Caderno 7
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Caderno 7
CADERNO 7 Anais Eletrônicos VI ECLAE Funcionalismo e ensino RESUMO As formas são categorizados linguisticamente de duas formas: a categorização clássica defendida por Aristóteles e a categorização natural defendida por Wittgenstein. Para a teoria clássica, as classes gramaticais são discretas sem possibilidades de gradações; para a teoria de Wittgenstein, o significado é profundamente dependente do contexto, caracterizando-se pela presença da não discretude e pela defesa do continuum gradual de categorização. Givón (1984) postula que o processo é híbrido, o que denominou teoria dos protótipos, através da qual ele discute que não existem categorias discretas, nem se pode prever limites demarcatórios rígidos para categorizar classes gramaticais ou termos sintáticos. Acredita-se que existem itens que apresentam um maior número de propriedades. O item que se aproxima do exemplar-modelo, ou seja, o que apresenta mais traços específicos do titular, esse é considerado o protótipo da classe. Essa teoria se insere nos conceitos do Funcionalismo. Assim posto, este trabalho faz uma demonstração da mencionada teoria como base de ensino para o trabalho com as categorizações gramaticais. Para esse propósito, a título de ilustração, elegemos os conectores adversativos como objeto de demonstração com o fim de refletirmos sobre quais as formas circulam como centrais ou periféricas em movimentos delineados pelos falantes de Natal -RN, quando da realização da adversidade. Para isso, buscamos dados no corpus Discurso e gramática da cidade de Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), compusemos uma amostra, localizamos os itens que exercem funções adversativas, os quais revelaram como mais recorrentes o mas, e, aí, agora. A análise, através de critérios próprios mostra como é possível trabalhar em sala de aula pela escala de prototipicidade dos itens e a partir daí, apresenta as contribuições possíveis para o ensino, tendo como base documentos oficiais (BRASIL, 2001). Palavras-chave: Teoria dos protótipos, Conectores, Ensino. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino A TEORIA DOS PROTÓTIPOS E O ENSINO DOS CONECTORES Maria José de Oliveira (IFRN - C. Caicó/UFPB: PROLING) Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN) Introdução Considerada uma das correntes linguísticas que atuam no âmbito da contemporaneidade, o Funcionalismo linguístico se concentra na ação interativa dos usuários, de modo que, em uma abordagem funcionalista de qualquer natureza, o objeto de estudo é sempre a língua em situação comunicativa. Dentro dessa perspectiva, a gramática é considerada “um conjunto de formas, padrões e práticas que surgem para servir às funções que os falantes necessitam desempenhar com mais freqüência” (FORD; FOX; THOMPSON, 2003, p.122). É uma concepção que relaciona a estrutura flexível da gramática a um formato advindo das situações vivenciadas pelos seres humanos através de suas experiências cognitivas, no processo interativo da língua. Dessa forma, a gramática é sensível às pressões do uso e, por isso, passa por constantes modificações. Seguindo-se essa linha, o estudo parte de uma base semântico-pragmática, de modo que, nesse tipo de abordagem , devemos acionar os esquemas conceituais com base em componentes cognitivos, os quais se fixam na língua pela ação de recorrência dos usuários. Desse modo, a gramática funcional é concebida como um sistema de regularidades aberto a mudanças provindas da ação e interação dos homens, sujeito às pressões linguísticas e extralinguísticas do ato comunicativo. Para se fixar na língua, esse sistema dependerá da frequência do uso. 1461 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais A teoria dos protótipos, por sua vez, atua dentro dessa corrente linguística como um dos seus princípios. Este artigo a elege para fazer uma explanação, ilustrando-a com o uso dos conectores adversativos na fala do natalense, com o propósito de averiguar qual a escala circular dos itens que figuram como centrais ou periféricos na realização dos enunciados contrastantes na fala do habitante de Natal-RN. De posse dos resultados, sugerem-se implicações da teoria para o ensino. A pesquisa busca suporte em Givón (1984, 1995, 2001, 2005)e em edições oficiais de documentos (BRASIL, 2001), tomando como foco a prototipicidade como estratégia para a categorização de conectores. Para desenvolvermos a análise, observamos, inicialmente quais os quatro conectores mais recorrentes no corpus Discurso e Gramática da cidade de Natal - D&G (FURTADO DA CUNHA, 1998), banco de dados escolhido para a análise, definimos critérios para aferir o nível de prototipicidade com base nas características do mas, o qual é o prototípico da categoria dos adversativos (SILVA, 2005); OLIVEIRA(2009) e posteriormente, elaboramos sugestões para o ensino dos conectores com base na observação do continuum. O trabalho se encontra assim organizado: Introdução; a teoria dos protótipos; grau de prototipicidade dos conectores adversativos mais recorrentes; sugestões para o ensino dos conectores; considerações finais. A teoria dos protótipos A categorização clássica, baseada em Aristóteles e a categorização natural, baseada em Wittgenstein, são as duas formas de categorização linguística. A categorização clássica considera que as classes gramaticais são discretas sem possibilidades de gradações, conforme prega a gramática tradicional. A teoria dos protótipos se espelhou em Wittgenstein para explicar que o significado é profundamente dependente do contexto que, pela característica da não discretude, envolve-se em um continuum gradual de categorização. Givón (1984) apresenta uma proposta de uma solução híbrida para conectar as duas categorias, o que ele denominou de teoria dos protótipos, segundo a qual, são prototípicos os itens de uma determinada categoria que compartilham 1462 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa os traços ou propriedades dessa categoria. Os itens que compartilham um maior e menor número de traços apresentam diferentes graus de prototipicidade. O enfoque clássico da categorização se diferencia da teoria dos protótipos porquanto essa reemprega a noção de traço ou componente pela de atributo. A preferência pelo atributo encontra justificativa em Taylor (1995), para quem os atributos são menos abstratos, não binários, funcionais ou interacionais, culturais e algumas vezes “acidentais” (Aristóteles), além de não serem únicos para caracterizar o elemento. Por esta percepção, tanto as classes morfológicas como as categorias sintáticas não apresentam fronteiras nítidas entre os limites que as separam umas das outras. A teoria postula que o membro ostentador do maior número de propriedades recorrentes para bem representar uma categoria é considerado o protótipo. À proporção que uma forma se afasta do núcleo prototípico, ela tende a assumir outras funções. Desse modo, o critério que determina a classificação de um item, forma ou construção, depende da relação de aproximação ou distância do protótipo-base. Os resultados das pesquisas apontam que, apesar de as línguas apresentarem uma variedade de cores, evidências experimentais determinam que existam cores focais1. Essas representam melhor a categoria. É a base para a generalização da categoria completa. Assim, a existência das demais categorias de cores do continuum centro-periferia é determinada por fatores biológicos e cognitivos. De alguma maneira, a teoria dos protótipos encontrou inspiração na teoria das cores, visto que, em verdade, o processo de categorização das formas obedece a um continuum, dado o processo evolutivo da língua, e destarte, o ideal será mesmo considerar as categorias como focais. Muito embora alguns autores asseverem que não se pode sustentar que as categorias se estruturam em torno de um centro cognitivo até que os falantes julguem a sua aplicação e as institucionalize. 1. A teoria das cores básicas é um argumento que sustenta a noção de protótipos. Estudos de Berlin e Kay (1969) revelam que a língua possui um inventário de onze cores focais (nível básico), de base cognitivoperceptual. O continuum da cor é representado por unidades focais, ou seja, pela nuance que melhor representa a categoria. Dessa forma, existe a cor que melhor representa a cor vermelha, a cor verde, etc. 1463 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais É perceptível que os atributos se ordenam dentro de uma categoria com diferenças de graus, os quais são reflexos das projeções cognitivas. Os membros que se localizam próximos ao centro serão os prototípicos e os que se localizam distantes do centro são periféricos, portanto, mais passíveis de pertencer a outra classe gramatical. A teoria em foco apresenta, dessa forma, uma metodologia alternativa para a categorização das formas em estudo, uma vez que considera relevantes as visões do mundo absorvidas pelos falantes, através da realidade. Em relação ao estudo das conjunções, vale citar a afirmação de Barreto (1999, p. 66), também considerada por Silva (2005), quando diz que pode-se afirmar não haver uma separação nítida entre conjunções coordenativas e subordinativas, mas um contínuo que vai da coordenação perfeita à subordinação por excelência, havendo, em cada grupo de conjunções, os protótipos, isto é, as que preenchem as características básicas de cada grupo. No que diz respeito, especificamente, aos conectores adversativos, a teoria oferece alternativas para se refletir sobre quais as formas circulam como centrais ou periféricos em movimentos delineados pelos falantes de Natal-RN, quando da realização da oposição, a fim de eleger o protótipo da categoria dos adversativos. Grau de prototipicidade dos conectores adversativos mais recorrentes A teoria dos protótipos tem base na psicologia cognitiva, conforme já foi explicitada. Nesta seção, analisamos o continuum de categorização dos conectores adversativos, com base no grau de prototipicidade dos quatro conectores mais recorrentes (mas, e, aí e agora). Segundo a teoria dos protótipos, não existem categorias discretas, nem podemos prever limites demarcatórios rígidos para categorizar classes gramaticais ou termos sintáticos. Acreditamos que existem itens que apresentam um maior número de propriedades. O item que se aproxima do exemplar-modelo, ou seja, 1464 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa o que apresenta mais traços específicos do titular, esse é considerado o protótipo da classe. Porém, antes de eleger os itens que farão parte da escala de prototipicidade entre os conectores em tela, convém definirmos alguns critérios que servirão de base para aferir o nível de prototipicidade dos itens responsáveis pelos elos entre as informações contrastivas no universo natalense. Assim sendo, foram relacionados os seguintes critérios para observar quais os protótipos da categoria em análise, no contexto em foco: a) ratificar e ressaltar o valor contrastivo das informações; b) apresentar alto índice de frequência; c) ocupar posição fixa; d) conectar termos; e) articular-se oracionalmente. a) A presença do conector, por excelência, já determina que os segmentos sejam contrastivos, sem margens para ambiguidades. b) À medida que os falantes aderem ao uso de um conector, este tende a ser repetido e se tornar rotina em situações comunicativas. Dessa forma, pode-se dizer que o item ou conector mais frequente é favorecido para ocupar a posição de protótipo. c) Quando um item tende a ocupar uma mesma posição na fronteira de orações que contrastam, ele apresenta mais possiblidades de se especializar naquela função daquele item que se mobiliza na oração. d) Relacionar termos que contrastam é um critério relevante para comprovar o caráter de oposição de um item, uma vez que ele pode relacionar diversas estruturas. e) A observação do nível de articulação é importante para se verificar se os itens se juntam mediante segmentos mais compactos, oracionais ou por segmentos tópicos, o que comprova se os itens estão mais, ou menos integrados. 1465 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Observemos alguns exemplos: (1) essa cirurgia que fiz ... mas tive seqüelas né ... fiquei com seqüelas como ... meus dentes ficaram num sei quantos anos ... caindo sozinho ... amolecia sozinho e caía ... é só sem ver de que caía e também tive que ... eu tava ... tinha seis anos né ... (narrativa de experiência pessoal, p.7 ) (2) ...(carro passando)) aí ele veio no ... na ... na ... na ... na ((riso)) aí ele veio pediu ... pediu pra passar ... aí o motorista também tava muito melado né ... aí passou ... aí na ... na ... na ... aí o motorista não deixou passar ... aí ele cortou pela direita e trancou a gente e jogou todo mundo na BR ... (narrativa de experiência pessoal, p.6) (4) talvez aqui na via costeira em Natal tenha um ar igual no inverno ... mas muito agradável o ar e uma imensa rajada de frio ... porque eu tinha ... eu pensava que tinha ido bem agasalhado ... que tinha levado os cober/ é ... os casacos certos ... a luva certa ... mas eu vi que meu casaco era insuficiente pra aquele frio ... ((riso)) mas aí eu tive que me agüentar até ... até Rio Grande porque eu num tinha ... num saberia comprar em Porto Alegre um casaco e num tinha ... (narrativa de experiência pessoal, p. 44) (5) ...ele enfrenta uma transformação muito grande agora ... vem enfrentando ... agora vai tá piorando e a gente vê aí os brasileiros ... os nordestinos ... os sertanejos ... ninguém abre os olhos ... tá todo mundo iludido ... todo mundo pensando em como se divertir ... todo mundo pensando em ter amanhã o dia melhor ... mas num abre pra situação econômica ... que vai melhorar sua vida ... (relatos de opinião, p.36) (7) ... toda relação tem dificuldades e elas devem ser superadas no convívio ... num acredito que ... o casamento ... que se resolva alguma coisa fugindo de um relacionamento ... é ... onde já existam é ... outras pessoas é ... personagem passar por quatro ... cinco pessoas ... (relatos de opinião, p.73) 1466 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa Os exemplos (1), (2), (3), (4), (5), (6), (7) constam apenas como uma demonstração de como se realiza a adversidade na fala do natalense. O trabalho de verificação dos dados foi feito com base nas ocorrências de toda a pesquisa que incluiu uma amostra dos conectores em dados orais de narrativas de opinião pessoal e relatos de opinião. Compilados os dados da amostra, o resultado apresenta a seguinte tendência, resumida no quadro(1), resultante do estabelecimento de parâmetros baseados em fatores sintáticos e semânticos, sendo considerado protótipo o item preenchedor de todos os critérios. Quadro (1): prototipicidade dos conectores adversativos na fala de Natal Conectores↓ ratifica oposição posição fixa conecta termos articulação oracional TOTAL + Mas + + + + 4 E – + – + 2 Aí – + – + 2 Agora – + – + 2 Fonte: (OLIVEIRA, 2009) Pelos critérios definidos para avaliar o grau de prototipicidade dos conectores relacionados (mas, e, aí, agora), constatamos a posição de supremacia do mas, detentor de todos os traços relacionados. E, aí e agora estão em segundo lugar na escala. Para desempate, resolve-se usar o critério da frequência, visto que é considerado um fator de grande importância para se avaliar o grau de prototipicidade, muito embora acreditemos mais na importância da junção de todos os traços. Porém, como todos foram observados, restou apenas a frequência para o desempate, que será averiguada pela tabela (1): 1467 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Tabela 1: Frequência geral dos conectores adversativos na comunidade de fala do Natal Conector Quantidade % Mas 269 65,6 E 64 15,6 Aí 38 9,2 agora 26 6,3 só que 10 2,5 no entanto 2 0,5 Já 1 0,3 TOTAL 410 100 Fonte: (OLIVEIRA, 2009) 1468 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa A tabela (1) registra dados gerais sobre o perfil da adversidade na fala do natalense, no entanto, interessa-nos apenas os quatro conectores mais recorrentes, por razões de escopo da própria pesquisa. Assim sendo, o item mas é o mais frequente, seguido pelo e que é o segundo mais frequente, superando os outros dois: o aí ocupa o terceiro lugar e o agora o quarto lugar, que pode ser representado pela seguinte escala, do mais central para o periférico: Figura 1: prototipicidade dos conectores adversativos + mas e aí agora Fonte: (OLIVEIRA, 2009) A escala revela o continuum de prototipicidade dos quatro conectores mais recorrentes, e conforme podemos ver, o mas se coloca como o prototípico da categoria, uma vez que é detentor de todos os traços e os demais vêm se colocando numa ordem escalar pelos traços presença/ausência dos fatores característicos do elemento prototípico. Assim sendo, o mas atua como prototípico e os demais se distribuem como periféricos na categoria dos adversativos na fala do habitante de Natal-RN. 1469 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Sugestões da teoria para o ensino dos conectores Como podemos observar, os conectores atuam no discurso de forma escalar, obedecendo a um continuum que vai do exemplar-prototípico ao periférico. Desse modo, como postulam os teóricos do funcionalismo: um dos papéis do professor de língua materna é o de atuar como orientador do processo de construção e re-construção do saber gramatical dos alunos, incentivando-os a experienciarem a língua em suas múltiplas faces, em situações de uso real. (FURTADO DA CUNHA; TAVARES, 2007, p. 34) Trazendo a reflexão para uma situação mais específica de tratamento dos conectores, Tavares (2007, p. 108) chama a atenção para que se trabalhe uma maior diversidade de conectores em gêneros diversos, e propõe algumas atividades que devem ser estimuladas pela escola: (...) Por exemplo, os alunos podem comparar os usos dados a conectores coordenativos na fala e na escrita, em textos lidos e/ou escritos pela turma, orais e escritos de diferentes gêneros- textos jornalísticos variados (de mídia falada e impressa), receitas, histórias em quadrinho, contos, e-mails, etc. A fala de membros da própria comunidade (incluindo os alunos) pode ser gravada e analisada levando-se em conta os diferentes gêneros que aparecerem. Nesse âmbito, propõe também que os alunos trabalhem semelhanças e diferenças no emprego de conectores coordenativos em sequências e gêneros variados e na articulação de mais de um nível de articulação textual. Acreditamos que as evidências de preferência pelo uso de um ou outro conector em uma dada situação da comunidade linguística poderão fornecer pistas para que o aluno perceba qual é o conector mais adequado a cada contexto de uso. A esse respeito, Tavares (2007, p.109) ainda acrescenta: Ao dominarem um leque maior de possibilidades de seqüenciar partes do texto e suas especificidades de uso, os alunos estarão mais bem munidos para evitar a repetição constante de um só item. 1470 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa Antunes (2007), por sua vez, também traz a sua contribuição para um estudo mais eficaz dos conectores, chamando a atenção para se focalizar esses itens relacionais que marcam o encadeamento entre partes do texto, mediante o reconhecimento das relações e de suas funções (lógica, argumentativa, discursiva), considerando a atividade “um saber da mais alta relevância para administrar as possibilidades de organização do texto” (p. 133). É importante citar o que a autora diz a respeito dos itens em estudo: São elementos sinalizadores- pistas- para irmos encontrando a direção argumentativa, inclusive, do texto. Esse saber seria bem mais útil que, simplesmente, saber dizer se a conjunção é coordenativa ou subordinativa ou se a expressão é adjunto adverbial ou não. (Infelizmente, já se perdeu tempo demais com essa inutilidades! (...)) Diante disso, acreditamos que o primeiro passo a ser adotado para orientar uma aplicação metodológica advinda da teoria aqui em foco será orientar o processo de aprendizagem de um item ou construção a partir de textos, nos seus diversos gêneros e modalidades. Por um lado, devemos sugerir ao aluno atividades de escuta de textos orais e leitura de textos escritos, objetivando a ampliação progressiva de conhecimentos discursivos, semânticos e gramaticais que se envolvem na produção do sentido. Por outro lado, promover a construção e reconstrução de textos variados, adequando-os às múltiplas situações contextuais requeridas pela ordem social. Veja o que diz Antunes em relação ao assunto (2007, p.138): A proposta (...) é que o texto seja analisado: no seu gênero, na sua função, nas suas estratégias de composição, na sua distribuição de informações, no seu grau de informatividade, nas suas remissões intertextuais, nos seus recursos de coesão, no estabelecimento de sua coerência e, por causa disso tudo, só por causa disso tudo, repito, os itens da gramática comparecem. Dessa forma, para que esses aspectos produzam efeitos na prática pedagógica, acreditamos que estratégias devem ser moldadas com base na visão dos Parâmetros Curriculares Nacionais (2001, p. 49), os quais definem como objetivo de ensino das línguas desenvolver no aluno os domínios da expressão oral e escrita em situações funcionais. 1471 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais No caso das construções adversativas, devemos promover a reflexão sobre a origem e multifuncionalidade dos diversos conectores que se envolvem com a adversidade, em sincronias diferentes. Posteriormente, mapear cada função ou subfunção assumida, em contextos orais e escritos e promover atividades de percepção do uso dos referidos itens em situações que o identifiquem como funcionalmente múltiplos. É interessante que o aluno perceba como as formas funcionam quando postas em uso. Assim sendo, é papel do professor promover atividades diversas, envolvendo gêneros também diversos para que o aluno exercite a habilidade de uso dos conectores, atentando para sua funcionalidade, bem como para a análise de seus efeitos. Com relação à atuação da teoria dos protótipos, esta atua no processo de análise linguística, quando se espera que o aluno (... ) “seja capaz de verificar as regularidades das diferentes variedades do português, reconhecendo os valores sociais nelas implicados e, consequentemente, o preconceito contra as formas populares em oposição às formas dos grupos socialmente favorecidos”.(BRASIL, 2001, p.52). Adiante, Brasil(2001, p.63) também apregoa que na prática de análise linguística haja Descrição de fenômenos linguísticos com os quais os alunos tenham operado, por meio de agrupamento, aplicação de modelos, comparações e análise das formas linguísticas, de modo a inventariar elementos de uma mesma classe de fenômenos e construir paradigmas contrastivos em diferentes modalidades de fala e escrita, com base: *Em propriedades morfológicas (flexão nominal, verbal; processos derivacionais de prefixação e de sufixação); *No papel funcional assumido pelos elementos na estrutura da sentença ou nos sintagmas constituintes (sujeito, predicado, complemento, adjunto, determinante, quantificador); *No significado prototípico dessas classes. Desse modo, como podemos perceber, a análise a partir da teoria dos protótipos já é reconhecida pelos Parâmetros nacionais do ensino fundamental, quando defendem o trabalho de análise linguística a partir de regularidades, bem como a construção de paradigmas que possibilitem o aluno fazer diferenças 1472 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa entre registros, entre língua falada e língua escrita com base no papel funcional, nas propriedades morfológicas e no significado prototípico dessas classes. Os Parâmetros curriculares nacionais publicados em 2001 já prenunciam a necessidade de se trabalhar uma gramática de conteúdo emergente, a qual está em construção, caracterizando-se pela instabilidade e maleabilidade da língua, com base nas relações de prototipicidade. Trabalhar com base na teoria dos protótipos é reconhecer os valores de cada item, observando sua função em variados contextos, reconhecendo exemplares de uso regular e exemplares de uso mais periférico, possibilitando ao aluno fazer agrupamentos e categorizações de caráter não discreto, reconhecer regularidades de dados a partir da observação do uso, dentro das condições de produção. Com relação ao trabalho com os conectores, a teoria dos protótipos contribui com a ajuda de se fazer perceber quais os conectores que atuam como prototípicos, ou seja, qual o item que atua como melhor exemplar de uma categoria e quais os que atuam na periferia, possibilitando refletirmos sobre quais situações devemos usar o exemplar detentor de todas os traços caracterizadores do prototípico e quais situações devemos usar aqueles que atuam com apenas alguns traços. No que diz respeito aos conectores adversativos, a pesquisa mostra o mas como o exemplar mais completo, sendo que os demais aparecem em posições periféricas e com algumas restrições de uso. Considerações finais Diante da exposição a respeito da teoria dos protótipos e da análise da escala de prototipicidade dos enunciados contrastantes na fala do natalense, concluímos que o mas é o prototípico da categoria dos adversativos nesse contexto, seguido pelos conectores e, aí e agora, os quais não possuem todos os traços do prototípico. Quanto ao estudo dos conectores a partir da teoria dos protótipos, essa pode ser produtiva, porquanto oferece a opção de se trabalhar as categorias com base em critérios demarcatórios maleáveis, numa relação de continuum, uma vez que as categorias não são discretas. Conforme podemos perceber, a teoria já vem sendo tematizada desde a implantação dos Parâmetros curriculares nacionais da língua portuguesa, pois em 1473 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais seu texto já se propõe o trabalho com as regularidades da língua, a reflexão, o que pressupomos que inclui a prototipicidade. A teoria também encontra abrigo diretamente nos textos oficiais, quando mais de uma vez é mencionada como estratégia útil para categorizações ou análises linguísticas, haja vista que ao trabalharmos com o exemplar-prototípico, abrem-se possibilidades de reflexão dos usos e das condições de uso da nossa língua, sem lugar para análises estanques e descontextualizadas. À guisa dessas explanações, observamos que abordar o estudo dos conectores a partir das relações de prototipicidade, pode ser um caminho profícuo para se estudar as conexões, porque assim abrem-se margens para reflexões dos valores e sentidos evocados por cada construção, bem como para as suas condições de uso. Trabalharmos os conectores sob essa perspectiva pode ser uma estratégia para exercitarmos o uso de outros conectores de valores aproximados, refletirmos sobre determinados usos e situações de comunicação da nossa língua. Referências ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BARRETO, T. M. M. Gramaticalização das conjunções na história do português. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, Salvador: 1999. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais- Língua Portuguesa- 5ª a 8ª séries. Brasília: MEC/SEF, 2001. FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & gramática - a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998. FURTADO DA CUNHA, M. A; TAVARES, M. A. Lingüística Funcional e Ensino de gramática. In: ______. (orgs) Funcionalismo e ensino de gramática. Natal: EDUFRN, 2007. FORD, C. E.; FOX, B; THOMPSON, S.A. Social interaction and grammar. In: TOMASELLO, M. (Ed).The new psychological of language. v. 2, Lawrence Erlbaum: New Jersey, 2003, p.119-143. GIVÓN, T. Syntax I. New York: Academic Press, 1984. ______. Functionalism and grammar. John Benjamins: Amsterdam/ Philadelphia: 1995. ______. Syntax. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2001, v.1. ______. Context as other’s minds. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2005. 1474 Maria José de Oliveira, Gisonaldo Arcanjo de Sousa OLIVEIRA, M. J. de. Conectores adversativos na fala do natalense: uma análise funcionalista com implicações para o ensino. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ UFRN. Natal-RN, 2009. SILVA, C. R. Mas tem um porém...:mapeamento funcionalista da oposição e seus conectores em editoriais jornalísticos. (Tese de doutorado). João Pessoa, 2005. TAVARES, M. A. A gramaticalização de e, aí, daí e então: estratificação/variação e mudança no domínio funcional da seqüenciação retroativo-propulsora de informações - um estudo sociofuncionalista. (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003. ______. Os conectores e, aí e então na sala de aula. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; TAVARES, M. A. Funcionalismo e Ensino de Gramática. EDUFRN: Natal-RN, 2007, p. 87 - 115. TAYLOR, J. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford: Clarendom Press, 1995. 1475 RESUMO O objetivo deste trabalho é trazer um estudo inicial acerca da frequência das construções dos tipos haver, existir e ter em textos falados e escritos do português brasileiro, com o enfoque de investigar as relações que interligam tais construções. A perspectiva teórica adotada é a Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), postulados por pesquisadores como Givón (1979, 1995, 2001), Thompson e Couper -Kuhlen (2005), Hopper (1987), Traugott (2011), Bybee (2010, 2011), Haiman (1985), Martelotta (2011), Furtado da Cunha, Bispo e Silva (2013). Um dos princípios da LFCU é reconhecer a língua como atividade social e definir a construção de estrutura argumental como um pareamento de forma e significado que independe de verbos particulares. O significado da construção, nesse sentido, não depende das palavras, mas de toda a construção oracional atrelado ao contexto de uso. A seleção de dados para a análise serão coletados dos corpora Discurso & Gramática (D&G), que contêm amostras de língua falada e escrita em contextos reais de interação, provenientes de cinco cidades brasileiras (Rio de Janeiro, Natal, Rio Grande, Juiz de Fora e Niterói). Esperamos com este trabalho contribuir para os estudos linguísticos acerca dos fenômenos para quem os estudiosos pesquisadores da LFCU têm exercido suas pesquisas. Palavras-chave: Linguística funcional centrada no uso, Forma e significado, Discurso & gramática. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino AS CONSTRUÇÕES DE ESTRUTURA ARGUMENTAL HAVER, EXISTIR E TER NO PORTUGUÊS DO BRASIL Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira (UERN) Rosângela Maria Bessa Vidal (UERN) Introdução Segundo a Gramática Tradicional (doravante GT), o verbo haver, dentro da língua portuguesa é sinônimo de um conjunto substancial de palavras. Isso significa que este verbo pode ser usado em variadas ocasiões, o que faz com que seu uso torne-se alvo de dúvidas frequentes. Uma delas são as relações que encontramos nas construções verbais haver, existir e ter. Nesse caso, o verbo ter é considerado pela GT como um verbo que exprimi posse, enquanto que os verbos haver e existir assumem significados de ocorrer ou existir. Os postulados da LCFU reivindica que tais usos não podem ser descartados, pois o uso da fala é a própria língua que é considerada um organismo vivo, enquanto que a gramática é apenas uma representação dela. Nesse sentido, como podemos relacionar tais verbos numa perspectiva em que a visão considere o todo em uma dada sentença e não apenas em partes? Se a língua é viva e a gramática a representa, o que fazer para interligar forma e significado, conhecimento de mundo e conhecimento linguístico? Por não haver um consenso gramatical e por a GT não considerar a língua como prática social, pretendemos neste trabalho trazer a análise dos verbos ha- 1477 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais ver, existir e ter, e verificar como suas relações estão ocorrendo tanto na fala quanto na escrita, e que o verbo ter, em especial, revela o significado da construção oracional que mais sinaliza o sentido existencial do que o sentido de posse. Para análise de dados, utilizamos o Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade de Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), do qual foram coletados os verbos haver, existir e ter, no sentido existencial. Esse material e composto de diferentes tipos e gêneros textuais, entre eles: narrativas de experiências pessoais, narrativas recontadas, descrições de locais, relatos de procedimentos e relatos de opiniões, nas modalidades falada e escrita, produzidos por estudantes do ensino fundamental, médio e superior da cidade de Natal. Nossa base teórica se apoia nos princípios da Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), vertente teórica que é representada pelos pesquisadores do Grupo Discurso & Gramatica, entre os quais, destacamos: Maria Angelica Furtado da Cunha, Mario Martelotta, Mariangela Rios de Oliveira, Jose Romerito Silva, Edvaldo Bispo, e outros. Finalmente, esclarecemos que este trabalho é uma análise inicial do nosso trabalho de mestrado. Enfatizamos também que nossa posição difere daquela imposta pela GT, pois compreendemos que a análise de verbos não se faz separado da construção oracional como um todo e suas relações de sentido. A linguística funcional centrada no uso e a gramática de construções A LFCU compartilha da concepção de que o conhecimento cognitivo e os dispositivos que falantes reais evocam provêm do uso da língua. Nesse sentido, a estrutura de uma construção gramatical é orientada por esquemas e experiências cognitivas, uma vez que visa capturar as diversas situações produzidas pelas mentes e externadas e processadas na linguagem. Além disso, a teoria aborda como a gramática é compreendida e produzida por falantes de uma língua, por meio do conhecimento de mundo, incluindo forma e significado atrelado ao contexto em que ele foi representado. 1478 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal A análise de construções revela que “conhecimento linguístico está comprimido em pares forma/significado, nas formas das palavras, morfemas, expressões idiomáticas e em sequências de palavras ou classes de palavras” (DUQUE; COSTA, 2012, p. 139). Nesse sentido, é enfatizado que a compreensão da linguagem parte de fatores de ordem sensório-motor e propriedades semântico-pragmáticos, como visto na Figura 1: Figura 1 – Construção: forma/significado FORMA SIGNIFICADO som, grafia, controle motor coisas, eventos, propriedades Fonte: Duque e Costa (2012, p. 140) A Figura 1 representa um esquema de construção se relacionando dentro de um contexto, mostrando que há situações em que tanto a forma quanto o significado, ou seja, conhecimento linguístico e conhecimento de mundo fazem parte de um mesmo, são observados como um todo e influenciados pelo uso. O que o falante produz na linguagem é consequência de suas experiências contextuais, determinadas por fatores de interação social. Os novos estudos linguísticos estabeleceram a aliança entre os postulados da Linguística Cognitiva, dos linguistas George Lakoff, Ronald Langacker, Gilles Fauconnier, Adele Goldberg, John Taylor, William Croft, entre outros, com os da Linguística Funcional de vertente norte-americana, representados por Talmy Givón, Paul Hopper, Sandra Thompson, Wallace Chafe, Joan Bybee, Elizabeth Traugott, Christian Lehmann, Bernd Heine e outros. Essa aliança caracteriza uma nova roupagem, por compreender que o conhecimento linguístico emer- 1479 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais ge e se estrutura a partir do uso da linguagem em situações sociointeracionais de comunicação. Em outras palavras, “categorias e estruturas gramaticais são construídas a partir de processos cognitivos gerais que aplicamos às diversas situações de uso real da linguagem.” (DUQUE; COSTA, 2012, p. 62). Assim, a expressão Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), refere-se a um entrelaçamento entre essas duas linhas teóricas: a Linguística Funcional Norte-americana e a Linguística Cognitiva. Essas duas correntes partilham vários pressupostos teórico-metodológicos, a saber: i: considerar a semântica e a pragmática nos estudos da língua a partir do uso; ii: compreender que a língua é um conjunto de atividades que parte das situações cognitivas e sociocomunicativas (portanto, a interação entre os falantes e sua capacidade de conhecimento de mundo é fundamental para a análise linguística); iii: considerar que a sintaxe não é autônoma, pois emerge do uso, nem é totalmente arbitrária e tem base sociocognitiva (forma e função); v: aceitar não haver a possibilidade de divergências e diferenças entre sintaxe e léxico, pois compreende que a unidade linguística é dotada de forma e função e, ainda em suas análises, iv), fazer uso de amostras com evidência empírica, que ocorrem em um discurso real e assumir que há um paralelismo entre a categorização conceptual e a categorização linguística, ou seja, conhecimento do mundo e conhecimento linguístico são inseparáveis. Os pressupostos da LFCU defendem que as estruturas gramaticais (forma) só são possíveis por causa da língua, através de seus fatores semânticos e pragmáticos (função). Assim, não é a gramática que determina as necessidades da língua, mas a língua é que vai dando os contornos da gramática. Nesse sentido, os diversos usos dados pelos falantes de uma língua não podem ser vistos como desprovidos de gramática, mas como revestidos de uma gramaticalidade diferente. Baseado nisso, a emergência de uma construção linguística no cotidiano dos usuários da língua não pode ser ignorada por não ter sido descrita pela GT. Esse uso deve ser descrito e analisado para que verifiquemos quais motivações sintático-semânticas determinaram sua emergência. Como apontam Furtado da Cunha, Bispo e Silva (2012, p. 5): 1480 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal Sob a perspectiva da LCU, as propriedades universais devem ser procuradas não em categorias ou construções linguísticas particulares, mas na cognição humana, isto é, nos modos como os homens conceitualizam o mundo em termos de certas categorias, configurações espaciais e temporais, focalização de atenção gerenciamento de informação, para citar alguns aspectos. Em outras palavras, a busca pelos universais deve focalizar os processos que criam e mantêm as estruturas linguísticas, e não as próprias estruturas. Sendo a língua um sistema simbólico por excelência, utilizado para comunicar informação sobre o mundo, naturalmente ela reflete essas conceitualizações. Assim, a língua está relacionada com as experiências pelas quais o indivíduo sofre/passa, pois é a partir dessas experiências com o mundo que ela exerce sua função. Como a língua está sujeita às pressões provenientes do uso, consequentemente, a gramática irá/deverá sofrer mudanças, já que ela é “um sistema flexível, fortemente suscetível à mudança e intensamente afetado pelo uso que lhe é dado no dia a dia” (FURTADO DA CUNHA, 2007, p. 17-18). Quando fala-se em estudar a língua em situações reais discursivas de comunicação, assume-se a gramática sob a ótica de seu funcionamento legítimo e produtivo, já que a língua é usada em processos sociocomunicativos. Nessa abordagem, defende-se que as categorias e estruturas linguísticas são baseadas na experiência que temos ao realizarmos construções e nos processos de categorização e de conceptualização. Categorizar significa construir uma ordem física e social para o mundo (JACOB; SHAW, 1998, p. 155). Assim, ao organizarmos determinado pensamento, levamos em conta que as coisas à nossa volta pertencem a determinados grupos classificatórios. Permite-nos saber, por exemplo, o significado de cada coisa ou situação, ou seja, quando organizamos coisas, caracterizamos situações, construímos uma realidade dentro de um contexto sociocultural que não é isolada ou inata individualmente em nossa mente. Como dizem Duque e Costa (2012, p. 19): Isso acontece, por exemplo, quando organizamos as coisas à nossa volta em termos de