) os memoriais produzidos pela Academia Real das Ciências de Lisboa, publicados a partir de 1792, a saber: O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 129 – Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, onde se encontram a «Memória sobre a poesia bucólica dos poetas portugueses», de Joaquim de Foios (1733-1811), de 1797, e a «Memória sobre o teatro português», de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato (1777-1838), de 1817, trabalho este que embasa concepções e dados utilizados por Denis quando aborda a dramaturgia lusitana, expressa na coletânea preparada para a editora de Ladvocat e no Résumé; – Memórias de Literatura Portuguesa, em oito volumes, lançados entre 1792 e 1812, com consulta sobretudo aos ensaios «Análise e combinações filológicas sobre a elocução e o estilo de Sá de Miranda, Ferreira, Bernardes, Caminha e Camões», de Francisco Dias Gomes, «Ensaio sobre a Filologia Portuguesa por meio do exame e comparação da locução e estilo dos nossos mais insignes poetas, que floresceram no século XVI», de Antônio das Neves Pereira (17??-1818), e «Em defesa de Camões contra Monsieur de la Harpe», de Antônio de Araújo Azevedo (1754-1817); – História e Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, coleção publicada a partir de 1815, com referências particularmente aos estudos «Sobre o estabelecimento da Arcádia de Lisboa e sobre a sua influência na restauração da nossa literatura», de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, de 1819, «Memória histórica e crítica acerca de Fr. Luís de Sousa e das suas obras», de Francisco Alexandre Lobo (1763-1844), de 1823, e «Exame crítico das primeiras cinco edições dos Lusíadas», de Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821), de 1823. – a edição de Os Lusíadas promovida em 1817 por José Maria de Sousa Botelho (1758-1825), o Morgado de Mateus, cujo ensaio introdutório, «Vida de Camões», fomenta a biografia do poeta lusitano em Camões e José Índio e no Résumé. II) Dentre o material publicado na França: II.a) a obra do geógrafo e estatístico italiano Adriano Balbi (1782-1848), Essai statistique sur le royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de l’Europe, et suivi d’un coup d’oeil sur l’état 130 REGINA ZILBERMAN actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les productions portugais des deux hémisphères, de 1822, que lhe propiciou informações sobre os primeiros tempos da língua e da poesia em Portugal; II.b) os volumes dos Anais das Ciências, das Artes e das Letras, produzido por uma Sociedade de Portugueses Residentes em Paris, sob a direção de José Diogo Mascarenhas Neto (1752-1826), e publicado entre 1818 e 1822, II.c) os ensaios sobre literatura portuguesa lançados, desde o século XVIII, no Journal Étranger, periódico parisiense editado entre 1754 e 1764, que tinha Antoine François Prévost (1697-1763) entre seus diretores; em Les Soirées Littéraires, ou Mélanges de traductions nouvelles des plus beaux morceaux de l’antiquité, de pièces instructives et amusantes, françaises et étrangères, publicação periódica de textos clássicos e modernos, iniciada em 1795 e encerrada em 1801, sob a direção de Jean Marie Louis Coupé (1732-1818); no Mercure Étranger, periódico mantido entre 1813 e 1816, sob a direção de Louis-Mathieu Langlès (1763-1824), Amaury Duval (1760-1838) e Pierre-Louis Ginguené (1748-1816); no Journal de Savants, periódico nascido em 1665, onde François-Juste-Marie Raynouard publicou, em 1825, resenha sobre a tradução, por J. B. Millié (1772-1826), de Os Lusíadas, de Camões; II.d) a produção dos pesquisadores franceses dedicados aos assuntos lusófonos, alguns já citados: – Alexandre-Marie Sané, autor de Nouvelle grammaire portugaise, suivie de plusieurs essais de traduction française interlinéaire e de différentes morceaux de prose et de poésie, extraits des meilleurs classiques portugais, e estudioso e tradutor de poemas de Filinto Elísio, publicados em 1808, em Poésie lyrique portugaise, ou Choix des odes de Francisco Manuel, traduits en français, avec le texte en regard, précedées d’une notice sur l’auteur et d’une introduction sur la littérature portugaise, avec des notes historiques, géographiques et littéraires. Alexandre-Marie Sané publicou também resenha sobre O Hissope, poema herói-cômico de Antônio Dinis da Cruz e Silva, no Mercure Étranger, em 1813; O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 131 – François-Juste-Marie Raynouard, historiador, filólogo e dramaturgo, autor, entre outras obras, de Éléments de la grammaire de la langue romane (1816) e da Grammaire des troubadours (1816), autor também de Camões: ode, de 1819, que Ferdinand Denis reproduz ao final de seu Camões e José Índio; – Timóteo Lecussan-Verdier, autor da introdução a O Hissope, de Antônio Diniz da Cruz e Silva; Lecussan-Verdier traduziu ainda a l’Ode a Camoens, de François-Juste-Marie Raynouard, responsabilizando-se pelas notas que acompanham o texto, material consultado e referido no Résumé; – G. Hamonière (1789-18??), gramático francês, autor, entre outras obras, de Coleção de Pedaços em Prosa/ Recueil de morceaux en prose, extraído dos melhores autores franceses e portugueses, de 1818, da Grammaire portugaise divisés en quatre parties, de 1820, e da Grammaire espagnole divisée en quatre parties, de 1821. Quando examina a obra de Luís de Camões, Denis mobiliza a bibliografia francesa então disponível a respeito do épico português, destacando-se L’essai sur la poésie épique, que acompanha La Henriade, de Voltaire (1694-1778), e o verbete dedicado àquele na Biographie universelle, elaborado por Madame de Staël (1766-1817), em 1812. Recorre igualmente às traduções da epopeia lusitana, produzidas na França por Duperron de Castera (1705-1752), em 1735, por Jean-François de La Harpe (1739-1803) e Nicolas-Gabriel Vaquette d’Hermilly (17051778), em 1776, e por Jean-Baptiste Millié, em 1825, além de conhecer e citar a versão em inglês, de responsabilidade de William Julius Mickle (1735-1788), lançada entre 1771 e 1775. É na Histoire philosophique et politique des établisssemens et du commerce des européens dans les deux Indes, do abade Guillaume-Thomas Raynal (1711-1796), que o historiador francês localiza e referencia a tradução do «Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda», do jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), matéria de exame detalhado no capítulo XXIII. Obras de historiadores, como a de Alphonse Rabbe (1784(?)1829), Résumé de l’histoire de Portugal, e de viajantes, como as de 132 REGINA ZILBERMAN Charles François Dumouriez (1739-1823), État present du Royaume de Portugal en l’année 1766, de 1775, e Campagnes du Maréchal Schomberg en Portugal, de 1662 a 1668, de 1807, de Heinrich Friedrich Link (1767-1851), Voyage en Portugal depuis 1797 jusqu’en 1799 (cujo capítulo XXXVIII, do volume 2, intitula-se «Sur la littérature et la langue portugaise»), lançada originalmente em alemão entre 1803 e 1805, e de Jean François Bourgoing (1748-1811), Voyage du ci-devant duc Du Châtelet en Portugal, de 1801, igualmente subsidiaram a pesquisa de Ferdinand Denis. Optando por alinhar seu texto à História da Literatura, citada no título do livro e gênero emergente nas décadas finais do século XVIII, mas consolidado nas primeiras décadas do XIX, Denis não perdeu de vista as obras que, na ocasião, estruturavam esse campo intelectual, como as de: – Pierre-Louis Ginguené, crítico literário e musical, encarregado, à época de Napoleão Bonaparte (1769-1821), de escrever a história literária da França, contribuindo com os volumes que apareceram em 1814, 1817 e 1820. Seu trabalho mais importante, modelado a partir da obra de Girolamo Tiraboschi (1731-1794), é Histoire littéraire d’Italie, em 14 volumes, publicado entre 1811 e 1835, sendo os últimos volumes escritos por Francesco Salfi (1759-1832) e revisados por Pierre Danou (1761-1840); – Juan Andrés (1740-1817), padre jesuíta espanhol, que redigiu, em sete volumes, Dell’Origine del Progressi e dello Stato Attuale d’ogni Letteratura (1782-1799), em que há referências às letras portuguesas. A confluência dessas obras e do pensamento romântico em ascensão a seu tempo, de que é exemplo a história da literatura elaborada por Simonde de Sismondi, determinou os paradigmas e valores por meio dos quais Denis organiza seu material e qualifica o universo literário com que se depara. O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 133 3. A história da literatura Destacam-se três aspectos que balizam as posições assumidas por Ferdinand Denis, ao organizar e avaliar o patrimônio literário em língua portuguesa: a) a divisão por nacionalidades e a opção pela ordem cronológica. O autor do Resumo segue as palavras de ordem de seu tempo, compondo sua obra a partir da divisão em nacionalidades distintas, razão porque separa os conjuntos lusitano e brasileiro. Cada um deles é ordenado segundo cronologias que lhes seriam próprias (sem que as entrecruze ou compare), apresentada em perspectiva crescente, sendo as repartições determinadas pelos séculos. O século XVI, por exemplo, época marcada pelo sucesso das grandes navegações e pelo aparecimento de poetas e dramaturgos do porte de Sá de Miranda (1481/1485?1558?), Luís de Camões, Antônio Ferreira (1528-1569), historiadores como Damião de Góis (1502-1574), João de Barros (1496-c. 1570) e Diogo do Couto (1524-1616), humanistas como Jerônimo Osório (15141580), será qualificado como «o grande século», emulando a classificação adotada pela literatura francesa, que confere esse atributo ao período de Luís XIV (1638–1715). Quando os recortes literários não coincidem com os segmentos de tempo, Ferdinand Denis recorre a conceitos como os de transição, por exemplo, garantindo, por meio deste expediente, a articulação entre as épocas. Ao lado do recorte cronológico, encontra-se o critério evolutivo, já que a literatura pode avançar – por exemplo, da «barbárie» dos séculos anteriores ao XVI ao progresso corporificado por essa época – ou então decair, estando o declínio assinalado pela imitação dos nomes do passado, pela perda da autenticidade ou pela rejeição da língua materna. Sob esse aspecto, a produção do século XVII é modelar, pois são muitos os emuladores de Camões, bem como os escritores lusitanos que redigem em castelhano. Compõe ainda esse quadro historiográfico o relacionamento entre a produção literária e os eventos políticos. Assim, a formação do Estado português, entre os séculos XIV e XV, virá acompanhada de uma 134 REGINA ZILBERMAN literatura ainda primitiva, que não se realizou plenamente até porque não encontrou a língua em que se expressar, sendo o emprego do galego, por exemplo, considerado sintoma da rudeza primeva. Quando Portugal torna-se uma das principais potências da Europa e ocupa posição de liderança no que diz respeito às conquistas ultramarinas, a literatura é pujante e original, servindo de inspiração para seus vizinhos geográficos, como a Espanha e a Itália. Quando Portugal perde a autonomia, passando a fazer parte do império filipino, a literatura decai, a língua portuguesa ocupa um segundo plano, prevalece a imitação. Ferdinand Denis pode não ter inventado esse formato de compor a história da literatura, aliás hegemônico até o século XX, mesmo quando a divisão em séculos foi substituída pela repartição em escolas e estilos literários. Mas aplicou-o de modo disciplinado e coerente, mostrando-se bom discípulo dos historiadores da literatura que o precederam. b) Caráter nacional, cor local e manifestação da emoção alçados a critérios de avaliação. A divisão das literaturas por recortes geográficos não constitui apenas um critério de organização do material; ele precisa corresponder à marca de nacionalidade. Assim, se produzidas no espaço português, a poesia, a prosa e a dramaturgia lusitanas devem expressar o universo de onde provêm, traduzido especialmente pelo ambiente físico. Daqui emerge a cor local, exigência que atravessa o Résumé e que pode servir para valorizar positiva ou negativamente uma obra. A cor local atesta o caráter nacional, e a manifestação desse afiança a qualidade, mesmo quando falham os elementos composicionais. Assim, não apenas significa possibilidade de ajuizar, mas também de resgatar obras, incorporando-as à história da literatura, vale dizer, ao cânone, na terminologia contemporânea. Ferdinand Denis é bastante rigoroso a respeito deste critério; quando a cor local não pode ser identificada, resta uma única alternativa –a manifestação de autêntica emoção por parte de um criador. A expressão de sentimentos espontâneos por parte dos escritores pode redimi-los de outros erros, e não são poucos os casos em que Denis apela para essa alternativa. O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 135 Sentimentos legítimos, por sua vez, são os de índole amorosa; como, segundo Denis, os poetas são as pessoas mais propensas à paixão, nada mais provável que uma literatura plena de experiências afetivas para se mostrar verdadeira, digna de crédito e elogiável. Por causa disso, a poesia assume perfil autobiográfico, e essa associação entre vida e criação literária é constante no Résumé, sendo a lírica de Luís de Camões a demonstração mais cabal das concepções de Ferdinand Denis. c) O possível interesse do público francês. O Résumé foi redigido para orientar o público francês na direção da literatura portuguesa. Ferdinand Denis já se responsabilizara pelas traduções do teatro lusitano, e talvez entendesse que poderia alargar esse mercado, chamando a atenção dos leitores para um material até então praticamente desconhecido. À época de lançamento de sua obra, Denis podia contar com poucos livros editados em sua língua materna –os Lusíadas, de Camões,5 Marília de Dirceu,6 de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810)–, ao lado do reaproveitamento de mitos de procedência lusitana, como o de Inês de Castro, inspirador das tragédias de Antoine Houdar de La Motte (1672-1731), de 1723, e de Firmin Didot (17641836), La reine de Portugal, de 1824. Mas a esfera de circulação de obras portuguesas traduzidas em território francês não ultrapassava esse limite estreito. Por essa razão, justifica a validade de sua matéria e preocupa-se em citar em francês trechos das obras, providenciando, ele mesmo, as traduções. Lamenta quando falta espaço para a inclusão de maior número de excertos, e observa seguidamente o quanto os lusitanos anteciparam a literatura de outras nações, destacando sobretudo os avanços do século XVI, quando Portugal não apenas expandiu-se territorialmente, mas foi capaz também de oferecer à Europa modelos de poemas épicos, 5 Cf. La Lusiade de Camoens: poeme heroique sur la decouverte des Indes Orientales. Trad. de Duperron de Castera. Paris: Huart, 1735. 3v. La Lusiade de Louis de Camoëns. Poëme héroïque, em diz chants. Trad. de Jean-François de La Harpe e Nicolas-Gabriel Vaquette d’Hermilly. Paris, Nyon aîné, Librairie, 1776. Les Lusiadas ou Les Portugais, poeme de Camoëns en dix chants: traduction nouvelle, avec des notes, par J. B. Millié. Paris: Firmin Didot, 1823-1824. 6 Cf. Marilie. Chants élégiaques de Gonzaga. Trad. de E. de Moglave e P. Chalas. Paris: Panckoucke, 1825. REGINA ZILBERMAN 136 graças a Luís de Camões e Jerônimo Corte Real (1530?-1588), de teatro sacro e profano, graças a Gil Vicente (1469?-1536?) e Antônio Ferreira, de historiografia, graças a Jerônimo Osório, o humanista que coloca em primeiro lugar entre suas predileções, João de Barros e Damião de Góis. Assim sendo, o Résumé pode ser classificado como Literatura Portuguesa –ou do Brasil, conforme o caso– para estrangeiros, em uma época em que a França efetivamente abria espaço para a integração com outras culturas da Europa, da Ásia e da América. O Résumé, contudo, não alcançou o público desejado; seus principais cultores situavam-se no Brasil, onde o livro obteve alguma repercussão, especialmente entre a primeira geração romântica. Por outro lado, Ferdinand Denis não perdeu seu tempo: continuou a fornecer traduções para o francês, como as de Inês de Castro e O Cioso, publicadas em 1835 em Le théâtre portugais, de 1835, e a redigir prefácios a publicações de obras de autores lusitanos, como «Antonio Diniz da Cruz e Sylva, notice biographique», prólogo à Le goupillon (O Hissope), de 1867. 4. Questões de ordem metodológica Passados quase duzentos anos desde a publicação da única edição dos Résumés, pode parecer que proceder à sua tradução e comentários, com notas explicativas, é trabalho de antiquário. Machado de Assis (1880: 254-255), pela voz de Brás Cubas, descreve essa figura em um dos capítulos de Memórias Póstumas: Olhae: daqui a setenta annos, um sugeito magro, amarello, grisalho, que não ama nenhuma outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a pagina anterior, a ver se lhe descobre o desproposito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, sacca uma syllaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fóra, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mesmo desproposito. O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 137 É um bibliomano. Não conhece o autor; este nome de Braz Cubas não vem nos seus diccionarios biographicos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um buquinista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquizou, esgaravatou, e veiu a descobrir que era um exemplar unico... Unico! Vós, que não só amaes os livros, senão que padeceis a mania delles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhaes, portanto, as delicias de meu bibliomano. Elle regeitaria a corôa das Indias, o papado, todos os muzeus da Italia e da Hollanda, se os houvesse de trocar por esse unico exemplar; e não porque seja o das minhas Memorias; faria a mesma cousa com o Almanak de Laemmert, uma vez que fosse unico. O peor é o desproposito. Lá continúa o homem inclinado sobre a pagina, com uma lente no olho direito, todo entregue á nobre a aspera funcção de decifrar o desproposito. Já prometteu a si mesmo escrever uma breve memoria, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquella phrase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se á janella e mostra-o ao sol. Um exemplar unico! Nesse momento passa-lhe por baixo da janella um Cesar ou um Cromwell, a caminho do poder. Elle dá de hombros, fecha a janella, estira-se na rede e folhea o livro de vagar, com amor, aos goles... Um exemplar unico! Essa impressão, porém, não se confirma em decorrência de, pelo menos, dois aspectos: a) o Résumé teve grande impacto sobre os intelectuais brasileiros da primeira geração romântica, que copiaram muitas de suas afirmações sobre a necessidade de a literatura exibir um caráter nacional e dar vazão à cor local. Embora Ferdinand Denis não tenha sido o único a tomar essa posição –que se encontra igualmente no «Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa», de Almeida Garrett (Garrett, 1826), prólogo do Parnaso Lusitano, de 1826– suas ideias foram utilizadas para reiterar a importância do trabalho pioneiro concretizado, por exemplo, por Gonçalves de Magalhães (1811-1882) nos anos 30 do século XIX. Também em Portugal a repercussão do trabalho de Denis foi notável, conforme testemunha o necrológio publicado em O Ocidente, parcialmente repro- 138 REGINA ZILBERMAN duzido aqui na epígrafe. Logo, a interpretação da formação do cânone das literaturas em língua portuguesa não pode descartar a presença de um de seus fundadores mais atuantes. b) os critérios empregados por Ferdinand Denis foram provavelmente os que mais impregnaram a História da Literatura enquanto gênero literário e área de conhecimento. A História da Literatura, alinhada à História, de que passou a constituir um de seus ramos, assenta-se, desde seu aparecimento, em um princípio cronológico, narrando os inícios, as transformações e os modos como desemboca no presente. Enquanto gênero literário, corresponde ao das grandes narrativas (Lyotard, 1986), elegendo um início mítico –a fundação (Zilberman, 1994), a que se segue uma trajetória ascendente até, de preferência, a atualidade do historiador que a redige e do público visado. Adota, por causa disso, foco evolutivo, calcada sobre a noção de progresso (ou o seu avesso, o declínio), utilizada para evidenciar as mudanças ocorridas nos planos, de um lado, artístico, de outro, político. À grade temporal associa-se uma proposição de ordem judicativa –a representação do caráter nacional, decorrente da manifestação espontânea da cor local. É por ocasião do Romantismo que o caráter nacional alça-se à condição de palavra de ordem da expressão artística, afetando sua produção e recepção. O vínculo não é ocasional, pois o período assiste à emergência e consolidação do Estado-nação, cuja territorialidade é garantida não apenas pela conformação de uma comunidade imaginada, conforme conceituação de Benedict Anderson (1989), mas também por uma cultura, dentre a qual sobressai a literatura, que, por meio de tipos humanos, uma história e uma natureza, valida a verdade de sua existência, origem e propagação. A História da Literatura participou intensamente deste projeto, narrando como esse caráter nacional se apresenta na obra de autores locais. Como migrou para o ensino e ali se instalou com bastante propriedade, segundo observação de Hans Robert Jauss (1969; 1970; 1973), O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 139 fortaleceu-se e, assim, sobreviveu às mudanças políticas, sociais e ideológicas que levaram à falência do Estado-nação de onde recebia seus principais insumos. Por isso, muitos critérios originalmente propostos pela História da Literatura permaneceram, sobretudo em conjuntos literários em que a busca de autonomia e autenticidade persiste, como ocorre a algumas das expressões nacionais das literaturas de língua portuguesa. Assim, a questão permanece viva na Literatura Brasileira e retorna, com alguma intensidade, na formatação das histórias das literaturas das emergentes nações africanas de língua portuguesa. Nada mais pertinente, pois, do que buscar no Résumé, de Ferdinand Denis, uma das pontas dessa rede de relações que embasa a produção, a circulação, o consumo e a recepção das literaturas de língua portuguesa. Além disso, o livro de Ferdinand Denis colabora para uma reflexão sobre a natureza e a trajetória da História da Literatura enquanto gênero literário e campo de investigação, campo este que contou com o precioso subsídio da escola e do ensino para sua consolidação. Reconhece-se em Hans Robert Jauss uma das lideranças relativamente a uma tomada de posição quanto à natureza e trajetória da História da Literatura. Em ensaios produzidos entre o final dos anos 1960 e começo dos 1970, ele examinou não apenas as causas da decadência da História da Literatura enquanto disciplina, mas também as aporias que a levaram ao declínio, em uma época em que se presenciava a hegemonia quase incontestável do Estruturalismo, em especial na Europa Ocidental. Jauss atribuiu à Estética da Recepção, posicionamento teórico e sobretudo metodológico de que era o principal porta-voz, a possibilidade de superar os dilemas com que se deparavam os estudos históricos dirigidos à literatura no âmbito da pesquisa e da docência. Praticante da ciência de que era o fundador e mais renomado expoente, Jauss foi capaz de renovar as possibilidades de exame da obra literária desde uma perspectiva histórico-estética que não repetisse os, na sua opinião, equívocos do passado. Talvez não tenha dado completamente conta da tarefa, mesmo porque não evitou reproduzir alguns dos pecados cometidos por uma 140 REGINA ZILBERMAN ciência da literatura circunscrita ao âmbito do texto. Ainda que valorizasse a leitura e a recepção enquanto horizonte resultante das interpretação de uma obra ao longo do tempo, nunca se deteve na materialidade da produção de um livro impresso, nas diversidades de público, no modo de funcionamento dos negócios artísticos. A recusa em levar em conta a literatura de massa, os meios de reprodução mecânica, as condições de circulação dos objetos artísticos enquanto mercadoria encolheu seu enfoque, fazendo-o provar o próprio veneno. Contudo, não se pode negar o papel desempenhado pela Estética da Recepção no processo de resgate da História da Literatura, e toda pesquisa que eleja uma obra pertencente a esse gênero não pode deixar de revisar os aportes metodológicos oferecidos por Hans Robert Jauss ao longo de sua trajetória acadêmica. Por outro lado, também não é mais possível deixar de articular tais pressupostos às linhas de investigação que se expandiram ao longo das décadas de 1980 e 1990, associadas, de uma parte, à História da Leitura e do Livro, de outro, ao Desconstrutivismo, aos Estudos de Gêneros e aos Estudos Pós-Coloniais, enquanto alternativas de polemização do cânone, incluindo-se aí questões relativas à sua formação, imposição e derrocada. A esses aspectos, de ordem teórica e metodológica, soma-me o ângulo prático decorrente do objetivo de traduzir e comentar a obra de Ferdinand Denis, e sobretudo entender seu autor. Proceder à tradução de Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil que Ferdinand Denis produziu e publicou em 1826, com 28 anos, significa compreender o leitor que ele foi até a época em que redigiu sua obra. Ou, colocado em outros termos, corresponde a desenhar o horizonte de possibilidades de leitura das literaturas em língua portuguesa naquele período de renovação de um dos conjuntos –o de Portugal– e de formação ou afirmação de outro –o do Brasil. Sob esse aspecto, Denis não se configura enquanto um leitor idiossincrático ou privilegiado, mas se evidencia como um expoente do que o(s) sistema(s) literário(s) português e brasileiro poderia(m) oferecer a um letrado no tempo em que se alicerçavam suas respectivas identidades e diferenças. O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: 141 Para alcançar esse resultado, de ordem interpretativa, cabe: – acompanhar sua pesquisa; – identificar o material que ele teve à disposição na época, depois de suas passagens pelo Brasil e por Portugal e então residindo em Paris; – discriminar o que corresponde a leituras pessoais e o que consiste repetição de juízos anteriores, decorrentes muitas vezes do fato de o historiador não dispor dos originais, como se passa, por exemplo, no capítulo dedicado às peças escritas e encenadas por Gil Vicente (Zilberman, 2006a); – apontar como ele interpretou e avaliou as obras lidas; – reconhecer a ação que exerceu sobre ele, de um lado, a emergente crítica romântica, representada por Staël e Sismondi, de outro, a formação clássica de que foi objeto, sintetizada na poética de Boileau (1636-1711), então ainda vigente. Dessa maneira, torna-se necessário recuperar suas fontes, expressas por suas leituras, que se manifestam em citações diretas e indiretas. A identificação das fontes nem sempre é tarefa de fácil execução, pois se verificam citações incompletas, truncadas e até equivocadas, ao lado de traduções que muitas vezes não correspondem ao original, já que o autor procede a reduções e simplificações semânticas, sobretudo ao verter versos para prosa. De todo modo, trata-se de um trabalho que supõe um posicionamento retrospectivo, ao procurar evidenciar como, de forma específica, se constitui o campo literário em língua portuguesa, e, de forma geral, como opera a construção de um cânone desde a elaboração de uma história da literatura. E que supõe igualmente um posicionamento prospectivo, pois induz a uma reflexão sobre as possibilidades de elaboração de uma História da Literatura que, na era do declínio e do esgotamento do Estado-nação, disponha de parâmetros e ferramentas para se reinventar, suplantando seu compromisso com as grandes narrativas, sem abrir mão da identificação e do exame da historicidade e materialidade da literatura. 