o conceito de competência nos serviços de recrutamento - Cefet-MG
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o conceito de competência nos serviços de recrutamento - Cefet-MG
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS COORDENAÇÃO DO CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NOS SERVIÇOS DE RECRUTAMENTO E SELEÇÃO DE TRABALHADORES: DOS GESTOS REPETITIVOS E PRESCRITOS AO FAZER HUMANIZADO E SOCIAL Corina Alves Farinha Belo Horizonte 2009 Corina Alves Farinha O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NOS SERVIÇOS DE RECRUTAMENTO E SELEÇÃO DE TRABALHADORES: DOS GESTOS REPETITIVOS E PRESCRITOS AO FAZER HUMANIZADO E SOCIAL Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação Tecnológica. Área de Concentração: Educação Tecnológica - ET Orientador: Prof. Dr. Antônio de Pádua Tomasi Belo Horizonte 2009 Dedico este trabalho ao Matheus, fruto do meu melhor projeto de vida, e ao Paulo Roberto, pelo incentivo, apoio e crédito em meu potencial. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus e a todas as pessoas, que, de uma forma ou de outra, estiveram presentes nesta trajetória. Em especial, agradeço: • aos amigos e amigas de todas as horas, especialmente Aparecida e Édima; • ao corpo de professores e trabalhadores do Curso de Mestrado em Educação Tecnológica; • ao Prof. Dr. Antônio de Pádua Nunes Tomasi, orientador desta pesquisa; • aos Professores Doutores Adriane Vieira, Fábio Wellington Orlando da Silva, Iris Barbosa Goulart e Jerônimo Coura Sobrinho, pelas contribuições e orientações enriquecedoras; • à Professora Maria Helena Braga Mendes, pelo acolhimento e aprimoramento formal do texto; • à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG, pela disponibilização dos recursos necessários à realização deste trabalho. “[...] importa-nos não apenas a dimensão natural do gesto que trabalha o objeto e lhe dá vida, do gesto preciso que fabrica coisas e assegura seu funcionamento [...], dimensão humana e social do gesto que, ao produzir a existência humana, produz também sociedade e cultura, traduz hábitos, costumes, sentimentos pensamentos, modos de viver e de ser.” TOMASI (2006) RESUMO Esta pesquisa aborda o conceito de competência, caracterizado pela polissemia, visando a contribuir para seu entendimento pelas empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, uma vez que lhes cabe responder às demandas por competência por parte das organizações contratantes, enfrentando o desafio de interpretar as diferentes concepções de competência manifestadas no discurso empresarial. A pesquisa, de caráter qualitativo, é amparada teoricamente por estudos de autores franceses e brasileiros dedicados à abordagem do tema competência no âmbito acadêmico e organizacional. Por meio de entrevista aberta, buscou-se responder à seguinte questão: Que princípios tendem a nortear, na atualidade, as ações dos serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, em função da concepção de competência predominante no âmbito das empresas contratantes? Para isso, foram analisadas as práticas de oito empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, sediadas em Belo Horizonte, MG. Partiu-se do pressuposto de que a concepção de competência predominante nos serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores privilegia princípios tradicionais, contemplando modelos construídos para a atuação do trabalhador em processos produtivos rígidos, a exemplo do modelo taylorista-fordista, centrado no cargo e na escolha da pessoa certa para o cargo certo. Os resultados evidenciam a tendência à busca de inovação, em função de mudanças no mundo do trabalho, decorrentes do desenvolvimento de novas tecnologias, da globalização da economia e de outros fatores, que determinaram um sistema de produção flexível e novas exigências em relação ao trabalhador, em termos de competência, gerando, conseqüentemente, a necessidade de criação de um novo referencial para a avaliação dos trabalhadores. A pesquisa constatou divergências no entendimento do conceito competência e comprovou sua associação a princípios tayloristas-fordistas no processo de recrutamento e seleção; paralelamente, contudo, evidenciou a tendência à avaliação dos candidatos às vagas sob o enfoque da mobilização do saber (conhecimento escolarizado), do saber-fazer (experiência) e do saber-ser (atitude). Palavras-chave: competência, qualificação, recrutamento e seleção, gestão de pessoas. ABSTRACT This research deals with the concept of competence, characterized by the polisemic, and its aim is to contribute for its understanding by the companies that recruit and select workers. Once it is their responsibility to answer the companies’ demands for competence, facing the challenge to interpret the different conceptions of this term in the enterprise speech. This qualitative research is theoretically based by studies of French and Brazilian authors devoted to the theme in academic and organizational scope. The research was conducted through opened interview, and its main objective was to answer the following question: which principles tend to guide, in the present time, the services’ actions of recruitment and selection of workers, based in the competence conception predominant in the contracting companies? To reach this aim, were analyzed the practice of eight companies of workers’ recruitment and selection in Belo Horizonte, MG. The starting point was the assumption that the competence concept prevailing in the recruitment and selection companies privilege the traditional principles, contemplating models constructed to the worker’s performance in a rigid productive processes (the taylorism-fordism model, for example) centered in the function and the individual work. The results evidence the trend to the innovation in function of changes in the work’s world, originated by the development of new technologies, the economy’s globalization and other factors, that determined a system of flexible production and new requirements related to the worker, in competence terms, consequently, generating the creation’s necessity of a new reference point to the workers’ evaluation. The research evidenced divergences about the understanding competence concept and confirmed its association to the taylorism-fordism principles in the recruitment and selection process; paralleled, however, evidenced the trend to the candidates’ evaluation to the position under the approach of the knowledge’s mobilization (knowledge constructed in schools), of know-how (experience) and know to be (attitude). Keywords: competence, administration. qualification, recruitment and selection, workers’ LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Qualificação: aspectos conceituais ................................................ 55 Quadro 2 - Abordagem tradicional e por competência na captação de trabalhadores ................................................................................. 68 Quadro 3 - Critério e subcritérios para análise dos dados .............................. 78 Quadro 4 - Participantes da pesquisa .............................................................. 86 Quadro 5 - Concepção de competência dos entrevistados ............................. 110 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 11 1.1 Justificativa e questão de pesquisa ........................................................ 13 1.2 Objetivos ................................................................................................ 14 1.2.1 Objetivo geral ......................................................................................... 14 1.2.2 Objetivos específicos ............................................................................. 14 2 REFERENCIAL TEÓRICO ..................................................................... 15 2.1 O mundo do trabalho e o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores ......................................................................................... 15 2.1.1 Conceituação de trabalho ...................................................................... 15 2.1.2 Do sistema de produção rígido ao sistema de produção flexível ........... 24 2.1.3 Do gerenciamento da mão-de-obra à gestão de pessoas ..................... 32 2.1.4 O processo de recrutamento e seleção de trabalhadores ..................... 39 2.2 Da qualificação profissional à competência ........................................... 47 2.2.1 A qualificação profissional ...................................................................... 48 2.2.2 A competência ........................................................................................ 55 2.2.3 A gestão de competências e o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores ......................................................................................... 63 3 METODOLOGIA DA PESQUISA ........................................................... 73 3.1 Critérios para escolha dos participantes da pesquisa ............................ 75 3.2 Critérios para análise dos dados coletados ........................................... 78 3.3 Unidades de análise: as empresas participantes da pesquisa ............ 79 3.3.1 Empresa R&S 1 ...................................................................................... 79 3.3.2 Empresa R&S 2 ...................................................................................... 80 3.3.3 Empresa R&S 3 ...................................................................................... 80 3.3.4 Empresa R&S 4 ...................................................................................... 81 3.3.5 Empresa R&S 5 ...................................................................................... 82 3.3.6 Empresa R&S 6 ...................................................................................... 82 3.3.7 Empresa R&S 7 ...................................................................................... 83 3.3.8 Empresa R&S 8 ...................................................................................... 84 4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ....................................... 87 4.1 Evolução do perfil profissional buscado no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores 1980 – 2007 ............................................... 87 4.1.1 Relevância dos saberes escolarizados e das experiências ................... 87 4.1.2 Mudança no perfil profissional demandado ............................................ 88 4.2 Práticas das empresas de recrutamento e seleção para atender à demanda das contratantes ..................................................................... 93 4.2.1 Captação da demanda das empresas contratantes ............................... 93 4.2.2 Busca de referência na concepção de competência da empresa contratante ............................................................................................. 95 4.2.3 Construção do perfil profissional demandado ........................................ 96 4.2.4 O candidato: perfil profissional ofertado ................................................. 97 4.3 Gestão por competências na percepção dos entrevistados .................. 105 4.3.1 O conceito de competência do empregador, na concepção dos entrevistados .......................................................................................... 106 4.3.2 O conceito de competência dos serviços de recrutamento e seleção ... 107 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 114 REFERÊNCIAS ....................................................... 119 APÊNDICE A – Roteiro de entrevista .................................................... 123 11 1 INTRODUÇÃO O conceito de competência é polissêmico, por ser essa concepção estudada por distintas áreas do conhecimento, gerando inúmeros vieses e interpretações, tanto no âmbito acadêmico quanto no organizacional. Em termos gerais, a competência engloba três requisitos básicos: saberes construídos ao longo da existência, com implicações na vida profissional, habilidades e atitudes do trabalhador em face das inúmeras situações de trabalho. O tema não é um modismo; pelo contrário, seu registro é bem antigo. De acordo com Isambert-Jamati (2002), a palavra competência no fim da Idade Média era associada à linguagem jurídica. Na atualidade, o conceito de competência vai além desse enfoque, entrando no campo da Psicologia, da Educação e da Sociologia. Envolve basicamente três modalidades de saberes: o saber em termos de conhecimentos, o saber-fazer e o saber-ser. A competência está intimamente relacionada à ação, ao movimento e ao empreendimento. Seu reconhecimento depende do olhar do outro. Os estudos desenvolvidos em torno da construção de tal conceito iniciaram-se em 1980 na França e, no Brasil, em 1990. A fase atual desses estudos circunscrevese à divulgação e à aplicação desse conceito na gestão de pessoas no âmbito das organizações. Cabe ressaltar que, sob perspectivas diferenciadas, os autores franceses Zarifian (2001, 2003, 2005), Le Boterf (2003, 2006), Dadoy (2004), Dugué (2004), Ropé & Tanguy (2002), Stroobants (2002), e os brasileiros Fleury & Fleury (2004), Tomasi (2004), Dutra (2004) e Ruas (2005) são unânimes em afirmar que os entendimentos sobre o conceito de competência são diferenciados na academia e nas empresas, particularizando-se em função de características como: cultura organizacional, ramo de atuação, porte da empresa, tecnologia adotada e relação estabelecida com o mercado, com os clientes e os trabalhadores. Assim, o trabalhador avaliado como competente em uma empresa poderá não o ser sob a avaliação de outra, mesmo porque a competência é situacional. As pesquisas de Zarifian (2005) indicam que a competência, no meio empresarial, está ligada ao uso de dois tipos de instrumentos: a construção de referenciais e a realização de entrevistas com o empregado por seu superior hierárquico, visando a avaliar se o profissional está exercendo ou não as 12 competências requeridas. A construção de referenciais, segundo o autor, é feita por meio de listas de competências centradas no saber-ser, objetivando indicar, de maneira prescritiva, aquilo que os assalariados devem saber fazer e dizer, numa dada situação de trabalho. Essa construção assemelha-se àquela dos referenciais do trabalho taylorista, centrados na prescrição de tarefas. Nesse contexto, o trabalhador dito competente será aquele que, ao desenvolver seu trabalho, detém as competências atitudinais e comportamentais prescritas no referencial. Por outro lado, Le Boterf (2006) propõe que os métodos de avaliação da competência de um profissional aplicados nas organizações analisem a prática a que o trabalhador recorre para interpretar as prescrições de determinado trabalho. Uma prática não corresponde, item a item, a uma prescrição. Se assim fosse, a prática seria reduzida a uma simples execução de orientações e de normas. Nesse sentido, o alvo da avaliação não é o conjunto de competências do trabalhador, pois estas, por si sós, são invisíveis, mas aquilo que o mecanismo da avaliação designa como competências. No Brasil, segundo Dutra (2004), as empresas têm revelado dificuldades quanto ao conceito de competência, devido às diferentes maneiras de compreensão do termo e às formas de sua articulação pelos responsáveis das empresas. Observa o autor que, em relação ao tema, coexistem nas organizações discursos carregados de modernidade, aliados a posturas tradicionais típicas do modelo de produção rígido. Há o entendimento de que se trata de um modismo, que não atende às necessidades das organizações. Os autores Fleury & Fleury (2004), embasados em outras pesquisas, observam a tendência à utilização do conceito de competência pelos profissionais de recursos humanos como algo que pode ser medido e quantificado. À semelhança dos padrões e resultados obtidos por meio do treinamento, a competência é concebida como um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes, ligado ao desempenho do trabalhador, referindo-se, portanto, à tarefa ou ao conjunto de tarefas prescritas em um cargo. No modelo de produção rígido, o processo de recrutamento e seleção buscava avaliar, predominantemente, a qualificação profissional do candidato, seus diplomas e seu tempo de experiência, e aplicava-lhe testes psicológicos, em que eram aferidos aspectos pessoais do candidato, como disciplina, hábitos e costumes, 13 mas não aspectos como a iniciativa, a capacidade de trabalho em equipe e a criatividade, atualmente considerados essenciais. No mundo do trabalho atual, em função do modelo de produção flexível, os serviços de recrutamento e seleção priorizam a avaliação das capacidades dos trabalhadores, tais como compreensão do processo de trabalho, criatividade, pensamento crítico, comunicação, autonomia e responsabilidade. Essa tendência contraria os preceitos embasados no controle, nas regras e na prescrição de tarefas, no princípio do cargo (pessoa certa para o cargo certo), revelando certa ruptura com o modelo taylorista-fordista na gestão de pessoas. Em decorrência dessa mudança, impõe-se o desafio da construção de novos referenciais para a avaliação dos trabalhadores no âmbito do processo de recrutamento e seleção, que é freqüentemente terceirizado e realizado por empresas específicas. 1.1 Justificativa e questão de pesquisa A problemática que suscitou a escolha do tema desta pesquisa tem a ver com a trajetória de vida da autora, na busca por emprego. Como administradora de empresas, vivenciou a situação de busca por uma colocação no mundo do trabalho e atuou na área de recrutamento e seleção de trabalhadores. Nessa vivência, percebeu tanto a própria dor, quanto a do outro, preterido no processo seletivo, frustrado e levado, inúmeras vezes, aos sentimentos de impotência, deserção de si mesmo, incompetência. Por ter vivenciado tal processo, a autora buscou, com duplo propósito, respostas para suas indagações sobre o mundo do trabalho, por meio da investigação científica e inserção profissional no magistério de nível superior. Atuando como professora, a autora tem buscado contribuir para que seus alunos ingressem no mundo do trabalho cientes de algumas das respostas originadas desta investigação, cujo tema é o conceito de competência no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores. Essas razões, aliadas à necessidade de mudanças nos procedimentos de recrutamento e seleção de trabalhadores, já que, conforme observado, a complexidade do mundo empresarial contemporâneo requer profissionais com uma bagagem de conhecimentos, experiências e atitudes (competências) que agreguem 14 valor aos resultados da organização, foram julgadas oportunas para investir esforços no aprofundamento do tema, com vistas a responder à seguinte questão de pesquisa: Que princípios tendem a nortear, na atualidade, as ações dos serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, em função da concepção de competência predominante no âmbito das empresas contratantes? Acredita-se que esta investigação poderá contribuir para o melhor entendimento do conceito de competência no âmbito organizacional brasileiro e na área de recrutamento e seleção de trabalhadores, favorecendo, conseqüentemente, o aprimoramento desse processo. 1.2 Objetivos 1.2.1 Objetivo geral Identificar os princípios priorizados pelas empresas de recrutamento e seleção de trabalhadores, respondendo às demandas dos empregadores, tendo em vista sua própria concepção de competência. 1.2.2 Objetivos específicos • identificar as mudanças ocorridas no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, no período de 1980 – 2007; • verificar o modelo de recrutamento e seleção adotado nas empresas pesquisadas, no período compreendido entre agosto/2006 e agosto/2007; • identificar a concepção de competência das organizações contratantes, em função da qual os responsáveis pelo recrutamento e seleção de candidatos para ocuparem as vagas ofertadas constroem seu próprio conceito, em cada processo seletivo realizado; • estabelecer um cruzamento entre o perfil de trabalhador demandado pela empresa contratante e o ofertado pelo candidato à ocupação das vagas. 15 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 O mundo do trabalho e o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores “[... ] o mundo do trabalho se tornou mais complexo ao longo do tempo, ou, melhor, [...] ele sempre foi mais complexo do que imaginávamos.” TOMASI ( 2004, p. 12) Esta seção enfoca o mundo do trabalho em quatro subseções, cujo propósito é explicitar as mudanças ocorridas no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, especialmente no período compreendido entre 1980-2007. Na primeira subseção, será abordada a evolução do conceito de trabalho. Na segunda será discutida a organização do trabalho em termos de procedimentos e instrumentos, o conceito de trabalhador e a questão da educação profissional vinculada aos conhecimentos relativos à profissão, agente de desenvolvimento da cidadania e do homem. Na terceira será estabelecida a relação entre a adoção de um modelo de produção e a maneira pela qual o trabalhador é dirigido no trabalho. Finalmente, a quarta subseção abordará o perfil profissional demandado pelo mundo do trabalho e a maneira como ocorre a alocação de trabalhadores nas organizações. 2.1.1 Conceituação de trabalho O trabalho é uma atividade que historicamente se desenvolveu e se organizou nas diferentes sociedades. Na busca por elementos que possibilitem compreender essa atividade no presente, procedeu-se a uma breve incursão histórica, no intuito de definir o significado do trabalho no contexto atual. Segundo Albornoz (2006), a palavra trabalho provém do vocábulo latino tripalium, que designa um instrumento utilizado pelos agricultores para bater os grãos de trigo, com a finalidade de abri-los, e as espigas de milho, para retirar os 16 grãos. Composto de três (tri) paus (palus) aguçados, algumas vezes com ferro nas pontas, o tripalium foi concebido originalmente (ou posteriormente transformado) como um objeto para causar dor e sofrimento a prisioneiros e escravos. De tripalium derivou-se o verbo tripaliare, que significa torturar alguém no tripalium. Nas línguas românicas, há indícios da inserção da palavra trabalho desde o século XII. No português, o verbete trabalho, no dicionário Houaiss (2001), registra as acepções: esforço incomum, luta, lida, faina. Note-se que essas palavras guardam a idéia de algo pesado, difícil, exigente. O dicionário Michaellis (1998), por sua vez, registra que o termo trabalho está relacionado ao exercício material ou intelectual para fazer ou conseguir alguma coisa; é ocupação em alguma obra ou ministério, mas também é esforço, é luta. O significado de trabalho também contempla a aplicação da atividade humana a qualquer exercício de caráter físico ou intelectual. Contudo, há outras circunstâncias que conservam as associações primitivas do termo, como trabalhoso, significando algo custoso, difícil, cansativo, aquilo que não é fácil de fazer; quem se encontra em dificuldades está passando trabalho. Assim, etimologicamente, a palavra trabalho remete a um sentido depreciativo, relacionado à dor e à aflição, ao tormento e à agonia. Tal visão é corroborada pelas concepções de trabalho ligadas à filosofia, à religião e a elementos de distinção social categorizadores dos indivíduos de acordo com as atividades por eles desenvolvidas, presentes em documentos de civilizações antigas. Tomazi (2000) observa que, na civilização greco-romana, sob influência filosófica, o conceito de trabalho se assentava na dicotomia: liberdade e sujeição. Livre era o indivíduo que dispunha de pessoas que trabalhavam para e por ele. A liberdade estava intrinsecamente ligada à autonomia dos meios de sobrevivência, à ociosidade, à atividade intelectual, à práxis, prática do discurso na vida pública, utilizando-se de objetos e coisas produzidas pelos outros. As atividades relacionadas à sobrevivência condenavam o indivíduo a uma vida cativa, dividida entre labor (sujeição do indivíduo às forças biológicas, ao esforço físico de trabalhar a terra) e poiesis (atividade livre ligada ao ato de fabricar coisas, à confecção e à criação de um produto cuja destinação era dada pelo produtor). Segundo Tomazi (2000), a visão negativa de trabalho foi historicamente reforçada pelo trabalho escravo, essencial para a economia e para as sociedades. 17 Desde as civilizações antigas, o trabalho é praticado com características distintas. No Egito, segundo o citado autor, o trabalho era revestido de forte conotação exploratória, compulsória. Inicialmente, era desenvolvido por escravos, judeus, prisioneiros de guerra e pessoas com dívidas; posteriormente, pelos africanos, em virtude do descobrimento da América, e por não-escravos, indivíduos livres que exerciam profissões variadas e eram recrutados forçadamente para trabalhar em obras públicas, canais de irrigação e realizar tarefas agrícolas. O trabalho servil, presente nas civilizações antigas, igualmente cooperou para a acepção depreciativa de trabalho. A servidão, diferentemente da escravidão, caracterizava-se pela não-propriedade dos servos pelos senhores feudais. O trabalho, nessas condições, era associado a fator de distinção social, uma vez que categorizava os camponeses em servos e os detentores dos direitos da terra em senhores de terras e clero, marcando, assim, as relações entre os servos e os senhores. Ainda segundo Tomazi (2000), a servidão, difundida pela Europa no século X, permaneceu na Inglaterra até o século XVII e, até o início do século XIX, em outros países europeus. Outras atividades foram desenvolvidas no período feudal, entre as quais o comércio, o negócio e o artesanato, sendo este último preponderante na concepção do trabalho como atividade livre (FRIEDMANN, 1972). Cabe observar que a Igreja, nesse período, como aponta Tomazi (2000), reforçou a concepção pejorativa de trabalho, ao sancionar os compromissos feudais entre os senhores e os servos, na definição das classes. Acrescenta o autor que, devido à interpretação da Igreja, foi atribuído ao trabalho o sentido de uma maldição, que deveria existir somente na quantidade necessária à sobrevivência dos indivíduos. A visão dogmática judaica da Igreja, segundo a qual o trabalho decorreu do pecado original, que expulsou Adão e Eva do paraíso, provém da interpretação das escrituras (Velho Testamento). Com o advento do Cristianismo, uma conotação positiva do trabalho foi instaurada gradativamente, por meio das concepções de Paulo de Tarso, que o concebia como uma bênção de Deus; de Aurélio Agostinho, que considerava o trabalho como obrigação e devoção divina; de Tomás de Aquino, para quem o trabalho era atividade racional. O entendimento do trabalho dentro do Cristianismo sofreu uma reavaliação com Martinho Lutero, passando a ser considerado como o 18 fundamento de toda a vida, constituindo uma virtude e um dos caminhos para a salvação (RUSSEL, 2001). Segundo Tomazi (2000), no Protestantismo, a profissão passou a ser vista como vocação, e a preguiça, como algo pernicioso, que deve ser combatido. O cristão protestante era orientado no sentido de levar uma vida ascética, de costumes simples, e poupar, para reinvestir no trabalho, gerando, então, novas oportunidades de emprego para outros indivíduos. Essas concepções influenciaram o entendimento de trabalho na sociedade ocidental, com as contribuições de Weber1 (1982), centradas na análise da ação social dos indivíduos, com um sentido positivo. Para Weber (1982), a ação social é entendida como qualquer ação que o indivíduo venha a praticar, porém, orientada pela ação dos outros. Sob a ótica de Weber (1982), os indivíduos escolhem trabalhar, porque se deparam com outros indivíduos que trabalham e, assim, o trabalho passa a ser encarado como algo significativo. Ao trabalharem, eles orientam suas escolhas pelos mais variados motivos, tais como a sobrevivência, a realização pessoal e profissional e outros. Essas escolhas, segundo Weber (1982), são evidenciadas em diferentes tipos de ação social, as quais podem ser agrupadas de acordo com o modo pelo qual os indivíduos as orientam. Weber (1982) estabeleceu quatro tipos de ação social: a tradicional, determinada por um costume ou um hábito arraigado; a afetiva, determinada por afetos ou estados emocionais; a racional relativa a valores, determinada pela crença consciente num valor considerado importante, independentemente do êxito desse valor na realidade, e a racional relativa a fins, determinada pelo cálculo racional que estabelece fins e organiza os meios necessários. Infere-se daí que os indivíduos trabalham devido a escolhas emocionais, afetivas, por costume, por hábito, pela tradição, pelo valor atribuído ao trabalho, por um sentido de utilidade, por uma escolha racional. O trabalhador assalariado é um indivíduo que trabalha para um patrão mediante salário, recebendo remuneração por um serviço prestado. Os antecessores dos trabalhadores assalariados foram os jornaleiros, artesãos diaristas, que recebiam uma remuneração por jornada, contratados por um mestreartesão. Os artesãos eram profissionais que se reuniam nas associações dos trabalhadores de diferentes ofícios, intituladas no século XVII de Corporações de 1 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982. 19 Ofícios (OLIVEIRA, 1998). Em seu interior, o trabalho era dividido hierarquicamente entre mestre-artesão (detentor do conhecimento técnico) e aprendiz (mão-de-obra não-qualificada). O aprendiz passava a viver com o mestre-artesão, e as relações entre eles assentavam-se na base da troca de conhecimento técnico por mão-deobra barata e fiel, vestimentas e alimentação. O trabalho artesanal tinha caráter divisório e corporativo2. No período feudal, a produção artesanal, submetida à oferta e à procura, foi uma das fontes de alimentação das atividades ligadas ao negócio, ao comércio e ao mercado. Os artesãos dispunham de suas capacidades e dons para dominarem todo o processo produtivo, desde a escolha da matéria-prima até a sua comercialização. Assim, o trabalho manual e o intelectual se atrelavam, com um significado intrínseco. Além disso, havia o reconhecimento do artesão como indivíduo, em suas habilidades e capacidades profissionais. O artesão vendia um produto e não a força de trabalho (TOMAZI, 2000). Foram as atividades artesanais que compuseram o trabalho desenvolvido na manufatura (arranjo de novas formas de produção técnica). Embora o trabalho artesanal tenha sido a base da manufatura, nesse período, o trabalho começou a ser concebido como algo separado do executor (artesão), devido à dissolução dos processos de trabalho baseados nos ofícios. Com a manufatura, uma nova divisão do trabalho se estabeleceu. O trabalho artesanal corporativo, devido à reorganização e decomposição em tarefas, passou a trabalho coletivo, e o artesão, a operário assalariado (TOMAZI, 2000; GORZ, 2001). Com a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, em meados do século XVIII, a manufatura evoluiu para a industrialização. Com isso, o trabalho assalariado expandiu-se. Nesse panorama, as oficinas, transformadas em fábricas tornaram o produto artesanal em produto fabricado mecanicamente. O artesão é o operário que trabalha para alguém e recebe um salário, ao vender sua força de trabalho. O trabalho assalariado gerou o trabalhador formal, aquele que realiza tarefas com base em contratos, com salário acordado e com direitos, mais tarde previstos em leis. O modo de organização do trabalho assalariado trouxe a rigidez no trabalho, as ações repetitivas, a hierarquização entre trabalhadores hábeis e inábeis, bem como a qualificação profissional e a exclusão dos ofícios, que produziu uma classe 2 Disponível em www.brasilescola.com/história. Acesso em 01/07/2008. 