MOBILIÁRIO, ALIMENTOS, VESTIMENTAS, JOGOS, VEÍCULOS, ANIMAIS DOMÉSTICOS, ALIMENTAÇÃO ORGÂNICA, ESPÉCIES EM EXTINÇÃO; quando caracterizamos grupos e institui- 1481 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais ções como sendo AMIGOS, SÓCIOS, ESTRANGEIROS, CÚMPLICES, TRAIDORES, REFUGIADOS DO CLIMA, FAMÍLIA, ESCOLA, IGREJA; quando delimitamos o que seja MASCULINO ou FEMININO, SAGRADO ou PROFANO, SAUDÁVEL ou PATOLÓGICO, INFÂNCIA, IDADE ADULTA, TERCEIRA IDADE, ou quando, ingênua e pretensiosamente, pensamos o mundo dividido entre O BEM e o MAL. A experiência humana, portanto, é categorizada por atividades cognitivas, as quais, encontramos em diversas habilidades linguísticas, ao realizar coisas por meio do processo de comunicação, geralmente adquirida na infância, quando o falante aprende a usar a sua língua. Isso se deve também ao processo de conceptualização, ou domínios conceptuais, em que a categorização é vista sob um ângulo amplamente complexo e não apenas em categorias simples. Tais domínios são vistos como “nichos de sentido nos quais experiências corpóreo-afetivas ficam estocadas desde a infância” (DUQUE; COSTA, 2012, p. 75). Esquemas cognitivos, associados às experiências cognitivas, são os elementos que nos direcionam a procurar, por exemplo, uma blusa dentro do guarda-roupa ou do balde de roupa suja, mas nos impedem de procurarmos dentro do armário da cozinha. Dentre os conceitos basilares, das quais a LFCU vale-se para analisar os dados da língua, em que uso e estrutura são trabalhados conjuntamente, estão: cognição, linguagem, discurso, padrão discursivo, texto, língua, léxico, gramática, gramaticalização, construção (FURTADO DA CUNHA, 2012, p. 7). Quanto à Linguística Funcional de vertente norte-americana, também surgida na década de 1970, consolidou-se dentro das teorias funcionalistas por ser uma vertente que considerava as situações de comunicações reais do falante. A teoria advoga ainda que a língua sofre processos de variação/mudança, por isso, deve ser percebida e tratada tal como se apresenta em seus contextos discursivos (FURTADO DA CUNHA, 2007). Segundo o modelo norte-americano, os pressupostos que lhe são caros são: a iconicidade e a marcação; a transitividade e os planos discursivos; a informatividade e a gramaticalização e a discursivização. A LCFU assume os postulados da Gramática de Construções (GC) cujo principio, diferentemente da Gramática Estrutural e da Gramática Gerativa, postula 1482 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal que a construção gramatical é a unidade básica da gramática, podendo se apresentar como um elemento formal qualquer, diretamente associado a algum sentido, alguma função pragmática ou alguma estrutura informacional. Destarte, o formato das Construções de Estrutura Argumental viabiliza um meio de expressão oracional, sendo responsável pelo mapeamento entre sintaxe e semântica. Além da estrutura sintática, uma construção deve especificar papéis argumentais como agente, paciente, recipiente e meta, assim como a interação semântica entre esses papéis. As construções também devem restringir as classes de verbos que podem ser integradas nelas (por exemplo, verbos de movimento, transferência etc.), e devem especificar o modo como o tipo de evento verbal se relaciona com o tipo de evento da construção. A moldura sintática e as especificações semânticas de uma construção são independentes dos verbos que nela podem ser incluídos, ou “fundidos” com ela. Portanto, as construções linguísticas, de acordo com Furtado da Cunha (2011, p. 2897), “[...] são essencialmente esquemas cognitivos do mesmo tipo que existem em outros domínios da cognição, em outras habilidades cognitivas, ou seja, procedimentos relativamente automatizados para fazer coisas (nesse caso, comunicativamente)”. Nessa perspectiva, a língua é concebida dentro do contexto social, cujas práticas provêm dos falantes em situações sociais, reais e autênticas de comunicação, com destaque aos processos de variação e mudança linguística. Tomamos como foco construcionista a sugerida por Goldberg (1995), que defende serem algumas construções de estrutura argumental correspondentes aos tipos oracionais mais básicos e, em seu sentido central, codificam cenas (situações) que são fundamentais à experiência humana: movimento (alguma coisa se move), transferência (alguém transfere alguma coisa para uma outra pessoa), mudança de estado (alguma coisa provoca um movimento ou mudança de estado), causação, posse, estado etc. Com isso, a autora enfatiza que as sentenças produzidas por falantes de uma língua estão repletas de motivações que surgem das relações entre forma (estrutura sintática) e função (significado). Assim, ao nos fundamentarmos teoricamente na GC de Goldberg (1995), procuramos des- 1483 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais crever, principalmente, a construção de estrutura argumental das construções verbais Haver, Existir e Ter na língua falada e escrita do Português do Brasil. Um fator importante é que o sentido da construção e as unidades lexicais se inter-relacionam, elas formam combinações de forma e significado, o que significa dizer que as construções sintáticas são dotadas de sentido próprio por se relacionar com as propriedades de significado. Como aponta Goldberg (1995, p. 17), “a noção de implicação lexical é semântica: é um aspecto estável do sentido de uma palavra, e pode apontar a diferença de sentido entre itens lexicais”. Esses fatores buscam nas situações de experiência humana as motivações para seus usos. Vemos, assim, que são os argumentos que motivam a existência dos sentidos para as construções sintáticas, conforme esclarece a autora: [...] o tipo de Gramática de Construção adotada aqui defende que há uma motivação para cada construção realizada. A motivação visa explicar por que é menos possível e mais natural que esta correspondência particular entre forma e sentido possa existir em uma determinada língua (GOLDBERG, 1995, p. 17). Goldberg procura mostrar que a gramática como um todo é constituída de construções e que o papel argumental da construção estabelece relação com o papel participante do verbo. Nesse caso, tem-se uma fusão, pois há a exigência de um argumento para unificar as duas. Segundo Goldberg (1995, p. 5), há princípios que estabelecem essa relação de compatibilidade: Dois princípios condicionam a maneira como os papéis participantes de um verbo e os papéis argumentais de uma construção podem ser postos em correspondência: o Princípio da Coerência Semântica e o Princípio de Correspondência. O Princípio da Coerência Semântica exige que o papel participante do verbo e o papel argumento da construção sejam semanticamente compatíveis. Além disso, a CG compreende que o conhecimento gramatical, como um todo, pode ser representado através de construções, que diferem apenas em complexidade interna e nível de esquematicidade. O nível de esquematicidade 1484 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal ocorre de forma contínua pela gramática. Assim, reconhecemos que os processos das construções verbais Haver, Existir e Ter, devem ser vistos a partir de um conjunto de princípios que atua em diferentes usos dos verbos, a fim de analisar qual a motivação para os usos dessas construções no uso da língua e como se dá as suas relações no discurso. Análise dos verbos haver, existir e ter As construções haver e existir estão representados na gramática tradicional como verbos impessoais. A lógica da norma padrão é omitir a oralidade e as relações de sentido existentes nas sentenças produzidas pelos falantes de língua materna. No entanto dar ênfase ao que preza apenas a gramática, que entra em conflito com a língua viva e os usos viabilizados pelos usuários dela, torna-se um equivoco inadequado para o ensino de línguas. A GT ainda considera o uso do verbo ter pelo verbo haver ou existir inapropriado, pois na sua interpretação formal compreendida pela ideia de posse é que está por trás de seu significado. No entanto há construções, tanto na escrita quanto na oralidade, em que esse verbo está estritamente interligado com os verbos haver e existir. Como o exemplo (1): 1. [...]... era uma história de uma família ... que ia passar um tempo ... num sei ... ia sair da cidade né ... dos Estados Unidos e ia passar um tempo no interior ... numa cidadezinha ... que a ... tipo ... tipo um povoado né ... um povoado ... aí nesse ... nesse povo/ parece que era um negócio assim bem ... bem distante mesmo da capital ... tinha é uma ... tinha a casa ... a casa lá que eles iam passar né ... passar um tempo lá e tinha uma avenida bem movimentada que passava no meio ... e do outro lado tinha outro casarão bem velho ... todas ... todas as duas casas eram grandes e velhas né ... bem velhas ... aí nessa ... nessa casa morava um velho né ... sozinho ... (Corpus D&G: Natal, p. 4) 1485 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais O verbo ter exprime a ideia de existir que, segundo a GT, só pode ser caracterizado pelo verbo impessoal haver. Dessa forma, reescrevendo a oração, se formos considerar a norma culta padrão, teria: 2. Havia uma casa na avenida. 3. Existia uma casa na avenida. Para a LCFU o conhecimento de mundo mobilizado pelos falantes não pode ser separado do conhecimento linguístico. Portanto significante e significado, semântica e sintaxe, devem estar em linearidade. A língua padrão executa o que a fala exprime em seus contextos, isso é algo que, em muitos casos, não é considerado pela GT. A gramática de construções sinaliza que as ocorrências devem ser vistas como um todo, sem a necessidade de separar em partes. Então vemos que a fala e a escrita sinaliza eventos em que os verbos aqui estudados compartilham uma relação intrínseca quando associados aos seus respectivos contextos discursivos. O verbo ter, por exemplo, é uma construção dotada de significado existencial que está relacionado as construções haver e existir, como mostrados nas figuras 2 (fala) e 3 (escrita). Figura 2 - Ocorrência na fala Fonte: gráfico criado através da coleta de dados do Corpus D&G/Natal. 1486 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal A análise de dados da fala, representada por informantes da cidade de Natal do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior, constituiu-se por apresentar as frequências dos verbos haver, existir e ter. O verbo ter apresentou maior motivação por parte da fala dos natalenses, no sentido de existir e também no sentido de posse. Foram encontradas 2.505 ocorrências em que ter está presente, 76 ocorrências do verbo existir e 39 ocorrências do verbo havia no sentido de existir. Os verbos haver e existir são encontrados com maior frequência na escrita. Porém é importante ressaltar que a frequência do verbo ter se apresenta com mais ocorrências também na escrita, quando a representação da fala é construída de forma padrão, como podemos ver na figura 2: Figura 3 - Ocorrência na escrita Fonte: gráfico criado através da coleta de dados do Corpus D&G/Natal 1487 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Nota-se que a frequência do verbo ter em relação aos verbos haver e existir, está diretamente interligado ao sentido de existência. Em muitas situações, notamos que há, inclusive, a predominância dos três verbos em um mesmo parágrafo com a mesma intencionalidade de sentido. Nessa situação, em que as ocorrências, tanto da fala quanto escrita, se materializam nos discursos dos falantes, refletimos que o uso de tais verbos necessitam de uma apreciação mais clara e legitima, de modo que possa fazer jus aos usos que são construídos na língua materna. Vemos, pelos dados coletados, que o verbo ter exprime mais o sentido existencial do que o sentido de posse, trazendo, assim, a contradição imposta pela GT, como veremos em algumas amostras retiradas do Corpus D&G/Natal: 4. [...]... ficou tão cheio de escoriações nas pernas principalmente ... que eu pensava que num ia andar mais ... num tinha quebrado nada ...mas tinha medo de andar ... aí fiquei quase esse tempo todinho que passei no hospital numa cadeira de roda ... tinha medo de ... de ... de ... de levantar e num poder andar ... interessante ... num sentia dor nenhuma mas eu ... eu tinha medo num sei por que ... aí fiquei nisso aí né ...[...] ((Corpus D&G: Natal, p. 3) Em (4), temos a construção do ter que admite a ideia de existência. Fato é que ter no sentido de existência é semanticamente neutro com seu significado dependendo das relações de sentido dos outros constituintes da sentença. Ora, justamente é aí em que queremos chegar: nenhuma construção da língua faz sentido se vista apenas pela sintaxe. Ela precisa dos da composição de outros constituintes e do contexto para ter significado. Daí a importância de admitir que tanto a forma (sintaxe) quanto o significado (semântica) são partes intrínsecas de uma sentença que não podem ser vistas separadamente. Vemos em (5) a mesma explicação, sendo que há a participação do verbo existir e haver com o mesmo sentido do ter: 1488 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal 5. [...]... chegou esse velho na casa deles ... esse velho que morava em frente a eles ... na outra casa do outro lado da pista ... aí ... como é ... fez ... é pra ... chegou a eles ... pra fazer amizade com eles né ... aí ... junto a essa ... essas duas ... essas duas casas ... descendo assim uma ribanceira ... tinha um ... um cemitério ... aí chamava cemitério maldito ... porque o velho ... o velho tava é:: porque o pai lá da ... das crianças perguntou ao velho lá ... por que esse cemitério ali né ... por que se chamava cemitério maldito né ... aí ele foi contar a história né ... era maldito porque antigamente ... é ... tinha ... só existia aquele cemitério ali e a casa desse velho ... aí a ... a/ avenida era muito movimentada lá ... era não ... exatamente era muito movimentada ... ainda era no tempo que ele morava lá ... aí ... passava principalmente muitos caminhões ... pesado né ... aí havia muito acidente ... havia muito acidente ... morria muita gente ... e a dos carro mesmo porque já que num morava muita gente lá num ... num atropelava ninguém não ... era ... carro batendo no outro ... virava porque a velocidade era muito grande ...[...] (Corpus D&G: Natal, p. 4) No exemplo (5), vemos as ocorrências dos verbos ter no sentido existencial, o próprio verbo existir como um complemento corretivo da fala do falante e haver como apelativo existencial. As construções sinalizam que existir e haver na fala natelense tonou-se verbos de narração e ter teria a funcionalidade mais livre em qualquer contexto de uso. Em haver e existir predominam traços de frequência baixa e menos significativa em argumentos do que a construção ter. Dessa forma, ter como verbo existencial não pode ocorrer em situações meramente formais, mas a supressão de haver e existir evidencia que ter revela um sentido existencial prototípico que corresponde ao processo de mudanças, que está associado a transformação da concordância no português brasileiro. 1489 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Considerações finais A gramática tradicional defende os verbos haver e existir como impessoal, isto é, sempre na 3ª pessoa do singular, quando a oração é sem sujeito, no entanto a presente frequência do verbo ter, no sentido de haver e existir supera na fala e até na escrita dos brasileiros, independente de escolaridade. Diante das análises construídas neste trabalho, podemos concluir que: • A gramática tradicional apresenta uma lacuna quanto a explicação dos verbos haver, existir e ter, pois denota a superficialidade das sentenças escritas em confronto com a produção usual de tais verbos. De forma que o conhecimento de mundo e conhecimento linguística não podem ficar separados e precisar estar em linearidade. • Não se pode desconsiderar a norma padrão de textos escritos, porém ignorar os usos da língua é negar a sua originalidade. • Há a necessidade de buscar em estudos sobre gramaticalização, a procedência dos verbos haver, existir e ter. • Busca-se também analisar a atribuição de significados desses verbos em dados da fala e da escrita. • A validação desses verbos aparecem tanto na fala quanto na escrita, sendo que a construção ter é apresentado com o sentido existencial mais frequentemente do que o sentido de posse. • A estrutura argumental que há em comum entres as construções haver, existir e ter, parece sinalizar eventos de motivação existencial. Finalmente esperamos que este trabalho possa nos intermediar no processo de buscar por respostas acerca do nosso estudo dentro dos pressupostos para quem a LFCU tem exercido suas pesquisas. 1490 Antonia Clayse-Anne de Medeiros Vieira, Rosângela Maria Bessa Vidal Referências AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. BENVENISTE, Émile. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de linguística geral. São Paulo: Nacional/ EDUSP, 1976. BYBEE, Joan. Where do constructions come from? Synchrony and diachrony in a usagebased theory. In: BYBEE, Joan. Language, usage, and cognition. Cambridge, United Kingdom/ UK: University Press Cambridge/ CUP, 2011. BYBEE, Joan. Frequency of Use and the Organization of Language. Oxford: Oxford University Press. 2006. BEZERRA, Maria Auxiliadora; REINALDO, Maria Augusta. Análise Linguística: afinal, a que se refere? 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Utilizaremos HALLIDAY (1985) como base para entendimento da gramática sistêmico-funcional. O estruturalismo tem por base um sistema que comporta estruturas sujeitas a regras formais. Já o funcionalismo se atenta para os significados das palavras dentro de sua função no contexto social. Ambas correntes influenciaram o ensino de línguas. Nossa pesquisa tem, pois, o objetivo de contribuir para o ensino de Língua Portuguesa. Palavras-chave: Funcionalismo, Estruturalismo, Língua. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino ESTRUTURALISMO X FUNCIONALISMO: A GRAMÁTICA NORMATIVA E O CONTEXTO COMUNICATIVO NO LIVRO DIDÁTICO Amisa Dayane Lima de Góis (UFS) Alecrisson da Silva (UFS) Introdução A linguagem é um processo de produção social que nos envolve na história, colocando-nos como sujeito dela. Nas escolas, vemos constantemente alunos trabalhando o texto através de exercícios meramente voltados para a estrutura da língua, deixando de lado sua função no contexto comunicativo, dentro da interação social. Essa perspectiva meramente estruturalista será trabalhada, pois, no presente artigo em oposição ao funcionalismo. Um dos meios mais usados pelo professor nas aulas de Língua Portuguesa é o ensino de texto como pretexto para o ensino de gramática. Muitos textos são produzidos para livros didáticos pensados anteriormente para a construção de estruturas gramaticais dentro deles com a finalidade de se elaborar questões com enfoque gramatical. Sabemos, porém, que o importante não é escrever segundo uma estrutura imutável, a partir de regras gramaticais imutáveis; é saber que a língua tem seu poder de significar, de fazer sentido. Fazer com que a língua seja abordada em sala de aula de forma significativa é falar de sua função na comunicação de forma interacionista entre os indivíduos, enfatizando a significação do uso das palavras dentro de um dado contexto que envolve vários elementos, e não apenas focar na Gramática Normativa. Diante disso, elucidaremos o contraste entre a abordagem estruturalista e a funcionalista. 1495 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais A abordagem estruturalista leva em conta a forma da língua e suas regras (Gramática Normativa), deixando de lado a sua significação no contexto comunicativo. O estruturalismo tem por base um sistema que comporta estruturas sujeitas a regras formais. Já o funcionalismo se atenta para os significados das palavras dentro de sua função no contexto social. Ambas correntes influenciaram o ensino de línguas. Nossa proposta é, pois, analisar como o livro didático Vontade de Saber Português do 9º ano do Ensino Fundamental da editora FTD trabalha as questões relacionadas aos textos contidos no mesmo, observando se os exercícios abordam mais uma perspectiva estruturalista ou funcionalista da língua. Com isso, constataremos se os alunos estão aprendendo Português na escola dando mais ênfase a comunicação real ou estruturas meramente gramaticais por meio de exercícios mecanicistas que usam o texto como pretexto. A linguagem em uso A linguagem é um processo de produção social que nos envolve na história, colocando-nos como sujeito dela. Nas escolas, vemos constantemente alunos trabalhando o texto através de exercícios meramente voltados para a estrutura da língua, deixando de lado sua função no contexto comunicativo, dentro da interação social. A Língua Portuguesa está sendo ensinada na escola como práticas baseadas em regras gramaticais (contrapondo-se ao que os linguistas defendem), selecionando, dessa forma, os estudantes de acordo com sua capacidade linguística (baseada na Gramática Normativa). A Gramática Normativa padroniza a língua, fornecendo apenas sempre uma forma como correta. O uso do texto nas escolas é, pois voltado a essa gramática por meio de questões mecanicistas que visam a estrutura (seguindo regras gramaticais) e focalizam pouco na funcionalidade da língua no momento comunicacional. Como bem define Bakhtin (2006, p. 115): “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”. O que é dito adquire significado naquele contexto, dentro daquela função comunicativa presente no que se pretende dizer. Portanto, é importante analisar 1496 Amisa Dayane Lima de Góis, Alecrisson da Silva a função comunicativa, não apenas a estrutura. De acordo com Bakhtin (2006, p. 123): O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo [...]. A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade linguística. Um dos meios mais usados pelo professor nas aulas de Língua Portuguesa é o ensino de texto como pretexto para o ensino de gramática. Muitos textos são produzidos para livros didáticos pensados anteriormente para a construção de estruturas gramaticais dentro deles com a finalidade de se elaborar questões com enfoque gramatical. Sabemos, porém, que o importante não é escrever segundo uma estrutura imutável, a partir de regras gramaticais imutáveis; é saber que a língua tem seu poder de significar, de fazer sentido. Tal como esclarece Antunes (2009, p. 30): É lamentável que o trabalho da escola ainda obscureça esses aspectos contidos na complexidade dos fatos linguísticos. De fato, o trabalho da escola, à volta com as nomenclaturas, ou fechado na análise apenas sintática de frases soltas, de textos construídos artificialmente para exemplificar unidades linguísticas, tem, na grande maioria, deixado de fora a exploração dos sentidos, das intenções, das implicações socioculturais dos usos da língua. O texto deve, pois, ser tratado não como um pretexto, mas como forma de levar os alunos a reflexões, aos diferentes sentidos de uma comunicação efetiva. A escola está pautada em mecanismos de coesão/ coerência, identifica-se com aspectos de uma gramática de texto, elucidando aspectos estruturais do texto. Os estudantes, são frutos do ensino do texto, numa perspectiva estruturalista, prescritiva. Diante dessa perspectiva estruturalista em contradição a funcionalista, vejamos o que são essas abordagens e como elas influenciaram no ensino de língua materna. 1497 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Estruturalismo x funcionalismo: a gramática normativa e o contexto comunicativo A abordagem estruturalista leva em conta a forma da língua e suas regras (Gramática Normativa), deixando de lado a sua significação no contexto comunicativo. O estruturalismo tem por base um sistema que comporta estruturas sujeitas a regras formais. Essa abordagem tomou por base o conceito de estrutura de Saussure no Curso de Linguística Geral. Saussure não era estruturalista, mas seus conceitos ajudaram muito essa tendência. Leite e Oliveira (2012, p 14) abordam: Compreendemos que”, Saussure, a partir do CLG, pode ser alcunhado ‘pai do estruturalismo’, é porque os estruturalistas viram nessa obra possíveis fundamentos para alicerçar seus pilares teóricos, o que não quer dizer que tais fundamentos apontem para a única possibilidade ali de leitura. Assim, entender esse autor como ‘pai do estruturalismo’ não significa que ele seja estruturalista, mas sim que ele despertou um olhar formal para o estudo da língua sem que tenha sido propriamente um formalista [...]. O estruturalismo difere do funcionalismo, pois este visa a análise dos contextos comunicativos diante da interação social. Ao invés de analisar com enfoque na estrutura, o funcionalismo se atenta para os significados das palavras dentro de sua função no contexto social. Ambas correntes influenciaram o ensino de línguas. O estruturalismo tem suas bases através de Ferdinand Saussure que ao diferenciar a língua (langue) de fala (parole) deu mais ênfase a primeira, que diz respeito a sincronia, na qual Saussure se dedicou mais. CONEJO (2007, p. 234) menciona como a Linguística Estrutural coloca a sincronia: Para a Linguística Estrutural, a preocupação está na sincronia, não levando em conta a historicidade dos sistemas linguísticos que se propõe estudar. Aos estruturalistas não interessava o estudo da evolução das línguas, a forma como elas chegaram aonde chegaram; eles descartaram os estudos diacrônicos, preocupando-se apenas com os estudos sincrônicos, ou seja, observavam a língua em um determinado momento apenas. 1498 Amisa Dayane Lima de Góis, Alecrisson da Silva O estruturalismo é descritivo e mecanicista, leva em conta regras meramente gramaticais, seguindo a Gramática Normativa, que são por diversas vezes cobradas em exercícios de livros didáticos utilizando o texto como pretexto para tal. Nessa abordagem os alunos são a todo tempo lembrados e estimulados a seguir regras e se preocupar com erros sem que o aluno necessite entender a significação do texto, pois o que lhe será cobrado é a estrutura. Em contrariedade ao estruturalismo, há a abordagem funcionalista segundo a qual “A língua não pode ser desvinculada de suas relações com as diversas maneiras de interação social” (OLIVEIRA, L. 2003, p. 96). Ou seja, o uso da língua nas situações comunicativas de uso é primordial para a abordagem funcionalista. É válido ressaltar que surgiram muitas análises acerca das concepções funcionalistas, porém a que mais se destacou entre os estudos linguísticos e que foi adotada nessa pesquisa foi a de Halliday (1985), definida pelo mesmo como linguística sistêmico-funcional. Em sua obra Introdução à Gramática Sistêmico-Funcional, Halliday explica, a partir de três motivos, a razão de sua gramática ser denominada de funcional: • Por investigar o modo como a língua é usada, trata-se de uma gramática “natural”; • Os componentes que significam nesse modelo são componentes funcionais, pois entendem o ambiente (ideacional), a maneira como interage sobre o interlocutor (interpessoal) bem como dá relevância textos anteriores (textual) e; • A maneira como são explicados os elementos linguísticos é feita a partir da referência de suas funções dentro do sistema linguístico. Para esse autor, a teoria sistêmico-funcional do significado funciona como escolha linguística que o falante faz entre outras tantas possíveis, de maneira que ao se fazer uma determinada escolha linguística, outras são deixadas e segundo plano. Essas escolhas não são feitas através de um processo demorado, visto que em uma situação de comunicação oral, por exemplo, não tanto tempo para se planejar tanto. Elas são feitas de maneira inconsciente, conforme o que melhor produz significado para o falante e seu interlocutor no momento comu- 1499 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais nicativo. Para melhor elucidar tal afirmação acerca da linguística sistêmico-funcional, Souza; Cunha (2007, p. 53). Define a linguagem como um sistema semiótico social e um dos sistemas de significado que compõem a cultura. Esse fato permite afirmar que a linguagem, o texto e o contexto, juntos, são responsáveis pela organização e desenvolvimento da experiência humana. Assim, as formas léxico-gramaticais, como a transitividade, são estudadas em relação a suas funções sociais. Para tanto, vale destacar que o contexto em que a situação se dá é primordial para os funcionalistas, pois tudo dependerá dos componentes desse contexto, dos participantes e o que eles têm a dizer no ato comunicativo de acordo com suas necessidades. MODESTO, 2006, p. 2 afirma: Uma abordagem funcionalista de uma língua natural sempre tem como objetivo o interesse de verificar como se obtém a comunicação com essa língua, ou como os usuários dessa língua dela se utilizam para se comunicar entre si de maneira eficiente. O que se põe em análise, portanto, é a chamada competência comunicativa. Fazemos nossas escolhas durante o ato comunicativo dentro de uma cadeia de sistemas, na qual as escolhas mantêm seus significados ao interagirmos com os outros. Assim, a língua deve refletir a função que exerce e por isso: As análises linguísticas que seguem essa orientação funcionalista trabalham diretamente sobre o postulado básico – a língua é uma estrutura maleável, sujeita às pressões do uso e constiuída de um código parcialmente arbitrário. Isso significa que a gramática é um “sistema adaptativo” (Du Bois, 1985), uma “estrutura maleável” (Bolinger, 1977) e emergente (Hopper, 1987), que se encontra num processo contínum de variação e mudança para atender a necessidades cognitivas e/ou interacionais de seus usuários. (CUNHA; SOUZA, 2007, p.17). Percebe-se que o paradigma funcionalista americano, postula que a investigação acerca da língua deve ser postilada no uso, levando em consideração as situações de interação entre as pessoas, que são inseridas dentro do contexto dialógico como falantes e ouvintes ao mesmo tempo. 1500 Amisa Dayane Lima de Góis, Alecrisson da Silva Halliday (2004), proponente da Gramática Sistêmico-Funcional diz que em um sistema realizamos escolhas sistêmicas de acordo com as necessidades comunicativas. ANDRADE e TAVEIRA, p. 49, mencionam: Um texto seria, então, o resultado de uma contínua escolha realizada dentro de uma grande cadeia de sistemas[...]. A estrutura, então, parte essencial da linguagem, é interpretada num âmbito externo tomado pelas escolhas sistêmicas, e não como uma característica definidora da linguagem. A linguagem é um recurso para criação de significados, os quais residem nos padrões sistêmicos de escolha. É através das abordagens Estruturalista e Funcionalista que analisaremos como estão sendo trabalhados os textos por meio de exercícios propostos no livro didático de Língua Portuguesa Vontade de saber português, da editora FTD, utilizado na Escola Municipal Deputado Luís Eduardo Magalhães, localizada na zona urbana da cidade de Coronel João Sá. Propomos, portanto, uma análise com um olhar funcional e estrutural nos exercícios propostos pelas autoras Rosemeire Alves e Tatiane Brugnerotto. Nosso objetivo, que será exposto no próximo item, é identificar se as atividades de análise linguística inseridas no referido livro didático do 9º Ano do Ensino Fundamental estão predominantemente voltadas para a concepção estruturalista ou funcionalista. Uma breve contextualização sobre o livro didático Um dos recursos didáticos mais empregados no processo de ensino-aprendizagem é o livro didático. A definição do uso desse instrumento se deu no Brasil pela primeira vez no Artigo 2º do Decreto-Lei nº 1.006, de 30 de dezembro de 1938, onde o posicionamento acerca deste diz que: Compêndios são os livros que expõem total ou parcialmente a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares [...] livros de leitura de classe são os livros usados para leitura dos alunos em aula; tais livros também são chamados de livro-texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de classe, manual, livro didático. (OLIVEIRA, 1980, p. 12 apud OLIVEIRA et al., 1984, p. 22). 1501 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Com este decreto, o governo regulamentou no Brasil a primeira iniciativa político-educacional consciente, progressista (mesmo que as pretensões democráticas teriam sido sufocadas no Governo do Estado Novo, quando Getúlio Vargas era então presidente), coordenada pela Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD). Apesar de, em alguns aspectos o livro didático ainda ser objeto de muitos questionamentos, a implementação do uso do livro didático na escola serviu de base para uma certa “homogeneização” de alguns programas curriculares. A CNLD tinha uma lista de atribuições, dentre as quais se destacavam examinar, avaliar e julgar os livros didáticos. A partir das análises feitas pela comissão, concedia-se ou não autorização que os livros fossem ou não usados nas escolas. Nesse sentido, nota-se que havia a intenção de averiguar os conteúdos dos livros didáticos, sendo que para atender o critério de adoção, era necessário atender aos propósitos do espírito de nacionalidade, valorizando mais os aspectos político-ideológicos em detrimento do que os pedagógicos. Com o passar dos tempos, as mudanças de governos e de ideologias político-sociais, transformações também ocorreram no tocante aos conteúdos dos livros didáticos elaborados até a contemporaneidade. Dentre os novos propósitos conteúdos, os livros de língua materna devem fazer com que: [...] a metalinguagem deverá, sim, ser explicitada e sistematizada, mas paulatinamente, ao sabor das necessidades e demandas do ensino das práticas de leitura, produção e oralidade. E então poderá funcionar como uma espécie de teoria auxiliar, como um conhecimento conceitual a que se pode recorrer para monitorar e aprimorar a prática, assim como para entender a natureza e o funcionamento da linguagem. (RANGEL, 2005, p. 17). Nesse sentido, percebe-se que as novas propostas de ensino-aprendizagem abordadas para o século XXI diferem daquelas pensadas no Estado Novo, uma vez que, para a contemporaneidade deve ser adequada às necessidades atuais do aluno, considerando o ambiente (os contextos econômicos, culturais e sociais) ao qual está inserido. 1502 Amisa Dayane Lima de Góis, Alecrisson da Silva Descrição e apresentação do livro didático Para delinear o percurso metodológico desse trabalho, será feita a descrição do material, visto que alguns trechos do livro serão inseridos na pesquisa para que possamos mostrar de modo detalhado a construção ou não de aspectos funcionalistas ou estruturalistas quanto aos questionamentos feitos pelos autores. Tendo em vista tal explanação, partirmos do princípio de que esta será uma pesquisa documental, visto que buscamos investigar as atividades de análise linguística no LD Vontade de Saber Português do 9º ano do Ensino Fundamental, bem como podemos afirmar que o método indutivo foi o mais apropriado para a realização da mesma, tento em vista que partimos de aspectos particulares da obra para chegarmos a constatações mais abrangentes. Descrevendo o livro que escolhemos para analisar, afirmamos que o mesmo é de Língua Portuguesa do 9º Ano, do Ensino Fundamental, organizado pelas autoras Rosemeire Alves e pela Tatiane Brugnerotto, editora FTD, 2012. Quanto à estruturação da obra, a mesma está estruturada da seguinte maneira: unidades e capítulos, sendo 06 unidades, cada uma identificada por uma cor. Nelas estão os 12 capítulos, divididos dessa maneira: Unidade 1: O mundo das artes Capítulo 1: Do picadeiro às telas; Capítulo 2: Universo de formas e cores. Unidade 2: O jornal que a gente lê Capítulo 1: Aconteceu, virou notícia; Capítulo 2: Deu no jornal. Unidade 3: Ao infinito, e além Capítulo 1: O poder da ciência; Uma odisseia na ficção. Unidade 4: Isso é coisa séria Vale a pena refletir; Assunto em pauta. 1503 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Unidade 5: É de se aventurar! Um mar de aventuras; Uma vida de aventuras. Unidade 6: Por um mundo melhor Diga não à violência; Do caos à esperança. Alguns pontos compõem a organização de cada capítulo, e a seguir, explicaremos o que contém em cada um deles: Leitura: São apresentados textos verbais, visuais ou verbos-visuais acompanhados de questões para serem reflexões iniciais sobre o tema a ser tratado no discorrer de todo o capítulo. Estudo do texto: É proposto aos educandos uma série de discussões, de modo que no tópico “conversando sobre o texto” os alunos terão uma liberdade maior para emitirem parecer particular acerca da leitura feita. Já no tópico “escrevendo sobre o texto” são apresentados questionamentos que exploram a capacidade de escrita dos estudantes. Ampliando linguagem: Sugestões de atividades extratexto que incluem pesquisas, entrevistas, exposições, dentre outras. Produção escrita: É o momento em que sugere a escrita de diversos gêneros, processo de auto avaliação. Produção oral: Sugere atividades com gêneros orais, em especial, os de uso público, como debate, entrevista, seminário, dramatização, dentre outras. A língua em estudo: Foca os aspectos linguísticos, divididos em três momentos: discussão sobre ocorrências linguísticas peculiares ao texto lido, formalização e sistematização dos aspectos discutidos e, por último, as atividades variadas. 1504 AMISA DAYANE LIMA DE GÓIS, ALECRISSON DA SILVA O livro analisado nessa pesquisa contém 271 páginas, de autoria de Rosemeire Alves e Tatiane Brugnerotto, impresso pela editora FTD. O mesmo foi escolhido em comum consenso pelos professores de Língua Portuguesa da Escola Municipal Deputado Luís Eduardo Magalhães, localizada na zona urbana da cidade de Coronel João Sá, em reunião feita no ano de 2013, para ser usado no triênio 2014, 2015 e 2016. A obra analisada nessa pesquisa é um livro didático do 9º Ano do Ensino Fundamental, tendo como meta verificar se o que predomina são atividades voltadas para a concepção estruturalista ou funcionalista. Figura 1: Capa do livro Vontade de Saber Português Análise de dados dos exercícios encontrados no livro didático Diante de uma análise dos 104 exercícios que compõem o livro, coletamos os seguintes dados: 1505 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Exercícios: conhecimentos gramaticais - cunho estruturalista: Tabela 1: Exercícios de conhecimentos gramaticais Tipos de exercícios - baixo teor reflexivo Repetição Objetivo Quantidade Expressão oral Expressão escrita Preencher lacunas 26 11 15 Estrutural (domínio técnico-conceitual) 12 5 7 Pergunta/resposta 34 6 28 Total 72 22 50 Analisamos um quantitativo de 72 exercícios que tem baixo teor reflexivo, sendo que 26 exercícios são de preencher colunas, 12 são meramente estruturais, levando em conta o domínio técnico-conceitual e 34 com Perguntas/Respostas. Dos 72 exercícios, 22 objetivam a oralidade e 50 a escrita. A partir da análise do livro Vontade de Saber Português percebe-se que há uma predominância de exercícios que requerem a repetição e o preenchimento de lacunas. Tais exercícios estão mais voltados para as teorias estruturalistas, pois priorizam mais o desempenho dos educandos em detrimento do uso da GN, postulando o domínio das regras como mais importantes. Trata-se de um dado indesejável para os estudos linguísticos, uma vez que os alunos do nono ano apresentam certo grau de maturidade cognitiva para lidar com operações mais abstratas do que estas que são tão concretas. 