Ruth Benedict. Configuracões de Cultura. Artigo
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Ruth Benedict. Configuracões de Cultura. Artigo
CONFIGURAÇÕES DE CULTURA∗ Ruth Benedict Nos últimos vinte e cinco anos, o fato de maior importância em Antropologia tem sido, sem dúvida, a acumulação de monografias completas de povos primitivos. Agora, é com dificuldade que se rememora a época anterior, em que a reconstrução de um quadro mais ou menos passável, de tribo primitiva, teria sido feita apenas com referência a duas ou três regiões, cada uma das quais cercada de dificuldades. Os melhores relatos de que se dispunha não eram o produto de qualquer inquérito propositado feito por estudiosos do costume, mas sim dos acasos felizes que punham lado a lado um bom observador e uma cultura digna de nota, como por exemplo no caso de Sahagun, ou de Codrington na Melanésia. O vasto acervo de dados antropológicos disponíveis ou era francamente anedótico como nos relatos de viajantes, ou esquematicamente dissecado e tabulado, como nos de muitos etnólogos. Nessas circunstâncias, o procedimento antropológico necessariamente recorria, como no tempo de Tylor, ao método comparativo, que é, por definição, anedótico e esquemático. Coligindo grandes séries de observações destacadas dos contextos de que fazem parte, procurava esse método descobrir a mente primitiva, ou o desenvolvimento da religião, ou a história do casamento. Das necessidades criadas pela mesma situação, floresceram também as escolas dos estritos difusionistas que tiravam vantagens dos limitados materiais de que dispunham, e atuavam somente com traços isolados, sem levarem em consideração a sua colocação, ou função, na cultura de que provinham. Embora a crescente insatisfação com estes dois approaches dominantes do que bem podemos chamar de “período anedótico” da Etnologia, esteja explícita no ensinamento de Boas, que sempre insistiu sobre a necessidade do estudo exaustivo de qualquer cultura primitiva, é ela mais claramente expressa por Malinowski. Sua crítica foi mais contra o grupo difusionista do que contra os Frazers e os Westermarcks, que ∗ Título original: “Configurations of Culture in North América”, American Anthropologist, Vol. 34, N.° 1, (janeiro-março, 1932), pp. 1-27. Reproduzido de: Donald Pierson (org.), Estudos de Organização Social; SP, Martins, 1970 – Capítulo XVIII; p.312-347. 1 empregaram o método comparativo, mas na sua própria obra ele insiste sempre em que a teoria antropológica deve levar em consideração, não itens culturais isolados, mas culturas como todos orgânicos e funcionais. Ele quer fazer-nos compreender que, por exemplo, depois de se instalar em um museu uma coleção de objetos Niam-Niam, ou de ser publicada uma monografia sobre estes objetos, ainda exatamente nada sabemos destes, a menos que conheçamos o modo por que cada traço cultural - o arranjo da casa, os artigos de vestuário, as regras de abstenção ou de casamento, as idéias do sobrenatural, etc., - é empregado na vida cotidiana dos Niam-Niam. Malinowski, de um modo que desaponta um tanto, não prossegue no exame desses todos culturais, mas contenta-se em concluir seu argumento salientando que cada traço tem a sua função no complexo cultural total, conclusão que parece mais um começo de inquérito do que sua terminação. Pois é esta uma posição que leva a investigar em que espécie de todo esses traços estão funcionando, e que referência tem eles para com a cultura total. Até que ponto os traços realizam uma inter-relação orgânica? São muitos ou poucos os Leitmotive pelos quais eles podem integrar-se? Estas perguntas os funcionalistas não fazem. Ora, o fato que se torna cada vez mais evidente à medida que relatos completos de povos primitivos são publicados, é que essas culturas, embora sejam quase completamente constituídas de elementos díspares fortuitamente reunidos trazidos de todas as direções pela difusão, são também, repetidas vezes, em diferentes tribos, integradas segundo padrões bastante diferentes e individuais. A ordem alcançada não é apenas o reflexo do fato de ter cada traço uma função pragmática a desempenhar - o que muito se assemelha à “grande” descoberta em Fisiologia de que o olho normal vê e de que a mão com músculos normais agarra, ou ainda mais exatamente, a descoberta de que nada existe na vida humana que a humanidade não tenha adotado e racionalizado. A ordem é antes devida à circunstância de que, nessas sociedades, foi estabelecido um princípio de acordo com o qual os elementos culturais reunidos são reorganizados em padrões coerentes, segundo certas necessidades interiores que se desenvolveram dentro do grupo. Estas sínteses são de várias espécies. Para algumas temos terminologia adequada e para outras não temos. Constituem elas, porém, em cada caso, a integração mais ou menos bem sucedida de comportamento, realização que é a mais digna de nota para o antropólogo por conhecer ele os elementos esparsos e híbridos com os quais se realizou a integração. 