20 trabalhadora considerada sem destreza. O trabalho assalariado remete a emprego e às implicações a ele ligadas, tais como: manutenção, reconhecimento e visibilidade sociais, fadiga, oportunidade de carreira. Além disso, o trabalho assalariado marca a divisão entre o ambiente doméstico, o ambiente produtivo e a propriedade privada (TOMAZI, 2000; GORZ, 2001, BRAVERMAN, 1987). Para Gorz (2001, p.14) “o trabalho, mesmo favorecendo o desenvolvimento das faculdades corporais e intelectuais, tem finalidades que não podem ser a de todos e produz riquezas reservadas”, ou seja, o produto do trabalho depende da valorização de um outro indivíduo, depende das finalidades a ele atribuídas. O trabalho não pertence ao trabalhador, mas àquele que demanda o seu trabalho. Em outras palavras, existe uma interdependência direta entre o trabalho executado, ofertado pelo trabalhador, e a demanda do comprador desse trabalho, o patrão. A oferta e a demanda por trabalho determinam o salário, que se tornou sinônimo de emprego com contrato de trabalho estabelecido. Assim, aparentemente, a divisão técnica e o sistema produtivo são as causas do trabalho assalariado, da dominação capitalista, segundo Gorz (2001). Contudo, nem os proprietários das fábricas, nem os artesãos proprietários de suas capacidades de produção podem pôr fim à opressão e à subordinação operárias ao trabalho assalariado. Para Gorz (2001), nem a divisão e o parcelamento das tarefas, nem a cisão entre trabalho intelectual e manual, nem mesmo o desenvolvimento técnico, o gigantismo industrial e a centralização dos poderes são necessários a uma produção eficaz, porque a propriedade dos meios de produção do capitalista ou as capacidades produtivas do artesão são poderes. O poder continuará com o capital, assim como o poder do artesão sobre o aprendiz. O trabalho assalariado é um poder sobre o trabalhador. Nesse fato, consiste o poder do patrão sobre o empregado, por ser aquele que faz realizar um trabalho. Com a industrialização, o trabalho, em face da segunda Revolução Industrial, passou a ser marcado pelas inovações de base técnica e mecânica, pelo aço e pela eletricidade, pela medição dos tempos e movimentos dos gestos do trabalhador, pela separação entre a concepção e a execução do trabalho. Todos esses elementos propiciaram o desencadeamento da produção em série e em larga escala e o modo de produção taylorista-fordista. O trabalho, nesse modelo, consistia em atividade desenvolvida na linha de montagem, caracterizada pela rigidez e especialização, pelo atrelamento ao modelo da profissão, à execução de papéis 21 profissionais e ao conceito de qualificação do profissional, ao gigantismo industrial e ao salário (BRAVERMAN, 1987; MATOSO, 1995; HARVEY, 2005). Nesse contexto de intenso desenvolvimento industrial, o trabalho tornou-se um processo racionalizado, maquinal, rotineiro. Todavia, a presença do trabalhador como sujeito foi nesse período evidenciada pelo olhar de Friedmann (1972), cujos estudos revelam um modelo de trabalho especializado, fragmentado, taylorizado. Na concepção de Friedmann (1972), o trabalho associa-se a um sentido dicotômico de liberdade e prisão. O trabalho livre é fruto do entendimento e do controle da totalidade do processo, como ocorre, por exemplo, com o artesão. Segundo o autor, o trabalhador, para compensar a frustração percebida no trabalho taylorizado, busca satisfação em atividades prazerosas, plenas de interesse, participação e significação, as quais lhe proporcionam horas de liberdade e lazer. O tempo do trabalhador é, então, dividido entre a sujeição a atividades relativas ao trabalho (ganha-pão) e à liberdade conquistada fora do tempo de trabalho. No tempo livre, o trabalhador dedica-se a atividades paralelas, como os “bicos”, e a ações não obrigatórias, livremente escolhidas, concebidas como lazer, como, por exemplo, as de natureza familiar, social, religiosa. Segundo essa concepção, atividades como as domésticas, de jardinagem, de manutenção do lar, quando remuneradas, constituem trabalho, mas, quando não remuneradas, são consideradas lazer. Cabe ressaltar que na atualidade, o trabalho doméstico sem remuneração consta na pauta de movimentos sociais que defendem os direitos femininos em torno da garantia previdenciária e o reconhecimento da função social das mulheres na sociedade. Friedmann (1972) ressalta ser a subjetividade a válvula de escape do trabalhador, observando que, “apesar da especialização e da fragmentação do trabalho, o trabalhador não é fragmentado: guardando a sua individualidade, os trabalhadores são maiores do que suas tarefas”. Essa ótica serviu de ponto de apoio a Braverman (1987, p.124): [...]os trabalhadores não são destruídos como seres humanos [...], suas faculdades críticas, inteligentes e conceptuais permanecem sempre, em algum grau [...] por mais enfraquecidas ou diminuídas que sejam. Esse enfoque remete ao contexto do trabalho na atualidade, num momento em que é apontado, de um lado, o enfraquecimento, em certa medida, do modelo de produção taylorista-fordista, e, de outro, a inserção, de maneira heterogênea, do 22 modelo de produção flexível, num momento em que a características individuais do trabalhador são levadas em conta, no mundo do trabalho, como um fator de agregação de valor à produção (TOMASI, 2004). Na atualidade, o trabalho caracteriza-se por não mais se circunscrever a ambientes clássicos, desenvolvendo-se por meio de atividades industriais, comerciais e serviços, em ambientes formais e informais, reais e virtuais (internet). Além disso, tende a açambarcar a vida privada e o tempo livre dedicado ao lazer, às férias e à família, devido, em parte, às inovações na área da informação, da informatização e da comunicação. As relações de trabalho mudaram, ganhando flexibilidade nos tempos atuais, em que coexistem diferentes modalidades de trabalho: o remunerado, não-remunerado, voluntário, formal, informal, autônomo, em tempo parcial, integral, terceirizado. Igualmente, há que se lembrar o trabalho infantil, o feminino e o trabalho escravo. O trabalho, na contemporaneidade, caracteriza-se também pela valorização dos conhecimentos e dos saberes atitudinais. O trabalho atual está deixando de restringir-se a um posto, a uma função, a uma tarefa realizada de forma isolada, passando a privilegiar a equipe, a rede de relacionamentos e a execução por projeto. Essas tendências inauguram um novo cenário, com ênfase nas relações e na comunicação, no inusitado, no acontecimento e nos serviços (ZARIFIAN, 2001). Outra característica do trabalho contemporâneo, apontada pelo sociólogo francês Zarifian (2001), é a tendência a contemplar a individualidade de quem o executa, diferentemente do modelo tradicional, cuja ênfase recai sobre a efetivação de uma função ou de uma determinada profissão. De certa forma, pode-se perceber que o trabalho volta para o trabalhador. Trabalhar é produzir soluções de problemas para as pessoas e instituições, nos seus diferentes tipos de atividades. O resultado do trabalho pode ser um produto ou um serviço prestado de maneira formal ou informal. Uma outra forma de entendimento do trabalho como prestação de serviços é a terceirização, sujeita às demandas do contratante, atualmente usada em larga escala pelas organizações, visando à redução de custos e ao aprimoramento da qualidade dos produtos. A terceirização focaliza as atividades-meio, ou seja, aquelas que não constituem a razão de ser da organização. A terceirização é chamada por Zarifian (2003, p. 123) de “modelo do assalariado-empresário”, ou falso empresário. O contratado é responsável pela própria formação, manutenção e mobilização de suas competências, as quais são 23 vendidas ao contratante pelo valor da prestação gerada por essa venda. Se, de um lado, o contratado é submetido a um contrato de trabalho normal, assalariado, por outro, a empresa contratante agirá como se o contrato fosse, de fato, comercial, reversível a qualquer momento, julgado pelo produto que a pessoa oferece, configurando uma nova versão de trabalho: por empreitada. Como observa Zarifian (2003), a empresa contratante, desobrigada do compromisso com a relação empregado-patrão, pode rescindir o contrato, alegando, entre outras coisas, que o contratado não tem mais as competências que lhe são úteis, ou que lhe faltam competências, em face da concorrência, ou ainda que o serviço prestado não está mais à altura dos desempenhos esperados. Não se pode, contudo, perder de vista que o contratado é um assalariado; não é aquele que faz realizar um trabalho, nem tem o poder daquele que o faz. O contratado é mascarado de empresário. Com isso, há o desaparecimento ou abandono das disposições do direito trabalhista e ocorre a flexibilização das garantias coletivas. Nisso consiste a utilização da competência de maneira ideológica, esclarece Zarifian (2003), bem como, a situações que remetem à precariedade e à fragilidade da relação salarial. A flexibilização, uma das características da fase inicial da industrialização, pode ser vista em Braverman (1987) para quem a empreitada caracteriza-se pela compra do trabalho como matéria-prima e não como força de trabalho. Nesse aspecto, o passado e o presente parecem se encontrar. Para finalizar esta breve incursão histórico-sociológica, na busca da construção de um entendimento sobre o que é o trabalho, é pertinente lembrar os estudos do sociólogo francês Touraine (1994), segundo o qual a Sociologia é um diálogo inseparável das realidades da vida social em si. O autor propõe uma nova Sociologia do Trabalho, em que o conhecimento e a informação constituem os elementos-chave da produção. Touraine (1994) propõe uma Sociologia pósindustrial, a revisão das concepções clássicas e a construção de um sistema econômico mais atrelado à transformação da informação em mercadoria do que aos bens materiais, onde a produção e a difusão dos bens culturais, saúde, educação e informação ocupam um lugar tão central quanto o da produção de bens materiais na sociedade industrial clássica. Como tal, há participação e exclusão, níveis sociais e minorias. Os atores, nessa sociedade, não se definem inteiramente pelo seu trabalho, porém, pela carreira, pelo consumo. O trabalho toma nova direção, deixando de ser produtor de coisas: 24 O trabalho aparece, por outro lado, como a participação conflituosa para um instrumento de transformação do mundo, como uma atividade de produção cultural, mais profundamente que de trocas sociais; a situação do trabalho não é um estatuto ou conjunto de papéis profissionais, mas o encontro de um sujeito, individual ou coletivo, de um poder e de uma situação de trabalho que é, às vezes, instrumental, política e cultural. O mundo operário clássico defendeu sua autonomia profissional contra o taylorismo-fordismo, assim como as crises cíclicas e a arbitrariedade patronal. Segundo Touraine (1994), o trabalho não se restringe à realização de papéis profissionais; o trabalho produz sociedade e, em vista disso, compreende-se que o conceito de trabalho está e estará sempre em constante mutação. Trata-se de um conceito em construção, em aberto, em concordância com o desenvolvimento das sociedades. 2.1.2 Do sistema de produção rígido ao sistema de produção flexível Os sistemas de produção ou modelos produtivos são métodos padronizados, por meio dos quais os produtos industrializados são fabricados. Os sistemas de produção constituem um conjunto de práticas adotadas nas indústrias e estão sujeitos a adaptações e substituições, as quais não são definitivas nem permanentes, pois objetivam atender às necessidades industriais, e estas são mutáveis. A adoção de um modelo de produção implica a organização do trabalho em seus processos e instrumentos, o perfil ou padrão de profissional adequado à implementação do trabalho e a maneira de gerenciar os trabalhadores. Para Gorz ( 2001), o sistema de produção é a tecnologia da fábrica e traduz a maneira como os instrumentos de trabalho são dispostos e a forma de manuseá-los. Segundo o autor, as técnicas de produção, a organização da produção e a divisão do trabalho (de um lado, o patrão, executor, e de outro, o empregado, executante do processo de produção) formam a matriz material, que, invariavelmente, reproduz, por inércia, as relações hierárquicas de trabalho. O panorama do desenvolvimento industrial, no final do século XIX e início do XX, encontrava-se, por um lado, em crescimento acelerado e, por outro, consideravelmente desorganizado e com necessidade de aumentar a eficiência das 25 organizações. Objetivando compreender a construção, o propósito de comando, o sistema de produção instituído naquele período, recorreu-se Braverman (1987). Segundo esse autor, o engenheiro norte-americano Taylor3 (1911), analisando o desenvolvimento do trabalho dos operários nas oficinas, concluiu que eles aprendiam a maneira de executar as tarefas por meio da observação dos companheiros, o que possibilitou diferentes maneiras e métodos de realização da mesma tarefa, além de grande variedade de instrumentos e ferramentas em cada operação. Empenhando-se em uma análise completa do trabalho, em seus tempos e movimentos, Taylor constituiu padrões precisos de execução. Para isso, ele recorreu a equipamentos como o cronômetro e o cronociclógrafo. O cronômetro contabilizava o tempo que o trabalhador despendia no desenvolvimento de sua atividade; o cronociclógrafo, por sua vez, permitia o estudo dos movimentos, por meio de fotografia do local de trabalho e a superposição dos ritmos do movimento do trabalhador. Logo, os gestos elementares dos trabalhadores são fundamentais nas atividades de trabalho. Foucault (1997, p. 129), reportando-se à intencionalidade disciplinar do corpo e do gesto, observa, quanto ao adequado emprego corporal, que “não consiste em ensinar uma série de gestos definidos”, mas em impor: [...] a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente. Logo, o trabalhador disciplinado pela imposição de gestos definidos demonstra eficácia e rapidez, evidenciando o processo de formação de um perfil, de uma representação. Portanto, o modelo de produção taylorista-fordista é caracterizado pela decomposição de cada processo de trabalho em seus movimentos componentes e pela organização de tarefas de trabalho fragmentadas, segundo padrões rigorosos de tempos e movimentos do trabalhador. Esse modelo de produção instaurou a separação do trabalho entre intelectual e manual (o escritório e o chão de fábrica); porém, a divisão social do trabalho e a especialização das tarefas não tiveram origem em Taylor. 3 TAYLOR, Frederick Winslow. The principles of scientific management. New York, 1967. 26 Marglin (2001) ressalta que a divisão social do trabalho e a especialização das tarefas são características das sociedades complexas e não traços particulares das sociedades industriais ou economicamente evoluídas. Na sociedade tradicional hindu, havia a divisão do trabalho em castas e hierarquia. Assim, a divisão do trabalho vem de longa data, porém, tornou-se referência industrial no século XX. Um novo ciclo de desenvolvimento industrial surgiu, quando a produção manual passou à linha de montagem, com a inserção da esteira, em 1914, por Henry Ford, nos Estados Unidos. A tecnologia da fábrica fordista fez o trabalho chegar ao trabalhador, fixando-o a um posto, e estabelecendo a jornada de trabalho e o valor de salário pago (HARVEY, 2005). Assim, em virtude das características do desenvolvimento industrial do século XX, o trabalho marcou-se pelo sistema de produção entendido como rígido. Tal rigidez se deve ao modo de fabricação em grande escala, de produtos padronizados e à utilização de maquinário específico. Em vista do acelerado desenvolvimento industrial, a demanda por trabalhadores nas minas, nas usinas siderúrgicas e nas fábricas aumentou substancialmente. Era necessário captar trabalhadores, o que provocou uma intensa migração de mão-de-obra dos campos agrícolas para os centros industriais, em busca de emprego. Porém, esses trabalhadores detinham saberes e dominavam instrumentos relativos ao trabalho manual, à agricultura, ou ainda a determinado ofício. Surgiu o trabalhador denominado mão-de-obra, já que a mão do trabalhador faz, obra. A mão do trabalhador se tornou uma ferramenta; sua força física tornou-se sinônimo de trabalhador. O trabalho nas fábricas e indústrias consistia em operar máquinas, cuja complexidade aumentava. Nesse contexto, verificou-se a falta dos conhecimentos que o trabalhador deveria ter, para executar o trabalho na indústria. No interior das indústrias, os trabalhadores aprendiam seus novos ofícios e atividades, observando os colegas de trabalho, o que indica certa desconsideração pela aprendizagem formal dos trabalhadores. O ambiente familiar (campesino) e o da oficina eram insuficientes para a aprendizagem de saberes pelos trabalhadores industriais iniciantes, razão pela qual a formação para o trabalho exigiu uma agência específica, tornando-se necessária a institucionalização do aprendizado para o trabalho. A escola foi o local escolhido, dada sua função de agente de socialização e de construção do conhecimento, priorizando os discentes, suas curiosidades e 27 indagações. Conhecimento sistematizado e disciplina foram considerados os principais valores que a escola poderia oferecer e desenvolver nos alunos, nos trabalhadores, nos operários. Uma vez que a produção se pautara por uma organização metódica, no modelo de produção taylorista, que instituiu a separação entre trabalho mental e trabalho manual, tais características definiram as bases da educação para o trabalho, naquele período do desenvolvimento industrial. No Brasil, nas décadas iniciais do século XX, tornou-se premente a necessidade de adequação ao desenvolvimento industrial, já baseada em âmbito mundial. Porém, a mão-de-obra brasileira não detinha conhecimentos referentes ao mundo do trabalho fabril, por ser basicamente composta por ex-escravos, trabalhadores rurais, imigrantes, além de crianças, que auxiliavam os adultos nas fábricas, mas não eram capacitados ao trabalho industrial. Além disso, esse período foi marcado por movimentos populares que exigiam ações dos governantes brasileiros, no sentido de ampliar o sistema de ensino, facilitando o acesso à educação por uma população constituída predominantemente por analfabetos (80%), porque entendiam que, no saber escolar, repousava a melhor maneira de colocação no mundo do trabalho. Por iniciativa do governo brasileiro, as primeiras bases de um sistema de formação profissional, nos diversos setores, foram lançadas no ano de 1909, com a criação de dezenove escolas de aprendizes e artífices, nas principais capitais onde o desenvolvimento industrial apresentava certa concentração. Essas escolas foram a gênese das escolas técnicas estaduais e federais, que, em 1942, se tornaram Centros Federais de Educação Profissional. Em 1978, esses centros foram transformados nos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET), marcando a implantação de uma nova modalidade de educação, de base tecnológica. Buscava-se, assim, suprir a necessidade de formação profissional para um mundo do trabalho em processo de modernização de tecnologias. Os CEFETs, desde 2004, formam e qualificam profissionais no âmbito da educação tecnológica, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, para os diversos setores da economia. Além disso, dedicam-se à pesquisa aplicada e à promoção do desenvolvimento tecnológico de novos processos, produtos e serviços, em estreita articulação com os setores produtivos e a sociedade em geral. Nas últimas décadas do século XX, foram percebidas inúmeras iniciativas e alternativas com vistas a incrementar a educação profissional, tanto em nível 28 nacional quanto internacional. Isso se deve a importantes mudanças ocorridas na economia mundial, bem como ao intenso desenvolvimento científico e tecnológico e às transformações no mundo do trabalho, que têm requerido um modelo de educação capaz de recuperar a relação entre o conhecimento e a prática no trabalho, extrapolando o mero adestramento em técnicas produtivas, dentro de um modelo de produção que entrara em colapso, o taylorismo-fordismo. É pertinente esclarecer que o modelo de produção taylorista-fordista dava mostras de esgotamento, em meados dos anos de 1960, em face da rigidez do mercado na alocação de trabalhadores e nos contratos de trabalho, gerando, entre outros problemas, ondas de greve, questões trabalhistas, saturação de mercado e de produtos, capacidade excedente inutilizável pelas fábricas. Em sua gênese, o fordismo recebeu contribuições do Estado e dos sindicatos; porém, nos anos de 1970, foi abalado, devido a problemas na economia mundial, além da petrolífera (HARVEY, 2005). Além disso, a tecnologia da fábrica crise robotizada, informatizada, reduzia cada vez mais a participação tanto física quanto intelectual do trabalhador. Nesse contexto, nos anos 1980-1990, emergiram os movimentos sociais (das mulheres, dos direitos do consumidor, da cidadania), além de movimentos políticos e culturais, movimentos voltados para o despertar do sujeito, em vista da globalização, pontuando uma nova realidade da vida coletiva e pessoal (TOURAINE, 2006). Surgiram novos setores de produção e mercado, novas formas de serviços financeiros, inovação comercial, tecnológica e organizacional. A qualidade e a personalização dos produtos exigiram maior participação por parte do trabalhador, autonomia e responsabilização no trabalho. O século XXI se iniciou em meio à emergência de um modelo de produção denominado flexível, cuja característica principal é a produção de pequenos e variados lotes de produtos diferenciados, com o objetivo de atender a uma demanda personalizada. Porém, a tecnologia da fábrica exige uma organização do trabalho oposta à da produção em massa. O maquinário é universal e produz diferentes tipos de produtos, e os trabalhadores devem ser, além de qualificados, competentes e participantes, para terem condições de colaborar para o aperfeiçoamento e correção dos projetos, técnicas e métodos previstos pela direção, contribuindo, dessa forma, para que o processo de desenvolvimento de determinado produto não fique paralisado. 29 Nesse panorama, a tecnologia da fábrica flexível tem o propósito de destacar o novo, a criatividade, o efêmero, deixando para trás as intensas transformações advindas da contagem do tempo e dos movimentos pelo cronômetro de Taylor e do controle da esteira rolante de Ford, que prescindiam da capacidade inventiva e participativa do trabalhador. Com o advento da fábrica flexível, em certa medida, o trabalhador passou a sujeito do processo de trabalho, convidado a participar, conhecer, opinar no processo produtivo. Com a “volta do trabalho ao trabalhador”, é essencial que o profissional compreenda o processo produtivo. Há no trabalho contemporâneo a tendência à inserção da robotização e da informatização, originadas do desenvolvimento científico e tecnológico. Na verdade, em todas as áreas, são exigidas outras capacidades, tanto daqueles que pensam a tecnologia quanto dos que entram em contato com ela, de uma maneira ou de outra. Os saberes tão valorizados no passado, conferidos pela profissão e pelas experiências profissionais (pouco ou nada diversificadas), continuam relevantes, em termos de qualificação. Exige-se a elevação do grau acadêmico e de experiências profissionais diversificadas, além de capacidade para lidar com a mudança e com a flexibilização, competências que conferem valor ao trabalhador. Além dessas capacidades, outras são requeridas: a tecnologia da fábrica incentiva a iniciativa e a participação, já que ocorrem imprevistos causados tanto pelos equipamentos informatizados, robotizados, quanto pelos usuários dos serviços. A organização do trabalho isolado perdeu espaço, entrando em cena o compartilhamento, a responsabilidade, a autonomia, o trabalho em equipe, por projeto e em rede. São igualmente necessários outros saberes, relacionados com as atitudes e os comportamentos do trabalhador. Com a valorização das atitudes e comportamentos, entra em cena o chamado saber-ser, que compreende, por exemplo, a participação, a comunicação, a responsabilização, a autonomia, aspectos demonstrados pelo trabalhador em suas atitudes em face da realidade em geral (ZARIFIAN, 2001). O saber-ser, somado à exigência dos conhecimentos (saber) relativos à profissão e à experiência profissional, preferencialmente diversificada (saber-fazer), resulta na chamada competência. Então, a escola precisa e sempre precisou cumprir, além do seu papel de agente de construção social do saber, o de desenvolver a capacidade crítica em seus discentes, uma vez que “saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”, como destaca 30 Paulo Freire (1999, p.52). É preciso preparar o indivíduo para o trabalho, de maneira ampla, politécnica, cidadã, para que o trabalhador, dotado de uma educação global, participe de maneira ativa, não só no mundo do trabalho, mas na vida em comunidade, em sociedade, pois, como ressalta Touraine (1994), o trabalho hoje não se limita a papéis profissionais. Nesse contexto, torna-se imperiosa a reflexão sobre os rumos que a sociedade tomará, sobre o modelo pedagógico-educacional mais adequado a uma realidade permeada por profundas e constantes mutações, tanto em termos técnicos e tecnológicos, como nos hábitos de consumo, nos gostos e necessidades, nos valores éticos, nas configurações geográficas, pois o saber, a pesquisa, o conhecimento e sua aplicação tornaram-se questão de soberania nacional. A educação é o meio para o desenvolvimento da consciência e a valorização do homem, concorrendo para a construção da criticidade e da cidadania. Objetiva despertar as capacidades do educando, do indivíduo, do trabalhador para a criação, o desenvolvimento e a implantação de um projeto educacional que priorize as capacidades de saber, de saber-fazer e de saber-ser, ou seja, competências, formando trabalhadores capazes de extrapolar os papéis profissionais a serem desempenhados no mundo do trabalho. É pertinente retomar Touraine (1994), para quem o trabalho tem a função histórica de instrumento de ruptura decisiva com a imagem da sociedade como uma civilização ou uma concepção de mundo. Nessa concepção, o trabalho, é visto como agente de transformação do mundo, como atividade de produção cultural, como produtor de sociedade. Para tanto, é preciso que o trabalhador seja preparado não apenas para desempenhar papéis profissionais nas instáveis emergências produtivas e mercadológicas, razão pela qual é preciso recorrer às funções educativas globais da escola e formar sujeitos ativos, que vivam de maneira crítica, participativa, cidadã. É preciso uma educação ampla, profunda, como, por exemplo, a apontada na Proposta de Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica (2003, p.17), do Ministério da Educação: [...] que preencha estágios formativos construídos nos processos básicos dos valores inerentes ao ser humano, privilegiando as vertentes da tecnologia pelo trabalho e da inovação tecnológica, bem como, admitindo o trabalho como categoria de saber e de produção, que se organiza de maneira inovadora provocando mudanças tecnológicas. 31 É preciso lembrar que, em face do novo padrão tecnológico, a educação tem sido alvo de duras críticas por parte de organismos e órgãos internacionais e pelos empresários, por estar desatualizada e em descompasso com as necessidades atuais da sociedade, como observa Ferretti (2002). As críticas se originaram da reflexão em torno do papel que caberia à educação desempenhar, em face das profundas transformações vivenciadas continuamente pela sociedade e, especificamente, pelo mundo do trabalho. Cabe ressaltar que, se no passado a educação era eminentemente formativa, preparando os indivíduos para o exercício de uma determinada profissão, se era concebida com um caráter predominantemente informativo e limitado, isso acontecia porque o conteúdo de que o trabalhador necessitava e que lhe era determinado não exigia um pensamento crítico e capacidade inventiva. A formação educacional centrava-se no posto de trabalho e na execução de tarefas, nos saberes profissionais formais, na qualificação. Nesse contexto, Saviani (2002) alerta para as concepções de educação e de escola responsáveis pelo “caráter improdutivo” da educação, se entendida como um bem de consumo e objeto de fruição. Por outro lado, observa que o processo educativo voltado para as necessidades de hábitos civilizatórios e para o desenvolvimento progressivo das sociedades tem um papel político formador da cidadania. Assim, a Educação, ao ser vista como prática social inserida de forma dinâmica num contexto histórico, social, econômico, político e cultural, é permeada pelas características da sociedade na qual se desenvolve. A educação nos tempos modernos está, portanto, inter-relacionada com a ciência e a tecnologia, obviamente em função do mundo do trabalho. A tecnologia da fábrica, no modelo de produção rígido, consistia na fabricação, em grande escala, de produtos padronizados, com a utilização de maquinário específico. Para operacionalizá-la, demandava uma mão-de-obra fixa em determinado posto de trabalho, desenvolvendo tarefas repetitivas. O modelo de trabalhador, de acordo com o propósito de comando, deveria ser passivo, dócil e acrítico. À medida que foi evoluindo, passou a demandar também qualificação. Com o advento do modelo flexível, a produção tornou-se informatizada, robotizada, consistindo em lotes pequenos e particularizados de produtos. Passou a 32 exigir do trabalhador a compreensão do processo produtivo, além de atitudes e comportamentos como participação, comunicação, criatividade e outras competências. A confluência de todos esses elementos levou a um abrandamento, a uma substituição de maneira heterogênea do modelo taylorista-fordista, limitada a alguns setores produtivos e diversificada no interior de cada um. 2.1.3 Do gerenciamento da mão-de-obra à gestão de pessoas É de longa data o gerenciamento, embora de maneira rudimentar, de grandes turmas de trabalhadores. Obras como as Pirâmides do Egito, a Muralha da China e as Catedrais da Idade Média evidenciam o resultado da atividade de agrupamentos de pessoas, em busca da realização de objetivos. O gerenciamento, no passado, era entendido como um conjunto de procedimentos atribuídos pelo administrador a um executor, em função da divisão do trabalho. O gerenciamento focalizava, basicamente, o desempenho dos trabalhadores no trabalho. Ao gerente, por sua vez, cabiam as tarefas de comandar, direcionar, coordenar e controlar a ação dos trabalhadores. Termos como: funcionários, empregados, pessoal, trabalhadores, mão-de-obra, operários, recursos humanos, colaboradores, associados, talentos, capital humano, capital intelectual e outros derivam da maneira como os trabalhadores são vistos e gerenciados, em diferentes épocas no mundo do trabalho. A gerência de Taylor constituiu o marco da estruturação e formalização da condução de trabalhadores. Essa gerência focava a tarefa, a eficiência, os métodos e, de maneira mecânica e rígida, estabelecia princípios de eliminação do desperdício, aumento da eficiência e diferenciação entre concepção e execução. Além disso, delineava o cargo baseado na premissa ‘o que fazer’ em cada nível da hierarquia. O cargo, concebido sob controles administrativos, regras, imposições e o próprio comando do supervisor, restringia a atuação do trabalhador como pessoa, criando forte dependência e submissão ao superior. Assim, pouca ou nenhuma das aptidões vinculadas à auto-expressão individual, contatos pessoais ou à capacidade cognitiva eram consideradas (BRAVERMAN,1987). 33 Taylor, interessado prioritariamente na eficiência, designava como “ótimo dia de trabalho” todas as atividades que um operário podia desenvolver, sem dano à sua saúde, em um ritmo possível de ser mantido durante a jornada de trabalho. Os trabalhadores, por sua vez, reagiram e ditavam o próprio ritmo de trabalho, oferecendo resistência às práticas tayloristas. No entendimento de Taylor, a adoção de um ritmo lento de trabalho, o maior obstáculo para atingir o padrão de produção estipulado, se devia à vadiação, à moleza, ao marca-passo natural dos trabalhadores (BRAVERMAN, 1987). Por outro lado, em termos mais neutros, como diz Marglin (2001) a preguiça e a indisciplina poderiam representar a preferência dos trabalhadores pelo lazer. Assim, na concepção de Taylor, o trabalhador é indolente e preguiçoso por natureza, evitando o trabalho ou trabalhando o mínimo possível, em função de recompensas salariais; é alguém sem autonomia e responsabilidade, razão pela qual a figura do gerente é necessária, para dirigi-lo e controlá-lo, pois os objetivos individuais dos trabalhadores opõem-se aos objetivos da empresa. Por outro lado, os indivíduos tornados trabalhadores nas fábricas provinham dos mais diferentes ofícios e classes sociais; eram camponeses expulsos de suas aldeias, soldados licenciados, indígenas sob custódia das paróquias, o refugo de todas as classes (MARGLIN, 2001). Esses indivíduos não detinham os saberes relativos à fábrica, porém, possuíam força física para movimentá-la por meio do uso de suas mãos. Como ferramentas de trabalho, esse trabalhador contava com aptidões manuais ou musculares (a força física das suas mãos). Na verdade, ele próprio tornara-se uma ferramenta, um apêndice de máquinas e de equipamentos – um mão-de-obra. Com Taylor, a ênfase nas tarefas aliadas aos controles definia as práticas para regular os trabalhadores no interior das organizações; vistos como mão-deobra, os trabalhadores eram considerados fatores inertes e estáticos de produção. Posteriormente à gerência taylorista, surgiu Henry Ford com a esteira rolante, segmentando as tarefas em menores componentes, de forma a impor ao trabalhador a repetição de tarefas, incansavelmente (BRAVERMAN, 1987; HARVEY, 2005). Assim, configurava-se o modelo taylorista-fordista de gerenciamento de mãode-obra, englobando práticas administrativas de pessoal, admissão, demissão, pagamento de salário e outras. Funções auxiliares como controle de material, contabilidade e expediente eram realizadas pelos proprietários das empresas, ou 34 pelos guarda-livros. Segundo Daft (1999), com Henri Fayol4, os princípios de ordenação hierárquica do fluxo de autoridade e de informação deram origem a um sistema; com a Teoria da Burocracia de Weber5, voltada para a racionalidade e a eficiência, emergiu a estrutura funcional em departamentos especializados. Além disso, as funções administrativas de pessoal estruturaram-se. Surgiram o departamento de relações industriais, a estabilidade, a rotina e a manutenção, cujas características fundamentais são estritamente de seleção, registro e controle de pessoal. Marcadas pela centralização das decisões, suas ações eram voltadas para o estabelecimento de regras e de regulamentos internos, destinados a disciplinar e padronizar o comportamento dos trabalhadores. O gerenciamento dos trabalhadores como mão-de-obra, estabelecido nos moldes tayloristas-fordistas, com ênfase nas tarefas e na estrutura, modernizou-se com as contribuições de áreas do conhecimento como a Psicologia, Sociologia e Direito Trabalhista, passando a enfatizar as pessoas e suas diferenças individuais. O gerenciamento de trabalhadores com ênfase nas pessoas sofreu influências da Psicologia, representada pela Escola de Relações Humanas (1932), com as experiências Elton Mayo6 e Kurt Lewin7; da Teoria Comportamental (1950) de Herbert Simon8; da Sociologia Industrial (1946) representada por Georges Friedmann (1972) e Pierre Naville (1956). Posteriormente, chamada de Sociologia do Trabalho, passou a enfatizar o valor da qualificação profissional (discutida no próximo capítulo), da legislação trabalhista resultante da intervenção do Estado e da atuação dos sindicatos, que estabelecem os direitos e deveres a serem cumpridos pelo patrão e pelo empregado. Nessa área, no Brasil, surgiram inúmeros órgãos, como o Departamento Nacional do Trabalho, (mais tarde tornado Ministério do Trabalho), além de vários decretos sobre as relações trabalhistas (como o estabelecimento de férias e a instituição da carteira de trabalho). Tais ações culminaram, em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho (FISCHER, 2002, ALBUQUERQUE,1987). 