142 REGINA ZILBERMAN Afiançado esse resultado, o pesquisador talvez suplante os perigos que cercam o «bibliomano» desenhado por Machado de Assis, ao mesmo tempo em que justifica a ciência que pratica, sem ter de abandonar o foco dirigido para o tempo passado e para, às vezes, terras distantes. REFERÊNCIAS ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. trad. Lólio Lourenço de OLIVEIRA. São Paulo. Ática, 1989. ASSIS, Machado de. Memorias Posthumas de Braz Cubas. Revista Brasileira. Rio de Janeiro. Ano II. tomo V, 13 de agosto de 1880. 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VEREDAS 19 (Santiago de Compostela, 2013), pp. 145-176 Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: a gramaticografia portuguesa à luz da gramaticografia latinoportuguesa nos séculos XV a XIX ROLF KEMMLER Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro RESUMO A modos de servir como ponto de partida de futuros estudos, o presente artigo visa enquadrar a gramaticografia latino-portuguesa dentro do âmbito das obras metalinguísticas dedicadas à língua portuguesa. Ao procurar respostas sobre a velha questão das origens ideológicas das gramáticas portuguesas supostamente mais tradicionais, visa-se fornecer algumas achegas de como o trilho de um reforço da investigação na gramaticografia latino-portuguesa poderá ser esclarecedor para a gramaticografia da língua portuguesa. Para isso, o artigo considera os manuais metalinguísticos portugueses e latino-portugueses conhecidos desde finais do século XV até 1834, quer tenham sido impressos em Portugal ou escritos por autores portugueses, tendo sido publicados no estrangeiro. Com base no levantamento bibliográfico em que são destacadas as principais obras das duas tradições, procura-se estabelecer uma visão global da produção metalinguística portuguesa e latino-portuguesa naquele período Palavras-chave: Historiografia Linguística; Gramática; Ortografia; Português; Latim. ROLF KEMMLER 146 ABSTRACT In order to serve as a starting point for future studies, the present paper aims to fit the Latin-Portuguese grammaticographic tradition within the scope of metalinguistic works dedicated to the Portuguese language. While searching for answers to the ancient question of the ideological origins of the supposedly ‘more traditional’ Portuguese grammars, some lines are provided that illuminate how the trail of an increase in investigation in Latin-Portuguese grammaticography might be enlightening for Portuguese grammaticography . For this means, the paper considers the known Portuguese and Latin-Portuguese metalinguistic manuals since the late fifteenth century until 1834, be they printed in Portugal or written by Portuguese authors, having been published abroad. Based on the bibliographic survey in which the more essential works of the two traditions are highlighted, a comprehensive overview of the Portuguese and Latin-Portuguese metalinguistic production at that time is undertaken. Keywords: Historiography of Linguistics, Grammar; Spelling; Portuguese; Latin 1. Introdução Quatro décadas após a impressão da primeira gramática de uma língua vernácula, nomeadamente a Gramática de la lengua Castellana (1492) do espanhol Elio Antonio de Nebrija (1444-1522), a história da linguística portuguesa teve o seu início com a publicação da Grammatica da lingoagem Portuguesa (1536) de Fernão de Oliveira (1507-ca.1581) e da Grammatica da Lingua Portuguesa (1540) de João de Barros (1496-1570). No entanto, é de constatar que à divulgação de gramáticas em vernáculo cabia somente um papel secundário em toda a Europa renascentista, visto que a língua dominante no sistema de ensino (e também na maioria da produção metalinguística) era o latim, que continuou a preencher um papel preponderante até meados do século XIX. Alguns dos aspetos essenciais relacionados com a tradição gramatical da língua portuguesa desde o século XVI até ao século XIX foram estudados nos trabalhos monográficos de Schäfer-Prieß (2000), Moura (2012) e Santos (2010), sendo, para além disso, de destacar os trabalhos de Assunção (2000), Fernandes (2002), Moura (2002) e Kemmler (2007) que se debruçam sobre algumas obras em particular. Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 147 Graças a estes trabalhos académicos e ao número cada vez maior de artigos científicos publicados em livros de atas, miscelâneas e revistas científicas, dispomos de uma compreensão cada vez maior do desenvolvimento dos primeiros séculos da gramaticografia portuguesa. Os estudos até agora dedicados à gramaticografia histórica portuguesa já permitiram algumas conclusões, se bem que preliminares, sobre o enquadramento de algumas das obras estudadas dentro da tradição portuguesa e mesmo europeia. Se é verdade (como comprovaram Schäfer-Prieß 2000 e Santos 2010) que as gramáticas mais inovadoras sobretudo da primeira metade do século XIX foram beber à fonte de autores franceses, representantes das várias correntes da grammaire génerale, julgamos que as gramáticas latino-portuguesas –e entre elas especialmente as que têm o português como metalinguagem– poderão fornecer respostas à pergunta sobre as origens ideológicas das gramáticas supostamente mais tradicionais. É neste sentido que visamos fornecer algumas achegas de como o trilho de uma investigação na gramaticografia latino-portuguesa poderá ser esclarecedor para a gramaticografia da língua portuguesa. A seguir, apresentaremos as obras pertencentes às duas tradições, das quais temos notícia certa, quer por via dos livros originais, de reproduções, quer por consulta de catálogos de bibliotecas públicas.1 2. Tratados metalinguísticos dedicados à língua portuguesa Desde os primórdios da gramaticografia portuguesa, deparamos com uma atividade algo reduzida. Assim contam-se no século XVI os seguintes quatro tratados metalinguísticos dedicados à língua portuguesa: 1 Utilizámos a Historiografia Gramatical (1500-1920) de Simão Cardoso (1994) como ponto de partida, conferindo as referências às localizações com base nos catálogos on-line das bibliotecas consultadas. Não serão referidas as obras das quais não conseguimos localizar qualquer exemplar. Por razões de pertinência, somente são consideradas obras impressas para o presente estudo, dado que as obras manuscritas conservadas não chegam a fornecer uma imagem representativa da produção metagramatical naqueles séculos. 148 ROLF KEMMLER – Fernão de Oliveira: Grammatica da lingoagem portuguesa (1536)2 – João de Barros: Grammatica da lingua Portuguesa (1540)3 – Pero de Magalhães de Gandavo: Regras que ensinam a maneira de escrever e Orthographia da lingua Portuguesa, com hum Dialogo que adiante se segue em defensam da mesma lingua (1574)4 – Duarte Nunes de Leão: Orthographia da Lingoa Portvgvesa (1576)5 Entre as obras quinhentistas observa-se, portanto, que somente duas são identificadas como gramáticas (incluindo, no entanto, considerações sobre a ortografia portuguesa), ao passo que as outras duas obras devem ser classificadas como tratados metaortográficos independentes. Também para o século XVII a situação não é muito diferente, pois conhecem-se somente as seguintes obras: – Amaro de Roboredo: Methodo grammatical para todas as lingvas (1619)6 2 Depois de um longo intervalo, a obra de Oliveira chegou a ser impressa somente no ano de 1871 por iniciativa por Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca (1809-1876), o primeiro Visconde de Azevedo, e Tito Augusto Duarte de Noronha (1834-1896). Durante o século XX, a obra foi reeditada várias vezes. Um dos projetos de edição mais recentes desta gramática é a nona edição, publicada em 2007 por Amadeu Torres (1924-2012) e Carlos Assunção. 3 A obra de João de Barros (ca. 1496-1570) somente teve reedições póstumas, datando a segunda edição de 1785. A terceira edição de 1971 reúne um estudo introdutório por Maria Leonor Carvalhão Buescu (cf. Buescu em Barros, 1971), uma edição dos textos e o facsímile das obras didáticas de João de Barros, uma vez que estas hoje em dia se encontram conservadas em bibliotecas diferentes. 4 Ainda no século XVI, o tratado metaortográfico de Gandavo chegou a ser inserido no compêndio didático de Manuel Barata, o que se pode verificar na edição recente (Barata, 2009). Para além disso há duas edições do texto de 1961 (Emmanuel Pereira Filho) e de 1969 (Rolf Nagel), bem como uma edição fac-similada de 1981 (cf. Kemmler, 2001: 169-170). 5 Desde a segunda edição póstuma (Leão, 1784), esta obra vem acompanhada pela obra Origens da Lingoa Portuguesa (11606), de maneira que o conjunto passa a ser intitulado desde então Origem e Orthographia da Lingoa Portugueza (31864, 41983; cf. Kemmler, 2001: 175177). 6 Sem qualquer reimpressão contemporânea, a obra de Roboredo foi sujeita a duas edições facsimiladas, (22002, 32007). Esta última deve ser considerada a edição mais completa uma vez que os esforços investigativos de Gonçalo Fernandes permitiram a inclusão do suplemento intitulado «Recopilaçam da grãmatica portugueza, e latina, pela qual com as 1141 sentenças Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 149 – Alvaro Ferreira de Vera: Orthographia, ov modo para escrever certo na lingua portuguesa (1631) – João Franco Barreto: Orthographia da lingva portvgveza (1671)7 – Bento Pereira: Regras Gerays, breves, & comprehensivas da melhor orthografia com que se podem evitar erros no escrever da lingua Latina, & Portugueza: Para se ajuntar â Prosodia (1666)8 – Bento Pereira: Ars grammaticæ pro lingua lusitana addiscenda latino idiomate proponitur (1672)9 Dentro das obras seiscentistas que a tradição historiográfico-linguística portuguesa costuma contar entre as obras pertencentes à tradição vernácula, encontramos, em primeiro lugar, com o Methodo grammatical uma gramática que –apesar de uma preocupação notável com a língua portuguesa– julgamos seria tratada de forma mais adequada se viesse a ser classificada como pertencendo à tradição latino-portuguesa. De forma semelhante, a inserção da Ars grammaticæ dentro das gramáticas portuguesas é problemática, por ficar evidente que se trata de uma das primeiras gramáticas do português como língua estrangeira (PLE). Parece evidente que a intenção pedagógica do autor teria sido fornecer um manual metalinguístico para um público maioritariamente não-lusófono, optando para este efeito por utilizar o latim como metalinguagem. Por causa da metalinguagem julgamos lícito incluir também esta obra na tradição latino-portuguesa, já que esta deveria ainda ser considerada como pertencente aos manuais de PLE. insertas na arte se podem entender ambas as linguas» que se encontra entre as páginas 78 e 79 da obra de Roboredo, e que falta na maioria dos exemplares hoje conhecidos. 7 Para aspetos gramaticais na obra de Barreto, cf. o artigo recente de Ponce de León Romeo (2006a). 8 Pouco tempo depois, o mesmo gramático jesuíta aproveitou parte do conteúdo deste opúsculo no âmbito de uma tradução parcial latina dentro da Ars grammaticæ (1672). Para além disso o tratado metaortográfico chegou a ser reeditado postumamente em 1733 (cf. Kemmler, 2001: 194). 9 A gramática de Bento Pereira teve uma reedição póstuma debaixo do título Grammatica Lvsitana: Latino Idiomate Proposita, et in qvinqve classes, instrvctas, svbsellvs recto ordine distribvtis, divisa, vt ab omnibvs, tvm domesticis tvm exteris freqventari possint (Lisboa, 1806). 150 ROLF KEMMLER Deixando de lado o fantasma bibliográfico das Regras da orthographia portugueza (1615) de Amaro de Roboredo, uma publicação avulsa da qual parece não restar qualquer vestígio,10 conhecem-se três tratados metaortográficos do século XVII. De entre estas obras, o tratado bastante volumoso de Barreto (1671) constitui a primeira obra metalinguística a dedicar-se a aspetos da descrição gramatical da língua portuguesa. No atinente à produção do século das luzes em Portugal, julgamos pertinente considerar uma divisão entre o período joanino e o período josefino ou pombalino.11 No primeiro período do século XVIII chegaram a ser publicadas as seguintes obras metalinguísticas: – Jerónimo Contador de Argote: Regras da lingua portugueza, Espelho da lingua Latina, ou disposiçam para facilitar o ensino da lingua Latina pelas regras da Portugueza (1721, 1725)12 – João de Morais Madureira Feijó: Orthographia, ou Arte de escrever, e Pronunciar com acerto a Lingua Portugueza (1734, 1739) 10 Já constatámos em Kemmler (2001: 188) que não nos fora possível encontrar qualquer vestígio desta publicação. Fruto da investigação mais pormenorizada sobre a obra roborediana de Gonçalo Fernandes e Carlos Assunção (2007: XV) constatam o seguinte: «As Regras, ainda hoje desaparecidas, eram, para o P.e Francisco Alves (Abade de Baçal), constituídas apenas por uma “uma folha raríssima” (1931: 449), que o P.e Vitorino José da Costa, sob o pseudónimo Bento da Vitória, (re-)edita, mais de um século depois, possivelmente em 1738». 11 Esta periodização já foi apresentada na introdução do artigo intitulado «Iluminismo e pensamento linguístico em Portugal» (Gonçalves, 2006: 2-3) com as seguintes palavras: «Em Portugal, o século XVIII divide-se em dois momentos políticos bem distintos: por um lado, o período joanino, culturalmente assinalado pela magnificência régia, possível graças aos réditos do ouro brasileiro que propiciou obras extraordinárias; por outro lado, o período josefino ou pombalino, mais ligado à acção do famoso Ministro do que ao próprio Rei». Como se sabe, o reinado de D. João V durou de 1707 até 1750, seguindo-se os reinados de D. José (1750-1777) e D. Maria I (1777-1816, sendo regente o príncipe e futuro rei D. João VI desde 1792). Considerando que o surgimento de novas obras metalinguísticas se deve sobretudo ao reformismo pombalino em todos os níveis de ensino (isto é, no ensino primário, secundário e superior), julgamos pertinente incluir os anos pós-pombalinos 1777 até 1799 no período pombalino. 12A primeira edição foi publicada debaixo do pseudónimo «Padre Caetano Maldonado da Gama». Como comprovámos em Kemmler (2012b) com base em dados biográficos e genealógicos, não cabe qualquer dúvida de que este pseudónimo somente poderá corresponder a D. Jerónimo Contador de Argote. A segunda edição da gramática (Argote, 1725) já foi publicada sob o verdadeiro nome do autor. Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 151 – Luís Caetano de Lima: Orthographia da lingua portugueza (1736). Dentro destas obras torna-se desde logo evidente que tanto a gramática de Jerónimo Contador de Argote (1676-1749)13 como a ortografia de Luís Caetano de Lima (1671-1757) foram elaboradas por clérigos regulares teatinos que ambos eram sócios-fundadores da Academia Real da História Portuguesa (1720-1776). Já a ortografia de Feijó, por mais volumoso que fosse o tomo, é o complemento ortográfico ao cartapácio da Arte explicada (1728-1732) do mesmo autor. No período pombalino, a produção de tratados metalinguísticos dedicados à língua portuguesa somente começa relativamente tarde, isto é, em finais da década de sessenta, adquirindo, a partir daí, alguma importância: – Luís do Monte Carmelo: Compendio de orthografia [...] (1767) – João Pinheiro Freire da Cunha: Breve tratado da orthografia para os que não frequentaram os estudos (1769)14 – António José dos Reis Lobato: Arte da grammatica da lingua portugueza (1770)15 13É digno de nota que a gramática de Argote foi a primeira gramática da língua portuguesa a ter mais do que uma edição em tempo de vida do autor. Entre as principais alterações da primeira para a segunda edição deve-se contar a introdução da quarta parte (relativa à variação diassistemática da língua portuguesa, cf. Argote 1725: 291-309) e de um breve tratado ortográfico (Argote, 1725: 341-356). 14A primeira edição foi publicada sob o pseudónimo «Domingos Dionísio Duarte Daniel». Já a segunda edição vem atribuída ao verdadeiro autor que intervém pessoalmente no processo censório (cf. Kemmler, 2007: 135). Houve um total de nove edições, tendo as últimas três sido publicadas após a morte do autor em 1811 (71813, 81814, 91815). 15Fruto de ampla investigação bibliográfica, na sua monografia de 2000, Carlos Assunção conseguiu identificar quarenta edições da Arte de Lobato. Observa-se, no entanto, que o universo das edições lobatianas ainda é mais diverso, uma vez que de vez em quando surgem edições, cuja localização anteriormente não tinha sido possível. Um dos exemplos mais chamativos é a existência de Lobato (1792) que no rosto é identificada como ‘terceira impressão’ (no entanto depois de 1770, 1771 e 1788) e que julgamos deve ser considerada como a edição de última mão por constar que o gramático já estava morto em 1794 (cf. Kemmler, 2006: 100-103). 152 ROLF KEMMLER – Bernardo de Lima e Melo Bacelar: Grammatica philosophica, e orthographia racional da Lingua Portugueza; Para se pronunciarem, e escreverem com acerto os vocabulos d’este idiôma (1783)16 – Francisco Félix Carneiro Souto-Maior: Orthographia da lingua portugueza, ou regras para escrever certo (1783) – Francisca de Chantal Álvares: Breve Compendio da grammatica portugueza (1786) – Francisco Nunes Cardoso: Arte, ou novo Methodo de ensinar a ler a Lingua Portugueza, a que se prepoim hum novo Systema da sua Orthografia, dedicada á Critica Portugueza (1788) – Francisco Nunes Cardoso: Exame critico das Regras da Orthografia Portugueza. Mais acrescentado, e a que tambem se ajunta a Arte da mesma Orthografia conforme o Novo Systema (1790) – João Joaquim Casimiro: Methodo grammatical resumido da lingua portugueza (1792)17 – Pedro José de Figueiredo: Arte da Grammatica portugueza, ordenada em methodo breve, facil e claro (1799)18 – Pedro José da Fonseca: Rudimentos da Grammatica portugueza, Commodos á instrucção da Mocidade, e confirmados com selectos exemplos de bons Autores (1799) Observa-se, desde já, que os três primeiros autores de obras metalinguísticas no período josefino são personagens que com todo o direito podem ser identificadas como figuras pombalinas. Trata-se do carmelita Luís do Monte Carmelo que era censor da Real Mesa Censória (estabelecida em 1768) e de João Pinheiro Freire da Cunha (1738-1811) que foi professor régio de língua latina desde 1760 até 1770, tendo desde 16Este conjunto metalinguístico chegou ainda a ser publicado em anexo ao dicionário monolingue do mesmo autor em 1783, sendo, para além disso, sujeito a uma reedição facsimilada em 1996. 17A gramática escolar de Casimiro teve pelo menos oito edições (Schäfer-Prieß, 2000: 29 enumera as edições de 1792, 1803, 1811, 1814, 1815, 1818, 1822 e 1838). 18A gramática de Figueiredo teve cinco edições até 1837, cf. Schäfer-Prieß (2000: 31). Para esclarecimentos sobre as edições, inclusive alguns documentos inéditos relativos às edições da gramática de Figueiredo, cf. Duarte (no prelo). Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 153 1772 sido fundador e promotor da Academia Orthográfica Portugueza. Finalmente, António José dos Reis Lobato chegou a ser o primeiro gramático, cuja obra fosse declarada como gramática obrigatório do ensino primário em Portugal e Colónias. As obras de Bacelar (1783), Soutomaior (1783) e Cardoso (1788, 1790) não conseguiram até agora muita atenção da parte da investigação moderna. O mesmo pode ser afirmado sobre a gramática de Álvares (1786) de que somente se sabe a verdadeira autoria há pouco tempo.19 Já a gramática de Casimiro (1792), bem como as duas gramáticas de Figueiredo e Fonseca (que ambas efetivamente só chegaram a ser divulgadas em 1800 e não em 1799 como alega os rostos) tiveram algo mais impacto ao longo da primeira metade do século XIX. No dealbar do século XIX, a produção metagramatical aumenta de forma exponencial. Num período em que Portugal sofreu as invasões napoleónicas e a transferência da corte para o Rio de Janeiro (18081821), bem como o surgimento do liberalismo e do miguelismo que culminaram na guerra civil (1828-1834), foram publicadas as seguintes dezasseis gramáticas da língua portuguesa:20 – Anónimo: Compendio de Grammatica Portugueza (1804) – Manuel Dias de Sousa: Grammatica portugueza ordenada segundo a doutrina dos mais celebres Gramaticos conhecidos, assim nacionaes como estrangeiros para Facilitar á mocidade Portugueza o estudo de lêr e escrevêr a sua propria Lingua, e a inteligencia das outras em que se quizer instruir [...] (1804) – António de Morais Silva: Epitome da Grammatica da Lingua Portugueza [...] (1806) 19Barbara Schäfer-Prieß (2000: 28-29) é a primeira investigadora moderna a mencionar esta obra que merece especial atenção por ter sido a primeira gramática da língua portuguesa a ser escrita por uma mulher e para um público do sexo feminino. Para o estabelecimento da autoria cf. Kemmler, Assunção, Fernandes (2010). 