1506 Amisa Dayane Lima de Góis, Alecrisson da Silva Exercícios: gramático-contextual - cunho funcionalista: Tabela 2: exercícios gramático-contextuais Tipos de exercícios – alto teor reflexivo Quantidade Reformulação 6 Transposição de conhecimentos 26 Total 32 Foram constatados apenas 32 exercícios gramático-contextuais de alto teor reflexivo, ou seja, com cunho funcionalista, dentre os quais 6 são exercícios de reformulação e 26 de transposição de conhecimentos, evidenciando um quantitativo muito baixo. Os exercícios que mobilizam aspectos ligados ao funcionalista não são tão constantes como os estruturalistas, apesar de serem os mais recomendadas para o trabalho com a linguagem em sala de aula. O funcionalismo não faz distinção entre competência e desempenho (como o estruturalismo). Apesar de serem bem menos empregadas no livro didático, levam em consideração que a estrutura não é totalmente arbitrária, além de ter a base sócio-cognitiva em consideração, por priorizar a função em detrimento à forma. Priorizar a função devia, pois, ser o principal objetivo do ensino de línguas. Considerações finais A linguagem é um processo de produção social que nos envolve na história, colocando-nos como sujeito dela. Na escola os professores ensinam a língua através de exercícios propostos em livros didáticos que na maioria das vezes tem cunho meramente gramatical. Nosso objetivo foi analisar o livro didático Vontade de Saber Português, utilizado no 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola de Coronel João Sá 1507 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais na Bahia para identificarmos se a LP está sendo abordada através dos exercícios propostos por meio de uma abordagem funcionalista (como os linguistas esperam) ou estruturalista, baseada em regras gramaticais que visam a forma e não a função da língua. Elucidamos no aporte teórico que o estruturalismo difere do funcionalismo, pois este visa a análise dos contextos comunicativos diante da interação social. Ao invés de analisar com enfoque na estrutura, o funcionalismo se atenta para os significados das palavras dentro de sua função no contexto social. Ambas correntes influenciaram o ensino de línguas e foram muito importantes para nosso estudo. Diante dos dados coletados que totalizam 104 exercícios divididos em gramaticais (baixo teor reflexivo) ou gramático-textuais (alto teor reflexivo) concluímos que em média 70% dos exercícios são de cunho estruturalista, postulando o domínio das regras como mais importantes. Trata-se de um dado indesejável para os estudos linguísticos. Já os exercícios que mobilizam aspectos ligados ao funcionalista não são tão constantes como os estruturalistas, apesar de serem os mais recomendados para o trabalho com a linguagem em sala de aula. É evidente que o funcionalismo não faz distinção entre competência e desempenho. Priorizar a função devia, pois, ser o principal objetivo do ensino de línguas para um melhor desempenho na aprendizagem do nosso alunado. Referências ANDRADE, Luiz Antônio Caldeira; TAVEIRA, Valdicrécia de Rezende. Introdução à Gramática Sistêmico-Funcional. In: Incursões Semióticas. Rio de Janeiro: livre expressão, 2009, p. 48-86. ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. ARTARXERXES, Tiago T. M.. Abordagens Funcionalistas. In: Revista Letra Magna. Ano 03, n. 4, 1º semestre de 2006. <Disponível em: www.letramagna.com/Abordagens.pdf . Acesso em 02 de julho de 2015> . BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. HUCITEC, 2006. BEZERRA. M. A. O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. 1508 Amisa Dayane Lima de Góis, Alecrisson da Silva CONEJO, C. R. O estruturalismo e o ensino de línguas. In: CELLI –Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. 3, 2007, Maringá, 2009, p. 1233-1244. <Disponível em: http:// www.ple.uem.br/3celli_anais/trabalhos/estudos_linguisticos/pfd_linguisticos/016.pdf. Acesso em 02 de julho de 2015>. CUNHA, M. A. F; da; SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna: 2007. HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. Baltimore: Edward Arnold, 1985. OLIVEIRA, J. B. A. et al. A política do livro didático. São Paulo: Unicamp, 1984. OLIVEIRA, K. R. de; LEITE, T. A. R. Ferdinand Saussure: Pai do Estruturalismo?. In: Revista InterXto. V. 5, n. 1, 2012. <Disponível em: www.uftm.edu.br/revistaeletronica/index.php/ intertexto/article/.../263. Acesso em 02 de julho de 2015>. RANGEL, E. Livro didático de língua portuguesa: o retorno do recalcado. In: DIONISIO, A.; BEZERRA. M. A. O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. TAVARES, R. A. A.; BRUGNEROTO, T. C. Vontade de Saber Português. São PAULO: FTD, 2012. 1509 RESUMO O presente trabalho discute acerca da aplicação dos gêneros discursivos em sala de aula, mais especificamente dos gêneros Memórias e Crônicas literárias, trabalhados na Olimpíada de Língua Portuguesa, nos 7º, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental. Procuramos investigar a luz da Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) se as produções textuais dos alunos atendem as características inerentes aos respectivos gêneros discursivos. Buscamos fazer uma análise reflexiva sobre a língua a partir de atividades de produção textuais desenvolvidas no ensino de língua materna. Para tanto escolhemos como corpus de pesquisa três produções textuais, duas do gênero memórias e uma de crônicas, respectivamente. Nosso estudo assume uma metodologia de caráter descritivo-interpretativo, no qual os dados foram analisados qualitativamente. O suporte teórico adotado para atender aos objetivos propostos na análise das amostras é a dos gêneros discursivos conforme os postulados teóricos de Antunes (2003, 2009); Brasil (1997); Bakhtin (2000, 2010); Brait (2008), Cândido (2004); Frantz (2001); Geraldi (2012); bem como as contribuições da LFCU, tais como: Furtado da Cunha; Oliveira e Martelotta (2003), entre outros. Desse modo, essa pesquisa busca incentivar os docentes de Língua Portuguesa, assim como os estudantes de Letras, futuros profissionais da área, a abordarem o estudo dos gêneros discursivos em suas salas de aulas no intuito de contribuírem com o desenvolvimento da competência comunicativa dos educandos, com base numa perspectiva interacionista e dialógica da língua. Palavras-chave: Gêneros discursivos, Linguística funcional centrada no uso, Ensino. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino GÊNEROS DISCURSIVOS: UM DIÁLOGO COM AS PRODUÇÕES TEXTUAIS DOS ALUNOS DO 7º, 8º E 9º ANOS DO ENSINO FUNDAMENTAL Ana Dalete da Silva1 (UERN) Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz2 (UERN) Rosângela Maria Bessa Vidal3 (UERN) Introdução Diante das tantas discussões que norteiam o ensino de Língua materna, uma que se configura imprescindível ao desempenho do educando, aos olhos de muitos teóricos da linguagem é o estudo dos gêneros discursivos. Isso se dá pelo fato de constatarmos que a interação humana só é possível por meio do uso da língua numa perspectiva discursiva, pragmática e não por meio de palavras e frases isoladas, numa visão restrita e imanente do sistema linguístico. 1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia (CAMEAM), Pau dos Ferros/RN; Bolsista CAPES. 2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia (CAMEAM), Pau dos Ferros/RN. 3. Doutora em Estudos da Linguagem, docente do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia (CAMEAM), Pau dos Ferros/RN 1511 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Essa mudança de perspectiva no âmbito linguístico inclui a textualidade como principal objeto de estudo. Essa nova abordagem se estende as salas de aula de Língua Portuguesa, com o intuito de elevar a competência comunicativa dos educandos. Discorrendo sobre o gênero discursivo, Machado (2008, p. 152) enfatiza, “Bakhtin afirma a necessidade de um exame circunstanciado não apenas da retórica, mas, sobretudo, das práticas prosaicas que diferentes usos da linguagem fazem do discurso, oferencendo-o como manifestação de pluralidade”. Daí a necessidade de incluir o estudo dos gêneros no acervo linguístico dos alunos, pelo fato de boa parte de nossas atividades discursivas servirem para atividades de controle social e cognitivo. A partir do exposto, objetivamos investigar se os educandos do 7º, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental produzem com adequação os gêneros memórias literárias e crônicas, após o trabalho com a sequência didática proposta pela Olimpíada de Língua Portuguesa. Para tanto tomaremos como aporte teórico os estudiosos supracitados que tratam acerca da questão dos gêneros discursivos com vista a realizarmos um estudo de caráter qualitativo interpretativista. Para bem estruturar este trabalho, o organizamos em sessões. Inicialmente, expomos a fundamentação teórica que discorre sobre alguns aspectos fundamentais em torno dos gêneros do discurso, além das contribuições advindas da Linguística Funcional Centrada no Uso. Posteriormente, apresentamos a análise do corpus selecionado destacando a caracterização dos gêneros discursivos, conforme está posto nos objetivos. Por fim, expomos nossas considerações finais em torno dos resultados alcançados com o estudo. Os gêneros discursivos em sala de aula O estudo dos gêneros discursivos tem sua origem centrada na Literatura, surgiu com Platão e Aristóteles. Do primeiro, herdamos a tradição poética; do segundo, a retórica. Atualmente, a ideia de gênero não se vincula somente ao campo literário, ela está intimamente relacionada à Linguística de maneira geral, mais especificamente a parte dessa ciência que contempla a natureza interacionista e, sobretudo, discursiva da linguagem. Essa nova discussão em torno dos gêneros discursivos concebe a língua como o mais importante elo de interação entre os povos, no dizer de Bakhtin (2000, 1512 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal p.288), “a língua se deduz da necessidade do homem de expressar-se, de interiorizar-se” é nessa busca da expressão e interação que surgem as mais diversas manifestações linguísticas, ou seja, a cada situação distinta de interação no convívio social corresponde uma forma de comunicação, uma maneira de expressão da língua que aos poucos vão originando e moldando mecanismos diversos de entendimento entre os homens, os enunciados. Bakhtin (2000, p.279) diz que, “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciado (orais e escritos) concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana”. O surgimento de vários tipos de enunciados oriundos do uso da língua e do alto poder de criação que possuímos mediante o vasto campo de atividades que realizamos, faz com que o ato de comunicação se realize sob diversas formas de manifestação verbal, a qual denominamos textos. Nesse sentido, diversidade textual (oral ou escrita) constitui um vasto campo, construído ao longo das ações humanas, repleto de mecanismos disponíveis ao homem para que este possa atuar com eficácia nas diversas situações de comunicação. O texto é desta forma, um recurso que empregamos, sempre observando determinadas situações que nos convém para obtermos êxito na ação verbal. Considerando, pois, que a ação verbal é infinita e precisamos nos comunicar através dela, como assim tem sido historicamente, surgem às diferentes maneiras de se comunicar instigadas pelas variadas funções que se pretendem desempenhar socialmente, mutáveis e até mesmo capazes de determinar relações de submissão e poder, uma vez que representam ações sociais. A essas distintas formas de ação verbal que se apresentam através do texto, denominamos gêneros discursivos. Para Bakhtin (2001, p. 312, grifos do autor), “os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato típicos entre as significações da palavra e realidade concreta”. Nessa perspectiva, os gêneros discursivos carregam um caráter empírico, ou seja, são frutos das ações e relações vivenciadas pelo homem no seu contexto de uso da linguagem. Não podemos tê-los como fórmulas estáveis criadas pelo homem ou naturais, dado o seu caráter evolutivo e transformacional. É, portanto, por estes aspectos que o campo dos gêneros discursivos torna-se imenso, confundindo-se, por suas funções, com as diversas situações as quais o ser humano precise fazer uso da língua, produzir enunciados e, consequentemente, estabelecer comunicação com o próximo. 1513 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Embora, como já dissemos, seja impossível designar e listar todas as manifestações enunciativas (gêneros) existentes, podemos citar alguns como exemplo: o telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, contos de fada, memórias literárias, crônicas, notícia, horóscopos, receita culinária, bula de remédio, cardápio, discursos políticos, letras de músicas, leis, mensagens, novelas, orações, pareceres, poemas, piadas, projetos, relatórios reportagens, telegramas, e-mail, bate-papo virtual e muitos outros. Diante dos exemplos acima elencados, percebemos a evolução dos gêneros discursivos ao longo do tempo, bem como a semelhança entre vários gêneros como o telefonema e o e-mail, que trazem seus laços de parentesco com outros mais antigos como a conversação e a carta pessoal, ainda assim, são gêneros novos, próprios e de características peculiares. Esse poder de variação e ampliação dos gêneros é notado por Bakhtin (2000, p. 279) quando diz: A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Sendo assim, devemos ressaltar a influência individual que cada pessoa imprime a um gênero. Não podemos afirmar que o indivíduo de forma isolada faz surgir um Gênero, uma forma de enunciação, pois esta precisa ser aceita e avaliada pela coletividade para poder tornar-se aceita e utilizada por todos. No entanto, não podemos negar que o os gêneros do discurso podem carregar certo grau de individualidade daqueles que os utilizam. Para Bakhtin (2000, p. 283), “a variedade dos gêneros do discurso pode revelar a variedade dos estratos e dos aspectos da personalidade individual, e o estilo individual pode relacionar-se de diferentes maneiras com a língua comum”. Diante do exposto, salientamos a relevante contribuição do trabalho com gêneros discursivos em sala de aula. È preciso proporcionar ao aluno o contato com a diversidade de textos que circulam socialmente, visto que é através dos gêneros discursivos que são estabelecidas as relações de domínio e submissão no meio social, uma vez que as práticas comunicativas demanda que o homem seja capaz 1514 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal de interagir, a fim de atender as necessidades dos diversos contextos de uso. Desse modo, é indispensável que nas salas de aulas os gêneros discursivos gozem de grande destaque, de forma a aproximar o aluno da sua realidade tornando-o um ser socialmente mais ativo. A linguística funcional centrada no uso e o ensino Antes de tecermos qualquer consideração acercada Linguística Funcional Centrada no Uso, queremos registrar em meio a gama de parâmetros abarcados por esse campo do conhecimento, que este tópico é dedicado, especialmente, a vertente norte-americana e às discussões sobre o papel dos gêneros discursivos em sala de aula. A Linguística Funcional Centrada no Uso defende a ideia de um ensino de língua portuguesa pautado no uso. Visto que, tendo a língua como produto de atividades sociais, históricas e culturalmente construídas considera que esta é resultante de um conjunto complexo de atividades, sendo, por sua vez, materializadas nas diversas situações de interação. Segundo Neves (2006, p. 17): [...] o funcionalismo é uma teoria que se liga, acima de tudo, aos fins a que servem as unidades linguísticas, o que é o mesmo que dizer que o funcionalismo se ocupa, certamente, das funções dos meios linguísticos de expressão. Podemos dizer que, o funcionalismo amplia o cerne dos estudos linguísticos para além dos elementos estruturais, isto porque de acordo com Furtado da Cunha; Costa e Cezario (2003, p. 29), suas investigações “procura explicar as regularidades observadas no uso interativo da língua analisando as condições discursivas em que se verifica esse uso”. Para essa abordagem, a língua não é um sistema autônomo, pronto e homogêneo, mas, susceptível as mudanças do uso linguístico. Dessa maneira, para os funcionalistas, a língua não pode ser analisada fora de seu contexto extralinguístico, sendo, portanto, investigada não somente em seus aspectos gramaticais, mas também pragmáticos e discursivos. Busca-se, então, analisar a língua conforme o contexto linguístico, levando em consideração toda a situação comunicativa, o propósito do evento da fala, seus participantes e 1515 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais o contexto discursivo. Para Martelotta (2011, p. 63), “no uso da língua, determinados aspectos de cunho comunicativo e cognitivo são atualizados e, se queremos compreender o funcionamento da linguagem humana, temos de levar em conta esses aspectos”. Assim, a linguagem é concebida como instrumento de interação social, já que cada entidade linguística é determinada em decorrência da atuação desses fatores nos processos reais de comunicação. Ou seja, o funcionalismo rompe categoricamente com os estudos formalistas que até então estabelecidos, adotavam a noção de língua como autônoma e imutável. Limitando-se, assim, a descrição da língua sem levar em consideração o contexto comunicativo. Ao contrário do que se vê em estudos anteriores, a perspectiva funcional traz para as investigações linguísticas novos direcionamentos e rumos. Com isso, a concepção funcional torna evidente a necessidade de uma sistematização em que seja posta como objeto de reflexão os fatos da língua legitimada pelo seu efetivo funcionamento. Desse modo, por abordarmos a aplicação dos gêneros discursivos em sala de aula, especialmente no que se trata do gênero Memórias e Crônicas literárias, achamos pertinente elencarmos alguns apontamentos acerca do contexto circundante das produções constitutivas das análises empreendidas nesse trabalho. Como se tratam de produções oriundas da Olimpíada de Língua Portuguesa, a qual entre os objetivos está o de contribuir para a melhoria do ensino da leitura e da escrita, propondo ao docente e ao aluno um material composto por quatro gêneros textuais - poemas, memórias literárias, crônicas literárias e artigo de Opinião - os quais devem ser trabalhados a partir de uma sequência didática proposta pelos cadernos da coleção. Porém, abordaremos neste trabalho às memórias e crônicas, gêneros propostos para as turmas de 7º, 8º, 9º do Ensino Fundamental e 1ª série do Ensino Médio, contemplando a temática o lugar onde vivo. A partir das memórias literárias os estudantes são desafiados a aproximar-se de pessoas mais velhas do lugar onde vivem, pois as lembranças desses moradores serão a matéria-prima para a escrita desse gênero textual. As produções os ajudará a relacionar seu tempo e seu ambiente com o tempo e o ambiente de pessoas de gerações anteriores. Está imbuída, também, nessa proposta uma experiência de humanização, característica inerente ao texto literário, bem como a oportunidade dos educandos ampliarem seus conhecimentos de linguagem e suas possibilida- 1516 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal des de participação social. De acordo com Cândido (2004, p. 176) “assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” Conceituando o gênero memórias com base no caderno da referida Olimpíada podemos dizer que são textos produzidos por escritores que, ao rememorar o passado, integram ao vivido o imaginado. Para tanto, recorrem a figuras de linguagem, escolhem cuidadosamente as palavras que irão utilizar, orientados por critérios estéticos que atribuem ao texto ritmo e conduzem o leitor por cenários reais ou fictícios. Tais narrativas que partem de experiências vividas pelo autor no passado, são contadas da forma como são lembradas no presente. Nesse caso, em se tratando dos alunos participantes da Olimpíada, como ainda são muito jovens, não irão escrever suas próprias memórias, irão escolher uma pessoa idosa da comunidade para entrevistarem e, posteriormenteprecisarão aprender a escrever como se fossem o próprio entrevistado.Tais considerações condizem com as palavras de Bakhtin ao discorrer sobre o autor e o herói (2000, p. 135): Às vezes, saio de mim mesmo no plano dos valores, vivo no outro e para o outro, e então posso participar do ritmo, mas nele sou, de um ponto de vista ético, passivo para mim mesmo. Na vida, participo do cotidiano, dos costumes, da nação, da humanidade, do mundo terreno – em toda parte vivo ai os valores no outro e para o outro, eu revesti os valores do outro, e ai minha vida submeter-se a um ritmo (submeto-me lucidamente ao ritmo), ai minha vivência, minha tensão interna, minha palavra, tomam lugar no coro dos outros. Nesse sentido, percebemos que na relação autor herói, por vezes, ocorre uma simbiose, os aspectos do mundo real se entrelaçam com o ficcional, assim como autor e personagemse confundem, fatores que contribuem, no caso das memórias literárias, para a originalidade do gênero. O outro gênero abordado nesse trabalho, crônicas, também recai no âmbito literário, as quais prendem a atenção do leitor por ser um texto que ocupa um espaço do entretenimento, da reflexão mais leve. Possui uma linguagem simples, semelhante a uma conversa com o próprio leitor, além de retratar os acontecimentos cotidianos em tom despretensioso, ora poético, ora filosófico e muitas vezes divertido. Diferem das crônicas jornalistas porque não são relatos objetivos e sintéticos, comentários sobre pequenos acontecimentos, ao contrário, buscam 1517 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais emocionar e envolver o público leitor, convidando-o a refletir, de modo sutil, sobre situações diárias, em perspectivas irônicas, sérias, líricas, mas sempre agudas e atentas. Parafraseando Ivan Ângelo (2007), destacamos alguns elementos que não condizem com a crônica: grandiloquência, sectarismo, enrolação, arrogância, prolixidade. E outros, que se relacionam muito bem: humor intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade. Diante disso, podemos considerar que a crônica literária é um gênero textual que encanta e seduz o leitor poraproximá-lo das situações mais corriqueiras tendo com plano de fundo o humor e a sensibilidade. Em sala de aula, no contexto da Olimpíada, os estudantes são desafiados a observarem de maneira atenta e sensível os fatos do dia a dia que poderão lhes render uma boa crônica, além disso, precisam refletir criticamente sobre questões sociais, sentimentos, ações e comportamentos das pessoas no intuito de ao escreverem suas crônicas, trazerem à tona a vida do lugar onde vivem. Dialogando com as produções textuais dos alunos: análise do corpus Nesta sessão, apresentamos uma análise reflexiva sobre a língua a partir de atividades de produção textuais desenvolvidas no ensino de Língua materna. Fundamentados na teoria dos gêneros discursivos, cujos teóricos da área da linguagem concebem a língua como uma estrutura dinâmica e, sobretudo, comoum grande elo de interação entre os homens, seguiremos com a investigação de três textos selecionados, dois do gênero memórias literárias, um de crônicas, os quais foram produzidos por alunosdo 7º, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, na ocasião da Olimpíada de Língua Portuguesa 2014. Analisaremos se esses educandos produzem com adequação os gêneros discursivos em pauta, após o trabalho com a sequência didática proposta pela Olimpíada de Língua Portuguesa. O trecho seguinte é referente ao texto intitulado Trajetória de menina, do gênero memórias literárias, aluno 1, do 7º ano do ensino fundamental. Observamos que a autora demonstra segurança na produção, a narrativa apresenta-se coerente e coesa, bem como atende as características inerentes ao gênero proposto. 1518 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal Já faz alguns anos, mas lembro-me, perfeitamente, da minha vida de menina, na pequenina cidade, Doutor Severiano, que não é a “cidadezinha qualquer” de Drummond, mas que oferece uma vida simples e habita um povo humilde e hospitaleiro. Posso, com clareza, expressar como foi aquele tempo gostoso, em que brincava de bonecas, em baixo do juazeiro, com minha irmã, fazíamos festinhas de guisado com as amigas e brincávamos de pega-pega. Mas nesse tempo de menina, não podíamos só brincar, tínhamos de batalhar muito, apesar de eu achar que criança tinha que aproveitar sua infância enquanto era tempo... Não digo que tive uma infância ruim, pois nós ajudávamos nossos pais com muita satisfação, encarávamos o trabalho como uma brincadeira, ao mesmo tempo em que trabalhávamos nos divertíamos muito. (ALUNO 1) Percebemos, nitidamente, nesse fragmento inicial que a autora já recorre a algumas características típicas de Memórias literárias, a saber: caracteriza o lugar, as pessoas e as experiências importantes vividas no passado. Utiliza expressões adequadas ao gênero para remeter-se ao passado “aquele tempo gostoso” “nesse tempo de menina”, além de flexionar os verbos adequadamente, ora no pretérito perfeito, ora no imperfeito. Ainda no mesmo texto, notamos o cuidado com que a autora selecionou as palavras, as expressões, fazendo uso de recursos estilísticos como a metáfora ecomparação para emitir um toque de beleza e emoção a narrativa. Naquele tempo não existia celular, tablet, vídeo game, mas parece que éramos mais felizes! Corríamos pelas estradas de terra com os cabelos ao vento, subíamos nas árvores, brincávamos com os animais e as plantas... Encontrávamos a felicidade nas coisas mais simples da vida. Na escola, então, era tudo diferente! Se respondêssemos o professor com má criação, levávamos uma palmatória na mão, me arrepio só de lembrar daquela palma verde, cheia de espinhos ardendo em nossas mãos! Tínhamos que aprender a tabuada e fazer leituras orais para o professor. Não tínhamos livros didáticos. O professor passava a lição da cartilha e todos nós deveríamos aprender a soletrar. Os cadernos não eram de arames e as folhas eram amarelas parecendo jerimuns, mas mesmo assim, zelávamos muito bem o nosso material. A escola era para mim fonte de sabedoria e respeito! (ALUNO 1) A articulação desses recursos proporciona ao leitor uma experiência estética particular, visto que a autora utiliza a linguagem para criar imagens, provocar sen1519 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais sações e ressaltar detalhes e características. Outro aspecto peculiar ao gênero em estudo são as comparações entre o passado e o presente. Isso é notável no texto do aluno1, quando ele faz a comparação entre os dias de hoje o tempo em que era criança. No tocante à concatenação das ideias e adequação ao tema da Olimpíada, podemos considerar que a autora consegue atingir tais objetivos, haja vista que apresenta ao leitor, por meio da sua história, diversos aspectos do lugar, tais como: brincadeiras da infância, condições de vida, educação da época, religiosidade e namoro. Na passagem da infância para a adolescência, ou melhor, do meu mundinho de bonecas para o mundo das ilusões, me “ensaiei” toda para o namoro, mas, naquele tempo, os pais proibiam qualquer tipo de aproximação entre a moça e o rapaz. O namoro era bem de longe! (aluno1) Todos esses fragmentos retratam o entusiasmo da autora ao discorrer sobre a sua história com enfoque no lugar onde vive. Isto significa que a escrita, nesse caso, possui uma função social e, consequentemente, significado para o escritor e leitor revelados tanto no contexto da produção, quanto na linguagem e intencionalidade da autora do texto. No dizer de Antunes (2003, p. 62): As propostas para que os alunos escrevam textos devem corresponder aos diferentes usos sociais da escrita – ou seja, devem corresponder àquilo que na verdade, se escreve fora da escola – e, assim sejam textos de gêneros que têm função social determinada conforme as práticas vigentes na sociedade. Na amostra seguinte retirada do texto Criatividade à flor da pele, do aluno 2, 8º ano, do Ensino Fundamental, observamos que, apesar da autora discorrer acerca de um acontecimento da infância, ela não o faz de forma subjetiva, não utiliza os recursos estilísticos exigidos no gênero em questão. Sou de família humilde, nascido na década de 40, de uma comunidade com o nome de Sítio Mendes. Atualmente moro na cidade de Doutor Severiano, estou com 72 anos. Hoje vivo tranquilo e aposentado, mas a vida não foi tão fácil, de modo que, para ter minhas próprias coisas, eu tinha que me virar, como foi o caso da minha primeira bicicleta: Eu via os meninos da minha época andarem em uma, me dava vontade de possuir, mas eu não tinha condições de comprar e por ser muito inquieto, decidi fazer uma para mim. (ALUNO 2) 1520 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal A partir desse fragmento evidenciamos a objetividade da autora no decorrer da narrativa. Ela exclui de sua produção a subjetividade inerente ao gênero memórias literárias, visto que não utiliza os aspectos linguísticos particulares do texto, os quais são responsáveis pelos efeitos de sentido e sensibilidade típicas do enredo. Limita-se apenas ao relato de um acontecimento peculiar da sua infância. Além disso, distancia-se um pouco da temática proposta pela Olimpíada, uma vez que não detalha aspectos, características relevantes do lugar onde vive. O fato principal da narrativa é a construção de uma bicicleta de madeira, pelo fato de o narrador-personagem não ter condições financeiras para possuir uma de verdade. No entanto, não deixa transparecer emoção em suas palavras, simplesmente narra. Nos dois parágrafos posteriores, a autora desenvolve e finaliza o texto destacando que depois desse episódio, produziu um jipe de madeira e na vida adulta adquiriu a “bicicleta e um carro de verdade”. Vejamos: Tempos depois eu pude possuir uma bicicleta e um carro de verdade, não exatamente um jipe, mas um chevette, produto de muito trabalho na roça, pois eu vendia a colheita e “poupava” o dinheiro em um caixão de madeira. (ALUNO 2) Diante disso, podemos constatar que a maneira como ela desenrola os fatos é muito limitada, não há uma preocupação com a criatividade e expressividade no uso da linguagem e, por isso, compromete a adequação ao gênero literário proposto. Conforme os PCNs (1998, p. 26): O texto literário constitui uma forma peculiar de representação e estilo em que predominam a força criativa da imaginação e a intenção estética. Não é mera fantasia que nada tem a ver com o que se entende por realidade, nem é puro exercício lúdico sobre as formas e sentidos da linguagem e da língua. Assim, percebemos que o texto ora analisado, apesar de apresentar algumas características de Memórias literárias como: lembranças de um acontecimento passado, os verbos flexionados no pretérito (perfeito e imperfeito), foco narrativo - 1ª pessoa do singular; deixa a desejar em algumas características mencionadas anteriormente. Dando continuidade, apresentamos adiante um trecho da crônica intitulada Aquele homem, cujo enredo revela a preocupação da autora, aluno 3, do 9º ano 1521 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais do Ensino fundamental, com problemas sociais, alcoolismo e exclusão, que circundam a sua comunidade. Todos os dias por volta das 6h50min da manhã, na minha caminhada para a escola, vejo um homem deitado no chão frio da praça que fica no centro da cidade, a pequena Doutor Severiano. (...) Pessoas vão e vem e não notam sua presença, tão pouco sua expressão facial. E se notam, o olham da cabeça aos pés com desprezo. Muitos não sabem seu nome, muito menos sua história, mas o julgam pela aparência. Será que está ali em situações precárias pelo próprio querer? Creio que não. (ALUNO 3) Dentre as características do gênero crônicas literárias, destacamos inicialmente a preocupação da autora em captar um momento, um flagrante do dia a dia, um homem deitado no chão da praça; outro aspecto interessante é amaneira como dialoga com o leitor “Será que está ali em situações precárias pelo próprio querer? Creio que não”. Grosso modo, tais aspectos revelamuma certa maturidade do aluno acerca do gênero em pauta. O tema abordado na produção também faz parte do repertório de temas tratados pelos cronistas renomados os quais estão sempre ligados a questões éticas, de relacionamento humano e de relações entre grupos econômicos, sociais e políticos. No fragmento seguinte a cronista detalha o lugar por meio do olhar da personagem, ela o faz com muita propriedade, de modo que envolve o leitor ao atribuirmovimento ao texto por meio das palavras. De cara fechada, olha atento o temporário trânsito dos grandes ônibus amarelos que vão deixar os alunos na escola, algumas motos e carro dos adultos que vão ao trabalho e a chegada das pessoas que vão abrir seus estabelecimentos, como o barbeiro da esquina e os três comerciantes da rua da frente. E depois que todo esse vai e vem acaba ele continua a olhar atentamente para as ruas, que vão perdendo o barulho e o movimento, se recolhe em um cantinho da praça e começa a fazer gestos, silenciar e, às vezes, até adormece. (ALUNO 3) O uso da personificação é notável nesse trecho,quando a autora faz referência às ruas da cidade. Explorando assim os recursos estilísticos próprios do texto literário. Como cita Frantz (2001, p. 27-28): 1522 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal A linguagem literária não se limita, pois, simplesmente, a referir ou reproduzir uma realidade pré-existente, mas têm o poder de criar outras realidades simbólicas e sugerir novos sentidos à existente, a partir da plurissignificação e da ambiguidade da sua linguagem, principalmente. Nos demais parágrafos a autora desenvolve as ideias expressando em um deles que, juntamente com seus colegas de sala, buscaram um diálogo com o protagonista, ocasião na qual descobrem que o seu isolamento social e situação de abandono é fruto do alcoolismo. Por fim, ela finaliza a crônica demostrando indignação com tamanho problema social e deixando o desfecho em aberto. Mais tarde, em casa, me veio na cabeça que aquele não era o único homem a ser vítima do álcool. Um problema tão presente na minha pequena cidade, mas que parecia passar despercebido. Então, me pergunto: “quantos homens jogados à praça serão necessários para que se busque uma solução para esse problema?” O desfecho aberto, conforme observamos acima, instiga os leitores a pensar, criar uma solução, dar continuidade à narrativa, tornando-se, assim, coautores da história. Considerando, portanto, os aspectos analisados no texto, constatamos que o aluno3adequou-se à proposta de produção, visto que fez uso de todas as características peculiares ao gênero Crônicas Literárias. A partir dessas reflexões, confirmamos a relevância do trabalho com os gêneros textuais em sala de aula visto que eles favorecem o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos por estarem intimamente ligados ao funcionamento da língua. Considerações finais Diante do exposto, constatamos que os gêneros discursivos é um dos tripés que sustentam o ensino da língua materna, considerando que a interação social ocorre por meio de enunciados a propósito das diversas situações comunicativas. Essa perspectiva perpassa pela fala de Antunes (2009) ao discorrer sobre a língua numa visão interacionista e dialógica, em que a linguagem é concebida como uma 1523 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais forma de agir socialmente, de interagir com os outros e tal interação somente acontece a partir dos textos. Nas amostras analisadas evidenciamos a grande contribuição do trabalho com os gêneros discursivos na sala de aula, dado o seu reflexo positivo na competência linguística dos estudantes, já que mesmo com algumas limitações, dois textos, um de memórias e outro de crônicas literárias, foram produzidos em consonância com as propostas de produção da Olimpíada de Língua Portuguesa e, consequentemente com as características dos gêneros em pauta. Contudo, sabemos que a inclusão dos gêneros como prática discursiva e social nas aulas de língua materna ainda se constituinum grande desafio, pois na maioria das vezes, limita-se a atividades esporádicas, não sendo uma constante na prática docente. O que mais acontece são atividades de interpretação e produção textuais sem nenhum propósito comunicativo, e sem significado para a vida social do educando, ou seja, o “tratamento inadequado e desastroso” que o texto vem recebendo nas salas de aulas. Sendo assim, reforçamos a importância da aplicabilidade do estudo dos gêneros nas aulas de Português, pautado nos aspectos dialógicos, funcionais e interacionistas da língua, no intuito de ampliar a competência discursiva dos alunos para que possam atuar adequadamente nas diversas situações de interação social. Referências ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009. ______. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola,2003. BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. – 14 ed. – São Paulo: Hucitec, 2010, 203p. BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave (org). 4 ed. – São Paulo, Contexto, 2008. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília/DF: MEC, SEF, 1997. CANDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004, p. 169-191. CLARA, R. A.; ALTENFEIDER, A.H; Se bem me lembro...Caderno do professor: orientação para produção de textos. Olimpíada de língua Portuguesa. São Paulo: Cenpec, 2010. 1524 Ana Dalete da Silva, Janaína Maria Fernandes Guedes Queiroz, Rosângela Maria Bessa Vidal FURTADO DA CUNHA, M. A.; RIOS DE OLIVEIRA, M.; MARTELOTTA, M. E (orgs.). Linguística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. FRANTZ, M. H. Z. O Ensino de Literatura nas Séries Iniciais.3 ed. Ijuí: Unijuí, 2001. GERALDI, J. W. (org.), O texto na sala de aula. – São Paulo: Anglo, 2012. MARTELLOTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011. NEVES, M. H. M. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006. PEREIRA, M. I. ; LAGINESTRA, M.A. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para produção de textos. Olimpíada de língua Portuguesa. São Paulo: Cenpec, 2010. 1525 RESUMO O objetivo deste trabalho é investigar o fenômeno da transitividade em contextos de uso, nos gêneros anúncios classificados de jornais. Para realizar as análises, recorremos à Linguística Funcional Centrada no Uso – LFCU. Nesse sentido, tratamos da transitividade, mostrando que ela não se restringe aos verbos como sugere a Gramática Tradicional, mas abrange a sentença inteira conforme pressupostos funcionalistas como defendidos por Hopper e Thompson (1980); Givón, (2009); Furtado da Cunha e Souza (2007); Abraçado (2014), entre outros. Utilizamos anúncios classificados do jornal Gazeta do Oeste, a partir de pesquisa realizada em Mestrado (2012). Trabalhamos, pois, numa visão de língua enquanto interação social, sujeita às pressões de uso que leva em consideração tanto fatores linguísticos quanto extralinguísticos, implicando que cada elemento de uma frase exercerá um importante papel quanto à significação do todo. Os resultados a que chegamos revelam que existem possibilidades de a transitividade manifestar-se, de modo a atender tanto propósitos comunicativos quanto cognitivos dos usuários da língua. Combinar determinado verbo com um ou dois participantes não é uma propriedade peculiar ao léxico mental, mas também a fatos variáveis em dados reais de fala e de escrita como é o caso do gênero anúncio classificado presente no Jornal Gazeta do Oeste. As discussões servirão, portanto, para repensar a análise linguística, no ensino de Língua Portuguesa, no que diz respeito ao fenômeno da transitividade. Palavras-chave: Funcionalismo, Cognição, Transitividade, Anúncios classificados. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino O FENÔMENO DA TRANSITIVIDADE EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAIS Ana Alice de Freitas Neta Araújo1 Rosângela Maria Bessa Vidal2 Francisco Clébio de Figueiredo3 Introdução O objetivo deste trabalho é investigar o fenômeno da transitividade levando em conta contextos de uso, em anúncios classificados de jornais a fim de fornecer contribuições para o ensino de língua materna na educação básica. Para realizar as análises, recorremos à Linguística Funcional Centrada no Uso – LFCU. Tratamos da transitividade em anúncios classificados do jornal Gazeta do Oeste, mostrando que esse fenômeno não se restringe aos verbos como sugere a Gramática Tradicional, mas abrange a sentença inteira conforme pressupostos funcionalistas como os defendidos por Hopper e Thompson (1980). Em outras palavras, na perspectiva funcionalista, cada elemento de uma frase exercerá um importante papel quanto à significação do todo. 1. Doutoranda em Letras - Professora de Língua Portuguesa da Educação Básica e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Funcionalista - GPEF – [email protected]. 