4 FAYOL, Henri. Administração industrial e geral. São Paulo: Atlas, 1964. WEBER, Max. The theory of social and economic organization, Talcott Parsons, org., New York, Oxford University Press, 1947. 6 MAYO, Elton. The human problems of an industrial civilization, New York, The Macmillan Co., 1933 7 LEWIN, Kurt. Principles of Topological Psychology, Nova York, McGraw-Hill Book Co., 1936. 8 SIMON, Herbert A. O comportamento administrative, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1974. 5 35 A Escola das Relações Humanas examina o comportamento humano no trabalho e sua produtividade; foca o comportamento social das pessoas, os grupos informais e as relações humanas na empresa. Considerada prescritiva, normativa e manipuladora, enfoca a liderança e a motivação das pessoas para alcançar os objetivos organizacionais, perdendo espaço para as Ciências Comportamentais (behaviorismo, comportamentalismo). Com visão explicativa e descritiva, o comportamentalismo enfoca a organização e seus diferentes integrantes, desenvolvendo modelos de motivação, liderança, comunicação, raciocínio e de tomada de decisão, à escolha do gestor, em face das diferentes situações no trabalho (DAFT, 1999, TOLEDO, 1992). Daft (1999) reportando-se às teorias de gerenciamento de Recursos Humanos destaca as Teorias X e Y de McGregor9. A primeira, em consonância com a abordagem clássica taylorista-fordista, considera que as pessoas são preguiçosas e indolentes; evitam a responsabilidade, a fim de se sentirem mais seguras; precisam ser controladas e dirigidas; são ingênuas e sem iniciativa. A Teoria Y, por sua vez, em direção oposta, defende o entendimento de que as pessoas são esforçadas e gostam de ter o que fazer; o trabalho pode ser uma fonte de satisfação e de recompensa, quando voluntariamente desempenhado, ou uma punição, quando é desagradável, sendo então evitado. A aplicação do esforço físico ou mental em um trabalho é tão natural quanto jogar ou descansar. As pessoas não são, por natureza intrínseca, passivas ou resistentes às necessidades da empresa; tornam-se assim como resultado de sua experiência profissional negativa em outras empresas. As pessoas procuram e aceitam responsabilidades e desafios; podem ser motivadas e autodirigidas; são criativas e competentes. A Teoria da Motivação desenvolvida por Maslow10 hierarquiza as necessidades humanas sob a forma de uma pirâmide: na base situam-se as necessidades fisiológicas, seguidas pelas de segurança, consideradas necessidades primárias; seguem-se as necessidades sociais, de estima e de auto-realização, entendidas como secundárias. Com isso, o gerenciamento dos trabalhadores passou a valorizar aspectos humanos e sociais como: liderança, comunicação, motivação, grupos e equipes, cultura e clima organizacionais. Na mudança do estilo de gerenciamento da Teoria X para a Teoria Y, mudaram as tarefas e funções do gerente, os métodos, os fins e os 9 McGREGOR, Douglas. The human side of enterprise. New York, McGraw-Hill Book Co., Inc.,1946 MASLOW, Abram H. Motivation and personality, New York, Harper & Row, Publishers, 1954 10 36 objetivos a serem alcançados. A concepção de cargo foi revista, passando seu ocupante a ser focado como membro de um grupo social. As condições sob as quais é desempenhado o cargo tornaram-se objeto de maior consideração, buscando-se maior interação entre os trabalhadores e seus superiores, bem como sua participação em decisões relacionadas com a execução das tarefas, visando a satisfazer as necessidades individuais e motivar os trabalhadores. O superior, por sua vez, é encorajado a desenvolver entre os subordinados o espírito de equipe, com vistas à coesão e à minimização dos conflitos. Porém, nessa abordagem, não houve modificação na concepção de tarefa e das condições em que é desempenhada, enfocando não o trabalho em si, mas as pessoas. Nessas condições, a abordagem torna-se superficial, uma vez que não se detém na maneira como as pessoas trabalham (DAFT, 1999; TOLEDO, 1992, FISCHER, 2002). A concepção de trabalhador como mão-de-obra, ator inerte de produção, cede lugar à concepção de trabalhador como recurso vivo e inteligente, um recurso humano. O trabalhador é o recurso (humano) mais importante da produção, e como recurso deve ser administrado. O departamento de relações industriais passou a departamento de pessoal, administrando recursos humanos (TOLEDO, 1992). De acordo com Fischer (2002), entrou em cena a avaliação de desempenho, e especial atenção passou a ser dedicada a aspectos tais como: pesquisa salarial, relações interpessoais e estímulo ao desenvolvimento de perfis gerenciais coerentes com o processo de administração de recursos humanos definido pela empresa. A expressão human resource management começou a ser usada nos Estados Unidos a partir de 1950, criada pela NCR Corporation, significando o gerenciamento dos funcionários como custos. A expressão é empregada em empresas brasileiras. O gerenciamento com ênfase nas pessoas, como modelo humanista, predominou até os anos 1960 e 70. Nas décadas de 1970 e 80, no mundo do trabalho, despontaram substanciais mudanças, frutos do desenvolvimento científico e tecnológico, da mundialização da economia e de outros elementos. Houve o reconhecimento da influência do ambiente externo (concorrentes, clientes, fornecedores) sobre o interno e maior preocupação com as pessoas nas organizações e com seu futuro. Segundo Albuquerque (1987), o foco do gerenciamento de trabalhadores tornou-se estratégico nas empresas mais bem estruturadas na área de RH. 37 Na mesma linha de pensamento, Fischer (2002) ressalta a importância de que os recursos humanos alocados nas empresas sejam ajustados o melhor possível às políticas empresariais, sendo reconhecida a contribuição dos trabalhadores na solução dos problemas organizacionais. Cabe ressaltar que muito embora o trabalhador passe a ser visto como parceiro, colaborador e não obstante motivado e satisfeito, ele não pode intervir na estratégia corporativa (ALBUQUERQUE, 1987, FISCHER, 2002). A ele cabe o papel de executor de uma estratégia estabelecida pelos administradores. Fleury & Fleury (2004) observam que, nesse período, foram novamente revistos o conceito de cargo, surgindo grupos semi-autônomos, integrados por profissionais qualificados, com certa autonomia para negociação e decisão, e o conceito espaço ocupacional, que, segundo Dutra (2004), compreende um conjunto de atribuições e responsabilidades solicitadas a uma pessoa que ocupa determinada posição num sistema empresarial. No período entre 1980-1990, em função do acirramento da competitividade entre países e empresas, a produção flexível firmou-se. Elementos como vantagem competitiva, estratégia competitiva, reengenharia e reestruturação geraram um conceito de trabalhador como diferencial mercadológico e, como tal, capital humano e intelectual. Além disso, as organizações, com foco na atividade-fim, motivo da existência da empresa, passaram a transferir a atividade-meio de recrutamento e seleção de trabalhadores para os prestadores de serviços especializados (agências de emprego, consultores de recursos humanos), nesta investigação denominados de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores - R&S. Fleury & Fleury (2004) observam que, nesse período, o gerenciamento de trabalhadores tendeu a se assentar no modelo japonês. Nesse sentido, a responsabilidade pela execução do trabalho passou a ser atribuída ao grupo e não ao indivíduo, levando à quase inexistência do posto de trabalho. A organização do trabalho, no modelo japonês, é inspirada na visão taylorista-fordista, no que tange à racionalização dos processos de trabalho; contudo, é diferenciada quanto à valorização da participação do trabalhador nas inovações tecnológicas; quanto à aprendizagem e para o desenvolvimento do conhecimento do trabalhador ligado à equipe de trabalho; quanto à autonomia, ao envolvimento com o grupo e à multifuncionalidade do trabalhador. Tal modelo não é centrado no posto de trabalho, 38 mas na equipe e na mobilidade dos trabalhadores entre postos e funções. (HIRATA, 1991; CORIAT, 1994). A reestruturação produtiva surgiu então no contexto industrial, compreendendo um conjunto de técnicas, instrumentos e estratégias para controlar o processo produtivo e maximizar o retorno dos recursos investidos. Dentre essas inovações, destaca-se a reengenharia de processos, que consiste num redesenho do processo produtivo e numa nova racionalização das atividades, traduzida na redução do tempo de entrega de produtos, na busca da satisfação do cliente e da lucratividade. Provocou, conseqüentemente, um enxugamento das atividades e funções, reduzindo o quantitativo de trabalhadores empregados. Essas transformações demandam, necessariamente, maior eficácia gerencial. Nesse contexto, ao gerente cabe conduzir as equipes de trabalho. O trabalho em equipe estabelece, entre outros elementos, o objetivo definido e aceito pelos membros, as decisões colaborativas e funções de liderança compartilhadas, razões pelas quais o gerente precisa desenvolver habilidades motivacionais, comunicacionais e de liderança. Isso remete a uma reavaliação da função de controle efetuada pelo gerente taylorista e a certa ruptura com a organização do trabalho baseado no cargo, já que as características das atividades passaram de autômatas para autônomas; do isolamento para a participação e da submissão para a responsabilização. As mudanças no gerenciamento dos trabalhadores dizem respeito a unidades de trabalho, que mudam de departamentos funcionais para equipes de processos; os serviços mudam de tarefas simples para trabalhos multidimensionais; os papéis das pessoas mudam de controlados para autorizados; os gerentes passam a supervisores e instrutores; os executivos, de controladores para líderes. (ALBUQUERQUE, 1987, 2002; FISCHER, 2002; DUTRA, 2004 ) Com tais mudanças, a estrutura organizacional tornou-se fluida, ágil, flexível e descentralizada. A capacidade de mudança, a inovação e a valorização do conhecimento e da criatividade do trabalhador são a tônica. Os trabalhadores são vistos como pessoas, como seres humanos proativos e inteligentes e devem ser impulsionados. O comprometimento e a liberdade são elementos a que as organizações recorrem para motivar as pessoas que nelas trabalham (FISCHER, 2003, DUTRA,2004). Há a valorização de profissionais que demonstrem autonomia, iniciativa, responsabilidade, além da capacidade de enfrentar situações inusitadas, de complexidade crescente. Emerge o evento, a comunicação e o serviço 39 (ZARIFIAN, 2001). As atitudes e os comportamentos do trabalhador, até então deixados de lado, são incorporados ao novo perfil profissional que o trabalhador deve ter: de obediente, disciplinado e qualificado, passa a autônomo, empreendedor e competente. (TOMASI, 2004; DADOY, 2004). Em face dessas mudanças, o foco do gerenciamento dos trabalhadores passa para desenvolvimento mútuo: de um lado, a empresa, ao desenvolver-se, desenvolve as pessoas; de outro, as pessoas, ao desenvolverem-se, desenvolvem a empresa. O trabalhador é visto como gestor da própria relação com a empresa, do próprio desenvolvimento e da própria carreira. (DUTRA, 2004). Dessa forma, os trabalhadores mobilizam bem mais que músculos e inteligência: [...] todo o seu potencial criador e capacidade de interpretar o contexto e de agir sobre ele (DUTRA, 2004, p. 17). O gerenciamento de trabalhadores como gerenciamento da mão-deobra parece ficar para trás, entrando em ação a gestão das pessoas e das competências. 2.1.4 O processo de recrutamento e seleção de trabalhadores Como visto, o gerenciamento de trabalhadores mudou seu foco, em função de uma nova concepção do trabalhador, das pessoas e do seu desempenho no trabalho. A tecnologia da fábrica depende das pessoas. O mandante e o executor são pessoas iguais, como gênero humano, embora possuam características individuais, que as tornam distintas entre si. As pessoas, como indivíduos diferentes, apresentam semelhanças e dessemelhanças, dependendo das crenças, dos valores, da cultura, da linguagem, da aprendizagem, do comportamento, dos saberes profissionais, da história de vida de cada um. Esse entendimento, no processo taylorista-fordista de recrutamento e seleção de trabalhadores, era evidenciado sob o aspecto dos costumes e hábitos do candidato, por exemplo. Villela (2008) observa que, historicamente, podem ser percebidas algumas práticas elementares de recrutamento e seleção de trabalhadores: no Egito, na época da construção da pirâmide Quéops, entre 2551-2528 a.C, foram recrutados compulsoriamente 100 mil homens livres, em rodízio de três meses, já que o trabalho escravo era insuficiente para manter a estrutura faraônica. Foi então construída a corvéia, atividade exploratória que controlava fortemente o trabalho desenvolvido por homens não-escravos. Esses indivíduos livres, que exerciam 40 profissões variadas, eram compulsoriamente recrutados para trabalhar em obras públicas, canais de irrigação e agricultura. Outro exemplo é a Muralha da China, iniciada em 206 a.C., a qual, no auge da construção, contava com 700.000 pessoas excluídas do povo, as quais eram recrutadas compulsoriamente para trabalhar na construção de obras públicas e no serviço militar. Também a Catedral de Notre Dame, na França, cuja construção iniciou-se em 1163, recrutou artesãos mais habilidosos, supervisionados por um mestre construtor, acompanhado de trinta artesãos especialistas. Os artesãos se reuniam nas associações de trabalhadores de diferentes ofícios, as Corporações de Ofício, cujas origens remontam ao mundo romano, onde os artesãos desenvolviam e fortaleciam suas atividades, sob ordenação rígida, além de regulamentação que estabelecia o conceito de ofício, os mecanismos de produção e quem poderia exercê-la, sob a determinação de um grupo de conselheiros. Os trabalhadores eram recrutados desde a fase de aprendizagem, seguindo uma linha hereditária, na qual os pais transmitiam aos filhos seus ofícios. Eram organizadas em mestre, oficial e aprendiz, com idade entre 12 e 15 anos, sob a supervisão de um só mestre (OLIVEIRA, 1998). Segundo Villela (2008), o marco de um modelo primitivo de recrutamento e seleção foi encontrado na China, na dinastia Han, no ano 207 a.C. O Imperador, usando da premissa ‘dividir para reinar’, dividiu o território chinês em províncias, geridas por funcionários do poder central. Para ocupar os cargos referentes a tarefas e atividades de cobrança e arrecadação de impostos, administração de recursos, entre outras, instituiu a seleção de candidatos por meio de concurso público, baseado no mérito, no apadrinhamento e na indicação, criando uma longa e detalhada descrição da função de servidor público. A conclamação do Imperador chinês Wu Di fornece indícios dos princípios que envolviam aquelas práticas de recrutamento e seleção, de certa forma, presentes na atualidade: Queremos heróis! Trabalhos excepcionais exigem homens excepcionais. Um cavalo indócil pode vir a tornar-se um animal valioso. Um homem que é objeto de ódio pode mais tarde realizar grandes obras. O que acontece com o cavalo intratável passa-se também com o homem arrogante: é apenas uma questão de treinamento. Nós, desse modo, ordenamos aos funcionários distritais que procurem homens de talento brilhante e excepcional para se transformarem em nossos generais, nossos ministros e nossos emissários aos Estados distantes. (MORTON, 1986, p. 75) 41 Esse discurso revela que quem faz realizar o trabalho demanda os melhores trabalhadores, porque o trabalho a realizar é excepcional e, para isso, há um modelo de trabalhador: um herói, valioso pela docilidade; não sendo, é uma questão de treinamento. Por outro lado, os registros arqueológicos mostram que tal conclamação e os esforços dos funcionários distritais, embora estabelecessem um método de recrutamento e seleção, não foi suficiente. As contratações foram poucas e não funcionaram como esperado. Para Fernandez-Araóz11 (1999), “é impossível transformar o processo de contratação de uma pessoa em uma ciência”, ou seja, o processo de contratação de pessoas não tem um resultado exato, não se configura em um estudo sistematizado. Então, embora se recorra a uma série de práticas que busquem lógica e previsibilidade no processo de contratação, o sucesso continua indefinido, conforme sugere o índice de 30% a 50% de demissão ou renúncia na admissão de executivos. A literatura pesquisada sobre a gerência de Taylor revela que os princípios que sustentavam as práticas de recrutamento e seleção tayloristas consistiam em simplificar e fragmentar tarefas, facilitando sua execução. Taylor(1967) buscava “o que fazer” e “uma melhor maneira” de fazer as tarefas, delineando o cargo. As caracterísiticas pessoais avaliadas no processo de recrutamento e seleção de trabalhaores configuravam um perfil obediente e disciplinado. O trabalhador, confinado a um cargo isolado e submetido aos controles administrativos, às regras, às imposições e à hierarquia, era impedido de atuar como pessoa “detentora de qualidades contextualizadas em situação de trabalho, tais como curiosidade, rigor, reatividade”, como aponta Le Boterf, (2003, p.124). Notadamente, era requerido o gesto do trabalhador, seus movimentos em tempos e tarefas pré-estabelecidas. O importante era recrutar mão-de-obra, e essa “mão” precisava fazer executar, tanto no chão de fábrica quanto no escritório. Porém, a ‘mão’, ou seja, o trabalhador, deveria ser dócil, com perfil semelhante ao demandado pelo Imperador chinês. Para assegurar a eficiência, o trabalhador seria treinado, tornando-se um ‘animal’ valioso, restrito ao posto de trabalho, adequado para o trabalho repetitivo. 11 Possui mais de 30 anos de experiência na área de headhunting; foi eleito pela Revista Business Week, de 25/03/2008, o 13o em uma lista de 50 caça-talentos mais influentes do mundo. Trabalha numa prestadora de serviços de recrutamento e seleção com sede em Zurique, Suíça, fundada em 1964, atuante em 37 países. 42 Braverman (1987), citando os princípios da administração científica de 12 Taylor (1967) para a seleção científica de mão-de-obra, observa que estava centrado na condição física do trabalhador, valorizando o perfil de profissional submisso (tipo do boi). A seleção constava de “apanhar um entre os tipos comuns que são especialmente apropriados para esse tipo de trabalho”. Quanto às práticas da seleção científica, cabe aludir a regra inflexível estipulada por Taylor, citado por Braverman (1987, p.96): [...] conversar e tratar com um candidato de cada vez, visto que cada operário tem suas capacidades e limitações especiais, e visto que não estamos tratando com homens em massas, mas tentando desenvolver cada indivíduo ao seu mais alto estado de eficiência e prosperidade. Portanto, para assegurar o princípio do candidato apropriado ao tipo de trabalho, o entrevistador recorria à prática da entrevista individual, na avaliação das características do trabalhador. Assim, o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores consistia em encontrar a ferramenta/pessoa certa, para a máquina, equipamento, cargo certos. Braverman (1987) reporta que a seleção do trabalhador tinha como objetivo encontrar o homem adequado para a função, e, para isso, era imprescindível observar cuidadosamente e estudar os candidatos detidamente, a fim de escolher aqueles que aparentavam aptidão física para o trabalho. A vida pessoal, no tocante ao caráter, hábitos e ambições, era também objeto de investigação. Características pessoais como dedicação, empenho, persistência e seriedade eram consideradas como bons indicadores na seleção do operário, denotando que ele aplicaria essas atitudes no desenvolvimento do trabalho, num modelo cerceador e controlador. As características pessoais dos trabalhadores não eram levadas em consideração na execução do trabalho, ou seja, o trabalhador não era visto como um participante ativo do processo tendo em vista o modelo de comportamento esperado, com gestos e atitudes requeridos, massificantes. Logo, no processo de recrutamento taylorista, alguns aspectos comportamentais dos trabalhadores julgados desejáveis tornaram-se indicadores de desempenho e de seleção. De Taylor, ficaram princípios como o cargo (demanda da empresa a ser satisfeita) e a busca da pessoa certa para o cargo certo (perfil do trabalhador). Esses princípios, 12 TAYLOR, Frederick Winslow. The principles of scientific management. New York, 1967. 43 assentados nas práticas de recrutamento e identificação da pessoa certa (candidato), são aplicados em entrevista individual, buscando analisar as características pessoais do trabalhador (seleção), que serão julgadas adequadas ou não pelos selecionadores para a possível ocupação do cargo ( comparação entre candidato e perfil). Esses aspectos constituem um modelo norteador do processo seletivo, cuja lógica denota, entre outras coisas, a busca de previsibilidade na contratação de pessoas por meio de um processo intitulado recrutamento e seleção de trabalhadores. Nos anos 1960 e 70, o gerenciamento dos trabalhadores, com as contribuições da Psicologia, da Sociologia Industrial e da Legislação Trabalhista, passou a enfocar mais as pessoas. O trabalhador passou a ser visto como um recurso humano, vivo e inteligente. Por essa razão, os princípios que sustentavam as práticas até então estabelecidas pelo modelo taylorista, no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, foram aprimorados (ALBUQUERQUE, 1987; FISCHER, 2002). Primeiramente, o cargo, elemento central do processo de recrutamento e seleção, sofreu alterações, passando o foco das tarefas para as pessoas, priorizando o ocupante do cargo, a pessoa designada para desempenhá-lo. O incentivo, a motivação e a capacidade de interação das pessoas, relacionados à sua participação em decisões na execução das tarefas, tornaram-se características essenciais; porém, o conteúdo do trabalho foi mantido sob controle, no padrão taylorista (TOLEDO, 1992). Em vista disso, à prática da entrevista individual foram acrescentados testes de personalidade e testes psicotécnicos, buscando desvendar o intelecto e a personalidade do candidato, por meio da análise de suas reações, comparadas a dados catalogados; todavia, tais testes apresentavam empecilhos, como tempo, custo e necessidade de psicólogos para aplicação. O questionário de personalidade, de prática mais simplificada, consistindo em uma série de perguntas em torno de situações práticas de vida, passou a ser era usado. Também os saberes escolarizados e outros saberes adquiridos na trajetória profissional do indivíduo, eram igualmente aspectos destacados e exigidos do trabalhador, por meio de prova de conhecimentos específicos e apresentação de diplomas. O cargo, elemento central do processo de recrutamento e seleção tayloristas, manteve-se como critério. Apesar de o enfoque humanista permear o cargo, conduzindo a novas práticas, permaneceu o princípio da pessoa certa para o cargo certo. A legislação 44 trabalhista estruturou o contrato de trabalho, em que os direitos e deveres do contratado e do contratante unem-se legalmente ao cargo (ALMEIDA, 2004, ALBUQUERQUE,1987). Nas décadas de 1970 e 80, abriu-se nova fase no gerenciamento de trabalhadores, que passaram a ser vistos como elementos estratégicos, colaboradores, parceiros capazes de contribuir para a solução dos problemas organizacionais. O recrutamento e a seleção, nesse contexto, alinhavam-se à estratégia da organização, conciliando os interesses envolvidos, em busca de um profissional participativo e fornecedor de conhecimentos. O cargo, revisto sob a abordagem sócio-técnica, passou a ser percebido em sua dimensão social, considerando as pessoas com suas características físicas e psicológicas, bem como as relações sociais e informais. O aspecto técnico, por sua vez, referente ao conhecimento e às habilidades técnicas exigidas pelo maquinário e insumos da produção, possibilitava a inserção de grupos semi-autônomos, profissionais qualificados, com certa autonomia e atuantes nas tarefas de manutenção (FLEURY & FLEURY, 2004). O conceito espaço ocupacional (conjunto de atribuições e responsabilidades de uma pessoa que ocupa determinada posição) é abordada no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, apesar do caráter estratégico, os princípios assentados no cargo e na pessoa certa para o cargo certo continuavam intocados, paralelamente à valorização do conhecimento e da experiência e dos instrumentos de avaliação baseados em entrevistas, provas e testes (DUTRA, 2004; ALMEIDA, 2004). Nas décadas de 1980-90, em vista da competitividade inter e extra-mercado e em face da reestruturação produtiva, emergiu a concepção de trabalhador como capital humano intelectual. Em vista da dificuldade de transformar estratégia em ações práticas, passou a prevalecer o conceito de valor agregado e de vantagem competitiva. A gestão, segundo Fischer (2002, p.25), acentuava “vínculos cada vez mais estreitos entre o desempenho humano e os resultados da empresa”. A crescente tendência à produção flexível, à competitividade, à atribuição da responsabilidade ao grupo (apesar de o trabalho em conjunto, por projeto, ser baseado no compromisso e na responsabilidade individual do trabalhador), todo esse contexto inovador determinou a necessidade de trabalhadores dotados de características pessoais como iniciativa, criatividade e autonomia, bem como de 45 gerentes capazes de conduzir equipes de trabalho com habilidades motivacionais, comunicacionais e de liderança. Conforme já se observou, o modelo tradicional de recrutamento e seleção de trabalhadores, inspirado no modelo taylorista-fordista, se ancorava no princípio do controle por meio do cargo, que demandava um perfil profissional obediente, passivo, disciplinado. O cargo estruturava as tarefas que as pessoas deviam executar, limitando a ação do trabalhador e isolando-o do grupo. Na concepção de Chiavenato (2007, p. 253), o cargo [...] é a decomposição de todas as atividades desempenhadas por uma pessoa, que podem ser visualizadas como um todo unificado e ocupam uma posição formal no organograma. Um cargo é uma unidade da organização que consiste em um grupo de deveres e responsabilidades que o tornam separado e distinto dos outros cargos[...] os deveres e responsabilidades atribuídos ao ocupante que desempenha o cargo proporcionam os meios pelos quais cada pessoa pode contribuir para o alcance dos objetivos da organização. Na literatura pesquisada verificou-se que em vista da inserção do trabalho em grupo, da maior valorização das pessoas nos resultados do negócio, cargo, entendido como um rol de atividades passou a ser revisto nas empresas. Dutra (2004) aborda o espaço ocupacional que ocorre em função das necessidades do meio em que o trabalhador se situa e a sua competência em atendê-las, como conceito para comprender o posicionamento e movimento das pessoas na organização, indicando uma nova abordagem ao modelo de cargos. Na França, em meados dos anos 1980, Zarifian (2001) constatou novos princípios na maneira de avaliar os trabalhadores, como, por exemplo, a exigência do entendimento do processo de trabalho. A competitividade e a complexidade da produção passaram a exigir capacidade de iniciativa dos trabalhadores e determinadas competências para a ocupação das vagas. No entendimento de Zarifian (2001), essa mudança apontou para a ruptura com os procedimentos tayloristas centrados no controle das tarefas, bem como a intenção de avaliar os trabalhadores em termos de entendimento do processo produtivo e iniciativa, aspectos que já faziam parte dos saberes de alguns trabalhadores, porém eram desconsiderados pelos administradores. Os encarregados de produção na época, segundo relatou Zarifian (2001, p.23), almejavam avaliar as competências pessoais de cada assalariado, independentemente do posto de trabalho ocupado. Emergiu 46 nesse período a tendência ao processo de recrutamento e seleção por competências. A competência é uma demanda do patrão. Provém de uma transformação nos julgamentos avaliativos dos trabalhadores pela direção e pelos responsáveis pelas práticas de gerenciamento dos trabalhadores. Na França e no Brasil, as práticas de recrutamento e seleção tornaram-se mais rigorosas, nessa época, sendo exigidos diplomas que atestassem instrução mínima, conhecimentos e disciplina comportamental do trabalhador. Era preciso comparar os indivíduos em situações reais de trabalho, bem como sua competência efetiva em relação às expectativas da empresa. A progressão da carreira vertical alterou-se (ZARIFIAN, 2001), pois o foco no desenvolvimento visualizou a pessoa como gestora de sua relação com a empresa, de seu desenvolvimento e da carreira (DUTRA, 2004). As empresas acenaram com novas formas contratuais implícitas ou explícitas com o trabalhador, em que este se esforçava por desenvolver as próprias competências, enquanto o empregador (empresa) tentava facilitar tal desenvolvimento, num sistema de promoção flexível, diferente de flexibilização do emprego (ZARIFIAN, 2003). Em síntese, com a tendência à delegação ao trabalhador de responsabilidade pela própria formação e autonomia no trabalho, o controle exercido pela gerência taylorista-fordista esvaneceu (ZARIFIAN, 2001). Esse fato levou à demanda de um perfil profissional autônomo, responsável, e à mudança na cultura das empresas, buscando estimular e apoiar a iniciativa das pessoas, a criatividade e a busca autônoma de resultados para a organização (DUTRA, 2004). Aumentaram as exigências referentes às características individuais dos trabalhadores, em contexto de trabalho, tais como iniciativa, criatividade, autonomia, responsabilização. Essa tendência gerou mudanças no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, até então centrado nos princípios do cargo e da pessoa certa para o cargo certo. Na mesma linha de pensamento, Almeida (2004, p.23) observa que o objetivo do recrutamento e seleção não se reduz a uma vaga a ser preenchida, a um cargo a ser exercido; é preciso escolher a pessoa que se identifique com a cultura da organização e que possa agregar valor a ela, representando, portanto, mudanças no princípio taylorista-fordista da pessoa certa para o cargo certo. Todavia, a autora se refere às dificuldades de seleção de um profissional considerado ideal por suas habilidades para ocupar um cargo, mas com pouca “aderência aos valores 47 preconizados pela cultura” organizacional. Essa questão remete à permanência dos princípios tradicionais de recrutamento e seleção, porém algo renovados, valorizando a habilidade do trabalhador e a cultura organizacional, levando a práticas neo-tayloristas, indicadoras do desconhecimento das novas tendências, ou revelando dificuldade em colocá-las em prática, conforme apontou Dutra (2004). Em face ao exposto, indaga-se: Que entendimento têm os serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores quanto ao conceito de competência? Essa questão conduz a outra: Que princípios norteiam, na atualidade, as ações dos serviços de recrutamento e seleção, na busca por trabalhadores? Pressupõe-se que o entendimento de competência praticado nas empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores esteja assentado no princípio do cargo e da pessoa certa para ocupar o cargo certo, bem como na requisição de atitudes relativas ao desempenho do cargo, por parte das empresas contratantes, indicando a necessidade de renovação nos princípios que sustentam as práticas. 