2 A proposição de que as culturas precisam ser estudadas desse ponto de vista e de que ele é indispensável para a compreensão mesmo da nossa própria história cultural, foi sugerida por certos pensadores alemães liderados por Wilhelm Dilthey e popularmente representada nos países de língua inglesa por Oswald Spengler, na sua obra Untergang des AbendIanes. Para estes estudiosos, a História é uma sucessão de filosofias de vida culturalmente organizadas, e a Filosofia é o estudo dessas grandes interpretações de vida. Para Dilthey é apenas secundariamente e mesmo acidentalmente que a própria configuração da cultura exprime essas diversas interpretações de vida. O que ele acentua principalmente é que essas grandes interpretações expressam a variedade de existência; nega ele a suposição de que qualquer uma delas possa ser final. Ele argumenta vigorosamente que as configurações essenciais na Filosofia são incomensuráveis e que suas categorias fundamentais não se podem resolver uma na outra. O mais sistemático de seus estudos, Einleitung in die Geisteswissenchaften, é, de modo manifesto, historicamente descritivo. Quando ele se torna sistemático, seus agrupamentos não são configurações, mas tipos de personalidade em filosofia; ele agrupa Demócrito, Epicuro, Hobbes e os enciclopedistas franceses para exemplificar seu tipo “materialista-positivista”, ao qual contrapõe o idealista objetivo e o idealista da liberdade, ambos ecleticamente selecionados de diferentes nações e épocas. Nos seus ensaios menos sistemáticos, contudo, ele caracterizou bem certas atitudes culturais significativas no período de Frederico, o Grande, e no período medieval, e faz uso, muitas vezes, de pontos culturais. Ao passo que a elaboração de tipos de E. Spranger1 é apriorística e subjetiva, e não provém do estudo da história. Seus tipos são o homem teórico, o homem econômico, o homem esteta, o homem gregário, o homem que quer o poder, o homem religioso. Spengler, contudo, elaborou o aspecto cultural desta filosofia. Evitou a tentativa de outros partidários desse ponto de vista no sentido de definir e limitar os tipos que podem ocorrer. Para ele, as “idéias de destino” quaisquer que sejam, que evolvem dentro de uma cultura e lhe dão individualidade, representam aquilo que é dinâmico e estimulamente na vida humana. Estas “idéias” tem diferido profundamente umas das outras e condicionam seus portadores de modo que certas crenças e certas cegueiras lhes 1 Eduard Spranger, Types of Men. Tradução inglesa por Paul J. W. Pigors, Halle, 1928. 3 são inevitáveis. Toda grande cultura tomou certa direção que lhe é exclusiva, desenvolveu crenças e instituições até o ponto em que estas expressem a sua orientação fundamental; e a plena atuação desta atitude sui generis e altamente individualizada para com a vida, é o que é significativo nessa época cultural. O estudo de Spengler produz uma impressão confusa dado o seu caráter digressivo e as complexidades não resolvidas das civilizações de que ele trata. Do ponto de vista antropológico, a crítica fundamental ao seu trabalho é quanto a tratar a civilização estratificada moderna como se ela tivesse a homogeneidade de uma cultura primitiva. Sua descrição, especialmente da moderna filosofia do mundo a que ele chama faustiana, é apenas uma das descrições integradas que podem ser legitimamente traçadas para o homem moderno. Precisa ser contrabalançada por uma descrição de um Babbitt ou de um Roosevelt, por exemplo. Mesmo assim, a sua mais ou menos mística consideração de quantidades, de arquitetura, de música, de pintura, de vontade, espaço e tempo, faz com que a sua definição de tipos se torne confusa, e a identificação dessas diferentes “idéias de destino” faustianas em matemática, finanças, filosofia e moral, difícil de compreender. O princípio fundamental da filosofia de Dilthey e seus partidários permaneceu, na sua aplicação à civilização da Europa ocidental, mais estimulante e provocativo do que convincente. A dificuldade, que o próprio Dilthey largamente evitou acentuando antes de tudo as tendências dominantes em filosofia ao invés de em cultura, é em Spengler bastante clara; os dados históricos da Europa ocidental são demasiado complexos e a estratificação cultural demasiado completa para se submeter, em nosso presente estado de conhecimento histórico, à necessária análise. Umas das justificações filosóficas para o estudo dos povos primitivos é que os dados etnológicos podem tornar claros fatos sociais fundamentais, que de outro modo são confusos e não passíveis de demonstração. Destes, nenhum me parece mais importante do que as configurações fundamentais e distintivas em cultura, que de tal modo padronizam a existência e condicionam as reações emocionais e cognitivas de seus portadores, que estas se tornam incomensuráveis, especializando-se cada uma, em certos tipos selecionados de comportamento e afastando o comportamento dos seus contrários. 4 Examinei recentemente, deste ponto de vista, dois tipos de cultura representados no Sudoeste dos Estados Unidos,2 a dos Pueblo, em contraste com a de vários povos das circunvizinhanças. Dei ao ethos dos Pueblo a qualificação de apolíneo no sentido em que Nietzsche usou o termo, para representar a sua sobriedade, moderação, e desconfiança quanto ao excesso e à orgia. Por outro lado, o tipo contrario de Nietzsche, o dionisíaco, é abundantemente ilustrado em todas as culturas circunjacentes. Valorizase o excesso como fuga para uma existência além da dos cinco sentidos, o que se expressa pela criação, na cultura, de experiência dolorosas e perigosas, pelo cultivo de excessos emocionais e psíquicos e pela embriaguez, sonhos, e transe. A situação no Sudoeste oferece uma oportunidade excepcionalmente boa para o estudo da extensão a que os conjuntos psicológicos contrastantes desta espécie, uma vez institucionalizados, podem moldar as culturas resultantes. Os Pueblo são uma civilização claramente delimitada, de muito considerável antigüidade, colocada como uma ilha entre culturas altamente divergentes. Mas, este isolamento de sua cultura não pode ser atribuído, como na Oceania, aos fatos do ambiente físico. Não há cadeias de montanhas, nem desertos intransponíveis, nem mesmo muitas milhas a separá-los de seus vizinhos. É um isolamento cultural realizado quase que apesar das condições geográficas. Os Pueblo orientais iam regularmente às planícies para a caça ao búfalo e o centro da região dos Pima fica a um dia de viagem a pé