20Apesar de existirem obras atribuíveis a protagonistas dos dois partidos, o relacionamento entre a produção metagramatical portuguesa e as lides entre miguelistas e liberais portugueses ainda não foi estudado. Por ser notório, porém, que a língua portuguesa foi adquirindo um estatuto gradualmente mais forte no ensino escolar português após a vitória do partido liberal, pareceu-nos adequado traçar esta divisória para o presente estudo. ROLF KEMMLER 154 – Jerónimo Soares Barbosa: As duas linguas, ou Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, Comparada com a Latina, Para Ambas se aprenderam ao mesmo tempo (1807) – José da Virgem Maria: Novo methodo de educar os meninos e meninas, principalmente nas villas e cidades (1815) – António José Batista: Compendio de grammatica e orthographia portugueza (1816) – João Crisóstomo do Couto e Melo: Gramática Filosófica da Linguagem Portuguêza (1818) – Francisco Soares Ferreira: Elementos de grammatica portugueza, ordenados segundo a doutrina dos melhores grammaticos (1819) – António Leite Ribeiro: Theoria do Discurso: Applicada á Lingoa Portugueza; em que se mostra a estreita relação, e mutua dependencia das quatro Sciencias intellectuaes, a saber Ideologia, Grammatica, Logica, e Rhetorica (1819) – Sebastião José Guedes de Albuquerque: Grammatica portugueza (1820) – Manuel Borges Carneiro: Grammatica, Orthographia e Arithmetica Portugueza, ou Arte de Falar, Escrever e Contar (1820) – Jerónimo Soares Barbosa: Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza ou Principios da Grammatica Geral applicados á Nossa Linguagem (1822) – Anónimo: Grammatica Portugueza (1826) – Jaulino Lopes Arneiro: Grammatica portugueza em analogia com as linguas de que toma origem, principalmente latina e grega (1827) – Francisco Solano Constâncio: Grammatica analytica da Lingua Portugueza, offerecida á mocidade estudiosa de Portugal e do Brasil (1831) Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 155 – Luís Francisco Midosi: O Expositor portuguez, ou rudimentos de ensino da lingua materna (1831) – Emílio Aquiles Monteverde: Elementos de grammatica portugueza, desenvolvidos com a maior clareza possivel para uso das aulas (1833) Como testemunham os estudos de Schäfer-Prieß (2000) e Santos (2010), a maioria destas obras não se limitou a reproduzir ideias provindas da gramaticografia tradicional latino-portuguesa. A partir de Sousa (1804) e Silva (1806) observa-se uma influência maciça das várias correntes da gramaticografia francesa contemporânea.21 Perante o caráter experimental de muitas das obras, pouco admira que a maioria delas não tenha tido mais do que uma edição. Assim, a obra de Silva (1806) teve uma projeção extraordinária, uma vez que o Epitome chegou a ser anexo a todas as edições do Diccionario da Lingua Portugueza do mesmo autor desde a segunda edição de 1813. De entre as obras publicadas na segunda década do século, somente conta ter havido uma reedição da obra de Ribeiro (1836). Já as obras publicadas em 1831-1833 tiveram todas várias reedições até meados do século. No entanto, merece especial destaque aquilo que muitos investigadores hoje encaram pertinentemente como o apogeu da gramaticografia portuguesa até então: a Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza de Jerónimo Soares Barbosa (1737-1816), que fora professor de retórica no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Como descobrimos há pouco (Kemmler, 2012a) com base em documentação inédita, o manuscrito daquela obra que viria a ser publicada como gramática académica durante 59 anos (desde 11822 até 71881) foi legado à Academia das Ciências de Lisboa pelo próprio gramático, que assim visava encher a lacuna de uma gramática filosófica daquela instituição a que pertencia desde 1789. Já a obra As duas linguas do mesmo autor (e similarmente a gramática de Arneiro, 1827) poderia ser classificada igualmente como per21Quer dizer desde a gramática geral racionalista de Nicolas Beauzée (1767), a gramática universalista de Antoine Court de Gébelin (1774, 1776) até à gramática sensualista de Antoine Destutt de Tracy (1803). 156 ROLF KEMMLER tencendo ao grupo das gramáticas latino-portuguesas. Dado, porém, que tanto o título como o conteúdo destas obras evidenciam a preocupação da parte dos autores com a aprendizagem da língua portuguesa, optámos por incluí-las no grupo da gramáticas portuguesas. Entre os gramáticos, surgem pela primeira vez personagens que misturaram a suas ideias didáticas com uma agenda política. Tanto Manuel Borges Carneiro (1774-1833) como Luís Francisco Midosi (17961877) eram conhecidos representantes do partido liberal e também o estrangeirado Francisco Solano Constâncio (1777-1846) não era alheio às novas tendências políticas. No campo da ortografia observamos a publicação de pelo menos dezasseis opúsculos no mesmo período. Se bem que tentámos fazer um levantamento tão exaustivo quanto possível, não se pode mesmo ter certeza absoluta de que a seguinte lista inclua todas as obras do género que tenham sido publicadas naquele período:22 – Joaquim José Caetano Pereira e Sousa: Noções sobre a ortografia da lingua portugueza (1807) – Pedro José da Fonseca: Rudimentos da orthographia da lingua portugueza (1809) – Luís Gonçalves Coutinho: Resumo orthographico da lingua portugueza, extrahido dos melhores authores [...] (1812) – Compendio Orthographico ou orthographia resumida para os meninos e para todos aquelles que a quizerem aprender, e para uso das escolas, nas quaes devem os meninos argumentar com seus condiscipulos, tão necessarios e uteis principios (1812) – Luís Gonçalves Coutinho: Breve tratado, ou explicação do que é Grammática, Oração Portugueza [...] (1814) 22Optámos por mencionar as obras de Batista (1816) e Carneiro (1820) somente entre as gramáticas, mesmo que os títulos igualmente chamem a atenção para a componente ortográfica destas duas obras. Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 157 – João Crisóstomo do Couto e Melo: Nôvo Método de ensinar e aprender a pronunciação e lêitura da linguagêe portuguêza pâra úso das escólas particulares do exército [...] (1817) – Rodrigo Ferreira da Costa: Tratado de Orthographia Portugueza, deduzida das suas tres bases, a pronunciação, a etymologia, e o uso dos doutos: e accommodado á intelligencia das pessoas que ignoram o grego e o latim (1818) – João Crisóstomo do Couto e Melo: Ortografia filosófica da linguagem portuguêza (1818) – Rodrigo Ferreira da Costa: Reflexões e observações previas sobre a escolha do melhor systema de Orthographia portugueza [...] (1821) – José Joaquim Bordalo: Tratado d´orthografia (1824) – F.P.C.: Novo resumo de ortografia da lingua portugueza (1824) – Joaquim José Apolinário: Resumo orthographico, ou regras geraes de orthographia da lingua portugueza, para uso dos meninos (1826) – Joaquim Ferreira Codesso: Breve Tractado da Orthographia, para os que frequentão os estudos, ou diálogo Sobre as mais principais Regras da Orthographia util para o povo menos instruido e para que os que não tendo frequentado as Aulas, se achão já empregados nos escriptorios publicos e desejão acertar na prática sem grande multiplicidade de regras, que lhes são dificeis de comprehender e muito mais proveitoso aos Meninos que frequentão as Eschólas (1826) – Joaquim Ferreira Codesso: Appendice ao Breve Tractado da Orthographia (1826) – António Gil Gomes: Regras elementares sobre a pontuação, segunda parte da Orthographia (1831) – António Maria Barker: Dialogo orthographico da lingua portugueza, com reflexões, e notas sobre as differentes opiniões dos orthographos (1834) 158 ROLF KEMMLER Numa altura em que a tradição editorial da Orthographia de Feijó tinha sido reiniciada (no século XIX houve edições desta obra em 1802, 1806, 1814, 1815, 1818, 1824, 1836 e 1861), os primeiros tratados metaortográficos do século XIX constituem essencialmente manuais para o ensino escolar da ortografia. Tal como acontece com Fonseca (1809), Bordalo (1824), Apolinário (1826) e outros opúsculos do género, várias destas obras chegaram a ser anexas a edições da gramática de Lobato.23 3. A tradição gramatical latino-portuguesa impressa A modos de definição, consideramos como gramaticografia latino-portuguesa (propriamente dita) todas as manifestações de gramática latina que foram publicadas em Portugal ou que se devem a autores portugueses, mesmo que tenham sido publicadas noutros países. Neste âmbito, não interessa somente saber em que medida pode ter havido relações entre a gramaticografia latino-portuguesa e a gramaticografia portuguesa, mas também em que medida ideias metalinguísticas de gramáticos portugueses evoluíram e chegaram a ser introduzidas nas respetivas obras. Uma vez que este aspeto não parece essencial para a nossa perspetiva comparativa, não iremos tomar em consideração a discussão da periodização da gramaticografia quatrocentista e quinhentista latino-portuguesa que encontramos em Verdelho (1995: 90) e Ponce de León Romeo (no prelo: capítulo 1). Esta tradição teve os seus inícios em 1497: – Pastrana, Juan de/ Rombo, Pedro: Grammatica pastrane [...] siue tractatus intitulatus: Thesaurus pauperum siue speculum puerorum editum a magistro Johanne de pastrana (1497) – Rombo, Pedro: Materiarum editio ex baculo cecorum a petro rombo in artibus baccalario breuiter collecta (1497) – Martins, António: Antonij martini primi quondam huius artis pastrane in alma vniuersitate Ulixbonensi preceptoris, materierum editio a baculo cecorum breuiter collecta (1497) Entre 27 de maio e 20 de junho de 1497, o impressor de origem alemã Valentim Fernandes da Morávia imprimiu em Lisboa as três 23Para informações sobre as edições da gramática de Lobato e os anexos metaortográficos, cf. Assunção (2000: 29-39). Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 159 partes do conjunto de obras metalinguísticas latinas, nomeadamente o Thesaurus pauperum de Juan de Pastrana com anotações marginais de Pedro Rombo, bem como as versões da segunda parte da gramática de Pastrana que tinham sido elaboradas pelo mesmo Pedro Rombo e por António Martins (Dias/ IBNL. 1995: 63). Não deixa de ser notável que dentro da obra de Rombo se observem alguns (embora raros) exemplos em língua portuguesa, o que torna ainda mais evidente que todo este conjunto deve justamente ser considerado como o início da gramaticografia latino-portuguesa impressa.24 Temos conhecimento ou notícia segura das seguintes gramáticas latino-portuguesas do século XVI: – Estevão Cavaleiro: Noua grammatices Marie matris dei virginis ars cuius author est magister Stephanus eques lusitanus (1516) – Máximo de Sousa: Institutiones tum lucide, tum compendiose latinarum literarum (1535) – Duarte Pinhel: Latinæ Grammatices Compendia (1543) – Nicolau Clenardo: Jnstitutiones Grammaticæ Latinæ (1538)25 – Jerónimo Cardoso: Grammaticae introductiones breuiores & lucidiores [...] (1552)26 – Jan van Pauteren: Carmina Ioannis Despauterij De arte grammatica cum quibusdam alijs ad puerorum institutionem necessarijs (1555)27 24Agradecemos ao Prof. Rogelio Ponce de León Romeo que chamou a nossa atenção para o valor das obras de 1497 dentro da cronologia desta tradição gramaticográfica. 25Trata-se da primeira edição da gramática latina do gramático flamengo Nicolas Cleynaerts (também conhecido como Clenaerts, Cleynarts, Kleinharts, Clenardus or Clenard) que durante alguns anos viveu em Braga (cf. Cleynaerts, 1538). 26Consta que esta obra foi posteriormente editada debaixo do título Institutiones in linguam latinam breviores et lucidiores (1557, 1562). 27Cardoso (1994: 147) afirma existirem dois exemplares de outra edição portuguesa anterior na Biblioteca Pública de Évora (Coimbra, 1555). Gusmão (1964: 83-84) documenta a existência da edição de 1555 (cota Res. 230), bem como de outra edição bracarense de 1561 (cota Res. 259-A). Ainda não tivemos acesso a estas edições, mas às duas edições posteriores de Braga (Pauteren 1563) e Coimbra (Pauteren, 1570) que se encontram disponíveis na rede. 160 ROLF KEMMLER – Fernando Soares Homem: Grammatices duo Compendia eo modo in methodum contracta ut nihil redundet, aut desit (1557) – Ruy López de Segura: Grammaticae institutiones a Roderico Lopez a Sigura nuper aeditae (1563) – Manuel Álvares: De Institutione Grammatica libri tres (1572) –ARS MAIOR – Manuel Álvares: De Institutione Grammatica libri tres (1573) –ARS MINOR – Francisco Martins: Grammaticæ artis integra institutio (1588) Dentro destas dez obras, três devem-se a autores estrangeiros, nomeadamente as Jnstitutiones Grammaticæ Latinæ (Braga, 1538) do flamengo Nicolau Clenardo (1495-1542), as Carmina de arte grammatica do flamengo Jan van Pauteren (ca. 1460-1520) e as Grammaticae institutiones (Lisboa, 1563) do espanhol Ruy López de Segura (ca. 1540-ca. 1580). Dentro das gramáticas latino-portuguesas quinhentistas merece, no entanto, especial destaque a obra De Institutione Grammatica libri tres do jesuíta madeirense Manuel Álvares (1526-1583). Descobrimos há pouco que logo a seguir à celebérrima edição princeps de 1572 (que deverá ser chamada ARS MAIOR ou ‘arte grande’) foi publicada uma ARS MINOR ou ‘arte pequena’ de 1573 que reúne a doutrina gramatical na sua totalidade, mas sem a maioria dos escólios. Por ter sido consagrada como gramática oficial do ensino linguístico jesuítico na Ratio Studiorum de 1599, a gramática alvaresiana foi objeto de um número imenso de edições em muitos países em pelo menos três continentes. Apesar do labor de vários investigadores nas últimas décadas, hoje ainda não existem informações conclusivas sobre o verdadeiro universo editorial daquela gramática. Em termos quantitativos, a produção de gramáticas originais latino-portuguesas no século XVII é de importância algo reduzida, o que julgamos dever-se à importância que cabia à gramática de Álvares dentro do sistema de ensino português, dominado pela Companhia de Jesus: Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 161 – Pedro Sanches: Arte de grammatica pera em breve saber latim, composta em linguagem e verso portuguez (1610)28 – Amaro de Roboredo: Verdadeira grammatica latina para se bem saber em breve tempo, escripta na lingua portugueza, com muitos exemplos na latina (1615) – Amaro de Roboredo: Grammatica latina mais breve e facil que as publicadas até agora, na qual precedem os exemplos ás regras (1625) – Domingos de Araújo: Grammatica latina: Novamente ordenada, e Conuertida em Portugues pera menos trabalho dos que a começaõ aprender (1627) – Frutuoso Pereira: Arte de grammatica latina: ordenada em portuguez, pera mayor facilidade deste estudo (1643)29 Em 1610 chegou à luz a primeira gramática latino-portuguesa que usa o português como metalinguagem –uma caraterística, aliás, que esta obra partilha com as demais gramáticas latinas publicadas pela primeira vez no século XVII. Trata-se da Arte de grammatica de Pedro Sanches (?-1635), primo do gramático espanhol Francisco Sánchez de las Brozas (1523-1600). A esta obra seguiram-se a Verdadeira grammatica latina (1615) e a Grammatica latina (1625), bem como o já mencionado Methodo grammatical para todas as lingvas (1619) de Amaro de Roboredo. Com três edições, a obra de Frutuoso Pereira teve maior êxito no século XVII, pelo qual mereceria um estudo separado. Também no século XVII surgiu a tradição epistemológica dos cartapácios, que constituem na sua essência comentários da gramática latina de Manuel Álvares em língua portuguesa.30 Mesmo que o número absoluto de cartapácios seja algo reduzido, não deixa de ser notável que 28Veja-se a reedição fac-similada em Sánchez (2008). 29Parece que a primeira edição data de 1636 e consta que a terceira é de 1652. 30Tanto as Explicationes in praecipuam partem totius artis (1670) de José Soares como as Explicationes in omnes partes Totius Artis de João de Morais Madureira Feijó (que constitui a primeira edição do primeiro volume da Arte Explicada do mesmo autor) são tratados metalinguísticos em língua portuguesa que somente apresentam o rosto e paratextos em latim, respeitando, de resto, a disposição da gramática alvaresiana. ROLF KEMMLER 162 pelo menos as obras de Chorro, Feijó, Franco, Freire e Soares tenham tido um impacto considerável através de várias edições:31 – Bartolomeu Rodrigues Chorro: Curiosas advertencias da boa grammatica no compendio e exposição do P. Manuel Alvares (1619) – João Nunes Freire: Annotaçoens aos generos e preteritos da Arte nova (1635) – João Nunes Freire: Annotaçoens ad rudimenta Grammaticae nas regras mais geraes della com huma instrucção brevissima para se começar a compôr, e construir (1643) – João Nunes Freire: Margens da Syntaxe, com a construcção em Portuguez, posta na interlinea do texto das regras d’ella pela Arte do P. Manuel Alvares (1653) – José Soares: Explicationes in praecipuam partem totius artis P. Emmanuelis Alvari quae syntaxim complectitur (1670) – António Franco: Promptuario da Syntaxe, dividido em duas partes (1699)32 João Antunes de Brito: Mappa da Grammatica Latina dividido em cinco partes com admiravel brevidade, & clareza, de modo, que possaõ bem saberse em pouco tempo os preceitos della (1714) – – João de Morais Madureira Feijó: Explicationes in omnes partes Totius Artis. R. P. Emmanuelis Alvarez è Societate Jesu [...] (1729) 31Apesar de já terem sido referenciados em obras que se debruçam sobre as reformas pombalinas no ensino (cf. Kemmler, 2007: 16-17), falta até hoje um estudo (com um levantamento bibliográfico exaustivo) de maior envergadura sobre este conjunto de obras. Julgamos que será útil como ponto de partida para este efeito o artigo «El Álvarez en vernáculo: Las exégesis de los De institutione grammatica libri tres en Portugal durante el siglo XVII» de Rogelio Ponce de León Romeo (2001b). 32Dado que as Contramina grammatical com que se desvanecem diversas notas e assumptos, que um curioso imprimiu contra os grammaticos e em especial contra a Arte do Padre Manuel Alvares (1731) do mesmo autor foram elaboradas no âmbito de uma resposta à polémica obra antijesuítica Exame da syntaxe e reflexoens sobre as suas regras (1729) de Manuel Coelho de Sousa (Ponce de León Romeo, 2005: 813) cremos que não será adequada a sua inclusão entre o número dos cartapácios, como afirmámos em Kemmler (2007: 17). Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 163 – João de Morais Madureira Feijó: Arte explicada (restantes dois volumes em vários tomos; 1730-1732) – Matias Rodrigues Portela/ Inácio Leão de Sá: Cartapacio de syllaba, e figuras, conforme a ordem dos mais cartapacios de grammatica, ordenado para melhor commodo dos estudantes desta faculdade nos pateos da Companhia de Jesu (1738) Bastante menos importante é a atividade editorial no domínio das ortografias latinas, nas quais o português como metalinguagem somente se vai impondo a partir de meados do século XVIII: – Aires Barbosa: De Orthographia (1517) – Luís António Verney (1747): De Orthographia Latina liber. – António Álvares (1758-1759): Orthographia da lingua latina. – António Pereira de Figueiredo (1765): Observações sobre a lingua e orthographia latina, tiradas dos mármores, bronzes e medalhas ... – José Pedro Soares (1790): Orthographia latina, ou regras para escrever e pronunciar com acerto a lingua latina. No período joanino do século XVIII encontram-se as seguintes obras, publicadas entre 1722 e 1746: – Bartolomeu Soares da Fonseca: Rudimenta ou explicação das oito partes da oração grammatical, por estylo breve e claro, para melhor intelligência dos principiantes (1722) – Bartolomeu Soares da Fonseca: Lucerna grammatical em que se explica com brevidade e clareza o modo de escrever, pronunciar e compor as partes da oração (1728) – Paulo Gomes da Silva Barbosa: Desafios para os meninos da escola dos primeiros rudimentos da Grammatica com toda a variedade, e medições dos versos lyricos de Horacio, e figuras mala principaes da rhetorica (1731) 164 ROLF KEMMLER – António Félix Mendes: Grammatica latina do bacharel Domingos de Araujo, reformada, accrescentada, e reduzida a methodo mais facil (1737) – António Félix Mendes: Grammatica portugueza da lingua latina para uso dos cavalheros e nobres, que tem Mestre em suas casas [...] (1741) – Jacôme da Conceição: Methodo facilissimo de aprender Grammatica (1743) – Simão Crispim de Toro Cardoso: Arte da grammatica, composição dos seus preceitos (1746) – Manuel Monteiro: Novo methodo para se aprender a grammatica latina, ordenada para uso das Eschólas da Congregação do Oratorio na Casa da N. Senhora das Necessidades (1746) São de especial importância as gramáticas publicadas pelo professor lisboeta de língua latina António Félix Mendes (1706-1790). Para além de ter reformulado a já mencionada gramática seiscentista de Domingos de Araújo (11627) em 1737, Mendes passou a publicar a gramática sob o seu nome.33 Esta obra que estava pensada para ser utilizada no âmbito de um regime declaradamente escolar (daí a referência aos mestres nas casas dos educandos), passou a ser uma das duas gramáticas oficiais do ensino público aquando da primeira reforma pombalina do ensino em 1759. Também a Gramática oratoriana visou desde logo uma aplicação mais ampla. Destinada a ser utilizada para as escolas da Congregação do Oratório em Lisboa, o primeiro tomo do Novo methodo para se aprender a grammatica latina foi publicado pelo oratoriano Manuel Monteiro (1667-1758). Parece que o projeto editorial não terá tido continuidade, pois ignora-se a existência de uma segunda parte.34 33Para uma descrição bibliográfica completa, cf. a referência relativa a Mendes (1741). 34Silva (1893, XVI: 271) afirma o seguinte sobre a segunda parte da obra: «A parte 2.ª da primeira edição do Novo methodo (n.° 1114) foi impressa em 1749. 8.º de 16 (innumeradas) - 104 pag.». Dado, porém, que não parece conservar-se qualquer exemplar de uma segunda parte, não podemos deixar de ficar na dúvida... Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 165 No período pombalino, a produção metagramatical latino-portuguesa teve o seu início precisamente com a continuação dos esforços oratorianos para a elaboração de uma gramática latina em língua portuguesa que se afastasse do paradigma alvaresiano. A primeira de muitas edições do Novo methodo da grammatica latina do jovem oratoriano António Pereira de Figueiredo (1725-1897) foi publicada em dois tomos em 1752 e 1753, vindo a ser estabelecida como gramática oficial do ensino público pombalino por força do Alvará de 28 de junho de 1759 (Kemmler 2007: 33): – António Pereira de Figueiredo: Novo methodo da grammatica latina, para uso das escholas da Congregação do Oratorio (1752-1753) – Luís António Verney: Grammatica latina, tratada por um metodo novo, claro e facil: Para uzo Daquelas pesoas, que querem aprendela brevemente, e solidamente (1758) – António Pereira Xavier: Arte da grammatica latina pra uso das escolas destes reinos e instrucção da mocidade portugueza (1773) – António Rodrigues Dantas: Arte Latina ou nova collecçaõ dos melhores preceitos para, se aprender breve e solidamente a grammatica da lingua Latina (1773) – Tomás António da Silva: Nova instituição da Grammatica latina, dividida em tres partes (1779) – Manuel dos Santos Leal: Grammatica lusitano-latina, que ensina a lingua latina, regulada na maior parte pela Portugueza, sem discrepancia dos Escriptores Latinos (1783) – Domingos Nunes de Oliveira: Methodo novissimo para aprender a grammatica latina, fundamentalmente e com brevidade [...] (1786) – Manuel Rodrigues Maia: Arte da grammatica latina (1793) – Manuel Luís de Magalhães: Reflexões sobre as quatro partes da grammatica latina, etymologia, orthographia, prosodia e syntaxe (1794) 166 ROLF KEMMLER – Diogo de Melo e Meneses: Novo epitome da grammatica latina moderna ou verdadeiro methodo de ensinar latim a hum principiante [...] (1795) – Emídio José David Leitão: Novo compendio de Grammatica latina para uso das Escholas da Universidade e do Reino (1796) – António Venâncio da Costa: Novo methodo da grammatica latina para uso do Real Collegio de N. S. da Conceição (1799) Ao lado da referida obra de Figueiredo, a Grammatica latina do estrangeirado Luís António Verney (1713-1792) é de especial importância. Trata-se de uma obra bastante extensa que Verney publicou anonimamente em 1758, devendo provavelmente ser encarada como mais um contributo daquele reformador do sistema de ensino. As restantes gramáticas latinas da segunda metade do século XVIII partilham a caraterística de ter sido redigidas por professores públicos ou privados de latim, sendo destinadas para fins didáticos mais ou menos explícitos. Dentro destas gramáticas, a de Xavier (11773) teve pelo menos três edições até 1784, a de Dantas (11773) até teve quatro edições até 179435 e a de Maia (1793) teve várias reedições até pelo menos 1824. Semelhantemente, a obra de Meneses teve várias reedições sob vários títulos até à publicação da Grammatica racional da lingua latina em 1835. Para as primeiras décadas do século XIX observa-se o surgimento de um número reduzido de novas gramáticas latino-portuguesas. Mas isto não quer dizer que o latim tivesse perdido a importância como disciplina essencial do ensino escolar. Para além da existência da já referida obra As duas linguas (1807) de Soares Barbosa, que alcança a sua importância pela então atividade do autor como deputado da Junta da Directoria Geral dos Estudos desde 1799, julgamos que a explicação mais óbvia será a existência de reedições de gramáticas latinas setecentistas no mercado livreiro de inícios do século XIX:36 35 Conforme estabelecemos em Kemmler (2001: 269-272), o gramático lisboeta João Pinheiro Freire da Cunha promoveu a impressão da quarta edição (póstuma) da gramática de Dantas, o que se tornou problemático devido a problemas de formatação e layout. 