2.2 Da qualificação profissional à competência “[...] a competência nos impõe ajustar o foco de nosso estudo sobre o indivíduo [...] que, produzido nas relações sociais nas quais se encontra inserido, insiste em guardar suas diferenças em relação aos outros, [...] exige uma proximidade, uma intimidade com suas subjetividades, seus saberes, seus valores, suas crenças e seus princípios, que motivam e dão materialidade às suas ações no cotidiano.” TOMASI ( 2004, p.11) Esta seção discute a qualificação e a competência, a gestão de competência e o processo de recrutamento e seleção, com base no aporte teórico de Friedmann (1946, 1972) e Naville (1956), Zarifian (2001, 2003, 2005), Stroobants (2002), Ropé & Tanguy (2002), Le Boterf (2003, 2006), Dadoy (2004), Tomasi (2004), Fleury & Fleury (2004), Dutra (2004) e Ruas (2005), entre outros autores referenciados. A qualificação e a competência são noções usadas socialmente no mundo do trabalho, para avaliar o indivíduo como trabalhador. A profissão qualificada é uma unidade central no processo de trabalho. Todavia, desde as últimas décadas do século XX, tem-se verificado a tendência à busca por trabalhadores não apenas qualificados, mas competentes. A qualificação 48 compreende os saberes relativos à profissão, adquiridos no ambiente escolar e no organizacional, por meio da experiência. A competência, por sua vez, é a mobilização dos saberes formais, informais e sociais, construídos ao longo da vida, abrangendo inclusive as atitudes individuais, em face das inúmeras situações de trabalho. O modelo de seleção que prioriza a qualificação associa-se ao modelo de produção rígido, taylorista-fordista, valorizando um perfil profissional no qual certas caracterísitcas esperadas em uma situação de trabalho, como por exemplo, a curiosidade, em termos de busca de informações; antecipação, em termos de elaboração de projetos e de detecção de incidentes, como aponta Le Boterf (2003) eram negados. Já o processo de recrutamento e seleção por competências é associado ao modelo de produção flexível e a um perfil profissional em que são valorizados tanto os saberes relativos à profissão e à experiência, quanto os saberes relacionais, as atitudes e comportamentos como: a iniciativa, a comunicação, a responsabilização, a participação do trabalhador no processo de trabalho, ou seja, contempla aspectos individuais do trabalhador em situação profissional. Para favorecer a compreensão do contexto em que se insere a qualificação e a competência, a seção foi dividida em três subseções: 2.2.1 A qualificação profissional; 2.2.2 A competência; 2.2.3 A gestão de competências e o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores. 2.2.1 A qualificação profissional A qualificação envolve o saber adquirido na escola e o saber-fazer, proveniente da experiência profissional. Trata-se de uma construção social, cujo objetivo é qualificar, atribuir qualidade de trabalhador aos indivíduos. A qualificação, conforme já se detalhou, teve origem nas Corporações de Ofício, na Idade Média, a agência responsável pela aprendizagem do artesão, a regulamentação da profissão e o sistema de contratação. A hierarquia corporativista da aprendizagem da profissão iniciava-se com os aprendizes, geralmente meninos entre 12 e 14 anos, filhos ou parentes dos mestres. Eles trabalhavam para um único mestre-artesão, numa jornada diária de 12 a 20 horas, em troca, de comida e moradia. Os aprendizes ficavam sob a tutela do mestre e, sob longo aprendizado, 49 podiam chegar também a mestres, se aprovados no exame da corporação, a obraprima. O segredo ‘industrial’ era parte importante da instituição, e a passagem ao grau de mestre normalmente acontecia com a revelação desse segredo (ZARIFIAN, 2003, DADOY, 2004) A maioria das corporações se limitava às fronteiras da cidade e delimitava áreas de atuação profissional, sem sobreposição de ofícios e com forte proteção da produção e da comercialização dos produtos. O trabalho intelectual e o manual se atrelavam. As atividades artesanais priorizavam a diversidade das capacidades e dos dons do artesão, especialmente seu domínio de todo o processo produtivo, que o tornavam um indivíduo reconhecido por suas habilidades e capacidades profissionais. Com o desenvolvimento técnico e a concorrência entre a produção artesanal e a industrial, o trabalho artesanal foi inserido em novas formas de produção, tais como a manufatura e a maquinofatura. As Corporações de Ofício foram extintas no século XVIII, na França, por uma série de razões, entre as quais a criação de barreiras à comercialização de produtos e a incompatibilidade com os ideais de liberdade, sendo acusadas de prática de trabalho escravo, por submeterem os aprendizes a atividades laborais desde a infância, sem salário. Nesse contexto, o artesão, desprovido do corporativismo do ofício, e de agência de aprendizado, sem produto para vender, submetia-se às regras daquele que detinha o poder de mandar fazer, nesse caso, o patrão (GORZ, 2001). Passou então a “combinar seu trabalho com o dos outros operários e fazer, do conjunto, um produto mercantil” (MARGLIN, 2001, p. 43). Todavia, a mão-de-obra, primeiramente recrutada para trabalhar nas fábricas, constava do “refugo de todas as classes e de todos os ofícios” (MARGLIN 2001, p.69). Dugué (2004, p.23) observa que a “ruptura no processo de transmissão dos saberes explica parcialmente a ausência de mão-de-obra qualificada” no século XIX; contudo, ressalta-se que o saber do ofício tinha caráter corporativo, ou seja, nem todos os indivíduos tinham acesso ao aprendizado nas Corporações de Ofício. Uma nova maneira de qualificação da mão-de-obra surgiu com os modelos taylorista (posto de trabalho) e fordista (esteira) de produção. Braverman (1987) observa que a parte que cabia ao trabalhador, na divisão do trabalho, era constituída de tarefas especializadas e parceladas; já os saberes exigidos na fábrica eram diferentes dos saberes do ofício. Então, o aprendizado 50 ocorria no próprio trabalho e constava da observação do trabalho do colega. A contratação de trabalhadores, por sua vez, era baseada no sistema de subcontratação, trabalho domiciliar, empreitada e subempreitada, mediante contrato isolado ou em grupos de trabalhadores, o que acarretava diferentes formas de pagamento de salários (BRAVERMAN, 1987). Tudo isso acarretava problemas para os envolvidos no mundo do trabalho: patrão e empregado. Contudo, num contexto de pós-guerra (1945), o mundo concentrava esforços na reconstrução da sociedade e isso ocorria sob intenso desenvolvimento científico e tecnológico13, além da intensificação da produção taylorista-fordista, dos movimentos sociais dos trabalhadores e sindicatos pelos direitos de negociação coletiva (HOBSBAWM, 2005, HARVEY, 2005) e a imposição de um sistema de regulação pelo Estado de Bem-Estar Social, reconhecendo no mundo do trabalho o trabalhador, o saber e o salário (DADOY, 2004). Essa realidade trouxe uma nova maneira de perceber o mundo do trabalho e mudanças. Estudos realizados por Friedmann (1946) e por Naville (1956) deram origem ao conceito de qualificação profissional, na França. Friedmann (1972, p. 10), reportando-se ao ambiente de trabalho no âmbito das indústrias, na década de 40, refere-se a [...] tarefas repetidas e parceladas de toda espécie, situadas tanto nas oficinas, nas construções e nas minas, quanto nos escritórios, nos serviços de venda e de distribuição, e de onde se encontram excluídas a variedade a iniciativa, a responsabilidade, a participação num conjunto, a própria significação. Tomazi (2000) ressaltou igualmente esse ambiente de cores acidentadas, lembrando que a ligação com o movimento sindical e a presença significativa do Estado foram fatores que contribuíram para o sucesso do modelo taylorista-fordista: os sindicatos, por negociarem ganhos reais de salário pela cooperação do operariado, e o Estado por criar mecanismos financeiros e legais, para que o consumo se efetivasse. Harvey (2005), por sua vez, observa que o desenvolvimento 13 A guerra preparou vários processos revolucionários para posterior uso civil, como radar, motor a jato, gênese da eletrônica e a tecnologia do pós-guerra. Primeiro na Inglaterra, Alemanha e depois nos EUA, surgindo o transistor (1947) os primeiros computadores digitais civis (1946), circuitos integrados (1950), televisão, disco de vinil (1948), eletrodomésticos, equipamento de foto e vídeo; indústria farmacêutica; desenvolvimento e oferta de produtos de higiene pessoal, as sandálias de plástico substituíram os pés descalços (HOBSBAWM,2005). 51 tecnológico não se deu (e continua não se dando) homogeneamente, mas, por setores, diversificando-se no interior de cada um, e mesmo o fordismo se disseminou diferentemente pelo mundo. O estudo da qualificação, na concepção de Friedmann (1946), centra-se na passagem da civilização natural para a técnica; na de Naville (1956 ), do trabalho mecanizado para o automatizado. O entendimento do conceito de qualificação assume, nos estudos de Friedmann (1946), enfoque determinista, uma vez que o trabalhador submete-se às conseqüências inevitáveis do progresso técnico, o que determinaria a desqualificação da mão-de-obra. Trata-se da qualificação substancialista, essencialista, relacionada ao tipo de intervenção exigida pelo posto de trabalho – as exigências de qualificação. Assim, o saber adquirido na escola e o saber-fazer proveniente da experiência conferem peso, ‘substância’ ao trabalhador, ao ocupar o posto de trabalho. A qualificação, segundo Naville (1956) tem enfoque relativista. Como tal, constitui um processo de formação autônomo; um processo independente da formação no trabalho e para o trabalho. A qualificação é o saber escolarizado; o saber-fazer é a experiência profissional do trabalhador, mas depende do processo de negociação entre o patrão e o empregado. Tal processo estabelece uma relação de forças políticas dependente das convenções coletivas que qualificam o posto de trabalho. Quanto mais qualificado é o trabalhador, mais ele se distingue dos demais, permitindo a negociação com o patrão por melhores salários, por exemplo. O patrão, por sua vez, tenta mostrar que o trabalhador não tem a qualificação buscada. Portanto, o sentido da qualificação está na luta (TOMASI, 2004). A perspectiva relativista permite ainda que a qualificação seja observada sob o aspecto das relações sociais: como relação entre classes, assume enfoque homogêneo; como relação entre grupos, o foco é constituído pelos interesses grupais e individuais. Na visão de Dugué (2004), a qualificação é uma volta ao passado, uma vez que retoma o papel regulador outrora exercido pelas corporações, mas adaptado à sociedade industrial e ao interesse governamental. A educação profissional é estabelecida pelo governo, sendo a escola a agência de aprendizagem da profissão, classificando e organizando os saberes em torno dos diplomas. Na outra ponta, as entidades sindicais de trabalhadores e empregadores, sob leis trabalhistas, firmam contratos de convenções coletivas por categoria profissional, determinando as condições específicas de cada categoria. Assim, são classificados 52 e hierarquizados os postos de trabalho, unidos à regulação salarial, visando aos interesses do trabalhador. A qualificação profissional é caracterizada pela relação entre o sistema escolar e o sistema de convenções coletivas. Este último institucionaliza a qualificação, ao unir a qualificação do trabalhador e a do posto. Em síntese, o âmbito escolar qualifica o trabalhador, remetendo à visão substancialista concebida por Friedmann (1946); o âmbito das convenções coletivas qualifica o posto de trabalho, em sintonia com a visão relativista concebida por Naville (DADOY, 2004). A qualificação assentada no modelo traylorista-fordista de organização do trabalho tem sido criticada por várias razões, especialmente por não ter resolvido a questão do reconhecimento dos saberes adquiridos no trabalho e da mobilidade profissional. O saber escolarizado é atestado pelo diploma; porém, o saber proveniente da experiência profissional não tem uma legitimação oficial, conforme observa Dugué (2004). Tradicionalmente, a experiência profissional e a carreira são atestadas pelo registro na carteira de trabalho, verificadas por meio de testes e entrevistas e comparadas aos requisitos do cargo (TOLEDO, 1992). Contudo, o julgamento da experiência profissional sob a responsabilidade da empresa é feito unilateralmente pelos selecionadores e recrutadores. Os trabalhadores ficam à mercê de regras criadas pelo mercado de trabalho, sobre as quais eles não têm poder algum. Em Dugué (2004, p.21), “a qualificação representa, igualmente, uma base para pensar e construir a transmissão dos conhecimentos profissionais”. Nessa perspectiva, no Brasil, a educação escolar, em sentido amplo, se ocupa da formação plena do indivíduo, como pessoa e como cidadão; contribui para a educação profissional de maneira indireta, seja por proporcionar-lhe o acesso aos conhecimentos disciplinares, seja por entender que é parte dessa formação a compreensão do contexto em que o exercício da atividade profissional se realiza ou se realizará. Na década de 1990, como observa Ferretti (2004), foram desenvolvidos estudos na área educacional, sobre as relações entre o trabalho e a educação, por duas correntes complementares da perspectiva educacional-profissional, porém, antagônicas, dependendo do enfoque. Ambas recorriam à concepção de qualificação de Friedmann (1946), conforme Ferretti (2004). Uma é recorte específico da educação escolar; aborda o aspecto técnico, ocupando-se das 53 propostas de formação profissional, obviamente influenciada pelo progresso técnico e pelas mudanças técnico-organizacionais, buscando responder às demandas relativas ao mundo do trabalho. Enfoca a educação profissional em sentido estrito, mas complementa a formação em sentido amplo. A outra corrente questiona as demandas feitas ao indivíduo e à educação, tomando por base a acentuada divisão técnica do trabalho. Tem raízes na Filosofia e na Economia Política, de origem marxista, e levanta problemas educacionais de natureza econômica, filosófica, social e ético-política, que remetem não apenas à formação profissional especificamente, mas à formação humana, em sentido amplo. Salienta Ferretti (2004, p. 4) que a produção originária da segunda corrente influenciou, além de outras áreas do conhecimento, a perspectiva das análises sobre o sistema educacional brasileiro, bem como a proposição de concepções educacionais “que representassem não apenas um freio à segmentação do trabalho e à alienação do trabalhador sob o domínio do capital, mas o pleno desenvolvimento deste como sujeito social”, marcando os estudos referentes à qualificação sob perspectivas político-ideológicas diferenciadas. Salienta Ferretti (2004, p.4) que [...] apesar dessas influências, pode-se afirmar, com certa ousadia, mas sem receio de cometer um erro crasso, que os conhecimentos sobre a qualificação profissional, como categoria teórica e campo de estudos, eram do domínio de poucos educadores, mesmo entre os que atuavam no campo da formação profissional, embora os estudos da sociologia do trabalho já se debruçassem sobre a questão [...] com as investigações de Friedmann e, posteriormente, de Naville. Em virtude dessa ausência teórica ou de seu pouco domínio, as discussões, em termos de formação geral, penderam mais para questões técnicas do ensino profissional e para aspectos ensaísticos, com base na economia política. Além disso, alguns estudos foram marcados pela tese de que o avanço técnico desqualificaria o trabalhador. Esse entendimento toma como referência o trabalho qualificado no artesanato, defendendo o ponto de vista de que os saberes relativos ao ofício (desde a manufatura, posteriormente ampliados devido à divisão técnica do trabalho, com o taylorismo-fordismo) seriam responsáveis pelo processo de desqualificação do trabalhador, ao passo que o avanço científico e tecnológico teria a ver com a sua requalificação. Esclarece Ferreti (2004, p. 4) que “o senso comum tende a vincular a fase do avanço científico e tecnológico à denominada reestruturação produtiva”, razão pela qual os estudos na área, na década de 1990, aparecem mesclados pela concepção de qualificação substancialista de Friedmann 54 (1946), porém ganham outro sentido com o surgimento da competência. Os educadores de ambas as correntes desenvolveram estudos sob o enfoque da qualificação profissional abordando a Sociologia do Trabalho. Por outro lado, analisam as relações entre os conceitos de qualificação e competência, com o objetivo de rever os enfoques da formação profissional e criticá-los sob o viés filosófico-econômico. A contribuição desses estudos se refere às informações a respeito das mudanças no mundo do trabalho, no tocante à relação trabalho e educação, as quais, devido ao escopo desta pesquisa, não serão detalhadas. Nos anos de 1980-1990, a racionalização e a reestruturação dos processos produtivos, aliadas à tecnologia, à automação e à intensificação do trabalho, indicaram a passagem do modelo de produção taylorista-fordista para o de produção flexível. Então, o trabalho “em migalhas”, tornado tecnologizado e informatizado, passou a solicitar especificidades humanas dos trabalhadores, ‘destroçados pelo taylorismo’. Nos anos 1980-1990, as mutações no conteúdo do trabalho privilegiam o entendimento das atividades, a autonomia e a responsabilização, elementos que haviam sido retirados do trabalhador anteriormente. Segundo as pesquisas de Zarifian (2003), essa perspectiva representou a expectativa de uma nova abordagem de sua qualificação, pois o modelo do posto de trabalho não revelava as qualidades efetivamente mobilizadas por eles – sua individualidade. Essa evolução mudou a relação do profissional com o conhecimento, valorizando aspectos atitudinais e comportamentais em situação de trabalho, os saberes adquiridos na trajetória de vida pessoal, escolarizada e a experiência profissional. Com a exigência do perfil comportamental esperado do trabalhador, os aspectos cognitivos e relacionais passaram a ser visados, e o modelo da qualificação, por não abarcar todos esses elementos, tornou-se enfraquecido como elemento avaliativo de trabalhadores. Os saberes relativos à profissão, de natureza escolar e experiencial, não são suficientes para avaliar o indivíduo como trabalhador, já que não basta ao profissional ter qualificação ou ser qualificado; ele tem que ser competente, demonstrar competência, como explica Tomasi (2004). Nesse contexto, o conceito de qualificação profissional, desde os anos 1970, na França, e no Brasil, em 1990, mostrou-se insuficiente para satisfazer as demandas organizacionais. Na visão de Zarifian (2003), o taylorismo-fordismo, que havia separado o trabalho do trabalhador e reunido num fluxo, imobilizando no 55 espaço e no tempo o trabalhador sob o controle gerencial, tornou-se a origem indireta da competência. O QUADRO 1, a seguir, sintetiza as principais idéias de Friedmann(1946) e Naville (1956) sobre o conceito de qualificação. QUADRO1 Qualificação: aspectos conceituais Visão de FRIEDMANN (1946) Visão de NAVILLE (1956) Passagem da civilização natural para a civilização técnica Passagem do trabalho mecanizado para o trabalho automatizado Enfoque determinista Enfoque relativista Progresso técnico como fator determinante da desqualificação do trabalhador Processo de formação autônomo Substancialista, essencialista Independente da formação no trabalho e para o trabalho Tipo de intervenção exigida pelo posto de trabalho Relação de forças políticas dependente das convenções coletivas que qualificam o posto de trabalho Saber adquirido na escola Saber adquirido na escola Peso conferido ao trabalhador pelo saber-fazer advindo da experiência Peso conferido pelo saber (escolar) e o saber-fazer (experiência) Ocupação do posto de trabalho dependente do próprio trabalhador Dependente do processo de negociação entre o patrão e o empregado: quanto mais qualificado é o trabalhador, mais ele se distingue dos demais, permitindo negociação com o patrão por melhores salários. Fonte: Dados da pesquisa, 2008. 2.2.2 A competência A competência, conforme já se observou, é uma maneira de qualificar. Nessa ótica, o trabalhador é avaliado tanto em relação à sua contribuição para o processo produtivo quanto ao lugar que ocupa na hierarquia, conforme o sociólogo francês Zarifian( 2003). 56 O tema competência, na França, de acordo com Zarifian (2001), foi enfocado na pesquisa realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas sobre as Qualificações – CEREQ, em pequenas e médias empresas do setor moveleiro, nos anos 1985 e 1986. A pesquisa evidenciou mudanças na maneira de gerenciar e avaliar os trabalhadores, a qual, até então, centrava-se no uso produtivo do corpo, na precisão e rapidez de gestos e movimentos. As empresas pesquisadas buscavam alternativas para sair da crise no setor e, nesse sentido, por meio de serviços especializados, empenharam-se na melhoria da qualidade e diversificação dos produtos, adotando a produção flexível, com máquinas e ferramentas de controle numérico digital. Então, os problemas relacionados a qualidade, prazos, variedade, capacidade de iniciativa, resolução de problemas e outros passaram a ser vistos “como qualidades que os trabalhadores precisariam demonstrar, em ruptura com os procedimentos tayloristas-fordistas”. Esses elementos, todavia, conforme salienta Zarifian (2001, p.22), “já estavam presentes nos trabalhadores, mas [...] não eram reconhecidos e formalizados e, por isso, não apareciam”. Portanto, “a mudança não se deve a uma descoberta repentina da humanidade dos trabalhadores, mas à percepção de uma mudança nas condições de produção do setor”. Competência foi a denominação atribuída à nova forma de avaliação dos trabalhadores, em substituição à abordagem categorizadora e homogeneizadora do modelo taylorista-fordista (ZARIFIAN, 2001). No Brasil, como informado anteriormente, no ano de 1990, o tema foi inserido, por decisão governamental, na formação escolar para o trabalho, emergindo o debate sobre qualificação e competência, pincelado no item anterior. O entendimento da competência, em função do viés ideológico, tem sido prejudicado pela resistência à abordagem do tema; contudo, a escola, como agência de construção de conhecimentos voltada para o modelo da profissão, tem sido incentivada à mudança (ZARIFIAN, 2001; PERRENOUD, 1999), uma vez que o trabalho hoje vai além de papéis profissionais, como pontua Touraine (1994). Segundo Zarifian (2001), o trabalho de hoje diz respeito à capacidade do trabalhador de interpretar e solucionar problemas, tomar decisões, participar de uma equipe, comunicar-se, responsabilizar-se. Nessa linha de pensamento, Machado (2002) afirma que a formação para o trabalho atual se assenta na formação de competências básicas, que dizem respeito a capacidades pessoais, tais como: expressão, compreensão do que se lê, 57 interpretação de representações, construção de mapas relativos à relevância das informações disponíveis (tendo em vista a tomada de decisões), solução de problemas, alcance de objetivos previamente traçados, trabalho em equipe, elaboração de novos projetos, criação em um cenário de problemas, de valores e circunstâncias em que se deve agir solidariamente. A competência, para Perrenoud (1999, p.7), “é a capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”. Assim, a escola, como observa Perrenoud (1999), é um lugar de desenvolvimento de competências, cuja construção é inseparável da formação de esquemas de mobilização de conhecimentos, assinalando o enfoque conceitual do tema. Todavia, para Dugué (2004, p. 24), a temática competência remete à idéia de que o saber só existe em ação no ambiente de trabalho, que se torna o lugar de formação do trabalhador: “a empresa ensina e prepara os trabalhadores para uma readaptação permanente”. Nesse sentido, a referência aos saberes profissionais é atenuada, visando à elevação da competência. São valorizados os saberes gerais, tais como saber-negociar, saber-dialogar e resolver um problema. Esse entendimento põe em evidência a dimensão conceitual da qualificação centrada na rigidez da certificação. A certificação dos saberes não perdeu relevância, mas a relação com o conhecimento mudou, e o saber estático, sem aplicação reflexiva, ou seja, cognitivo, não tem mais lugar; o saber não foi desvalorizado, pois não se é competente no vazio de saberes (MACHADO, 2002; LE BOTERF, 2003). A competência, em sua dimensão conceitual, evidencia seu caráter polissêmico e sua ligação com outros campos do conhecimento, como: Direito, Ciências da Cognição, Educação, Psicologia, Ergonomia, Antropologia, Lingüística. É aplicada em contextos diversificados, com acepções particularizadas. O conceito não é novo; porém, o seu uso social é relativamente recente. Difundido nos mais diferentes discursos, há evidências de que não se trata de um modismo, sendo cada vez mais popularizado. O termo competência, segundo Isambert-Jamati (2002), provém do latim competentia e do inglês competence. Compreende um saber realizar, uma capacidade para fazer algo e, de maneira mais geral, a capacidade reconhecida de pronunciamento nesta ou naquela matéria. Ligado à área jurídica, surgiu no fim da Idade Média. O uso social do termo, segundo a autora, em nenhum momento foi de uso popular, pois uma certa capacidade é de fato confrontada no 58 julgamento da competência de alguém. Porém, Dadoy (2004) ressalta que, no senso popular, o vocábulo é entendido como a capacidade reconhecida para efetuar certas ações. Para Fleury & Fleury (2004) o termo designa pessoa qualificada para fazer algo, e o seu antônimo implica tanto a negação dessa capacidade, quanto guarda um sentido pejorativo, depreciativo. Cabe observar, contudo, que ninguém detém todos os saberes, então, é natural que, em algumas situações, a incompetência com sentido de limitação aconteça. O conceito de competência está intimamente relacionado à ação, ao movimento, ao empreendimento e, ao mobilizálo, procede-se a seu reconhecimento (ROPÉ &TANGUY, 2002). Portanto, à maneira de um tesouro escondido, um saber em si nada vale; no entanto, à luz daquele que lança mão desse potencial em situação real de trabalho, torna-se reconhecido e distinguido. O conceito de competência desenvolvido por Zarifian (2001, p. 68-74) foca o mundo do trabalho e combina três abordagens da competência: [...] a competência é a tomada de iniciativa e o assumir a responsabilidade do indivíduo diante de situações profissionais com as quais se depara. [...] a competência é um entendimento prático das situações, que se apóia em conhecimentos adquiridos e os transforma, à medida que a diversidade das situações aumenta. [...] a competência é a faculdade de mobilizar redes de atores em torno das mesmas situações, de fazer com que esses atores compartilhem as implicações de suas ações, de assumir áreas de coresponsabilidade. Entende-se como ganho para o trabalhador o expressar de sua autonomia e iniciativa, dos seus conhecimentos em situações diferenciadas, em oposição à passividade solicitada pelo modelo taylorista-fordista. Certas situações profissionais com as quais o trabalhador depara podem se tornar complexas, extrapolando o nível de atuação usual do trabalhador, que mobilizará uma rede de atores, em busca de soluções. Depreende-se, então, que deva existir uma referência, a exemplo dos níveis hierárquicos e dos cargos estabelecidos no modelo taylorista-fordista, que possibilite ao trabalhador guiar sua atuação, responsabilização, participação e autonomia. O reconhecimento da competência do trabalhador e de sua capacidade se dá pelo aspecto cognitivo do trabalho que é executado (STROOBANTS, 2002). Le 59 Boterf (2003) observa que o profissional reconhecidamente competente é aquele que sabe agir com competência, mobilizando recursos provenientes da formação pessoal, biografia e socialização, formação educacional e experiência profissional. As competências são produzidas por meio de recursos e convertem-se em atividades e condutas profissionais adaptadas a contextos específicos. O saber agir é distinto do saber-fazer, que é um conjunto de experiências e habilidades. Esse autor, ao buscar dar materialidade à competência, analisa os recursos, os saberes do indivíduo em face do meio e da época em que se encontra. Defendendo semelhante concepção, Fleury & Fleury (2004, p.30) observam que se trata de “[...] um saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar, transferir conhecimentos, recursos e habilidades que agreguem valor econômico à organização e valor social ao indivíduo”. Reportando-se a esse conceito de competência individual, Dutra (2004) acrescenta que o conceito deve ser aplicado a instrumentos de gestão que possibilitem às pessoas perceberem o que lhes agrega sua relação com a organização. Assim, a competência é atribuída a vários atores: a empresa dispõe de um conjunto de competências que lhe são próprias, decorrentes da “gênese e do processo de desenvolvimento da organização e são concretizadas em seu patrimônio de conhecimentos, que estabelece as vantagens competitivas da organização no contexto em que se insere” (DUTRA, 2004, p.14). As pessoas, por sua vez, dispõem de um conjunto de competências aproveitadas ou não pela organização. A competência diz respeito à especificidade do indivíduo, sua originalidade, sua trajetória de vida, abrangendo sua experiência profissional, suas capacidades e potencialidades. Ela valoriza o saber escolarizado, o saber- fazer, a experiência e o saber-ser (denominado também de saber comportamental) e ainda competência social (sobretudo em termos de comportamentos e atitudes) e ainda sua capacidade de antecipar-se aos problemas e não apenas solucioná-los (ZARIFIAN, 2001), evidenciando movimento, participação, mobilização. Porém, para Zarifian (2001), o saber-ser é uma denominação imprópria para o enfoque das atitudes e dos comportamentos gerados pela competência. Entende o autor que o saber-ser refere-se à personalidade profunda e estável do indivíduo, a seus traços de personalidade e aptidões consideradas inatas, passíveis de serem verificadas por meio de testes de personalidade. Nesse entendimento, o trabalhador é avaliado em sua totalidade, em seu “ser”. Por outro lado, a abordagem que 60 enfatiza o comportamento e as atitudes diz respeito à “competência social”, esclarece Zarifian (2001, p.146), pois a avaliação recai “na maneira como um indivíduo apreende seu ambiente em situação, a maneira como se comporta”. O que se busca com essa abordagem é uma visão parcial e manifesta do indivíduo. O comportamento é adquirido e pode evoluir, razão pela qual a avaliação se dá em determinado momento. Não é o ser que se procura apreender, mas o seu modelo de conduta, diante de dado ambiente. O conceito de atitude sustenta o conceito de comportamento. A atitude traduz o que sustenta e estabiliza o comportamento; é manifestada individualmente; é social por ser produzida em meio sócio-cultural específico e por denotar certa maneira de se posicionamento do indivíduo nas relações sociais. A atitude se traduz, portanto, no comportamento. Segundo Dadoy (2004, p.124), os empregadores sempre valorizaram a competência comportamental referente aos saberes relacionais ( saber-ser): [...] esses saberes, na realidade, sempre fizeram parte das qualidades esperadas pelos empregadores, mas essa exigência parecia tão natural que não havia necessidade de explicitá-la em um período em que os saberes técnicos eram ainda bastante raros no mercado de trabalho e era, então, a primeira preocupação dos empregadores. Dadoy (2004) observa que as características pessoais dos trabalhadores sempre foram alvo de análise, com vistas a evitar problemas de relacionamento e conflitos existentes no ambiente de trabalho, relacionados à personalidade do trabalhador, ressaltando de modo especial o modelo comportamental submisso, controlado pela gerência taylorista-fordista. Segundo a autora, em todos os níveis de contratações, a demanda dos empregadores por trabalhadores adaptáveis e capazes de se inserir em grupos de trabalho é evidenciada. Dadoy (2004) ressalta que, no período 1976-1978, com a experiência francesa de “mobilização e inserção profissional de jovens sem qualificação, os saberes sociais apareceram explicitamente”, sugerindo que esses comportamentos “apresentam mais problemas que os saberes técnicos, que se tornaram mais abundantes e mais baratos”. Por outro lado, os saberes comportamentais, na visão de Dadoy (2004), não são concebidos como parte integrante da formação profissional, não sendo balizados por uma instituição oficial como a escola. A competência é subjetiva, e, por si só, é invisível salienta Le Boterf (2006). Não sendo diretamente acessível, sua validação depende dos conceitos, da 61 metodologia empregada, dos atores implicados e dos pontos de vista adotados. A competência está sempre ligada ao mecanismo de medida que lhe é aplicado e depende sempre do olhar que sobre ela recai. O que é avaliado não é a competência em si, mas aquilo que se designa por competência, por meio do mecanismo de avaliação (instrumentos, regras, instâncias). O trabalhador, para ser reconhecido como competente, o é em relação a alguma coisa, e esse parâmetro estabelece uma prescrição, um modelo, um limite para ser competente. Porém, esclarece Le Boterf (2006) que a limitação existe no nível de saber alcançado pela profissão do indivíduo, numa época determinada, ou seja, a competência é situacional. Zarifian (2003) observa que toda atividade profissional se exerce, precisamente, em certo campo de responsabilidade; assim, cada trabalhador é responsável por um campo, diferentemente da abordagem na qual o trabalhador exerce uma função. Trata-se de outra maneira de falar da divisão do trabalho, organizada em torno da ação dos indivíduos. Em outras palavras, o indivíduo exerce um papel dentro de um campo de ação delimitado pela organização, um território social da ação do indivíduo competente. Portanto, o cargo, entendido como um conjunto de tarefas e responsabilidades característico do modelo de produção taylorista-fordista e da qualificação tende ao enfraquecimento e substituição, em vista do uso social da competência no mundo do trabalho. A competência, por sua vez, é concebida como a tomada de iniciativa e de responsabilidade, baseada na capacidade de mobilizar o saber formal, proveniente da escola, dos manuais, dos cursos e de outras fontes instrucionais; o saber–fazer proveniente da experiência, e o saber-ser relacionado às atitudes e aos comportamentos, ou seja, a maneira pela qual um indivíduo se conduz em face da realidade em geral: a atitude traduzida no comportamento, de um agir em uma situação profissional. O reconhecimento da mobilização desses saberes depende do olhar de outro indivíduo que, assim, atesta a competência. Nesse contexto, o estudo da competência implica o ajuste do foco sobre o indivíduo: [...] um indivíduo que, produzido nas relações sociais nas quais se encontra inserido, insiste em guardar suas diferenças em relação aos outros [...] e isso não significa, o estabelecimento de um dualismo entre ele e o coletivo, mas, diferente disso, o diálogo. (TOMASI, 2004, p.11) 62 Conforme Zarifian (2003, p. 35), “todas as unidades sindicais admitem a necessidade de abordar a questão da competência, associando-a ao tema da qualificação”. A qualificação é o que sobressai dos recursos, conhecimentos, habilidades e comportamentos adquiridos por um indivíduo, na formação ou no exercício de diversas atividades profissionais; a competência é a utilização desses recursos na prática. As organizações sindicais denominam de “caixa de ferramentas” o que o assalariado tem. A competência relaciona-se à maneira como utilizar concretamente a caixa de ferramentas. Assim, a oposição qualificação / competência, na prática, se encaminha para a negociação em torno de referenciais e garantias coletivas, frutos do trabalho entre organizações sindicais patronais e de trabalhadores, compartilhando experiências no domínio da gestão das competências, sem isenção, é claro, de questionamentos em torno de conceitos e articulações. Para Zarifian (2003, p.37), a competência especifica, hoje, de maneira nova, a construção da qualificação. Dugué (2004, p.25) observa que a qualificação, nas convenções coletivas, fortalece o movimento dos trabalhadores, em seus direitos em relação ao empregador, mas a competência “modifica as formas de regulação do trabalho quanto ao sistema de formação, participa do enfraquecimento das instituições e das regras que sustentam a organização do trabalho”. Dadoy (2004), por sua vez, entende que o conceito de qualificação tem uma trajetória histórica, acadêmica e institucional, na qual os saberes e salários tendem a agrupar-se; porém, o conceito de competência é novo e com usos diversos e isso atenta contra o trabalhador, em favor do empregador. Na visão de Tomasi (2004), qualificação e competência não se excluem, mas coabitam, complementam-se. Segundo o autor, uma das contribuições que o estudo da competência oferece é o convite a repensar os modelos teórico-metodológicos de análise da realidade, a qual insiste em se transformar. Diante dessa circunstância, propõe a reflexão: “é a realidade que deve se adequar aos nossos modelos ou, ao contrário, somos nós que devemos reconstruí-los para melhor apreendê-la?” Essa questão relaciona-se à visão de Friedmann (1972), para quem o avanço científico e tecnológico, em termos deterministas, desqualificaria o trabalhador, e à visão de Naville (1956), para quem o estado das forças produtivas determinaria sociais, em detrimento dos individuais. critérios 63 Todavia, a competência é individual e envolve três saberes: 1- o saber propriamente dito, escolarizado; 2 - o saber-fazer, que compreende a experiência profissional; 3- o saber-ser, que engloba as atitudes, também chamado de saberatitudinal, comportamental ou social. O saber-ser, na visão de Zarifian (2001), valoriza qualidades do trabalhador em contexto profissional o que possibilita a saída da lógica do posto de trabalho (domínio do trabalho sobre quem o exerce), permitindo ao trabalhador uma válvula de escape da prescrição (que invalida a reflexão) e da cognição (centrada na rigidez de saberes). Nesse sentido, para Zarifian (2001), a inserção da competência no mundo do trabalho representa uma ruptura com o modelo tradicional taylorista-fordista do trabalho. 