Do século XIX ao XXI Uma invenção japonesa
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Do século XIX ao XXI Uma invenção japonesa
14 riquexós quinta Já só transportam turistas. Mas o seu exotismo não é garante de sobrevivência algumas pessoas menos simpáticas”. Pessoas que se recusam a pagar terminado o percurso. “Uma vez, andei com um senhor da Austrália durante três horas. Escrevi o preço no cartão. Andou por Macau inteira e apagou o preço. No fim, não queria pagar”, recorda. De repente pára. “Aquele é o monumento de transferência de administração”, explica. Passando pelo miradouro, cruza-se com um conhecido. Depois de trocarem meia dúzia de cumprimentos, diz: “Aqui é a Meia Laranja.” Resquícios de uma era Luciana Leitão dias, mas também não se queixa. Para ele, o riquexó é uma mera distracção, serve para “passar o tempo”. O subsídio de 2000 patacas que recebe por mês cobre os gastos. “Há alguns turistas que ainda usam os nossos serviços, principalmente do Continente – de Cantão e Zhuhai”, conta enquanto passa o sinal vermelho. “O Governo diz que estes carros são quase como património mundial” Junto ao Hotel Lisboa estão estacionados quase 20 riquexós. Imunes ao crescimento económico, continuam ali à espera de clientes. Poucos. O fim parece inevitável. de 15 minutos custa 150 patacas, mas se for de meia hora vale 200, enquanto por uma hora paga-se 300 patacas. O percurso completo implica passar pelos pontos mais emblemáticos de Macau. Partindo do Hotel Lisboa, Ho passa pela Praia Grande, rumo ao Lago Nam Luciana Leitão Viam-se riquexós por todo o lado. Eram os últimos anos do século XIX e Macau começava a estar repleta destes veículos. Usados diariamente por moradores e visitantes em deslocações e visitas turísticas, o também chamado jerinxá fazia parte da realidade de Macau. Durante 50 anos foi o meio de transporte mais usado. Hoje são os automóveis. A evolução é traçada ao Hoje Macau por Jorge Cavalheiro, historiador e autor do livro “Da sampana ao jactoplanador, da cadeirinha ao automóvel”. Subia e descia as “ruas estreitas e acidentadas”. Era por isso o veículo mais cómodo. Muitas famílias tinham o seu próprio riquexó. E utilizavam-no para as suas deslocações diárias. “Foi muito usado em Macau, que era um território pequeno, sem grande desenvolvimento até ao fim dos anos 70”, conta. Um carro movido a pé por homens ou- [email protected] Os automóveis afastam-se. Os autocarros buzinam. As motas ultrapassam. Mas o riquexó continua, imune a pressões, a circular lentamente pelo percurso programado. Sombra de outros tempos que resiste de pé aos ventos do desenvolvimento. Os utilizadores são inevitavelmente turistas. E os condutores passam a maior do tempo à espera de clientes. Mesmo em frente ao Hotel Lisboa, ali estão estacionados. E ali se encontra também Ho, condutor de riquexó – ou triciclo. Um negócio que encara, aos 80 anos, como uma mera forma de passar o tempo. O meio de transporte é precário. Uma bicicleta verde, meia ferrugenta, cujas juntas já há muito tempo que não vêem óleo. E que transporta duas pessoas. Um passeio Van. “Aqui era mar”, diz, virando-se para trás. Inicialmente hesitante em conceder a entrevista, acaba por fazê-lo no decorrer da viagem, indiferente ao rebuliço dos automóveis e do caos que é o trânsito na RAEM. “Esta aqui é a terra do Stanley Ho”, conta. E vai apontando, consoante passa pelos pontos que, na sua opinião, são dignos de referência. “Este é o Centro Comercial New Yahon”, diz. “Isto tudo aqui era mar”, declara, alertando para um parque de estacionamento em plena Praia Grande. O negócio não está a passar por bons O triciclo A partir da II Guerra Mundial, surge o triciclo. E é esse que se encontra hoje pelas ruas de Macau e Hong Kong. Hoje em dia, até mesmo os “triciclos têm