2. Docente do Programa de Pós-graduação em Letras – Departamento de Letras – CAMEAM – UERN – Pau dos Ferros, RN, Brasil - [email protected]. 3. Mestre em Letras (Aprovação com distinção) - Professor de Língua Portuguesa da rede Estadual de Ensino e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Funcionalista - GPEF – [email protected]. 1527 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Transitividade é um termo que provém do latim transitivus (que vai além, que transmite) e, em seu sentido original, significa transferência de uma atividade de um agente para um paciente. Refere-se ao grau de completude sintáticosemântico de itens lexicais que utilizamos na codificação linguística de eventos, de acordo com as possibilidades de transferência dessa atividade. Na visão Tradicional de gramática, a oração é dividida em sujeito e predicado, e a transitividade é uma propriedade exclusiva do verbo, não da oração como um todo. Nesse sentido, verbos cujo processo se transmite a outros elementos para lhes completarem o sentido são chamados transitivos, o que não acontece com os verbos intransitivos, cuja ação não ultrapassa os limites do verbo. Dito de outra forma, para classificar um verbo como transitivo ou intransitivo deve-se se apoiar na presença ou ausência de um sintagma nominal – objeto – exigido pelo significado do verbo, usando-se critérios sintático-semânticos. Na perspectiva tradicional de transitividade, um verbo transitivo é aquele, cuja relação entre dois participantes acontece de forma que um dos participantes age sobre o outro. Um verbo intransitivo, por sua vez, é aquele cuja descrição trata-se de uma propriedade, um estado, ou uma situação, envolvendo apenas um participante. Três elementos da transitividade – sujeito, ação, objeto – ocorrem simultaneamente sob a ótica tradicional. Neste trabalho, objetivamos demonstrar que o fenômeno da transitividade pode manifestar-se de diferentes formas em gêneros de discurso caracterizados pelo predomínio de sequências descritivas, anúncios classificados, que se caracterizam pelo uso de atributos; diz como é o objeto (e/ou serviço) a ser descrito, de modo que o leitor o visualize em virtude dos detalhes apresentados. Usamos como suporte o referencial teórico a Linguística Funcional Centrada no Uso. Analisamos, pois, textos de uma situação discursiva concreta – anúncios classificados do Jornal Gazeta do Oeste. Os recortes não obedecem a uma sequência temporal – ordem de edições publicadas –, mas constituem os textos que apresentam as formas verbais vender e alugar em contextos de uso. Nesse sentido, as discussões servirão para repensar a análise linguística, no ensino de Língua Portuguesa, no que diz respeito ao referido fenômeno, levando em consideração o ponto de vista funcional de gramática, bem como a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa. Para tanto, dividimos o trabalho da seguinte maneira: Na seção 1, fazemos uma breve 1528 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo apresentação da Linguística Funcional Centrada no Uso; na seção 2, tratamos do fenômeno da transitividade sob a ótica funcional; na seção 3, faremos uma breve análise de exemplos coletados em pesquisa para escrita de dissertação de mestrado (ARAÚJO, 2012); na seção 4, apresentamos, embora de forma sucinta, as contribuições desse estudo para o ensino de Língua Portuguesa, no que diz respeito ao fenômeno da transitividade, seguindo-se com as considerações finais. Linguística funcional centrada no uso (LFCU) A Linguística Funcional Centrada no Uso é um modelo de abordagem de fenômenos linguísticos que investiga temas que se relacionam à emergência e à regularização de padrões construcionais no nível da proposição e do discurso multiproposicional. Quando se trata da proposição, são levados em consideração aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos. No nível do discurso, são vistos fatores linguísticos relativos à organização textual (GIVÓN, 2009). Esse modelo de abordagem foi denominado Linguística Cognitivo-Funcional, conforme Tomasello (1998) por se tratar do resultado da união das tradições desenvolvidas pelas pesquisas de representantes da Linguística Funcional, como Talmy Givón, Paul Hopper Sandra Thompson, dentre outros com os estudos da Linguística Cognitivista – pesquisas de George Lakoff, Ronaldo Langacker e outros. Tanto a Linguística Funcional quanto a Cognitiva se projetaram a partir da década de 1970. A primeira tem como característica principal “analisar a língua do ponto de vista do contexto linguístico e da situação extralinguística. A proposta é que o estudo do discurso e da gramática seja simultâneo, para que possa entender como a língua se configura” (Furtado da Cunha, Bispo, Silva, 2013, p. 14). A segunda observa que as capacidades cognitivas refletem o comportamento linguístico os quais estão relacionados aos princípios de “categorização, à organização conceptual, aos aspectos ligados ao processamento linguístico e, sobretudo, à experiência humana no contexto de suas atividades individuais, sociointeracionais e culturais” (Op. Cit. p. 14). Ambas as correntes teóricas trabalham com inúmeros pressupostos em comum, a saber: a não autonomia da sintaxe, a incorporação de aspectos semânticos e pragmáticos às análises, a rejeição da distinção estrita entre léxico e gra1529 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais mática, a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem delas em contextos reais de comunicação, o entendimento de que a análise linguística é feitas a partir os dados, cujos enunciados ocorrem no discurso natural. A gramática4 é vista como representação cognitiva cujo indivíduo experiencia ao fazer uso da linguagem, podendo, pois ser afetada por esse uso (cf. FURTADO DA CUNHA, BISPO, SILVA, 2013). Givón (1995) assegura que a língua não pode ser descrita como um sistema autônomo visto que a gramática só pode ser entendida fazendo-se referência a parâmetros como cognição5 e comunicação, processamento mental, interação social e cultural, mudança e variação, aquisição e evolução, devendo-se, pois, estudar a relação entre ambos. Dessa forma, nota-se que as suas regularidades são decorrentes de pressões cognitivas e do uso na gramática de uma língua. Essa gramática é, pois, dinâmica, já que se molda a partir do discurso dos falantes. Ela adequa-se ao seu uso, não se pré-estabelece, podendo, portanto, decorrer de pressões cognitivas e de pressões de uso, bem como de pressões internas do próprio sistema gramatical. Isso pressupõe que discurso e gramática se influenciam mutuamente. Transitividade: uma visão funcionalista Muitos trabalhos de cunho funcionalista marcaram a produção de método de análise linguística. Dentre eles, citamos o de Thompson em coautoria com Paul Hopper, Transitivity in grammar and discours (1980), obra em que revolucionaram a concepção de transitividade6, extraindo-a do âmbito do verbo e colocando-a no discurso. Nesse sentido, Thompson e Hopper consideram o contexto 4. Hopper (2008), a gramática é constante, gradual e sempre dirigida pelo discurso. Denota que as estruturas gramaticais rotinizadas não são eternamente estáveis, mas sim adaptáveis nas interações de uso pelos sujeitos durante as construções de seus enunciados, ou seja, “[...] as estruturas estão constantemente sendo modificadas e negociadas durante o uso” (Hopper, 2011). 5. O termo cognição refere-se ao processo neurorracional de construção do conhecimento humano a partir da interação do organismo com o meio ( furtado da Cunha, Bispo, Silva, 2013, p.18), 6. Transitividade (transitivity) - A maneira como um verbo se relaciona como os sintagmas nominais numa mesma oração. (TRASK, 2008, p. 298), 1530 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo discursivo como motivador para os fatos ocorridos na língua. Defendem que a transitividade está relacionada aos planos do discurso. Os autores concebem como um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos focalizadores de diferentes ângulos da transferência da ação em uma parte distinta da oração. Mesmo que sejam independentes, os dez traços da transitividade trabalham em parceria, de modo a articularem-se na língua, pressupondo a ideia de união dos mesmos para que a transitividade aconteça. Furtado da Cunha; Costa e Cezário (2003, p.37); Furtado da Cunha e Souza (2007, p.37) disponibilizam um quadro com esses dez parâmetros para mostrarem que a transitividade não se manifesta apenas no verbo, mas, no todo da oração, que emerge das relações estabelecidas entre os elementos que a compõem. Vejamos. Quadro 01: Parâmetros da transitividade Parâmetros Transitividade Alta Transitividade Baixa dois ou mais um Ação não-ação Perfectivo não-perfectivo Pontual não-pontual 5.Intencionalidade do sujeito Intencional não-intencional 6.Polaridade da oração Afirmativa negativa 7.Modalidade da oração modo realis modo irrealis 8. Agentividade do sujeito Agentivo não-agentivo 9. Afetamento do objeto Afetado não-afetado Individuado não-individuado 1. Participantes 2. Cinese 3. Aspecto do verbo 4.Pontualidade do verbo 10. individualização do sujeito 1531 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Considerando o quadro 1, apresentamos, a seguir, uma breve explicação dos traços componentes da transitividade, tomando como base Hopper e Thompson (1980) e Furtado da Cunha e Sousa (2007), os quais atestam que uma faceta distinta da intensidade com que uma ação é transferida de um participante para outro é envolvida por cada componente da transitividade. Os componentes da transitividade são, portanto, caracterizados a partir dos parâmetros: a) Participantes: não há transferência a não ser que dois participantes estejam envolvidos. b) Cinese: pode haver transferências de ações de um participante para outro; estados não. Nesse sentido, em (01) Eu abracei Pedro (p. 37)7, alguma coisa acontece com Pedro, mas em (02) Eu admiro Pedro (p.37), nada acontece com ele. c) Aspecto: uma ação vista do seu ponto final, ou seja, uma ação télica – terminada – é transferida de forma mais eficaz para um paciente do que uma ação não terminada. Na oração télica (03) Eu comi sanduíche (p. 37), a atividade é vista como completa, e a transferência é completamente realizada; porém, na oração atélica, (04) Eu estou comendo o sanduíche (p.37), a transferência é realizada apenas de forma parcial. d) Pontualidade: ações que se realizam sem nenhuma fase de transição evidente entre o início e o fim têm um efeito mais marcado sobre seus pacientes do que ações que são inerentemente contínuas. Por exemplo: o verbo (05) chutar é pontual quando contraposto ao verbo (06) carregar, que é não-pontual. Nesse caso, devemos levar em consideração tanto o contexto quanto o significado do verbo. e) Intencionalidade: o efeito sobre o paciente é tipicamente mais aparente quando a ação do agente é apresentada como proposital. Por 7. Os exemplos citados nos 10 parâmetros pertencem a Furtado da Cunha e Souza (2007), mas renumerados por nós, por questões didático-metodológicas. 1532 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo exemplo, (07) Eu escrevi seu nome (intencional), em contraposição com (08) Eu esqueci seu nome (não intencional) (p. 38). f) Polaridade: as orações afirmativas (ações que aconteceram) podem ser transferidas. Por exemplo: (09) Eu entreguei o livro à professora. As negativas (ações que não aconteceram) não podem. Por exemplo: (10) O menino não comeu o sanduíche (p. 38). f) Modalidade: refere-se à distinção entre a codificação “realis” e “irrealis” de eventos. Uma ação que não aconteceu, ou que é apresentada como tendo acontecido em um mundo irreal, hipotético, ou que expressa um evento incerto é, obviamente, menos efetiva do que aquela cuja ocorrência é de fato asseverada como correspondendo a um evento real. Por exemplo: (11) Maria vai comprar um vestido novo (p. 38), o verbo está no futuro. Isso pressupõe que a ação de comprar ainda não aconteceu, ficando, portanto, a oração marcada com irrealis. g) Agentividade: participantes cuja agentividade é alta podem efetuar a transferência de uma ação de um modo que participantes com baixa agentividade não podem. Nesse sentido, quando interpretamos a frase de maneira normal (12) João me assustou (p.38) é de um evento perceptível com consequências perceptíveis, mas (13) O filme me assustou (p. 38) poderia ser apenas uma questão de estado interno. h) Afetamento: o grau em que uma ação é transferida para um paciente é uma função de quão completamente esse paciente é afetado. Por exemplo, o afetamento é mais efetivo em (14) Eu bebi o leite todo do que em (15) Eu bebi um pouco do leite (p. 38). i) Individuação: esse elemento se refere tanto ao fato de o paciente ser distinto do agente quanto à distinção entre o paciente e o fundo em que ele se encontra. Desse modo, os referentes dos substantivos com propriedades de substantivo próprio, humano e animado, concreto, singular, contável e referencial ou definido são mais altamente individu- 1533 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais ados do que aqueles com substantivos que contêm propriedades contrárias às referidas acima8. Segundo Furtado da Cunha e Souza (2007, p. 39.), “uma ação pode ser mais eficazmente transferida para um paciente que é individuado do que para um que não é; desta forma, um objeto definido é considerado como mais completamente afetado do que um objeto indefinido [...]”. Conforme Hopper e Thompson (1980, p.253), em (16) Pedro bebeu a cerveja, existe uma provável implicação de que ele tomou toda a cerveja disponível, mas quando dizemos que (17) Pedro bebeu um pouco da cerveja, não há essa implicação, a menos que, na situação do evento, havia somente a cerveja correspondente ao que bebeu. A mesma coisa acontece com pacientes animados e inanimados: em (18) Eu me choquei com Pedro, há, provavelmente, um foco de atenção no efeito do evento em Pedro, ou quem sabe em ambos participantes – eu e Pedro – porém, em (19) Eu me choquei com a mesa, é menos provável que alguma coisa tenha acontecido com a mesa, e mais provável que o efeito sobre o agente esteja sendo ressaltado. Confirmando a eficácia da proposta de Hopper e Thompson (1980), Furtado da Cunha e Sousa (2007) ressaltam que cada um desses parâmetros contribui para a ordenação de orações em uma escala de transitividade segundo o grau de transitividade manifestado. Assim sendo, são mais transitivas as orações que apresentam mais parâmetros da escala da alta transitividade – parâmetros marcados positivamente – e menos transitivas as orações que possuem menos parâmetros da alta transitividade, conforme apresentado no quadro 1 e nos exemplos analisados. Comprovando que os funcionalistas veem a transitividade como uma propriedade escalar que focaliza diferentes ângulos da transferência da ação de um agente para um paciente em diferentes porções da oração, trazemos alguns exemplos extraídos de uma narrativa que reconta o filme Batman (Cf. FURTADO DA CUNHA, 2008). Vejamos: 8. As propriedades da individuação podem ser conferidas em Furtado da Cunha e Souza (quadro 2) (2007, p.39). 1534 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo (20) Batman derrubou o Pinguim com um soco. (21) A mulher Gato não gostava do Batman. (22) Esse rio tem uma forte correnteza. (23) Então o Pinguim chegou na festa. De acordo com a gramática tradicional, os três primeiros exemplos são transitivos, uma vez que apresentam um objeto como complemento do verbo. Conforme o pensamento de Hopper e Thompson, o exemplo que ocupa lugar mais alto na escala de transitividade é o (20), acompanhado de (23) e (21) e, finalmente, (22), levando-se em conta aspectos como dinamicidade do verbo, agentividade do sujeito e a afetação do objeto. A transitividade é, segundo esses autores, associada a uma função pragmática, cujos objetivos do falante e sua percepção em relação às necessidades do ouvinte determinam o modo de organização do seu texto. A gramática tradicional sempre gozou de grande prestígio social. No entanto, com o avanço dos estudos linguísticos, o conceito de transitividade apresentado nela suscitou várias críticas entre os estudiosos, principalmente, pelos funcionalistas norte-americanos que apresentam uma alternativa de análise para esse fenômeno linguístico completamente diferente daquele exposto nos compêndios gramaticais, seguidos até os dias atuais. Os estudiosos dessa corrente teórica compreendem a transitividade [...] não como uma propriedade categórica do verbo, como defende a gramática tradicional, mas como uma propriedade contínua, escalar (ou gradiente), da oração como um todo. É na oração que se podem observar as relações entre o verbo e seu(s) argumento (s) – a gramática da oração (FURTADO DA CUNHA; SOUSA, 2007, p.29). Diante do exposto, o que se propõe, na verdade, é que a análise da transitividade seja realizada, não exclusivamente, em relação ao verbo, mas à sentença toda, ao contexto discursivo. Na verdade, “Quanto às classificações tradicionais da transitividade verbal, elas se referem, como sabemos, ao tipo de complemento que é acionado pela semântica do verbo, ou no caso dos intransitivos, pela necessidade de complemento. No entanto, como sempre, é o contexto discursivo que vai determinar o caráter transitivo e/ou intransitivo de um verbo” (BAGNO, 2011, p.516) 1535 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Hopper e Thompson (1980) postulam, pois, que o fenômeno da transitividade se constitui por um componente semântico e um componente sintático. Um evento descrito por uma oração transitiva deve envolver pelo menos dois participantes: um agente – responsável pela ação – ao qual atribuímos a codificação de sujeito, e um paciente – o que é afetado por essa ação – a quem nos referimos como objeto direto. Esses participantes são chamados de argumentos do verbo. Levando-se em conta o ponto de vista semântico, o evento transitivo prototípico, conforme nos atestam Furtado da Cunha e Souza (2007) se define pelas propriedades de agente, do paciente e do verbo, os quais envolvem a oração codificada por esse evento. Delimitar as propriedades desses três elementos é, em princípio, uma questão de grau. Quando consideradas do ponto de vista sintático, todas as orações (e verbos), cujos objetos são diretos são transitivas; as que não apresentam objetos diretos, porém, são intransitivas. Dessa forma, [...] se uma oração codifica um evento semanticamente transitivo, o agente do verbo é o sujeito da oração e o paciente do evento é o objeto direto da oração. Contudo, a manifestação discursiva de um verbo potencialmente transitivo depende de fatores pragmáticos, como a perspectiva a partir da qual o falante interpreta e comunica o evento narrado [...] (FURTADO DA CUNHA e SOUZA, 2007, p.29-30). Retomamos aqui dois exemplos citados pelas autoras, demonstrando, pois que um evento pode ser transmitido tanto da perspectiva do agente responsável pela ação, exemplo (24), quanto do ponto de vista do objeto por ela afetado, exemplo (25): (24) O menino quebrou a vidraça. (25) A vidraça foi quebrada pelo menino. (FURTADO DA CUNHA; SOUZA 2007, p.30). Analisando, portanto, as orações partindo da proposta de Hopper e Thompson (1980), notamos que ambas as construções apresentam transitividade alta, pois contêm mais traços positivos do que negativos no complexo: dois participantes (menino e vidraça); verbo de ação (quebrou/foi quebrada); aspecto perfectivo (verbos no passado); verbo pontual (ação completa); sujeito intencional; oração afirmativa; oração realis (modo indicativo); sujeito agente: menino/paciente: vi1536 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo draça); objeto afetado e individuado (vidraça). O fato expresso por essas orações é o mesmo, contudo, visto de maneiras diferentes, recebendo foco diferente em cada uma das construções. Outro estudo de relevância sobre a transitividade foi o de Slobin (1982) e De Lancey (1987) citado por Abraçado (2014). Os resultados das pesquisas de Slobin revelaram que os eventos prototípicos mais salientes têm correspondência com as ações mais transitivas. Slobin (1982) constatou que as crianças demonstram perceber de forma clara e mais imediata as ações em que um agente animado causa, de forma intencional, uma mudança física e perceptível no estado ou locação de um paciente por meio de um contato físico direto (cf. Abraçado, 2003). Assim como Slobin, De Lancey (1987) demonstra que a interpretação de qualquer enunciado fundamenta-se no contexto do mundo real. Segundo o pensamento do autor, o fenômeno discursivo é mais fácil de ser compreendido através de um modelo semântico prototípico do que por meio de uma teoria discursiva da transitividade na explicação de fatos semânticos. Para ele, aspectos de um protótipo semântico são codificados por traços que compõem a transitividade, cujo esquema cognitivo subjacente é reflexo. Nesse sentido, a associação que se estabelece, entre transitividade e figura no discurso, deve-se ao fato de a primeira refletir a saliência cognitiva do evento codificado. A transitividade também pode ser relacionada a uma função cognitiva associada à forma de percepção de um evento. Abraçado (2003) ressalta que o aspecto mais relevante do trabalho de McCleary é aquele cujo autor distingue duas funções no discurso: (a) função comunicativa – responsável pela organização interna do discurso; e (b) função cognitiva – responsável pela organização e interpretação do mundo exterior. Enquanto Hopper & Thompson, consideram a transitividade como uma propriedade determinada pelo discurso, McCleary a analisa como um universal cognitivo que refletindo, pois, o modo pelo qual o mundo é apreendido. Assim sendo, a transitividade assume uma função cognitiva associada à forma de percepção de um evento num primeiro plano, e, em segundo, vê-se refletida na organização do discurso por meio de traços sintáticosemânticos manifestados na codificação do evento percebido. 1537 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Retornando às noções sobre o conceito e o processo de transitividade, tomamos consciência de que não se restringem a situações prototípicas, cujas propriedades são específicas, limitadas. Pelo contrário, são dinâmicas, variando de acordo com a função exercida em determinadas situações. Nota-se, portanto, que estabelecer classificações para os verbos fora de uma análise contextual descritiva é, sem dúvida, limitar o ensino/estudo da transitividade. Trabalhar a transitividade seguindo a proposta funcionalista apresentada é bastante diferente do trabalho que, geralmente, é feito na educação básica que segue o ponto de vista tradicional abordado nos livros didáticos. Em outras palavras, a proposta dos autores funcionalistas trata da transitividade como sendo característica de toda a sentença, ao contrário da proposta apresentada pela visão tradicional que se refere à transitividade como uma característica restrita aos verbos, o que limita a análise da língua enquanto interação social já que, nessa concepção, são analisados tanto os aspectos linguísticos quanto os extralinguísticos. Análise e discussão dos dados Para codificar os dados e constatar os resultados aqui expostos, foram aplicados os dez parâmetros sintático-semânticos postulados por Hopper e Thompson (1980) verificando qual das orações relacionada é tida como transitividade alta nos anúncios analisados. Metodologia Para essa investigação, levamos em consideração os aspectos relevantes da sintaxe, da morfossintática, da semântica e da pragmática, presentes nos anúncios classificados de jornais que foram coletados e transcritos cuidadosamente no Jornal Gazeta do Oeste, um recorte do trabalho realizado no Mestrado com os verbos vender e alugar Araújo (2012). Para compreender os usos dos verbos vender e alugar, partirmos, portanto, de um levantamento do conteúdo apresentado sob a ótica da gramática normativa, da linguística para confrontá-los na análise com os textos reais, no gênero anúncio classificado do jornal impresso Gazeta do Oeste, veiculado, diariamente, no Estado do Rio Grande do Norte. Para essa investigação adotamos os estudos da Linguística Centrada no Uso. 1538 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo No nosso caso, procuramos elucidar que aspectos têm contribuído para que haja escolhas no uso dos itens verbais vender e alugar (e suas variantes) em anúncios classificados de jornais impressos. Além disso, foi adotado o paradigma qualitativo, haja vista o objeto de estudo ser uma atividade de uso da linguagem, sendo necessária a realização de um trabalho interpretativo acerca dos significados do fenômeno que envolve o uso dos referidos verbos, considerando toda a sua complexidade, a fim de fornecer explicações eficazes e abrangentes. Como sabemos, uma das características que constitui os estudos qualitativos é a maneira como direcionamos nossa investigação. Nesse sentido, nossas reflexões se voltam para a análise das construções que empregam os itens vender e alugar. Além de apontar as escolhas no uso dos verbos vender e alugar (e suas variantes), observamos como acontece o fenômeno da transitividade, ou seja, quais as sentenças envolvendo os referidos verbos apresentam um grau mais alto na escala da transitividade proposta por Hoopper e Thompson (1980). Nessa perspectiva, investigamos o discurso escrito do jornal, com base nos usos dos itens vender/alugar, para observação de como ocorre o fenômeno. Nesse sentido, os dados se constituem a partir de descrições discursivas: textos publicados no jornal, analisando aspectos relacionados à escolha no uso desses verbos (e suas variantes), o uso de construções com o clítico se junto às formas vender e alugar modificadas pelas pressões de uso. Para seleção do material empírico, utilizamos como critério a composição dos textos que fazem parte do corpus – anúncios classificados –, os quais apresentam semelhança em sua estrutura e propósito comunicativo, bem como exibem os itens a serem investigados – os verbos vender e alugar – em contextos de uso, ou seja, situações comunicativas reais. Em outras palavras, a análise feita privilegia aspectos qualitativos, buscando descrever e analisar a regularidade da construção com os verbos vender e alugar em seu uso interativo a fim de constatar qual deles se apresenta com maior ou menor transitividade. 1539 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Manifestações discursivas da transitividade dos verbos vender e alugar em anúncios classificados Se nossa análise se restringisse à forma com que os livros didáticos e manuais de gramáticas da educação básica trabalham, usaríamos exemplos como este: “Alugam-se casas”, para exemplificar o uso verbo vender, seguido do pronome “se“ denominado de partícula apassivadora, ou pronome apassivador, que indica que o elemento paciente (o que sofre a ação verbal) é o sujeito do verbo e sua transitividade, ou seja, “alugam-se casas” seria o mesmo que “casas são alugadas”, por isso o verbo deveria ficar no plural. É a regra básica de concordância verbal: o verbo concordaria com o sujeito. Diríamos ainda que o pronome ‘se’ seria denominado de partícula apassivadora quando se unisse a um verbo transitivo direto acompanhado de seu complemento. Verbo transitivo direto é aquele que pede um complemento sem preposição – o objeto direto. Poderíamos usar como modelo o verbo “vender”: “Quem vende, vende algo”. Todo verbo que indica ação ou de fato que se encaixar nesse modelo – “Quem vende, vende algo” – é verbo transitivo direto, e o “algo” será o objeto direto. Nas análises tradicionais, quando um verbo transitivo direto, com seu objeto direto, for acompanhado do pronome “se”, este será chamado de partícula apassivadora. O objeto direto, nesses casos, será transformado em sujeito do verbo, por isso este tem de concordar com aquele. Esse é o motivo de o verbo “alugar” ficar no plural na frase “alugam-se casas”: “alugar” é verbo transitivo direto, e “casas”, o objeto direto que se transformou em sujeito; o verbo concorda com o sujeito, por isso fica no plural. No entanto, quando analisamos textos reais a coisa muda de figura, e a análise tradicional não dá conta de fatores discursivos, como o descrito nos exemplos, retirados do jornal pesquisado: Gazeta do Oeste. É por isso que elegemos para nossas análises a Linguística Funcional Centrada no Uso – LFCU – um modelo teórico, cujo propósito é analisar não somente a estrutura gramatical, mas também a situação de comunicação inteira. Este modelo de gramática associa-se às bases teóricas como o Funcionalismo linguístico, mais precisamente, o de origem norte -americana, cuja concepção, defendida por Givón e seus seguidores, é a de língua enquanto atividade social, não autônoma, sujeita às pressões de uso (cf. Martelotta 2008). Segundo essa concepção, a situação comunicativa motiva, portanto, a estrutura gramatical, o que pressupõe pensar que uma abordagem estrutural ou 1540 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo formal não é apenas limitada a dados artificiais, mas inadequada como análise estrutural. Vejamos alguns exemplos coletados, cujos verbos vender e alugar aparecem nos textos investigados. (01) ALAMEDA DO SOL Vende-se os lotes 03 e 04 da quadra 06, medindo 800m2. R$ 110.000,00 (GAZETA DO OESTE, 8 de abril de 2011, p.3). Além da forma apresentada, aparece outra construção: vende-se casas avulsas... na edição de 20 de abril e repete-se em 15 edições posteriores. Vale ressaltar que, na última edição pesquisada, aparece na última página e em letras maiores, apesar de em todas estarem em maiúsculo e, em edições anteriores, aparecerem duas vezes na mesma edição. O texto segue, na íntegra, exemplo 02: (02) CASAS AVULSAS VENDE-SE CASAS AVULSAS NO RESIDENCIAL CIDADE JARDIM (ALTO SUMARÉ) COM 02 QUARTOS (57,01M2) E 3 QUARTOS (115, 86M2) VÁRIAS OPÇÕES DE PLANTAS, ENTREGA COM 5 MESES, TODAS AS CASAS COM PROJETO PARA EXPANSÃO. ÓTIMA LOCALIZAÇÃO. LOTES DE 2002 (10X20) FINANCIADO EM ATÉ 100% CASAS A PARTIR DE R$ 84.900,00. (GAZETA DO OESTE, 20 de abril de 2011, p.7). De forma semelhante, acontece com o verbo alugar, vejamos o exemplo: (03) ALUGA-SE APARTAMENTOS Apto RESIDENCIAL ALAIDE ESCOSSIA no 18º andar com 03 suítes. (...) CASAS Casas no Residencial João Figueiredo na Nova Betânia com 02 quartos sendo 01 suíte, banheiro social, garagem, cozinha e dispensa. (GAZETA DO OESTE, 20 de abril de 2011, p.7). 1541 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Comparando, portanto, os exemplos retirados do jornal: Gazeta do Oeste com a forma prototípica da gramática tradicional, exemplo (04) Venderam-se todos os bilhetes (Rocha Lima, 1985, p.390). Neste caso, “Este substantivo, representado (geralmente) por um ser inanimado, é sujeito da frase –, razão pela qual com ele há de concordar o verbo” (op.cit, p.391). O autor evidencia que “A índole da língua portuguesa inclina para a posposição desse sujeito ao verbo; aponta-se menos comum sua presença antes do verbo, assim como vir ele representado por um ser animado” (p.391). A partir da pesquisa realizada, percebemos, portanto, que a tendência em usar a forma singular vai aos poucos se generalizando. Quando se diz: (02) Vende-se casas avulsas..., fica subtendido que alguém tem casas para vender, isto é, há um agente responsável pela ação, mesmo que não apareça no enunciado. Por outro lado, haveria incoerências na análise tradicional do se como apassivador, como propõe Rocha Lima, já que a concordância não iria acontecer, caso transformássemos a frase da voz ativa para a passiva sintética pronominal como ele sugere. A tão famosa transposição nem sempre é possível, uma vez que nem sempre há igualdade de sentido quando mudamos a ordem das palavras dentro da frase. Na verdade, em se tratando da problemática do clítico se, o gramático Said Ali ([1908] 2008) já negava o caráter de “partícula apassivadora”. Segundo esse autor, não haveria necessidade de concordância entre o verbo (singular) seja intransitivo, seja transitivo e nome (plural). Nesse caso, o SE – com verbo transitivo direto – que as gramáticas tradicionais chamam de pronome apassivador (estaria na ‘voz passiva sintética’, e o sintagma posto seria chamado de sujeito), Ladeira (1986) admite chamá-lo de índice de indeterminação do sujeito, já que, para ele (e para outros estudiosos), não existe passiva sintética em português. Segundo Castilho, 2010, várias alterações surgiram, na estrutura da passiva pronominal, a partir da perda de traços do pronome se, culminando com seu desaparecimento – grau final da gramaticalização –, a saber: “(i) seu sentido passivo ficou comprometido, surgindo em seu lugar o sentido de indeterminação do sujeito; (ii) desapareceu a concordância do verbo com o sujeito passivo, agora reanalisado como objeto direto [...]” (CASTILHO, 2010, p.481); essa concordância era importante porque sugeria que flores (04) era o sujeito passivo da oração. Conforme ressalta Castilho, em exemplos como em (04) “Vende-se flores”. (= alguém (ativo) vende flores). 1542 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo Levando em conta fatores discursivos, em anúncios como (03) “Aluga-se apartamentos”, por exemplo, se colocado na frente de alguns apartamentos que estivessem para alugar, faria sentido. Sentido esse, que não corresponderia a “Apartamentos são alugados”. Pressupomos, na segunda frase, a ideia de que os moradores dos apartamentos não são, pois, os respectivos donos. Eis o porquê da não procedência da transposição para a passiva neste caso. Se levarmos em consideração fatores semântico-pragmáticos, os quais envolvem tanto o contexto linguístico quanto o extralinguístico, observamos lacunas na visão tradicional de gramática, já que são cada vez mais frequentes construções (impessoais) com verbos transitivos diretos – vende-se/aluga-se casas – em nosso dia a dia, pondo em discussão as visões das gramáticas normativas e de muitos livros didáticos que desprezam os usos linguísticos e a evolução da língua. A análise realizada destaca, no uso real da língua, a manifestação discursiva de verbos: vender e alugar. Vejamos: Tabela 01 - Ocorrências do item linguístico vender no jornal Gazeta do Oeste Item Linguístico Número de ocorrências Valor em % Vende 1365 46,1 Vendo 1133 38,2 Vende-se 451 15,2 Vender 15 0,5 Total 2964 100 Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/maio/2011 O levantamento feito, no corpus da pesquisa, nos deu oportunidade de constatar que os usos linguísticos estão presentes no jornal Gazeta do Oeste, quer se trate da forma vender (e variantes: vende, vendo, vender), quer se trate da forma alugar (e variantes; aluga, alugo, alugam-se alugar, alugamos). Analisando as amostras retiradas desse jornal, as quais constituem um total de um mês de publicação (edição de 08 de abril e 08 de maio de 2011), obtivemos o seguinte resultado: 1.365 ocorrências da construção vende (verbo na 3ª pessoa do singular); 1543 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais 1.133 da construção vendo (verbo na 1ª pessoa do singular); 451 da construção vende-se (verbo na 3ª pessoa do singular + o clítico se); e 15 ocorrências da construção vender (verbo no infinitivo), conforme apresentado na Tabela 01. Observando os dados pudemos verificar que se determinada estrutura gramatical: vende, foi empregada com maior recorrência. Isso se deve ao(s) significado(s) que tal estrutura permitia articular para o que o objetivo fosse atingido, ou seja, a venda de produto/oferta de serviço em anúncios classificados do jornal impresso investigado. A repetição desse verbo numa mesma edição conforme acontece se dá em virtude de, histórica e socialmente, originar e estabilizar o significado da estrutura, tornando-a, portanto, usual, isto é, gramatical. O estudo realizado caracterizou, portanto, que as estruturas gramaticais são determinadas pelas situações comunicativas das quais participamos enquanto sujeito. Desse modo, podemos afirmar que a estrutura não é estática, varia de acordo com o uso da língua em nosso dia-a-dia, ou seja, por motivações discursivas, não da sentença em si. Um exemplo disso é a estratégia utilizada pelo produtor do anúncio classificado ao escolher como usar o verbo do melhor modo que atenda o seu propósito comunicativo. Quanto ao verbo alugar, coletamos o seguinte resultado, como demonstra a Tabela 02: Tabela 02 - Ocorrências do item linguístico alugar no jornal Gazeta do Oeste Item Linguístico Número de ocorrências Valor em % Aluga 998 58,7 Alugo 385 22,7 Aluga-se 262 15,4 Alugamos 26 1,5 Alugar 26 1,5 Alugam-se 2 0,1 Total 1699 100 Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/maio/2011 1544 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo Observando a tabela 02 – item alugar – contatamos, tal como a forma vender que a 3ª pessoa é predominante. Na leitura da Tabela 02, temos: 998 ocorrências da construção aluga (verbo na 3ª pessoa do singular); 385 da construção alugo (verbo na 1ª pessoa do singular); 262 ocorrências da construção aluga-se (verbo na 3ª pessoa do singular + o clítico se); 26 ocorrências da construção alugamos (verbo na 1ª pessoa do plural) e 26 ocorrências da construção alugar (verbo no infinitivo). Diferente do verbo vender, o verbo alugar permitiu o uso de duas maneiras a mais: alugamos 26 ocorrências e alugam-se com duas ocorrências. Analisando segundo parâmetros da transitividade instituídos por Hopper e Thompson (1980), apresentamos as três estruturas mais recorrentes, levando em consideração os dois verbos investigados: vender e alugar - verbo na 3ª pessoa do singular; verbo na 1ª pessoa do singular; verbo na 3ª pessoa do singular + o clítico se, bem como as que acontecem diferente em ambos os verbos. Transcrevemos, pois, três orações que aparecem nos anúncios classificados do jornal Gazeta do Oeste, representando as três estruturas mais recorrente para analisarmos, seguindo parâmetros da transitividade instituídos por Hopper e Thompson (1980). Vejamos: (05) Otávio Neto vende casa comercial.... (Araújo, 2012) (06) Vendo/Alugo apartamento em Nova Betânia... (Araújo, 2012) (07) Vende-se lotes na Serra de Martins... (Araújo, 2012) Em se tratando do número de participantes, acreditamos ser esse um fator fundamental para que a transferência da ação se efetive, pois conforme explicam Hopper e Thompson (1980), a transferência só é possível se houver, pelo menos, dois participantes: o sujeito e o objeto. No caso específico dos anúncios classificados do Jornal Gazeta do Oeste, destaca-se a presença de dois participantes, os verbos vender (46%) e alugar (58,7%) aparecem conjugados na terceira pessoa do singular, cuja estrutura oracional é S+V+O. Observemos amostras desses casos. 1545 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Figura 01: Item linguístico vender/alugar verbo - 3ª pessoa Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/2011, p.6 Como o verbo predominante, em ambos os itens investigados, aparece o nome (com logomarca) do anunciante, seguido dos verbos em destaque (verbos em cor branca e fundo preto), deixando claro quem vende/aluga. Embora o sujeito esteja exterior ao enunciado (o anúncio propriamente dito), o contexto faz este sujeito inserir-se na enunciação. Essa compreensão só é considerada a partir de análise pragmática do contexto discursivo, fundamentada por princípios funcionalistas, ou seja, é preciso atentar para tudo que envolve os anúncios classificados: o locutor, o interlocutor, o ambiente social, entre outros fatores inerentes ao campo da pragmática. Assim, para dar ênfase ao anunciante (colocado em destaque, inclusive suas credenciais) e ao que se quer anunciar, o produtor do texto repete os verbos na 3ª pessoa (...) vende ou aluga, itens que concorrem com os prescritos pela gramática tradicional: vende(m)-se/aluga(m)-se, típicas da linguagem culta, especialmente escrita, conforme podemos constatar na Figura 01. Analisando, pois, os usos dos verbos vender e alugar em anúncios classificados do jornal Gazeta do Oeste, podemos peerceber uma configuração básica de significado funcional na divulgação de produtos e serviços desses anúncios, retomando-se a figura 01, cujos verbos aparecem na 3ª pessoa singular. 