2.2.3 A gestão de competências e o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores Esta subseção discute os resultados dos trabalhos de Zarifian (2001, 2003, 2005), Dadoy (2004), Stroobants (2002), Ropé & Tanguy (2002), Tomasi (2004), Ruas (2005), Fleury & Fleury (2005), Dutra (2004), Almeida (2004) nos quais o conceito de competência é objeto de estudo empírico. Esses trabalhos contribuem para a análise do uso social do conceito de competência no âmbito organizacional, na gestão de pessoas e, sobretudo, no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, foco da presente pesquisa, subsidiando o encaminhamento desta investigação. Como já observado, o gerenciamento de trabalhadores pressupõe a adoção de meios adequados à condução do trabalho nas organizações. As práticas gerenciais regem a atividade de trabalho, as relações sociais entre patrão- empregado e a hierarquia no trabalho. Regem também a concepção de trabalhador, que, por sua vez, impacta o processo de recrutamento e seleção para ocupação de vagas. Zarifian (2001) ressalta que a convergência de situações de crise em outros setores industriais permitiu considerar a hipótese do surgimento de um modelo de gestão por competência, originado principalmente de mudanças nos julgamentos avaliativos dos responsáveis pela direção e administração de empresas, incluindo 64 modificações e práticas desejadas no gerenciamento dos trabalhadores. Essa perspectiva significou a possibilidade de saída da lógica do posto de trabalho, que, no passado, constituía o ponto de referência nos modos de recrutamento e seleção de pessoal nas empresas. As mudanças no gerenciamento de trabalhadores sob o conceito de competência, que caracteriza a gestão por competências, são evidenciadas em três noções analisadas por Zarifian (2001): evento, comunicação e serviço. O evento é algo que acontece sem prévio aviso, sem programação; é o inusitado na rotina da produção, cuja solução é dependente da ação humana. O trabalhador em atenção expectante confronta o evento e resolve os problemas que são gerados com conhecimento de causa, demonstrando competência (que é propriedade do indivíduo e não do posto de trabalho, do cargo). Deste modo, o evento, contraria o padrão de gerenciamento taylorista-fordista, centrado no controle e na definição prévia de tarefas a executar em um posto de trabalho. Atrelada ao evento, a comunicação é outro aspecto essencial no mundo do trabalho. A gerência controladora taylorista-fordista separava tarefas e responsabilidades; a comunicação existente se restringia às políticas de comunicação da empresa, direcionadas de cima para baixo, sem levar em conta as necessidades de gerenciamento de interações, busca do entendimento mútuo entre os trabalhadores e conhecimento da organização em seus objetivos. A comunicação e o evento ligam-se ao terceiro conceito: serviço. Trabalhar é satisfazer as necessidades do cliente, usuário interno ou externo da organização, ou seja, é estar atento aos imprevistos, às demandas. Esses três elementos observados por Zarifian (2001) destoam do padrão tradicional de gerenciamento taylorista-fordista, centrado no controle e na prescrição de tarefas relativas ao cargo. Os estudos de Dadoy, (2004), Ruas, (2005), Fleury & Fleury (2004) e Tomasi (2004), quanto ao conceito de competência no mundo do trabalho, revelam indefinições e sobreposição de concepções correlatas, acarretando uma multiplicidade de entendimentos, ligados à noção de qualificação, atribuições, desempenho e outras. Ruas (2005) salienta essa heterogeneidade conceitual, observando que termos como performance, desempenho, objetivos e diversas formas de atributos são tratados como competências. Observa ainda Ruas (2005) que os aspectos atitudinais são considerados difíceis de serem avaliados, nas atividades repetitivas. Cita também situações em que a qualificação profissional é 65 ligada à qualidade do profissional e vinculada ao estoque de saberes escolares e experienciais, sustentadas na análise do curriculum vitae do trabalhador, bem como o conceito de competência sob a forma de mobilização de capacidades, associado à lógica da prescrição de tarefas ou atribuições. Na visão de Stroobants (2002), no contexto organizacional, o conceito de competência se refere à modificação do perfil do trabalhador, cujo vocabulário é renovado, com termos relativos a saberes e competências. Para Ropé & Tanguy (2002), por sua vez, tal conceito é ligado a um conjunto de conhecimentos, qualidades e capacidades relacionadas ao ofício. Dadoy (2004) explica que a assimilação do conceito de competência ocorreu em diferentes contextos, sendo aplicado a objetos distintos dos originais, sem que houvesse, por parte dos empregadores, sindicatos e educadores da área profissional uma reflexão mais aprofundada sobre suas diversas definições e utilizações. Cabe ainda ressaltar que os mencionados autores são consensuais no entendimento de que têm ocorrido avanços, em termos de compreensão e operacionalização do conceito de competência, cuja presença é evidenciada em um número reduzido de empresas. Nas pesquisas desenvolvidas por Le Boterf (2003), foi constatada a existência de contradições entre o discurso oficial dos dirigentes de empresas e a realidade de sua gestão. Embora a maioria dos dirigentes julgue a contribuição dos trabalhadores fator importante para um satisfatório desempenho organizacional, muitos ainda consideram preponderantes os fatores materiais e financeiros. São poucos os investimentos na implantação de políticas que estimulem o desenvolvimento das competências e, embora muitos os considerem prioritários, apenas uma minoria harmoniza sua política com o discurso sobre a prioridade das pessoas na organização. A adoção dos princípios de gestão por competência pelos dirigentes das empresas pressupõe o reconhecimento de um trabalhador autônomo, em equipe e em rede e implica o desenvolvimento da competência do trabalhador na organização e o desenvolvimento da competência sobre a organização. Nesse modelo, a simples regulação da organização do trabalho torna-se desnecessária; a relação passiva, submissa do trabalhador com a empresa (gerência taylorista-fordista) tende à mudança, e o trabalhador, conforme explica Zarifian (2001, p.138), “pode se tornar ator explícito da evolução da organização”. A competência sobre a organização, por 66 sua vez, é aos poucos desenvolvida, à medida que o trabalhador executa projetos de trabalho. Zarifian (2001) constata a hesitação dos dirigentes das empresas em desenvolver essa competência sobre a organização, sobretudo na base da pirâmide hierárquica, na qual a relação de poder, submissão/controle estabelece a prática gerencial taylorista-fordista. Nos estudos de Dutra (2004), Fleury & Fleury, (2004), Ruas (2005) sobre o âmbito empresarial brasileiro, o uso social do conceito de competência se dá tanto sob a dimensão coletiva como sob a individual. A coletiva assume tanto uma perspectiva estratégica (competências organizacionais estratificadas em áreas e funções), quanto uma configuração específica de práticas associadas à gestão de pessoas (seleção, desenvolvimento, avaliação e remuneração por competências). A dimensão individual, por sua vez, inclui as competências gerenciais, que colocam em ação as propostas e projetos organizacionais e funcionais (ou por área). O gerenciamento dos trabalhadores, nas últimas décadas, vem passando por significativas mudanças. Para Dutra (2004), foi atribuída maior importância às pessoas, e o foco do gerenciamento centrado no controle tende ao desenvolvimento; daí a denominação de gestão de pessoas. O perfil ideal de trabalhador, de obediente e disciplinado, passou a autônomo e empreendedor, com a inserção do trabalho em equipe. Passaram a ser valorizados aspectos como: participação, liderança, comunicação e autonomia. Embora as pesquisas apontem essas mudanças na gestão de pessoas, as transformações não foram acompanhadas pelos conceitos e ferramentas que dão suporte à gestão (DUTRA, 2004). O autor ressalta haver dificuldades na compreensão do conceito de competência e nas formas de sua articulação pelos responsáveis pelas empresas, pois coexistem nas organizações discursos carregados de modernidade, aliados à manutenção de posturas tradicionais, típicas do modelo de produção rígido. Assim, o modelo da competência é entendido como inadequado para trabalhar as necessidades das organizações, sendo considerado um modismo (DUTRA, 2004). Reportando-se ao atual modelo de gestão de pessoas, Fleury & Fleury (2004, p.27) observam que “gerenciar por um modelo de competências implica somente uma mudança burocrática nos procedimentos para seleção dos indivíduos”. Destacam os autores a tendência à utilização do conceito de competência pelos profissionais de recursos humanos como algo que pode ser medido e quantificado. À semelhança dos padrões e resultados obtidos por meio do treinamento, a 67 competência é entendida como um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que afetam o trabalho em termos de desempenho; referem-se, então, à tarefa e ao conjunto de tarefas prescritas a um cargo. Tal postura encontra ressonância na abordagem de Almeida (2004), profissional da área de recursos humanos, para quem a política de treinamento na atualidade é orientada para o desenvolvimento de competências para o negócio da empresa e para o treinamento das pessoas, visando a assumir novos desafios e possibilidades. Todavia, cabe enfatizar que a competência não pode ser enclausurada em definições prévias de tarefas a executar, nem vinculada a treinamento para um posto de trabalho. Zarifian (2001) ressalta ser o trabalho a ação competente do indivíduo em face de uma situação de evento, e considera que a competência marca a volta do trabalho ao trabalhador. O autor observa ainda que o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores passou a exigir a comprovação de diplomas que atestem instrução mínima em conhecimento e disciplina para enfrentar situações de trabalho complexas, que exijam maiores conhecimentos e capacidade de raciocínio. Constatou, também, o uso discriminatório do uso da competência nos anos de 1980, cuja intencionalidade se assentava na pré-seleção dos candidatos, visando a garantir maior previsibilidade ao recrutamento e seleção. Para Fleury & Fleury (2004), entre as mudanças ocorridas na gestão de pessoas, com a introdução do conceito de competência nas áreas de treinamento e desenvolvimento, incluem-se a criação de universidades corporativas, visando ao processo de desenvolvimento das pessoas e das organizações e o desenvolvimento de sistemas próprios de remuneração, ligados aos níveis de competência. Quanto ao processo de recrutamento e seleção, foi observada tanto a elevação do nível educacional demandado, quanto a exigência de características pessoais, como comprometimento com a organização, flexibilidade para enfrentar incidentes críticos e novas demandas da empresa, bem como pensamento estratégico. Dutra (2004) ressalta a tendência de algumas empresas a vincular a abordagem por competência ao processo de recrutamento e seleção de trabalhadores; contudo, a abordagem tradicional, centrada no cargo, persiste no sistema formal. O QUADRO 2 possibilita a comparação entre a abordagem tradicional e o enfoque por competência na captação de pessoas. 68 QUADRO 2 Abordagem tradicional e por competência na captação de trabalhadores Aspectos analisados Abordagem tradicional Abordagem por competência Horizonte profissional Voltada para o cargo a ser Voltada para a carreira da ocupado pessoa na empresa Perfil Atendimento às demandas de um cargo específico Atendimento a demandas presentes e futuras Processo de escolha Adequação ao cargo. Adequação a uma trajetória específica Ferramentas de escolha Testes de conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para o cargo Análise da trajetória profissional para avaliar a maturidade profissional e o ritmo de desenvolvimento Contrato psicológico Ligado a determinada posição na empresa Voltada para a carreira ou trajetória profissional na empresa Compromisso da organização Manutenção do cargo para o qual a pessoa é captada. Desenvolvimento da pessoa para determinada trajetória na empresa Internalização Adequação ao cargo Adequação a uma trajetória. Fonte: Dutra (2004, p.63) Adaptação. Dutra (2004, p.63) ressalta o aspecto da trajetória como principal distinção entre as abordagens. A trajetória, entendida como percurso profissional em determinado tempo, é marcada pelas realizações da pessoa e as necessidades decorrentes de posição/função/espaço/papel a serem ocupados/desempenhados, em que o fator tempo pode ser fundamental. Busca-se atualmente por pessoas que consigam estabelecer uma boa agregação de valor durante sua trajetória, que não implica necessariamente longa duração, como é o caso de jovens em início de carreira, em empresas como fast-food e call-center; que não oferecem um horizonte profissional extenso, mas precisam de pessoas comprometidas com seu trabalho. Nesses casos, aliar inexperiência e comprometimento, com ganhos para ambos os lados, caracteriza uma abordagem de gestão estratégica na captação desses 69 trabalhadores, em consonância com os princípios de flexibilidade, em oposição aos princípios de estabilidade e rigidez, centrados no cargo e na qualificação. Le Boterf (2006) ressalta que as empresas começam a se instrumentalizar, com vistas a avaliar a competência dos profissionais. No entanto, ainda não se desvincularam dos referenciais do sistema de produção rígido, centrado na prescrição de tarefas. Nesse contexto, o trabalhador dito competente será aquele que, ao desenvolver o seu trabalho, detém as competências atitudinais e comportamentais prescritas no referencial. Para Zarifian (2005), a gestão das pessoas centrada no modelo das competências adotada nas organizações, circunscreve-se ao uso de dois tipos de instrumentos: a construção de referenciais e a realização de entrevistas ao empregado por seu superior hierárquico. A construção de referenciais é feita por meio de listas de competências centradas no saber-ser, visando a indicar, de maneira prescritiva, aquilo que os assalariados devem saber-fazer e dizer, numa dada situação de trabalho. As entrevistas visam a avaliar se as competências enunciadas nos referenciais são ou não dominadas pelo trabalhador. Para Le Boterf (2006), os métodos de avaliação da competência de um profissional pelas organizações devem analisar a prática do trabalhador e sua maneira de interpretar as prescrições de um trabalho. Uma prática não corresponde, item a item, a uma prescrição. Se assim fosse, a prática seria reduzida a uma simples execução de orientações e de normas. Nesse sentido, o alvo da avaliação não são as competências do trabalhador, pois estas, por si sós, são invisíveis, mas, aquilo que o mecanismo da avaliação designa como competências. Por outro lado, pondera Zarifian (2005) que o conteúdo das competências é definido em relação a um conteúdo do emprego. Segundo o autor, os métodos para avaliar o emprego não mudaram, compondo-se de descrição do conteúdo técnico da atividade, requerido no exercício da função. Tal fato revela a necessidade de encontrar um novo referencial para o trabalho, após o esgotamento dos referenciais estabelecidos no modelo taylorista-fordista, centrados no posto de trabalho, na prescrição de tarefas, no cargo. O estudo de Almeida (2004) sobre gestão de recursos humanos aponta duas abordagens sobre recrutamento e seleção de trabalhadores: a tradicional, mantida no período de até 1980-1990, semelhante à abordagem de Dutra (2004) no QUADRO 2, e a vigente, moderna. O processo de recrutamento e seleção de 70 trabalhadores atual é alinhado à perspectiva estratégica da organização e, com isso, busca refletir, reproduzir e legitimar as características culturais das organizações. Orientado para o cenário atual e futuro da empresa, sua abordagem difere do tradicional enfoque taylorista-fordista, uma seleção com fim em si mesma. Para Almeida (2004), a abordagem moderna de recrutamento e seleção de trabalhadores tem como princípio se antecipar às necessidades de pessoal. Objetiva a captação de pessoas que se destaquem e se diferenciem, com perfil para assumir novos desafios, projetos, comissões, integrando equipes de trabalho. Além do saber e do saber-fazer, valoriza a formação, a experiência e a atitude do candidato, essenciais para a análise de seu desempenho. O processo de recrutamento e seleção, segundo Almeida (2004, p. 27) é atualmente orientado pelo modelo da competência, que “busca avaliar as competências requeridas pela organização e pelo cargo e o desempenho do candidato frente a metas relacionadas ao cargo” (grifos da autora). O foco no cargo corrobora os estudos já citados, que enfocam não só a dificuldade de desvinculação da abordagem taylorista-fordista na gestão de pessoas e no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, mas também a dificuldade de sua articulação com o modelo de competência. Além disso, no estudo de Almeida (2004), a cultura da organização ganhou destaque e divide espaço com o princípio da pessoa certa para o cargo. A adesão, a adaptação do candidato à cultura da organização é fator essencial. O princípio que norteia as práticas de recrutamento e seleção consiste em escolher, por meio do levantamento do perfil ideal do candidato, focalizando os aspectos da cultura da organização e do cargo, a pessoa que se identifique com a cultura da organização e que possa agregar valor a ela. Cada processo seletivo tem sua estratégia única, em função do atendimento às necessidades específicas da empresa. Os trabalhadores são captados via internet, anúncios, rede de instituições relacionamentos, de ensino. A indicação, triagem caça-talentos, e seleção são consultorias, feitas pela análise do currículo, ficha cadastral, questionários, testes de ajustamento à cultura, entrevista de pré-seleção, dinâmicas, simulações. A decisão final é feita por meio de entrevista. O processo de recrutamento e seleção ideal, segundo Dutra (2004), é articulado por competência e enfoca a trajetória profissional do candidato, buscando atender às necessidades da organização. É preciso que a organização saiba quem 71 procurar, onde procurar e que tipo de relação será estabelecido entre a pessoa a ser contratada e a empresa. Há que se delinear o perfil profissional comportamental esperado da pessoa, o que ela oferece, para atender às necessidades da organização (presentes e futuras), ou seja, suas competências. Além disso, há que se definir as condições de trabalho e de desenvolvimento pessoal; as condições contratuais e vínculos empregatícios a serem estabelecidos; a fonte e a forma de captação, para que se possa proceder a um cruzamento entre as competências esperadas e o perfil da pessoa a ser captada, no tocante a formação, experiência, habilidades e conhecimentos, em termos da trajetória de realizações e de demonstração de maturidade ou nível de abstração correspondente às necessidades impostas pela posição a ser ocupada. O desenvolvimento profissional das pessoas está relacionado à sua capacidade e competência para assumir atribuições e responsabilidades que compõem as trajetórias profissionais, em níveis crescentes de complexidade. A trajetória de carreiras é, então, uma seqüência de posições e de trabalhos desempenhados, ou a desempenhar, estruturando e organizando as diversas opções de trajetórias, de forma a refletir os padrões de desenvolvimento da pessoa (DUTRA, 2004). Segundo Zarifian (2001), a premissa da competência se expressa no olhar do outro, no princípio de que “o trabalho é a ação competente do indivíduo frente a uma situação de evento”. Nessa perspectiva, o trabalhador será considerado competente, se fizer escolhas profissionais adequadas, se seguir trajetórias que, sob júdice do selecionador e recrutador, alinhem-se às demandas da empresa. Todavia, não se pode perder de vista que a competência é situacional. Em um dado processo de recrutamento e seleção, a trajetória de carreira e as competências do trabalhador podem não se alinhar à trajetória específica demandada. No modelo taylorista-fordista, na qualificação, a experiência associava-se ao tempo de trabalhador. exercício A na experiência empresa era e ligada na à função estabilidade desempenhada e ao domínio pelo de conhecimentos profissionais, devido à repetição das tarefas prescritas. A carreira engessava-se profissional nesse modelo, e as condições de crescimento do trabalhador limitavam-se à empresa. O que diferencia a 72 competência de um trabalhador taylorizado, esclarece Zarifian (2001), é a autonomia de ação do indivíduo, que se engaja voluntariamente na melhoria do valor produzido, em virtude de suas iniciativas. Assim, a autonomia não se faz não acontece na observância na obediência estrita cega da ou na disciplina; a responsabilidade rejeição a qualquer regra; o espírito de equipe e de cooperação não é condizente com comportamentos egoístas. Cabe, contudo, observar que a autonomia de decisão e de ação, para ser reconhecida no funcionamento da organização, necessita de um nível de liberdade para a ação do trabalhador. Tal aspecto implica recorrer a alguém que mais a competente, autonomia se com meios expresse fornecidos modelo de gerenciamento taylorista-fordista o gesto da mão, do corpo do trabalhador no máquinas, este Assim, para no as 2001). empresa, se movimentava (ZARIFIAN, pela era requerido processo de recrutamento e seleção. Hoje, em face das transformações operadas não construída, somente produzida no pelo mundo trabalho, do não trabalho, restrito à mas na execução sociedade, de papéis profissionais, (TOURAINE, 1994) as situações de trabalho requerem competências que o as pessoas trabalhador devem exerça procurar sua adquirir. qualificação Para para isso, realizar espera-se seu que trabalho; espera-se que o profissional operacionalize competências para gerir sua situação de trabalho (LE BOTERF, 2003). Nesse sentido, o trabalhador deixa de se preparar para um cargo, para um papel profissional a exercer. Ele constrói uma trajetória, em que deve buscar seguir uma estratégia semelhante àquela recomendada por Dutra (2004) para a captação de pessoas pelas organizações: ter a empresa a consciência de suas necessidades, do tipo de trabalhador desejado, onde procurá-lo, do tipo de relação a ser estabelecida entre o trabalhador e a empresa e do modelo a ser seguido pelo trabalhador. Além disso, o trabalhador precisa perfil investir profissional no e conhecimento comportamental, de si com mesmo, a explorando percepção de seu que as competências só são utilizadas e se desenvolvem como conseqüência da própria mobilização. 73 3 METODOLOGIA DA PESQUISA “Diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos saber.” BACHELAR ( 2001, p.18) A opção metodológica deste trabalho circunscreve-se à análise dos princípios que, na atualidade, norteiam as ações dos serviços de recrutamento e seleção, na busca por trabalhadores, refletindo sobre os possíveis entendimentos do conceito de competência. Os serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, identificados neste trabalho pela sigla R&S, são os mediadores entre a oferta e a demanda, tanto de candidatos quanto de vagas, no mercado de trabalho. São eles, por sua vez, os representantes dos interesses das organizações, em face do processo seletivo de profissionais; portanto, aparentam recorrer ao discurso proferido pelas empresas contratantes, em suas práticas. Este trabalho procura apreender o discurso proferido por oito empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, em Belo Horizonte - MG, no período de agosto de 2006 – 2007, por meio da interpretação e análise das falas e dos gestos dos entrevistados e estabelecimento de correlações, com vistas a alcançar os significados das práticas relativas ao conceito de competência nesses serviços. O aporte teórico foi buscado nos estudos de alguns autores da escola francesa de Sociologia do Trabalho: Zarifian (2001, 2003, 2005), que aborda o estado da arte da competência nas organizações francesas; Le Boterf (2003, 2006), que investiga a implantação do modelo da competência nas organizações; Dadoy (2004), que discute a relação entre qualificação e competência; Stroobants (2002), que aborda a temática à luz das ciências da cognição; Ropé & Tanguy (2002) e Isambert-Jamati (2002), que recorrem à interface da educação, da formação e do trabalho, para analisar o conceito da competência. Na literatura brasileira sobre o tema, o referencial teórico baseou-se principalmente nos autores Fleury & Fleury (2004), Dutra (2004) e Ruas (2005) que investigam o tema em empresas nacionais e transnacionais, e Tomasi (2004), orientador deste trabalho, cujo olhar sobre o indivíduo e o trabalhador proporcionou perspectivas instigantes. Para a apreensão da realidade, ponto de partida da investigação científica, recorreu-se, portanto, à observação e a entrevistas abertas com indivíduos 74 representantes das empresas selecionadas, que os indicaram previamente. O conteúdo das entrevistas foi gravado, com a anuência dos entrevistados, e posteriormente transcrito. Trata-se de um estudo de múltiplos casos, cujas características essenciais, explicitadas por Godoy (1995 a, p.62), são “ter o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento fundamental”. Além disso, na pesquisa qualitativa, os dados coletados aparecem sob a forma de transcrições de entrevistas, anotações de campo, dentre outras formas indicadas por Godoy (1995 a), visando à análise do ambiente de maneira holística, como um processo. Nesta pesquisa, o interesse da investigadora é verificar como determinado fenômeno se manifesta nas atividades, nos procedimentos e nas interações diárias, compreendendo o fenômeno na perspectiva dos participantes. Salienta Godoy (1995a) que o pesquisador qualitativo deve assegurar-se de que efetivamente captou tal entendimento com os informantes e recomenda que parta de questões e suposições, adotando o enfoque indutivo na análise dos dados. A pesquisa qualitativa, segundo Godoy (1995b), possibilita a estratégia de estudo de caso, que visa, conforme indica Yin (2005), ao exame detalhado de um ambiente, de um simples sujeito ou de uma situação em particular, como uma empresa, ou seja, aborda condições contextuais. Um estudo de caso focaliza acontecimentos contemporâneos, permitindo uma investigação na qual se preservam, como indica Yin (2005, p.20), “as características holísticas e significativas dos acontecimentos da vida real [...] tais como processos organizacionais”. Além disso, possibilita a observação direta dos acontecimentos que estão sendo estudados e a realização de entrevistas com pessoas envolvidas no estudo. Entende-se que os serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores testemunham as mudanças no mundo do trabalho e, em grande medida, são os responsáveis pela implementação das novas ferramentas e dos modelos postulados pelas organizações, além de interpretarem as demandas por trabalhadores, na atualidade. Assim, analisando os princípios que sustentam as práticas desses serviços, poder-se-á verificar o conceito de competência praticado no contexto organizacional, o qual abarca acontecimentos contemporâneos, preenchendo as condições necessárias ao estudo de caso proposto. Segundo Yin (2005, p. 32), o estudo de caso “é uma investigação empírica, que investiga um fenômeno 75 contemporâneo dentro de seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos.” Neste caso, os limites da emergência do conceito de competência estão associados à inserção heterogênea do modelo de produção flexível e à ruptura, em certa medida, com o modelo de produção taylorista-fordista. A estratégia de estudo de caso abordada por Yin (2005) abrange técnica de coleta de dados e abordagens específicas para sua análise, além de permitir a variação de estudo de casos múltiplos, quando envolve dois ou mais sujeitos, duas ou mais instituições. Nesta investigação, são avaliadas oito empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores. Além disso, o estudo de múltiplos casos pode ser usado para propiciar generalizações amplas, baseadas em evidências desses estudos, como indica Godoy (1995b). Compreendendo-se que os elementos acima descritos coadunam com os propósitos desta investigação, optouse pela estratégia de múltiplos casos, uma vez que o estudo de uma única empresa prestadora de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores não possibilitaria generalizações amplas. Este capítulo é dividido em três seções: na primeira, serão explicitados os critérios para a escolha das unidades investigadas, os sujeitos da pesquisa, as fontes de informação e os critérios de definição dos casos; na segunda, serão enfocados os critérios para análise e, na terceira, as empresas de recrutamento e seleção de trabalhadores pesquisadas. 3.1 Critérios para escolha dos participantes da pesquisa O desenvolvimento do estudo de caso requer, de acordo com Yin (2005), a escolha da unidade a ser investigada, que pode ser um indivíduo, algum evento ou entidade. Neste estudo de casos múltiplos, a unidade de análise é constituída por empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, por serem as responsáveis pela implementação de novas ferramentas e dos modelos postulados nas organizações e por interpretarem as demandas das empresas por trabalhadores. Os sujeitos da pesquisa, ou seja, os indivíduos participantes das entrevistas foram indicados pelas próprias empresas, tornando-se, portanto, seus representantes. 