um papel muito reduzido, servindo só para os turistas”, diz Jorge Cavalheiro. “Ninguém da terra o Numa das ruas mais movimentadas da cidade, no Porto Interior, estica o braço e acena com a mão para mudar de faixa. “Nunca tive qualquer acidente. Os carros afastam-se sempre e vão por fora do riquexó”, declara. Quanto ao seu velho veículo, só o consertou uma vez no longínquo ano de 1994. “Comprei-o a uma pessoa”, conta. “O Governo diz que estes carros são quase como património mundial”, afirma, enquanto vira à direita rumo à Avenida Almeida Ribeiro. Aos 80 anos, Ho não se preocupa com o negócio. Os colegas de profissão, normalmente, não têm como rendimento único as receitas do riquexó. “Também trabalham nas obras.” Chegando ao Hotel Lisboa – o ponto de partida e chegada do percurso -, Ho comenta: “Muitos desistem disto e dedicam-se só às obras, mas depois regressam”. Até porque dos 20 que se encontram estacionados junto ao Hotel Lisboa, apenas seis ou sete é que “efectivamente andam”, passando os condutores a maior parte do tempo à espera de clientes. “Eu próprio já estava parado há dez dias.” Uma invenção japonesa Do século XIX ao XXI indissociáveis dos cules, os homens que os transportavam. “Todo o mundo sabe por experiência que os cules de cadeira têm um tacto particular para saberem onde o amo quer ir. É raro perguntarem qual o destino do passeio”, conforme se pode ler no livro. “O instinto dos cules de cadeira em Macau é inexcedível; porque, se um sujeito sai de casa a pé e alguém o procura duas horas depois, o cule vai em linha recta procurar e encontrar o sujeito, onde quer que ele esteja.” Os tradicionais cules e riquexós foram também, lentamente, substituídos. pub Percurso “by night” Ho empunha um cartão onde se vê o percurso e se confirmam os locais por onde irá passar o riquexó. Olhando para o verso do cartão, o percurso é diferente. Inclui várias casas de massagens, anúncios a spas e mulheres pouco vestidas. Uma alternativa mais procurada para os noctívagos. “Tenho 80 anos, já não trabalho à noite”, diz rindo. Cortando na direcção da Avenida da República, Ho vai contando. “Só turistas é que lá vão”, declara. “Se eles levarem os turistas para essas casas, os proprietários dão-lhes uma parte do dinheiro que os clientes pagam à entrada.” De traços na face marcados pelo tempo, com um sorriso sincero, o condutor de riquexó conta como “já se cruzou com Historiador Jorge Cavalheiro fala sobre a evolução do riquexó trora “muito utilizado, tendo desaparecido do panorama das suas ruas e do seu ambiente social”, conforme se lê no livro do autor. “Um pequeno carrinho, muito leve, de rodas raiadas de arame de aço e guarnecidas de arcos de borracha, com assento para uma pessoa. Possui capota para o sol ou para a chuva, dois delicados varais entre os quais se coloca o cule para o puxar; e como se tratasse de qualquer outra carruagem, tinha uma campainha ou guizo e as respectivas lanternas”, descreve na publicação. Veio substituir outro meio de transporte, a cadeirinha. “Era muito utilizada ainda nos finais do século XIX. Com a chegada do século XX o transporte de pessoas é feito principalmente por riquexós”, lê-se. “Com alguma sorte, ainda poderá surpreender um comerciante de rua transportando as suas mercadorias num velho riquexó”, lê-se. Tanto a cadeirinha como o riquexó são A nado para Macau Chegando à Barra, começa a contar a sua estória. Natural do Continente, chegou a Macau a nado em 1964, fugido do Partido Comunista Chinês. “Só em 1998 é que regressei a casa para ver os meus filhos”, conta. “Tinha medo que viessem à minha procura”, diz. Na RAEM começou por trabalhar na construção civil. Reformou-se e, em 1984, comprou o riquexó. Dez anos depois viria a conseguir o Bilhete de Identidade e Residência de Macau. Só então