1546 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo No que se refere ao parâmetro denominado Cinese, verificamos, em nosso corpus, que os verbos são de ação, (embora não sejam concluídas, pois estão no presente do indicativo) e se relacionam com o já observado índice elevado de mais de um participante nos anúncios encontrados. O predomínio dos verbos de ação e de mais de um participante pressupõem que os anúncios do Jornal Gazeta do Oeste são bastante transitivas, já que se trata de sentenças, cujos eventos são mais salientes, o que conferem um grau mais alto na escala da transitividade quando levamos em consideração aspectos funcionais. Em se tratando do Aspecto verbal, observamos, em todos os anúncios coletados, e analisados possuem o aspecto atélico - ou imperfectivo – já que se refere a ações não finalizadas, ou seja, em todos os anúncios selecionadas, constatamos, por um lado, que os verbos são empregados no presente do indicativo, dando a ideia de que as ações expressas, no presente do indicativo, nos anúncios não estão concluídas, são vistas pelo leitor como se referindo a acontecimentos ainda não ocorridos, estão em desenvolvimento. Por outro, seguindo o pensamento de Hopper e Thompson (1980), ações expressas por verbos télicos são transferidas de um participante para outro de forma mais eficaz. O que constatamos, entretanto, em relação às características de sentenças mais transitivas sendo, pois, mais salientes, o aspecto télico – ou perfectivo – nos anúncios classificados de jornais, contraria esse pressuposto, uma vez que sugere tratar-se de eventos em processo e, quando essas ações definitivamente são concluídas, o anúncio sairá de circulação. A retirada do anúncio já pressupõe que o imóvel foi vendido ou alugado. Quanto ao parâmetro da Pontualidade, constatamos que assim como em nossos anúncios verificamos o aspecto atélico (ou imperfectivo), em todas elas também prevalece o caráter não pontual, já que a pontualidade está relacionada à efetividade das ações (as ações que se realizam sem uma fase de transição são consideradas pontuais e mais efetivas). Consideramos, pois, os resultados obtidos, apresentam uma tendência a veicular ações menos pontuais. São, pois, menos efetivas. Em relação à Agentividade, constatamos, nos anúncios analisados, a presença de sujeito com características de agente, isto é, capazes de efetuar a transferência de ações. São, portanto, agentes prototípicos. Apresentam uma influência positiva para a elevação do grau de transitividade dos anúncios: (05) Otávio 1547 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Neto vende...(06) Vendo/Alugo apartamento... (07) Vende-se lotes... (cf. Araújo, 2012). Uma peculiaridade, no entanto, chamou nossa atenção: o exemplo (07) Vende-se lotes... com verbo no singular e o objeto no plural, considerado na voz passiva sintética pela Gramática Tradicional, e o sintagma posposto seria chamado de sujeito), na verdade, é motivo de polêmica, pois Said Ali ([1908] 2008) já negava o caráter de “partícula apassivadora”. Segundo esse autor, não haveria necessidade de concordância entre o verbo (singular) seja intransitivo, seja transitivo e nome (plural). Ladeira (1986) sugere chamá-lo de índice de indeterminação do sujeito. Para ele (e para outros estudiosos), não existe passiva sintética em português. Nesse sentido, em exemplos como (07) “Vende-se lotes”. (= alguém (ativo) vende lotes) (cf. Castilho, 2010). Quanto à Volitividade do sujeito, pudemos constatar que sendo agentes prototípicos, são também volitivos, ou seja, agem de modo intencional, conforme ilustram os exemplos da Figura (01), em verbos vender e alugar propagam fatores, cuja volitividade se pode perceber. Nos anúncios analisados, os sujeitos que controlam a ação representam-se como detentor do poder econômico, pois pagam para anunciar, além de possuir os bens e/ou serviços anunciados. Ao analisar os anúncios quanto ao parâmetro da Modalidade e polaridade, constatamos que todas as sentenças são eventos reais que fazem parte de nosso cotidiano. Segundo os postulados de Hopper e Thomson (1980), eventos que acontecem em um mundo real são mais eficazes do que ações hipotéticas. Todos os anúncios estão no modo indicativo que corresponde ao modo real. Apresentam, pois, a polaridade afirmativa, traços esses que contribuem para elevar o grau de transitividade das sentenças em análise. O Afetamento do objeto é outro traço que contribui para elevar o grau de transitividade dos anúncios, já que, verificamos a presença de objetos afetados, pois quando dizemos que (05) Otávio Neto vende casa comercial, há um afetamento no todo, não se está vendendo parte dela, apesar da ação está em desenvolvimento. Em se tratando da Individualização do objeto, notamos um índice médio de objetos individuados, haja vista, nos anúncios analisadas, predominam objetos comuns, inanimados, porém concreto, contável, singular, referencial, definido. Esses traços são desdobramentos do parâmetro de individualização instituído por Hopper e Thompsom. 1548 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo O ensino/estudo da transitividade na escola No ensino/estudo – aulas de gramática – em nossas escolas ainda trabalhamos o fenômeno da transitividade de forma mecânica, apenas classificando os verbos em transitivo (é aquele que descreve uma relação entre dois participantes de tal modo que um dos participantes age sobre o outro) e intransitivo (aquele que descreve uma propriedade, um estado, ou uma situação que envolve apenas um participante) (cf. Furtado da Cunha, 2009) em frases artificiais, deixando de considerar as situações de uso, esquecendo que os aspectos centrais de sua natureza, ou seja, as relações entre formas e funções dependem de uma série de fatores que sofre interferências a cada interação comunicativa. Nessas aulas somos, portanto, convidados a decorar o resultado sem levarmos a refletir sobre o caminho percorrido para se chegar a ele. Na verdade, muito se reproduz e pouco se justifica a respeito dos porquês das análises (classificatórias) feitas. Daí surgir comentários de que os alunos não sabem gramática, não se interessem por seu estudo, chegando, muitas vezes a detestá-la. Infelizmente, a gramática apresentada causa “ódio à primeira vista”, pois o que se apresenta a eles são rótulos e propriedades de itens gramaticais – verbos, nomes, pronomes, conjunções, orações coordenadas e subordinadas, entre outros – e os papéis sintáticos a eles vinculados – sujeito, predicado, adjunto, e outros –, desenvolvendose atividades para identificar e classificar, mas, de forma rara, utilizando-se de análises desses itens e funções em seus contextos de uso – interações discursivas vivenciadas no dia a dia. É necessário vincular o estudo das unidades gramaticais ao uso, assim como trabalhá-las, fazendo com que interajam umas com as outras, pois contribuem simultaneamente para construir o discurso. Nem as classes de palavras nem as funções sintáticas funcionam isoladamente. Juntas formam um todo de sentido: o texto, que exige relações entre as unidades tanto em sua forma interna quanto externa a ele (fatores extralinguísticos). Nesse sentido, o trabalho com a transitividade deve ser realizado em contextos de uso – gêneros variados, orais e escritos, formais e informais – para que o aluno tenha a oportunidade de refletir sobre a utilização de um dado verbo e quais contribuições ela pode trazer para o texto em termos de efeitos semântico-pragmáticos e morfossintáticos. 1549 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais O professor pode pesquisar com os alunos em que gênero(s) os verbos transitivos tendem a ocorrer com mais frequência, comparando gêneros de discurso variados, pois como vimos nos textos – anúncios classificados – analisados há diferentes possibilidades de manifestação do fenômeno da transitividade, que atendem aos propósitos comunicativos e cognitivos dos usuários da língua. Além disso, quando se trabalha com o texto, observando as especificidades do gênero (um contexto específico), relacionando a esfera discurso na qual ele se insere, muitas dificuldades vão sendo superadas, propiciando o conhecimento das características do gênero anúncio publicitário e, consequentemente, acontece uma leitura que subsidia o aluno a evoluir os conhecimentos linguísticos, semântico-pragmáticos, culturais e discursivos, promovendo a compreensão e a interação com o texto. A combinação de um dado verbo com um ou dois participantes é um fato altamente variável em dados reais de fala e de escrita, não se restringe, pois, a uma propriedade especificada no léxico mental. Assim sendo, não se pode realizar a análise da transitividade levando em consideração apenas os verbos de orações isoladas, mas o papel do contexto discursivo-pragmático, pois este é fundamental na aferição da transitividade oracional. É o funcionamento textual do verbo que definirá a transitividade, mesmo que ele seja considerado potencialmente classificado como transitivo em orações isoladas. O estudo do fenômeno deve ser realizado tendo em mente que é uma questão da gramática da oração inteira como acontece nas interações comunicativas, não se limitando à relação entre um verbo e seu objeto (cf. Furtado da Cunha, 2009). Apesar de as análises morfossintáticas serem de grande utilidade para entendermos o fenômeno da transitividade, não podemos esquecer o processamento cognitivo, já que é nele que observamos a sintonia entre sintaxe, semântica e pragmática. Na verdade, o fenômeno da transitividade pode não está visível na materialidade do texto, mas, com certeza, faz parte do processamento cognitivo do produtor no momento de falar/ escrever e é preciso uma análise criteriosa como a Hopper e Thompson para dá conta de perceber todos esses fatores que a envolvem. 1550 Ana Alice de Freitas Neta Araújo, Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo Considerações finais Podemos, portanto, conferir alto grau de transitividade nos anúncios classificados, visto que comprovamos a predominância de mais de um participante, de verbos cinéticos, de agentes volitivos e de objetos afetados. Diante da análise, percebemos a proposta é válida pelo fato de a marcação positiva ou negativa de algum dos traços que compõem uma dada sentença não determinar a classificação da transitividade como um todo. Pelo fato de os traços serem analisados separadamente, a presença de um objeto direto ou indireto torna-se somente um indicativo levado em conta na classificação de uma sentença com grau mais alto ou mais baixo na escala da transitividade. Analisar o fenômeno da transitividade sob a ótica de Hopper e Thompson nos faz repensar a noção que temos acerca desse fenômeno, que a gramática tradicional trata como uma característica restrita aos verbos. Perspectiva essa negada (como vimos) pelos pressupostos funcionalistas, cuja transitividade é uma característica de toda a sentença. Isso porque, nessa abordagem, estudamos a língua enquanto interação social, ou seja, levamos em consideração as próprias motivações discursivas, manifestadas no quadro de traços sintático-semânticos formulados por Hopper & Thompson (1980). Os dados analisados mostram outras possibilidades de a transitividade manifestar-se, de modo a atender tanto propósitos comunicativos quanto cognitivos dos usuários da língua. Combinar determinado verbo com um ou dois participantes não é uma propriedade peculiar ao léxico mental, mas também a fatos variáveis em dados reais de fala e de escrita como é o caso do gênero anúncio classificado presente no Jornal Gazeta do Oeste. Referências ABRAÇADO, Jussara. Por que transitividade traço a traço? In: ABRAÇADO, Jussara; KENEDY, Eduardo. Transitividade traço a traço. Niterói: Eduff, 2014, p.9-22. ______. Ordem de palavras: da linguagem infantil ao português coloquial. Niterói: EDUFF, 2003. ALI, M. S. Gramática Secundária da Língua Portuguesa. 10ª edição. São Paulo: Melhoramentos, 1970. 1551 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais ALI, M. S. Dificuldades da língua portuguesa. 7. ed. – Rio de Janeiro: ABL: Biblioteca Nacional, 2008. 260 p. (Coleção Antônio de Morais Silva, v. 7). ARAÚJO, Ana Alice de Freitas Neta. Os usos dos verbos vender e alugar em anúncios classificadosde jornal impresso. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de Concentração: Estudos do Discurso e do Texto. Pau dos Ferros, RN, 2012. 101 f. BAGNO, M. Gramática pedagógica do Português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. CASTILHO, A.T. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. FURTADO DA CUNHA, M. A; SOUZA, M.M. Transitividade e seus contextos de usos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. FURTADO DA CUNHA, M.A A transitividade em gêneros narrativos: implicações para o ensino. Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais International Symposium on Genre Studies – O Ensino em Foco – Caxias do Sul: Brasil, ISSN18087655, 2009. FURTADO DA CUNHA M. A. Funcionalismo. In: MARTELLOTA, M. E. (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. FURTADO DA CUNHA, M. A; BISPO, Edvaldo Balduino; SILVA, José Romerito. Linguística Funcional Centrada no Uso: conceitos básicos e categorias analíticas. 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Na perspectiva de uma prática pedagógica funcional, que conecte as abordagens didáticas aos usos da língua em situações interacionais, cogitamos um tratamento didático de base reflexiva para os conhecimentos necessários ao domínio competente da língua nas experiências vividas pelos falantes. Seguindo esse realinhamento, nosso objetivo é fornecer alternativas de análise linguística, numa perspectiva sintático-semântico-discursiva, que vão além da abordagem tradicional. É importante registrar que as discussões estabelecidas aqui são frutos de encontros com professores da rede municipal de João Pessoa, durante a realização da formação continuada em 2013. A abordagem teórica utilizada é a Funcionalista que parte do princípio de que os usos dos elementos linguísticos são pragmaticamente motivados, ou seja, se desenvolvem a partir de inferências surgidas no contexto comunicativo (Hopper e Traugott, 1993). A teoria funcionalista vem dando contribuições importantes para a prática cotidiana dos professores de língua materna ao demonstrar que a forma linguística se altera em decorrência das condições de produção e das intenções comunicativas. Durante as oficinas de análises linguísticas, respaldada no real funcionamento da linguagem, podemos concluir/refletir, com os professores, que as funções discursivo-pragmáticas da língua constituem uma forma de instrumentalizá-los para o desenvolvimento de suas competências nessa área. Palavras-chave: Gramática, Análise linguística, Funcionalismo. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino SOBRE GRAMÁTICA: ANÁLISE E REFLEXÃO LINGUÍSTICA Iara Ferreira de Melo Martins (UEPB) Introdução Muito se tem discutido acerca do ensino de língua portuguesa na educação formal de nível básico. Invariavelmente, são apontadas as dificuldades dos profissionais da área para realizar uma prática de ensino de língua que seja, ao mesmo tempo, eficiente e prazerosa. As soluções recorrentemente apontadas por especialistas e estudiosos contemplam tanto a referência às inovações metodológicas, com a incorporação de suportes tecnológicos modernos – e cada vez mais acessíveis – como a atitude do professor em relação à aplicação de fundamentos linguísticos de cunho sociofuncionalista. Entretanto, o ensino de gramática nas escolas, especificamente o trabalho com os mecanismos relacionais, de um modo geral, ainda está muito atrelado à orientação normativo-prescritiva. O que os Parâmetros Curriculares Nacionais (2000) nos dizem acerca dos chamados conteúdos gramaticais é que, de certa forma, foram realinhados, deslocados, em termos de relevância e primazia, na nova orientação pedagógica nacional. Na verdade, as chamadas aulas de gramática passam a compor o conjunto de atividades de análise e reflexão sobre a língua, como suporte e subsídio das práticas de leitura, produção, revisão e reescrita de textos. Seguindo esse realinhamento, na tentativa de fornecer alternativas de análise linguística, para além da abordagem tradicional, apresentamos, neste artigo, algumas reflexões sobre os mecanismos envolvidos nos contextos estruturais de duas classes gramaticais conhecidas pelos rótulos de advérbio e conjunção numa perspectiva sintático-semântico-discursiva. É importante registrar que as 1555 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais reflexões aqui expostas são frutos de encontros com professores da rede municipal de ensino de João Pessoa, vinculados ao Projeto “Ações de Linguagem: uma proposta de integração teórico-prática para o ensino de língua portuguesa -ALLP”. A partir do recorte-advérbio e conjunção- centraremos nossa atenção sobre o lugar de onde olharemos essas duas classes de palavras: a abordagem funcionalista que parte do princípio de que os usos dos elementos linguísticos são pragmaticamente motivados, ou seja, se desenvolvem a partir de inferências surgidas no contexto comunicativo (HOPPER e TRAUGOTT, 1993). Na tentativa de compreender como funcionam alguns dos mecanismos relacionais, organizamos este capítulo tem quatro seções. Na primeira, retroagimos à origem da disciplina gramatical para entender a razão e a finalidade do seu estabelecimento e melhor compreender a gramática que herdamos; na segunda parte, apresentamos uma “nova” concepção de língua(gem) que acreditamos ser o sustentáculo para a transformação da prática pedagógica e consequentemente para transformação da gramática; a terceira constitui uma descrição de como a gramática ainda é “corpo estranho” na escola, apresentamos também algumas reflexões de como trabalhar a gramática em sala de aula ancoradas nas abordagens da sociolinguística variacionista e do funcionalismo linguístico e; nas considerações finais, na quarta parte, concluímos com uma síntese dos principais tópicos tratados. O surgimento da gramática É importante retroagir um pouco na história para chegar à mãe das gramáticas do Ocidente, a Téchne Grammatiké1, de Dionísio o Trácio. O percurso se faz necessário para melhor compreender o caminho que a gramática percorreu através dos tempos e as adequações, acontecimentos sociais, políticos, econômicos e culturais que enfrentou. 1. Tomamos, assim como faz Neves (2002, p.39), Dionísio o Trácio (Arte da Gramática) como ponto de referência, porque sua sistematização é representativa do procedimento que surgiu na época Alexandrina e porque é o modelo sobre o qual se apoiaram, em geral, os gramáticos ocidentais. 1556 Iara Ferreira de Melo Martins Segundo Neves (2002, p.19), na história da gramática ocidental temos primeiramente, a grammatiké dos filósofos gregos como busca do mecanismo interno à língua, e mais posteriormente, a grammatiké da cultura helenística, como regulamentação de um determinado uso da língua, num dado momento de sua história. Os filósofos gregos estudavam a língua apenas como uma pista concreta para desvendamento da atividade da linguagem, dito de outra maneira, estavam interessados pela linguagem como manifestação da vida humana e não pelas línguas em si mesmas, portanto, buscavam respostas para reflexões do tipo: qual a relação entre as coisas e os nomes? De onde vêm os nomes? O discurso pode ou não dizer a verdade? Passando para o período helenístico, observamos que houve diferentes motivações que sustentaram os estudos sobre a linguagem. Nesta fase, a cultura estava apoiada em ensino e aprendizagem. O lema era debruçar-se sobre o passado, não mais cultuando a “verdade das coisas”, mas sim com o objetivo de manter e cultivar as características helênicas, ou seja, preservar a “bela linguagem das criações geniais do espírito grego.....modelo de pureza e correção” (Neves, 2002, p.21). Os filósofos helenistas estudavam a língua buscando a disciplinação de seu uso. Temos, então, a gramática com estatuto de téchne. A téchne grammatiké (gramática como arte) é direcionada ao homem que deve falar a língua de maneira mais bela e pura possíveis, isto é, nos moldes consagrados pela literatura clássica. É assim que, guardando as marcas da filosofia que, dando-lhe base teórica, lhe dirigiu os primeiros passos, a gramática se constitui em disciplina. Surge, pois, a gramática como parte do estudo literário e linguístico orientado sob duas forças: uma de ordem conceitual, vinda da tradição como grande construção do espírito helênico, e outra de ordem histórica, determinada pelas necessidades do momento.A exigência de instalação da disciplina gramatical está, realmente, nas condições peculiares da época helenística, marcada pelo confronto de culturas e de língua, e pela exacerbação do zelo pelo que se considerava a cultura e a língua mais puras e elevadas. A preservação de padrões que devem ser seguidos da língua justifica “o porquê” e “para que” do estabelecimento dos quadros da gramática. Desta forma, observamos que, apesar de se tratar de uma gramática descritiva, fica revelado um fio normativo. É exatamente esse espírito que organizou e 1557 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais vem organizando a gramática ocidental através dos tempos, o que merece reflexão, se se pensar nas grandes diferenças de condições de produção. Entretanto, é com a gramática nestes moldes que, ainda hoje, a grande maioria de professores de língua portuguesa trabalha em sala de aula. Será que desconhecem que nem temos língua em extinção nem literatura ameaçada por povos bárbaros? Devemos reconhecer que já não tem mais lugar e sentido, na escola de hoje, utilizar unicamente a gramática da arte de falar e escrever corretamente, pois, de acordo com Neves (2002, p.23), “não existe mais uma determinada literatura, de um determinado período, que constitua modelo a ser seguido.... não existem situações culturais de vazio de criação que suscitem clamor por retorno.” Mudanças que exigem base linguística Sabemos que, até hoje, a perspectiva escolar dos estudos gramaticais centrase, em grande parte, no domínio da nomenclatura como eixo principal. Nessa prática pedagógica confusa, descrição e norma se confundem no momento da análise. Assim, refletir sobre os usos das formas linguísticas, desenvolver a competência discursiva que amplie a capacidade de leitura e escrita dos alunos, requer dos professores uma mudança na postura em relação ao ensino de língua portuguesa e especialmente de gramática. O primeiro passo a ser dado para essa transformação, ou seja, para esclarecer os mitos que ainda aprisionam os professores, começa pela adoção de uma “nova” concepção de língua(gem). Concepção que toma a língua como lugar de interação, considerando também os seus entornos (contextos extralinguísticos), e o leitor encarado não mais como ser passivo. A reflexão pretendida neste trabalho vai na direção já postulada por Geraldi (1995, 1996), Possenti (2000), Bagno (1999), Travaglia (2001), Brito (1997), Neves (2002, 2004), entre outros, e que está representada nos PCNS (2002, p.5-ensino médio): “A linguagem é considerada aqui como a capacidade humana de atribuir significados coletivos e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade.” Tem-se apontado, na literatura pertinente, três possibilidades distintas de conceber a língua(gem), das quais apresentamos a seguir, resumidamente, os pontos mais interessantes para o nosso objetivo. 1558 Iara Ferreira de Melo Martins A primeira concepção vê a língua(gem) como expressão do pensamento. Segundo Travaglia (2001, p.21), para essa perspectiva as pessoas não se expressam bem porque não pensam. O modo como o texto que se usa em cada situação de interação comunicativa está constituído não depende em nada da situação que se fala, de quem se fala, para que se fala. A segunda concepção vê a língua(gem) como instrumento de comunicação, como meio objetivo para a comunicação. Nessa concepção, a língua é vista como um código, ou seja, como um conjunto de signos que se combinam segundo regras. Essa perspectiva levou o estudo da língua enquanto código virtual, isolado de sua utilização, não considerando os interlocutores nem a situação de uso. A terceira concepção vê a língua(gem) como forma ou processo de interação. Nessa perspectiva, o que o indivíduo faz ao usar a língua “não é tão somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outrem, mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor)” (Travaglia, 2001, p.23) A língua(gem) é, pois, um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção de efeitos de sentidos entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico. Adotar essa concepção de língua(gem) acarretará trabalhar com a língua em uso, isto é, fatos de língua servirão para trabalhar uma gramática reflexiva e produtiva que fornecerá subsídios para leitura e produção textual pelos alunos. Se a nossa questão aqui é o ensino de gramática, é preciso dizer também o que entendemos por gramática. De acordo com Travaglia (2001) e Possenti (2000) há basicamente três sentidos, que apresentamos brevemente a seguir: No primeiro, a gramática é concebida como um manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem se expressar adequadamente. Essa gramática é rotulada comumente de normativa e só trata da variedade da língua dita padrão ou culta, sendo considerado “errado” tudo aquilo que foge a esse modelo. A segunda concepção de gramática é a que tem sido chamada descritiva, porque faz, na verdade, uma descrição da estrutura e funcionamento da língua, de sua forma e função. Essa modalidade não procura alterar os padrões já adquiridos pelos falantes nativos, assim, interessa-se tanto pelas variantes padrão como não-padrão. 1559 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Por fim, a terceira concepção, a gramática internalizada, diz respeito à hipótese de que todo falante já tem conhecimentos que o habilitam a produzir frases de uma determinada língua, sem que seja apresentado a ela formalmente. Assim, o falante conhece a gramática de sua língua intuitivamente, caso contrário não seria capaz de falar. Ele tem em mente suas variantes etárias, regionais, de gênero e de estilo; falta-lhe apenas uma gramática da língua escrita. Com base no exposto, podemos observar que a normativa é o tipo de gramática a que mais se refere tradicionalmente a escola e, quase sempre, quando os professores falam em ensino de gramática estão pensando apenas nesse modelo, por força da tradição (vimos na seção 1. a história da gramática) ou por desconhecimento da existência de outros tipos. Salientamos, ainda, que a adoção/conhecimento pelo professor dessa “nova” perspectiva de conceber a língua e consequentemente a gramática, requer que ele, além de uma visão histórica da língua materna, tenha também uma visão científica, com base na Linguística. E isso não parece ser um processo rápido, uma vez que, como já mencionado anteriormente, a tradição gramatical (entendendo a nomenclatura gramatical como eixo principal) vem de longas décadas e que, sabemos, não se troca uma prática pedagógica sem que se tenha outra para colocar no lugar. O ensino da gramática na perspectiva funcionalista Insegurança no uso da própria língua, inibição comunicativa, bloqueio da criatividade, servilismo e a convicção de que realmente não sabem a gramática da língua que falam. Tudo isso são sequelas do ensino de uma gramática que ainda é um “corpo estranho” 2na escola. Entretanto, o grande mal não é o ensino de gramática em si, mas o como é trabalhada. E esse como passa pela adequação do seu ensino a atual realidade do conhecimento linguístico. Então, dispor da gramática “normativa” na escola pode e deve continuar a ser um objetivo válido, dito de outra forma, levar o aluno 2. Podem ser conferidos em Martins (2006) maiores informações acerca de “gramática: ainda um “corpo estranho””. 1560 Iara Ferreira de Melo Martins a dominar a língua padrão e ensinar a variedade escrita da língua continuam valendo, uma vez que, como sabemos, o aluno quando vai para a escola já domina, pelo menos, a norma coloquial de seu meio em sua forma oral. É preciso, ainda, considerar, no estudo de gramática, as duas últimas concepções (descritiva e internalizada) para não se trabalhar uma variedade de língua no lugar da outra, mas de criar condições para que os alunos aprendam também as variedades que não conhecem, mostrando que a língua é a mesma, os usos é que são diferentes. O ensino deve dar prioridade à língua como conhecimento interiorizado. Por mais distante que a língua do aluno esteja da variedade considerada padrão, ela é extremamente complexa, articulada, longe de ser um falar rudimentar e pobre. Se a escola desconsidera essa riqueza linguística que o aluno traz, estará desperdiçando material extremamente relevante para o ensino da gramática. De acordo com Camacho (2001) e Soares (1997), o principal pressuposto da tradição normativa é que cabe à escola o papel de compensar supostas carências socioculturais. Decorre daí, que a principal tarefa do ensino de língua na escola é substituir a variedade não-padrão pela padrão. A tese de que não se deve ensinar ou exigir o domínio do dialeto padrão dos alunos que conhecem e usam dialetos não-padrões baseia-se, em parte, no preconceito segundo o qual seria difícil aprender o padrão. Sabemos que isso é falso. As razões pelas quais não se aprende, ou se aprende, mas não se usa um dialeto padrão, são de outra ordem e têm a ver, em grande parte, com os valores sociais dominantes. Possenti (2000) afirma que o maior desafio da escola é, pois, mostrar ao aluno que existem formas variantes na língua e proporcionar-lhe condições de usar uma ou outra forma adequadamente, dependendo do contexto. Apesar de a gramática de Bechara mostrar-se tradicional, no seu livro “Ensino de Gramática. Opressão? Liberdade? (1985), o autor assevera que a grande missão do professor de língua materna é transformar seu aluno em um poliglota dentro de sua própria língua, possibilitando-lhe escolher a forma mais adequada a cada momento de comunicação. Desta forma, é incoerente concordar com formas de ensino que reduzem a uma única variedade, mesmo que se trate da variedade socialmente prestigiada. É o caso da gramática normativa que contempla apenas um uso da língua (e os outros?). Ela não pode, e não deve, ser encarada como o único instrumento de tratar a língua. 1561 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais As descobertas da sociolinguística variacionista, com as noções de variação e mudança, a valorização do uso linguístico e do usuário da língua (cf. Labov, 1972, 1994, 2001) propiciaram, conforme aponta Neves (2004, p.18), uma nova maneira de se trabalhar com a língua portuguesa e consequentemente com a gramática. Nessa linha, o objeto de estudo escolar é a língua (abrigando um conjunto de variantes), sob a consideração de que é em interação que se usa a linguagem. Dentro do funcionalismo, refletindo sobre o tratamento da disciplina gramática na escola, de acordo com a autora, há duas proposições relevantes: a primeira parte de Dik (1989) “que se fixa particularmente na visão da interação verbal por via dos usuários, preocupando-se em valorizar o papel da expressão linguística na comunicação, e, por isso mesmo, dedicando-se a prover uma formalização generalizante dos usos”. Dik, assim, estabelece o valor das expressões linguísticas dentro de um “modelo de interação verbal”, isto é, de um esquema efetivo e pleno da interação no evento de fala, aí envolvidos os participantes, sua natureza, sua história, suas habilidades, suas intenções etc. A segunda proposição tem inspiração em Halliday (1976), teórico que se fixa particularmente na noção de função como o papel que a linguagem desempenha na vida dos indivíduos, e refere-se ao fato que as expressões linguísticas só terem sua pertinência avaliada dentro da tensão que se estabelece entre as determinações do sistema e as possibilidades e decisões de escolha. Postula-se, pois, sobre a base funcionalista, uma moldura pragmática que governa a interação e que produz sentido, tanto na ponta da produção como na da recepção, ambas ativas e criativas. Quanto ao modelo de interação verbal, caracterizador das próprias relações humanas, o que fica evidente é um esquema equilibrado e auto-sustentado. E é exatamente pela adaptabilidade do sistema sempre em acomodação que a língua apresenta um caráter dinâmico e variável. Assim, sob a ótica funcionalista, o falante, de acordo com a necessidade de construir seu discurso de modo a ser entendido, organiza, no momento da comunicação, os recortes da língua. Sensível e adaptável que é ao uso, a gramática não tem existência autônoma, isto é, existe apenas em uso, pois o que não é dito, repetido, experienciado não faz parte dela. As inovações gramaticais ou qualquer expressão linguística não podem ser, assim, analisadas sem que se tenha em mente que elas realizam funções não 1562 Iara Ferreira de Melo Martins apenas das intenções e das informações transmitidas pelo falante, mas também das informações pragmáticas do destinatário e do seu conhecimento a respeito das intenções do emissor. Conforme Rios de Oliveira e Coelho (2003), os PCNS - Parâmetros Curriculares Nacionais trazem propostas com uma vertente funcionalista ao se trabalhar, por exemplo, com exercícios de reescritura de textos. Nos PCNS (2002), ainda encontramos as seguintes observações já ancoradas nas teorias linguísticas da sociolinguística variacionista e do funcionalismo: i) o professor de língua portuguesa deve ser consciente que seus alunos trazem variações linguísticas, ou seja, várias formas de dizer a mesma coisa, que representam sua origem regional, de gênero, faixa etária, socioeconômica, devendo, assim, ter um respeito maior à diversidade social e regional do aluno; ii) o professor ao avaliar a linguagem dos alunos, em vez de uma atitude “corretiva” deve, por exemplo, mostrar que existem diferenças (variedades) e não “erro”, pois não existe apenas uma forma de se falar o português; iii) o professor deve ter em mente a concepção de língua enquanto lugar de interação e a escola a responsável pela reflexão sobre a língua materna; iv) o professor deve estar preocupado em formar “cabeças pensantes” que saibam entender e se expressar em diferentes ambientes (não basta saber falar e escrever corretamente - é preciso dominar a linguagem para participar da vida social). Infelizmente, pela falta de um suporte teórico de reflexões como o resumido acima, a escola promove ações que possibilitam o bloqueio ao pleno uso da capacidade linguística natural do falante. A valorização de apenas uma variedade da linguagem (padrão) é, com efeito, uma forma institucionalizada de imposição e que, por isso, adquire o direito de ser a língua. Desta forma, alguns pressupostos da sociolinguística variacionista e do funcionalismo linguístico podem, e devem, auxiliar o professor no ensino da gramática, no questionamento e na modificação dos rumos de sua postura pedagógica. Concluindo, por enquanto.... Não há novidade alguma nas críticas ao modelo estanque de análise linguística presente nos compêndios gramaticais. Neste artigo, entretanto, procuramos 1563 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais mostrar como pode ser tratado o ensino de gramática, na escola, em uma perspectiva de língua(gem) enquanto lugar de interação. A prática dessa abordagem reclama uma mudança de postura do professor de Língua Portuguesa, especificamente de gramática, que deverá ter conhecimento de linguística e adotar uma “nova” concepção de linguagem. A gramática, como disciplina escolar, terá de ser entendida como explicitação do uso de uma língua particular historicamente inserida. Assim, estudar a língua materna é, acima de tudo, refletir historicamente sobre essa língua para chegar, por ela, à explicitação do seu funcionamento e do próprio funcionamento da linguagem. O produto final de uma gramática escolar, respaldada no real funcionamento da linguagem, há de derivar da hipótese de que é antinatural a utilização de “correção” para estabelecimento de que seja padrão linguístico a ser perseguido pela escola. As reflexões apresentadas não esgotam o tema, resultam, apenas, na busca de alternativas de como ensinar gramática de modo a torná-la útil, reflexiva em razão do desconsolo geral dos professores que ensinam gramática e não conseguem apontar nenhum real proveito de seus alunos com esse ensino. Acreditamos, desta forma, na contribuição da sociolinguística variacionista e do funcionalismo linguístico para o ensino de gramática na escola, pois cremos que, conhecendo alguns dos seus pressupostos, os professores podem dispor de mais um instrumento útil para erradicar, enfim, o ensino de gramática como mero exercício de metalinguagem. Referências CAMACHO, R. Gomes. Sociolinguística. IN: MUSSALIM F. & BENTES, A C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001, p.49-76. COSTA, Sônia B.B. Funcionalismo e Ensino de Língua Materna. In: CHRISTIANO, M.E.; SILVA, C. R. HORA, D. (Orgs.) Funcionalismo e Gramaticalização: teoria, análise e ensino. 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Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 2001. 1565 RESUMO Adotando uma perspectiva qualitativa, elegemos como objeto de reflexão o ensino do sujeito posposto, sob uma perspectiva funcionalista. Neste trabalho, apresentamos uma breve discussão sobre os pontos convergentes entre as propostas de objetivos de língua portuguesa para o ensino Fundamental e Médio, contidas nos PCN, e os pressupostos básicos do funcionalismo linguístico norte-americano. Além disso, sintetizamos algumas das contribuições dessa linha teórica para o ensino de língua, destacando, entre elas, a defesa de que a análise de tópicos gramaticais seja realizada levando-se em conta o contexto efetivo de comunicação, uma vez que o funcionalismo entende a língua como uma estrutura maleável, consolidada pelo uso e suscetível a mudanças constantes. Em seguida, descrevemos propostas funcionalistas para a ordem dos termos em uma oração: considerando-se que não organizamos aleatoriamente nosso discurso, a ordenação de elementos – no caso deste trabalho, a colocação do sujeito após o verbo – pode ser motivada por fatores de natureza gramatical e discursiva. Dessa maneira, pretendemos fundamentar nosso trabalho para, então, avaliar algumas ocorrências de sujeito posposto, tendo como corpus artigos publicados no jornal Tribuna do Norte (RN). Por fim, propomos estratégias produtivas para o tratamento, em sala de aula, dos contextos em que o sujeito posposto é comumente abordado no ensino de língua portuguesa, isto é, concordância verbal com sujeito posposto e voz passiva pronominal – caso em que a oração se apresenta obrigatoriamente com sujeito posposto. Palavras-chave: Ensino de língua portuguesa, Funcionalismo e ensino, Sujeito posposto. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino SUJEITO POSPOSTO E ENSINO: UMA PERSPECTIVA FUNCIONAL Gabriela Fernandes Albano (UFRN) Introdução O Ensino de Língua Portuguesa na escola há tempo muito contempla a ideia de que a língua funciona de forma separada de seu contexto. Embora esse modo de ver a língua já venha sendo bastante discutido, não são raros os casos em que o ensino de língua se relacione apenas a um emaranhado de regras que, em sua maioria, em nada está ligada a maneira como os falantes usam a língua. Por outro lado, de forma dinâmica, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) trazem excelentes propostas para o ensino de Língua Materna na educação básica, tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental. O problema com que se deparam os professores se encontra em como pôr em prática as propostas apresentadas no texto dos PCNs, visto que muitos deles ainda têm em mente um ensino de forma tradicional, sem uma reflexão a respeito da língua na vida e na sociedade. Diante dessa realidade, temos como objetivo discutir uma nova perspectiva de ensino, baseada nos pressupostos da linguística funcional. O funcionalismo vê a língua como uma entidade social e cognitiva relativamente maleável, moldada no dia-a-dia e afetada pela frequência de uso das formas linguísticas (HOPPER, 1998). Tendo em vista essa definição, defendemos um ensino de língua que tenha como objeto principal o texto, oral e escrito, e que priorize a inves- 1567 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais tigação das variadas funções desempenhadas pelos elementos linguísticos em contextos de uso distintos. O presente artigo se encontra organizado da seguinte forma: na primeira seção, traçamos pontos convergentes entre pressupostos funcionalistas e os objetivos para o ensino de língua portuguesa no Ensino Fundamental e Médio, traçados pelos PCN. Em seguida, apresentamos como a linguística funcional aborda a ordenação dos constituintes na sentença, levando em consideração que não organizamos aleatoriamente nossos discursos. Na terceira seção, aplicamos hipóteses relacionadas a fatores estruturais e discursivos a amostras de sujeito posposto retirados de artigos publicados no jornal Tribuna do Norte (RN). Por fim, fazemos uma relação entre sujeito posposto e tópicos gramaticais relacionados, concordância verbal e voz passiva pronominal, com o ensino de língua portuguesa, sob uma ótica funcional. PCN e os pressupostos funcionalistas: de que forma essa corrente pode contribuir para o ensino de língua O ensino de língua portuguesa, em sua grande maioria, ainda preserva traços de uma tradição pautada em princípios normativos, em que são privilegiados critérios de correção gramatical. Com efeito, é comum, nas escolas, que haja a divisão do estudo de língua nas disciplinas de Gramática, Redação e Literatura. Essa divisão leva ao desmembramento do conhecimento linguístico, no qual cada disciplina é vista como autônoma. Mais do que isso, dissemina a ideia de que as aulas de língua portuguesa são aulas de gramática, nas quais conceitos, regras e categorias gramticais são apresentados como blocos fechados e por meio de frases isoladas e descontextualizadas. Oliveira e Cezario (2007) comentam esse tratamento tradicional, pautado em uma concepção aristotélica, segundo a qual as classes gramaticas são apresentadas de forma estática, absoluta e bem definida; como quando se lida com pronome, verbo, advérbio, substantivo, entre outros, como conjuntos fechados e sem interseção. Esse tratamento exclui do contexto escolar estratégias linguísticas criativas e inovadoras, de conhecimento 1568 Gabriela Fernandes Albano dos alunos, levando a um distanciamento e falta de identificação dos alunos com a língua portuguesa. Longe disso, as aulas de português, como salienta Tavares (2013), devem estimular os alunos a se tornarem usuários-estudiosos da língua, levando a uma vivência da língua na prática e dentro de seu contexto real de uso, mas, acima de tudo, fazendo com que os alunos reflitam sobre ela. Nesse sentido, a autora destaca o papel do professor como um orientador do processo de construção e reconstrução do conhecimento gramatical de seus alunos, levando a utilização da língua em suas mais variadas possibilidades. Essa perspectiva é contemplada nos PCN, que prevê que sejam estimuladas, nos alunos, disposições e atitudes como pesquisar, selecionar informações, analisar, sintetizar, argumentar, negociar significados, cooperar, de forma que o aluno possa participar do mundo social, incluindo-se aí a cidadania, o trabalho e a continuidade dos estudos. (PCN, 2000, p. 5) A fim de atingir esse objetivo, é preciso sair do ensino conservador e trazer para a sala de aula as contribuições das novas teorias linguísticas. Porém, ao se referir à inserção dos estudos e pesquisas linguísticas no âmbito das práticas pedagógicas, Bagno (2007, p. 14 apud CARVALHO, 2008, p. 86) ressalta que: quando se sai da esfera acadêmico-científica e se entra na sala de aula da grande maioria das escolas brasileiras, o que ainda se encontra é uma prática pedagógica de ensino de língua que revela pouca ou nenhuma influência das novas perspectivas de abordagem do fenômeno da linguagem. Entretanto, os PCN já salientam a importância da incorporação não só das contribuições dos estudos linguísticos, como também de outras áreas do conhecimento que, de certa forma, dialogam com o ensino-aprendizagem da língua. As condições atuais permitem repensar sobre o ensino da leitura e da escrita considerando não só o conhecimento didático acumulado, mas também a contribuição de outras áreas, como a psicologia da aprendizagem, a psicologia da educação e as ciências da linguagem. O avanço dessas ciências possibilita receber contribuições tanto da psicolinguística 1569 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais quanto da sociolinguística; tanto da pragmática, da gramática textual, da teoria da comunicação, quanto da semiótica, da análise do discurso. (PCN, 2000, p. 21-22) Consoante aos PCNs, uma alternativa ao ensino tradicional e uma maneira de inserir nas práticas escolares as contribuições das novas teorias linguísticas são os postulados da Linguística Funcional, mais especificamente, da corrente norte-americana. O funcionalismo orienta o ensino de língua materna baseado no funcionamento da língua em efetiva comunicação, partindo da perspectiva de que a língua é uma estrutura maleável (cf. BANDOLI; LUQUETTI, 2012). Dessa forma, acreditamos que essa vertente tem muito a acrescentar no ensino-aprendizagem de língua, visto que pauta suas investigações em dados reais de comunicação – oral ou escrita –, estudando fatores linguísticos e extralinguísticos que possam interferir no uso. Assim, a língua pode ser compreendida a partir de uma reflexão coerente, e não segundo um conjunto de regras e conceitos aplicados a frases descontextualizadas. Nessa ótica, Furtado da Cunha e Tavares (2007) propõem um ensino de língua capaz de apresentar uma perspectiva pedagógica baseada no estudo da língua em seu contexto real de uso, levando em consideração as variações a que está sujeita. Assim, aliada à concepção de língua nos PCNs como “um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade” (PCNs, 2000, p.24) e linguagem como uma “forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica” (PCNs, 2000, p. 23), as autoras têm a seguinte concepção de língua: A concepção por nós defendida é a de língua enquanto atividade social enraizada no uso comunicativo diário e por ele configurada. A língua é determinada pelas situações de comunicação real em que falantes reais interagem e, portanto, seu estudo não pode se resumir à análise de sua forma, já que essa forma está relacionada a um significado e a serviço do propósito pelo qual é utilizada, o que depende de cada contexto específico de interação. (FURTADO DA CUNHA; TAVARES, 2007, p. 14) A partir das citações apresentadas, percebe-se uma aproximação das concepções de língua e linguagem dos PCNs e da concepção de língua para as auto- 1570 Gabriela Fernandes Albano ras. Em ambas as propostas, a língua não é vista como um organismo autônomo, mas como produto e instrumento da interação social, de comunicação, de expressão, de todos os tipos de manifestação humana. Ademais, Oliveira e Cezario (2007) salientam que, com a nova orientação, os PCNs apontam o texto como locus, seja na modalidade escrita ou oral, das aulas de língua portuguesa. O texto, portanto, é caracterizado como manifestação verbal, um todo de sentido e forma, e é em torno do texto, de sua diversidade de formas e funções, que devem ser concentradas as atividades de ensino-aprendizagem (cf. OLIVEIRA; CEZARIO, 2007). Nessa perspectiva, o processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa pressupõe o desenvolvimento de competências necessárias para tornar o aluno um usuário autônomo e capaz de participar efetivamente das situações de interlocução. Muito mais do que isso, é preciso também torná-lo um bom produtor de textos, orais ou escritos, formais ou informais, “já que é através dos diferentes textos materializados em diversos gêneros que esses usuários estabelecem suas interações comunicativas” (BANDOLI; DETOGNE; LUQUETTI, 2014, p.3). Portanto, o ensino de gramática precisa fazer parte do desenvolvimento e aprimoramento da competência comunicativa dos alunos; sendo assim, não se pretende abolir o estudo da gramática, mas alinhar esse estudo à concepção de gramática defendida por Neves (2009): “um sistema de princípios que organiza os enunciados, pelo qual, naturalmente, os falantes nativos de uma dada língua se comunicam nas diversas situações de uso”. Segundo o funcionalismo, as situações de uso motivam a estrutura gramatical, sendo a gramática um produto da regularização de estratégias discursivas. Todos os falantes de uma língua compartilham desse conhecimento gramatical, o que exige que a escola explore tais estratégias e torne-as objeto de reflexão para os alunos. Sobre os conteúdos gramaticais, com o texto sendo o objeto de estudo das aulas de língua portuguesa, os PCNs apontam um realinhamento, no qual esses conteúdos deixam de ser o foco, o tópico principal das aulas, porém sem serem banidos. Oliveira e Cezario (2007) comentam que as chamadas aulas de gramática passam a integrar um conjunto maior de atividades de análise e reflexão sobre a língua. Ou seja, esses conteúdos são transmitidos como suporte e subsídios para as práticas de leitura e (re)produção de textos. Portanto, os conteúdos 1571 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais gramaticais a serem trabalhados devem estar em consonância com as produções textuais. Segundo os PCNs, deve-se ensinar: apenas os termos que tenham utilidade para abordar os conteúdos e facilitar a comunicação nas atividades de reflexão sobre a língua, excluindo-se tudo o que for desnecessário e costume apenas confundir os alunos. (PCN, 2000, p. 90) Entretanto, não se deve excluir do ensino os componentes referentes à norma culta. Os alunos precisam também, porém não exclusivamente desse conhecimento (cf. BANDOLI; DETOGNE; LUQUETTI, 2014). A norma culta deve ser transmitida como uma das possibilidades de uso da língua, adequada a certos contextos da comunicação, mas não a todos; deve ser um conhecimento a mais para o aluno e não uma imposição. Essa visão encontra eco nos PCNs da seguinte maneira: No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da forma de falar a utilizar, considerando as características e condições do contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo; saber que modo de expressão é pertinente em função de sua interação enunciativa, dado o contexto e os interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de utilização adequada da linguagem. (PCNs, 1998, p. 31) Surge nesse trecho dos PCNs um ponto muito importante, e também comum ao funcionalismo, que é a contemplação, em sala de aula, da modalidade oral. A escola, de modo geral, privilegia a modalidade escrita em detrimento da oral. Todavia, segundo as orientações dos PCNs, deve-se haver não só uma reflexão, a fim de se evitar o preconceito linguístico, como a produção de “textos orais nos gêneros previstos para o ciclo, considerando as especificidades das condições de produção” (PCNs, 1998, p. 96), pois, além de geralmente os textos orais não serem fonte de reflexão e objeto de estudo das aulas de língua portuguesa, eles são esquecidos como gêneros de efetiva utilização nas situações de comunicação. 1572 Gabriela Fernandes Albano Dessa forma, gêneros produtivos como o debate, o seminário, a peça de teatro, dentre outros, são pouco ou quase nunca utilizados. Por fim, Oliveira e Cazario (2007, p. 93) apontam como outra correspondência entre os PCNs e o funcionalismo a consideração de que o uso linguístico combina estratégias mais regulares e sistemáticas – de caráter mais geral e coletivo – a usos criativos e de caráter mais pessoal. Esses conceitos são postulados no funcionalismo como gramática, na primeira definição, e discurso, na segunda. Portanto, segundo as autoras, tanto para os PCNs quanto para o funcionalismo, as práticas linguísticas, materializadas na forma de produções textuais, configuram-se como atividades que mesclam usos gramaticais e fixos e expressões mais criativas e discursivas. Uma vez que não há como deixar de articular aspectos morfossintáticos com aspectos semânticos, discursivos e pragmáticos, um postulado básico do funcionalismo é a estreita relação entre gramática e discurso, como sinaliza Neves (2001, p. 17 apud BANGOLI; LUQUETTI, 2012, p. 4): “o discurso conforma a gramática, mas principalmente porque ele não é encontrável despido de gramática”. Ou seja, ao mesmo tempo em que o discurso dá forma e modifica a gramática, a gramática supre o discurso de elementos. Complementando essa relação, Furtado da Cunha e Tavares (2011, p. 19 apud BANGOLI; LUQUETTI, 2012, p. 4) sintetizam: “a morfossintaxe tem a forma que tem em razão das estratégias de organização da informação empregadas pelos falantes no momento da interação discursiva”. É a partir da combinação dessas duas instâncias, gramatical e discursiva, que surge o conceito de língua, comum tanto aos PCNs quanto à linguística funcional. Em ambos, como foi exposto, a língua é tratada como uma estrutura parcialmente maleável, combinando, a todo momento, elementos de maior fixação e rigidez e outros elementos sujeitos a pressões de natureza situacional, discursivo-pragmática (cf. OLIVEIRA; CEZARIO, 2007). Após defender a linguística funcional com uma alternativa produtiva e possível para se trabalhar com o ensino de língua portuguesa, e mais do que isso, mostrar os pontos convergentes entre essa teoria e os objetivos propostos pelos PCNs para o ensino de língua nos níveis fundamental e médio, abordamos, a seguir, a ordem dos constituintes na sentença, mais especificamente, o sujeito 1573 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais proposto. Discutimos as propostas funcionalistas para a posposição do sujeito, baseadas no pressuposto de que não organizamos aleatoriamente nosso discurso, sendo nossas escolhas linguísticas condicionadas por fatores de natureza gramatical e/ou discursiva. Ordem dos constituintes na sentença: o sujeito posposto O funcionalismo linguístico norte-americano, como vimos anteriormente, defende que a língua é fortemente influenciada pelo uso, moldada no dia-a-dia e afetada pela ocorrência das formas linguísticas, em diferentes contextos, em termos que frequência de uso (HOPPER, 1998). No momento da interação, os falantes se esforçam para entenderem e serem entendidos; assim, novos formas de estruturação do discurso podem surgir a partir de estratégias criativas dos falantes para melhor se comunicarem. As estratégias comunicativas utilizadas nessa interação, se frequentemente repetidas, podem se rotinizar e passar a fazer parte da gramática de uma língua (cf. TAVARES, 2012). Sendo assim, o funcionalismo defende a importância de se estudar a língua inserida em seu contexto comunicativo. Portanto, para essa vertente teórica, a gramática é uma entidade dinâmica e emergente, suprindo as necessidades comunicativas dos falantes no momento da interação. Hopper acrescenta: “[...] as estruturas estão constantemente sendo modificadas e negociadas durante o uso” (HOPPER, 2011, p. 28). Desse modo, a língua é vista como maleável e suscetível a mudanças. Sob essa ótica, o uso motiva a estrutura gramatical e, posto que há essa forte relação entre discurso e gramática, Furtado da Cunha e Tavares (2007, p. 16) salientam que “não estruturamos aleatoriamente nosso discurso: a escolha e a ordenação dos elementos linguísticos é, em última análise, orientada pelas diversas funções que a língua é convidada a desempenhar”. O posicionamento dos constituintes no português tem relevância sintática, uma vez que tende a marcar a função sintática dos elementos em uma sentença; no entanto, também apresenta relevância discursivo-pragmática, já que marca na estrutura as estratégias discursivas e intenções pragmáticas do falante. O 1574 Gabriela Fernandes Albano português é classificado como uma língua SV (sujeito-verbo), ou seja, com tendência de posicionar o sujeito antes do verbo. Considera-se a ordem SV como não marcada com base na sua grande frequência de uso; por sua vez, a ordem VS (verbo-sujeito) é tida como excepcional, pouco frequente, e, por isso, marcada (cf. PEZATTI; CAMACHO, 1997). Porém, embora seja uma construção marcada, não é raro encontrar construções em que o sujeito apareça posposto. Botelho (2010) comenta sobre considerar o português como uma língua SVO quanto à ordem dos termos levando em consideração uma oração bimembre (com dois termos essenciais: sujeito e predicado). Segundo o autor, essa definição limita as possibilidades de colocação do sujeito e não leva em conta a grande incidência de outras formações. Ao descrever as diversas ordens estruturais do português e comparar a incidência da estrutura tópico-comentário, na qual o tópico nem sempre coincide com o sujeito, com a estrutura sujeito-predicado, Botelho (2010) apresenta contextos em que a colocação do sujeito após o verbo causa uma ambiguidade – é o caso da estrutura sintática com um verbo transitivo direto. Todavia, o autor apresenta vários contextos em que a posposição do sujeito ou não gera duplo sentido, ou é obrigatória. Quanto ao contexto em que a posposição é permitida, por não gerar ambiguidade, temos as estruturas com sujeito intransitivo. Em relação aos contextos obrigatórios, temos estruturas com o verbo “parecer”, que obrigatoriamente exige um sujeito oracional – uma oração subordinada substantiva, em que a ordem “normal” é a VS – a ordem SV, nesse caso, constitui ênfase. Outro caso de obrigatoriedade acontece com a estrutura de voz passiva pronominal. Alguns outros contextos efetivos com o sujeito pós-verbal são os das expressões com os verbos “urge”, “convém”, ou construções do tipo “sabe-se”, “fala-se”, “é necessário” e “vale lembrar”. Portanto, esses casos e outros, segundo Botelho (2010, p. 48), comprovam que a ordem VS é bastante incidente no português brasileiro. De fato, vários são os estudos que tomam o sujeito posposto como objeto de pesquisa. Por exemplo, Naro e Votre (1999) consideram que as ordens VS e SV sejam variantes em distribuição complementar: em contraste com os sujeitos antepostos, os sujeitos pospostos são marcados por menor relevância discursiva, introduzindo uma informação nova de importância secundária. Na mesma linha, Huffman (2002) defende que o sujeito posposto apresenta uma função 1575 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais focalizadora no sentido de indicar para o interlocutor que seu referente está fora do foco, isto é, não merece atenção especial. Abraçado (2013) estuda as ordenações SV e VS em uma perspectiva diacrônica de aquisição de fala, com dados que foram retirados da fala de 15 crianças, de um ano e seis meses a seis anos de idade, e relaciona a posposição do sujeito a categorias funcionalistas como plano discursivo (predominância em plano de fundo) e transitividade enquanto um complexo de traços sintático-semânticos (predominância em orações de menor transitividade). Hipóteses e ocorrências do sujeito posposto Em uma abordagem de cunho funcionalista, os fenômenos linguísticos são explicados através de princípios, propriedades e motivações de natureza cognitivo-comunicativa. Dependendo do fenômeno investigado, podem atuar princípios como o da iconicidade, da marcação linguística, da coerência temática etc. (cf. GIVÓN, 1995). Com efeito, sob essa ótica e, por se tratar de um estudo da ordem dos constituintes, os fatores discursivos devem ser observados. Cezário, Machado e Soares (2012) defendem esse ponto: As intenções comunicativas, o conhecimento de mundo partilhado entre falante e ouvinte e a visão subjetiva do falante a respeito do assunto ou fato apresentado não são deixados de lado na pesquisa dessa corrente. Assim fatores discursivos, cognitivos e interacionais, além dos estruturais, são relevantes para se explicar determinado uso linguístico. (CEZÁRIO; MACHADO; SOARES, 2012, p. 187). Apresentamos, então, uma análise pautada em quatro fatores que podem motivar a colocação do sujeito após o verbo, sendo dois fatores estruturais e dois fatores discursivos. Os fatores estruturais são: extensão do sujeito e equilíbrio sintático. Por sua vez, os discursivos são: status informacional do referente do sujeito posposto (novo, evocado (velho), inferível/disponível) e relevância discursiva, se primária ou secundária. Abordamos os quatro fatores em dois grupos, cada um com um fator estrutural e um discursivo sobrepostos. Optamos por essa forma de apresentação para ilustrar o fenômeno de posposição do sujeito, embora em pequena escala, 1576 Gabriela Fernandes Albano pois temos consciência de que apenas um fator não condiciona um fenômeno linguístico. E, em se tratando de uma exposição de cunho qualitativo, destacamos dados que mostram a ocorrência de dois fatores em conjunto. Dessa forma, tratamos primeiro do equilíbrio sintático e da relevância discursiva do SN sujeito, em seguida da extensão do SN sujeito e do status informacional do sujeito. Para a compreensão da nossa abordagem, faz-se necessário o conhecimento de um princípio funcionalista, o da iconicidade, e de duas propriedades funcionais da língua que são frequentemente alvo de estudos dessa corrente teórica, informatividade e contrastividade. Destacamos essas duas propriedades por serem elas a base para a compreensão dos dois fatores discursivos que aqui recebem destaque. O princípio da iconicidade prevê uma ligação não arbitrária e a existência de uma relação isomórfica, de um para um, entre a forma linguística e a função por ela desempenhada (BOLINGER, 1977 apud ABRAÇADO, 2003). A informatividade refere-se ao conhecimento (supostamente) compartilhado por interlocutores, e se manifesta discursivamente a partir de estratégias que envolvem a ordenação dos constituintes na frase, a sintaxe de referência e o status informacional (novo, evocado (velho), inferível, disponível). A contrastividade é responsável pela organização geral do discurso, com a estruturação da informação em tópicos e subtópicos, bem como por elementos que são postos em relevo no interior de cada tópico ou subtópico, valendo-se de estratégias ligadas à topicidade, à sintaxe de referência e à ordenação, entre outras. Com relação ao corpus do qual extraímos os dados, optamos pela modalidade escrita e reunimos como fonte de dados artigos publicados no jornal Tribuna do Norte (RN), pois, segundo Berlink et al. (2014, p. 266), “o vínculo que mantém com a realidade social, condição de sobrevivência para o jornal, determina que os textos sejam dinâmicos, podendo, em certo grau, refletir a dinamicidade da língua”. Excluímos da amostra de dados aqueles que envolvem contextos obrigatórios de posposição do sujeito, comentados na seção anterior. Acreditamos que esses contextos não mostram com clareza a influência dos fatores estruturais e discursivos, uma vez que a estrutura VS é fixa. Nossa abordagem é qualitativa, ou seja, não temos como objetivo quantificar a influência de cada fator sobre o fenômeno analisado; pretendemos apenas 1577 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais tratar de algumas possibilidades de emprego da ordem VS no português brasileiro e exemplificar, a partir do nosso corpus, casos que comprovem as hipóteses funcionalistas para a posposição do sujeito. Equilíbrio sintático e relevância discursiva do SN sujeito Apresentamos, inicialmente, hipóteses para a influência dos fatores relevância discursiva e equilíbrio sintático do SN para a colocação do sujeito após o verbo. Ao final, apontamos como esses dois fatores se relacionam. Quanto à relevância discursiva do SN sujeito, Naro e Votre (1989 apud PAIVA, 2011) consideram que, diferente dos sujeitos antepostos, os sujeitos pospostos se caracterizam por uma baixa relevância discursiva, logo introduzem uma informação secundária. Nessa mesma perspectiva, Huffman (2002) comenta como sendo uma particularidade discursiva do sujeito posposto a de situar um referente fora do foco, isto é, sinalizar para o interlocutor que tal referente não tem relevância particular para o discurso. Para que o sujeito esteja fora de foco, outro termo deve ser o foco do discurso e, assim, ocupar o lugar de tópico. Botelho (2010), em seu estudo sobre a diferença entre as estruturas sujeito-verbo/verbo-sujeito e tópico-comentário, defende que o português brasileiro se caracteriza muito mais como uma língua de estrutura tópico-comentário, do que propriamente SV, como mais comumente é classificada. Seguindo essa linha, o tópico de uma sentença nem sempre é o sujeito. O autor apresenta algumas diferenças entre o sujeito e o tópico, sendo a principal delas o fato de o tópico, por não ser necessariamente argumento do verbo, não faz parte de sua grade semântica e pode não estabelecer concordância verbal. Sendo assim, a posição de foco/tópico de uma sentença pode ser ocupada por um elemento adverbial, por exemplo. Quanto ao fator estrutural, equilíbrio sintático, Votre e Santos (1984 apud CEZARIO; MACHADO; SOARES, 2012) postulam que, para manter o equilíbrio, os falantes tendem a colocar elementos na posição de sujeito quando este está formalmente ausente (sujeito oculto ou inexistente) ou deslocado para a posição pós-verbal. Apresentamos, abaixo, contextos de equilíbrio sintático devido à 1578 Gabriela Fernandes Albano posposição do sujeito; visto que uma característica deste é a relevância secundária, o tópico da sentença pode se deslocar para o início da sentença, ocupando a posição prevista para o sujeito. (1) “A eleição suplementar de Luís Gomes traz uma amostra do tensionamento do palanque de 2014. No encerramento da campanha da candidata Mariana (PMDB), lá estavam no palanque o ministro do Turismo Henrique Eduardo Alves e o deputado federal Walter Alves.” (TRIBUNA DO NORTE, ano 65, nº 082) (2) Hoje (1º), entra em vigor a resolução conjunta nº 640, [...].” (TRIBUNA DO NORTE, ano 65, nº 082) Nas ocorrências acima, tanto o fator estrutural, equilíbrio sintático, quanto o discursivo, relevância discursiva, atuam em conjunto: o sujeito posposto, discursivamente, não é a informação primária da sentença e, assim sendo, abre espaço para a colocação de elementos adverbiais na posição de tópico (destacados por nós em itálico), tanto para manter o equilíbrio quanto para ocupar a posição de tópico. Extensão do SN sujeito e status informacional No que se refere à extensão do SN sujeito, Paiva (2011) comenta que sujeitos mais longos e mais complexos admitem com mais facilidade a posposição, se comparados a sujeitos menores e menos complexos. Huffman (2002) comprava a hipótese de que a posposição desse elemento está associada a sua extensão e complexidade. Outros pesquisadores também já trouxeram evidências para esse contexto de favorecimento, a exemplo de Fuchs (2003) e Spano (2008) apud PAIVA, 2011. Relacionado a esse fator estrutural, encontra-se o status informacional do SN sujeito. Segundo Naro e Votre (1999), os SNs pós-verbais, no português brasileiro, estão, com maior frequência, relacionados à codificação de informação nova. Os autores classificam os referentes em: (i) novos, geralmente introduzidos 1579 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais pela primeira vez; (ii) inferíveis/disponíveis, quando, apesar de não terem sido mencionados no discurso, são com facilidade acessados, devido à ligação que têm com outros conceitos; e (iii) evocados (velhos), quando já foram mencionados no discurso. Com efeito, segundo Cornish (2001 apud PAIVA, 2011), a codificação de uma informação nova é a propriedade mais importante do SN sujeito pós-verbal. Com o intuito de ilustrar essas duas hipóteses, separamos alguns dados retirados de artigos publicados no jornal Tribuna do Norte (RN). Em todos eles, os SNs sujeitos tanto são extensos quanto introduzem uma informação nova no discurso. (3) “Para ontem a noite, no encerramento da campanha de Antonia (DEM), estavam sendo aguardados o deputado Galeno Torquato e o governador Robinson Faria.” (TRIBUNA DO NORTE, ano 65, nº 082) (4) “No acumulado do ano até agosto, foram comercializados 2,12 milhões de unidades de autos e comerciais leves, queda de 9,51% sobre o acumulado de janeiro a agosto de 2013, [...].” (TRIBUNA DO NORTE, ano 64, nº 139) Nessas ocorrências, podemos observar que os SNs sujeitos tanto codificam uma informação nova quanto são extensos e, por isso, mais complexos. Essa relação entre informação nova e codificação através de um SN mais extenso e complexo é explicada pelo princípio da iconicidade. Esse princípio tem como uma de suas características o subprincípio da quantidade, postulando que, quanto mais imprevisível (nova) for a informação para o interlocutor, maior será a quantidade de forma a ser utilizada (cf. GIVÓN, 1995). Ensino de tópicos gramaticais sob uma perspectiva funcionalista Várias são as possibilidades de se abordar o sujeito posposto no ensino básico. No nível sintático, temos a relação estabelecida entre esse termo e o verbo, podendo-se focar na questão da concordância verbal. Outra possibilidade, ainda no nível sintático, é a questão da posposição obrigatória do verbo em caso de voz passiva pronominal. 1580 Gabriela Fernandes Albano A concordância verbal com o sujeito posposto é, muitas vezes, para o aluno, uma dificuldade. As regras de concordância já confundem suas cabeças e, acrescido a isso, há a concordância com um elemento que não está na posição esperada. Essa dificuldade – estabelecer a concordância entre verbo e sujeito posposto – também ocorre na voz passiva pronominal, com o agravante de ser essa uma estrutura frasal invertida. Uma proposta que fazemos é, a partir do trabalho com o texto, provocar uma reflexão sobre os contextos em que a voz passiva se torna uma estrutura viável e com finalidade discursiva, e, ao fazer isso, mostrar os tópicos gramaticais relacionados, as peculiaridade sintáticas da voz passiva, a possibilidade de apagamento do agente e a concordância verbal com o sujeito posposto. As manchetes de jornal, por exemplo, são boas para se trabalhar a voz passiva; as manchetes costumam apagar o agente com o intuito de estimular o leitor a continuar lendo o texto. Dessa maneira, além de se trabalhar com textos produzidos com propósitos reais, inseridos socialmente em uma comunidade, pode-se também trabalhar as finalidades discursivas e as estratégias de estruturação gramatical do texto como um todo; bem como de que modo a manchete se relacionada com o desenrolar do texto. Nesse desenvolvimento, cabe também um pequeno trabalho de pesquisa – recomendado pelos PCN e encorajado pela perspectiva funcionalista. O professor pode sugerir que os alunos procurem a estrutura passiva em jornais e observem os elementos para a formação da passiva, bem como a concordância. Podendo, inclusive, ampliar essa pesquisa para o corpo do texto. Ao se estudar a voz passiva, inserida no contexto das manchetes de formal, pode-se, aos poucos, introduzir outros elementos gramaticais, como: índice de indeterminação do sujeito – para séries mais avançadas, ensino médio, por exemplo – e as diferenças com relação à passiva. Ampliando a atividade de pesquisa sugerida anteriormente, é possível pedir para que os alunos procurem também em manchetes índices de indeterminação do sujeito e diferencie essa construção da construção passiva, mostrando de que forma essas estruturas se ligam ao texto e participam da coesão e coerência deste. Diversos outros gêneros podem ser trabalhados em sala de aula, pois ao apresentar aos alunos gênero diversos, orais e escritos, formais e informais, o professor estimula o aluno a perceber diferenças de uso entre a modalidade es- 1581 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais crita e a fala, entre o estilo formal e o informal. Botelho (2010) comenta sobre a maior incidência de sujeitos pospostos na modalidade falada e em textos escritos mais próximos da oralidade, uma vez que a situação comunicativa permite o deslocamento de termos de sua ordem “natural”. Portanto, esse tipo de texto representa uma boa oportunidade de o professor trabalhar com gêneros orais em sala de aula – inclusive recomendado pelos PCN –, não só sobre esse tópico gramatical, mas com diversos outros, bem como de trabalhar com textos escritos de características menos formais. As funções discursivas são intrínsecas ao tratamento do sujeito posposto, podendo ser ressaltadas em atividades de leitura e de interpretação de texto, bem como em atividades de escrita. Na leitura, e, posteriormente, na interpretação é importante perceber de que modo as informações se relacionam entre si tanto em questão de apresentação de um conteúdo novo, ou retomada de um conteúdo já apresentado, quanto em questão de apresentação de uma informação de importância primária ou secundária. Como vimos, o sujeito posposto pode ser usado pelo professor como uma maneira de tornar claro para o aluno o fluxo de informação de um texto e as estratégias discursivas usadas na produção de um texto, que possibilitam a relação entre informações. Nesse ponto, o funcionalismo tem muito a contribuir em sala de aula, pois tem como uma de suas pedras basilares, como exposto na primeira seção deste artigo, o estuda das funções desempenhadas pelos elementos linguísticos, além de trabalhar com as relações linguísticas estabelecidas tomando o texto como uma estrutura macro, levando em conta relações de forma e função. Outro ponto a favor do funcionalismo é a possibilidade de se tratar, em sala de aula, estratégias discursivas para produção e interpretação de texto. Como viemos nos PCNs, a produção de texto, não só escrito como oral, é muito salientada, orientada e recomendada. Trabalhar, em sala de aula, com os textos produzidos pelos próprios alunos é uma atividade muito frutífera e pouco efetivada pelos professores. Fazer o aluno voltar para o próprio texto, reescrevê-lo e a partir daí tomar conhecimento de suas próprias estratégias e conhecer outras é uma atividade que desenvolve a competência linguística do aluno de duas formas: reflexão sobre sua própria escrita e o hábito da reescritu- 1582 Gabriela Fernandes Albano ra. Os alunos precisar perceber que a produção de um texto é um processo que requer, com frequência, que se volte várias vezes para revisão, com o intuito do aprimoramento. Considerações finais As atividades em sala de aula precisam favorecer a reflexão sobre a língua, buscando tornar os alunos competentes leitores e produtores de texto, como uma forma não só de conhecer sua própria língua, mas como uma maneira de inserção social e livre exercício de sua cidadania, pois é por meio da língua, concretizada na forma de textos orais ou escritos, que interagimos socialmente. Longe disso, a escola tem um desempenho ainda conservador com relação às práticas pedagógicas, voltado seu foco para as regras gramaticais, de forma normativo-prescritiva. Com intuito de mudar essa realidade, mostramos as convergências entre os objetivos para o ensino de língua no Ensino Fundamental e Médio nos PCNs e os pressupostos da linguística funcional. Alguns dessas convergências são: concepção de língua como entidade social, parcialmente maleável e não autônoma; o texto como o locus das atividades em sala de aula; a importância de se trabalhar com a língua falada e os gêneros orais em sala de aula; os conteúdos gramaticais como subsídios para as atividades de leitura e produção de texto, mas não como foco principal; dentre outros. A partir disso, propusemos um ensino de língua centrado na função dos constituintes, no texto e na língua em seu contexto real de uso. Como forma de ilustrar aspectos que podem ser levados em conta em um ensino de inspiração funcionalista, apresentamos uma análise qualitativa de fatores estruturais e discursivos envolvidos na colocação do sujeito após o verbo. Com base nisso, apresentamos propostas para lidar em sala de aula com tópicos gramaticais relacionados ao sujeito posposto. 1583 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Referências ABRAÇADO, J. 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São Paulo: Contexto, 2012. p. 33-51. 1585 RESUMO Neste trabalho, adotamos os postulados da teoria Linguística Funcional Centrada no Uso - LFCU, considerando a mudança linguística via discursivização e gramaticalização, numa perspectiva sincrônica. Tratamos do funcionamento da expressão agora na fala e escrita da cidade de Natal com amostras do corpus D&G (1998). Nosso objetivo é de analisar a multifuncionalidade que o agora exerce, por isso analisamos cada contexto de uso desse item circunstanciador conforme sua ocorrência e categorizamos os dados pelo seu espraiamento, variação e mudança. Com isso, na gramática de uma língua observamos que suas regularidades são decorrentes de pressões cognitivas e do uso, ou seja, um sistema aberto, fortemente suscetível às mudanças e intensamente afetado pelo emprego que lhe é dado no dia a dia. Nesse sentido, o estudo sobre o item agora na fala e escrita da cidade do Natal mostrou que, contrariando a visão tradicional que coloca todos os advérbios de tempo como elementos gramaticais, o agora apresentou nessa pesquisa outros usos e funções comparativamente considerados novos, o que ratifica os nossos objetivos e, desse modo, foi possível analisar os diferentes sentidos que o item lexical agora pode manifestar na fala e escrita dos informantes nos distintos gêneros que compõem o corpus D&G. Por fim, essa pesquisa fortalece o processo de gramaticalização que caracteriza as mudanças de funções dos fenômenos linguísticos marcados pelos elementos mórfico-sintáticos, semânticos e pragmáticos nos usos desse circunstanciador no momento de enunciação. Palavras-chave: Item agora, Gramaticalização, Discursividade, Funcionalismo, Variação e mudanças linguísticas. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino USO DO ITEM AGORA NA FALA E ESCRITA DA CIDADE DO NATAL Rosângela Maria Bessa Vidal1 Francisco Clébio de Figueiredo2 Ana Alice de Freitas Neta3 Introdução Neste trabalho, adotamos os postulados da teoria funcionalista norte-americana, denominada Linguística Funcional Centrada no Uso - LFCU, considerando a mudança linguística via discursivização e gramaticalização, numa perspectiva sincrônica. Tratamos do funcionamento da expressão agora na fala e escrita da cidade de Natal, dependendo das condições de uso da linguagem dos falantes do corpus D&G. Nosso objetivo é o de analisar a multifuncionalidade do circunstanciador agora, por isso foi analisado criteriosamente cada contexto de ocorrência e os dados categorizados com apoio em bibliografia especializada. Também realizamos uma pesquisa em gramáticas mais antigas, em gramáticas clássicas, em gramáticas descritivas do português, e, ainda, em trabalhos acadêmicos que abordam esta temática em perspectivas sincrônicas e diacrônicas, com a finalidade de 1. Docente do Programa de Pós-graduação em Letras - Departamento de Letras - CAMEAM - UERN - Pau dos Ferros/RN, Brasil - [email protected]. 2. Mestre em Letras (Aprovação com distinção) - Professor de Língua Portuguesa da rede Estadual de Ensino e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Funcionalista - GPEF - [email protected]. 