dos Hopi e Zuñi. O fato, portanto, de terem eles uma cultura complexa, tão flagrantemente destacada como qualquer outra na América do Norte, de seus vizinhos contíguos, torna a situação clara. A resistência que manteve afastados dos Pueblo 3 traços culturais tais como o espírito guardião e a visão, o xamã, a tortura, a orgia, o uso cultural de intoxicantes, as idéias de perigo místico associadas ao sexo, a iniciativa e a autoridade individuais quanto aos assuntos sociais, é uma resistência cultural, e não o resultado de um isolamento devido ao ambiente físico. A cultura dos Pueblo de Sudoeste, como demonstrei no artigo acima referido, é uma elaboração completa e institucionalizada do tema de sobriedade e de moderação no comportamento. Este tema dominante efetivamente evitou o desenvolvimento daquelas típicas situações dionisíacas que a maioria das tribos norte-americanas Elabora com 2 “Psychological Types in the Cultures of the Southwest”, International Congress of Americanists, 23: 572-581, 1928. 3 Op. cif., 573, e seg. 5 referência a todas as fases da vida, cultivando os excessos emocionais e a submissão completa aos impulsos, e fazendo do nascimento, da adolescência, da menstruação, da morte, do assassinato e de outras crises da vida, ocasiões ambivalentes carregadas de perigo e de força. Ele recusou, de modo semelhante, traços das culturas circunvizinhas, tais como a auto-tortura, o uso de drogas em cerimonias, e a visão inspiradora, assim como toda a autoridade que usualmente deriva do contato pessoal com o sobrenatural, isto e, o xamanismo. Esse tema abomina os impulsos desagregadores do indivíduo estou usando uma linguagem abreviada animística querendo dizer que seu bias cultural opõe-se e finalmente reduz a um mínimo os impulsos humanos para ter visões e para descarregar energias, entregar-se a excessos da carne. Entre esses impulsos desagregadores, o ethos Pueblo conta também o desejo do poder. Seguramente, assim como ele atuou para evitar a auto-tortura, atuou para evitar o impulso humano para o exercício da autoridade. Seu homem ideal evita a autoridade no lar ou na função pública. Confiam-lhe afinal um cargo, mas mesmo aí a cultura já afastou da posição que ele tem que ocupar tudo que se aproxime da autoridade pessoal no nosso sentido; o cargo continua sendo uma posição de confiança, um centro de referência no planejamento do programa comunal, não muito mais do que isso. A sanção para todos os atos vem sempre da estrutura social formal, não do indivíduo. Ele não pode matar, a menos que tenha o poder de escalpar ou esteja planejando ser iniciado nisso - isto é, na sociedade guerreira organizada. Ele pode curar, não porque saiba como fazê-lo ou porque tenha obtido sanção de algum encontro pessoal com o sobrenatural, mas porque alcançou a posição mais alta nas sociedades que exercem a cura. Mesmo que seja o sacerdote principal, não plantará uma “vara de prece” a não ser nas épocas institucionalmente prescritas; se o fizer, considerar-se-á que está praticando feitiçaria, como, de acordo com o ponto principal das histórias em que se reconta esta situação, de fato o está. O indivíduo devota-se, portanto, às formas constituídas de sua sociedade. Toma parte em toda atividade do culto, e, de acordo com os seus recursos, aumentará o número de máscaras possuídas em Zuñi conseguindo que seja feita uma para si mesmo - o que envolve festejos e despesa considerável. Tomará a si patrocinar as danças kachina de calendário; mantê-las-á durante a grande dança de inverno, construindo para isso nova casa e pagando a sua parte das despesas da cerimônia. Mas faz tudo isso com um anonimato que dificilmente encontra similar em outras culturas. Não empreende esses atos como meios de aumentar o prestígio pessoal. 6 Socialmente, o “homem bom” nunca se eleva acima do vizinho pelo exercício da autoridade. Deixa todos à vontade, fala muito, não dá ocasião para ofensa. Nunca é violento, nem se deixa dominar pelas emoções. Todo o interesse da cultura é dirigido no sentido de prover, para todas as situações, conjuntos de regras e práticas por meio dos quais se vive sem recorrer à violência e a outros excessos em que a cultura não deposita confiança. Mesmo os ritos de fertilidade, tão universalmente associados em outras culturas ao excesso e à orgia, embora sejam o tema principal da religião desses índios,4 são ritos não eróticos, baseados em analogia e magia por simpatia. Discutirei depois como os seus ritos de luto são completamente destinados a este mesmo fim. Tais configurações de cultura, erigidas em torno de certos traços humanos selecionados e operando para destruir outros são de primordial importância para se compreender o fenômeno da cultura. Traços objetivamente semelhantes o geneticamente aliados podem ser utilizados em configurações diferentes, talvez, sem mudanças em detalhes. O que importa é o background emocional diante do qual tem lugar o ato nas duas culturas. Podemos ilustrar isso imaginando a dança Pueblo da serpente no ambiente da nossa própria sociedade. Entre os Pueblo ocidentais, pelo menos, dificilmente se sente repulsão pela serpente. Eles não têm um tremor fisiológico de repugnância ao tocar o seu corpo; na cerimônia, não fogem diante de uma aversão e horror profundos. Quando nos identificamos com eles, somos, emocionalmente, pólos separados, embora nos coloquemos meticulosamente no padrão de seu comportamento. Para eles, uma vez removido o veneno das cascavéis, toda a ação é como se fosse uma dança com águias ou com gatinhos. É uma expressão apolínea de dança completamente característica, ao passo que conosco, com a nossa reação emocional à serpente, a dança não pode manter-se a esse nível. Sem que se mude um item do comportamento externo da dança, sua significação emocional e sua função na cultura se invertem. E ainda muitas vezes, nas monografias etnográficas, não conseguimos ver esse background emocional mesmo em traços onde ele se torna de importância primordial, como, por exemplo, no sentimento para com o cadáver. Necessitamos de muito mais dados provindos do campo de pesquisas, e a isto relacionados, para avaliar o background emocional. 