76 Como fonte de informação, recorreu-se ao serviço de busca telefônica eletrônica, denominado TeLelistas, definindo-se a localização geográfica (Minas Gerais, Belo Horizonte). Em agosto de 2006, na categoria “consultores em recursos humanos”, foram relacionados 71 profissionais dessa área. Em 10 de fevereiro de 2007, foi realizada ‘busca’ telefônica via internet, desta vez na palavra-chave “seleção-de-pessoal”, chegando-se a 37 indicações. Com a palavra-chave “empregos-agência”, chegou-se a 29 indicações, totalizando uma população de 137 indicações nominais de prestadores de serviços, com os respectivos números de telefone, endereço e inclusive endereços eletrônicos de alguns. No Brasil, a temática competência, no meio acadêmico e organizacional, passou a ser enfatizada a partir da década de 1990, conforme os autores Tomasi (2004), Fleury & Fleury (2004), Dutra (2004) e Ruas (2005). Portanto, a abordagem do tema é, de certa forma, recente, e os estudos empíricos voltados para a área de recrutamento e seleção, efetivados junto aos prestadores de serviços na área, se encontram em fase inicial e apresentam uma série de lacunas, apontadas pelos pesquisadores. O primeiro critério para escolha das empresas que comporiam o estudo foi o tempo de atuação das empresas prestadoras de serviço de recrutamento e seleção, na cidade de Belo Horizonte, há pelo menos dez anos. De acordo com dados online do SEBRAE14, 56% das empresas fundadas nos mais diferentes ramos de atuação não chegam a sobreviver por cinco anos. Esse fato denota a importância do tempo de permanência do estabelecimento no mercado, como elemento de sua maturidade em sua área de atuação. Optou-se, portanto, por empresas prestadoras dos citados serviços, que tivessem iniciado suas atividades anteriore a 1996, uma vez que esta pesquisa teve início no ano de 2006. Partiu-se do pressuposto de que esse tempo, teria sido suficiente para que os serviços de recrutamento e seleção vivenciassem as transformações no mundo do trabalho e a inserção da temática da competência entre seus critérios de seleção de trabalhadores. Tal escolha constituiu elemento relevante para a análise dos dados, por se relacionar ao contexto de mudanças no mundo do trabalho reportadas pelos entrevistados. O segundo critério de escolha objetivou evitar um entendimento particularizado, regionalizado, setorizado, funcional do conceito de competência 14 SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS – SEBRAE, 2004. Disponível em :< www.sebrae.com.br>. Acesso em 02/04/2006. 77 praticada nos serviços de recrutamento e seleção, de forma a possibilitar o entendimento mais amplo possível do conceito. Assim, considerando que a competência é individual, portanto, demandada em todos os níveis organizacionais (TOMASI, 2004), buscou-se a participação na pesquisa, de empresas prestadoras de serviço que selecionassem profissionais para os mais diferentes níveis e cargos, bem como, com atuação em organizações de diversos portes. Primeiramente, de maneira aleatória, foi escolhido um grupo de vinte prestadores de serviços. Posteriormente, procedeu-se a uma filtragem, mediante a consulta a sítios eletrônicos daqueles prestadores que possuíam página na internet, e/ou via telefone dos que não faziam uso de websites, ou que não ofereciam em suas páginas eletrônicas informação sobre seu tempo de experiência ou de estabelecimento na cidade, sobre sua atuação nacional e sobre recrutamento e seleção de trabalhadores para todos os níveis hierárquicos e cargos da empresa. Desse grupo de vinte empresas, três não responderam à solicitação de entrevista; dois não concordaram em ceder entrevistas e cinco não se enquadraram no critério de tempo mínimo de experiência de dez anos. Foi possível compor a amostra com dez prestadores de serviços, os quais foram efetivamente entrevistados; todavia, nesse grupo de dez sujeitos entrevistados, dois deles não se enquadraram perfeitamente nos critérios definidos. Muito embora tenha atendido aos critérios de escolha propostas, foi constatado in loco que um dos selecionados prestava serviços somente a uma empresa, e o outro prestava serviços apenas em âmbito regional, razão pela qual a análise das entrevistas restringiu-se à contribuição de oito respondentes. No período compreendido entre 24 de agosto e 01 dezembro do ano de 2006, foram entrevistadas cinco empresas selecionadas e, no período de 10 de fevereiro a 02 de agosto de 2007, foram entrevistadas outras cinco. Cabe salientar que, durante a fase de contato com as empresas escolhidas, foi percebida certa preocupação por parte dos prestadores de serviços contactados quanto à preservação de determinadas informações, o que denota a importância do sigilo nessa área de atuação. Embora a solicitação de entrevista tenha sido feita formalmente, via e-mail, e apesar de terem sido informados os dados referentes à pesquisadora e ao orientador da pesquisa, tais como número do currículo na Plataforma Lattes e endereço eletrônico do Centro Federal de Educação 78 Tecnológica de Minas Gerais, tais referências parece não terem sido suficientes para convencer alguns contactados a concederem a entrevista. Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de entrevista individual, semiestruturada com os responsáveis pelo processo de recrutamento e seleção indicados pelas empresas escolhidas. As entrevistas foram marcadas com antecedência e duraram em média cinqüenta minutos, abordando os tópicos registrados em roteiro previamente elaborado, com base no referencial teórico estudado (APÊNDICE A). Durante as entrevistas, foi solicitado aos respondentes que apresentassem fatos e opiniões pessoais, a partir das perguntas abertas formuladas. As falas dos entrevistados foram gravadas, o que garantiu a fidedignidade das respostas e facilitou sua posterior análise e categorização. 3.2 Critérios para análise dos dados coletados Os critérios para análise surgiram das falas coletadas dos sujeitos desta pesquisa aliadas à teoria pertinente ao tema desenvolvido. A escolha desses critérios emergiu do problema de pesquisa enunciado na Introdução, o qual norteou os rumos de toda a investigação. Após a transcrição, leitura e releitura dos conteúdos das falas dos entrevistados, em função do roteiro da entrevista, os critérios de análise foram estabelecidos, conforme registra o QUADRO 3, a seguir. QUADRO 3 Critérios e subcritérios para análise dos dados Processo de Recrutamento e Seleção: critérios 1.Evolução do perfil profissional buscado no processo de R&S 1980-2007 2. Práticas das empresas de R&S para atender à demanda das contratantes. 3.Gestão por competência na percepção dos entrevistados 1.1 Relevância dos saberes escolarizados e das experiências. 2.1 Captação da demanda das empresas contratantes 3.1 O conceito de competência do empregador 1.2 Mudança do perfil profissional demandado 2.2 Busca de referência na concepção de competência da empresa contratante 3.2 O conceito de competência dos serviços de recrutamento e seleção 2.3 Construção do perfil profissional demandado 2.4 O candidato: perfil profissional ofertado Fonte: Dados da pesquisa, 2008. 79 3.3 Unidades de análise: as empresas participantes da pesquisa Nesta seção são apresentados os oito serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores que subsidiaram esta pesquisa. As informações foram obtidas nas entrevistas realizadas com seus representantes, bem como nos sítios eletrônicos dessas empresas e nos portfólios oferecidos por algumas delas. Esse quantitativo foi considerado suficiente para as finalidades desta pesquisa. Para resguardar a identidade dos serviços de recrutamento e seleção participantes da pesquisa, as empresas serão identificadas pela sigla R&S (Recrutamento e Seleção), seguida de um código numérico referente à ordem das entrevistas: R&S1, R&S2, R&S3 etc. 3.3.1 Empresa R&S 1 Em 24/08/2006, foi entrevistado o representante da prestadora de serviços R&S1, psicólogo com 16 anos de experiência na área. Fundada em 1975, a empresa possui um centro de treinamento na cidade de São Paulo e escritórios nas cidades de Rio de Janeiro, Curitiba e Campinas. A prestadora de serviços dispõe de estrutura operacional que cobre todo o território nacional e um quadro de colaboradores que engloba mais de duzentos consultores profissionais. Além dos serviços de recrutamento e seleção, oferece programa de transição profissional, outplacement (desligamento de profissionais), consultoria organizacional e divisão de treinamento. No tocante ao serviço de recrutamento e seleção, a empresa R&S1 coleta dados sobre os planos de trabalho que serão assumidos pelo profissional, o estilo de gerência e as expectativas do chefe imediato do profissional, as responsabilidades do cargo, a hierarquia, os atributos técnicos e pessoais, a remuneração e os benefícios oferecidos. O recrutamento é efetuado pelas seguintes fontes: arquivo da empresa, pesquisa dirigida, indicações, anúncios em jornais e/ou revistas, publicados mediante autorização da contratante. Na seleção, a empresa procura indicar até cinco candidatos, todos eles capazes de assumir a posição em aberto. A avaliação dos candidatos é feita com base em situações reais de sua área de atividade. Uma vez selecionados, a contratante recebe um dossiê sobre os candidatos, contendo seu curriculum vitae 80 detalhado, comentários individuais e comparativos, além de avaliação psicológica e/ou grafológica, quando solicitada, e levantamento de antecedentes dos indicados. Oferece também instalações com ambientes apropriados e isolados, para que a organização contratante realize entrevistas com os candidatos. Outra forma de trabalho é a parceria, que é a terceirização total ou parcial de recrutamento e seleção, de modo contínuo ou integrado. A parceria garante, segundo R&S1, melhoria constante da qualidade dos serviços, absorção da cultura da empresa contratante, o que agiliza os processos, vivência maior do parceiro (R&S1) junto às estratégias e metas da contratante, facilitando a busca conjunta de soluções mais adequadas, e favorecendo a redução de custos, devido ao trabalho contínuo. 3.3.2 Empresa R&S 2 Em 17/10/2006, foi entrevistada a representante da Empresa R&S2, psicóloga atuante na área de recrutamento e seleção há 18 anos e sócio-fundadora dessa prestadora de serviços, fundada em 1990, com atuação em âmbito nacional. R&S2 possui escritório central situado na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais e tem como objetivo promover o encontro entre profissionais que procuram oportunidades e empresas que buscam talentos. R&S2 oferece serviços voltados para a qualificação profissional, tais como: outplacement (desligamento) corporativo, orientação e evolução profissional, requalificação profissional, monitoração de treinamento e projetos especiais e de headhuntig (recrutamento e seleção de profissionais talentosos). Os clientes de R&S2 são empresas tanto nacionais quanto transnacionais, atendendo a diferentes portes e ramos de atuação organizacionais, selecionando e recrutando profissionais para os diversos cargos e regiões do Brasil. 3.3.3 Empresa R&S 3 Em 23/10/2006, foi entrevistada a representante da Empresa R&S3, psicóloga e ocupante da função de gerente dessa tradicional prestadora de serviços fundada em 1986, com atuação nacional e internacional. Líder no ramo, a empresa presta serviços de recrutamento e seleção de profissionais, assessoria na recolocação de executivos e terceirização de processo de recursos humanos, por meio de anúncio 81 de currículos e vagas. Presta serviços de apoio à carreira, elaboração, análise e tradução de currículo e carta de apresentação. Além disso, oferece simulação de entrevistas, educação executiva com cursos on-line e presenciais, Master Business Administration on line, serviços corporativos como testes online, pesquisa salarial, administração de estágios e soluções em treinamento. Também oferece, por meio da Editora Gestão e RH, publicações e livros que abordam a temática da área de Recursos Humanos. A matriz da empresa está situada em Barueri, São Paulo, além de ter filial em São Paulo (capital) e 27 escritórios regionais distribuídos nas cidades de Vitória - ES, Uberlândia - MG, Sorocaba - SP, Sta. Maria - RS, S.Luís –Ma, Rio de Janeiro – RJ, Salvador – Ba, Ribeirão Preto – SP, Recife – Pe, Natal – RN, Porto Alegre – RS, Manaus – Am, Maceió – Al, Goiânia – Go, João Pessoa - Pb, Fortaleza – Ce, Curitiba – Pr, Brasília – DF, Campinas – SP, Blumenau – SC, Belo Horizonte – MG, Belém – Pa, Bauru – SP, Aracajú – Se, Santos – SP. A empresa, em 1996, procedeu a inovações, criando a divisão on-line tornando-se o serviço de classificados eletrônicos de currículos e empregos de maior audiência da América Latina. Em 2006, foi vencedora do prêmio Top of Mind na categoria site de recrutamento. Adotando o slogan “seu sucesso é o nosso negócio”, a divisão online tem como objetivo intermediar candidatos e empresas. Os profissionais pagam uma assinatura para anunciar seu currículo e utilizar uma série de serviços exclusivos, que visam a auxiliar os trabalhadores no sentido de aumentar suas possibilidades de serem chamados para entrevistas. As empresas anunciam suas vagas gratuitamente e também acessam serviços que facilitam e agilizam o processo de contratação. 3.3.4 Empresa R&S 4 Em 10/11/2006, foi entrevistada a representante da R&S4, psicóloga e sóciofundadora da empresa. Fundada em 1996, presta serviços de consultoria para gestão estratégica de recursos humanos em âmbito nacional. Oferece soluções para o desenvolvimento de profissionais e organizações, cujos produtos e serviços são representados por meio de três unidades de operação: headhunting (caça-talento), out placement (recolocação), coaching (desenvolvimento de pessoas). 82 3.3.5 Empresa R&S 5 Em 26/03/2007, foi entrevistada a representante da R&S5, psicóloga e gerente da unidade centro dessa prestadora de serviços em âmbito nacional e internacional. Fundada em 1963, a empresa possui mais de 40 mil colaboradores, distribuídos nas mais de 100 unidades situadas no Brasil. No exterior, marca presença no MERCOSUL desde 1997, com escritório na Argentina. A prestadora de serviços R&S5 é uma organização especializada em relações humanas no trabalho, recrutamento, cadastramento, seleção e admissão de pessoas que trabalham sob o regime jurídico mais adequado às circunstâncias (temporário, efetivo, celetista (CLT), regime terceirizado, safrista e estagiário). Apresenta amplo cadastro de profissionais nas áreas administrativa, comercial, financeira, industrial, tecnologia da informação, informática e nas mais diferentes funções e cargos nos níveis operacional, intermediário, gerencial, altos executivos. Os serviços são prestados a empresas e a profissionais, apresentando soluções diversas em recursos humanos, desde o recrutamento, cadastramento e seleção de profissionais, chegando à terceirização plena de recursos humanos, passando pela área de saúde, segurança, treinamento e desenvolvimento. 3.3.6 Empresa R&S 6 Em 14/05/2007, foi entrevistada a representante da R&S6, socióloga e sócia proprietária da prestadora de serviços em consultoria empresarial, fundada em 1991. A empresa tem atuação nacional, com o objetivo de assessorar organizações e profissionais na sua busca pela excelência, respeitando a cultura, a filosofia e as crenças organizacionais e pessoais dos clientes. A Empresa R&S6 destaca que seus serviços têm por objetivo assessorar as empresas contratantes, por meio de suas gerências, na identificação de profissionais que, aliados à filosofia da empresa, sejam capazes de assumir desafios e exercitar sua competência teórica/prática no alcance de metas definidas, tendo como foco resultados. Com o slogan “gente é o nosso negócio”, inclui em sua área de atuação questões relacionadas a “gente” e estratégia de gestão nas empresas, somando competências, desenvolvendo talentos, acompanhando e extrapolando tendências, usando a criatividade como 83 ferramenta. A Empresa R&S6 oferece também serviços de consultoria de gestão, ou seja, assessoramento à alta administração, na definição do modelo de gestão de pessoas, enfocando filosofia, políticas e processos da empresa contratante. Outro serviço prestado é o aconselhamento de carreira (counseling) ferramenta de orientação para a retomada da performance do indivíduo na empresa em que trabalha, verificação de novas alternativas de atuação profissional no mercado de trabalho, ou orientação de jovens, no momento de escolha da profissão. Presta também serviços de recrutamento e seleção de profissionais para posições estratégicas, gerenciais e técnicas de nível superior. No portfólio da empresa, consta o entendimento de que a competência organizacional está diretamente ligada à competência dos indivíduos. Pessoas de talento constroem e mantêm empresas talentosas, competitivas. Nesse contexto, um dos grandes desafios enfrentados pelas organizações é compor equipes consoantes com os novos tempos, que demandam resultados ágeis e qualidade nos serviços prestados. 3.3.7 Empresa R&S 7 Em 21/05/2007, foi entrevistada a representante da R&S 7, psicóloga e sóciaproprietária da empresa. Fundada em 1991, integra uma rede de empresas de hunting (caça talentos). O trabalho em rede possibilita conexões internacionais, estendendo a disponibilidade da prestadora de serviços R&S7 para o atendimento a demandas no exterior. Trata-se, segundo informações constantes em seu portfólio, de empresa “referência mineira em recrutamento e seleção de executivos”. Presta serviços em duas divisões: a primeira, executive search, ocupa-se do recrutamento e seleção de executivos e de profissionais de nível universitário, para carreiras técnicas. Atende aos setores de alimentos, bebidas, comunicação, educação, eletroeletrônico, engenharia e construção, financeiro, higiene e limpeza, metalúrgico, mineração, químico, saúde, serviços, tecnologia da informação, telecomunicações, varejo e distribuição. Nessa atividade de executive search, a R&S7 presta serviços que consistem na identificação e seleção de profissionais, em consonância com a demanda da empresa cliente. O trabalho desenvolvido pelos headhunters (caça talentos) pressupõe a caracterização clara da realidade e das necessidades da organização a ser atendida, bem como a definição do perfil e da posição a ser 84 preenchida, contemplando os desafios que serão enfrentados pelo seu ocupante. Com essa definição, é feito o mapeamento do mercado, visando à identificação daqueles profissionais cujos perfis e expectativas se encaixem na necessidade do cliente. Entrevistas individuais e personalizadas, com foco em competências, são realizadas com a finalidade de gerar um relatório sobre a adequação e as perspectivas de adaptação do candidato à organização. O cliente, por sua vez, após entrevista com os candidatos, conta com a assessoria do prestador de serviços para a escolha final do profissional a ser contratado. A segunda divisão, intitulada Novos Talentos é encarregada da realização integral e em âmbito nacional da seleção de profissionais para programas de trainees e estagiários de nível universitário ou técnico. A empresa é especialista em hunting (caça-talentos) de profissionais estratégicos para o preenchimento de posições em organizações nacionais e transnacionais. Informatizada, com eficaz sistema de gestão de caça-talentos, composto por um banco de dados tecnologicamente avançado, a empresa se desenvolveu e vem aplicando com exclusividade, no Estado de Minas Gerais, uma moderna metodologia de trabalho. Atende de forma personalizada, usando técnicas que garantam agilidade e confiabilidade aos processos, com gerenciamento exclusivo de cada projeto e o desenvolvimento particular e confidencial de todas as etapas do trabalho, a saber: planejamento, execução e garantia do serviço. 3.3.8 Empresa R&S 8 Em 02/08/2007, foi entrevistado o representante da R&S 8, psicólogo, há dez anos atuando na empresa como gerente de divisão de recrutamento e seleção. A empresa prestadora de serviços R&S8, fundada em 1965, apresenta atualmente um portfólio de amplos produtos, atuando em recrutamento e seleção de executivos, trainees, administração de mão-de-obra temporária, administração de estágios e serviços terceirizados, disponíveis nas seguintes Divisões: executivo, especialistas, talentos, administração de mão-de-obra e integração empresa-escola. A Divisão de Executivos é uma unidade especializada na captação e seleção de profissionais de alto nível, na identificação de líderes e em soluções organizacionais. Atua na seleção de executivos para cargos de diretoria e alta gerência, com soluções ajustadas à política de cada empresa. Atualmente, a R&S8 possui um banco de 85 dados com mais de 100.000 currículos, atendendo aos mais diversos segmentos. Detém uma carteira com mais de 500 clientes e mais de 300.000 profissionais recolocados no mercado. Presente em todo o País, por meio de uma rede de contatos de profissionais de recursos humanos que, mediante moderna tecnologia e infra-estrutura, são capazes de atender a clientes em qualquer parte do Brasil. Tem como objetivo encontrar o melhor talento profissional, por meio de um rigoroso padrão ético. No processo seletivo, é traçado o perfil do candidato no desempenho de atribuições correlatas ao cargo, sempre dentro de uma visão situacional, de modo a garantir maior confiabilidade no resultado das contratações. Para a seleção dos candidatos, são utilizadas modernas técnicas de entrevistas por competências, ferramentas de avaliação de tendência comportamental, cases, dinâmicas, testes de conhecimentos e outras estratégias que se fizerem necessárias. O processo seletivo é feito em equipe, com critérios orientados de acordo com o perfil solicitado, a partir da compreensão das necessidades apresentadas pela empresa contratante. Os consultores são especializados por segmento do mercado, com sólida formação e amplo conhecimento de empresas nacionais e multinacionais. A Divisão de Especialistas é a unidade do grupo de R&S8 que lida com recrutamento e seleção de posições de média gerência. A Divisão Talentos é especializada em recrutamento e seleção de trainees e estagiários. Tem como objetivos atrair estudantes e recémformados e prepará-los, por meio de um processo estruturado de formação profissional, para ocuparem posições de senioridade e de liderança nas organizações. Nos treinamentos, os trainees e os estagiários experimentam situações de desafio profissional e pessoal, aprendem sobre cultura e valores organizacionais, desenvolvem seus potenciais, suas habilidades e suas atitudes. Capacitada a recrutar jovens em todo o território nacional, por meio da rede de parceiros, a R&S 8 possui um banco de dados que permite agilizar o processo de recrutamento, independentemente do perfil desejado, de modo a atender às necessidades específicas de cada cliente. Entre as atividades de recrutamento e seleção, são incluídas, além de entrevista individual com a área requisitante, os seguintes aspectos: definição do perfil dos candidatos, triagem curricular por meio de um sistema informatizado, convocação de candidatos, elaboração e aplicação de provas, captação de talentos nas escolas, aplicação de dinâmicas de grupos com a participação do cliente, escolha dos candidatos, comunicado de agradecimento aos não-escolhidos, apresentação de relatório final com as estatísticas dos candidatos 86 por etapa e ranking dos candidatos por área. O grupo busca, diretamente nas universidades e em seu banco de dados, os melhores profissionais para estágio. Na R&S8 existe também a Divisão de Integração Empresa-Escola, que atua como agente entre a iniciativa privada e as instituições de Ensino Médio, Técnico e Superior. Entre os serviços oferecidos, incluem-se: divulgação de vagas; triagem dos candidatos, consultoria sobre os aspectos legais e técnicos do estágio; regularização de todos os documentos necessários à formação jurídica e ao processo burocrático referentes ao estágio; acompanhamento da atuação e do desempenho do estudante por meio de relatório semestral, entre outros serviços relativos à área. Na R&S8, a Administração de Mão-de-obra é a unidade do grupo responsável pelo recrutamento, seleção e administração de mão-de-obra operacional, temporária e especializada. É disponibilizada ao cliente a assistência de um gerente de contas corporativo e são incluídos, entre os serviços prestados, folha de pagamento com relatórios via internet e cartão salário para pagamento dos funcionários. O QUADRO 4 sintetiza as características das empresas selecionadas, em consonância com os critérios estabelecidos, bem como dados pessoais de seus representantes, indicados pelas próprias empresas, para participarem da entrevista. QUADRO 4 Participantes da pesquisa Empresas de R&S selecionadas Nome (fictício) Experiência Entrevistados Função Experiência R&S 1 31 anos Gerente 16 anos R&S 2 16 anos Sócia-fundadora 16 anos R&S 3 20 anos Gerente 10 anos R&S 4 20 anos Sócia-fundadora 20 anos R&S 5 44 anos Gerente 6 anos R&S 6 16 anos Sócia-proprietária 18 anos R&S 7 16 anos Sócia-proprietária 20 anos R&S 8 42 anos Gerente 10 anos Fonte: Dados da pesquisa, 2006-2008. 87 4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS “A competência não é uma negação da qualificação. Pelo contrário, nas condições de uma produção moderna, representa o pleno reconhecimento do valor da qualificação.” ZARIFIAN (2001, p. 56) Este capítulo apresenta a análise e a interpretação dos dados obtidos nas entrevistas realizadas junto às oito empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de profissionais escolhidas cuja caracterização foi feita no tópico anterior. Para efeito de organização do material coletado, as falas dos entrevistados foram categorizadas, conforme explicitado no QUADRO 3. No período de realização das entrevistas, esta pesquisadora teve a oportunidade de participar de um processo seletivo em desenvolvimento. Essa contribuição possibilitou-lhe compreender, na prática, detalhes de uma moderna empresa de recrutamento e seleção de trabalhadores. 4.1 Evolução do perfil profissional buscado no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores 1980 – 2007 4.1.1 Relevância dos saberes escolarizados e das experiências Nas entrevistas com os R&S, inicialmente abordou-se o processo de recrutamento e seleção praticado entre os anos 1980 - 2007. Nesse período, o princípio da qualificação, ou seja, a valorização dos saberes relativos à profissão foi questionado teórica e empiricamente, cedendo lugar ao conceito de competência, que engloba os saberes preconizados pela qualificação, além das atitudes do trabalhador, o saber-ser. R&S3, psicóloga, cuja fala é assentada na prática e no estudo sobre o processo de recrutamento e seleção, o que lhe proporciona amplo domínio do assunto, além da vasta experiência como gerente da prestadora de serviços, observa: [...] o que era valor naquela época (1980) era a pessoa ter muito tempo de experiência com poucas mudanças na vida. Estável era uma pessoa que tinha 20 anos de experiência e, no máximo, dois ou três empregos. (R&S3) 88 Esse entendimento é corroborado por R&S6, socióloga, sócia-proprietária da prestadora de serviços, cuja fala enfatiza a importância atribuída no passado à qualificação e à experiência do trabalhador: [...] nos anos 1990, o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores investigava o que o candidato havia feito e se assentava na qualificação( ganhando visibilidade a melhor escola), na quantificação de um saber técnico, na experiência[...]contava o tempo de trabalho naquilo que fazia. Quanto mais tempo você ficava fazendo alguma coisa, mais valor você tinha, porque era mais experiente. (R&S6) Porém, tais valores passaram por uma reavaliação, em função do desenvolvimento da tecnologia, e novos saberes passaram a ser exigidos dos trabalhadores, como aponta R&S2, psicóloga e sócia-proprietária da prestadora de serviços desde 1990: [...] se, em 1990, o conhecimento em informática era considerado relevante, em 2006 já nem vem mais no perfil. Quem não domina os aplicativos básicos de informática [...] não cabe em lugar nenhum. Tal exigência é feita desde os cargos mais simples, como o de recepcionista, telemarketing, que não exigem tanta competência técnica, mas habilidades pessoais, até os de gerentes de primeira linha, os diretores, que, no passado, tinham suas secretárias nas máquinas de datilografia para redigir uma carta que ele só assinava. Isso deixou de existir. Hoje, esses profissionais sentam à frente de seus micros, recebem e passam e-mails, muitas vezes em outro idioma. (R&S2) 4.1.2 Mudança no perfil profissional demandado A avaliação de R&S7, psicóloga, demonstra visão ampla sobre o contexto de mudanças mundiais, com reflexos sobre o mundo do trabalho, na última década, alterando substancialmente o perfil do trabalhador desejado: [...] O mundo se transformou rapidamente nos últimos dez anos. O que recebemos no Brasil de injeção de tecnologia ... e quem estava atrasado teve de se ajustar. Todos estes processos de globalização vão impactar fortemente no perfil das pessoas que vão trabalhar neste contexto. (R&S&) 89 A complexidade do trabalho determinou a exigência de novos saberes, aspecto ressaltado por Zarifian (2001). Contudo, os saberes tornados relevantes num determinado período passam a ser complementares e, como uma ferramenta, são associados ao trabalho e ao exercício de determinado cargo. A detenção do saber não distingue um trabalhador dos outros, mas a falta do saber o ameaça, fazendo-o correr o risco de “não caber em lugar nenhum”. Esses saberes parecem se equiparar aos demandados pelo nível ocupado pelo profissional, sendo exigidos pelo exercício da profissão e incorporados ao perfil do trabalhador. Esse entendimento remete à relação dos saberes com o tipo de intervenção exigida pelo posto. Essa visão parece se confirmar na fala da representante da R&S2: “Quanto maior a tecnologia, maior é a exigência com relação ao perfil profissional”. Esse ponto de vista alinha-se ao pensamento de Friedmann (1946), para quem o avanço científico e tecnológico desqualificaria o trabalhador, enquanto a qualificação, ou seja, os saberes, confeririam substância, peso ao trabalhador. Por outro lado, observa-se que, na fala da representante da R&S3, a qualificação, com o saber sistematizado, e a valorização do trabalhador pela quantificação e repetição de saberes impactam com a exigência da aplicação e mobilização de saberes no trabalho atual, no qual o trabalhador é concitado a pensar: [...] o jovem chega com muito conhecimento, mas não consegue transformar esse conhecimento numa prática, num registro...ele tem dificuldade de registrar no papel... ele não consegue sintetizar. Há dificuldades em sintetizar, em estabelecer relações que sintetizem um objetivo. Existe quantidade, excesso de informação, porém, sem aplicabilidade. (R&S3) Assim, [...] profissionais que estejam em contínuo aprendizado, não importa se ele está fazendo um curso de línguas, de tênis, mas ele está em movimento... Se ele está fazendo um MBA, ou pós ... ou se ele está fazendo gastronomia por lazer, não importa, alguém que está focado em aprender algo , isso é o perfil básico, a disponibilidade para aprender. (R&S3) Portanto, a representante da Empresa R&S3 ressalta que o que é valorizado, o que distingue um trabalhador do outro é a disponibilidade em aprender; é a capacidade individual de atualização de saberes, do aprendizado contínuo, cuja finalidade é evitar que o trabalhador se torne um ser enrijecido em seus 90 conhecimentos. A representante da R&S6, por sua vez, evidencia que a experiência profissional centrada na antigüidade no posto de trabalho é questionada: [...] hoje, se eu pego um currículo, e a pessoa tem mais de cinco anos em uma mesma profissão, eu quero saber o porquê. [...] as profissões abrem um leque de possibilidades [...] cada profissão hoje tem um nicho de mercado. Por exemplo, um engenheiro civil construía prédios; hoje ele tem que fazer pesquisa de material de construção de baixo custo, uma casa ecologicamente correta, que é feita de garrafa pet, de papel reciclado. Então, hoje, precisamos de pesquisadores. Então, eu tenho um perfil pesquisador pra ser engenheiro? O que é uma casa, uma cidade ecologicamente correta? Daí o surgimento de novas profissões. Vem daí a modificação que este profissional precisa ter. (R&S6) Portanto, na visão da representante da Empresa R&S6, a experiência profissional como resultado da repetição de atividades torna o trabalhador obsoleto. Esse ponto de vista encontra respaldo em Touraine (1994, p. IX), para quem o trabalho, hoje, vai além do exercício de uma profissão, a qual se esperava executar até a aposentadoria: “a situação de trabalho não é um status ou um conjunto de papéis profissionais, porém, o encontro de um sujeito, individual ou coletivo, de um poder e de uma situação de trabalho que é, às vezes, instrumental, política e cultural” por isso, o trabalho produz sociedade. Tomasi (2004), por sua vez, ressalta o entendimento de que o mundo do trabalho é mais complexo do que se pensava. Assim, na sociedade atual, que é científica, tecnológica, informacional e do conhecimento, há exigências de novos saberes, o que acarreta mudanças no perfil profissional demandado, à medida que o mundo do trabalho se transforma, o que leva a representante da R&S2 a indagar: “Quem é esse profissional hoje? E esse de hoje, quanto tempo dura?” As mudanças, a complexidade do mundo do trabalho parecem surpreender R&S2, que salienta: “Hoje, [...] a operadora de telemarketing, além de segundo grau, deve possuir boa apresentação e fluência verbal e uma voz agradável ao telefone”. Então, sobressai na fala de R&S2 o fato de que há algo no trabalhador que o distingue dos demais. “A voz agradável” é uma característica individual, é um predicado, que sempre esteve naquela trabalhadora, constituindo um diferencial. A presença de um diferencial, conforme observa Tomasi (2004), é relevante no mundo do trabalho. A representante da R&S3, por sua vez, destaca: 91 [...] hoje, apesar de o mercado dizer que é importante ter experiências variadas, isso não significa instabilidade. Hoje, pessoas com dois ou três empregos assumem cargo de liderança e são consideradas pessoas muito estáveis. Então, nos anos 80, avaliavase o currículo e boas referências anteriores e nem se utilizava o perfil psicológico. O que mudou hoje é que isso (estabilidade, referências anteriores, currículo) tem o seu valor, mas não é o que decide o processo (seletivo). Quanto maior é o nível hierárquico, mais avaliamos a capacidade de gestão, de inteligência emocional, de equilíbrio, de manipulação do ambiente, o saber trabalhar em equipe, sem uma gestão centralizada. (R&S3) Todos esses aspectos fornecem indícios de que o modelo de avaliação dos trabalhadores, centrado na qualificação, dá mostras de esgotamento. As referências massificadoras não falam mais por si mesmas; as capacidades individuais e as experiências variadas são agora requeridas, como esclarece a psicóloga e sóciaproprietária da R&S4, cuja fala suscita reflexão. Após mostrar na tela do computador a maneira como são analisados os candidatos na prática, externou seu entendimento de que [...] o contexto organizacional de ontem não é o mesmo de hoje. A instabilidade no interior das organizações é grande. O que ontem era tido como bom perfil profissional, hoje pode ser diferente. Então, o que mudou é a capacidade de adaptação à mudança (R&S4). Pode-se então concluir que a rigidez cede espaço ao flexível. Porém, esse contexto apresenta outra faceta, indicada pela representante de R&S6: “[…] há, por parte dos trabalhadores, reclamações de falta de oportunidade de trabalho; e dos empregadores, dificuldades em encontrar pessoas, porque as mudanças no mundo são rápidas, mas as pessoas têm dificuldade de segui-las, de percebê-las. [...] A flexibilidade ou a versatilidade para se adaptar às mudanças é fundamental (R&S6). R&S2 corrobora essa percepção, ao ressaltar: [...] outra característica é a flexibilidade, porque as mudanças são tão contínuas e cotidianas [...] O melhor líder é aquele que está atento às mudanças. Elas podem ser cotidianas, sim, e estão relacionadas à globalização da economia, por exemplo. Logo, o trabalhador precisa ter flexibilidade, adaptabilidade a novos momentos, pois as empresas estão ligadas internacionalmente, e as mudanças nos mercados são contínuas, inesperadas. A mobilidade é outra característica. Conversei com vários executivos que saíram de casa para trabalhar e no dia seguinte, estavam no Japão, sem passarem em casa (R&S2). 