3. Mestre em Letras - Professor de Língua Portuguesa da rede Municipal de Ensino e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Funcionalista - GPEF - [email protected]. 1587 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais compreender a flexibilidade de uso do item agora e, de acordo com a sua intenção comunicativa. Como objetivos específicos nesta pesquisa temos: a) estudar os usos do item agora em função dos fatores sociais (sexo e escolaridade) na fala e escrita da cidade do Natal; b) verificar as funções do item agora em relação às suas categorias morfossintáticas, sintáticas e pragmático-discursivas; c) destacar os aspectos polissêmicos do vocábulo agora na fala e escrita da cidade do Natal; d) discutir, à luz da teoria funcionalista, os usos/funções do item agora na fala e escrita da cidade do Natal. Abordagem teórica do funcionalismo linguístico A teoria funcionalista que norteia esta pesquisa e, recentemente, denominada como Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), baseia-se no uso da língua falada e escrita para subsidiar a investigação desses fenômenos linguísticos em situação concreta de intercomunicação. A LFCU é uma abordagem que seu objetivo consiste no fato de que a estrutura da língua emerge à medida que esta é usada, ou seja, em sua análise preocupa-se com os aspectos formais da língua como, também, com os fatores relacionados aos contextos comunicativos, semânticos, pragmáticos e discursivos. Com base em Givón (1995), a língua não pode ser descrita como um sistema autônomo porque a gramática só pode ser entendida por referência a parâmetros como cognição e comunicação, processamento mental, interação social e cultural, mudança e variação, aquisição e evolução, portanto, deve-se estudar a relação entre ambos. É dentro do uso da língua, mais especificamente, dos discursos e sob a influência de seus contextos que a gramática emerge e muda, e que ocorrem as variações e as mudanças, fatores indispensáveis para a construção e reconstrução da gramática. Nesse sentido, na gramática de uma língua observamos que as suas regularidades são decorrentes de pressões cognitivas e do uso, ou seja, um sistema aberto, fortemente suscetível às mudanças e intensamente afetado pelo emprego que lhe é dado no dia a dia. Assim, essa gramática é dinâmica, porque se molda a partir do discurso dos falantes, adequando-se ao seu uso, não sendo pré-esta- 1588 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta belecida, podendo decorrer de pressões cognitivas e de pressões de uso como, também, de pressões internas do próprio sistema gramatical. É a partir da língua em uso, que buscamos descrever o caráter multifuncional do item agora na fala e escrita da cidade de Natal, destacando assim, as funções desempenhadas por item lexical nos gêneros textuais que compõem o corpus D&G. Assim, entendemos que ao assumirmos um papel dinâmico da gramática, pressupomos que as línguas estão em constantes espraiamento de mudança, apresentam uma estrutura maleável, os seus usuários estabelecem uma interação comunicativa por meio da língua e, que lhe permite construir em seu texto/discurso uma adequação à situação comunicativa, podendo inseri com isso, nelas, o processo de gramaticalização. O agora no âmbito temporal e discursivo A expressão em análise tem merecido a atenção de vários autores nas discussões que envolvem as funções de advérbio temporal e conector/marcador discursivo. Nesse sentido, encontramos vários estudos do uso de agora como, por exemplo, em Niedzieluk (2004), as funções de contrastivo, retomador, avaliativo entre outras. Para Souza Júnior (2005), o agora pode ser um dêitico temporal como também um juntivo de causalidade, de contrajunção e de contraste. Philippsen (2011) inclui o agora em duas categorias a primeira, como dêitico e, a segunda, como conector de sequencializador, perífrase conjuncional causal/explicativa e marcador discursivo. Já, Rodrigues (2009) considera o circunstanciador linguístico/discursivo agora como advérbio temporal referindo-se ao momento presente, referência ao passado e referência ao futuro e ainda constata que esse item lexical desempenha a função de opositor, concluidor e retomador de tópico. Desse modo, mesmo conhecendo o número de pesquisas já realizadas por esses e outros autores e de tamanha relevância para os estudos da língua, acreditamos que as mesmas não esgotam por completo todos os dados de análise, uma vez que cada pesquisador privilegia algumas facetas funcionais do item agora. Desta forma, partindo do corpus D&G (1998) e de toda a sistematização dos diversos subsídios apresentados por esses estudiosos da língua, e tendo em vista nossa abordagem teórica da Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), em nossa pesquisa postulamos duas categorias do circunstanciador agora em ad1589 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais vérbio temporal e conector/marcador discursivo, destacando o espraiamento de funcionalidade desse item, sua variação e mudanças nos contextos discursivos e escritos dos gêneros textuais que compõem o corpus. Metodologia Para esta investigação, levamos em consideração os aspectos relevantes da sintaxe, da morfossintática, da semântica e da pragmática presentes nos dados da fala e da escrita dos informantes que foram coletados e transcritos cuidadosamente na cidade de Natal/RN. As amostras, que usamos do item agora, foram retiradas do corpus Discurso & Gramática – A língua falada e escrita na cidade do Natal, o qual se destina aos estudiosos da Língua Portuguesa e que se interessam em identificar, descrever os fenômenos de variações e mudanças presentes no uso da língua bem como oportuniza a identificação das formas mais raras, menos comuns em contexto real de ocorrências. Os dados, assim, que encontramos totalizaram em 182 ocorrências do agora distribuídos em depoimentos diferenciados e presentes nos cincos gêneros textuais orais e escritos, entre os quais citamos: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião, sendo que para cada nível de escolaridade encontramos quatro informantes e, entre esses quatros, um só informante oferece 10 textos, que são distribuídos proporcionalmente por sexo e pela escolaridade – classe de alfabetização – (6-7 anos); 5º ano do Ensino Fundamental – (9-13 anos); 9º ano do Ensino Fundamental – (14-17 anos); 3ª série do Ensino Médio – (16-19 anos) e Ensino Superior – (acima de 21). Tratamento dos dados Nosso corpus de análise, formado por 182 ocorrências do item lexical agora nos cincos níveis de escolaridade do corpus D&G (3º grau, 2º grau, 9º ano, 5º ano e classe de alfabetização) e catalogamos as amostras nos gêneros textuais (narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião), foram aspectos caracterizadores para considerarmos a funcionalidade desse item em duas subdivisões: agora advérbio temporal e agora conector/marcador discursivo. 1590 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta Essa subdivisão favoreceu a classificação das funções e usos do agora nas duas modalidades de fala e escrita dos informantes. Em relação aos usos de agora na fala dos informantes na subdivisão de agora advérbio temporal encontramos as seguintes funções de agora como temporal neste momento/momento atual, temporal tempo futuro, referência tempo passado e temporal época atual. Já na subdivisão de agora conector/marcador discursivo na fala dos informantes identificamos a partir das amostras as funções de contrastivo, anafórico/retomador, avaliativo, avaliativo de realce, aditivo, sequencializador, enfático, introdutor de turno, concluidor, relação causa/consequência, introdutor de digressão e juntivo de ressalva. Na parte escrita dos informantes, na categoria de agora advérbio temporal encontramos somente a ocorrência de temporal neste momento/momento atual e na categoria de agora conector/marcador discursivo localizamos as funções de enfático, aditivo, sequencializador, avaliativo de realce, anafórico/retomador e introdutor de turno. Esses resultados constatados no corpus D&G decorreram porque ambas as subdivisões apresentam a expansão funcional do item lexical agora tanto na fala como na escrita dos seus usuários o que confirma também o espraiamento de funções do item e, em consequência disso, causa maleabilidade e instabilidade de uso, variação e mudanças de sentidos tendo em vista o grau de informatividade estabelecido no momento de seu uso. Os dados foram coletados através do programa WordSmith Tools (SCOTT, 2008), uma ferramenta eletrônica de grande colaboração para os procedimentos com os dados dessa pesquisa, uma vez que possibilitou com maior agilidade a coleta das amostras dos usos do item agora. Após a coleta das amostras da análise com as ocorrências do item agora identificadas no corpus D&G, ressaltamos que esse estudo contribuiu para mostrar sua multifuncionalidade que pode assumir em certos contextos específicos, principalmente, na organização e na construção da fala e da escrita dos informantes do corpus escolhido para essa pesquisa. Categorias formais/funcionais do item agora na fala e escrita da cidade do Natal Apresentamos aqui os usos do vocábulo agora encontrados no corpus D&G a partir das ocorrências selecionadas na fala e escrita, acompanhadas de uma 1591 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais análise qualitativa dos dados catalogados. Nesta etapa de trabalho, destacamos ainda as possibilidades sintático-semânticas como também os aspectos pragmáticos do circunstanciador agora através de amostras do corpus em estudo o que caracteriza o seu deslizamento de funções. Contudo, em relação às amostragens dos dados, comprovam uma multifuncionalidade do item lexical agora e sua polissemia presente em sua trajetória de funções ao longo do estudo. Isso significa que o uso da língua passa por um processo de regularização em uma trajetória unidirecional – do discurso à gramática, do concreto para o abstrato. Nessa perspectiva, a gramática está num contínuo fazer-se, revelando-nos a relativa instabilidade da estrutura linguística. Assim, pelos dados registrados das ocorrências do agora na fala e na escrita dos informantes nos níveis de escolaridades do corpus D&G, apresentamos a seguir o deslizamento funcional desse circunstanciador e seus aspectos polissêmicos conforme os fenômenos linguísticos em estudo e, com isso, as diferentes funções dessa forma linguística presente na sincronia atual podem constituir novos usos desde os traços canônicos até os mais pragmático-discursivos. Agora advérbio temporal - Parte oral O agora, na função de advérbio temporal, é identificado, neste trabalho, da mesma forma que os gramáticos e o senso comum o consideram. É visto como advérbio de tempo e apresenta os seguintes traços de temporal neste momento/ momento atual, temporal referência tempo futuro, temporal referência tempo passado e temporal época atual. Temporal neste momento/momento atual Nessa função, o agora equivale semanticamente a temporal neste momento/momento atual, remete também ao tempo presente da ação enunciativa. Nesse sentido, identificamos os usos temporais que mostram a noção de tempo e as instâncias nas quais o agora faz em relação a uma remissão demonstrativa temporal e indica uma proximidade em relação ao momento exato da enunciação conforme amostra (01). 1592 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta (01) “I: ... são dois andares... são três andares... sendo que só funcionam dois... aí também só são salas de aulas... coordenação também... ( ) segundo ... primeiro andar coordenação de alguns cursos ... que eu num tô lembrado qual é agora quais são ...” (ITGDLPO, Corpus D&G, 1998, p. 36). Nessa amostra, agora atua como um dêitico temporal prototípico4 e, a partir disso, evidencia que os enunciados em que aparece o item lexical agora, só podemos entender completamente o que está sendo dito se estivermos presentes no momento da fala ou se reconstruirmos as circunstâncias da enunciação. Por outro lado, as referências abstratas dos informantes no momento de suas falas distribuem-se em dois momentos: o primeiro se refere ao temporal – quando o espaço é compreendido como dimensão de tempo e o segundo textual – quando os sentidos lógicos das falas dos informantes prevalecem. Assim, demonstra o deslizamento de sentido desse item lexical agora numa trajetória de crescente abstratização, passa do sentido mais concreto para o sentido mais abstrato e, com isso, delimita o ponto com o qual os informantes conseguem fazer referência as suas falas como também destacam a configuração expressiva de valor textual apresentada pelo agora, ou seja, a exata localização do falante no momento da fala seria o ponto dêitico, isto é, o ponto espacial e temporal em que o falante está situado seria o ponto dêitico da enunciação. Temporal referência tempo futuro O advérbio agora, nesse caso, é empregado em um tempo referido pelo falante com relação ao futuro. Esse uso, vinculado a um fato que ainda está para acontecer, pode ser observado nas passagens do corpus a seguir: (02) “E: você vai mexer agora só no céu?” (ITGRPPO, Corpus D&G, 1998, p. 146). 4. Entendemos, neste trabalho, o conceito de protótipo de acordo com Neves (1997, p. 138): “O protótipo é o membro que ostenta o maior número das propriedades mais caracteristicamente importante, e todos os demais membros devem ser classificados de acordo com o grau de semelhança com o protótipo, ou seja, de acordo com a distância do ‘pico protótipo’”. 1593 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Nessa passagem (02), o item agora usado pelo informante faz uma menção de um fato que acontecerá no futuro. Com isso, o elemento agora pode vir acompanhado de uma indicação temporal que especifica seu sentido de elemento indicador de tempo, como se pode notar pelo uso da locução verbal “vai mexer”, essa locução verbal possibilita a identificação da marcação de futuro. A construção agora + locução verbal permite implicar convencionalmente que a situação expressa pelos falantes refere-se ao futuro e situa explicitamente como o ponto a partir do qual avalia a proximidade ou o afastamento da entidade que o falante deseja situar no momento de comunicação. Destarte, essa especificidade de agora nos fornece os indícios necessários para explicar a multiplicidade funcional e categorial dessa forma, como também, sinaliza os eventos comunicativos num continuum espacial, orientando a atenção do ouvinte para pontos específicos do ato comunicativo. Temporal referência tempo passado O advérbio agora nesse caso, é empregado mencionando a um tempo referido pelo falante com relação ao passado. O uso dessa função é identificado a partir da construção agora + passado em que permite aludir formalmente que a situação atual de comunicação produzida pelo informante difere da situação passada. (03) “I: é:: o congresso que a gente foi a ... agora na ... semana santa ... não é? o congresso dos jovens batistas aqui de Natal ... a gente realiza de dois em dois anos ... é geralmente na semana santa ...” (ISGNEPPO, Corpus D&G, 1998, p. 270) Em (03), a amostra intensifica o que estamos tentando apresentar através da multifuncionalidade do item lexical agora, uma vez que pelos usos desse vocábulo e pelas condições de fatores intra e extralinguísticos podemos registrar o processo de polissemia ou de gramaticalização que vem passando o item lexical agora em tal função. Dessa forma, diferentemente da perspectiva apresentada pelo informante em sua fala, a construção de agora + passado numa posição pós-verbal “agora foi”, configura a possibilidade de que aspectos puramente formais como estes e, por conhecimentos pragmáticos partilhados pelo informante, contribuem forte1594 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta mente para o deslizamento funcional do agora por meio de um caráter semântico-pragmático num nível predominantemente proposicional e textual. Nessa perspectiva, o agora aponta para um processo de mudança linguística de caráter unidirecional no interior do qual, itens ou “construções lexicais” (Traugott, 2003) passa a exercer funções gramaticais, e, quando já gramaticalizados, podem assumir funções ainda mais gramaticais. Assim, é por assumir uma nova função na gramática da língua que se explica o surgimento de novas formas linguísticas a partir de questões pragmáticas e por associações metafóricas realizadas pelo falante. Temporal época atual O uso de agora como temporal época atual é o momento de enunciação produzido pelo falante referindo-se à época atual/contemporânea. Nesse sentido, o emprego do advérbio agora nessa categoria de análise direciona para uma interpretação de que o sujeito enunciador possibilita a interpretabilidade de “atualmente”. Vejamos a amostra (04). (04) “I: manicaca ... manicaca é gente feio ... gente feio ... horroroso ... eu não ... quero um bonitão ... fortão ... assim ... ai ... aí:: sim ... tem esse ... aí os pequeno é tudo pivetinho assim ... sim ... agora os homem de hoje olhe ... não tá prestando nenhum ... ó ... nem pra casar ... ninguém quer casar mais...” (I9ºAROPO, Corpus D&G, 1998, p. 352). Constatamos que a amostra (04) comprova a constante mudança impulsionada, essencialmente, pelas necessidades dos falantes em contextos específicos de comunicação como também o surgimento de novos valores que, longe de seus sentidos mais usuais, contribuem para a construção de novos sentidos que refletem a dinamicidade das ações e da interação humana. O uso de agora como temporal época atual é identificado pela presença do advérbio também temporal “hoje” na fala analisada em que o uso do mesmo consegue pautar as possíveis operações de referenciação apontadas pelos informantes durante o ato comunicativo. Dessa forma, o item agora vem sendo usado em perspectivas diferentes o que evidencia o surgimento de novas funções, ou seja, o processo de gramati1595 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais calização que passa esse item se submete ao princípio da Divergência de Hopper (1991), o qual prevê que, quando uma forma lexical sofre gramaticalização, a forma original pode permanecer na língua como uma forma lexical autônoma, podendo, além disso, submeter-se às mesmas mudanças pelas quais venham a passar outro item qualquer de sua categoria. Portanto, este princípio de divergência pode pelos menos em parte, nos ajudar a entender o resultado encontrado de que a inovação do uso de agora não implicou no decréscimo de sua forma canônica apresentada pelas gramáticas tradicionais. Agora conector/marcador discursivo - Parte oral Nessa função, agora além de exercer a função de conector, volta-se como marcador discursivo para interação entre os falantes e adquire traço de circunstanciação discursiva na organização de unidades tópicas e, por outro lado, por meio do processo de discursivização, agora perde restrições gramaticais e passa a exercer funções voltadas para a organização de unidades discursivas. Apresentamos a seguir as ocorrências catalogadas no corpus conforme a perspectiva descrita. Contrastivo Das várias evidências que apontam para a caracterização juntiva do agora, uma delas é o fato de esse elemento poder ser substituído por “mas” na maior parte das ocorrências, o que não é possível nos casos em que o elemento ainda veicula valor temporal. O elemento é juntivo quando participa de algum tipo de relação de contraste entre orações simples ou complexas, ou seja, parece que tal elemento atua no nível sintático e exerce a função de conector interoracional como exemplifica (05). (05) “I: ... quanto à sala ... agora ... cadeira ... mesa ... esses negócios ... tudo bem organizado ... tudo bem novo e tudo ... agora ... as paredes eram sujas ...” (ISGDLPO, Corpus D&G, 1998, p. 193). 1596 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta Na amostra (05) o agora adversativo parece auxiliar no estabelecimento da relação entre segmentos coordenados sem eliminar o elemento anterior, admite -o, mas, a ele se contrapõe. Em (05), o informante expõe condições de oposições entre “quanto à sala ... tudo bem organizado” e “agora ... as paredes eram sujas”. A partir dessa passagem, podemos parafrasear pela conjunção mas e, consequentemente, apresenta um contraste com o que foi dito antes. Assim, pela amostra reforça a explicitude da conjunção mas, o que aponta para uma trajetória de advérbio > conjunção fenômeno que já vem sendo estudado pelos linguísticas e através dos dados catalogados na modalidade falada, permite constatar a flexibilidade de uma função praticamente textual para uma função discursiva. Anafórico/retomador O conector/marcador discursivo agora retoma anaforicamente o tópico de uma sequência textual ou outro tipo textual, organizando o discurso, adequando relações de sentido entre os enunciados e dando prosseguimento/encaminhamento ao discurso. Essa estratégia utilizada pelo falante diz respeito à continuidade referencial, ou seja, à retomada de uma expressão que representa precisamente um referente já construído no texto por meio de novas expressões referenciais. Observe: (06) “I: ...ela primeiro saiu ... entrou numa boate né ... à noite um lugar lá ... agora onde ela entrou só tinha homens ... sabe ... foi o primeiro lugar que ela encontrou ... aí quando chegou lá ... pediu uma bebida e tal ... entrou ficou lá ... isso com a roupa de freira e tudo mais ... né ... e o pessoal tudo olhando espantado ...” (ISGNRPO, Corpus D&G, 1998, p. 281). Em (06), temos o uso do agora como anafórico/retomador quando o informante na passagem “agora onde ela entrou só tinha homens”, o uso do agora nessa situação comunicativa retoma o lugar em que ela estava “boate” e, consequentemente, dar continuidade de sentido ao que o mesmo vinha descrevendo no decorrer de sua fala. Como se vê, a trajetória do agora vai de encontro com a perspectiva de uma gramática maleável, emergente que se adapta as regularidades decorrentes das 1597 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais pressões do uso, quer por necessidades comunicativas não preenchidas, quer pela presença de conteúdos cognitivos para os quais não existem designações linguísticas adequadas conforme. Por isso, são vários os motivos ou as motivações do deslizamento semântico, na geração de novos significados, tanto para itens léxicos como para construções. Avaliativo O item agora também assume a função de avaliativo no corpus D&G. Nessa função, o conector/marcador discursivo agora introduz, especificamente, uma explicação, uma opinião do informante em relação ao assunto exposto como forma de ressalva como mostra a passagem (07). (07) “I: ... é questão de ter investimento na educação ... se investisse mais na ... na ... no ensino público ... obviamente teria:: porque a capacidade desse pessoal é a mesma do particular ... inclusive ... tem professor que ensina em colégio particular e em colégio público ... então ... só que agora em colégio particular ele recebe muito mais ... dá vontade de ensinar ...” (ISGROPO, Corpus D&G, 1998, p. 203). Na a amostra (07), o item agora introduz uma ressalva a cerca do ponto de vista do informante sobre as condições de pagamento de professores em relação ao ensino público e enfatiza que no colégio particular estimula os profissionais da educação pelo fato de ganharem melhor. Essa função desempenhada pelo vocábulo agora ilustra a sua multifuncionalidade num nível pragmático – discursivo o que, nesse sentido, envolve uma intenção genérica do falante de usar algo conhecido pelo ouvinte para fazê-lo compreender melhor o sentido novo que ele quer expressar como também a utilização de conceitos mais concretos e mais conhecidos para atender as necessidades dos usuários da língua que surgem no decorrer do processo comunicativo. Avaliativo de realce Nesta, o conector/marcador discursivo agora atenta para um aspecto especial na informação precedente apresentada pelo falante. Por esta função, o uso do elemento agora possui uma origem espacial/temporal e se explica por um pro1598 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta cesso de gramaticalização espaço > (tempo) > texto. A partir desse processo, o elemento tende a desempenhar funções pragmático-discursivas ganhando novas posições mais fixas dentro da cláusula e a estabelecer uma ênfase ao enunciado precedente. (08) “I: não... isso aí você aprende ... porque eu num tinha de jeito nenhum ... eu pensava que num ia fa/ eu pensava que num ia ... num ia ... num ia conseguir nunca fazer ... um acorde com a mão esquerda e ... solar com a mão direita ... hoje é a coisa mais natural do mundo ... como dois e dois ... agora ...deixe eu ver se eu esqueci alguma coisa ... importante ... sim ... tem que aprender os compassos ... tem compasso quatro por quatro...” (I9ºANRPO, Corpus D&G, 1998, p. 376). Observamos em (08) que o falante procura enfatizar a informação precedente que era sobre as técnicas de tocar em um violão destacando a partir do uso do item agora em sua fala a importância de aprender o compasso quatro por quatro. Com isso, entendemos que para o falante a informação precedente possui um nível de informatividade alto, por isso a necessidade de um realce. Assim, o agora na função de avaliativo de realce, percebemos uma possível variedade funcional desse item o que verifica uma intersecção entre a função temporal e a textual e, se adaptam às circunstancias conforme as necessidades situacionais de comunicação. Aditivo O uso de agora aditivo apresenta-se na fala dos informantes com o intuito de apenas acrescentar informações sem aferir, nem enfatizar, é uma função mais neutra em relação às demais até aqui exposta. Pelos dados em referencia a essa função, seu uso foi identificado em um nível de escolaridade maior (3º grau), no entanto, permite deflagrarmos que os informantes desse nível de escolaridade conseguem elaborar melhor suas falas, pensar nos termos que irão empregar durante a construção de seus enunciados e, com isso, reforçam por outro lado os aspectos da discursivização como um processo em que os elementos perdem função lexical e gramatical para ficar a serviço da organização e da linearidade das informações de suas falas. Observe: 1599 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais (09) “I: ... pra trabalhar com esses elementos ... até mesmo a ... a ... a ... a nível de criação ... porque você vai é ... quando for criar ... meu Deus ... e agora ... o que é que eu boto aqui nesse meu quadro ... é:: um pássaro ... mas que pássaro ... mas que pássaro eu devo botar? aquele daquela praia ... quem sabe aquele ... aquela espécie ... aquela suavidade daquele pássaro daquele quadro que eu pintei de uma fotografia ... ((riso))” (ITGRPPO, Corpus D&G, 1998, p. 151). O enunciado (09) assinala a partir do uso do item agora e do auxílio da conjunção e a caracterização da nova informação com o objetivo de adicionar, ou seja, uma junção entre as ideias exibidas pelo falante e, por consequência, admite semanticamente a paráfrase “mais agora”. Ademais, registra os traços discursivos em torno da fala dos informantes e o item agora se encontra, no entanto num estágio mais avançado de sua trajetória de gramaticalização, pois entendemos que é usado com função discursiva sem nenhum resquício de seus usos temporais e canônicos. Sequencializador A função de sequencializador é um traço muito propício de ocorrer nesse estudo porque o material coletado para a análise é composto por textos de diversos gêneros, ou seja, sequencias textuais em que os fatos são colocados de forma ordenada para estabelecer uma relação de continuidade de sentidos. Nessa função, agora pode ser parafraseado por “em seguida”, “a seguir” de acordo com a amostra (10). (10) “I: ... quanto à sala ... agora ... cadeira ... mesa ... esses negócios ... tudo bem organizado ... tudo bem novo e tudo...” (ISGDLPO, Corpus D&G, 1998, p. 193). Na amostra (10), agora funciona como conector de sequencialização. A função de agora nesse contexto é a de elo continuativo nas sequências das ações descritas pelo informante e relaciona-se a um sentido mais ampliado que o sentido dêitico. Trata-se de um uso em que existe uma fluidez entre a enunciação da fala e a localização espacial no texto como também os atos do discurso e as marcações das sequências textuais. Com isso, o que gera esta mudança de função é a pressão de informatividade, ou seja, a mobilidade de funcionalidade do item agora faz o elo de conexão 1600 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta com novas ações que vão ocorrendo na evolução dos fatos e, seu posicionamento é fixo, pois caso se movimentasse perderia esse traço funcional. Enfático Nessa função o item agora se trata de um uso que busca enfatizar, fortalecer, dar importância à determinada opinião ou a determinado fato da história. Com isso, a transferência de propriedade ocorre com a ampliação do elemento sobre o qual o agora incide, pois deixa de incidir sobre constituintes e orações para incidir sobre tópico discursivo. Vejamos: (11) “E: e justamente agora que ela tá grávida ...” (ISGNEPPO, Corpus D&G, 1998, p. 224). No enunciado (11), agora sequencializa a ideia enfática da informante a respeito da gravidez. Nesse momento de sua fala, percebemos que a mesma sustenta sua crença, asseverando uma dada proposição e contrastando-a com o conteúdo pressuposto. Um dado que auxilia na caracterização do agora enfático é a presença da conjunção “que”, e, a partir da construção da expressão agora que disponibiliza significativamente a nossa hipótese de redução de frequência de agora advérbio temporal. Desse modo, podemos constatar de acordo com as funções desempenhadas pelo agora o seu distanciamento em relação a sua função prototípica de advérbio temporal, passando, no entanto, para um item que se encontra no estágio de sua trajetória de gramaticalização, pois nessa função mais discursiva o agora apresenta um esvaziamento de sentido o que acreditamos sem nenhum resquício de seus usos temporais e canônicos. Introdutor de turno A função introdutor de turno desempenhada pelo item lexical agora, apresenta um traço discursivo nos contextos de enunciação produzidos pelos falantes e, trata do uso do item agora, com o objetivo de introduzir um novo tópico, ou seja, um novo assunto no texto ou um novo momento do discurso por meio de uma mudança no tópico ou no assunto tratado. 1601 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais (12) “E: você gosta do futebol e tá dando sua opinião ... né ... você deu do time ... agora o que você acha da violência no ... lá dentro ... a violência dos jogadores e a violência lá na ... arquibancada?” (I5ºAROPO, Corpus D&G, 1998, p. 401). Na amostra (12), o item agora introduz essa mudança de turno. O informante consegue assinalar por meio do agora a modificação de assunto em torno da tentativa de comunicação quanto à sua opinião sobre a violência nas arquibancadas dos estádios de futebol. Assim, com esses dados notamos a tendência do agora em assumir outras funções e de acordo com Hopper (1991) as línguas tendem a apresentar mais de uma forma para desempenhar funções idênticas, ou seja, surgem novas camadas e as camadas antigas não desaparecem necessariamente podendo coexistir e interagir com as novas. Concluidor O agora nesse estudo com traço de concluidor é uma das funções intermediárias entre os usos temporais e discursivos até aqui apresentadas. Porém, assumindo aspectos mais textuais na trajetória de gramaticalização podemos caracterizá-lo em um percurso de mudança em que envolve alterações morfossintáticas, sintáticas, semânticas e pragmáticas. Nesse sentido, esta função de agora concluidor corrobora as ideias de Traugott e König (1991) não apenas no que diz respeito ao papel do contexto comunicativo no surgimento de novos usos da língua como, também, no tocante ao caráter unidirecional das mudanças implementadas por esse item que parte quase sempre do componente proposicional rumo ao componente expressivo da língua como mostra a passagem (13). (13) “I: ... “você prometeu ... agora vai ter que cumprir” ... aí ela foi lá:: chamou o sapo ... e o sapo jantou com ela ... aí na hora de dormir ... ele falou ... “princesinha ... você falou que eu podia dormir es/ se/ ... é ... em sua cama”. (I5ºANRPO, Corpus D&G, 1998, p. 389). O enunciado (13) fornece um exemplo de agora com o traço de concluidor. Trata-se de uma função significativa e nova no que diz respeito à modalidade da fala. Nesse caso, o item agora finaliza a proposição apresentada pela falante em 1602 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta referência a uma promessa que havia lhe prometido. Logo, essa função aponta uma natureza de mudança e de variação o que não é contemplado nas gramáticas tradicionais. Relação de causa/consequência A ideia de relação de causa/consequência desempenhada pelo item lexical agora está diretamente ligada àquilo que provoca um determinado fato, ou seja, exprime um efeito ao motivo do que se declara anteriormente. Essa função é expressa pelas construções que a gramática chama de causais, conclusivas e consecutivas. Desse modo, vejamos na amostra (14) essa relação de causa/consequência. (14) “I: ... aí vai entrar numa canalização lá por baixo ... vai ser subterrânea do mesmo jeito ... né ... então a água vai descendo ... vai descendo ... vai descendo ... é como se fosse coar um leite numa peneira ... a nata num fica na peneira ... bom ... na fase de decantação ... eu disse que o floco decanta e vai lá pra baixo ... agora só que passa ... alguns flocos passam ... por isso que tem o filtro e o resto da decantação ... “ (ISGRPPO, Corpus D&G, 1998, p. 199). Levando em conta que a noção semântica na fala do informante indica conclusão, já que os conectores conclusivos introduzem afirmações e que a conclusão é a consequência lógica de uma premissa, na amostra (14) o falante demonstra através da fase de decantação da água mesmo passando por várias fases ainda a insistência da passagem de flocos durante esse processo o que, no entanto, a possibilidade da existência de causa/consequência. Conforme o explicitado, podemos inferir que a relação de causa/consequência conduz ao sentido de conclusão. Já que não podemos alterar a ordem das orações quando a segunda indica conclusão, caso em que se mantém a ordenação real causa/consequência para preservar a direção argumentativa; por essa razão também se repete a oração conclusiva, mesmo que já tenha sido enunciada antes. Assim em (14), o uso de agora manifesta a circularidade argumentativa que por sua vez parece ser necessária para que a representação linguística mantenha uma relação de iconicidade com os fatos descritos. 1603 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Introdutor de digressão A função de agora como introdutor de digressão ocorre quando dentro de um segmento enunciativo insere um novo tópico no interior de outro. Vejamos na amostra (15) a manifestação de frequência desse dado. (15) “I: ...“vamo embora pro shopping?”“bora ... gastar dinheiro” ... vou ao Circo da Folia ... agora na Vila Folia ficou mais difícil ... mas eu ia ao Circo da Folia ... porque mui/ muitos amigos fazem aniversário ... faz a festinha ... convida ..” (I9ºANEPPO, Corpus D&G, 1998, p. 366). No exemplo (15), percebemos no primeiro momento da enunciação o informante apresentar o desejo de ir ao shopping gastar dinheiro, porém em seguida introduz no mesmo tópico um novo assunto de modo que, ao utilizar o item lexical agora, promove uma descontinuidade na organização tópica, movida pela introdução de assunto constitutivo de outro subtópico da sequencialidade enunciativa. De acordo com isso, a funcionalidade de agora nesse contexto está voltada para a articulação de estratégias ligadas à própria situação interacional e, em virtude disso, a polissemia e a mudança gramatical observada nesse uso diz respeito às estratégias interativas segundo, as quais, constituintes linguísticos têm seu sentido redimensionado a funções mais pragmáticas. Neste caso, Traugott e Dasher (2002) destacam que as pressões pragmáticas favorecem polissemia e gramaticalização por considerarem envolvidos na interação emissores e receptores além de suas competências comunicativas. Juntivo de ressalva O último dos traços identificados na fala dos informantes do corpus D&G como conector/marcador discursivo é o juntivo de ressalva. Nessa função o agora introduz uma noção semântica de restrição, ou seja, ao constituir uma relação de ressalva dentro do contexto de uso admite o parafraseamento de acordo com Souza Júnior (2005) por “só que”. Isso pode ser conferido no exemplo (16). 1604 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta (16) “I: ... no teatro a gente faz peças ... é:: ((ruído de buzina de carro)) ... sobre ... sobre cada mês ... por exemplo ... janeiro ... mês de ano novo... a gente faz uma peça ... agora que tá em dezembro ... faz out/ faz uma peça de natal ... a gente tava fazendo:: ia grav/ vai gravar na quinta ...” (I5ºADLPO, Corpus D&G, 1998, p. 390). Nesse exemplo, podemos observar que agora, semanticamente, distancia-se de sua significação temporal prototípica e passa a exercer a função de um elemento juntivo, unindo segmentos que se complementam. No exemplo (16), a informante em sua fala descreve os eventos de um local em que acontecem as peças teatrais de acordo com a festividade de cada mês e, em seguida, ressalta através da passagem do corpus “... agora que tá em dezembro ... faz out/ faz uma peça de natal ...”, a restrição de ideia apresentada por esse último seguimento e constituída pela introdução do item agora. Assim, nessa função dois aspectos devem ser observados: o primeiro é a proposição principal e, segundo, a continuidade dessa proposição pelo fato de que o agora como juntivo de ressalva tem por objetivo a unificação dos enunciados. Passamos, agora, a apresentar as ocorrências das funções desempenhadas pelo item agora na escrita dos informantes do corpus D&G e, através de amostras das referidas funções identificamos seus usos de acordo com os dados catalogados. Agora advérbio temporal - Parte escrita Nessa categoria de agora advérbio temporal na parte escrita das ocorrências catalogadas, além de refere-se aos traços circunstanciais de tempo no grupo dos advérbios, permite destacar sua capacidade funcional através de seus usos e, consequentemente, sua articulação no nível da escrita dos informantes. Temporal neste momento/momento atual A função temporal neste momento/momento atual do agora revela, nessa função, o nível de iconicidade transparente entre forma e significado, donde surge a impressão de variação com mais de um significado associado a uma só e mesma forma e adquire um papel na organização da escrita dos informantes. Vejamos a amostra (17). 1605 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais (17) “I: ...Quando minha estava grávida da minha irmã que agora tem 8 anos de idade, aconteceu outro acidente de automóvel em massaranduba, município de Ceará Mirim, e no outro mês minha mãe ganhou a minha irmã. Todos que vieram no carro se feriu; minha mãe, meu pai, eu, meu irmão e minha tia”. (ISGNEPPE, Corpus D&G, 1998, p. 265). No exemplo (17), o uso do item agora é utilizado para delimitar o espaço discursivo ou argumentativo em que o falante se inscreve, distinguindo-o do espaço atribuído ao outro como também a evidente marcação temporal em torno da enunciação comunicativa. Apresenta uma aplicação prática à função de circunstanciador, predominando, principalmente, em sequencias narrativas devido ao seu objetivo de pontuar no tempo os fatos descritos. Assim, ainda por haver, no caso de agora, a predominância do uso canônico, este não foi maciço como inicialmente se esperava, pois havendo certo equilíbrio entre as ocorrências canônicas e não-canônicas, precisamos entender que a gramática é um sistema adaptativo que nos dizeres de Bybee (2003) “ela existe apenas em uso: o que não é experienciado não faz parte da gramática”. Agora conector/marcador discursivo - Parte escrita Procuramos, aqui, mostrar as ocorrências de agora conector/marcador discursivo numa perspectiva discursiva funcional, e, verificamos sua materialização linguística nos níveis estrutural e semântico-pragmática. A partir disso, vejamos as seguintes funções encontradas. Enfático Nessa função de agora enfático percebemos o quanto o contexto discursivo pode ser afetado tanto a partir de uma forma particular feita pelo falante quanto à interpretação que o destinatário faz dela. Isso significa que na função de enfático possibilita a identificação do destaque e da saliência apresentada pelo informante no momento da escrita. 