4 H. K. Haeberlin The Idea of Fertilization in the Culture of the Pueblo Indians, American Anthropological Association, Memoirs 3, n°1, 1916. 7 A situação que mais ocorre é aquela em que o traço cultural é elaborado de novo para exprimir a padronização emocional diferente, característica da cultura que o adotou. Esta reelaboração de traços de comportamento muito difundidos, em configurações diferentes de cultura, só pode ser adequadamente descrita quando há uma quantidade muito maior de dados colhidos em campo e apresentados deste ponto de vista, e quando há uma concordância muito maior por parte dos antropólogos quanto às padronizações pertinentes. Contudo, das monografias existentes, se tornaram claras certas configurações de cultura, e não só da América, nem talvez principalmente daí. Contudo, a fim de estabelecer a validade do argumento que estou apresentando, vou limitar-me aos traços difundidos na América do Norte e discutir apenas traços culturais norte-americanos bem conhecidos e o modo pelo qual foram moldados pela forças dominantes de certas culturas contrastantes. Já me referi aos ritos de morte. Há dois aspectos envolvidos nessas práticas que considerarei separadamente: de um lado, a situação de pesar, por morte de alguém e de outro, a situação do indivíduo que matou outro. A situação de pesar é caracteristicamente tratada nas culturas dionisíaca e apolínea de acordo com os bias respectivos. O comportamento dionisíaco para aquele que sofreu a perda de alguém tem encontrado diversas expressões na região da América do Norte que estamos discutindo. Entre os índios das Planícies ocidentais era uma violenta expressão de perda e de transtorno. A completa submissão aos impulsos tomava a forma de automutilação, especialmente para as mulheres. Elas golpeavam as cabeças, as pernas, decepavam os dedos. Longas filas de mulheres marchavam pelo campo após a morte de uma pessoa importante, as pernas nuas sangrando. Deixavam secar o sangue nas pernas e na cabeça, e não o removiam. Quando o corpo era tirado para o enterramento, jogavam-se ao chão todas as coisas da cabana, para que ninguém que não fosse parente ficasse com alguma coisa. A cabana era derrubada e dada a outrem. Logo todas as coisas se iam e à viúva só restava o cobertor que a cobria. À beira da sepultura eram mortos os cavalos prediletos do homem e, tanto os homens quanto as mulheres, lamentavam o morto. Uma esposa ou filha podia permanecer à beira da sepultura, lamentando-se e recusando-se a comer, por vinte e quatro horas, até que os parentes a 8 arrancassem daí. De vez em quando, mesmo vinte anos depois de ocorrida uma morte, passando pela sepultura, elas choravam pelo morto.5 Por ocasião da morte de crianças, especialmente, dá-se livre curso ao pesar. Algumas vezes um ou outro dos pais recorre ao suicídio. De acordo com Denig, entre os Assiniboine: “Se uma pessoa ofendesse o progenitor durante esse tempo, a morte dessa pessoa certamente se seguiria, pois o homem que está em pesar profundo procura alguma coisa em que descarregar sua vingança, indo logo para a guerra, para matar ou ser morto, sendo ambas as coisas indiferentes para ele nesse estado.”6 Tais descrições são características do luto dos índios das Planícies. Elas têm em comum padrões sociais fundamentais de pesar violento e não inibido. Isto nada tem a ver, naturalmente, com a questão de se saber se esta é a emoção despertada em todos aqueles que participam dos ritos; o ponto de que se trata é apenas de que nessa região o comportamento institucionalizado nesta crise é moldado de acordo com o livre curso dado às emoções. Numa cultura típica apolínea como a do pueblo de Isleta, por outro lado, o luto como se dá entre os índios das Planícies é inconcebível. Isleta, como qualquer outra sociedade apolínea, está provida de regras pelas quais proscreve a violência e os estados de espírito agressivos de qualquer espécie. Repugna-lhe o exagero em sentimentos e, mesmo na morte, que é a mais inflexivelmente inevitável das ocasiões trágicas da vida, aquilo em que eles mais se empenham é conseguir uma rotina para continuar a vida com o menor transtorno possível. Em Isleta, um sacerdote conhecido por Mãe-Milho Prêto e que é funcionário de uma das quatro divisões “milho” dos Pueblo, oficia por ocasião da morte. É imediatamente chamado e prepara o cadáver, escovando-lhe o cabelo e lavando e pintando-lhe a face com marcas de identificação para indicar a afiliação social do morto. Após isso, entram os parentes, cada um trazendo uma vela para o morto, e então o “Mãe-Milho” reza e manda todos embora de novo. Depois que estes saem, ele e seus auxiliares “alimentam” o morto ritualmente com a mão esquerda ― associados aos espíritos ― e fazem um altar na sala. Apenas uma vez mais durante todo esse ritual dedicado ao morto são os parentes admitidos na sala e isto quando o sacerdote apronta um pequeno fogo com os cabelos que saíram da cabeça do morto quando escovados. Os 5 George Bird Grinnel, The Cheyenne Indians, 2:162. Yale University Press 1923. 6 Denig. The Assiniboine. Bureau of American Ethnology, Reports, 46: 573. 