36 Por crermos que os títulos prometem ocupar-se somente daqueles aspetos parciais da Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 167 – Miguel de Bourdiec: Elementos da Grammatica latina, exposta em nova ordem (1816) – Joaquim José de Campos Abreu e Lemos: Grammatica elementar da lingua latina, por systema philosophico [...] (1822) – José Vicente Gomes de Moura: Compendio de Grammatica Latina e Portugueza (1829) No grupo destas gramáticas latino-portuguesas oitocentistas, merece especial destaque o Compendio de Grammatica Latina e Portugueza de José Vicente Gomes de Moura (1769-1854). Com efeito, esta obra viria a desempenhar um papel essencial no ensino público das línguas latina e portuguesa durante a primeira metade do século XIX,37 contando-se um total de doze edições até 1876. 4. Conclusões Ao longo do presente artigo, referimos um total de 113 obras metalinguísticas conhecidas (sem incluir obras que declaradamente só se dedicam a partes da gramática como a sintaxe ou questões morfológicas), que foram impressas em Portugal ou em prelos estrangeiros, tendo, neste caso, gramáticos portugueses como autores. gramática latina, nomeadamente dos campos da sintaxe figurada e da prosódia, optámos por excluir duas obras de José Pedro Soares que não conseguimos consultar: Grammatica latina figurada, confrontada com a grammatica materna (1802) e Prosodia novissima reduzida a compendio: regra preciosa dos accentos para se pronunciarem acertada e fundamentalmente as palavras latinas: com um epigramma das regras das quantidades das syllabas (1817). 37 Conforme estabelecemos em Kemmler (2010: 471-472), a obra de Moura alcançou o estatuto de gramática oficial do ensino público em Portugal por resolução de D. Miguel I «[...] até ser paulatinamente substituído pela Grammatica Elementar da Lingua Latina de Joaquim Alves de Sousa (1857) e pela Nova Grammatica Portugueza de Bento José de Oliveira (1862)» ROLF KEMMLER 168 século XIX século XVIII século XVII século XV Categoria século XVI Tabela 1. 1. gramaticografia portuguesa 1.1. português língua materna 2 1.2. ortografias portuguesas 2 1.3. PLE (metalinguagem: latim) 7 17 7 16 5 20 3 6 3 3 1 2. gramaticografia latino-portuguesa 2.1. metalinguagem: latim 3 11 2.2. metalinguagem: português 2.3. cartapácios (em português) 2.4. ortografias da língua latina 1 4 Na tradição gramaticográfica portuguesa de 1536 até 1833 deve considerar-se pelo menos o número de 26 obras metalinguísticas originais que são dedicadas à língua portuguesa, acrescentando-se a gramática latina de Bento Pereira (1672). Com 28 publicações desde 1574 até 1834, os tratados metaortográficos somente se apresentam num número ligeiramente mais elevado. Torna-se evidente que nem sempre é possível distinguir as gramáticas e as ortografias de forma muito nítida, por um lado porque a ortografia é uma das partes da gramática e pode mesmo ser uma parte integrante de uma determinada obra, por outro, porque existem tratados metaortográficos com uma forte componente metagramatical (tais como Barreto 1671, Feijó 1734, Cunha 1769). Na gramaticografia latino-portuguesa de 1497 até 1829 devemos distinguir entre obras que (a) usam o latim como metalinguagem e aquelas que (b) usam o português como metalinguagem. Nas 14 gramáticas dos séculos XV e XVI verifica-se que todas pertencem ao primeiro grupo. Nestas obras, o português parece limitado ao papel auxiliar, como nos exemplos ou dentro dos paradigmas verbais (tal como acontece na gramática de Manuel Álvares). Já nas gramáticas latino-portuguesas seiscentistas, o português é utilizado como metalinguagem, o que vem acompanhado pela exigência de esse mesmo idioma vir a ser usado no Para uma melhor compreensão da história da gramática em Portugal: 169 ensino linguístico. Desde 1610 até 1829 contamos 28 obras que pertencem a esta categoria. Torna-se evidente que os cartapácios à gramática de Manuel Álvares constituem uma tradição independente, na qual contámos nove obras desde 1619 até 1738, muitas das quais, convém lembrá-lo, foram objeto de bastantes reedições até ao século XVIII. Já o campo das ortografias da língua latina evidentemente era considerado como sendo de menor importância. Contamos apenas cinco obras desde 1615 até 1790. Voltando aos textos metagramaticais, o período de 1497 até 1834 oferece-nos pelo menos 27 obras dedicadas principalmente à língua portuguesa, que contrastam com 42 obras dedicadas sobretudo ao latim. Seria de enorme interesse podermos incluir nesta lista e nas nossas considerações todo o universo das reedições, variações tipográficas, etc. que as obras em questão conheceram. Mas a verdade é que mesmo que já existam as teses de doutoramento de Gómez Gómez (2002) e Ponce de León Romeo (2002a), como o grande número de artigos de especialistas na gramaticografia latino-portuguesa, tais como, entre outros, de Gómez Gómez (2000, 2002b, 2003, 2005), Ponce de León Romeo (1996, 2001a/b, 2002b/c, 2003, 2004a/b/c, 2005, 2006a/b, 2007, 2008a/b, 2009a/b), etc., ainda não estamos próximos de conhecer todas as obras que pertencem ao universo metalinguístico latino-português, para não falar das reedições e variantes tipográficas. Os estudos já realizados evidenciam que as gramáticas latino-portuguesas podem trazer contributos importantes para os estudos da gramaticografia portuguesa. No entanto, estamos convencidos que os frutos verdadeiramente interessantes surgirão quando a historiografia linguística portuguesa vier a dedicar mais atenção ao ramo da tradição latino-portuguesa... 170 ROLF KEMMLER REFERÊNCIAS ARGOTE, Jerónimo Contador de. REGRAS / da lingua / PORTUGUEZA, / espelho da lingua / LATINA, / Ou disposiçaõ para facilitar o ensino da lingua Latina pelas / regras da Portugueza, / dedicada / AO PRINCIPE / de portugal / Nosso Senhor, / pelo padre / DOM JERONYMO / Contador de Argote, Clerigo Regular, e Academico / da Academia Real da Historia Portugueza. / Muyto accrescentada, e correcta. / Segunda impressaõ. // LISBOA OCCIDENTAL, / NA OFFICINA DA MUSICA, / m. dcc. xxv. / Com todas as licenças necessarias, 21725. ASSUNÇÃO, Carlos. A Arte da Grammatica da Lingua Portugueza de António José dos Reis Lobato: Estudo, Edição Crítica, Manuscritos e Textos Subsidiários. Lisboa. Academia das Ciêncas de Lisboa, 2000. 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Mas essa tradição levantou outros aspetos nucleares: a relação entre fictio e alegoria, a fuga ao discurso mimético, a extrema capacidade visual e plástica, e a função didático-moral. Tendo em conta estes aspetos, a alegoria permitiu a arrumação cronológica e genológica da ficção romanesca produzida em Portugal entre 1600 e 1750, definindo a estrutura narrativa e a sua funcionalidade no contexto literário. Permitiu ainda considerar a visualidade como característica essencial, pelo recurso aos emblemas, à descrição, à ecfrasis e à metáfora, que proporcionam a varietas e o ornatus, determinantes para conseguir o duplo objectivo do prodesse ac delectare. Palavras-chave: Literatura Barroca; Alegoria; Ficção; Ut Pictura Poesis; Prodesse ac Delectare; Paratexto. SARA AUGUSTO 178 ABSTRACT Baroque fictional production raises pertinent questions concerning alegoric representation. Allegory is indeed one of its constant elements, being deeply rooted both in the classical and medieval traditions, of which the baroque is a complex synthesis. From this joint tradition arises the concept of allegory as a rhetorical trope, which was maintained in grammar compendiums until the 17th century. The concept bases allegory in translatio, and this process is strengthened mainly by the analogy between two universes, the universe of fiction and the universe of reading. This tradition also raises other important issues: the relation between fictio and allegory, the allegory’s refusal of mimetic discourse, its the extreme visual and plastic capacities and its moral and didactic functions. Bearing these aspects in mind, I have ordered the fiction produced in Portugal between 1600 and 1750 chronologically and in terms of genre. The study of allegory has allowed me to define the texts’ narrative structure and their functionality in the Baroque literary context. It also allowed me to consider visuality as an essential feature of allegory –due to the use of emblems, description, ekphrasis and metaphors- which allows strategies such as varietas and ornatus, vital to achieve the double objective of prodesse ac delectare. Keywords: Baroque Literature; Allegory; Fiction; Ut Pictura Poesis; Prodesse ac Delectare; Paratext. 1. A forma como a literatura se aproximou das artes visuais na época barroca, retomando procedimentos antigos, condicionou e deixou uma herança poderosa na literatura posterior. Nunca como na época contemporânea, explorando campos artísticos que vão além das artes visuais e alcançando outros âmbitos de representação artística, a relação entre arte e literatura se revelou de forma tão estreita. Nesta relação, que assume contornos de complexa teorização, não tem menor importância o índice de ficcionalidade assumido pelas diversas artes, que se torna evidente na capacidade de «contar histórias», ou seja, na construção de uma narrativa, na representação simbólica e na figuração de uma mundividência. Mas os pressupostos da relação literatura e pictura não são definitivamente os de hoje, muito menos as motivações dessa relação. Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 179 Houve uma altura que a motivação da associação entre arte e literatura era ética, uma altura em que a extrema visualidade do enunciado, capaz de seduzir espírito, se tornava antes de tudo conveniente e útil. Foi sobre esse tempo, um longo período que cobriu a produção ficcional pastoril e as novelas alegóricas da primeira metade do século XVIII, que trabalhei em A Alegoria na Ficção Romanesca do Maneirismo e do Barroco, publicada em 2010. Tratou-se de um projeto de doutoramento de amplitude teórica significativa e com um corpus de trabalho considerável, que atingiu a leitura e o comentário de três dezenas de títulos de ficção distribuídas por uma extensão temporal de um século e meio. Foi esta amplitude que permitiu mostrar como a alegoria, que implica uma específica relação entre literatura e pictura, se impôs como procedimento preferido, pela sua capacidade plástica, pela versatilidade de representação, mas também pela capacidade de concretização de pontos de doutrina e exemplo. São alguns dos aspetos desse trabalho que aqui recupero, enfatizando algumas linhas que me parecem hoje fundamentais: os fundamentos da ficção e da alegoria; a ordenação da ficção alegórica; a dupla orientação da ficção barroca como argumento essencial no processo da sua legitimação. Tendo em conta a relação clássica entre as duas funções complementares da literatura, retomo o título deste trabalho, ut pictura fictio, que estabelece uma correspondência evidente e propositada com a decisiva afirmação horaciana, ut pictura poesis, declarada no verso 361 da Epistola ad Pisones. Trata-se de uma afirmação essencial no contexto desta Ars Poetica, tendo em conta as virtudes da poesia, entendida no sentido mais geral de «literatura», enquanto «arte» discursiva capaz de invocar e «dar a ver» realidades e conceitos, mas também pela correspondência com o contexto em que foi produzida, fazendo com que a leitura fosse determinada pelas valências decorrentes desse facto. É neste sentido, aliás, que a teoria horaciana se tornou particularmente bem recebida pelo pensamento crítico do Renascimento (Augusto, 2010: 2125). Mas esta capacidade de representação tem o seu principal fundamento na teoria poética aristotélica. Se bem que Aristóteles não aborde especificamente a relação privilegiada entre poesia e pintura, tal inter- 180 SARA AUGUSTO ligação atravessa não só a Retórica mas também a Poética, a partir da noção de poesia como imitação ou a partir do desenho coerente dos caracteres das personagens. Na Parte III da Retórica, discorrendo sobre a expressão enunciativa, Aristóteles distingue claramente os processos que diferenciam o discurso poético, mais solene e elegante, do discurso em prosa. Da utilização da metáfora proviria grande parte da elegância das expressões, mas a sua eficácia dependeria do cumprimento de um critério considerado essencial: que fizesse com que o objeto saltasse para «diante dos olhos», colocando-o em evidência, produzindo a sua visualização (Aristóteles, 1998: 196-200). Esta capacidade de «dispor o objeto diante dos olhos» dependeria, contudo, da representação de uma ação, tendo mais impacto neste processo as metáforas que utilizavam o inanimado como animado, atribuindo-lhe vida, movimento e ação. A visualização implicaria então a representação de uma ação, facto que nos coloca eficazmente no campo da ficção e da alegoria, as duas matérias que neste trabalho me interessa ter em conta. O procedimento descrito, de «dispor o objeto diante dos olhos», no sentido da concretização e da representação de conceitos abstratos, implica a consideração da alegoria não só enquanto recurso estilístico, mas sobretudo como forma preferencial da estrutura narrativa ficcional. Determinadas constantes desta estrutura, como a construção disjuntiva de personagens, figurantes da dicotomia Bem e Mal, o desenvolvimento da ação fora dos limites da mimese, e a ênfase num discurso moralizador, constituem elementos alegóricos que, de forma evidente, orientam a leitura e obrigam o leitor a um exercício de interpretação, de acordo com preceitos impostos pelo contexto de produção ficcional. Trata-se de um recurso tão antigo como a literatura e nem sempre de utilização pacífica. Relembro que Platão reagiu veementemente ao excesso de alegoria e de interpretação alegórica, não só de Homero mas também de outros mitólogos (Augusto, 2010: 22). A crítica literária a que procede em A República, se bem que não atinja a essência da poesia, ainda assim condena severamente as intenções, a ignorância e a imoralidade das fábulas, considerando que «quem é novo não é capaz de distinguir o que é alegórico do que não é» (Platão, 1987: 87). A recusa da validade dos mitos assenta na sua consideração como ficção gratuita Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 181 e incapaz de oferecer qualquer espécie de verdade. Contudo, enquanto narrativa simbólica, plena de significação, neste sentido utilizada nos Livros VI e VII, onde apresenta a conhecida «alegoria da caverna», já se aproxima da verdadeira opinião e procura o melhor modo de expressar o verosímil e a probabilidade, capaz de conter e de transmitir conteúdos e ensinamentos. Esta reflexão apresentada em A República, e em outros tratados de Platão, levanta duas possibilidades interessantes para este trabalho: a utilidade de que a poesia (enquanto atividade literária) se deve revestir, e a responsabilidade que as formas poéticas devem assumir na vida humana e social; em segundo lugar, a possibilidade e a necessidade de interpretar alegoricamente os mitos, tornando-os aceitáveis em termos de moralidade e de conhecimento. Assim, a expressão alegórica passa a configurar uma narrativa de carácter simbólico, investida de responsabilidade por ser capaz de conter e de transmitir conteúdos e ensinamentos (Laborderie, 1978: 71-89; Pépin, 1976: 112-120). Da realização alegórica viveu toda a Idade Média, transfigurando universos humanos e terrenos em repositórios e virtudes e vícios em guerra, de aves simbólicas, cortes imperiais, castelos perigosos, jardins e hortos do paraíso (Augusto, 2010: 368-375). Em Literatura europea y Edad Media latina, E. R. Curtius (1989) mostrou como a representação alegórica, viva e exuberante, ganhou contornos ricos e poderosos, desenhando alegorias que perduraram pelo tempo. A sensibilidade estética e os processos mentais resultaram numa visão simbólico-alegórica do universo (Augusto, 2010: 34), em que a estilização e a convenção rodeavam cada gesto e cada momento da vida. Mas foi sobretudo o pensamento religioso que, devido ao alto grau de abstração que o carateriza, tendeu a cristalizar-se em imagens, tornando o mistério sensível logo que revestido de uma forma representável. Com esta aliança entre as potencialidades imaginativas e didascálicas, a função pedagógica viu o seu efeito reforçado. Deste modo, a construção e a leitura de alegorias seriam fonte de deleite, mesmo que implicassem um certo esforço interpretativo (Augusto, 2010: 34-42). 182 SARA AUGUSTO A literatura do século XVII, por entre páginas de parenética, tratados espirituais, ficção e poesia, retomou a topica, as metáforas e os exempla medievais, relendo-os à luz da mundividência barroca. Contudo, para além dessa visão do mundo, baseada nos efeitos criativos da coincidência de pares opositivos (Silva, 1983: 444-449), a literatura barroca assentou numa considerável autonomia dos procedimentos estilísticos. Assim, as matérias mais antigas assumiram novas formas, de maior exuberância e refinamento, ampliando os enunciados, prolongando o procedimento metafórico. Enquanto compêndio indispensável da codificação do barroco, a Nova Arte de Conceitos, publicada por Francisco Leitão Ferreira em duas partes, respetivamente em 1718 e 1721, proporcionou reflexões de fundo sobre a teoria da metáfora. Tendo como referência o Il Cannochiale Aristotelico, de Emanuel Tesauro, primeiramente editado em 1654, Leitão Ferreira estabelece regras para definir a legitimidade das analogias que serviam de base à metáfora, submetendo-as ao decoro, segundo regras de proporção e clareza. A consideração da alegoria, apresentada como «tropo de oração», implicando que a «comutação engenhosa» fosse aplicada numa estrutura mais complexa, é feita no contexto da definição da verdade e da falsidade dos conceitos e dos argumentos (Ferreira, 1721: 183). Ponderando o valor da verdade, que dependeria da conformidade entre os objetos e o entendimento, Leitão Ferreira encontra igual legitimidade na verosimilhança, que implicaria uma analogia ou proporção dos objetos metafóricos com a mesma potência intelectiva. Assim, para além da verdade, como oposto de falsidade, seria perfeitamente aceitável uma verdade indireta que, segundo a Nova Arte de Conceitos, se encontraria presente em qualquer alegoria, e que, apesar de poder ter como finalidade «enganar» alguém, serviria igualmente objetivos mais dignos como ensinar e persuadir (Ferreira, 1721: 184). Sem dúvida que esta aproximação de Francisco Leitão Ferreira reitera o princípio pedagógico da alegoria, mas não chega à complexa teorização de Baltazar Gracián, de que o teorizador português discordou em determinadas circunstâncias (Augusto, 2010: 50-64). Contudo, no tratado Agudeza y arte de ingenio, publicado pela primeira vez em Madrid em 1642, Gracián estabeleceu uma relação fundamental entre Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 183 ficção e alegoria. Partiu do conceito básico de «agudeza» para explicar a «agudeza composta» (Gracián, 1944: 243), sendo que o segundo género que a compunha era constituído pela «ficção», onde se incluiriam as «alegorias continuadas». A ficção constituía, neste caso, uma das possibilidades de unificação da estrutura composta por um conjunto de metáforas. Assim, quando no Discurso LV se tratou da agudeza composta «fingida», ou seja, por ficção, logo se destacou no início do apólogo transcrito a presença de uma estrutura narrativa, ordenadora das analogias e de outras agudezas que o compunham (Gracián, 1944: 255). Esta «invenção fingida» assentava predominantemente na semelhança, tornando-se a sua agudeza evidente nessa translação entre o «mentido» e o verdadeiro. E como esta construção ficcional se tornava fácil e doce ao intelecto, compreendia-se que grandes autores se tivessem servido deste género de agudeza composta, conduzindo à «la sagacidad y la enseñanza prudente» (264). Não se tratava só de literatura edificativa, moral ou exemplar, mas contemplava «diferentes rumbos de la invención y agudeza», uma varietas que lembrarei a propósito da estratégia de legitimação da ficção narrativa levada a cabo nos paratextos das edições portuguesas (Gracián, 1944: 257): Homero con sus epopeyas, Esopo con sus fábulas, Séneca con sus sentencias, Ovidio con sus metamorfosis, Juvenal con sus sátiras, Pitágoras con sus enigmas, Luciano con sus diálogos, Alciato con sus emblemas, Erasmo con sus refranes, el Bocalino con sus alegorías y el príncipe don Manuel con sus cuentos. Gracián manifestou uma posição diferente em relação aos estudos retóricos do seu tempo no sentido de uma maior fruição estética do texto. Assim, a agudeza por ficção, sendo sobretudo «viveza e espíritu», enquadramento correto para a alegoria, não encontrou a sua essência nas preocupações formais da composição poética, mas realizou-se de forma mais plena no texto em prosa, livre de cânones mais rígidos. Por outro lado, para o vasto campo de aplicação da construção alegórica muito deve ter contribuído o facto de esta se constituir como uma es- 184 SARA AUGUSTO pécie de macro construção, uma vez que todo o artifício conceptual por ficção, tendo em conta a definição de conceito artificioso apresentada por Gracián, dela participa. Tal participação torna-se mais visível com o apólogo, com a parábola e com a fábula, consideradas «espécies» da alegoria, por se fundarem num processo de analogia e veicularem preferencialmente conteúdos de carácter moralizante. Sobre este assunto, o autor deixa bem claro que, para além do cuidado a ter com o artifício da traça e do artifício da ficção, «siempre há de atender el arte al fruto de la moralidad, que es el fin de lo dulce y entretenido» (Gracián, 1944: 259; Batllori, 1958: 247-250). Interessa-me considerar ainda, na legitimação do meu ut pictura fictio, que o carácter visual da ficção discursiva, bem evidente na expressão de Gracián, «las cosas espirituales se pintan en figura de cosas materiales y visibles» (260), está presente em outras espécies da «agudeza fingida» (265-266), como as empresas, os hieróglifos e os emblemas. Também nesta invenção, a que Gracián chama figurada, é preponderante a analogia do figurado com o figurante. Contudo, apesar de muitas vezes a palavra utilizar os instrumentos da pintura para exprimir os seus conceitos, deve considerar-se que «el mote es alma de la pintura, siempre há de incluir agudeza» (266). E se a alegoria não estiver no mote, pois a significação da pintura pode ser tão clara que não precise de letra, assim mesmo a alegoria estará na sua leitura e na sua interpretação. Esta teorização de Gracián distancia-se completamente da redução da alegoria a tropo de oração ou a metáfora continuada, formulação constante dos compêndios de retórica. Continuando centrada na analogia, segundo a definição de conceito, a alegoria impõe-se todavia pela sua estrutura ficcional, pelas suas invenções artificiosas, pela sua visualidade, tornando-se mais ampla e mais livre na sua aplicação, ou seja, tornando-se um instrumento preferencial no estudo da narrativa ficcional barroca. Tendo em conta esta presença inequívoca da alegoria na ficção narrativa dos séculos XVII e XVIII, é possível perceber, contudo, os movimentos de metamorfose no sentido de uma utilização mais intensiva. Com efeito, o exercício da alegoria mudou, acentuando-se claramen- Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 185 te no correr do século XVII: passou da alegoria temática, segundo os termos definidos por Northrop Frye, ou seja, da possibilidade da leitura alegórica, da alegorese, para o domínio da alegoria «real» ou «contínua», construindo universos alegóricos amplos e complexos (Augusto, 2010: 94-97). A consideração destes dois passos, da interpretação alegórica à alegoria, potenciou mesmo uma classificação da ficção narrativa romanesca produzida entre 1600 e 1750. Se a convenção pastoril, que codificou a produção ficcional entre 1600 e 1630, permitiu uma leitura temática, com base em sequências e episódios alegóricos mas sobretudo numa interpretação do desengano amoroso, também a novela de entretenimento e aventura, produzida a partir de 1625, vê intensificado o seu sentido moral, mostrando como as personagens e a ação que desempenham se tornam espelho de comportamentos negativos ou positivos. Quanto às novelas morais, produzida na primeira metade do século XVIII, não são alegóricas, mas acentuam a sua intenção alegórica, na forma como conjugam o entretenimento e a exemplificação de grandes verdades morais, adquirindo o discurso um sentido mais persuasor, diretivo e sentencioso. Em contraste, a novela alegórica, produzida em ambiente conventual e religioso a partir de 1680, distingue-se claramente, pela sua coerência interna muito específica, da ficção mimética. O procedimento era facilmente reconhecido: a dupla estrutura, que oferecia a agradabilidade do enredo ao mesmo tempo que cumpria um sério propósito doutrinário e moral, e o conteúdo religioso, matéria sobre a qual se fundava a analogia. Todas estas narrativas obedecem a um percurso comum, que facilmente permite a representação esquemática, passível de representação visual diagramática. Num tempo imaginário, as personagens evoluem num espaço onde o Bem o Mal se digladiam, num processo de recuo e de aperfeiçoamento até alcançarem um estádio final. Entre modelos de ação bem determinados (a psicomaquia e a peregrinatio), balanceados entre momentos de avanço e de recuo, a narrativa alegórica deveria manifestar uma segunda leitura, de sentido moral e espiritual, que não deixasse qualquer dúvida no espírito do leitor quanto à verdade proclamada (Fletcher, 1964: 307-308). 