decidiu visitar os filhos. Esperou quatro anos por medo de que não o quisessem ver. “Aqui é uma zona para ópera chinesa”, interrompe, apontando para um espaço junto ao Templo de A-Má. Em pleno Porto Interior, onde o barulho dos automóveis e dos autocarros se destaca e a conversa se torna difícil, passando pela Ponte 16, conta: “Os maridos dão dinheiro às senhoras para comprar comida e elas vão jogar para o casino.” De corpo ligeiramente inclinado, vai apontando para as casas da zona, afirmando que “existem há centenas de anos”. “Nunca tive qualquer acidente. Os carros afastam-se sempre e vão por fora do riquexó” António Falcão | bloomland.cn Pedalando lentamente, Ho, bem-disposto, vai relatando os pormenores da sua experiência enquanto condutor de riquexó. “Há algumas pessoas da terra que regressaram a Portugal e quando vêm de férias também os utilizam”, diz. “Conheço quem tenha ido para os Estados Unidos, voltou e, enquanto os filhos vão de automóvel, os pais vão nos riquexós”, acrescenta. Lentamente a atravessar a Praia Grande vai explicando que “aqui também era mar”, e aponta para os Lagos. “Costumam realizar aqui os barcos-dragão”, diz ainda. Parado atrás de dois autocarros, Ho aponta para a direita. “É a casa do Cônsul de Portugal”, diz. riquexós 15 8.5.2008 utiliza”, acrescenta. E nem os condutores “querem alguém da terra - os turistas têm mais dinheiro”. “O riquexó continuou a existir nos anos 80, mas só transportava mercadorias”, diz. Segundo o historiador, as “pessoas já não se sentiam à vontade em ser carregadas por um homem”. O triciclo fazia mais sentido. “Já é uma bicicleta, não é um homem a carregar directamente”, explica. Além disso, “podia levar-se duas pessoas e não era tão humilhante”. Também os triciclos estão condenados a desaparecer. “Normalmente só as pessoas mais idosas conduzem. Com eles, “deverão acabar os triciclos, a não ser que haja um revivalismo por parte dos Serviços de Turismo”. Actualmente, concentram-se junto ao Hotel Lisboa. “Era o casino de Macau, os turistas passavam e depois eram apanhados por eles”, diz. L.L. Foi no Japão que nasceu o jerinxá. O nome era jin–riki–gá, o que significa homem-força-carro. Os ingleses romanizaram o vocábulo e os portugueses passaram a designar de jerinxá. Mais tarde, os ingleses eliminaram o elemento jin, tornando-se rick-shaw. Baseando-se nos colegas britânicos, os portugueses viriam então a adoptar o termo riquexó, conforme informações retiradas do livro “Da Samplana ao jactoplanador, da cadeirinha ao automóvel”. A origem está longe de ser pacífica. Há quem atribua a sua invenção, em 1867, “ao missionário americano Jonathan Goble, enquanto outros consideram que terá sido o capelão do Consulado Britânico em Iocoama, M. B. Bailey”, conforme é descrito no livro do historiador Jorge Cavalheiro. São, contudo, os japoneses que reivindicam a sua invenção, afirmando que o primeiro jerinxá foi construído em 1868 para ser utilizado por um indivíduo paralítico de Quioto que não gostava de ser transportado numa cadeirinha. Outros afirmam que a sua invenção coube a Akiha Daisuke, em 1870. Contudo, o primeiro pedido oficial para produção de riquexós, segundo descreve o livro, coube a Takayama Kosuku, entre 1867 e 1870. Polémicas à parte, o que é certo é que o uso do riquexó viria a generalizar-se, e, depois da sua introdução em Xangai, circularia nas cidades do litoral da China. Seguiu-se depois a introdução em muitos outros países do Oriente, como a Birmânia, Tailândia e Índia. Acabaria também por ser utilizado em Singapura pelos chineses. Os filipinos adoptaram-no, mas recorrendo a cavalos pequenos, ao invés de um condutor. Os malaios também, substituindo o cule pelo pequeno cavalo de Timor. Só mesmo entre os chineses continuariam os homens a puxar os riquexós. L.L.