9 que foram atingidos pela perda respiram a fumaça disto e cessarão por este modo de entristecer-se pelo morto. O enterramento tem lugar no dia seguinte, mas a família e os parentes permanecem ritualmente tabu por quatro dias ficando retirados na casa do morto, recebendo do sacerdote certas abluções rituais. As formalidades que mais aproximadamente correspondem ao enterramento em outras regiões são levadas a efeito quando do enterramento de alimentos para o morto no quarto dia. Dirigem-se para fora da aldeia para este fim e, depois de terminar tudo, quebram o pote em que levaram a água e a escova de cabelo usada para preparar o corpo para o funeral e na volta marcam o seu caminho com profunda incisão feita com uma faca de sílex. Põem-se à escuta e ouvem o morto vir, de longe, para o lugar onde enterraram alimento para ele. A casa enche-se de pessoas que esperam a volta dele, e o “Mãe-Milho Preto” faz-lhes um sermão dizendo que esta é a última vez em que tem de temer a volta do morto. Os quatro dias foram como quatro anos para ele e, portanto, aqueles que ficaram serão os mais prontos a esquecer. Os parentes retornam aos seus lares, mas os companheiros de casa observam os tabus ordinários para pureza ritual por mais oito dias, depois do que está tudo acabado. O “Mãe-Milho Preto” dirige-se ao cacique e devolve-lhe o poder que dele recebeu e que precisa sempre receber dele para todas as mortes, do qual. Pode dispor assim quando não é compelido a exercê-lo. Este é um traço apolíneo característico, e muito comum entre os índios do sudoeste dos Estados Unidos.7 Não há aqui submissão franca e institucionalizada ao pesar - ninguém decepa os dedos, nem corta o cabelo, ninguém golpeia o corpo, não se destrói a riqueza, nem mesmo se faz a sua distribuição. Em lugar da insistência sobre o luto prolongado por parte dos mais estreitamente atingidos pela perda, acentua-se só o esquecimento imediato. As duas descrições são naturalmente tipos conhecidos de comportamento contrastado e são aqui institucionalizadas por duas culturas contrastantes. Em face da oposição evidente destes dois tipos institucionalizados de comportamento, é à primeira vista um tanto bizarro agrupá-los e colocá-los, como se fossem um tipo só, em posição de contraste com um terceiro tipo. E, contudo, o que se pode dar, na verdade. Nos seus contextos diferentes, os índios do Sudoeste e os das Planícies são semelhantes no sentido de não darem ênfase a idéias de poluição e medo. Isto não quer dizer que o temor da contaminação ou do perigoso poder dos mortos nunca 7 Vide o estudo de Esther Schiff Goldfrank sobre Isleta. 10 se possa descobrir nessas regiões; são atitudes potenciais humanas e talvez não haja cultura hermeticamente fechada a elas. Mas a cultura não lhes dá ênfase. Em contraste com as tribos não Pueblo de Sudoeste, por exemplo, estas duas se assemelham por voltarem de um modo realista o seu comportamento na direção da situação relativa à perda, em lugar de elaborarem romanticamente a situação relativa ao perigo. Em Isleta, o chefe do clã, oficiando em ocasião de morte não tem de ser purificado, e o anátema do contato com o morto é dele removido uma vez cessados os ritos; ele deixa de lado suas prerrogativas oficiais de encarregado de lidar com o morto, como deixaria sua estola. Não foi poluído pela função que desempenhou. Nem tem o fogo feito com os cabelos do morto para os parentes respirarem a finalidade de colocá-los fora do alcance da vingança do morto, mas sim a de fazê-los esquecer depressa.8 Quebram a sua escova de cabelos e não os ossos de suas pernas, porque aquilo que simbolizam é o fim da vida desse homem e não precauções a respeito de sua inveja e vingança. De modo semelhante, nas Planícies 9 a distribuição de riquezas e a degradação da aparência pessoal, o que é tão comumente um estratagema para evitar a inveja do morto, vem a ser apenas um gesto de pesar e associado com outras manifestações de esquecimento de si próprio e da rotina de todos os dias, tais como retirar-se sozinho para as planícies para lamentar-se, ou partir “para matar ou ser morto, sendo-lhe uma ou outra coisa indiferente” no seu sofrimento. Não destroem. o tipi e todos os cavalos do morto, pois não estão preocupados nem com a contaminação do cadáver, nem com a maldade do espírito do morto para com aqueles que continuam a aproveitá-los. Ao contrário, seu único pensamento é passá-los adiante. Nem fazem uso eles deste tema comum para moldar uma situação de perigo, isto é, o tema do temor e ódio da pessoa que usou o poder sobrenatural para causar aquela morte. Estes temas, contudo, são a verdadeira base da cerimônia do luto nas regiões circunvizinhas. Não é raro acharem-se ritos mortuários não dirigidos para a situação de perda, mas de todo preocupados com a contaminação. Os Navaho de modo algum são exemplos extremos. Os padres franciscanos 10 contaram-nos que, nos tempos mais antigos, empregavam-se escravos para preparar e transportar o corpo, e que estes eram mortos à beira da sepultura. Agora são os membros da família que precisam expor-se a 8 Em Zuñi, contudo, certas atitudes da “dança do escalpo” estão explicitamente associadas à viúva e ao viúvo. Vide adiante. 9 Excluí em toda esta exposição os Sioux de Sul. 10 An Ethnologic Dictionary of the Navajo Language, St. Michael’s, Arizona, 1910, p. 454. 