92 O discurso consensual das várias empresas de R&S foi compondo o quadro de características desejáveis, tais como flexibilidade e adaptabilidade, sustentadas na capacidade de desenvolver aprendizado contínuo. A representante da R&S5, psicóloga, cuja fala se assenta na prática de gerente da unidade de Belo Horizonte há 6 anos, observa: “Hoje, valorizam muito esta parte interpessoal [...] antes se falava em experiência.” A atribuição de valor às qualidades individuais do trabalhador no contexto profissional foi o aspecto abordado pela representante R&S6, para ela, “nos anos 2000, o que importa é a experimentação, o resultado do que você faz”. Para verificar o que o trabalhador experimentou e o resultado de suas ações, é preciso ajustar o foco sobre o indivíduo, que, embora inserido em um contexto coletivo, preserva suas diferenças individuais, conforme observa Tomasi (2004). O representante da R&S1, por sua vez, psicólogo e gerente da empresa, especialmente empenhado em atender às necessidades da organização contratante, enfoca um aspecto crucial: [...] A mudança é que hoje o trabalhador tem que mexer com o negócio da empresa. A mudança básica é a seguinte: o negócio dele (o trabalho desenvolvido pelo trabalhador) deixou de ser o que ele faz. O negócio dele é o negócio da empresa. (R&S1) Esse entendimento remete ao pensamento de Zarifian (2001) “[...] o trabalho volta ao trabalhador”. À medida que o profissional deixa de ser uma ferramenta, uma mão que faz, e passa a compreender o que faz e por que faz, seu trabalho ganha significado e valor. O moderno conceito de trabalhador é desvelado e emerge também da fala da representante da Empresa R&S2: [...] a empresa quer empreendedores [....] pessoas alinhadas com o espírito da empresa, do negócio; pessoas que empreendem idéias o tempo todo [...] estes são os líderes, as pessoas que se destacam. (R&S2) Percebe-se, portanto, que não há mais espaço para o trabalhador autômato. Agora é preciso pensar e ser autônomo, demonstrando responsabilização, como ressalta Zarifian (2001, 2003). Em consonância com esse entendimento, o 93 representante da R&S8, psicólogo e gerente da prestadora de serviços, externa sua visão, fundada em amplo conhecimento e prática sobre recrutamento e seleção: [...] o que as empresas buscam é o comprometimento do funcionário, que envolve responsabilidade, assiduidade, compromisso mesmo com o trabalho. Porque hoje as pessoas perderam um pouco desse valor. Vão trabalhar, mas não se empenham [...] porque muitos trabalhos são rotineiros, e a pessoa tem que se adaptar a isso. No nível operacional, conta mais a postura e o comportamento do que o conhecimento. No nível médio [...] conta mais a experiência e o conhecimento, aliado ao comportamento, porque hoje todo mundo se preocupa com essa parte comportamental. No nível gerencial, a pessoa precisa [...] do que a gente chama de competência. Hoje é o que se fala no mercado. [...] A pessoa precisa se comportar de forma adequada àquela função, conhecer, saber, ter o conhecimento e, efetivamente, ter uma ação frente àquilo e, muitas vezes, na maioria das vezes, estratégica e alinhada ao negócio da empresa. (R&S8) Em síntese, pôde-se concluir, a partir do discurso dos entrevistados, que a demanda por elementos individuais do trabalhador no processo de recrutamento e seleção, na atual tornou-se o aspecto pontual de mudança em relação ao passado, indicando o enfraquecimento da qualificação frente à uma realidade, qie preza os aspectos atitudinais do trabalhador, mesmo porque o próprio trabalhador não dá mais conta de um trabalho que não valorize suas qualidades, suas capacidades. 4.2 Práticas das empresas de recrutamento e seleção para atender à demanda das contratantes Analisar as práticas a que os representantes das empresas de R&S recorrem para satisfazer as necessidades da empresa contratante permitirá definir os princípios que, na atualidade, norteiam as ações dos serviços de recrutamento e seleção na busca por trabalhadores, o que possibilitará verificar se contemplam ou não os princípios relacionados ao cargo e à pessoa certa para o cargo certo. 4.2.1 Captação da demanda das empresas contratantes Os serviços de recrutamento e seleção, ao serem contratados, analisam as necessidades de pessoal da empresa contratante. Para Almeida (2004), cada processo seletivo possui características próprias, visando a satisfazer as 94 necessidades específicas, momentâneas da empresa contratante. Essa particularidade pode ser confirmada na fala da representante da Empresa R&S3, que afirma “ser levado em consideração o que a empresa precisa e o que ela tem a oferecer.” Na mesma linha de entendimento, R&S8 observa que, no passado, o entrevistador avaliava características individuais do candidato, porém, de forma subjetiva; atualmente, é preciso estabelecer um método para captar esses elementos: [...] seis anos atrás, sete, o que importava era a experiência. Se a pessoa tinha aquela experiência, o comportamental se avaliava apenas por feeling, por empatia. Hoje não! Hoje, as empresas querem receber as pessoas já melhor avaliadas e aí, muitas vezes, antes de apresentar o profissional para a empresa, a gente monta algumas etapas do processo seletivo para ir captando essas informações. (R&S8) O representante de R&S1, em consonância com os princípios enfocados por Dutra (2004) quanto à consciência da organização em relação às suas necessidades na captação de pessoas, observa: [...] um dos aspectos para contratar é entender como é que é o contratante, a pessoa com quem ele (o trabalhador) vai trabalhar, o chefe imediato do sujeito. É preciso compreender quem é essa pessoa. Ele (o chefe) fala, mas é a nossa percepção que vai dizer. Ninguém fala como é, a gente tem que ter essa percepção. Não dá para ser muito diferente, não. (R&S1) [...] a gente vai pessoalmente e faz um levantamento do perfil e, em alguns casos, a gente faz uma visita à fábrica. A empresa me dá capacete e protetores. Vou para o meio da fábrica para conversar com um, com outro, para entender como a fábrica funciona. Os recursos humanos passam as informações e aí você começa a entender como é que as coisas funcionam. Mas tem que ser in loco, [...] por telefone não dá. (R&S1) Ao conhecer a empresa, são estabelecidos os critérios de admissão de pessoas, além de serem sanados possíveis equívocos quanto ao perfil profissional demandado, como salienta R&S5: [...] em uma empresa de transporte, eles queriam uma pessoa para a área de manutenção, com iniciativa, que questionasse [...] Fizemos a seleção e todos os que contratávamos não ficavam. Quando entramos na área de manutenção, verificamos que o encarregado tinha um perfil autocrático, mandão... (R&S5) 95 Nesse caso, o perfil solicitado não estava adequado às características da empresa contratante; somente o olhar do profissional de R&S pôde captar as reais necessidades da organização, indicando que os serviços de recrutamento e seleção alinham suas práticas às estratégias da empresa contratante. O conhecimento do chefe com quem o candidato trabalhará possibilita captar a cultura organizacional. Cada empresa tem a sua cultura específica, entendida por Fleury & Sampaio (2002) como o conjunto de valores, crenças, atitudes, premissas, interpretações, hábitos, costumes, práticas, conhecimentos e comportamentos partilhados no interior da organização. Então, a cultura presente no ambiente organizacional indica as bases do processo seletivo, como indicam R&S7 e R&S1: [...] dentro da nossa metodologia de trabalho, a primeira coisa que fazemos é a compreensão da empresa, tentando entender a cultura da empresa, quais são os valores da empresa, falados por ela e pelo que ouvimos por aí. Procuramos entender a realidade da empresa, dos clientes, dos concorrentes, tudo isso. (R&S7) [...] se é uma empresa familiar, tem uma cultura diferenciada; então, vai valorizar se o sujeito tem família, como é a família dele, se é casado, se tem filhos, se ele se separou, como ele é como pai, como lida com a mãe, são detalhes importantes. Esses são valores para uma empresa familiar. Se você vai a outra empresa que não é familiar, são outros os valores inerentes àquela empresa. Numa empresa onde os relacionamentos são importantes em todos os níveis, esse é um valor considerado importante. (R&S1) Essa tendência é corroborada por Almeida (2004, p. 23): “Hoje, a adaptação do candidato à cultura da organização deve ser considerada fator essencial”. Recomenda a autora que “o levantamento do perfil ideal do candidato deve focalizar aspectos da cultura organizacional e do cargo” a ser preenchido. Dutra ( 2004 p. 17) igualmente enfoca essa questão, observando que a “mudança no padrão da exigência do perfil das pessoas pelas empresas gerou a necessidade de que a cultura organizacional estimulasse e apoiasse a iniciativa das pessoas, a criatividade e a busca autônoma de resultados para a empresa”. 4.2.2 Busca de referência na concepção de competência da empresa contratante Como observam Zarifian (2001, 2003), Dutra (2004) e Fleury & Fleury (2004), o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores na atualidade tende a avaliar o candidato sob o enfoque da competência. 96 Para preencher a vaga em aberto, Dutra (2004) e Almeida (2004) indicam a necessidade de constituição do perfil profissional e do perfil comportamental do candidato, demandado pela empresa. Manifestando o mesmo entendimento, R&S3 após indagar: “Que elementos um trabalhador, por exemplo uma faxineira, precisa ter para desenvolver suas atividades?” observa: Eu tenho que desenhar, junto com a empresa, esse perfil profissional. Qual é o perfil de competências que ele tem que ter? Como é que vai ser a inteligência e o equilíbrio emocional? Em que contextos? [...] Eu defino o perfil e ele tem uma métrica, ou seja, por exemplo, mínimo de 5 anos de experiência, formação acadêmica completa, o que é desejável, o que é muito desejável. (R&S3) [...] o processo seletivo e os testes são montados a partir da demanda da empresa contratante. Cada etapa do processo seletivo pode ser cumulativa ou eliminatória. Para algumas empresas e posições / cargos são levadas em consideração as competências; por exemplo para trainées; procuramos competências, porém, não existe regra geral. São utilizados testes para avaliar conhecimentos técnicos, psicológicos, de competências, que são os inventários, tem os testes de inteligência emocional, que são também inventários. Tem entrevistas, dinâmicas de grupo, o processo é montado de acordo com a linha a ser avaliada. (R&S3) Ressaltando haver outro elemento a ser considerado - as exigências relativas ao cargo - R&S3 acrescenta: Para cargos menores, conta menos o tempo de experiência, formação, conhecimento; porém, quanto maior o cargo, o mercado vai valorizar as competências e a inteligência emocional. O que tem menos valor num presidente é a inteligência geral. (R&S3) A representante da Empresa R&S4, compartilhando o mesmo ponto de vista, observa: O importante é verificar os principais desafios que esse profissional vai encontrar, bem como o grau de responsabilidade, o lugar na hierarquia. Isso define o perfil profissional naquela empresa; em outra, pode ser diferente. (R&S4) 4.2.3 Construção do perfil profissional demandado Reunidos os critérios definidos pela empresa contratante, em conjunto com os R&S, há o estabelecimento de parâmetros referentes ao perfil ideal demandando especificamente para aquela organização, em função de sua cultura e de suas metas. 97 A representante da R&S3 assim sintetiza, de modo geral, o perfil ideal do trabalhador buscado: [...] é preciso garantir capacidade de aprendizagem, bom raciocínio verbal e matemático, capacidade de pensar de maneira lógica, ou seja, uma pessoa tem que ser inteligente. Se ele for inteligente e tiver uma boa formação, eu vou avaliar como ela está emocionalmente. Se for muito jovem, está num processo de construção de sua história, e aí eu tenho a probabilidade de que essa pessoa pode ter um desenvolvimento em que eu vou investir, porque ela vai ser inteligente o suficiente para aprender, elaborar, interpretar, filtrar e estabelecer analogias. (R&S3) Portanto, por meio do olhar investigativo dos prestadores de serviços de R&S, são estabelecidos os elementos de análise dos candidatos que precisam ser garantidos na seleção. Logo, o passo seguinte após captar, é avaliar os candidatos. A captação de candidatos pode ser feita via internet, mediante anúncios em sites corporativos e de serviços de recrutamento e seleção. Segundo Almeida (2004, p.30), esses sites estão “repletos de candidatos que não apresentam as qualificações necessárias para os cargos que pleiteiam”. Essa realidade pôde ser constatada na entrevista com a representante da R&S3: [...] não adianta filtrar candidatos com anúncios ditando um perfil, porque os leitores afirmarão que têm as características citadas no anúncio. (R&S3) Na verdade, o olhar do R&S é o balizador do processo seletivo, pois tanto analisa a empresa, o perfil estipulado para a vaga, quanto criteriosamente faz uma avaliação dos candidatos, o que é evidenciado na fala de R&S2 : “o importante é buscar quem sou eu” ou seja, o eu dos candidatos. 4.2.4 O candidato: perfil profissional ofertado No processo de recrutamento e seleção, tanto há um perfil ideal de trabalhador, um conceito de trabalhador demandado pelas empresas, construído em parceria com os R&S, quanto há o perfil real do trabalhador, construído pelo indivíduo. O perfil do trabalhador é constituído, na visão da representante de R&S4, por “[...] valores. São os meus predicados primordiais, que acabam por incorporar meu perfil”. Esses predicados devem ser conhecidos, descobertos, reconhecidos pelos R&S. Acrescenta R&S4: 98 O perfil profissional que o trabalhador apresenta contempla sua formação, suas aspirações, sua carreira, sua forma de ser, as características próprias de um trabalhador, a maneira como o profissional, o indivíduo se coloca, se posiciona. É isso que estabelece as relações com as especificidades dos cargos. A pessoa tem características de diretor gestor ou de diretor especialista? (R&S4) Os elementos individuais requisitados do trabalhador em contexto de trablaho estão atrelados à especificidade de um cargo a exercer, assemelhando-se a uma roupa que veste o trabalhador, veste um manequim. Contudo, alguns requisitos são indispensáveis para ocupar determinado cargo. Salienta R&S4 que “a capacidade de lidar com a própria mudança, a capacidade de lidar com a instabilidade, com a incerteza que o mundo do trabalho oferece”, tal capacidade é uma competência do trabalhador. Além disso, há que se considerar que a fala de R&S 4 remete à idéia de evento, de acontecimento, defendida por Zarifian (2001, p 41) em sua análise sobre as mutações no mundo do trabalho e a emergência da gestão por competências: “o indivíduo deve confrontar o evento, deve resolver os problemas que revela ou gera.” Para o autor, “um evento é alguma coisa que sobrevém de maneira parcialmente imprevista, não programada, mas de importância para o sucesso da atividade produtiva. É em torno desses eventos que se recolocam as intervenções humanas mais complexas e mais importantes.” A representante da R&S3 ressalta que “há diferenças importantes entre os candidatos”: A história de vida você conhece através da entrevista, explorando inclusive a experiência dele, onde estudou, a cidade de origem, por que veio, quando veio... aí você vai construindo a história. O que diferencia um profissional do outro é a história de vida. (R&S3) Acrescenta R&S3 que a avaliação e a valorização do candidato recaem na [...] experiência, inteligência emocional e geral, e no perfil de competências, que seriam as atitudes. Na experiência, eu coloco a experiência profissional, a história pessoal, o conhecimento acadêmico. Isso é algo que você avalia no currículo. Portanto, os elementos objetivos do trabalhador, como o conhecimento acadêmico e a experiência profissional (o saber e o saber-fazer), a qualificação, constam no curriculum vitae, o qual, na visão de R&S1, é tão somente “um cartão de 99 visitas que pode ou não, dar início ao processo seletivo.” Por outro lado, a carreira, como explica R&S6, é construída de outra forma: No passado, a empresa definia a carreira dos profissionais hierarquicamente. Hoje, os profissionais precisam fazer suas escolhas, construir a sua história, ter foco, conhecendo a empresa onde estão ou pretendem estar. (R&S6) Esse entendimento alinha-se ao conceito de trajetória defendido por Dutra (2004), segundo o qual a carreira está ligada ao desenvolvimento profissional das pessoas, atrelada à capacidade, à competência da pessoa para assumir atribuições e responsabilidades, em níveis crescentes de complexidade, compondo trajetórias profissionais, a trajetória de carreira. Paralelamente aos aspectos objetivos, facilmente mensuráveis, há, na bagagem de cada candidato, qualidades esperadas em situação de trabalho, que na fala de R&S3 “fazem parte do perfil de competências”. Na entrevista, é possível identificá-los. No transcorrer da entrevista, o candidato relata sua história de vida, por meio da qual os valores, os princípios, a cultura do trabalhador são captados pelo entrevistador. O representante da R&S7 declara ser possível, nesse momento, responder às indagações: Qual é a contribuição efetiva que este profissional vai dar para a empresa? Que clima a empresa está vivendo? aí é que vou entender qual é o perfil. Dentro deste contexto vai caber uma pessoa. (R&S7) Para admitir o candidato, é preciso conhecê-lo. Foi possível constatar que os entrevistados consideram importante conhecer, analisar detidamente o trabalhador na sua individualidade. Essa importância é ressaltada por todos os pesquisados: “é preciso conhecer o profissional, como é que ele trabalha, como é que ele é.” (R&S1). A busca desses elementos configura “as várias maneiras singulares de agir com pertinência e competência em um contexto particular” como afirma Le Boterf, (2003, p. 125). Daí a preocupação externada por R&S4: Como buscar esses predicados primordiais? Para buscar a pessoa, os predicados primordiais, o indivíduo por trás dos requisitos, é preciso buscar a maneira como este indivíduo age, independentemente de dizer que ele, o trabalhador, o indivíduo, tem que ser um líder, um gerente, ou seja, atribuir-lhe predicados, porque essas características podem fazer parte ou não dos predicados do indivíduo analisado. (R&S4) 100 Portanto, foi possível evidenciar que os serviços de R&S tendem a buscar no candidato não um papel profissional, um requisito, mas a maneira como ele age. É preciso reconhecer no indivíduo aquilo que o distingue dos demais, sua competência. Por outro lado, é preciso que o indivíduo conheça a si mesmo, conforme salienta R&S2: Fazemos um mapeamento de perfil potencial. Acreditamos que o mapeamento promove o auto-conhecimento. Se me conheço melhor minhas habilidades, minhas competências e minhas limitações, então eu posso me aprimorar, crescer, e acredito que isso aumenta a empregabilidade. Um profissional que vai a uma entrevista e se conhece melhor, e sabe falar de si, não só do conhecimento técnico, porque isso é fácil... Numa entrevista todos falam rapidamente sobre o que dominam tecnicamente. Quando entra no pessoal, a trava está estabelecida. Ninguém sabe falar do que tem de qualidades, que pontos a desenvolver. A entrevista dá um corte neste momento. Se você pergunta sobre outros aspectos, tipo: Como é a composição familiar, isso vem fácil: sou casado, tenho três filhos... mas e você? Me fale um pouco de você. Parece que o sujeito dessa história inexiste, porque ele se engasga. É claro que ele sabe, mas ele não tem essa habilidade desenvolvida e, nesse mapeamento, nós trabalhamos isso com ele. (R&S2) O representante da R&S1 ressalta igualmente ser essencial que o profissional se mostre para o entrevistador. É preciso que o candidato se conheça para melhor falar de si; é preciso saber como se mostrar você tem os mecanismos de entrevista para identificar e “para isso, essas coisas.” Essa possibilidade é enfocada por vários autores, entre os quais Almeida (2004) e Zarifian (2003, 2005), segundo os quais a entrevista continua sendo atualmente uma das práticas a que os serviços de R&S mais recorrem para identificar e captar o perfil profissional dos trabalhadores. Contudo, na visão da representante da Empresa R&S2, essa tarefa é complexa, já que parece que o indivíduo tem-se esquecido de si mesmo, ou se perdido. Massificado, adormecido pela qualificação, responde a perguntas sobre saberes técnicos: “em uma entrevista, o candidato tem suas reservas, suas desconfianças do que deve ou não falar [...] existe certa desconfiança, porém, a dificuldade de falar sobre si é efetivamente maior que o receio de mostrar-se”. Reportando-se aos mecanismos atualmente mais utilizados pelas empresas de R&S, a representante da R&S3 observa: 101 [...] são utilizados testes para avaliar conhecimentos técnicos, psicológicos, de competências, que são os inventários; tem os testes de inteligência emocional, que são também inventários; tem entrevistas, dinâmicas de grupo. O processo é montado de acordo com a linha a ser avaliada, o cargo a ser preenchido. (R&S3) Portanto, para mensurar a qualificação, há a aplicação de testes; por outro lado, são inventariadas as competências relacionadas às atitudes e à inteligência. Esses elementos de análise do candidato são vinculados ao cargo. A representante da R&S3 assim descreve a metodologia que usa para conhecer o candidato: Se é um jovem inexperiente, é preciso saber se fez uma boa faculdade, se foi bom aluno. Se é um gerente, busca-se o tempo de experiência; porém, experiência, formação e conhecimento têm pesos diferentes, pois dependem dos diferentes níveis da carreira [...] Esses itens são importantes para o iniciante. Para cargos de níveis mais elevados, esses valores são intrínsecos à história profissional, pois o candidato já chegou a diretor /presidente; então, para esses cargos, o que conta pontos é o perfil de competências, a liderança, capacidade de negociação, organização, disciplina, enfim, aquelas competências que legitimam um líder. R&S3 Pôde-se, portanto, perceber que não há uniformidade nos procedimentos, que variam em função da história de vida do candidato. No caso de um presidente, por já haver demonstrado conhecimento geral e inteligência, na ocupação de um cargo relevante, a experiência profissional e a formação escolar cedem espaço às características pessoais. Esse entendimento remete a Stroobants (2002), segundo a qual as qualidades dos trabalhadores representam uma riqueza sem precedentes. Stroobants (2002) observa ainda que as competências podem ou não parecer importantes segundo o padrão de análise utilizado, ou seja, depende da maneira de vê-las. Essa relatividade de percepção das competências é observada pela representante da R&S7: [...] exemplo: a competência de liderança você tem de ter se for ocupar um cargo de gestão. A empresa precisa definir para mim o que ela chama de liderança. No plano de gestão por competência, ela define o que é liderança. A partir do momento em que ela definir, eu vou, através da trajetória profissional, buscando as situações que o candidato teve de liderar e como fez isto. A partir daí, ele vai me dando evidências de que ele consegue [...] você vai vendo se é ele quem domina, se ele é capaz de ouvir [...] As características demandadas são captadas por meio de técnicas que evidenciam se ele é capaz de exercer uma liderança. Você vai buscando situações da própria vida em que ele exerceu a liderança. O entrevistador vai vendo onde existe consistência. (R&S7) 102 [...] no teste de personalidade, você não vê liderança, mas você vê características. [...] se a pessoa tem dificuldade com a figura humana, provavelmente não será um bom líder. Tem índices que falam de uma habilidade com o relacionamento. Alguns testes, da trajetória de vida do profissional, tudo isto nos faz ter percepções sobre se ele é ou não adequado para o perfil. A análise é feita a partir do perfil que a empresa coloca. (R&S7) Portanto, os serviços de R&S investigam e atestam aquilo que a empresa contratante indica como competência desejável, procurando identificar as características que os candidatos devem apresentar, tomando por referência características demandadas, construídas com base na cultura organizacional. Essa tendência remete a Le Boterf (2006), para quem a percepção das competências de um profissional dependem da metodologia utilizada, dos atores implicados e dos pontos de vista que adotam. Nesse entendimento, é analisada, na prática, a maneira específica pela qual um sujeito realiza determinada atividade prescrita, resolve uma situação, um problema ou enfrenta determinado acontecimento. A representante da Empresa R&S2 relata que, durante o processo de seleção, o candidato é submetido à ferramenta Método Q, um programa informatizado, que dá suporte às decisões na gestão de pessoas, em oito módulos. Os módulos visam a analisar desde as emoções primárias, entendidas como determinantes do comportamento. Trabalha-se com três tipos de mapas: o primeiro busca identificar no candidato a percepção que ele tem de si mesmo, ou seja, como a pessoa é em suas atitudes freqüentes e naturais e como ela se reconhece; o segundo analisa o contexto profissional, seu desempenho na atual função, em comparação com o mapa anterior; o terceiro busca conhecer de que forma a pessoa integra seu “self’’, (seu eu) e seu contexto profissional, retratando sua postura atual no trabalho. O mapeamento é online e se propõe avaliar os candidatos sob oito elementos (ou conceitos) do método: a intensidade de personalidade (impacto do indivíduo no meio); combinação de fatores (informações sobre orientação para resultados ou relacionamentos, pro-atividade, perfil de risco, estilo de ‘follow up’, visão generalista ou especialista); índice de flexibilidade (entendido como o diferencial do método, avalia a capacidade de adaptação do indivíduo); aproveitamento de potencial (refere-se à atual carga de trabalho do profissional); energia (grau de interatividade com o meio); moral da equipe, clima organizacional ( análise da motivação do sujeito de pesquisa); estilo de decisão; indicativo de um conjunto de características de 103 comportamento. Trata-se, portanto, de um levantamento de características técnicas e comportamentais, definidoras de mapas que servirão de referência para a função analisada. Com esse método, a competência do candidato é entendida sob o enfoque comportamental, tornada visível, palpável, no “mapeamento”. “Não é um teste de personalidade, e, sim, um teste de tendência comportamental”, afirma R&S2. Pôde-se constatar que essa ferramenta também é utilizada por R&S4 e R&S5. Já na empresa R&S3, a competência do candidato é validada por meio de entrevista: [...] baseada em competências e assentada nos aspectos concretos e observáveis do comportamento do candidato, o que oferecerá melhor predição no presente e no futuro. A melhor forma de predizer um desempenho futuro é verificar os desempenhos passados [...] Não recruto o cargo, a nomenclatura, eu vou buscar a solução para a empresa. Recrutar o pasteleiro é fácil. Agora, o pasteleiro que viveu 30 anos na pastelaria, morreu e não passou a receita para ninguém é outra coisa! A gente não recruta o cargo. Qual a necessidade da empresa? Quais as condições da função em que aquele profissional vai estar inserido? (R&S3) Esse posicionamento encontra ressonância nas pesquisas empíricas de Zarifian (2001) e Fleury & Fleury (2004), segundo os quais os profissionais da área de recursos humanos associam o conceito de competência ao desempenho a ser analisado na entrevista individual, como resultados esperados em relação a objetivos fixados. R&S3 apresenta em dez itens sua prática de seleção: 1. Formula perguntas abertas e específicas, com verbos de ação no passado e com foco em competências. 2. Dá ênfase às experiências relevantes para o comportamento que está sendo investigado e o perfil de competências que está sendo selecionado. 3. Dá ênfase às experiências recentes, não perdendo tempo com experiências antigas, já ultrapassadas. 4. Se preciso, recorre a reforços do tipo “eu preciso que você me conte o que você realmente fez”. 5. Analisa todos os comportamentos, sejam positivos ou negativos, sem aplicar julgamento de valor. 6. Observa o comportamento não-verbal, pois, da mesma forma que o entrevistador percebe o comportamento não-verbal do candidato, este também o percebe no entrevistador e pode ser influenciado. 7. Age como verdadeiro detetive, para conseguir atentar para todos os aspectos do comportamento que está sendo narrado pelo candidato. 8. Anota imediatamente quando ouve uma evidência de competência. 9. No mesmo comportamento, poderão aparecer duas ou mais competências, e só com a 104 experiência aspecto no que o entrevistador ganhará mais clareza no levantamento desse candidato. 10. Quanto maior a freqüência de um mesmo atributo/característica/competência, maior segurança se tem na definição do perfil do candidato. Acrescenta R&S3 que o comportamento do candidato é analisado especificamente em relação ao contexto em que ocorreu a ação, buscando detalhes da ação e o resultado alcançado por essa ação pelo candidato. Tal prática se assemelha à adotada por R&S1: [...] não aplicamos testes; aplicamos cases.Toda empresa hoje faz entrevista por competência, que é uma entrevista com cases (com casos). Então, não adianta perguntar pro sujeito quais são seus pontos fortes e seus pontos fracos, são cases. Então, um comprador que eu estava selecionando [...] tinha que comprar um milhão por mês. O cara dizia que comprava [...] Quem autorizava suas compras? Ele só fazia cotação no mercado. Então eu pedi a ele para me contar um case [...] “então comprei x, fui lá e autorizaram [...]” Então você não comprou nada. Quando ele conta isso, você vai se posicionando dentro daquilo que você precisa. [...] Com o tempo, você vai desenvolvendo uma técnica pessoal, você vai identificando a sinceridade ou não das pessoas (R&S1) A pesquisa evidenciou também que os serviços de R&S procuram identificar nos candidatos o seu nível de autonomia, a função exercida, a maneira como fazem o trabalho. Constatou-se nas entrevistas que, tanto R&S1 quanto R&S3 buscam o contexto da ação e seus resultados. O candidato é estimulado a relatar suas práticas profissionais, e o entrevistador analisa tais práticas, cruzando-as com o perfil demandado, o qual atrela-se a um cargo, que, por sua vez, pressupõe regras a cumprir dentro de uma estreita relação de atividades pré-estabelecidas pela gerência. Foi possível também constatar que as atividades que integram os cargos nas organizações parecem estar passando por uma reavaliação. A esse respeito, esclarece Zarifian (2001, p.28): [...] embora exista uma preocupação evidente em reconhecer a competência particular do assalariado e desprendê-la da simples capacidade de ocupar um posto, não se vê surgir nenhum novo referencial. Ora, é preciso que uma referência seja construída na relação do trabalhador no trabalho. Nunca se é competente no abstrato. Sempre se é competente ‘em relação a’. É essa ‘relação’ a verdadeira implicação social, mas uma implicação amplamente oculta pelo avanço do enfoque técnico das competências. Ou seja, por não se ter explicitado o que poderia ser um novo referencial, há uma ‘reaparição de um recalque’, isto é, o fato de a implementação concreta do acordo traduzir-se por um retorno da análise clássica dos empregos (‘das capacidades para’ ocupar um emprego do qual se descreve o conteúdo). (ZARIFIAN, 2001) 105 Evidenciou-se, portanto, que os serviços de recrutamento e seleção são os responsáveis pela implementação de novos modelos no mundo do trabalho, recorrendo ao conceito de competência; porém, dada a manutenção do referencial de contratação das empresas centrado no cargo, os R&S mantêm tal referência em suas práticas. Assim, as características entendidas como competências passam a ser buscadas no candidato; porém, como aponta Stroobants (2002), “as competências mobilizadas no trabalho são retraduzidas em perfis de postos, em capacidades requeridas”. Tal entendimento alinha-se com o externado por R&S7: [...] quando você fala da competência da adaptabilidade, às vezes o mercado fala que não tem este profissional. Temos de descobrir a similaridade para poder chegar, e, conseqüentemente, convencer o profissional do que a empresa está buscando. O sonho seu não está pronto não, não existe. (R&S7) Não existe, portanto, um profissional com as características almejadas, pronto para ser colocado na vaga em aberto. Então, é preciso identificar no trabalhador a competência requerida. É preciso, inclusive, convencer o trabalhador da competência que ele traz, mas não percebe. Além disso, é preciso manter a crença da empresa de que existe aquele perfil idealizado, mesmo que, para o R&S, esse ideal não exista. É preciso que o serviço de R&S tenha ( ou mantenha) o poder de identificar e atestar as características demandadas ou as similaridades das características. Logo, o perfil ideal é criado, estabelecido, requerido e corporificado. 