1606 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta (18) “I: [...] A sua mãe ao perceber ordenou que seu esposo tomasse a criança nos braços, já que agora estavam mais próximo de chegar, onde? ninguém sabia”. (ITGNRPE, Corpus D&G, 1998, p. 90). No exemplo (18), a informante ressalta através do uso do item agora a ênfase em relação ao pedido que sua mãe fez a seu esposo para colocar em seus braços a criança. Com isso, demonstra a persuasão argumentativa estabelecida por esse vocábulo e a sua força semântica no momento de seu uso. Assim, por esse exemplo, entendemos que a situação enunciativa apresentada pela informante está presa a determinados contextos e, ao empregar o vocábulo agora nesse enunciado, ressaltamos que o mesmo é dinâmico e está em constante mudança já que, na medida enquanto o discurso progride, o contexto também se modifica e atingi a própria escrita. Aditivo A função de agora aditivo consegue por meio do processo de discursivização perder restrições gramaticais, sobretudo, em seu uso exofórico e em seu uso juntivo, já que não integra a estrutura oracional e, passa a exercer funções voltadas para organização de unidades discursivas em relação a tópicos ou segmentos de tópicos. Vejamos: (19) “I: Chegaram a momentos gloriosos onde aquele pai de família pôde gastar seu dinheiro na cidade, e agora pudesse realizar o sonho de sua esposa, que era comprar uma cama igual a de seu Tomaz boladeira. Mas ele não teve sorte na cidade, pois, um soldado amarelo discutiu com ele e o espancou”. (ITGNRPE, Corpus D&G, 1998, p. 91). No exemplo (19), o uso de agora como aditivo disponibiliza a continuidade lógica de sentido e de união entre as proposições, operando nessa situação escrita como um fator textual de organização das unidades discursivas. Dessa forma, torna-o um marcador discursivo com o objetivo de exercer a função de “amarrar” textualmente os acréscimos de informações estabelecidas pelo informante. Diante disso, vamos compreendendo a capacidade funcional exercida pelo item lexical agora, o seu deslizamento de função e sua adequação semântica, 1607 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais fatores que encaminham esse item ao processo de gramaticalização por proporcionar uma amplitude categorial de usos. Sequencializador O agora com a função de sequencializador propícia uma continuidade em eventos específicos ou não-específicos de comunicação dentro do contexto em que está inserido. Trata-se de um uso capaz de exprimir uma fluidez entre a enunciação escrita e a localização espacial do texto como destacamos na amostra (20). (20) “I: Tem dia que eu passo horas e horas conversando sobre os estudos. Hoje mesmo eu passei a manhã inteira conversando sobre os estudos. Agora você vê porque eu gosto tanto de conversar sobre a escola.” (I5ºAROPE, Corpus D&G, 1998, p. 394). Na amostra (20), agora é empregado como sequencializador e caracteriza-se como um fator de sequencia lógica dos episódios comunicativos descritos pela informante. Nessa passagem, o item enfraquece sua noção temporal e passa a constituir uma relação de continuidade entre as informações do enunciado direcionando o leitor ao propósito do conteúdo textual construídos pela informante em seu relato de opinião. Com isso, percebemos que o emprego de agora se relaciona a um sentido mais ampliado que o sentido dêitico, pois sua função é de servir como elemento organizador da sequencialidade discursiva em que ocorrem os eventos comunicativos. Avaliativo de realce Outro papel desempenhado pelo agora é o de avaliativo de realce. Nessa função o enfoco central é em dar um ponto de vista especial ao contexto das proposições exibidas anteriormente, ou seja, acrescenta uma informação nova na organização discursiva em torno da escrita da informante que até o momento não havia sido realçada. Vejamos a amostra (21). 1608 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta (21) “I: No dia seguinte, voltou tristonho para casa, refez suas idéias, e não lembrará do acontecido. com o passar dos dias a seca voltará como uma peste, destruindo a tudo. E o seu patrão via-se obrigado a mandar ele sair da fazenda com sua família. Aqui recomeça a história dessa família de peregrinos, só que agora tinham menos, pois, lhes faltava o papagaio que haviam comido no caminho”. (ITGNRPE, Corpus D&G, 1998, p. 91). Na amostra (21), o uso de agora faz referencia a uma informação que no decorrer da situação comunicativa a informante ainda não tinha focalizado anteriormente e, pela necessidade, de introduzir um destaque ao assunto abordado acrescenta esse dado novo pela passagem “só que agora tinham menos, pois, lhes faltava o papagaio que haviam comido no caminho”. Nesse sentido, o realce é evidenciado pelo contexto situacional de comunicação, pois consideravam o papagaio como um membro de sua família. Assim, conforme a maleabilidade de agora constamos a sua atuação por meio de mecanismos de extensão metafórica, pois contribuem para a multifuncionalidade desse item e através da pressão informacional consegue distancia-se de seu uso canônico assumindo funções mais discursivo-pragmáticas. Anafórico/retomador A função anafórico/retomador de agora é o caso mais claro do tipo de fenômeno diretamente relacionado ao componente contextual, pois no processo de discursivização estabelece relações lógicas entre as proposições como também se relaciona a informações de curto prazo. Isso depende de os antecedentes estarem disponíveis no componente contextual e disponibilizarem com esse uso uma dimensão textual e discursiva. Nesse sentido, a ocorrência de anafórico/retomador é usado para retomar um antecedente, para relacionar constituintes entre os atos discursivos e os tipos de entidades dentro do texto conforme apresentamos em (22). (22) “I: [...]... A trama conseguia envolver o telespectador não somente pelo seu caráter intimista, como também os recursos geográficos colocavam, a “deixa” no ar para uma outra linguagem; esta agora muito mais plástica porque a natureza como que adentrava, através do enredo, pelo nosso vídeo e se nos apresentava como um personagem vigoroso na sua maior forma”. (ITGROPE, Corpus D&G, 1998, p. 173). 1609 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais Em (22), o informante ao empregar o item lexical agora recupera o seu antecedente “linguagem” para ampliar seus sentidos verbais ou não verbais expressos pela trama e poder envolver os seus telespectadores. Com essa função, percebemos o quanto a situação comunicativa exige de seus usuários a percepção para as necessidades de uso da linguagem como também a mesma está sempre passando por um processo de evolução, ou seja, novos contextos discursivos vão surgindo e a gramática vai sendo modificada para se adaptar a essas novas necessidades de seus falantes. Logo, conforme Neves (1998) esse processo de mudança linguística tem motivação nas necessidades comunicativas não satisfeitas pelas formas existentes bem como na existência de conteúdos cognitivos para os quais não existem designações linguísticas adequadas. Introdutor de turno Outra função textual apresentada pelo agora é a de introdutor de turno. Sua função é introduzir um turno conversacional ou um novo momento do discurso por meio de uma mudança no tópico ou no assunto tratado. (23) “I: De trás tem dois quartos um do lado e outro do outro lado e tem areazinha pequena. Agora é o que tem dentro de casa, bem na aréa tem duas cadeiras e o jarro. Na sala de visita tem um sofá grande e dois pequeno, a banquinha do telefone, a banquinha do abajour. No quarto da minha tia tem uma cama, guarda roupa, estante de canto, outra estante e um ursinho e o espelho. Na sala de jantar tem uma mesa oval e as cadeiras e a arca e o barzinho. Na cozinha tem a geladeira, o fogão, o armário de parede e armário de pia e a pia.” (I9ºADLPE, Corpus D&G, 1998, p. 362). Conforme a amostra o item agora inicia um novo turno. Com o novo turno, a informante começa descrevendo a parte exterior de uma casa, porém ao mudar de assunto utiliza o agora para refere-se à parte interna da casa e, nesse momento, pontua a mudança de turno construído pela informante. A partir desse emprego vamos constatando a multifuncionalidade desse item nos enunciados do corpus D&G através das relações entre os componentes sintático, semântico e pragmático. 1610 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta Por essas funções apresentadas, consideramos que o item agora segue um processo de gramaticalização caracterizado pela trajetória espaço > (tempo) > texto e, ao observarmos suas ocorrências, o mesmo se distancia de sua circunstância temporal propriamente canônica e vai diretamente para o texto. É no texto que esse elemento passa a assumir funções discursivo-pragmáticas tendendo estas a inserir informações novas. Portanto, como princípio básico de investigação, a gramaticalização em seus diversos propósitos de investigação linguística contribui no estudo de como as línguas evoluem ao longo do tempo, variam de acordo com o usuário e de acordo com as funções para as quais ela está sendo usada. Com isso, alguns traços de sentido espacial persistem claramente em usos com valor temporal do item agora, mas não se manifestam de forma transparente e, necessariamente, em usos que encadeiam o discurso. Esses usos já possuem um sentido mais abstrato e com uma função específica de organizar o discurso. Considerações finais O estudo sobre o item agora na fala e escrita da cidade do Natal mostrou que, contrariando a visão tradicional que coloca todos os advérbios de tempo como elementos gramaticais, o agora apresentou nessa pesquisa outros usos e funções comparativamente considerados novos o que ratifica os nossos objetivos e, desse modo, foi possível analisar os diferentes sentidos que o item lexical agora pode manifestar na fala e escrita dos informantes nos distintos gêneros que compõem o corpus D&G. Com isso, a discussão aqui realizada revela a necessidade de se repensar a visão clássica, que atribuímos à classe dos advérbios e, em particular, ao circunstanciador agora pelo fato de termos constatado durante nossa investigação que esse item apresenta usos que vão além da sua função prototípica de dêitico temporal, assumindo outras funções relacionadas aos segmentos do texto e, em outros contextos, funções mais discursivas. Essa trajetória apontada pelo item agora se relaciona às extensões de usos e funções que remete à sua origem etimológica, hac hora, cuja função é a de locativo temporal, fundada pelo demonstrativo hac, e culmina na indicação de relações discursivas. Nesse sentido, frisamos, segundo Hopper (2011), o conceito 1611 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Comunicações Individuais de camadas, segundo o qual o surgimento de novos sentidos não põe fim ao mais antigo uso, podendo coexistir e interagir, dentro de um contexto determinado. Como vimos com os resultados obtidos, o elemento agora passa a assumir funções argumentativas, textuais, discursivas e pragmáticas sem deixar de notar a sua função prototípica de advérbio temporal. Com isso, incide a depender mais das características gramaticais específicas de suas novas funções que surgem em contextos específicos, assumindo posições mais fixas dentro da sentença ou do texto o que se deve ao fato de que, além de contarmos com os fatores sociais (idade e escolaridade) e outros previstos por teorias existentes, possibilitou o deslizamento funcional do item agora nos níveis gramatical, textual e discursivo como aponta em sua variação e mudança. Outra questão a ser pontuada diz respeito ao quesito mudança linguística. Os dados encontrados apresentam indícios suficientes para considerarmos que esse processo tem caráter unidirecional e sincrônico. Ressaltamos que mudança, nessa perspectiva, não diz respeito à alteração definitiva de forma ou sentido, mas sim a uma variação dos atributos caracterizadores dos termos com o objetivo de se enquadrarem nos enunciados em que são utilizados conforme as necessidades dos usuários da língua. Com isso, a visão pancrônica (diacrônica/sincrônica) é imprescindível para podermos observar de forma mais completa, a trajetória de gramaticalização do item agora e, consequentemente, o próprio funcionamento da língua. Por fim, acreditamos que esse estudo possa colaborar também no Ensino de Língua Portuguesa, principalmente, nas aulas de gramática, considerando que as ocorrências de novos usos do item agora se dão em meio à estabilização de muitos outros, relativizando-se, assim, a proposta da gramática emergente, como definida por Hopper (1991). No entanto, é importante considerar muito seriamente o fato de que os enunciados são produzidos e entendidos no contexto, já que assume que a intenção do falante não surge em um vacuum, mas sim em um multifacetado contexto comunicativo e, dessa forma, a necessidade de um ensino dos fenômenos da língua observando esses fatores. 1612 Rosângela Maria Bessa Vidal, Francisco Clébio de Figueiredo, Ana Alice de Freitas Neta Referências BYBEE, J. Mechanisms of change in grammaticization: the role of frequency. In: JOSEPH, B. & JANDA, R. (Ed.) A handbook of historical linguistcs. Blackwell, 2003. FURTADO DA CUNHA, M. A. Corpus discurso & gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998. GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam: Benjamins, 1995. HOPPER, P. J. Emergent gramar and temporality in interactional linguisties. In: AUER, P.; PFÄNDER, S. (eds.) Constructions: emerging and emergente. Berlin: De Gruyter, 2011, p. 22-44. HOPPER, P. J. 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Nessa perspectiva, Meillet (1965) associa a gramaticalização de um elemento linguístico à imagem de um espiral, figura que reflete continuamente um processo cíclico, inacabado, infinito. Observando a expressão que nem na Língua Portuguesa, percebemos que essa expressão linguística vem funcionando com o valor semelhante ao da conjunção adverbial comparativa como, “Vou apelar e fazer um curriculo que nem do Barney pra vê se consigo arrumar emprego. (H.C)”; mas, também, tem apresentado o valor de estrutura adverbial consecutiva, “eu tenho tantos nadas pra fazer hoje que nem sei por qual começo” (M.M) e, ainda, tem aparecido, na língua em uso, veiculando um valor ambíguo, “Odeio TPM, me da um desânimo que nem comida de graça cura.” (J. A.). A partir dessas reflexões fundamentados teoricamente em Bybee (2010); Dias (2011); Heine & Reh (1984); Lopes (2015), temos, na presente pesquisa, o objetivo de verificar como tem sido realizado o estudo das conjunções em livros didáticos, observando, em específico, a descrição apresentada ao que nem a fim de propor uma intervenção pedagógica na qual seja abordada uma reflexão sobre a expressão que tem sido tão produtiva entre os alunos. Diante da pesquisa realizada, foi possível verificar que, dos manuais didáticos analisados, em nenhum foi retratada a partícula em estudo, e, tampouco, foi evidenciada a utilização dessa partícula como elemento também com a função de estabelecer comparação, uso mais prototípico da forma. Dando continuidade ao estudo, realizamos, ainda, a pesquisa em sites voltados ao ensino e constatamos que a utilização desse elemento só foi descrito como uma variante, de natureza informal, que pode ser utilizada no texto oral. Palavras-chave: Funcionalismo, Que nem, Gramaticalização, Conjunção. ÁREA TEMÁTICA - Funcionalismo e ensino GRAMATICALIZAÇÃO E ENSINO: UMA ANÁLISE FUNCIONALISTA DA PARTÍCULA QUE NEM NOS LIVROS DIDÁTICOS Caio Aguiar Vieira (UESB) Introdução No presente artigo temos o objetivo de investigar como tem sido retratada expressão linguística que nem nos livros didáticos. Para tanto, analisaremos, inicialmente, por meio de um dicionário e uma gramática da Língua Portuguesa, os itens que e nem. Em seguida, apresentaremos o conceito de gramaticalização, estabelecendo um diálogo com o uso dessas partículas, em especial, no livro didático e, também, em sites especializados em ensino. Em estudos já realizados por Vieira e Sousa1 (2015), são evidenciados que, na partícula que nem, além de valor comparativo há, também, o valor de consecução. Desse modo, fizemos uma breve busca nas principais gramáticas normativas, como Bechara (2010) e Cunha & Cintra (1984), nas quais foi possível detectar que todos os autores consideram como uma conjunção comum que serve para iniciar orações subordinadas adverbiais comparativas. No que diz respeito à utilização da partícula, somente Cunha & Cintra (1984) elencam essa forma como conjunção comparativa. 1. Estudo realizado por Vieira e Sousa, no qual evidenciaram a partícula que nem como conector consecutivo. 1615 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres A partir dos resultados é possível notar que a utilização do que nem é algo recente e que este item está passando por um processo de gramaticalização na Língua Portuguesa. Constatamos que, na partícula, além de ter valor comparativo, prescrito nos compêndios gramaticais, há ainda características de consecutiva, sendo assim, por meio da gramaticalização podemos afirmar que a conjunção consecutiva que aliou-se à partícula de negação e de intensificação nem constituindo uma forma-significado com valores atualizados e ampliados na língua em uso a partir de demandas no processo de interação. Com o propósito de apresentar tal discussão, no artigo, inicialmente, realizamos a exposição e em seguida na seção “Aspectos descritivos e normativos do que e do nem”, veremos uma sucinta discussão a respeito desses itens em dicionário e em gramática da Língua Portuguesa; após isso, trazemos “A visão funcionalista”, seção na qual discorremos sobre aspectos funcionalistas que serviram como aporte teórico para a nossa pesquisa; apresentamos, na seção seguinte, uma pequena trajetória do livro didático em “O livro didático (LD): uma breve contextualização”; desse modo, chegamos a “A variação linguística de língua portuguesa: variação linguística” na qual apresentamos como os autores dos LDs tratam a variação e a mudança linguística, e, por fim, “Mudança linguística e gramaticalização do que nem: uma análise” na qual mostramos os resultados da pesquisa, seguida pelas Considerações finais. Aspectos descritivos e normativos do que e do nem Nesta parte, avaliamos como necessário, para a abertura da discussão sobre a expressão que nem, trazermos um breve olhar sobre as partículas que e nem, nessa pesquisa, em um dicionário e em uma gramática da Língua Portuguesa. Para tanto, elegemos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e a Gramática Escolar da Língua Portuguesa de Evanildo Bechara. No dicionário Houaiss (2009), a partícula que é minuciosamente descrita como pronome relativo, possuindo dupla função: 1) como pronome, substitui um antecedente, nome ou pronome, assumindo-lhe as funções próprias, como no caso a função sujeito de “átomo” na frase: “Átomo, que significa indivisível, já não pode ser entendido assim”; 2) como relativo (conjunção subordinativa) confere à oração que inicia a função de adjetivo, por exemplo: “O bangalô que acabaram de construir receberia novos hóspedes”, em que “que acabaram de construir” 1616 Caio Aguiar Vieira equivale a “recém-construído”; pronome indefinido: “Que significa esse rabisco?”, conjunção integrante, confere à oração subordinada as funções próprias do substantivo: “É necessário que fique bem claro”, em que “fique bem claro” é sujeito da frase citada; conjunção adverbial, conferindo à oração subordinada diversos valores, como: conjunção causal: “Já que as pernas lhe tremiam, sentouse”; conjunção final: “Afastaram-se para que outros não os ouvissem”, conjunção concessiva: “Ainda que lhe pagassem, jamais comeria carne de cobra”; conjunção condicional: “Desde que preferia a noite ao dia, ofereceram-lhe um jantar”; conjunção temporal: “Sempre que liga a televisão, adormece”; conjunção proporcional: “À proporção que as autoridades iam se retirando, os trabalhadores ficavam mais descontraídos”; conjunção comparativa, destacando aqui o fato de o autor dizer que, nesse caso, expressa superioridade e inferioridade além da ideia de igualdade, lançando, nesse caso, o uso de que nem no seguinte exemplo: “É teimoso que nem o pai”; conjunção consecutiva, em construção descontínua que correlaciona duas orações (tal, tanto, tão, tamanho... que): “Era tal o seu entusiasmo que acabou contagiando todos”. Para Bechara (2010), o que funciona como o membro de outra oração, conhecido como “conjunção” integrante. O gramático afirma que esse que não tem por missão unir duas orações, mas somente marcar “[...] o processo por que se transpôs uma unidade de camada superior (uma oração independente) para funcionar, numa camada inferior, como membro de outra oração” (BECHARA, 2010, p.341). Esse gramático ainda diz que esse que é um transpositor. Já a partícula nem, no dicionário Houaiss (2009), é descrita como uma conjunção coordenativa: que serve para ligar palavras e orações negativas; conjunção aditiva: conexão, ligação; conjunção alternativa: alternância; advérbio: exprime negação. Bechara (2010), por sua vez, ainda deixa claro que, como advérbio, ele pode ser empregado sem o verbo, como nos exemplos: para cozinhar, nem sal, nem tempero (BECHARA, 2010, p. 344). Para esse gramático, assim como os autores do dicionário, a partícula nem é utilizada para a relação de adição, e, ainda, pode ser positiva e negativa; o primeiro valor é marcado pela conjunção e; e o segundo pela partícula nem, assim, cita exemplos, como: a) O Velho teme o futuro e se abriga no passado. b) Não emprestes o vosso nem o alheio, não terei cuidados nem receio. (BECHARA, 2010, p.343) 1617 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres Realizado esse primeiro olhar, daremos continuidade ao estudo, apresentando um olhar sobre alguns princípios e postulados da teoria que ancorará nossa pesquisa. A visão funcionalista Que nem gramaticalizado: conceito e o processo de gramaticalização Bybee (2010) explica que as línguas diferenciam-se uma das outras e estão sempre mudando, entretanto essa alternância se dá de maneira periódica, ou seja, regular. Assim, a linguista enumera cinco processos de domínio geral da língua: analogy (analogia), chunking (encadeamento), rich memory storage (estoque de memória enriquecida), cross-modal association (associação transmodal) e categorization (categorização). Entretanto, para o nosso estudo, trabalharemos, apenas, com duas conceituações, segundo Thompson, Tota e Rodrigues (2012 apud Bybee 2010): [...] o encadeamento (chunking) é a relação sequencial cada vez mais fixa de duas ou mais palavras unidas em uma sentença. Essa relação tornase cada vez mais forte devido a frequência com que elas são utilizadas dentro da cadeia sintagmática, sendo tal frequência de ocorrência um dos maiores responsáveis pela ativação desse processo. [...] a analogia (analogy) [é] o processo pelo qual um falante usa um novo item em uma construção, cotejando-a a outras estruturas e processos de mudanças já ocorridos. Dada a especificidade das construções e a forma como elas são construídas por meio da experiência com a linguagem, a probabilidade e a aceitabilidade de um novo item é gradual e baseada em seus antigos usos. (THOMPSON, TOTA e RODRIGUES, 2012, p.4) Segundo Lopes (2015), a Gramaticalização é um processo que um item ou itens gramaticais passa desempenhar outros papéis, este novo item gramatical passa a ser ainda mais gramatical, podendo, até, mudar de categoria sintática, a autora conceitua essa mudança como recategorização, Lopes (2015) ainda complementa que: 1618 Caio Aguiar Vieira Numa perspectiva de caráter mais funcionalista, a trajetória da mudança se daria pela regularização do uso da língua que ocorreria a partir da criação de expressões novas e de rearranjos vocabulares feitos pelo falante para atender seus propósitos comunicativos. Com a repetição de uma construção ou forma, algo que é casuístico se fixa, tornando-se normal e regular, ou seja, se gramaticaliza. A contínua regularidade ocorre quando as estratégias discursivas empregadas pelo falante numa situação comunicativa perdem a eventualidade criativa do discurso e passam a ser regidas por restrições gramaticais (do discurso para a gramática). É como se os elementos lexicais fossem perdendo suas potencialidades referenciais de representar ações, qualidades e seres do mundo biossocial e fossem ganhando a função de estruturar o léxico na gramática, assumindo, por exemplo, funções anafóricas e expressando noções gramaticais como tempo-modo, aspecto, etc. (LOPES, 2015, p. 2). É interessante em nossa pesquisa pensarmos sobre a repetição de uma expressão, ou em termos funcionalistas, a rotinização de usos que faz com que a expressão se fixe, normalize-se e regularize-se, conforme proposto na citação supramencionada por Lopes (2015). Heine e Reh (1984), por sua vez, corroboram, também, com nossa discussão, ao afirmar que quanto mais uma unidade linguística passa pela gramaticalização, mais ela se une semântica, morfossintática e foneticamente com outras unidades. Isso pode ser constatado na partícula que nem, pois, atualmente, ela já é vista como uma conjunção com significado único. De acordo com Dias (2011, apud Neves 1997), o que faz com que o processo de gramaticalização aconteça está tanto nas necessidades comunicativas não completas pelas formas existentes, como na existência de conteúdos cognitivos para os quais não existem designações linguísticas adequadas. Dias (2011) ainda ressalta que deve-se observar que novas formas gramaticais podem desenvolver-se a despeito da existência de estruturas velhas funcionalmente equivalentes. À vista disso, verificamos que o que e o nem pertenciam a uma categoria sintática, e, devido ao encadeamento (chunking), as partículas que e nem se juntam e formam um par único de formasignificado, ocorrendo, também, o processo de especialização e o processo de decategorização. Vejamos, agora, na próxima seção, como essa teoria dialogará com o objeto em estudo. 1619 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres Livro didático (LD) Uma breve contextualização Para uma melhor contextualização faz-se necessário uma sucinta discussão sobre a história dos livros didáticos (LD). Batista e Rojo (2005) afirmam o LD foi feito com o objetivo de “[...] auxiliar no ensino de uma determinada disciplina, por meio da apresentação de um conjunto extenso de conteúdos do currículo [...]” (p.15) e, com relação a sua estrutura, segundo as autoras, o LD é dividido “[...] sob a forma de unidades ou lições, e por meio de uma organização que favorece tanto usos coletivos, quanto individuais [...]” (p. 15). O LD é utilizado, atualmente, como recurso para o processo de ensino -aprendizagem, mas a definição para o livro didático foi nomeado, pela primeira vez, vez no Decreto Lei nº 1.006, de 30 de dezembro de 1938 – Art. 2: Compêndios são os livros que expõem total ou parcialmente a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares [...] livros de leitura de classe são os livros usados para leitura dos alunos em aula; tais livros também são chamados de livro-texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de classe, manual, livro didático. (OLIVEIRA, 1980 apud OLIVEIRA, 1984, p. 22). Foi nessa época, então, que se buscou desenvolver no Brasil “uma política educacional consciente, progressista, com pretensões democráticas e aspirando a um embasamento científico” (FREITAG, p. 12). E assim se nomeou livro didático, sendo utilizado para seguir a grade curricular das escolas, destinado ao ensino. Após disso foi criado a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), esse órgão, por sua vez, foi a primeira iniciativa governamental da época na área de política educacional. Na década de 60 estabeleceu-se a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED) em 06 de janeiro de 1967, o objetivo foi tonar disponível cerca de 51 milhões de livros para estudantes brasileiros no período de três anos (FEITAG, 1993). A autora ainda diz que o acordo contava com alta 1620 Caio Aguiar Vieira disponibilidade financeira e, ainda, com um projeto de bibliotecas e curso de treinamento para professores e instrutores. Já na década de 80, o governo passou à Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) a responsabilidade de gerenciar, dentre outros, o Programa do Livro Didático – Ensino Fundamental (PLIDEF), o que resultou, de acordo com Freitag (1993), em alguns problemas, como a dificuldade de distribuição do livro dentro dos prazos previstos, lobbies das empresas e editoras junto aos órgãos estatais responsáveis e autoritarismo implícito na tomada de decisões pelos responsáveis no governo. Entretanto a indústria dos livros conseguiu se estabilizar no Brasil durante esse período de maneira excepcional. Com o objetivo de garantir uma política de regulamentação do livro didático mais competente e eficaz o governo criou o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Estabeleceu-se, então, como meta do Programa, o atendimento a todos os alunos de 1ª a 8ª série do Ensino Fundamental das escolas públicas do país, com prioridade para Matemática e Comunicação e Expressão. Em 1996, a FAE foi extinta e suas atribuições no que diz respeito ao PNLD ficaram a cargo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) que exerce a função até os dias atuais o FNDE, então, firma o contrato com as editoras e informa as quantidades a serem envidas a cada uma das escolas. Quando inicia o ano letivo do ano seguinte, os títulos escolhidos devem estar nas escolas, onde será distribuído um exemplar para cada aluno. Cabe destacar que o livro deve ser reutilizado, no mínimo, por três anos consecutivos, beneficiando, dessa forma, mais de um estudante. Realizada essa sucinta história do Livro Didático, iremos, na próxima seção, discutir como a variação linguística está contemplada no livro didático de língua portuguesa. O livro didático de língua portuguesa: a variação linguística A variação, atualmente, já é tratada em alguns manuais didáticos, percebemos, também, a preocupação de alguns autores como Delmanto e Castro (2005) com a questão do preconceito linguístico, da adequação do discurso e gênero 1621 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres para determinados fins na comunicação. Atualmente os livros didáticos têm como referência básica o atendimento aos PCNs, o que equivale a dizer que deveriam apresentar um tratamento da língua voltado para uma concepção interacionista da linguagem. Com base nesses critérios, Marcuschi (2007) destaca alguns aspectos a serem observados pelos autores de livros didáticos de língua portuguesa. Para a presente pesquisa destacamos apenas 4 pontos que, a nosso ver, são mais importantes para a análise: a) adoção do texto como unidade básica de ensino; b) clareza quanto à variedade de usos da língua e à variação linguística; c) atenção especial para a produção e compreensão do texto escrito e oral; d) atenção para a língua em uso, sem se fixar no estudo da gramática como um conjunto de regras, mas destacando a relevância da reflexão sobre a língua; Com base nesses aspectos citados por Marcuschi (2007), iremos analisar, a partir de agora, como a questão da variação e mudança linguística, sobretudo no que diz respeito à gramaticalização presente no LD. Mudança linguística e gramaticalização do que nem: uma análise Para esta pesquisa reunimos a coleção dos livros didáticos do ensino fundamental II (5ª à 8ª série/6º ao 9º ano)2 da coleção Português: ideias e linguagens das autoras Dileta Delmanto e Maria da Conceição de Castro no período de utilização 2008 à 2010. Os livros são divididos em unidades que, ao todo, formam 10 conjuntos para cada ano letivo, neles são tratados questões da língua: produção textual, gramática, interpretação de texto etc. Analisamos, então, aspectos que tratassem da variação e mudança linguística por ano letivo, ou seja, foram vistos unidades de cada série nos LDs que tratassem da variação e, principalmente, sobre as novas formas comparativas da língua portuguesa, que é o nosso objeto de estudo. 2. O livro por ser do ano de 2005 ainda é dividido entre 5ª e 8ª série do ensino fundamental e não 6º e 9ª ano. 1622 Caio Aguiar Vieira O LD da 5ª série inicia a unidade 2 com o capítulo “Uma língua, tantas variedades”, deste modo, seguiremos a proposta de Marcushi (2007) e verificaremos se o capítulo atende os quesitos apontados pelo autor. Adoção do texto como unidade básica de ensino: notamos a preocupação das autoras em evidenciar questões de linguagem, principalmente no que diz respeito às questões de nomenclatura com língua e linguagem e, também, destacando as peculiaridades do texto oral e escrito: [...] pode concluir que a língua não é sinônimo de linguagem. A língua é uma das formas de linguagem [...] Quando nos referimos à “língua portuguesa” estamos falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. (DELMANTO e CASTRO, 2005, p.37) Produção linguística tomada como produção de discursos contextualizados: o contexto, sem dúvidas, é de suma importância para o falante utilizar o discurso de forma decorosa, o LD da 5ª, por sua vez, traz as questões de pragmática e contexto para a produção adequada do discurso: [...] Vimos que as pessoas não falam todas da mesma forma, mesmo morando num espaço, numa mesma época. O uso que cada falante faz da língua também varia de acordo com o seu nível de instrução, a sua idade e a situação em que o ato da fala acontece [...] Além disso, um mesmo indivíduo pode usar, em dada situação, uma linguagem formal e, em outra, expressar-se de maneira informal. É a situação de comunicação que vai indicar para o falante se deve usar uma ou outra linguagem [...] (DELMANTO e CASTRO, p.41) Atenção especial para a produção e compreensão do texto escrito e oral: as autoras tiveram uma preocupação especial, também, no que diz respeito às questões do texto oral e escrito, além e evidenciar a diferença entre a escrita a pronúncia: Além da diferença no registro da pronuncia, há, ainda, profundas distinções entre o que falamos e o que escrevemos [...] na fala, geralmente não há possibilidade de apagamento; na escrita há possibilidade de revisão [...] (DELMANTO e CASTRO p.38) 1623 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres Atenção para a língua em uso, sem se fixar no estudo da gramática como um conjunto de regras, mas destacando a relevância da reflexão sobre a língua: quando refletimos sobre a língua, pensamos, também, na questão da evolução e como esse fator muda as formas já preexistentes de uma palavra, locução, ou como formas distintas se unem e formam um par único significado. No LD em análise, somente, são citadas palavras que estão em desuso, assim, diversas formas que uma palavra considerada antiga pode alcançar acabam não sendo citadas. Ainda analisando as formas comparativas no português na subdivisão “orações subordinadas adverbiais”, no livro da 8ª série, na unidade 3, percebemos a ausência da partícula comparativa que nem que, segundo Vieira e Sousa (2015), está passando por um processo de gramaticalização, pois, em estudo realizado por esses autores, eles contataram que o que nem pôde ser visto a questão da gramaticalização nas redes sociais (twitter), lugar no qual há uma variedade extensa de usuários com idade, sexo, natureza social distinta e como característica do gênero assemelha-se às características do texto pouco monitorado. Além disso, não foi citado nada sobre variação e gramaticalização de novos itens e/ou expressões linguísticas nos livros da 6ª e 7ª série, sendo que, a nosso ver, a variação poderia ser tratada em toda coleção mostrando aos alunos os usos reais, ou seja, fora dos compêndios gramaticais. Com o interesse de verificar em outros gêneros e plataformas como a partícula que+nem é apresentada, investigamos, por meio de sites ou fóruns de discussão que auxiliam os alunos em trabalhos, como este mecanismo detalha ou, pelo menos, cita o que nem como forma comparativa. Encontramos a partícula que nem no Gramatigalhas3, o professor José Maria da Costa, nesse site, responde as dúvidas sobre a língua aos internautas em um fórum de discussão: 1) Uma leitora quer saber se é correta a expressão que nem em uma frase como a seguinte: João fala inglês que nem um nativo. 2) Para melhor situar a pergunta, observa-se que o circunlóquio que nem está em lugar de como e introduz uma oração subordinada adverbial comparativa. Com a mencionada pergunta, então, quer-se saber 3. O site está disponível em: http://www.migalhas.com.br/Gramatigalhas/10,MI128718,31047-Que+nem. Acessado em: 07 de agosto de 2015. 1624 Caio Aguiar Vieira se que nem pode ser uma conjunção (mais tecnicamente, uma locução conjuntiva) com valor comparativo. 3) Diga-se desde logo que os gramáticos, de um modo geral, não se sabe se por mero esquecimento ou se por rejeição não declarada, evitam listar que nem entre as conjunções ou locuções conjuntivas comparativas. (COSTA, 2015, grifos do autor) Com o objetivo de responder às perguntas dos internautas, a professora Glória Galli no site Língua Portuguesa em Uso4, também fala sobre a utilização da partícula que nem e aconselha que: A expressão que nem empregada [...] [está] substituindo a conjunção “como”. Essa é uma expressão da língua falada, que pela norma padrão deve ser evitada. A liberdade do seu uso na escrita é permitida na forma literária. (GALLI, 2015) Nos sites de ajuda, percebe-se que não discorrem sobre o processo de gramaticalização e, assim como os livros didáticos, percebem a importância da variação, mas não citam a forma comparativa que nem e, tampouco, evidenciam o processo de gramaticalização presente na língua em uso. Considerações finais Com base no que foi discutido sobre gramaticalização e livro didático, percebemos que a partícula que nem ainda não está nos manuais didáticos, e, quando citado em sites, há, ainda, uma abstenção para o uso da partícula em textos escritos e mais monitorados. Foi visto, também, que, nos LDs, há um olhar voltado à variação em um determinado capítulo dedicado a isso ou em um subcapítulo de alguma abordagem mais ampla, mas, quando lida com problemas do nível gramatical, no caso das orações subordinadas adverbais, não há registro algum sobre formas variantes e tão recorrentes na língua. Dessa forma, nos livros didáticos o estudo gramatical continua a seguir os ditames prescritos nos compên- 4. Disponível em: http://www.lpeu.com.br/q/k6bs9. Acessado em: 07 de agosto de 2015. 1625 Anais Eletrônicos VI ECLAE / Pôsteres dios gramaticais. Nos sites, constatamos que foi possível verificar a utilização da partícula no texto oral, como forma comparativa, mas seguindo, também, a orientação prescritiva presente nas gramáticas tradicionais. Assim, neste veículo, há o reconhecimento da presença da variação na língua, mas há, da mesma forma, o aconselhamento aos internautas a não utilizarem essa forma por ser característico do texto oral. Fica evidente para nós, a partir da discussão incipiente realizada, que o percurso do reconhecimento da variação linguística, presentes nos PCN, ainda há muito que ser trilhado. Referências BATISTA, A. A. G. & ROJO, R. Livros escolares no Brasil: a produção científica. In: VAL, M. da G. C. & MARCUSCHI, B. Livros didáticos de Língua Portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.13-45. BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. BYBEE, Joan. Language, usage and cognition. 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