11 tal contaminação. Homens e mulheres despem-se até ficarem só com uma tanga, para executar a tarefa, e deixam o cabelo solto, de modo que nem mesmo a tira que o prende possa ficar exposta. Para os Navaho seria inconcebível qualquer tipo de comportamento dos que estivemos descrevendo. Acompanham o corpo apenas aqueles que, dado o seu parentesco chegado, não podem evitar esse dever. Quatro pessoas são necessárias, uma para levar o cavalo predileto que deve ser morto à beira da sepultura do dono, duas para carregarem o corpo, e outra para avisar os passantes ao longo do caminho de que devem desviar-se e livrar-se da contaminação. Para se protegerem, guardam os enlutados silêncio absoluto. Nesse meio tempo, queima-se completamente a cabana em que ocorreu a morte. Todos os membros da família jejuam por quatro dias e durante este tempo um guarda adverte os que chegam para que se afastem do caminho entre a cabana e a sepultura a fim de evitarem o perigo.11 Além do temor dominante da poluição, tem os Navaho um forte temor também da volta do espírito. Se uma mulher deixa de jejuar ou quebra o silêncio, isto mostrará ao morto o caminho de volta e o espírito prejudicará o criminoso. Este mal-estar dos vivos diante dos mortos é quase universal, embora assuma muito diferentes proporções nas diferentes culturas. Por outro lado, a temida disposição para a vingança que tem o espírito do morto, e sua malevolência para com aqueles que foram poupados pela morte, não são tão populares na América do Norte na elaboração da situação de horror quanto o são na América do Sul, e em outras partes do mundo. É um tema que para Crawley, por exemplo, é fundamental nas práticas mortuárias, e é de admirar que deva desempenhar na América do Norte um papel tão secundário. Um dos exemplos mais claros neste continente é dado pelos índios Fox. Os Algonquinos do Centro crêem firmemente que os mortos tem que vencer, ao longo do seu caminho, antagonistas cruéis, e o costume de enterrar armas com o corpo visava possibilitar-lhe a defesa contra eles. Entre os Winnebago, também, 12 os machados de guerra eram enterrados com o morto, de modo que ele pudesse matar animais que encontrasse no seu caminho e seus parentes nesse mundo fossem favorecidos de modo semelhante. Mas Jones registra que entre os Fox era freqüente pedirem os moribundos para serem munidos, na sepultura, de um machado 11 Gladys A. Reichard Social Life of the Navajo Indians. Columbia University, Contributions to Anthropology 7:142. 12 Paul Radin, Journal of American Folklore, 22:312. 12 de guerra, a fim de se protegerem contra o Quebra-Caveiras; mas isso os vivos não faziam por serem os mortos temidos e era de se desejar ficassem eles desarmados. Portanto, eles ficavam impotentes diante do Quebra-Caveiras, que tira de cada um uma colherada de cérebro.13 Os Mohave, por outro lado, davam muita importância ao temor e à culpa do médico-feiticeiro que, por meios sobrenaturais, causara a morte. Um vidente era empregado para visitar a terra dos mortos após uma morte. Se o morto aí não estivesse, ficava-se sabendo que o médico-feiticeiro que o assistira era culpado. “É da natureza desses médicos-feiticeiros matarem pessoas dessa maneira, assim como é da natureza dos falcões matarem passarinhos para viver”, disse um Mohave de 80 anos. Um homem. rico continuava rico no outro mundo e todos aqueles que um médico-feiticeiro matou ficavam sob sua chefia. E ele desejava um grande bando de ricos. “Matei apenas dois. Quando morrer, quero mandar num bando maior do que esse”.14 Quando se atribui a culpa a um médico-feiticeiro, qualquer pessoa pode tomar a si matá-lo. O médico-feiticeiro confessava abertamente sua cumplicidade. Ele podia segurar uma vara diante de um homem e dizer: “Matei seu pai”. Ou podia vir e dizer a um doente: “Você não sabe que sou eu que o estou matando?” “Será que eu preciso agarrar você e despachá-lo por minhas mãos antes que você tente matar-me?”15 O que importa é que isto é matar por meio do sobrenatural. Nunca houve suposição de que fosse costume de um médico-feiceiro usar veneno ou faca. Trata-se de uma situação de culpa e terror aberta e declarada, situação mais comum na África do que entre as tribos da América do Norte. Convém comparar esta atitude Mohave com as teorias de feitiçaria dos Pueblo. Em Zuñi a situação de pesar relativa à perda de uma pessoa não se transforma numa situação de feitiçaria e de vingança tomada pela feitiçaria; a perda é tomada como perda, conquanto seja claramente acentuado o fato de que se deve acabar com a situação logo que possível. Apesar do grande medo a respeito de feiticeiros, o qual está sempre presente entre os Pueblo, quando da verdadeira morte pouca atenção se dá à possibilidade de sua cumplicidade. Somente numa epidemia, quando a morte se torna uma ameaça pública, é que a teoria do feitiço entra em ação. E aí se trata de uma 13 William Jones, International Congress of Americanists, 15:266. 14 John J. Bourke, Journal of American Folklore, 2:175, 1889. 15 A. L. Kroeber, Handbook of the Indians of California, Bureau of American Ethnology, Bulletin 78:778. 13 neurose de medo por parte da comunidade, e não de uma situação dionisíaca dependente, como a dos Mohave, do exercício da vontade do xamã para o poder sobrenatural, e da atitude ambivalente do grupo para com esse poder. Duvido que alguém em Zuñi possua quaisquer técnicas de feitiço que realmente pratique; ninguém desafia outra pessoa diante de um morto ou de um moribundo. Nunca é o médicofeiticeiro aquele que, em, virtude de seus poderes médicos, também traz a morte e encerra em sua única pessoa os duplos aspectos de poder dionisíacos característicos. A morte não é dramatizada como se fosse um duelo entre um xamã, considerado como uma ave de rapina, e sua vítima. Mesmo a existência de todas as idéias essenciais entre os Pueblo - é interessante que elas são em grande parte européias nos seus pormenores não leva a esta interpretação dionisíaca da morte. Há outros temas sobre os quais situações de perigo podem ser e têm sido desenvolvidas em torno da morte, em diferentes culturas. O ponto de que precisamos para a nossa exposição é que a submissão dionisíaca à emoção por ocasião morte pode ser institucionalizada em torno do pesar verdadeiro quando da perda de um membro da comunidade, ou em torno de várias idéias, tais