186 SARA AUGUSTO Se esta técnica contrapontística é uma característica fundamental, outra não menos importante, e em grande parte por ela determinada, é o carácter visual e diagramático da alegoria, que já referi e confirmei. Utilizada preferencialmente para a eficaz concretização de conceitos e de abstrações variadas, devem ser tidos em conta diversos aspetos. Em primeiro lugar, é necessário considerar a tradição de representação conjunta da imagem e da letra. A emblemática, desenvolvida a partir do século XVI, sobretudo com Alciato, e depois fortemente enriquecida pelos séculos XVII e XVIII, ofereceu aos artistas, e também à literatura, uma fonte inesgotável de configurações, capazes de representarem figuras e conceitos, dos mais simples aos mais complexos. Pela descrição de personagens e de ações e pela ecfrasis, capaz de contar histórias de quadros e imagens, a narrativa alegórica encheu-se de formas, de cores, de movimentos, em constante mutação e confronto. Na verdade, alcançou requintes de fantasia e imaginação, sem nunca deixar de ensaiar e de apresentar ao leitor a reinterpretação das alegorias fundamentais da espiritualidade humana, ou seja, a vida como peregrinação; a vida como luta interior, e a vida como procura da perfeição. Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 187 2. A partir do último quartel do século XVII, a ficção romanesca assumiu uma definitiva forma alegórica. Para além da História do Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito (1682), do Padre Alexandre de Gusmão, e do Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728 e 1733), de Nuno Marques Pereira, ganharam especial relevância as novelas alegóricas, prefigurações da alma na sua peregrinação terrena em direção, produzidas em ambiente conventual por Soror Maria do Céu e Soror Madalena da Glória. Para além dos apólogos de Maria do Céu (Escarmentos de Flores, 1681; Aves Ilustradas, 1734; Metáforas das Flores, 1735; Apólogos das Pedras Preciosas, 1735), as longas novelas implicam um desenvolvimento do enredo, desdobrado em sucessivas analogias integradas no fio narrativo. É a ficção que as unifica e lhe dá um macro sentido, tal como observou Baltazar Gracián, prefigurando as etapas, em lentos passos de engano e desengano, do homo viator em roupagens de pastoras e peregrinas. De Soror Madalena da Glória é a segunda parte dos Brados do Desengano, de 1739, e o Reino da Babilónia, de 1749. Quanto à primeira obra, cuja primeira parte foi publicada em 1736, constitui um dos modelos da novela exemplar e moral da época barroca; mas a segunda parte representa a opção definitiva da autora pela expressão alegórica, entendida como a mais adequada à matéria moral e ao seu estado religioso, contrastando com o primeiro enredo profano da história de Alexandre, protagonista das duas partes da novela. No que diz respeito a Soror Maria do Céu, A Preciosa, impressa em 1731, cuja edição foi levada a cabo por Ana Hatherly, em 1990, continua a ser a configuração mais perfeita das novelas alegóricas da literatura barroca portuguesa. Toda a leitura é orientada no sentido de a interpretação dos diversos passos da vida da «pastora do vale» ser adequada aos conteúdos doutrinários relacionados com as alegorias mais significativas da espiritualidade. À margem do texto foram colocadas indicações do significado literal de cada um dos espaços e de cada uma das personagens, tal como logo no início da narrativa foi incluída uma «Declaraçam desta moral allegoria». A associação das personagens à 188 SARA AUGUSTO ilustração de um conceito moral, através da simbologia dos nomes, obriga desde logo o leitor a fazer uma constante remissão para o conteúdo moral da narrativa (Augusto, 2010: 419-433). Contudo, vou exemplificar o procedimento recorrendo a outra novela da mesma autora, os Enganos do Bosque, Desenganos do Rio, de 1736, cujas duas partes foram reunidas na edição de António Isidoro da Fonseca, em 1741, e de que retirei as citações deste trabalho (Augusto, 2012: 289-300). A bipartição do título desde logo denuncia a dualidade dos espaços entre os quais de move a Peregrina, evidente prefiguração da alma humana na sua vida terrena e da sua capacidade de opção. Com efeito, como se afirma no «Prólogo», na edição de 1736, paratexto fundamental para o estudo da alegoria desenvolvida e para a sua legitimação, «a todos os que nascem, se lhes mostram dous caminhos, um dos vícios, outro das virtudes, assim o representa esta Peregrina». Trata-se de um percurso balanceado entre o Vergel do Pastor e o Bosque do Caçador, um caminho feito de erros e de enganos que permitem um crescimento sofrido em direção à verdade e ao desengano. A descrição antagónica, entre «horror» e «alegria» encerra em si uma segunda oposição que se revelará no final da novela, o contraste entre a aparência e a realidade, uma construção quiasmática que atravessa, como trave mestra, toda a estrutura da novela (2): [...] um parecia Corte de Primavera, o outro esquecimento de Abril, este todo espinhos, todo silvas, todo abrolhos, aquele todo flores, todo rosas, todo gala, um era capela de aves músicas, ao outro se arrojavam voos tristes, em um se ouvia o canto, de outro se podia fazer o lamento, de um só se viam verdes mansões, de outro se avistavam ásperas subidas, este oferecia tudo tropeços, aquele mostrava tudo seguros, um convidava a fadigas, o outro chamava a lisonjas, um era horror à planta delicada, o outro alegria aos olhos descuidados; tais os caminhos, neles vacilava a Peregrina duvidosa [...]. Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 189 Contudo, esta metamorfose foi-se revelando ainda ao longo da novela, quando no capítulo III (26-29), se descreveu o Bosque e o Caçador. Foi sob o domínio do engano que a Peregrina percorreu as moradas dos deuses do bosque, entregue às artimanhas das ninfas e das caçadoras. Durante seis capítulos (III-VIII) visitou os seis ídolos adorados no Bosque. A construção de cada episódio é paralela e contempla a descrição de cada ídolo, recorrendo a uma representação visual, emblemática, de que se vai descodificar o sentido e que resulta sempre numa lição que acentua o desengano. Assim, a «nobreza» identificava-se por uma «coroa de flores», que «vista era coroa, palpada era ar»; a «fermosura», com uma rosa, «gala murcha, sua beleza afeiada»; a «Discrição humana», com uma pena, que «voou ligeira»; a «esperança do mundo», com uma «tesoura» na «mão vazia»; a «riqueza» com uma maçã de ouro que se desfez em terra; e o «amor-próprio», com um ramo de flores de onde saltou «venenoso aspid». A descrição da Riqueza associa os adereços típicos a uma leitura moral, procedimento que se repete com cada um dos outros ídolos (82): Era uma mulher de luzidos olhos, prateada tez, dourados cabelos, vestia de tela de prata, e assim manto como roupa bordava de botões de ouro, gala que estudar-se-lhe o ser, fora injuria, a cabeça era um tesouro de joias, e quanto mais leve na consideração, mais capaz de fazia para o peso. No final de cada episódio inscreve-se o respetivo desengano, num processo de enumeração e recolha, de interrogação sequencial e devida confirmação, que acentuam a pretendida moralização final (84-85): Que vales riqueza? Vales uma alma? Não, que a condenas. Vales uma vida? Não, que a arriscas. Vales um sossego? Não, que o destróis. Vales um alívio? Não, que és peso. Vales um descanso? Não, que és cuidado. Vales uma respiração? Não, que és afogo. Arriscas a vida de quem te busca; condenas a alma de quem te guarda; destróis o sossego de 190 SARA AUGUSTO quem te conserva; fazes do sono cuidado, do alívio carga, da respiração receio, e és tesouro? Adonde pois está o teu valor, que se o achou a estimação, eu não o descubro na realidade; contigo poderá o homem comprar mais mundo; porém não poderá o homem comprar mais vida. Depois de confrontada com a vanidade dos seis ídolos do bosque, a Peregrina decidiu-se a abandonar aquele «labirinto de enganos». O caminho para o Vergel, que constitui a segunda parte da obra, implica um percurso de profundo despojamento e luta interior, de combate ao amor-próprio e aos rumores do mundo. Nesta condução da Peregrina, vão ser fundamentais as figuras dos pastores, prefiguração de mulheres e homens santos, que surgem no enredo como lição e incentivo. A Peregrina foi-se despojando das galas, mortificando os sentidos, cultivando as virtudes, e terminou a peregrinação quando chegou ao termo da sua vida. Tendo alcançado a excelência interior, capaz de ver para além da aparência, o que era «horror» transformou-se em exuberante «paraíso», cumprindo-se o quiasmo que anteriormente referi. A descrição atinge o seu maior efeito não só pela visualidade reforçada, pelo pormenor descritivo, em regime de acumulação, mas também pela construção sinestésica. Apesar da longa citação, transcrevo a tentativa de descrição deste «éden», retomando as palavras finais e prudentes de Soror Maria do Céu, «e não continue minha ignorância esta pintura, porque já ouço que nela todo o homem mente» (162-163): [...] se achou em um delicioso Vergel, reverdeceu o celeste Paraíso, nova esfera de luzes, raro labirinto de flores, lugar de que só era digna a admiração. Ali toda a vista era graça, toda a flor maravilha, toda a planta esmeralda; as fontes eram pérolas líquidas, os ares flores sem cor pela fragância, as respirações alentos divinos e nada parecia do ser humano, os cravos brotavam incêndios, as rosas não padeciam desmaios, os jacintos padeciam ciúmes, as murtas não significavam dor, a beleza das flores correspondia à fermosura das árvores de pomos, de nenhuma parecia mãe a terra, de todas sim creador o Sol, e as maçãs, Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 191 que no primeiro jardim foram discórdias, aqui eram amores. As aves vestiam de pena e cantavam de glória; estavam paradas porque não tinham adonde levantar o voo; o cristal que a pedaços se via, brilhava ouro, o ouro nos pomos transparente como o cristal. As ruas deste paraíso calçavam pedras preciosas; as portas adornavam pérolas finas, os muros alabrastos superiores. No meio se via uma fonte de vida; a cujas águas corriam as almas sendo seu ruído mais suave que de doce cítara a branda voz. Nas «ruas deste paraíso», a Peregrina recebeu «o prémio de seus trabalhos», encontrou «o fim de seu caminho, o porto de sua navegação, o achado de seu amor, e quem seguir a mesma via para a virtude, descobrirá o mesmo Vergel para a eternidade» (168). A moralização final, afirmando a infinita misericórdia divina, fecha o universo narrativo. Sem grandes arroubos de fantasia, pelo menos ao nível extremo d’A Preciosa, esta história da Peregrina segue as regras da alegoria moral: mantém a estrutura alegórica contínua, apresentando dois sentidos em paralelo; segue os modelos esperados da progressão e do combate interior, incluindo a alegoria dos desposórios, na última parte. A figura do Pastor e o motivo da «água viva», presente também no rio dos desenganos, de águas claras, contrastando com a sombra do bosque, símbolo do mundo e dos seus enganos, são outros aspetos que ganham maior relevo no título dual e bipartido de Enganos do Bosque, Desenganos do Rio. 3. O comentário e a transcrição de passos mais longos da novela de Soror Maria do Céu permitiu esclarecer a forma como a alegoria se tornou um dos procedimentos mais valorizados exatamente pela sua «capacidade de representação», de «dar a ver», prefigurando conceitos. E foi capaz de fazê-lo ao nível imediato da metáfora, na composição de personagens e de cenários, mas sobretudo teve o alcance de organizar toda a estrutura narrativa em função da demonstração ou do cumprimento de um princípio ou de um conjunto de princípios morais. 192 SARA AUGUSTO Mas este «modo alegórico», enquanto processo de codificação do discurso segundo a teoria de Angus Fletcher, apresentada em 1964 com a publicação de Allegory: the Theory of a Simbolic Mode, serviu muito mais que o gosto pela metáfora e o prazer lúdico da literatura barroca. Tornou-se também decisivo na consideração entre esse gosto e as suas potencialidades pedagógicas. Retomo assim a dicotomia horaciana do prodesse ac delectare, que se manteve válida durante a Idade Média, se viu acentuada no século XVI (Weinberg, 1963: I, 71), e reforçada na época barroca. A noção de que a literatura tinha como duplo objetivo ensinar e deleitar tornou-se decisiva entre os comentadores de Horácio, aqueles que constituíam a «Horatian-rhetorical tradition», no Renascimento italiano, entre 1546 e 1560 (Weinberg, 1963: I, 150), sem contudo perder de vista que a tarefa essencial era o ensinamento, fosse de carácter moral ou político, facilitado através de processos que o tornam mais agradável. Ainda assim, não foi um equilíbrio fácil: a focalização na utilidade, no proveito e no exemplo, permitiram uma medida que se tornou o necessário contraponto ao furor aristotélico barroco, como tão bem explicou Aníbal Pinto de Castro num dos seus mais importantes estudos, «Os códigos poéticos em Portugal do Renascimento ao Barroco», de 1985. Com razão, e proveito, a produção ficcional invocou esta submissão do deleite ao desígnio moral, no longo caminho que teve de percorrer para atingir uma «autonomização» que ainda assim a época barroca não lhe reconheceu devidamente. Este facto, o do não reconhecimento, definiu o caminho da ficção barroca, da novela de aventuras até à novela alegórica, como de seguida explicarei. Antes de referir a «luta» da ficção narrativa pela conquista de um espaço legítimo de produção e leitura, é necessário ter em conta como o contexto social, moral e religioso, que incorporara os princípios pós-tridentinos de uma regularização da espiritualidade, condicionou a produção literária. As aprovações do Santo Ofício, que resultaram em longos textos que delineavam princípios de produção e leitura, acentuando o valor moral e doutrinário, são um exemplo desse facto, tal como também o são os Prólogos do Autor, cujas protestações «sentidas» Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 193 de «moralidade» devem ter valido a publicação de muitas obras de cariz profano. Tendo em conta o estudo que eu própria levei a cabo em alguns capítulos de A Alegoria na Ficção Romanesca do Maneirismo e do Barroco, publicado em 2010, mas sobretudo o trabalho sistemático de Maria Inês Nemésio (2010), «Exemplares Novelas» e Novelas Exemplares: os Paratextos da Ficção em Prosa no Século XVII, tese defendida nesse mesmo ano, não se torna difícil concluir como pelos prólogos, dedicatórias e censuras da Inquisição e do Paço, correu uma parte significativa da teorização sobre a legitimação da novela, no ciclo completo de produção e leitura. Na base deste processo de validação esteve presente a invocação dos dois princípios referidos, o prodesse e o delectare, sendo que em qualquer dos casos a analogia entre poesia e pintura se torna pertinente, proporcionando a sedução dos sentidos e facilitando o ensino. Um dos símiles mais significativos dos paratextos é o «símile» da abelha, lido no «Prólogo ao Leitor» da Constante Florinda, na edição de 1672, com as suas duas partes publicadas respetivamente em 1625 e 1633, e recolhido por Gaspar Pires Rebelo em Plínio, onde se afirma que «as abelhas (…) não só de uma flor fazem o favo, mas de muitas e várias que colhem, dispostas pela ordem que a natureza lhes ensina, fazem e aperfeiçoam seu doce mel». A vantagem desta varietas torna-se evidente na explicação («Prólogo ao Leitor»): [...] pois nem só os livros e lições espirituais e divinas a nosso entendimento aproveitam se não aqueles que em humanidades e lições várias se fundam: e estes também mereçam ser estimados, pois em seu género ajudam a perfeição, ou ao menos fazem com que a bondade dos outros mais resplandeça, para que de todos possa ser mais estimada. Esta justificação da leitura de obras profanas conjuga-se com a defesa da sua produção ou da inclusão de profanidades. Neste sentido 194 SARA AUGUSTO a «Protestação do Autor», datada de 1672, na edição dos Cristais da Alma, de Gerardo de Escobar, equaciona a «liberdade poética», colocando formulações menos ortodoxas no domínio do exercício ficcional: «Uso de deidades, adorações, sacrifícios, entregues da alma e outros hipérboles introduzidos como licenças poéticas, frases amorosas e não em verdadeiro sentir, enquanto são gala do dizer e não desvios do sentir católico». Sintomáticos, e mais estruturados, são os paratextos da longa novela do Padre Mateus Ribeiro, o Alívio de Tristes e Consolação de Queixosos, nas edições de 1648, 1672 e 1688 (Augusto, 2010: 300-305). Aos seus leitores, tomando os exemplos de Séneca, Cícero, Plutarco, Pitágoras, Ovídio, S. Gregório Papa e Santo Ambrósio, no sentido de que «a consolação para ser bem recebida há-de incluir suavidade que divirta, e não severidade, ou aspereza, que magoe», diz Mateus Ribeiro, na edição de 1688 («Prólogo ao Leitor»): Meu intento é aproveitar com este piqueno volume a todos os que no mar deste mundo navegam derrotados de sentimentos, molestados de tristezas, queixando-se continuamente das que se chamam erradamente desgraças e infortúnios. O maior prémio para mi deste trabalho será que todos com ele suas aflições aliviem, e suas queixas consolem, advertindo juntamente aos descuidados para que não se fiem das bonanças, encaminhando aos queixosos, para que não desanimem com as tormentas desta peregrinação, em quanto não chegamos à tranquilidade, e consolação verdadeira das alegrias da glória, a que Deus nos leve, por sua infinita bondade. Amen. Vale. «Aliviar aflições e consolar as queixas»: este sentido edificante justificava que o Padre Mateus Ribeiro se dedicasse às novelas de amor e de entretenimento. E como o sucesso foi significativo, apesar das vozes adversas a estratégia foi repetida nas novelas seguintes. Os dois prólogos que constam na edição de 1754, em dois tomos, da qual retirei as citações, são muito significativos em termos de legitimação da novela de entretenimento cortês. Como afirma Luis de Moraes e Castro, Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 195 que custeou a edição e pode ter sido o autor dos longos prólogos, «falta só uma breve Apologia do assunto que ele escolheu, para a maior parte dela, pois não faltam censores presumidos de austeros que condenem a um Eclesiástico compor Novelas». Entre os argumentos da defesa de Mateus Ribeiro constou a indicação do sucesso que as obras do autor tinham mas sobretudo a indicação de outros homens da igreja, bispos e santos que «nos poemas trataram em verso as mesmas matérias que os autores das novelas escreveram em prosa». Mas há dois argumentos que apresentam fundamentações teóricas de grande significado. O primeiro diz respeito ao opúsculo sobre a origem da novela romanesca, com o título Liber de origine Fabularum Romanensium, lido na edição de 1757, da autoria de Pedro (Pierre) Daniel Huet. Na sua definição de «novela» e dos procedimentos típicos a ela associados, Pedro Huet contempla desde logo a descrição da estrutura (carácter ficcional e escolha da prosa) e do conteúdo preferenciais (de carácter amoroso), correspondendo a uma longa tradição que desdobra no seu opúsculo. Essa mesma tradição considerava a utilização da alegoria, adequada ad voluptatem et utilitatem legentium. Com efeito, os escritores teriam de ter em conta que o enredo deveria apelar ao comportamento virtuoso, mostrando claramente o prémio merecido pela virtude, tal como também manifestos seriam os efeitos de atitudes viciosas. Já que o homem dificilmente se prendia por textos doutrinários, a novela teria como função conduzir e orientar suavemente a vontade pela escolha de exemplos oportunos, ut doceat animos moresque corrigat. Como afirma o editor (Prólogo I): O eruditíssimo Pedro Daniel Huet, Bispo de Abranches, e segundo Mestre do Delfim, escreveu em Latim e em Francês um doutíssimo tratado da origem e bom uso das novelas, e quando estas são como devem ser exemplares, pouco importa que um Eclesiástico debaixo de uma ficção engenhosa mostre o prémio e estimação da virtude, o castigo e abominação do vício. SARA AUGUSTO 196 O segundo argumento tem em conta o conceito da eutrapélia, valorizada por Aristóteles, na Ética a Nicómano: dizia respeito à capacidade e à necessidade demonstrada por certos homens de se entregarem, nos momentos de repouso e de tempo livre, quando o corpo precisa de descansar das fadigas e a alma precisa do alívio e da descontração, a um divertimento sem excessos, ocupando-se em conversação engenhosa e divertida, para voltarem ao trabalho com as forças renovadas (Aristóteles, 1981: 164-166). A eutrapélia, «virtud reguladora de las recreaciones á veces necessarias para el reposo del ánimo», foi integrada por São Tomás de Aquino na doutrina cristã (1882: 984), e a sua abordagem permite uma adaptação da teoria aristotélica ao campo da produção literária de entretenimento de matérias profanas. Na questão CLXVIII da Suma Teológica, São Tomás trata do ornato e da eutrapélia, virtudes consideradas no campo da modéstia, controlando as atitudes pelo decoro, pela compostura e pela moderação. A eutrapélia, a alegria sã e lícita, torna-se uma virtude social, convocando para o jogo, para a diversão, para o gracejo e para a festa, mas sempre condenando o exagero e a corrupção do carácter. Assim se justifica o comentário do editor: «(...) que a virtude da Eutrapélia, que o Doutor Angélico louva e a Filosofia aprova, é precisa para que os tristes tenham algum alívio, os cuidados algum retiro, e a desigualdade da roda da fortuna, alguma consolação de que tanto necessitam os beneméritos e felizes». 