4.3 Gestão por competências na percepção dos entrevistados A gestão de pessoas sob enfoque da competência, nas organizações, segundo Zarifian (2001, 2003), é entendida como uma ruptura com o modelo taylorista-fordista, possibilitando o reconhecimento de características do trabalhador, que estavam presentes nele, mas não eram reconhecidas como qualidades que deveriam ser demonstradas. Segundo o autor, foi possível implementar o modelo de competência nas empresas, a partir da substituição daquele tradicional modelo pelo de produção flexível. 106 Esta investigação, contudo, parte do pressuposto de que a competência não rompe com o modelo de produção taylorista-fordista. Entende-se que o contexto de mudanças científico-tecnológicas, econômicas e sociais se apresenta como um movimento natural na e da sociedade, levando a uma renovação do modelo de produção taylorista-fordista, com a inserção do modelo de produção flexível. O modelo de competência, ao avaliar os saberes preconizados pela qualificação, avalia os saberes atitudinais, atendendo aos ditames atuais do mundo do trabalho. 4.3.1 O conceito de competência do empregador, na concepção dos entrevistados A representante da empresa R&S6 tem a seguinte percepção sobre a adoção da gestão de competências: Nós convivemos com pessoas que pegam esta gestão da competência [...] na internet e falam: agora eu vou avaliar você por isto, por aquilo. Aí eu falo o seguinte: Qual é o conceito de liderança que você tem? Qual é o seu público? Você vai liderar quem? Então, começam as consultorias a criar competências por empresa, por área e por função. São competências diferentes, que todas as pessoas têm de ter. Inteligências? Inteligência, o que é? É a capacidade que você tem de pensar em alguma coisa. As inteligências são diferentes, dependendo das funções que você vai exercer. Na divisão do cargo por tarefa, você descreve as funções em três conceitos: conhecimento, capacidade de tomar decisão e responsabilidade, e assim você define o peso daquele cargo. (R&S6) Em algumas empresas, a adoção da gestão por competências acontece como um mecanismo de adequação ‘por impulso’. A entrevistada R&6 entende o modelo de competências ligado a conceitos, a mecanismos de avaliação, a características que a empresa deve estabelecer e a seus objetivos específicos em relação às pessoas, razão pela qual entende que a gestão por competências não pode ser adotada como um programa informatizado. Essa posição alinha-se com o pensamento de Ruas (2005), que a concebe como um conceito integrador da gestão de pessoas e destas com os objetivos da organização. Quanto ao estabelecimento de uma metodologia de avaliação das competências dos profissionais, a representante da R&S6 externa ponto de vista semelhante ao de Le Boterf (2006), porém, ao se referir a conhecimento, autonomia e responsabilidade, itens 107 relacionados à competência, a entrevistada mantém a tradicional referência ao cargo. A concepção de competência baseada no caráter informativo, calcada em saberes profissionais formais e na experiência (qualificação) e, como tal, algo desenvolvido, adquirido pelo trabalhador, pôde ser percebida na visão dos empregadores, enfocada durante as entrevistas. A representante da R&S7, por exemplo, manifesta tal percepção, ao ressaltar: Pegue uma empresa que esteja trabalhando com gestão por competências. Ela define as competências globais da empresa [...] as competências de gestão, e define também as competências dentro de um eixo que podemos chamar de competências técnicas. Dentro destas você tem as competências chamadas comportamentais. A partir do momento em que a empresa define o que é isto, existe uma técnica de entrevista, em que você vai trabalhando com uma série de perguntas, para ver se ela (empresa) desenvolveu esta competência. (R&S7) Essa visão remete à abordagem de Fleury & Fleury (2004), Ruas (2005) e Dutra (2004), quanto à existência de diferentes dimensões de competências no âmbito empresarial brasileiro: competência da instituição, competências de gestão, competências técnicas, competências coletivas e individuais. A representante da R&S4, por sua vez, à medida que se solta na entrevista, desconversa e, à maneira de quem não deseja ‘entregar o segredo’, diz que a competência depende de “cada modelo[...]cada referência...]” e, para finalizar, afirma: “não vou ousar”. Contudo, a entrevistada dá a entender que cada processo seletivo tem um modelo que se baseia em uma referência de competência. 4.3.2 O conceito de competência dos serviços de recrutamento e seleção Foi possível constatar que, na Empresa R&S2, há a concepção de competência [...]como algo que pode ser desenvolvido; junta-se a isso a habilidade que é algo já adquirido e a educação; e por último, você põe em prática esses elementos. (R&S2) Para o representante da empresa R&S1, [...]competências são essas habilidades que nós temos, que a empresa precisa, que eu apresento. A empresa pediu uma série de habilidades, uma série de competências. Essas competências é que vou avaliar. (R&S1) 108 Na visão da entrevistada R&S5, a competência compreende [...]as habilidades que uma pessoa utiliza, suas habilidades interpessoais; são as características das pessoas, que se percebem em toda a vida, tanto na parte interpessoal, quanto no trabalho, em qualquer ambiente. Há três anos começou a se falar em competência. Hoje, eles valorizam muito esta parte interpessoal, lidar com pessoas. (R&S5) O representante da Empresa R&S8 assim expressa sua percepção: Pelo conceito que eu pratico disso, [...] a pessoa tem conhecimentos, habilidades e atitudes ou comportamentos frente a uma determinada situação. Envolve todos esses. O comportamento, então, está incluído dentro de uma competência... R&S8 Esses juízos revelam o entendimento do conceito de competência ligada à habilidade, em consonância com os estudos de Fleury & Fleury (2004). A entrevistada representante da R&S7, por sua vez, se refere à gestão de competências como modismos passageiros: “teorias que aparecem por momentos e que são adotadas pelo mundo do trabalho”: Hoje tem uma metodologia: as empresas estão tentando trabalhar com gestão por competências. Cada hora muda. Antes, você tinha gestão por objetivos; hoje é gestão por competências. Quando se trabalha com empresa, dá para não se pensar em objetivo? (R&S7) Gestão por competências são teorias que aparecem por momentos, e acho que esta é mais uma delas, e ela sistematiza uma forma de funcionar. E quando falamos de metodologia, eu me lembro que aprendi uma vez: você tem de ter uma metodologia, não importa qual. Se você não tem, você não tem história, você perde as coisas. (R&S7) Assim, R&S7 associa o modelo de competências a uma moda passageira, uma imposição metodológica, em consonância com o entendimento de Le Boterf (2003), Ruas (2005), Fleury & Fleury (2004) e Dutra (2004) de que o conceito de competência não passa de mero aspecto burocrático no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores. Em síntese, pôde-se constatar nos serviços de R&S o entendimento de competência como saberes mobilizados em face de uma situação, alinhando-se com a visão dos citados autores. 109 Foi possível ainda evidenciar que o pessoal incumbido do R&S de trabalhadores, ao inermediar o processo, influencia e é influenciado pelas demandas das empresas. No primeiro caso, é essa uma oportunidade para que busquem introduzir uma visão inovadora, voltada para a valorização do desenvolvimento do perfil autônomo e empreendedor do trabalhador, abrindo espaço para o desenvolvimento de competências, em consonância com a abordagem de Zarifian (2001). Tal percepção pôde ser identificada no representante da Empresa R&S8, cuja base do entendimento da competência, segundo declarou, “provém de cursos, de livros [...], no curso de pós-graduação.” Segundo R&S8, [...]as empresas, quando elas nos passam as competências para a gente avaliar os profissionais, muitas delas já dividem essas competências em comportamento ideal para o cargo, conhecimento ideal e experiência necessária de vivência ideal [...] R&S8 [...] as empresas que não têm um RH estruturado, e a maioria não tem [... ], aí a gente tem de atuar como um consultor, orientando esses empresários pra começar a falar sobre competência, mas de uma forma mais técnica, de uma forma que ele compreenda a importância [...], pois numa descrição de perfil, às vezes, a pessoa tem muita dificuldade de fazer a descrição de perfil, identificar o que realmente precisa na empresa [...] e tudo isso depende do momento em que a empresa pode desenvolver os profissionais, ou num momento em que ela precisa de uma pessoa pronta (R&S8). O conceito de competência da representante da Empresa R&S3, por sua vez, alinha-se com a visão da Escola Americana, conforme material fornecido pela entrevistada15 sobre a abordagem comportamental (behaviorismo cognitivista). Em resumo, o conceito de competência, no âmbito dos serviços de R&S, é definido, em alguns casos, tomando por base aquilo que a empresa contratante entende como competência e, como tal, o conceito pode vir ligado aos princípios tradicionais do cargo e da pessoa certa para o cargo certo. Observou-se a tendência à adoção do modelo de competências que analisa o candidato quanto à mobilização dos saberes escolarizados, experienciais e atitudinais, conforme sintetiza o QUADRO 5. 15 David McCleland, no artigo publicado em 1973, intitulado “Testar competências no lugar de inteligências”, afirma haver melhores preditores de desempenho futuro do que os tradicionais testes de inteligência e aptidões. McCleland viu no behaviorismo cognitivista, o foco principal da análise das competências, como o comportamento observável. 110 QUADRO 5 Concepção de competência dos entrevistados Empresas Visão de competência R&S 1 Habilidades de que as pessoas dispõem e as empresas precisam, as quais são atestadas pelo serviço de R&S. R&S 2 Algo que pode ser desenvolvido, acrescido das habilidades e da educação, postos em movimentação, em prática. R&S 3 Enfoque comportamentalista, proveniente da Escola Americana. R&S 4 Referência específica de cada empresa, em função da própria cultura e demanda particular. R&S 5 Habilidades pessoais, interpessoais, características construídas ao longo da vida e percebidas nos mais diferentes ambientes; capacidade de lidar com as pessoas. R&S 6 Conceitos, mecanismos de avaliação e características próprias da empresa contratante. R&S 7 Teorias aprendidas em cursos, metodologias ligadas a modismos, desenvolvidas pelos indivíduos e verificáveis por meio de entrevista; maneira de recrutar e selecionar candidatos, adotada por algumas empresas. R&S 8 Conhecimentos habilidades, atitudes e comportamentos em face de determinada situação, alinhados àquilo que algumas empresas contratantes definem como competência; entendimento advindo de cursos e leituras sobre o tema. Fonte: Dados da pesquisa, 2008. Esse entendimento de competência, atrelado à rigidez do cargo, choca-se com premissas básicas do conceito de competência, quais sejam, a autonomia e a responsabilidade, em face de uma situação de evento. Isso configura mudanças 111 burocráticas nos procedimentos de seleção de pessoas, como afirmam Fleury & Fleury (2004) e Dutra (2004), ou seja, refere-se à atribuição de roupagem nova a velhos conceitos. Logo, a pesquisa evidenciou o uso de práticas renovadas no processo de recrutamento e seleção; práticas que buscam capacidades, qualidades do trabalhador, mas sustentadas em velhos princípios. Essa exigência gera a necessidade de novos referenciais para a avaliação do trabalhador. Constatou-se nas entrevistas, por meio da exposição do candidato a uma situação problema, que o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores na atualidade recorre ao conceito de competência, o qual engloba três saberes (acadêmico, experiencial e atitudinal). O saber escolarizado, atualizado e mobilizado é fundamental. A trajetória profissional é de responsabilidade do trabalhador, sendo preferencialmente marcada por curtos períodos de tempo na função ou na empresa. O saber experiencial, por sua vez, diz respeito ao saber-fazer. O saber atitudinal, igualmente relevante, sempre foi demandado, porém, no passado, de maneira menos explícita; na atualidade, é considerado essencial, já que o desenvolvimento organizacional pressupõe o desenvolvimento das pessoas. Evidenciou-se também que, ao avaliar os saberes preconizados pela qualificação, além dos saberes atitudinais, os serviços de R&S atendem aos ditames atuais do mundo do trabalho; contudo, não se verificou o rompimento com o princípio do cargo, estabelecido no modelo de produção taylorista-fordista. Na verdade, esses aspectos hoje demandados sempre integraram as características pessoais do trabalhador. Em face de uma realidade que parece pedir um novo perfil de trabalhador, Dadoy (2004) e Tomasi (2004) afirmam que o atual mundo do trabalho precisa apenas reconhecer no profissional as qualidades já existentes, mas até então não valorizadas nem avaliadas. Segundo Tomasi (2004, p.12) [...] os trabalhadores, individualmente ou em pequenos grupos, sempre reclamaram um conceito de competência que, no entendimento deles, fizesse justiça às suas capacidades, aos seus conhecimentos, aos seus saberes, que não os homogeneizasse em face das demandas dos postos de trabalho. De fato, um trabalhador qualificado, ocupando seu posto de trabalho e fazendo jus a determinado salário, sempre percebeu diferenças em termos de desempenho, conhecimento, capacidade, em relação aos demais. Portanto, sempre 112 foi desejo dos trabalhadores serem valorizados, avaliados em virtude dessas diferenças. Nas convenções coletivas, os patrões mantinham a concepção de trabalhador vinculada ao modelo do posto, cargo e saberes, sem levar em consideração as qualidades do trabalhador, “elementos que o distingue e que hoje, reconhecidamente, agrega valor à produção.” Por essa razão não mudavam a forma de negociação coletiva. Nessa ótica, diferentemente de Zarifian (2001, 2003), que associa a competência à ruptura do modelo de produção taylorista-fordista e à demanda do patrão, compreende-se que a passagem do modelo de avaliação do trabalhador, da qualificação para a competência, é uma demanda do trabalhador, num contexto neotaylorista, caracterizado pela renovação, pelo abrandamento e não pela ruptura16 com o modelo taylorista-fordista, em face da inserção heterogênea do modelo de produção flexível. Finalmente, cabe observar que a análise e interpretação dos dados desta pesquisa permitiram constatar que o processo de recrutamento e seleção, na atualidade, renovou-se, devido às transformações na sociedade em nível mundial, afetando o mundo do trabalho. Na análise das falas dos entrevistados, constatou-se que a qualificação, como elemento avaliativo dos trabalhadores, é insuficiente para captar as capacidades do trabalhador, hoje avaliadas, razão pela qual é adotado o modelo da competência. Porém, os dados revelaram a associação da competência com o cargo disponibilizado pela empresa contratante; o cargo, por sua vez, na moderna concepção de carreira, não é mais visto como uma posição estável e de ocupação duradoura. A carreira é hoje associada a experiências diversificadas e de curtos períodos em um cargo, muitas vezes, em diversas empresas, e tais elementos indicam a capacidade de mudança, adaptação e flexibilidade do trabalhador. As práticas dos serviços de R&S, para identificarem as demandas dos empresários, centram-se inicialmente na visita à empresa, na observação do ambiente e na conversa informal com os trabalhadores e o superior hierárquico, com 16 Na fase de coleta de dados desta investigação, foram visitadas duas indústrias uma do ramo automobilístico e outra de tecido. Em ambas coexistem o modelo taylorista-fordista e a produção flexível. Constatou-se a presença, no mesmo espaço físico, de alta tecnologia, robotização e informatização da produção e, de equipamentos e procedimentos tipicamente tayloristas-fordistas. A novidade é o rodízio dos trabalhadores nas tarefas, funções para aprendizagem e melhor qualidade de vida no ambiente fabril. 113 vistas a identificar a cultura organizacional e a construção do perfil profissional demandado. A captação dos candidatos é feita por meio da publicação de anúncios em jornais, ou em sítios eletrônicos corporativos dos prestadores de serviços de recrutamento e seleção. A análise do candidato, por sua vez, engloba entrevistas, testes de conhecimento e inventários, visando a identificar os saberes relativos à profissão, à experiência e às características pessoais ligadas ao exercício do cargo. Muito embora os entrevistados tenham se referido à competência e recorrido a práticas que visam a atestá-la e reconhecê-la no candidato, o entendimento do conceito de competência ainda se vincula aos princípios do cargo e da escolha da pessoa certa para o cargo certo. Além disso, os aspectos da cultura da organização e do candidato são pontos relevantes observados no cruzamento entre o perfil demandado pelas empresas contratantes e o perfil ofertado pelos candidatos às vagas a serem preenchidas. De forma generalizada, os serviços de R&S participantes da pesquisa avaliam os saberes adquiridos na trajetória escolar e profissional dos candidatos às vagas, por meio de sua exposição a situações-problema, por meio de entrevista ou de dinâmica de grupo, principalmente visando à análise do saber atitudinal. Alguns serviços de recrutamento e seleção recorrem a um conceito de competência originado de estudos acadêmicos e do entendimento das empresas contratantes quanto às competências desejadas. Pôde-se constatar que há empresas contratantes que não fazem uso do termo competência. Nesse caso, os serviços de recrutamento e seleção tornam-se consultores, alertando as empresas quanto à conveniência dessa abordagem. De modo geral, observou-se que o discurso dos entrevistados denota o nãorompimento com o modelo tradicional de gerenciamento de trabalhadores. Muito embora esteja presente no processo seletivo o conceito de competência, os serviços de recrutamento e seleção e as empresas contratantes mantêm o princípio do cargo e da pessoa certa para o cargo certo. Logo, confirma-se pressuposto desta investigação: o conceito de competência dos atuais serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores baseia-se em posicionamentos teóricos e empíricos tradicionais e nas demandas dos empresários ou de seus representantes, ligando-se a práticas tayloristas-fordistas e configurando a neo-taylorização. 114 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo fato de as organizações contemporâneas tenderem a concentrar seus esforços na atividade-fim, transferindo as atribuições de recrutamento e seleção de trabalhadores para empresas especializadas na área, esses serviços, denominados agências de emprego, consultores em recursos humanos, entre outras denominações, tornam-se parceiros das organizações. Interpretando o discurso empresarial, alinham sua estratégia de atuação àquela da empresa contratante e buscam candidatos para o preenchimento da vaga. A empresa contratante fornece uma descrição completa e acurada de suas necessidades de pessoal, e o prestador de serviços oferece-lhe um grupo adequado de candidatos. Os prestadores desses serviços, nesta investigação, foram denominados de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores - R&S. Com o objetivo de contribuir para o entendimento do conceito de competência no âmbito das empresas atuantes no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, este trabalho buscou responder à seguinte indagação: Que princípios tendem a nortear, na atualidade, as ações dos serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, em função da concepção de competência predominante no âmbito das empresas contratantes? Para isso, foram investigadas oito empresas prestadoras de serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, em Belo Horizonte, MG, no período de 24 de agosto de 2006 a 02 de agosto de 2007. Partiu-se do pressuposto de que o entendimento do conceito de competência adotado nos serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores, em função das solicitações dos empregadores, vincula-se ao princípio tradicional do cargo, configurando a neo-taylorização, o que marca a necessidade da criação de um novo referencial para avaliação do trabalhador. No transcorrer das entrevistas, a autora foi convidada por uma das empresas prestadoras de serviços, a atuar em um processo seletivo, na busca por um profissional para ocupar um cargo em nível institucional. A experiência possibilitou compreender na prática a implementação de uma forma modernizada de recrutamento e seleção: os candidatos, primeiramente avaliados sob o enfoque do curriculum vitae, se escolhidos, passavam à entrevista, na qual eram buscadas as 115 competências previamente estabelecidas para a ocupação do cargo. A entrevista buscava enfocar a história de vida escolar e profissional do candidato, que era solicitado a relatar uma vivência, a partir da qual fosse possível analisar sua atitude em face dos fatos relatados. Além disso, foram aplicados procedimentos de análise grafológica, buscando na escrita dos candidatos indícios de sua maneira de agir, aspectos de suas atitudes e comportamentos em situação de trabalho. Nas entrevistas, pôde-se constatar que os serviços de recrutamento e seleção tendem a centrar suas ações nas especificidades e atribuições do cargo. Tanto que, ao ser visitada a empresa contratante, previamente ao desencadeamento do processo seletivo, o objetivo é conhecer o espaço de atuação do trabalhador e a cultura da empresa, tendo em vista a melhor adequação do profissional ao cargo a ser ocupado. Pôde-se também verificar, durante a pesquisa, que predomina nos serviços de recrutamento e seleção, o entendimento de que as competências abarcam a mobilização do saber escolarizado, do saber experiencial e do saber atitudinal (comportamental) em uma dada situação profissional. Cabe ainda ressaltar que o modelo da competência adotado engloba práticas clássicas do modelo de qualificação, tais como testes e inventários, mediante os quais as empresas de recrutamento e seleção buscam mapear as competências dos candidatos e comprovar se as exigidas pela organização são preenchidas por ele. Esse contexto confirma o pressuposto deste trabalho, de que o conceito de competência predominante nos serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores seria construído à luz de posicionamentos teóricos ligados ao modelo da qualificação e em função das solicitações das empresas, assentando-se basicamente nos princípios tradicionais do cargo e da pessoa certa para ocupá-lo. A noção de competência relacionada ao desempenho do cargo configura a tendência a uma neo-taylorização do processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, sugerindo a necessidade de reflexão e renovação de tais princípios. Quanto à pesquisa teórica, verificou-se que os autores ressaltam as dificuldades e os desafios representados pelo referenciados modelo de competências, no tocante ao alinhamento entre as competências individuais, as organizacionais e as estratégias de negócio das empresas, com vistas ao desenvolvimento de competências nas pessoas, para que agreguem valor a si mesmas e à organização. Por outro lado, eles reafirmam a manutenção de práticas 116 tradicionais de gestão de pessoas no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, na grande maioria das empresas pesquisadas, devido, em parte à falta de referenciais que substituam aqueles centrados no cargo, e, em parte, à ausência de um modelo de gestão de pessoas estruturado por competências. Os estudos consultados indicam a tendência à renovação, paralelamente à manutenção de práticas gerenciais taylorista-fordistas nas organizações. As inovações evidenciadas dizem respeito, basicamente, à valorização do perfil autônomo e empreendedor do trabalhador; à atribuição de maior responsabilidade às pessoas pelo sucesso da organização; ao foco na abertura de espaço para princípios voltados para o desenvolvimento de competências do trabalhador. Algumas mudanças foram constatadas, na literatura pesquisada, porém, não são generalizáveis ao conjunto de empresas e dizem respeito à adoção do conceito de competência no treinamento e desenvolvimento dos trabalhadores, com a criação de universidades corporativas e sistemas de remuneração ligados às competências dos indivíduos e aos métodos de avaliação da competência do trabalhador. Quanto ao processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, a literatura referenciada ressalta a exigência de maior nível de escolaridade dos trabalhadores e de características pessoais como comprometimento, flexibilidade e pensamento estratégico. Na visão dos autores consultados, os diferentes entendimentos do conceito de competência, em grande parte das organizações, dificultam sua operacionalização na gestão de pessoas. Esses aspectos denotam, em parte, o não rompimento da gestão de pessoas com o modelo tradicional de gerenciamento de trabalhadores, dando a entender que as mudanças no gerenciamento de pessoas nas organizações se configuram práticas neo-tayloristas. As mudanças são pontuais, tanto no interior das empresas quanto no conjunto delas. Nessa perspectiva, os princípios que sustentam as práticas de recrutamento e seleção de trabalhadores, centradas no cargo e na pessoa certa para o cargo certo, continuam em pauta, embora de forma renovada. Esse entendimento encontrou respaldo no discurso dos representantes das empresas de recrutamento e seleção entrevistados. Pôde-se comprovar que, na atualidade, em função da maior flexibilidade dos processos de produção, da tendência a postos de trabalho quase indefinidos e ainda da maior valorização da autonomia do trabalhador e do trabalho em equipe, a função tornou-se mais fluida e 117 abriu efetivamente espaço para o saber-ser, razão pela qual as atitudes e os comportamentos passaram a ser priorizados, explicitados e demandados nos processos de recrutamento e seleção, fato que explica a maior demanda por características individuais no mundo do trabalho, entendidas como competências pelos serviços de recrutamento e seleção. Por outro lado, a análise do discurso dos entrevistados e das práticas de recrutamento por eles adotadas possibilitou a conclusão de que a identificação das competências de um profissional depende do olhar dos recrutadores e selecionadores. Permitiu ainda inferir que o perfil profissional do trabalhador é uma construção individual, podendo ou não ser atrelado a um cargo a ser preenchido em determinada empresa. Na fala dos sujeitos da pesquisa, foi também possível verificar a importância dada à cultura organizacional do contratante. Em termos gerais, as organizações assemelham-se, por assim dizer, a segmentos ou grupos de sociedade aparentemente isolados, cada uma desenvolvendo a própria cultura, embasada em crenças, idéias, princípios e valores que lhe dão consistência e identidade. Do conjunto de organizações integrantes dessa malha de heterogeneidade cultural, emergem fronteiras culturais específicas e identidades empresariais, nas quais o candidato, o indivíduo, o trabalhador pode penetrar, desde que haja adesão a essa cultura e aprovação de sua maneira de ser e atuar, em função dos moldes estabelecidos e requeridos pela organização. Caso a identidade cultural do candidato não coincida com o perfil profissional pretendido, é excluído do processo seletivo. Nesse contexto de valores definidos pelas organizações, os excluídos desse processo de fronteira cultural simbólica parecem ser levados a participar de uma situação de relativa clandestinidade, por exemplo, o desemprego, o que leva a indagar: A qual lógica de desempenho de papéis o trabalhador recorrerá, se a cultura do mundo do trabalho exclui o candidato de um processo seletivo, pelo fato de não assumir uma identidade até certo ponto pré-estabelecida? A busca de resposta para esta indagação foge ao escopo e aos objetivos desta pesquisa. Contudo, pretende-se, posteriormente, proceder a uma investigação que enfoque elementos tais como a identidade do trabalhador, a cultura organizacional, a competência e os possíveis processos identitários do trabalhador para demonstrar sua competência. Também devido às limitações do tema, centrado na escolha de 118 autores franceses e brasileiros que abordam a competência organizacional, os autores da escola americana, por exemplo, no âmbito não foram abordados. Sugere-se a outros pesquisadores um estudo no qual sejam reunidas ambas as escolas (americana e francesa) no tratamento do tema competência. Sugere-se ainda que sejam investigadas as dimensões organizacional, gerencial e individual da competência. Uma das contribuições deste trabalho foi perceber, por meio da observação in loco e análise detalhada das transcrições do material coletado, que as questões enfocadas proporcionaram aos representantes dos serviços de R&S participantes da pesquisa uma reflexão sobre a prática do dia-a-dia. Espera-se que igualmente constitua uma contribuição positiva para a literatura acadêmica nas áreas da Sociologia do Trabalho e Educação para Trabalho. Ao enfocar o âmbito empresarial, abordando o processo de recrutamento e seleção de trabalhadores, pôde-se refletir sobre o processo seletivo tradicional, calcado na qualificação, analisando saberes relativos à profissão, a hábitos e movimentos prescritos ao trabalhador, traduzidos em gestos repetitivos. Perante a realidade pesquisada, este estudo propiciou “uma reflexão sobre o trabalho e sobre a relação homem-sociedade mediada pelo fazer humano”, conforme propõe Tomasi (2006, p.127). A pesquisa revelou que os atuais serviços de recrutamento e seleção de trabalhadores tendem a não priorizar as dimensões humana e social do trabalhador, que, ao agir, expressa um saber-fazer, mas igualmente um saber-ser: [...]dimensão do gesto que trabalha o objeto e lhe dá vida, do gesto preciso que fabrica coisas e assegura o seu funcionamento, do gesto que pode ser mensurado, controlado e submetido a uma economia de tempos e de movimentos, elementos centrais da organização científica do trabalho de Taylor, mas (que precisa) também da dimensão humana e social do gesto que, ao produzir a existência humana, produz também sociedade e cultura, traduz hábitos, costumes, sentimentos, pensamentos, modos de viver e de ser. (TOMASI, 2006, p.127) Portanto, nessa dimensão gestual, as atitudes e os comportamentos conferem significado e valor ao trabalho humano e, por isso, o saber-ser (saber atitudinal) é essencial no processo de recrutamento e seleção de trabalhadores. 119 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Lindolfo Galvão de. O papel estratégico de recursos humanos. 1987. Tese (Doutorado em Administração). - Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, Departamento de Administração. São Paulo, 1987. ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 2006. ALMEIDA, Walnice. Captação e seleção de talentos: repensando a teoria e a prática. São Paulo: Atlas, 2004. BACHELARD, G. A formação do espírito científico. 3. Ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1987. CHIAVENATO, I. Administração: teoria, processo e prática. 4. 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Disponível < http://www.philippe.zarifian/page127> acesso em 20/03/2007. 123 APÊNDICE A Roteiro de entrevista • Contexto do processo de recrutamento e seleção desde os anos 1980 a 2007. • Balanço de possíveis mudanças e identificá-las. • A maneira como se dá a contratação dos serviços. • Como se dá o processo de recrutamento e seleção? • Como são captadas as demandas dos empresários? • O perfil demandado é construído pela empresa contratante, pelos serviços, por ambos? • Como é identificado o perfil ofertado? • Como se dá o cruzamento das informações entre o perfil demandado e o perfil ofertado? • A relevância dos saberes escolarizados e da experiência. • Se o entrevistado não falar de competência abordar o tema. • Buscar identificar, sem perguntar diretamente, o que o entrevistado entende por competência.