como a contaminação, a culpa, e a disposição à vingança por parte dos mortos. O contraste entre culturas que se entregam a idéias de perigo desta espécie em toda situação da vida, e aquelas que não o fazem, é tão flagrante como aquele entre os tipos apolíneo e dionisíaco. As mais ricas coleções de dados primitivos sobre a “situação de perigo” são, naturalmente, os vários trabalhos de Crawley. Este foi o assunto mais proeminente em toda a sua obra, e o que ele interpreta como uma tendência universal na sociedade humana. Trata-se, certamente, de uma tendência que é comum no comportamento institucional, mas apesar de sua ampla distribuição, é uma configuração de cultura particular, e configurações contrastantes desenvolvem seus comportamentos contrastantes. Às culturas em que os contatos humanos, as crises da vida e uma grande série de atos são encarados de um modo realista, e especialmente sem a metamorfose por que passam em conseqüência dos padrões de medo e contaminação que estivemos discutindo, e culturas estas em que isto é institucionalizado, eu chamarei “culturas realistas”. Às culturas do tipo oposto eu chamarei simplesmente “não realistas”. Admito que isto seja terminologia inadequada. A antítese de William James sobre o indivíduo de “mente rija” (tough-minded) e o de “mente débil” (tender-minded) aproxima-se 14 também da distinção que desejo fazer, mas, substituir estas expressões por mentalidade “sadia” e “enferma”, como ele faz, traz uma implicação que desejo evitar. Temos de contentar-nos em dizer, penso eu, que as culturas que institucionalizam a morte como perda, a adolescência como o fato do indivíduo tornarse adulto, o casamento como escolha sexual, o matar como sucesso numa luta, e assim por diante, contrastam fortemente com aquelas que vivem numa “caverna de Aladino” onde tudo é algo além. Serem as situações principais da vida tão poucas vezes interpretadas culturalmente nesta maneira direta e realista é, por certo, um dos fatos mais flagrantes da Antropologia. São, de fato, as instituições realistas aquelas que pareceriam ter sido menos completamente consideradas. A cultura humana em geral tem se baseado, por toda a sua história, em certas noções não realistas, das quais o animismo e o incesto são aquelas que ocorrem a todo antropólogo. O temor do espírito de um morto - não de sua inimizade ou disposição à vingança, o que se encontra apenas localmente, mas de seu simples espectro - é outra. Estas noções parecem ter condicionado a espécie humana desde o princípio e, como é óbvio, é impossível retornar aos seus começos ou discutir as atitudes que lhes deram origem. Para os fins desta exposição, precisamos aceitá-las como temos de aceitar o fato de possuirmos cinco dedos. Mesmo os índios das Planícies, realistas como são, não se desfizeram delas, embora as unem de um modo mais realista do que outras culturas. Na região de que estamos tratando, as culturas dionisíacas são intercruzadas por esta antítese realista-não realista, institucionalizando, os índios das Planícies o excesso e a submissão completa aos impulsos sem elaborarem situações de perigo, e levando os índios não Pueblo de Sudoeste, os Shoshone, e os da Costa Noroeste, essas situações de perigo a extremos. As culturas realistas, de modo semelhante, são dionisíacas entre os índios das Planícies e apolíneas entre os Pueblo. As duas categorias operam em nível diferente e se intecruzam. É difícil, contudo, imaginar uma cultura apolínea baseando-se em padrões de perigo fundamentais, e certamente este tipo não se acha na região que estamos considerando. É impossível dizer tudo aqui a respeito da consistência desta configuração realista entre os índios das Planícies ocidentais; seria necessário primeiro diferenciar seu comportamento institucional do dos Pueblo apolíneos e então do romantismo que se tece a seu respeito. Em se tratando do povo diretamente a oeste, os Shoshone, as 15 diferenças de comportamento que desejo acentuar já foram apontadas por Lowie.16. Ele dá notícia da mudança em aspecto emocional nos tabus menstruais17 e do desaparecimento dos costumes a isso pertinentes. O nascimento e a mulher em menstruação foram dois dos grandes pontos de partida para a elaboração de “mente débil” quanto ao horror e ao inexplicável. Entre os índios das Planícies, como os Pueblo, não se acha o traço. Lowie salienta o fato, também, de que os das Planícies, como os Pueblo ainda, contrastam com os grupos ocidentais quanto ao fato de ignorarem o traço não realista de ficar o marido também recolhido por ocasião do nascimento do filho. Formas atenuadas da couvade são a regra para os Shoshone, os povos do Plateau, os da Califórnia. A couvade não é um traço das Planícies. A mesma desinclinação é evidente na atitude contrastante para com o nome.18 Os nomes nas Planícies não constituem uma parte mística da personalidade de alguém; são denominações realistas em muito do nosso próprio sentido. Não constitui insulto pesado pedir o nome de alguém. Ainda mais, não é uma questão de vida e de morte usar o nome de uma pessoa depois de sua morte. Entre os Karok,19 por exemplo, precisa recair sobre este ato o mesmo castigo como se se tratasse de ter tirado a vida de um homem. É uma ficção alheia às Planícies. Há, portanto, um considerável número de razões para se pensar que a atitude que notamos nas cerimônias de luto nas Planícies, em contraste com as do oeste e sul (Navaho e Pima), são características para sua cultura. De um modo mais notável do que todos, talvez, salienta Lowie que entre os índios das Planícies ocidentais a vingança contra o médico-feiticeiro é atípica, ao passo que é assinalada entre os Shoshone e os índios da Califórnia central. Acredito que isto pode ser afirmado ainda com mais força. Em qualquer outra parte do mundo que não a América do Norte, poderíamos francamente referir-nos à atitude que é constatemente encontrada desde a Colúmbia Britânica até os Pima, como feitiçaria, e ao assassínio do xamã como vingança tomada contra o feiticeiro. Os das Planícies simplesmente não fazem nada deste padrão. Usam o poder sobrenatural para levar avante os seus próprios feitos como guerreiros, e não para 16 “The Cultural Connection of California and Plateau Shoshonean Tribes”, University of California Publications of American Archeology and Ethnology, 20: 145-156. 