4. Voltamos ao título deste trabalho: ut pictura fictio. A relação entre imagem e ficção foi-se desenhando ao longo desta apresentação, levantando considerações fundamentais para qualquer estudo na área da narrativa ficcional maneirista e barroca. Em primeiro lugar, os procedimentos que têm a ver com a extrema visualidade da literatura desta época não são específicos da narrativa, sendo partilhados largamente com a poesia e outros géneros. Mas adquirem na narrativa ficcional uma amplitude que os torna mais visíveis e mais significativos, sobretudo Ut pictura fictio. Ficção romanesca do maneirismo e do barroco 197 quando conjugam o recurso insistente à metáfora e à descrição. E tornam-se mais expressivos ainda quando falamos de alegoria. Mas este comprazimento na figuração, na representação visual, embora possa ser visto como consequência lógica do exercício da imaginação barroca, deve ser considerado a um nível mais elevado, enquanto fator decisivo na dimensão exemplar que percorreu toda a ficção barroca. Com efeito, a figuração dos conceitos, através da ação e das personagens que lhe dão forma, ordenando as analogias em relações de causa-efeito, deleitando os sentidos e alimentando o espírito, são os fundamentos do título deste trabalho, ut pictura fictio. Terminada esta etapa do estudo da ficção romanesca do maneirismo e do barroco, outras se têm cumprido e ainda outras se anunciam, potenciando uma imagem mais completa da literatura barroca. O certo é que um dos caminhos mais significativos terá de passar por um estudo sistemático das estruturas emblemáticas e a relação que estabelecem com a narrativa ficcional. Com efeito, a literatura barroca, nas suas mais diversas manifestações, da poesia à prosa, da literatura religiosa à literatura profana, deverá forçosamente ser considerada como um dos repositórios mais significativos das estruturas visuais e da emblemática na sua época. REFERÊNCIAS Fontes CÉU, Soror Maria do. 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Barbosa Universidade Federal da Paraíba (UFPB), CNPq RESUMO Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa sobre a escrita epistolar em periódicos brasileiros do século XIX e tem como objetivo restaurar os sentidos da «Introdução às Cartas chilenas» ou «Epístola a Critilo», publicada no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedota, em 1826. A autoria dessa epístola é tema corrente nos estudos da história da literatura, sempre a considerar a sua íntima relação com a Inconfidência mineira. Esta análise, ao contrário, se aproxima do objeto a partir de suas condições de produção de escrita à época, considerando dois aspectos precípuos, comummente esquecidos por críticos literários e historiadores, a sátira como escrita regrada, cujo assunto é o tempo presente, e o jornal no início do século XIX, com o uso recorrente da alegoria como prática de escrita. Assim, considerando a murmuração dos jornais e impressos da época, esta abordagem retoma os atos discursivos do tempo –o ano de 1826– para demonstrar a relação que a carta mantém com os desvios de conduta do imperador D. Pedro I. Palavras-chave: Jornais e Periódicos do Século XIX; Escrita Epistolar; Sátira; D. Pedro I 1 Este artigo apresenta resultados parciais da pesquisa «A escrita epistolar nos quadros da cultura luso-brasileira: (1808 -1840)», em andamento, financiada com bolsa de produtividade do CNPq, cuja pesquisa é o desdobramento de uma investigação realizada de 2009 a 2011 sobre a escrita epistolar nos periódicos. Socorro de Fátima P. Barbosa 202 ABSTRACT This paper shows results of a research on the epistolary writing in Brazilian newspapers of nineteenth century and aims to restore the right sense of the “Introdução às Cartas Chilenas” or “Epístola a Critilo,” published on Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedota, in 1826. This is a frequent topic in the studies on the History of Literature, which is always considering the aspects of authorship and its intimate relationship with the «Inconfidência Mineira». The present analysis, in contrast, approaches the subject from the conditions of writing production at that time, considering two relevant aspects, commonly overlooked by literary critics and historians: satire as a ruled writing mode, whose subject is the present time, and the newspaper in the beginning of nineteenth century, with the allegory recurrent uses as a writing practice. Thus, considering the murmuring of both newspapers and printed texts at that time, this approach drives to the discursive acts of the time –the year 1826- to demonstrate the relationship that the letter keeps with the misconduct of the emperor D. Pedro I. Keywords: 19th Century Newspapers and Periodicals; Epistolary Writing; Satire; D. Pedro I. 1. Sobre manuscritos, pseudônimos e apócrifos em periódicos do século XIX Este estudo tem como objetivo considerar o processo de escrita da «Introdução às cartas chilenas» ou «Epístola a Critilo», publicada no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas, em 1826, e assinada com as iniciais C. M. C,2 lidas como as letras do nome do mineiro Claudio Manoel da Costa. A epístola, consagrada pela história da literatura brasileira, foi-lhe primeiramente atribuída por Varnhagen (1850), que logo depois abandonou esta hipótese em favor de Alvarenga Peixoto, retificando-a posteriormente. Atualmente, a autoria da «Epístola a Critilo» é atribuída a Tomás Antonio Gonzaga quando foi incorporada às Cartas chilenas (1957; 1958), um conjunto de epístolas, primeiramente 2 Conferir os Anexos com a publicação da epístola no periódico Jornal Científico, Econômico, e Literário. A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 203 publicado no periódico Minerva Brasiliense, em 1845.3 A autoria das cartas e sua íntima relação com a Inconfidência mineira, como libelo e pasquim libertário, é tema corrente nos estudos da historiografia da literatura brasileira desde o século XIX (Silva, 1865; Lapa, 1957 e 1958; Oliveira, 1972). Este trabalho, ao contrário, se aproxima desse objeto a partir das condições de produção de sua escrita à época, considerando dois aspectos precípuos a esta epístola, comummente esquecidos por críticos literários e historiadores: a sátira como escrita regrada, que tem como assunto o tempo histórico de sua enunciação e a cultura escrita que a carrega, no caso dessa epistola, o jornal do início do século XIX, que utilizou sobremaneira a alegoria como prática escriturária (Barbosa, 2007). Ao retomar o estudo desta epístola, a partir de sua primeira publicação no Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas, em 1826, sem considerar as apropriações, as adaptações e os vários usos que dela foram feitos pela posteridade, compreendo que a pesquisa dos objetos literários, em periódicos do século XIX, não deve retirar os textos escolhidos do seu contexto de produção, mas confrontá-los com os modos de ler e de escrever do tempo que, geralmente, são diversos daqueles elaborados pelos historiadores. Para tanto, não basta enunciar a filiação política dos jornais, tampouco considerar este suporte como arquivo morto, depositário de relíquias preciosas da literatura brasileira (Barbosa, 2007), mas analisar os procedimentos de escrita adotados pelo proprietário ou pelo redator, bem como o diálogo que o periódico estabelece com outros jornais e os discursos do seu tempo dos quais se julga suficiente apenas extrair os indícios de realidade.4 3 Neste trabalho evito as questões célebres sobre autoria, originalidade, paródia, crítica e, principalmente, a que estabelece uma relação entre os versos desta Epístola e as Cartas Chilenas (1845), de Tomás Antonio Gonzaga já editadas (Gonzaga, 1957; Gonzaga, 1958). Para maiores informações, remeto o leitor para o exaustivo trabalho de Joaci Furtado (1997), no qual encontrará além de uma bibliografia completa sobre o assunto, uma acalorada discussão sobre todas as apropriações que as Cartas Chilenas tiveram desde o século XIX. O trabalho do escritor, contudo, não aborda a versão publicada no Jornal Científico (1826). 4 Foi na construção desta pesquisa metodológica, desenvolvida desde 2009, quando dei início a uma investigação sobre a escrita epistolar nos periódicos, que passei a questionar a construção desta epístola, publicada primeiramente em um periódico, com todos os mecanismos de escrita próprios às práticas de funcionamento dos periódicos do século XIX, 204 Socorro de Fátima P. Barbosa O Jornal Científico tinha como redatores Felisberto Inácio Januário Cordeiro, que serviu diversos cargos públicos, e José Vitorino dos Santos, professor de geometria descritiva da Real Academia Militar, desde o período joanino teve apenas três números, maio, junho e julho de 1826, e deixou de circular por ter conseguido apenas 5 assinantes, o que não dava para pagar as despesas de impressão, como sugere a sua lacônica despedida: «e está, portanto, paralisada uma empresa, aliás louvável e proveitosa, por isso mesmo que, –sendo ditas despesas bastantemente avultadas, não é possível aos abaixo assinados efetuá-las sem o auxílio de suficientes subscrições» (Jornal Científico, 1826, 270, V. III).5 E seria mais um entre as dezenas de periódicos da época, esquecidos pela história da literatura, não fosse a publicação do poema «Vila Rica» e da «Introdução à Epístola a Critilo», dois textos aos quais se pode aplicar a categoria segundo a qual, alguns escritos anteriores ao romantismo são «capturados como prenúncio do Advento, prefigurando o progresso futuro da Identidade Nacional» (Hansen, 1997: 12). A história da construção deste monumento tem início quando Rodrigues Lapa, confiante nas informações recebidas de terceiros, registra haver no Jornal Científico referências que indicam serem as Cartas Chilenas de autoria de Gonzaga. Ao contrário do que afirma Rodrigues Lapa, não há nos três números do Jornal Científico qualquer referência às Cartas Chilenas. O historiador e maior estudioso deste assunto, no afã de comprovar a sua hipótese de ser o poeta mineiro o autor da epístola, constrói este fato literário sem ter consultado o jornal, tampouco ter lido Helio Viana, a quem atribui a informação de encontrar-se no Jornal Científico dados relativos à autoria da carta. Como revela em nota de rodapé,6 esta informação, reproduzida sempre como fato comprovado, lhe foi transmitida de segunda mão, por Afonso Pena (Lapa, 1958: 12). mas romanticamente apropriada por historiadores daquele tempo. Conferir VARNHAGEN (1850). 5 Para efeito de uniformização, nas citações da «Epístola a Critilo» usarei apenas os dois primeiros nomes: «Jornal Científico», seguido das iniciais C. M. C. 6 A nota afirma o seguinte: «não podendo haver à mão, no momento em que escrevíamos isto, livro de Hélio Viana, devemos estas informações ao Dr. Afonso Pena Júnior, que consultou pessoalmente o referido prospeto»(Lapa, 1958: 12). A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 205 Decerto que os redatores tinham como objetivo a publicação de manuscritos, como se observa na passagem a seguir extraída do primeiro número de o Jornal Científico (grifos meus): O de publicar de várias maneiras, vantajosa para o Brasil, onde parece ter havido omissão em se vulgarizarem pela Imprensa, (por este, ou por outro algum meio útil) muitas e excelente obras, raros e interessantes manuscritos que tanto no nosso idioma como nas línguas estrangeiras existem e são dignos de chegar ao conhecimento dos Brasileiros[...]. Lida na perspectiva daquele tempo presente deve-se considerar que os manuscritos elencados pelos editores estão no rol dos impressos existentes à época, os quais se constituíam em uma das formas de publicação de escritos, mas representavam um modo de divulgação da cultura escrita que não se opunha, nem se confrontava aos impressos (Chartier, 2002). Esta tese também é defendida por Lisboa (2011: 19) que estuda as gazetas manuscritas de Portugal. Para ele, «os mundos do impresso e os mundos do manuscrito relacionavam-se, competiam, completavam-se por toda a Europa, entre o século XV e XVIII». No Brasil, a circulação de manuscritos não ocorreu, como romanticamente nos foi transmitido, apenas como um modo de subversão às proibições da coroa portuguesa de impressão na Colônia. É Lisboa (2011) quem dá notícias do artigo de Ferlini (1984), que reproduz e analisa um manuscrito do período colonial com o título de Gazeta de Pernambuco. Ademais, ao contrário de uma concepção romântica e anacrônica, os manuscritos não devem ser concebidos apenas como tesouros não publicados dos grandes autores da literatura brasileira, mas devem ser incluídos no rol das publicações populares, de uma prática de escrita na qual estão inseridos «outros escritos expostos (anúncios, libelos, pasquins, grafite etc.) [que] trazem um conteúdo subversivo: difamam os indivíduos, ridicularizam os poderosos, denunciam os poderes» (Chartier, 2002: 81). Com isso, refuta-se outra concepção anacrônica e romântica sobre os manuscritos, atualizada em várias leituras sobre o século XIX, que lhes atribui certo 206 Socorro de Fátima P. Barbosa caráter subversivo, de objeto escondido, que teria ficado intocado, sem qualquer circulação ao longo dos anos. Os manuscritos, como demonstram as devassas, os testamentos e a história da leitura e dos impressos, circulavam entre os leitores do mesmo modo que os livros, sendo a cópia uma das práticas correntes de leitura e de escrita7. Segundo Chartier, desde o século XVI que a Europa testemunha em inventários a importância e a frequência desses papeis manuscritos, «escritos do cotidiano e do privado» que assumem formas como «livros de contas, livros de razão, cartas, bilhetes etc» (Chartier, 2002: 83). No mundo luso tem-se o caso de O Reino da Estupidez, de Mello Franco, uma sátira à Universidade de Coimbra, que teria circulado em forma manuscrita em 1785, quando da saída do seu autor da prisão. Ademais, não se deve esquecer o fascínio que os manuscritos perdidos exerceram sobre a história de várias obras, entre elas Cardenio, de Shakespeare (Chartier, 2012), «cujo desaparecimento cria uma falta intolerável». No caso português, trata-se de um topos recorrente desde a Crônica do Imperador Clarimundo, de João de Barros, no século XVI. A abordagem da «Epístola a Critilo» (Jornal Científico: C. M. C., 1826), no contexto deste artigo, é uma tentativa de desarticular os princípios de uma «ordem do discurso», nascida em começos do século XVIII, que se baseava, segundo Chartier (2012: 266) «na individualização da escrita, na originalidade das obras e na canonização do autor». A esta «nascente ordem do discurso» no caso brasileiro foram acrescidos dois novos ingredientes: a Inconfidência Mineira e o nacionalismo literário que, como afirma Hansen (1997: 12), já citado anteriormente, via em todas as obras o prenúncio de uma «Identidade Nacional». 7 É o que se observa nas palavras de Manuel Ignacio Silva Alvarenga, ao responder à diligência do Desembargador Antonio Diniz da Cruz: «E logo foi mais perguntado por ele, Desembargador-chanceler, se, com efeito, se havia feito a dita sátira, se ele, respondente, fora o autor dela, ou se a vira e a publicara, e contra quem ela se dirigia. [...]. Respondeu que ele não fora o seu autor, mas que só a vira por lha introduzirem por baixo da porta; que ela constava de diversos sonetos que demonstravam se feitos por diversos, não só pela diversidade das letras, mas pela diversidade dos estilos; e que o sujeito contra quem os mesmo sonetos se dirigiam era um religioso ou dois Santo Antonio, dos quais só lhe parece chamar- se um Frei Raimundo». Autos da Devassa: prisão dos letrados do Rio de Janeiro, 1794. [Fábio Lucas et al]. 2.ª ed. Rio de Janeiro. Eduerj, 2002, p. 149. A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 207 2. A sátira: fere para corrigir Ao abordar o Jornal Científico o leitor da atualidade não pode deixar de observar que, em 1826, os jornais da corte dividiam-se entre os áulicos, como era o caso de O Spectador Brasileiro, o Diário Fluminense e a Gazeta do Brasil e os de oposição, alguns censurados, como O Verdadeiro Liberal, «cujo diretor Pierre Chapuis foi expulso do país» (Sodré, 1997: 99). O Diário do Rio de Janeiro, por sua vez, pregava isenção política mas se não tinha o caráter áulico, também se prestou a publicar declarações e editais do Império, e não apenas os anúncios de manteiga e de outras mercadorias que lhe valeram o epíteto de «Diário da Manteiga» e «Diário do Vintém». Em dois momentos, observa-se que o Jornal Científico buscou se diferençar daqueles de oposição, no que tinham de virulentos e na maneira como abordariam o tema de interesse central dos periódicos da época: a política. Nesse primeiro momento, representado pela passagem a seguir, os redatores demonstram o tom do seu jornal já na sua apresentação. Não se trata de mais um libelo contra a Coroa, mas de uma obra patriótica, motivo que corrobora o teor de correção dos costumes, e não de oposição ao governo, observados na «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» (Jornal Científico,1826: 3/4. Grifos meus): A empresa em que vão entrar os dois Amadores das Ciências, e das Artes, é entre os testemunhos de Patriotismo um dos que mais acreditam aqueles que se interessam vivamente pela glória, e prosperidade Nacional. Este Periódico digna produção dos Autores dos Anais Científicos nos vem vingar da vergonha que tem lançado sobre nós algumas folhas, em outros tempos apareceram; e que hoje recomeçam a aparecer com o mesmo execrando rito. O outro aspecto que interessa de perto à leitura que se propõe neste artigo é o de observar o modo como os redatores pretendem incluir a política no repertório de assuntos do jornal. A citação é longa, mas fundamental para a compreensão da hipótese que defendo, segundo a qual, 208 Socorro de Fátima P. Barbosa a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» é uma composição de 1826, que utiliza a sátira para criticar o comportamento obsceno do Imperador (Jornal Científico,1826: 95/96. Grifos meus): Temos, porém certeza de que, alguns sujeitos tem condenado no Jornal a falta de mais um título geral, qual o de = Política =, por isso mesmo que este ramo é talvez aquele que, bem ou mal entendidamente, mais os interessa […]. As Considerações sobre a Liberdade da Imprensa = a Memória sobre a divisão e assoreamento dos terrenos, = e as Providências = que lembramos serem indispensavelmente precisa, &c. &c., parece-nos que bem demonstram, que o artigo = Política = será indireta, útil e circunspectamente por nós desenvolvido, independente do maior aparato, que poderia dar-lhe um outro Título geral reservado para a sua explanação. Para os leitores da época, era possível ler a epístola a partir de uma relação indireta estabelecida entre aquilo que estava escrito no jornal e a sua matéria. Outro aspecto fundamental desta epístola retirado de suas versões posteriores foram as notas de rodapé, presentes na publicação original que, conforme veremos, duplicavam o seu sentido, favorecendo a sua leitura. O redator refere-se, sobretudo, à linguagem alegórica, tão presente à época, capaz de abordar de forma segura os mais variados assuntos. No dizer de Lopes Gama (1846: 146), um homem daquele tempo, «a alegoria é muitas vezes um meio astucioso de dar lições a homens, a quem a cegueira das paixões ou orgulho do poder faria cegos, ou rebeldes à verdade. A alegoria torna-se necessariamente o tropo usual do escravo que quer dar a entender suas queixas legítimas sem o risco de ofender ao seu senhor». Razão pela qual, justifica-se o estilo empregado –a sátira, uma forma de linguagem alegórica– para consertar os vícios do imperador, a partir de uma das maneiras mais eficazes de escrever política de forma «indireta, útil e circunspecta», como o querem os redatores do Jornal Científico. Em face de todas essas considerações, lê-se aqui esta epístola como sendo produzida, como já foi dito anteriormente, a partir de duas A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 209 considerações de ordem teórico-metodológica: trata-se de escrito de um gênero específico, a sátira, concebido como uma escrita regrada, cuja referência não deve ser «postulada fora do funcionamento de um tipo (ou tipos) e de uma convenção literária no discurso poético» (Hansen, 1989: 36). Escrita e compreendida a partir da sua publicação em um periódico do início do século XIX, aplica-se nesta leitura da «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» todas as estratégias de escrita previstas pelo gênero sátira e pelo suporte jornal, entre as quais estão o anonimato, o uso de iniciais, a dissimulação e o disfarce como estratégias retóricas de convencimento e de encobrimento, sendo todas compreendidas e decifradas pelos seus leitores contemporâneos (Barbosa, 2011). Dessa forma, passa-se a tratar a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» a partir dos critérios previstos para a sátira, os quais compreendem a sua «função social de reconhecimento», supondo que sua historicidade «de modo algum [é] exterior ou posterior à sua própria história», por isso, não é conveniente interpretar a sátira, uma vez que «nada oculta», mas «antes relacioná-la com outras práticas e eventos contemporâneos dela» (Hansen, 1987: 472). Depois, é preciso considerar que, no que concerne à sátira, desde sempre houve uma relação muito estreita entre ela e a política no sentido mais amplo. Segundo Hodgart (2009: 38): a sátira não é apenas a forma mais comum da literatura política, mas, na medida em que tenta influenciar o comportamento do público, é a parte mais política de toda a literatura [...]. Os inimigos da sátira são tirania e provincianismo, que muitas vezes andam juntos. Tiranos não gostam de qualquer forma de crítica, porque nunca sabem onde levará e na vida provincial livre crítica é sentida como subversiva da ordem e da decência [...]. Sátira política precisa de [...] um pouco de sofisticação: sofisticação política (tanto o humorista como o seu público devem compreender alguns dos processos de política) e sofisticação estética (o humorista deve ser capaz de contemplar o cenário político com humor e desprendimento, bem como com paixão, ou ele vai produzir apenas polêmica bruta). 210 Socorro de Fátima P. Barbosa A sátira é, portanto, uma escrita do tempo presente e como forma mista «implica apropriação, interpolação, alteração, falsa atribuição etc. Nela, o plágio é estrutural» (Hansen, 1989: 44). Por isso, pode-se compreender ao mesmo tempo como arranjo da sátira e da escrita jornalística a publicação da «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» antecedendo o canto do poema Vila Rica, que é publicado sob o nome completo de Claudio Manuel da Costa e do seu pseudônimo, enquanto que à epístola é apenas associado o conjunto de iniciais C. M. da Costa. O efeito é programático e visa sustentar o verossímil da persona satírica e, ao contrário do que supõe Furtado (1997: 40), as iniciais não estabelecem «uma clara associação entre o nome de Cláudio Manuel da Costa e essa parte da sátira». Dessa forma, se atentamos para as relações de autoria da época (Foucault, 1992), podemos ler os versos de Vila Rica como uma interpolação, uma vez que as inicias C. M. da Costa obrigatoriamente não remetem à pessoa do poeta. Dizendo de outro modo, observa-se na estratégia de criação desta epístola um modo verossímil com o que se concebia e se conhecia sobre os manuscritos à época (Chartier, 2002: 96): O manuscrito moderno herda essa estrutura livresca que associa em um mesmo objeto textos de autores e, às vezes, gêneros diferentes. A consequência é o desaparecimento da «função-autor» (para retomar a expressão de Foucault), isto é, a atribuição da obra ou das obras presentes em um mesmo livro a um nome próprio identificável em sua singularidade. A favor deste argumento dois dados históricos: o primeiro é proveniente do corpo do próprio jornal quando informa em nota de rodapé sob o título de Poesia e Belas Letras: «todos os versos, de qualquer natureza que sejam, que debaixo deste título geral foram incluídos nos diferentes números deste Jornal sem declaração de nome de autor, são feitos por um dos Redatores». (n. II: 147). O pseudônimo à época não era considerado «declaração do nome de autor»; o segundo, considera a informação do Dicionário de Pseudônimos e Iniciais de Escritores Por- A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 211 tugueses no qual se observa que um dos redatores do jornal, Felisberto Inácio Januário Cordeiro, escrevia com as seguintes iniciais: D. J. A. C.; T. J. J. C. e as que representavam o seu nome, F. I. J. C.; além dos pseudônimos Falmeno e Um Lisbonense. Como se observa, apenas uma das indicações de suposta autoria com letras corresponde às iniciais do seu nome, revelando-se, portanto, que sua presença na assinatura de textos da época não mantinha uma relação de obviedade ou de transparência com o nome do autor. Este último dado deve ser considerado como norma para a leitura de textos poéticos, retóricos e políticos publicados nos periódicos pelo menos até meados do século XIX. Em linhas gerais, a poesia nos periódicos da época, na qual está incluída a epístola satírica objeto deste estudo, deve ser compreendida à luz de alguns pressupostos: o primeiro deles diz respeito à presença das regras da retórica e da poética, partilhadas pelos leitores, que previam aquela escrita como didática ou de convencimento; segundo compreende que a linguagem alegórica garantiu aos jornalistas a chave para uma escrita livre e insolente, ao mesmo tempo em que deu aos leitores a possibilidade de ler nos textos ali publicados sempre o sentido figurado que carregavam (Barbosa, 2011). Seguindo o percurso investigativo levado a cabo por João Adolfo Hansen (1989) no estudo da sátira atribuída a Gregório de Matos, no qual propõe recuperar os atos discursivos contemporâneos a partir das «Atas da Câmara e das Cartas do Senado», esta abordagem retoma os atos discursivos do tempo –o ano de 1826– através dos periódicos da época, do relato de estrangeiros, das cartas de Leopoldina e das de D. Pedro para Domitila. Considerando que estes contêm os atos discursivos da parcela letrada da população, traduzidos em opiniões, murmurações, narrações, críticas, elogios sobre a figura do Imperador. Assim, os periódicos e estes relatos, tal qual as atas e cartas da Bahia do Dezessete, utilizadas por Hansen, «permitem estabelecer uma cartografia móvel de eventos e posições que, na circunstância de sua representação discursiva, relacionam-se ora de modo conflitivo, ora de modo adesivo, entre si e com seus objetos de intervenção segundo a hierarquia» (Hansen, 1989: 72). Dito isto, ratifica-se a hipótese de que a «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» não é uma crítica à Monarquia ou um 212 Socorro de Fátima P. Barbosa libelo contra o Imperador, mas a encenação do que seria uma prática decorosa e virtuosa para o Rei. Tampouco, refere-se aos desmandos do Governador Luís da Cunha Menezes, ou mesmo à corrupção, como a considerou a crítica romântica do século XIX, endossada pelos historiadores do século XX (Furtado, 1997). Observe-se, nos versos abaixo o melhor argumento retórico para corroborar com a hipótese aqui defendida. A persona satírica não revela qualquer discordância com relação ao regime monárquico, mas apenas exige do seu herdeiro a prudência e o bom senso, prerrogativas de um soberano justo, segundo os argumentos de Critilo, personagem da obra de Baltazar Gracian (C. M. da C., 1826: 235): De uma estéril mortal genealogia, Que o mérito produz de seus Maiores, Eles, Amigo, argumentar não devem Propalados talentos. A virtude Nem sempre aos netos, por herança, desce. Pode o pai ser piedoso, sábio e justo, Manso, afável, pacífico e prudente: Não se segue daí que um ímpio filho Perverso, infame, díscolo e malvado, Não desordene de seus pais a glória. Foi Afonso Arinos de Melo (1940) quem primeiro estabeleceu a relação do nome Critilo como sendo a referência a um personagem célebre de Baltazar Gracian, da sua obra máxima El Criticon (1946). Contudo, como estava preocupado com a questão da autoria, não levou adiante o processo de imitação, citação e paráfrase como algo próprio da escrita do tempo. Aliás, sua alusão à obra do jesuíta deve-se tão somente ao fato de seus livros terem sido encontrados no acervo de Claudio Manuel da Costa, argumento tomado por aqueles que queriam transformá-lo em autor das Cartas Chilenas.8 El Criticon é um tratado sobre a 8 É interessante observar como são criados os fatos literários. No caso das Cartas Chilenas, este é construído pelo nome mais autorizado a falar deste assunto: Rodrigues Lapa. Assim, quando faz referência a Critilo também o associa ao livro de Gracian encontrado na biblioteca A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 213 moral e a condição humana, escrito de forma alegórica. Tem início com a viagem de Critilo, um filósofo que naufragou e foi salvo em uma ilha por um habitante, a quem o náufrago deu, não apenas o nome de Andrenio, mas o introduziu, através do aprendizado da língua, no universo do humano, através da união de dogmas da igreja católica, como os pecados capitais, com a filosofia greco-romana. A viagem no livro de Gracian está dividida em três partes ou idades, também presentes na «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» nos versos «Critilo amado, Que teus escritos, de uma idade a outra Passarão, sempre de esplendor cingidos», sendo que a primeira ocorre «Na primavera da infância e no verão da juventude», a segunda, «Na sábia filosofia cortesã (o outono da idade viril)» e, por fim, «No inverno da velhice» , onde se encontra a sabedoria. Vivendo esta idade, «Critilo é o sábio, o prudente, o culto, o varão» que foi perseguido. Alegoria da alegoria, a persona Critilo da epístola remete a este de Gracian, um sábio, que conhece e prega ao seu parceiro de viagem, Andrenio, as virtudes e as verdades do reino humano, ao confrontá-lo com todos os vícios e enganos, ou o «anfiteatro de monstruosidades». Ao dirigir-se a Critilo, aquele que escreve a carta está apresentando-lhe o seu soberano, ao mesmo tempo em que lhe pede observância sobre a postura de seu rei. Segundo Gracian, um príncipe de grande autoridade deve possuir grande modéstia (1943: 63). Das potências da alma –memória, entendimento e vontade–, o entendimento ocupa o mais puro e sublime lugar entre elas pois «é a rainha e senhora das ações e da vida penetra, sutileza, corre, atende e entende: ele estabeleceu o seu trono em uma libré própria cândido ileso, da alma, tudo oscuridade faltando no conceito e toda a mancha nos afetos, massa macia e flexível, apoiando as hade Cláudio Manuel da Nóbrega, contudo, como seu trabalho visa a autoria das cartas, estabelece rapidamente uma hierarquia entre os nomes Critilo e Doroteu sem considerar, por exemplo, que não há qualquer menção ao último na «Epístola a Critilo», tampouco o autor da epístola que ora analisamos tem um autor nomeado: «O autor a si mesmo se dá o nome de Critilo, personagem conhecida do Criticon, obra do jesuíta espanhol Baltasar Grácian, existente na livraria de Claudio Manuel da Costa. É um nome sem significação especial. O mesmo não sucede já com o seu correspondente, Doroteu, em que parece haver, quanto a nós, um propósito mistificador. Doroteu seria, em rigor, o namorado de Dorotéia, e este, como se sabe, era um dos nomes de Marilia. Por isso se poderia pensar, a levarmos a sério, que o noivo de Marília não seria o autor mas o destinatário das famosas Cartas. É hoje opinião unanime que esse criptônimo esconde a figura do dileto amigo de Gonzaga, o Dr. Claudio Manuel da Costa (Lapa, 1958: 151. Grifos meus). 214 Socorro de Fátima P. Barbosa bilidades de docilidade, temperança e prudência (1943: 83). Critilo é o censor facundo a quem o autor da epístola em análise se dirige para, através dos versos, enfeiar os delitos com o intuito de buscar a Cândida Virtude e a Sã doutrina (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 239). Na epístola, seus ensinamentos são traduzidos pela persona satírica em versos, com observações morais: «Vejo, ó Critilo, do chileno chefe, Tão bem pintada a história nos teus versos. Que não sei decidir qual seja a cópia, Qual seja o original». Etimologicamente, o termo persona significa máscara. Na sátira, a persona é uma convenção, ou seja, uma máscara aplicada pelo poeta para figurar as duas espécies aristotélicas do cômico, «o ridículo e a maledicência, ou o vício não nocivo, que causa riso, e o vício nocivo, que causa horror» (Hansen, 2004: 459). É possível observar na epístola em análise que a persona, em princípio, se divide entre ambas as espécies, na tentativa de encontrar o estilo que melhor se adapte ao que pretende narrar (Jornal Científico, C. M. de C., 1826: 233): Vejo ó Critilo, do Chileno Chefe Tão bem pintada a historia nos teus versos, Que não sei decidi qual seja a copia, Qual seja o original. Dentro em minha alma Que diversas paixões, que afetos vários A um tempo se sujeitam! Gelo e tremo, Umas vezes de horror, de mágoa e susto; Outras vezes do riso apenas posso Resistir aos impulsos. Igualmente Me sinto vacilar entre os combates Da raiva e do prazer. Mas ah! que disse! A sátira permite a inconsistência da persona em duas vertentes: a peripatética e a estoica. Na primeira, a persona interpreta «o homem honesto, civil, o cidadão, que se indigna contra os viciosos e os vícios que corrompem sua Cidade». Na vertente estoica, a indignação da persona é indigna, porque «irracional ou excessiva como qualquer outro vício» A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 215 (Hansen, 2004: 461/462). Muito embora tentado e vacilante, a persona opta pela vertente peripatética e assume o caráter de cidadão exemplar, de «censor fecundo» que, com o castigado metro, afeia os delitos, em busca «Da cândida virtude a sã doutrina!» (Jornal Científico, C.M. de C., 1826: 233-234): Vejo que um Calígula se empenha Em fazer que de Roma ao Consulado,9 Se jure o seu cavalo por Colega. Vejo que os cidadãos, e as tropas arma O filho de Agripina, que os transporta Em grossos vasos sobre o Tibre, e logo Por inimigos lhes assina os matos, Que atacar manda com guerreiro estrondo: Direi que me recreia esta loucura? Que devo rir-me e sufocar o pranto Que pula dos meus olhos? Não, Critilo, Não é esta a moção que n’alma provo; Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhante e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que honrar devem, De um Tirano o poder, o Trono, o Cetro. Dizendo de outro modo, compreende-se que a sátira, quando trata de homens célebres e ilustres, se obriga a representar seus personagens com exemplos conhecidos da história. Como afirma Hansen, «a sátira não está, de modo algum, contra a moral. Ocorre nela, é certo, alguma desproporção entre a racionalidade que prescreve e o desenvolvimento dos temas» (1987: 35, grifos do autor). No caso em apreço, a imagem da desproporção é representada pelo imperador Calígula e sua estultice: «Eu vejo que um Calígula se empenha Em fazer que de Roma ao Consulado, Se jure o seu cavalo por colega». Esta estratégia concede ao autor a liberdade de «o leitor poder aplicar esses exemplos para a cena contemporânea», 9 Ver nota no Anexo 3. Socorro de Fátima P. Barbosa 216 ao mesmo tempo em que o inocenta de qualquer intenção subversiva (Hodgart, 2009: 38). Em 1826, concebia-se a epístola satírica, conforme o Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais Silva, como um «poema censório dos costumes, e defeitos, públicos, ou de algum particular»; o que significa que a epístola propõe a partir de exemplos consagrados tanto de virtude, como de falta de decoro restituir, através do grotesco e do monstruoso, a justa medida de um reino fundado na prudência (Jornal Científico, C. M. de C., 1826: 233): Trata-se aqui da humanidade aflita; Exige a natureza os seus deveres: Nem da mofa, ou do riso pode a ideia Jamais nutrir-se, enquanto aos olhos nossos Se propõem do teu Chefe a infame história. Quem me dirá, que da estultice as obras Infestas à virtude, e dirigidas A despertar o escândalo, conseguem, No prudente varão, mover o riso? A «Introdução às Cartas chilenas ou Epístola a Critilo» é, portanto, uma sátira ao Imperador D. Pedro I, cujo comportamento não condizia com sua posição, como revelam as suas várias biografias e os testemunhos dos estrangeiros que por aqui passaram. Em 1826, sua conduta assumiu proporções obscenas ao misturar o público com o privado. Sobre este ano, antigos e novos biógrafos do imperador (Graham,10 2010; Monteiro, 1982; Sousa, 1988; Macaulay, 1986 e Lustosa, 2007) ressaltam-no, como aquele em que a relação dele com Domitila se torna pública. Contudo, ainda de acordo com esses biógrafos, não era apenas a vida amorosa e adúltera do monarca motivo para sátira, pois todos são 10Graham (2010: 81) cita vários exemplos da falta de decoro do imperador, entre os quais: «durante o tempo em que as fragatas estavam se preparando, a atividade do Imperador era antes a de um jovem oficial recentemente nomeado do que um soberano que iria nomear os outros chefes». A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 217 unânimes em ressaltar a sua natureza intempestiva, a sua brutalidade e a falta de temperança, sendo essas características de caráter psicológico ressaltadas por uma postura muito pouco condizente com o lugar que ocupava. No que tange à sua vida amorosa, «seu apetite sexual foi sempre excessivo e não conhecia limites nem diante da honra da família ou do marido da mulher desejada. Não havia mulher a quem ele não lançasse um olhar avaliador!» (Lustosa, 2007: 93). É possível, através desses dados e da analogia com Calígula que, assim como D. Pedro, mantinha uma vida sexual promíscua (Suetônio, 2002: 262-263) e escandalosa11 compreender, como muito provavelmente o fizeram os leitores da época, o efeito programático dos seguintes versos (Jornal Científico, C.M. de C., 1826: 237): Outro vai que, lascivo, e desenvolto Só da carne as paixões adora e segue. Honras, decoros, vós sereis despojos Do seu bruto apetite. Em vão, cansados Pais de família, zelareis vós outros Da vossa casa o pundonor herdado. Aos vis ataques do atrevido orgulho Hão de ceder as prevenções mais fortes. Vítimas da voraz sensualidade Vossas filhas serão vossas mulheres. Que direi do soberbo, do vaidoso, Do colérico, e de outros vários monstros, Que freio algum não conhecendo, passam A sustentar no autorizado Cargo Tudo quanto a paixão lhes dita e manda! Os desmandos e a falta de freio do imperador no que concerne a sua vida amorosa levam-no a fazer uso dos jornais e periódicos da épo11Segundo Suêtonio (2002: 262-263), Calígula «entreteve com todas as suas irmãs um comércio sexual vergonhoso. [...] Acreditava-se que tenha desvirginado Drúsila, quando ainda envergava a toga pretexta, pois fora surpreendido com ela por sua avó, Antonia, na casa em que ambos se criaram» [...] «Não dedicou às suas outras irmãs um amor impetuoso, nem lhes dispensou consideração: ele as prostituía, muitas vezes, com os seus próprios favoritos». 218 Socorro de Fátima P. Barbosa ca, conforme se verá mais adiante, bem como dos homens públicos, para desempenhar a sua função de amante ardoroso e apaixonado, quebrando todas as regras do decoro. Na sátira, segundo Hansen (1987: 338), «construído como irracional, o tipo vicioso não é livre, pois em todas as ocasiões só obedece à vontade, que o escraviza: não deseja, é desejado do seu desejo, como um ladrão levado a furto que leva». Ao trazer a tópica do sexo como crime contra naturam, a persona demonstra que este «corrompe a harmonia do bem comum» e, por isso, a figuração do medo que a persona inculca nos pais faz parte daquilo que Hansen –no contexto da sátira atribuída a Gregório de Matos, mas perfeitamente aplicado à sátira em questão– chama de «teatro do medo» (1989: 338). Considerando-se D. Pedro I como a cabeça do Império, sua corrupção é espelho para todos os súbditos, propondo-o culpado, «propõe ao público culpado de desejos a representação caricata e monstruosa deles guiada pela pastoral da sua prudência para a cena sacrificial do remorso e da catarse» (Hansen, 1989: 338), como revelam os versos a seguir: «Que pula dos meus olhos? Não, Critilo, –Não é esta a moção que n’alma provo. Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhante e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que honrar devem, –De um tirano o poder, o trono, o cetro». Do sexo ilícito, nasce Isabel Maria em 1824, filha de Domitila, a quem o imperador, em 20 de maio de 1826, através de Decreto, reconhece como filha legítima e no mês seguinte apresenta oficialmente à imperatriz, quando passou a frequentar o palácio a fim de partilhar a educação com suas irmãs12 (Lustosa, 2007: 231). Desde 1823 que Domitila de Castro fazia parte da vida de D. Pedro I na condição de sua amante. Em princípios desse ano, o Imperador trouxe toda a sua família para o Rio. Em junho, quando cavalgava desacompanhado pela região do subúrbio de Mata Porcos, local da residência da paulista, D. Pedro sofreu um grave acidente. Nesta época o romance dele com Domitila ainda não se tornara público e a queda do cavalo suscitou a curiosidade da corte sobre o que fazia naquela região sem a companhia de sua guarda. Maria Graham reporta o momento quando, convalescendo do acidente, o imperador recebera uma carta acusando 12Para Maria Graham (2010), esta teria sido a maior das humilhações sofrida pela imperatriz. A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 219 os Andrada: «uma senhora, cujo nome havia sido até então sussurrado no tom mais suave do mexerico, havia ultimamente se mudado de São Paulo» (Graham, 2010: 92). Embora soubesse das pequenas traições do marido, murmuradas pelas ruas e pelos empregados, a imperatriz afirmava em carta de 10 de setembro de 1824, dirigida à irmã Maria Luisa, que não podia confiar nele, mas não demonstrava ter conhecimento ou se importar com os seus casos.13 A partir de 1825, alguns incidentes não só deram publicidade ao caso, como o transformaram em assunto de fuxicos internacionais. Do caso com Domitila conhecido internacionalmente, que será adiante tratado mais amiúde, à postura cotidiana, D. Pedro I desobedecia as mais rudimentares das posturas que lhe exigiam o cargo, faltando-lhe, portanto, decoro. Maria Graham (2010: 102) narra o momento do seu encontro com ele, «estava como se tivesse levantado da sesta, de chinelos sem meias, calças e casaco leve de algodão listado, e um chapéu de palha forrado e amarrado de verde». Sousa (1998: 174) afirma que a «Quinta da Boa Vista mais parecia uma típica propriedade rural de brasileiro rico do que um paço imperial. Como fazendeiro zeloso de seus bens e aprazendo-se no papel de simples feitor, o monarca cuidava atentamente de tudo». À falta de decoro na vida pessoal, juntam-se os problemas relacionados à virtude política, como se uma estivesse entrelaçada à outra, características que aliadas à sua pouca educação, ao temperamento, à vida dupla são atributos pertinentes para o vitupério baseado no lugar-comum da condição (Hansen, 1989). Em 1826, a situação do monarca era complicada e sua posição não parecia firme nem para os portugueses nem para brasileiros. Desde 1825 enfrentava a cisão da província da Cisplatina e sua anexação pelas Províncias Unidas do Rio da Prata, que culminaria com a guerra, em 1826. Ademais, a execução de Frei Caneca teria causado grande comoção popular, pelo fato de ele não ter perdoado a um religioso.14 Outro dado que poderia afastar o Imperador do campo da virtude política era a sua posição contrária à escravidão que feria no 13«Infelizmente não consigo encontrar ninguém em quem possa depositar minha plena confiança, nem mesmo em meu esposo, porque, para meu grande sofrimento, não me inspira mais respeito, por mais que me supere e me controle» (Leopoldina, 2006: 429). 14Para o conhecimento dos problemas políticos por que passavam o Brasil e o imperador, consultar: (Monteiro, 1982; Sousa, 1988; Macaulay, 1986 e Lustosa, 2007). Socorro de Fátima P. Barbosa 220 coração os proprietários rurais do Brasil, todos escravocratas (Macaulay, 1993: 192 e 242). «Por entre estes delírios, insensível, Me conduz a razão, brilhante e sábia, A gemer igualmente na desgraça Dos míseros vassalos, que honrar devem, –De um tirano o poder, o trono, o cetro». O que se quer ressaltar aqui é a desproporção observada nos retratos feitos sobre o Imperador, que ressaltavam, sobretudo, uma postura ambígua com que levava a vida pessoal. Segundo Monteiro (1982: 92, V. II), O grande mal, que pesava sobre o reinado de D. Pedro I, e juntava-se à dúvida do povo quanto às suas ligações com Portugal para diminuir-lhe a majestade, era o concubinato que afrontava os melindres da gente honesta, contaminava pelo mau exemplo a gente de moral fraca, impunha à Imperatriz a humilhação pública do seu repúdio. A desfaçatez com que produzia tamanha imoralidade justificava os excessos oposicionistas contra ele. O interessante desta sátira é que o seu autor conjuga o estilo grave e o patético com as imagens e alusões risíveis ao comparar analogamente o Imperador a Calígula e Domitila a seu cavalo. Tomando-se o episódio do cavalo como aquele mais conhecido e mais jocoso, já que Calígula também é reconhecido pela crueldade e pela «natureza feroz e depravada» (Suetonio, 2002: 250), dados que, supostos pouco conhecidos dos leitores da epístola, são arrolados em nota de fim de página no Jornal.15 Assim, a persona que narra na epístola sugere para D. Pedro I o oposto da justiça e da temperança, atributos que faltaram ao monarca, quando da execução sumária do frei Caneca. Esta desproporção é verossímil porque na sátira «as transferências metafóricas incongruentes são programáticas». Assim, sabendo-se ser verdadeiro o gesto do imperador romano, o ato do imperador brasileiro também é satirizado, observando-se que «quanto mais é incongruente o efeito, mais ativa é a função valorativa da enunciação que dramatiza a incongruência adequada para 15 Conferir Anexos 3 e 4. A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 221 o destinatário» (Hansen, 1987: 295). Desde 1823 observa-se o desejo de D. Pedro I de afrontar a sociedade que murmurava a boca pequena a sua relação com Domitila. Em carta endereçada à amante, ele informa sobre a joia –um colar de ametistas– que deveria combinar com o vestido que ele insistia que ela fizesse na madame Josefine, a mais afamada modista do reino à época. Para tanto, ele sugeria que ela ali fosse com o Barão de Sorocaba, Boaventura Delfim Pereira, casado com a irmã de Domitila. Como revelam as palavras do Imperador, na carta, ele não apenas queria que ela «apareça publicamente», mas que «apareças bem vestida e decente». Contudo, escreveu o Imperador, quando o fizesse esperava «que isto faça para se apresentar na Glória enervando todas que lá aparecerem» (Rezzutti, 2011: 92, Carta 2). Contrariando a postura de um rei probo, sóbrio, decente e de temperança, o Imperador além de infringir as leis do sexo honesto, o faz com escárnio à população. Na epístola em análise, o trecho abaixo reforça o lugar-comum da sátira, segundo o qual «a corrupção do corpo falseia a ordem natural expressa no bem comum pela irrupção do gozo impuro» (Hansen, 1989: 329). Os versos «Nem sempre as águias de outras águias nascem, Nem sempre de leões, leões se geram, Quantas vezes as pombas e os Cordeiros São partos dos leões, das águias partos!» revelam a monstruosidade do sexo ilícito, a desproporção. Neste caso, é a descendência o tipo satirizado de acordo com o lugar-comum da origem, numa alegoria perfeita, posto que Germânico, pai de Calígula, gozava de respeito e de admiração dos seus súditos, assim como D. João VI (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 235-236): Pode o pai ser piedoso, sábio e justo, Manso, afável, pacífico e prudente: Não se segue daqui, que um ímpio filho, Perverso, infame, díscolo e malvado, Não desordene de seus pais a glória. Nem sempre as águias de outras águias nascem, Nem sempre de Leões leões se geram16, 16 Neste verso, encontra-se a nota b: «Como se dissera, que nem sempre sucede o que diz Horacio no liv. 4.º das Odes, O. 4. Fortes creantur fortibus et bonis/ est in iuuencis, est in equis patrum/ virtus neque inbellem feroces/ progenerant aquilae columbam» (Jornal Científico, 1826: 239-240). Socorro de Fátima P. Barbosa 222 Quantas vezes as pombas e os Cordeiros São partos dos leões, das águias partos! Com efeito, como já foi mencionado, em maio de 1824 nasce a filha de Domitila com o Imperador, Isabel, a quem nas cartas tratará sempre por Belinha, fato que irá promover a desordem «natural» da linhagem dinástica: «perverso, infame, díscolo e malvado», leão que não gera outro leão, mas a aberração. A partir de 1825, acontece a «institucionalização» do romance entre os dois. Ao Imperador já não interessava apenas incomodar as mulheres com a beleza de Domitila, pois como afirma em carta «já esta tarde começam os desavergonhados a saber quem eu sou, e quem é [sic] mecê e quanto eu a estimo»17 (Rezzutti, 2011, Carta 25). Na sátira, esta conduta pode ser associada aos versos seguintes: Aqui se acha o lascivo; é o vaidoso! É o estúpido, enfim é o demente O que ao vivo aparece nesta empresa. Tu, severo Catão,18 tu repreendes, Com teu mudo semblante a pátria Roma; Nem seus teatros de lascívia cheios Sofrem teus olhos nobremente irados.19 Isto ocorreu a partir do incidente que assumiu proporções impensáveis no qual Domitila foi destratada pela Baronesa de Goytacaz ao tentar assistir missa na tribuna reservada às damas do paço, na Ca17 E assim continua: «Mandei por uma fechadura na porta das tribunas para se fechar a porta, que não será aberta venha quem vier enquanto mecê não vier, e assim ficam todos sem lugar. Além disso, hei de tratar os maridos de bonito modo, e eu lhe prometo que mais nada hão de fazer aos amores»(Rezzutti, 2011, Carta 25). 18 Também denominado «o censor», foi um romano considerado exemplo de homem virtuoso pelos seus pares. Cf. Lima (2007: 33). Disponível em: http://www.hottopos.com/notand15/ aless.pdf. Acesso em 19/12/2012. 19Conferir a última nota, a de letra (d), no Anexo 4. A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 223 pela Imperial. Isto fez com que fosse nomeada, por decreto de «Dona Leopoldina»,20 como Dama Camarista da Imperatriz, cargo que lhe conferiu em abril de 1825 que, além do direito de usufruir da tal tribuna, a colocava em primazia sobre as demais damas de honra, «e o direito de estar presente a todas as reuniões e acompanhar a imperatriz a todas as excursões; assumir o lugar de honra logo após Sua Majestade em todas as ocasiões» (Graham, 2010: 218). A petição que conferiu a Domitila seu lugar de camareira-mor de Leopoldina foi deferida no dia do aniversário da princesa Maria da Glória, ocasião «em que toda a corte, mesmo grosseira como era, caiu em consternação».21 A fofoca e os murmúrios, próprios ao conteúdo da sátira, foram registrados por outros estrangeiros a quem muito espantava a sua relação com Domitila, como revela Schlichthorst, em seu diário: «a primeira Camareira de Sua Majestade a Imperatriz, a paulista D. Dimitila de Castro e Canto, Viscondessa de Santos, é a amante declarada do Imperador» ([s/d]: 62). O ano de 1826 vai ser lembrado pela morte de D. João VI, pela instalação da Assembléia Geral Legislativa, quando enfim os deputados e senadores puderam participar do processo legislativo brasileiro, regulamentando os dispositivos constitucionais, mas na vida de Pedro I, este ano será aquele da viagem que fez à Bahia e causou indignação aos brasileiros e a estrangeiros. Monteiro (1982: 101) afirma que «dias antes da partida afixavam-se pasquins nas paredes das ruas e cartas anônimas choviam em palácio com expressões de espanto acerca de tão escandalosa companhia». Com efeito, esta viagem tornou ostensiva a «mancebia, a princípio discreta» (Monteiro, 1982: 101). Sobre a viagem, Maria Graham (2010: 226) assim comenta: 20Segundo Macaulay (1993: 213), D. Pedro I «convenceu D. Leopodina a escolher Domitila como uma das suas damas de companhia; a ingênua imperatriz pensou que se tratasse de uma recompensa por serviços prestados a seu marido pelo pai da indicada, o coronel João de Castro». 21Segundo Graham (2010: 218), ao nomear Domitila como primeira dama da imperatriz, D. Pedro infligia «à Imperatriz o mais odiosos dos incômodos, isto é, sua presença –desde o momento em que saía de seus apartamentos privados. Na primeira explosão de indignação geral, várias das primeiras damas recusaram visitar a favorita, mas em breve fizeram-lhe compreender que a teimosia não resultaria em nenhum bem à Imperatriz». 224 Socorro de Fátima P. Barbosa Ela com o imperador e as Princesinhas, havia embarcado para a Bahia; concordou, ainda que passasse mal no mar, na esperança de escapar da vista da Domitila de Castro, então elevada a Viscondessa de Santos. Qual não teria sido o seu desapontamento ao entrar em seu camarote, em ver Mme. de Santos já ali estabelecida, além do mais, nas funções de seu ofício. Nesta viagem, Domitila se integrou na condição de dama de companhia de D. Leopoldina e dividiu com o imperador aposentos do palácio do governo da Bahia, enquanto a imperatriz hospedou-se no edifício da Relação. Em carta a seu pai, escrita no dia 28/04/1826, a imperatriz comenta que a viagem foi «extremamente desagradável em todos os sentidos», lamento repetido em carta a Maria Graham, de 29/04/1826, como uma «viagem bem penosa à Bahia e uma permanência de dois meses eternos» (Leopoldina, 2006: 446).22 Nesta data, dona Leopoldina ainda não havia tomado conhecimento do que se considera o golpe definitivo nesta oficialização de Domitila: o reconhecimento como filha legítima de Isabel Maria, em 20 de maio, e em 24 do mesmo mês ela recebe o título de duquesa de Goiás, com o tratamento de Alteza. Para Graham (2010: 234), chamou a atenção tanto o fato em si, que submetia a Imperatriz à humilhação, quanto o fato de fazê-lo «expedindo um ato governamental para declará-la legítima, e depois publicando essa loucura nas gazetas e jornais do Brasil, seguiu D. Pedro o exemplo de Luiz XIV, como uma justificação do ato vicioso e violento». Teatro «das paixões humanas», a epístola representa este espetáculo promovido pelo monarca assinalando ao mesmo tempo o seu efeito trágico e cômico, com a presença de Tália e Melpomene deusas da comédia e da tragédia respectivamente (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 234): Dos míseros vassalos, que honrar devem, 22 Em carta de sete de junho de 1826, escrita à amiga Maria Graham, ela afirma em P. S.: «Perdoai-me a má letra, mas depois de minha viagem por mar apanhei umas dores reumáticas nos dedos da mão direita, que me dificultam muito a escrita» (Leopoldina, 2006: 446). A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 225 De um Tirano o poder, o Trono, o Cetro. Se Tália, e Melpomene nos pintam Nos seus Teatros, paixões humanas, Ao ridículo gesto, ou ao semblante Da Cena, que o coturno me apresenta: Eu me conformo ao interesse, quando Aborre [sic] o a maldade, e quando rendo À formosa Virtude os dignos votos. A despeito do constrangimento e dos mexericos, ao voltar para o Rio de Janeiro, D. Pedro demanda da população um espetáculo. E como sempre, utiliza-se dos periódicos áulicos para fazê-lo. O Spectador Brasileiro do dia 31 de março registra a expectativa da população do Rio de Janeiro com a chegada da família real, «Muitas pessoas se aventuraram a fazerem apostas sobre o dia por todos esperado». Em O Verdadeiro Liberal, de 21 de março, observa-se uma nota na qual o redator informa sobre a apreensão dos moradores para festejar a volta de SS. MM. II e «segundo todas as aparências as festas hão de ser magníficas». Contudo, a julgar pelo que afirma o mercenário alemão Schlichthorst, esta expectativa poderia ser de outra natureza e não pelo amor ao imperador. Do ponto de vista desse estrangeiro, a população ignorou a chegada do navio D. Pedro I, no qual vinham a família real e Domitila (Schlichthorst, [s/d]:184, Grifos meus): A cidade pôs luminárias. Plantou-se uma aleia de palmeiras novas, ligadas por festões de flores e grinaldas de lâmpadas, do ponto de desembarque ao arco de triunfo levanta do à esquina do Arsenal. No dia seguinte, por volta do meio-dia, Sua Majestade desembarcou. Teve recepção muito fria, mal se ouvindo raros vivas. Até as tropas mercenárias alemãs, em espalier espaçadamente do Arsenal até a Ca pela Imperial, permaneceram impassíveis. D. Pedro parecia muito descontente.23 23Ainda de acordo com o testemunho de Schlichthorst ([s/d]: 204), «no teatro, também na plateia dirigiram um discurso ao Imperador. Apesar do orador estar vestido decentemente, falando com fluência e elegância, toda a gente tinha opinião formada sobre essa efusão es- Socorro de Fátima P. Barbosa 226 O último aspecto a salientar nesta epístola diz respeito a relação estabelecida entre a Igreja católica no exercício de seus atos festivos e o Imperador. A igreja sempre comungou com os atos obscenos, como pode ser entrevisto acima, estando, portanto, o imperador acima das leis do mundo e das de Deus. Nisto a persona satírica é quase literal, ainda mais quando se sabe que ele «era um frequentador assíduo da igreja» (Macaulay, 1993: 201), principalmente da igreja da Glória para onde ia a cavalo quase todas as manhãs (Jornal Científico, C. M. da C., 1826: 238): Aqui vê-se o soberbo, que pensando Do resto dos mais homens nada serem Mais que humildes insetos; só de fúrias Nutre o vil coração, e a seus pés calca A pobre humanidade. Aqui se encontra O ímpio, o libertino, que ultrajando Tudo quanto é sagrado, tem por timbre Ao público mostrar, que o Santo culto Que nos intima a religião, somente Aos pequenos obriga, e que por arte Os conserva a ilusão no Fanatismo, Porque da obediência às Leis se dobrem; Nesta passagem se verifica a crítica não à Igreja Católica, mas ao descumprimento dos seus princípios pelo imperador. Não bastassem as aparições públicas com Domitila, a viagem, com o reconhecimento da filha Isabel Maria, ele assumia publicamente ter sido o seu batizado de dois anos atrás, um embuste, «onde a menina recebera os santos óleos como filha de pais incógnitos» (Monteiro, 1982: 102). A sátira era, naquele contexto, o modo seguro de apontar os desmandos do monarca e da religião católica, tendo em vista o fato de a Constituição de 1824 «espontânea da mais profunda dedicação e do mais ardente patriotismo. O Imperador dá muito valor a essas demonstrações de amor do povo, apesar de saber muito bem que são regiamente pagas, embora cada um dos cantores desses coros laudatórios receba pessoalmente muito pouco. Somente dois tostões! disse chistosamente um desses infelizes». A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 227 tabelecer o catolicismo romano como religião de Estado e ao declarar «inviolável» a pessoa do imperador, ela impedia, na opinião da maioria dos políticos e jornalistas brasileiros, os ataques diretos à Igreja e ao monarca» (Monteiro, 1982: 257). O problema, no que concerne não apenas a «Epístola a Critilo», mas a todos os escritos que são retirados do seu contexto de produção e aos quais são indiferentemente aplicados critérios alheios ao tempo, é perder de vista aquilo que Pécora (2011) chama de «legibilidades verossímeis». No caso de a «Epístola a Critilo», um escrito produzido em 1826, em um jornal com três números apenas, o paradigma que ditou sua leitura nos quadros da história da literatura brasileira foi o de se valorizar sua autoria, a pretensa relação com outro texto também publicado em jornal vinte anos mais tarde. A obsessão pela autoria desse texto, o seu papel como libelo revolucionário e o caráter de nacionalidade que se poderia aferir a um escrito anterior ao século XIX inscreveram este escrito na tradição da literatura brasileira, deslocando-o da sua historicidade. Evidentemente que não se trata de uma prerrogativa da historiografia literária brasileira, mas de uma ordem de discurso que se estabeleceu no século XIX, com a «consagração do escritor», a «fetichização do manuscrito autógrafo» e a «garantia de autenticidade da obra» (Chartier, 2012: 266). Estas noções, lidas pelo avesso, permitem compreender outras formas de escrita e circulação dos escritos dos periódicos, na primeira metade do século XIX. Elas mostram, sobretudo, que os periódicos proporcionavam a instabilidade e a mobilidade que os textos tinham, quando eram extraídos, adaptados, recortados, reescritos, interpolados e escritos com falsa atribuição. Este estudo tentou mostrar como ainda sabemos pouco sobre a literatura no jornal do século XIX (Zilberman, 2004). Seu papel de arquivo já está muito bem posto por estudos clássicos e absolutamente importantes na história da literatura, mas é preciso concebê-lo como suporte, pois como bem afirma Mckenzie (2004), os gêneros novos e as transformações dos antigos nascem da exigência dos novos leitores e das formas tipográficas que lhe informam. 228 Socorro de Fátima P. Barbosa Ao inscrever a «Epístola a Critilo» no contexto de produção dos periódicos, da década de 20 do século XIX, e associar a sátira à figura de D. Pedro I, este artigo parte de critérios compatíveis com as condições de produção de escrita nos jornais. Assim, é possível identificar, de forma verossímil, os mecanismos por ele engendrados, para dar conta dos assuntos políticos do seu tempo, entre eles, a vida desregrada do Imperador. Outra proposição apresentada por este artigo é o de considerar a produção cultural anterior ao mito fundador do romantismo, lendo-a e dela se apropriando sem ignorar, ao mesmo tempo, que as regras de composição dos gêneros retórico-poéticos prescreviam estes escritos, e que termos como originalidade e de validade estética eram alheios ao tempo. Com isto, evita-se a abordagem anacrônica destes escritos que consiste segundo Hansen (1997: 12), em tomar estes produtos literários como «expressão psicológica de uma subjetividade que, sendo homogênea com seu tempo, é generalizada como válida para todos os tempos». Neste estudo, buscou-se sair deste paradigma, principalmente, ao considerar a epístola satírica a partir dos pressupostos poéticos previstos para o gênero. Assim, compreendida como escrito histórico concernente ao tempo presente, ou seja, o ano de 1826, a «Epístola a Critilo» pôde ser relacionada ao comportamento desregrado de D. Pedro I e ser lida como apologia às regras da monarquia e não como libelo, anticolonialista ou antimonarquista. Neste sentido, considera-se com Lisboa (1987: 275), que a imprensa conseguiu «apoderar-se da ficção, da retórica e da poética, adaptando-se e adaptando os seus estilos com bastante facilidade de reconversão», para «impor uma nova leitura». REFERÊNCIAS Periódicos O Verdadeiro Liberal: Periódico Político Literário. Rio de Janeiro, 1826. Jornal Científico, Econômico, e Literário, ou Coleção de Várias Peças, Memórias, Relações, Viagens, Poesias, e Anedotas. Rio de Janeiro, 1826. O Spectador Brasileiro: Diário Político, Literário e Comercial. Rio de Janeiro, 1824-1827. O Diário do Rio de Janeiro:Rio de Janeiro. 1821-1826. Livros, revistas e obras de referência: A introdução às Cartas Chilenas ou Epístola a Critilo ... 229 ALMEIDA, Teodoro de. Recreação Filosófica, ou Diálogo sobre a Filosofia Racional, para Instrução de Pessoas Curiosas, que não Frequentaram as Aulas. Lisboa. 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ANEXO 4 235 As Autoras e Os Autores Barbara Gori: Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Pádua (Itália), onde leciona a língua e a literatura portuguesa e brasileira, ocupa-se de língua e literaura portuguesa, de literatura brasileira e de língua e literatura africana de expressão portuguesa. Tem a suo cargo ensaios e livros sobre literatura portuguesa, em particular sobre a Geração de ’70 e as figuras de Eça de Queirós e Antero de Quental, traduções de poesias e ensaios, livros, artigos e ensaios sobre língua portuguesa, artigos sobre literatura e língua africana de expressão portuguesa. Claudete Daflon: Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), atualmente ocupa o cargo de Professora Adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense (UFF), na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, Brasil. Desenvolve o projeto de pesquisa Uma síntese delicada: literatura e ciência no Brasil em que discute as relações entre literatos e conhecimento científico no século XVIII. A respeito de questões relativas ao Setecentos, publicou o capítulo de livro «Caminhos do saber: literatos e cientistas do Setecentos», em A legislação pombalina sobre o ensino de línguas: suas implicações na educação brasileira, em 2010, e o artigo «Uma pedagogia da escrita: intelectuais luso-brasileiros do século XVIII», na Revista Matraga (Rio de Janeiro), em 2011. Filipa Medeiros: Licenciada em Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde obteve também o grau de Mestre em Línguas Clássicas, Especialidade em Ensino e Tradução do Latim, com a dissertação intitulada “Interpretatio e Imitatio no ‘De amore’ de Marsilio Ficino’. Trabalhou como bolseira de investigação no projecto “Curso Conimbricense e Verney”. Prepara actualmente a tese de doutoramento em Literatura Comparada, que desenvolverá o tema: “Verba significant, res significantur: a recepção dos Emblemata de Alciato na produção literária do Barroco em Portugal”, 238 As Autoras e Os Autores sob orientação do Doutor Manuel Ferro. É bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia e membro colaborador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e da Sociedade Espanhola de Emblemática. Maria Aparecida Ribeiro: Licenciada em Português e Literatura, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1967, e em Didática da Linguagem e Literatura Infanto-Juvenil também pela UERJ, obteve o título de Mestre, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a dissertação A Mitogênese no Teatro de Bernardo Santareno, e doutorouse em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em1980, com a tese Gil Vicente e a Nostalgia da Ordem. Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por mais de vinte anos, colaborou também com a Universidade Federal Fluminense e com a Uni-Rio. A partir de 1990, como Professora da Universidade de Coimbra, dirigiu o Instituto de Estudos Brasileiros e lecionou Literatura Brasileira, Cultura Brasileira, na licenciatura e nos cursos de Mestrado e Doutoramento, dos quais orientou e orienta várias dissertações e teses. Autora de Literatura Brasileira (Lisboa, Universidade Aberta, 1995) e dos roteiros para vídeo para áudio que a complementam e vêm sendo divulgados através da televisão e do rádio, é uma das coordenadoras de Biblos, Enciclopédia Verbo de Literatura Portuguesa, onde tem verbetes sobre as literaturas brasileira, africana e portuguesa. Estudiosa do Romantismo brasileiro, em geral, e, em particular, de José de Alencar, sobre quem escreveu vários ensaios, sendo responsável pelas edições de O Guarani, Iracema e Cartas sobre “A Confederação dos Tamoios” (Coimbra, 1994), tem ainda publicados inúmeros artigos em revistas especializadas de Portugal e do estrangeiro. Entre suas obras destacam-se: A Mitogênese no Teatro de Bernardo Santareno (Rio de Janeiro, 1980), Gil Vicente e a Nostalgia da Ordem (Rio de Janeiro, 1983), História Crítica da Literatura Portuguesa - o Realismo (Lisboa, 1994), Teatro de Francisco Gomes de Amorim. Ódio de Raça. O Cedro Vermelho. (edição do texto e introdução, em colab. com Fernando Matos Oliveira; Braga, 2000), Teatro Brasileiro. Textos de Fundação. Glória e Infortúnio ou A Morte de Camões. António José ou O Poeta e a Inqui- As Autoras e Os Autores 239 sição. O Juiz de Paz da Roça (A Coruña, 2002); A Carta de Caminha e seus Ecos (Coimbra, 2003); Drummon(d)tezuma - correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Montezuma de Carvalho, Coimbra, FLUC, 2004 (em colab. com Eliane Vasconcellos). Col. Estudos, 43; Drummond em Coimbra (org), Coimbra, FLUC, 2004, Col. Estudos, 49; Erico Veríssimo em Terras de Portugal. A viagem de 1959. Porto Alegre, Edipuc, 2008. Atualmente prepara Questões de identidade: Diálogos com José de Alencar e Camões, personagem dramática, uma coleção de vários volumes. É membro integrado do Centro de Literatura Portuguesa e membro colaborador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e do Centro de Literaturas de Língua Portuguesa das Universidades de Lisboa. Maria Teresa Nascimento: Professora Auxiliar da Universidade da Madeira e Investigadora do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos. É Doutorada em Literatura Portuguesa pela Universidade de Coimbra, e autora de diversos ensaios na área da Literatura Portuguesa, com destaque para O Diálogo na Literatura Portuguesa. Renascimento e Maneirismo, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2011. Regina Zilberman: É doutora em Romanística pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), professora do Instituto de Letras, da UFRGS, e pesquisadora 1A, do CNPq. Publicou, em 2012, o livro Brás Cubas autor Machado de Assis leitor e organizou as coletâneas Moacyr Scliar: A poesia das coisas simples e Mario Quintana: Poemas para ler na escola. Endereço eletrônico: [email protected]. Rolf Kemmler: Natural de Reutlingen (Alemanha), é investigador da área da historiografia linguística do Centro de Estudos em Letras (CEL) da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD, Vila Real), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, desde julho de 2009. 240 As Autoras e Os Autores Doutorado em Filologia Românica (Dr. phil.) pela Universidade de Bremen em 2005 (Alemanha), com a tese intitulada A Academia Orthográfica Portugueza na Lisboa do Século das Luzes: Vida, obras e atividades de João Pinheiro Freire da Cunha (1738-1811), publicada em 2007. Mestre (M.A.) em Filologia Românica desde 1997 pela EberhardKarls Universität de Tübingen (Alemanha) com uma tese intitulada Esboço para uma História da Ortografia Portuguesa (publicada em 2001 como artigo na revista Lusorama sob o título «Para uma História da Ortografia Portuguesa: o texto metaortográfico e a sua periodização do século XVI até à reforma ortográfica de 1911»). Com grande número de publicações dedicadas à disciplina da historiografia linguística desde 1996, sou especialista nas áreas da história da ortografia da língua portuguesa desde o século XVI e da história da gramaticografia portuguesa e latino-portuguesa dos séculos XVI-XIX. Sara Augusto: Licenciada em Humanidades (Universidade Católica Portuguesa, 1991), Mestre em Literaturas de Expressão Portuguesa (Universidade de Lisboa, 1995, com a tese O Compêndio Narrativo do Peregrino da América de Nuno Marques Pereira), e Doutorada em Literatura Portuguesa (Época Moderna), com a tese A Alegoria na ficção romanesca do Maneirismo e do Barroco (Universidade Católica Portuguesa, 2005); pós-doutoramento em Literatura Portuguesa barroca, Literatura de Viagens na época barroca: viagens de portugueses a Roma. Foi professora auxiliar convidada do Departamento de Letras da Univ. Católica Portuguesa, onde lecionou desde 1991 a 2007, no âmbito da Literatura Portuguesa e das Literaturas de Língua Portuguesa. Foi bolseira de Pós-Doutoramento da FCT com o tema «Literatura de viagens na época barroca», entre 2007 e 2009, investigação que continuou enquanto Investigadora Auxiliar no Centro de Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra. Lecionou na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica (Leiria), nos Cursos de Férias da Universidade de Coimbra, nos cursos Uniclássica (Foco) da Universidade de Lisboa (Literatura Brasileira), e realizou seminários de mestrado na Universi- As Autoras e Os Autores 241 dade do Porto, no campo da Literatura Barroca Portuguesa. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian (1987-1992), investigadora do CLCPB (Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira), e colaboradora do CLEPUL (Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Univ. de Lisboa); é membro da APSA (American Portugueses Studies Association) e da ABIL (Association of British and Irish Lusitanists). Atualmente é investigadora principal, responsável pelo projeto «Literatura de Viagens na Época Barroca» e colaboradora em projetos relacionados com a Literatura Portuguesa, Literatura Comparada e Literaturas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, afeta ao Centro de Literatura Portuguesa e ao Instituto de Investigação Interdisciplinar. No âmbito das suas áreas de formação, de lecionação e investigação (Literaturas de Expressão Portuguesa, Literatura Portuguesa; Literatura Portuguesa do Maneirismo e do Barroco, Alegoria e Ficção barroca, Emblemática, Narrativa de viagem), apresentou trabalhos em conferências, congressos e reuniões científicas, em Portugal e no estrangeiro; e publicou artigos em atas e revistas nacionais e estrangeiras, além capítulos em livros sobre as matérias já indicadas. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa: É professora da UFPB. Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa que vem desenvolvendo sobre a escrita epistolar em jornais e periódicos do século XIX e sua atuação no campo literário luso-brasileiro. A pesquisa «A escrita epistolar nos quadros da cultura luso-brasileira: (1808-1840)» é financiada pelo CNPq, com bolsa de produtividade em pesquisa.