17 Ibid., p. 145. 18 Lowie, ibid., 149. 19 Stephen Powers, “Tribes of California” Contributions to North American Ethnology, 3:33,1877. 16 fazer ameaças. A feitiçaria é a principal institucionalização do temor do mundo que tem o neurótico, e não encontra lugar desde os Blackfoot até os Cheyenne. Antes de continuarmos com outros exemplos de práticas de luto em outras configurações, será preferível, para fins de clareza, ilustrar as configurações que vimos de discutir por meio de outra situação: a situação do homem que matou outro. Isto põe em relevo as atitudes que estivemos discutindo. A “dança do escalpo” dos Cheyenne é característica da configuração das Planícies. Tremenda exaltação dionisíaca é atingida, mas não por via de idéias de horror ou contaminação ligadas ao cadáver; é um triunfo sem inibições, uma contemplação satisfeita do inimigo que foi morto. Aquele que faz o escalpamento não está sujeito a uma maldição que a dança tenha por função remover. Não há idéia do poder temível do escalpo. É uma ocasião de completa alegria, uma festa de triunfo, e a resposta a uma prece feita entre lágrimas. Antes de se porem a caminho da guerra, tudo é solenidade e devoção, mesmo tristeza, a fim de obter a piedade do sobrenatural.20. Tudo muda, porém, na volta com os escalpos. Os guerreiros invadem de surpresa o próprio acampamento pela madrugada, a hora preferida para o ataque índio, as faces sujas em triunfo “... dando tiros com suas espingardas e brandindo os paus onde estavam os escalpos arrancados. O povo estava excitado e saudava-os com gritos. Tudo era alegria. As mulheres entoavam cânticos de vitória... Na fileira da frente estavam aqueles que tinham... escalpos... Algumas lançavam os braços ao pescoço dos guerreiros vitoriosos. Velhos e velhas entoavam cânticos em que se mencionavam os nomes. Os parentes daqueles que se tinham colocado na primeira fileira... testemunhavam a sua alegria dando presentes aos amigos ou às pessoas pobres. Toda a multidão se dirigia para onde morava algum homem valente, ou para onde morava seu pai, e aí se dançava em sua honra. Preparavam-se para dançar toda a noite, e talvez para continuarem nessa dança por dois dias e duas noites.21 Grinnell refere-se especialmente ao fato de que não se reconhecia por meio de cerimônias o sacerdote ou os seus serviços, quando voltavam os guerreiros. O escalpo era emblema de vitória e motivo de regozijo. Se membros do grupo guerreiro tivessem sido mortos, jogavam-se fora os escalpos e não havia a “dança do escalpo”. Mas se o guerreiro que tinha sido morto tivesse escalpado um inimigo antes de morrer, não havia 20 Powers, ibid., 22. 21 Grinnell, op. cit., 6-22. 17 ocasião para tristeza, tão grande era a honra, e prosseguia a celebração, da vitória com os escalpos. Todo mundo participava da “dança do escalpo” De acordo com o seu caráter social ela estava a cargo de berdaches, que eram aqui os casamenteiros e constituíam “boa companhia” e que tomavam o lugar do parente do sexo feminino que usualmente tem papel tão saliente. Eles dirigiam por palavras as danças e traziam os escalpos. Os velhos e velhas apareciam como palhaços, e, como se faltasse algo para acentuar a ausência entre os Cheyenne do terror e perigo relativos ao inimigo aniquilado, diz Grinnell que alguns desses estavam vestidos de modo a representar os próprios guerreiros cujos escalpos eram o centro da cerimônia. 22. Este comportamento das Planícies era inconcebível para os índios de grande parte do continente. Na faixa sul dos Estados Unidos, dos Natchez até os Mohave ― com exclusão dos Pueblo, por enquanto - a atitude oposta atinge o máximo. Sobre toda esta área o ponto essencial da “dança do escalpo” era o grande e perigoso poder sobrenatural do escalpo e a maldição que precisava ser removida do matador. Isto fazia parte de todo o seu temor de “mente débil” diante de forças obscuras e inexplicáveis. Há anos atrás, quando da luta armada do governo contra os Apache, as inflexíveis cerimônias de purificação dos Pima quase anularam a sua utilidade às tropas do governo como aliados. Sua lealdade e bravura estavam fora de dúvida, mas, depois da morte de um inimigo, cada matador precisava retirar-se durante vinte dias de purificação ritual. Ele escolhia um “pai ritual” que cuidava dele e desempenhava os ritos. Este pai tinha também matado e passado pelas cerimônias de purificação. Seqüestrava o matador no mato, num pequeno buraco no chão, onde ele ficava jejuando por dezesseis dias, dando de quatro em quatro dias um mergulho no rio, fosse qual fosse o tempo, o mudando aí ligeiramente as regras do jejum. Entre os Papago, o pai dá-lhe alimento na extremidade de uma longa vara.23 Sua esposa tem que observar tabu semelhante em sua própria casa. No décimo-sexto dia tem lugar a dança. O matador senta-se de novo em um pequeno buraco no centro do círculo de dança, uma cavidade que lhe permite apenas a posição mais encolhida, e os “bravos”, homens que foram qualificados como guerreiros, dançam para ele. O fim da cerimônia Papago é o rito de lançar ao rio o matador, mãos e pés ligados, após o que ele fica livre dos seus liames, 22 Ibid, 3944. 23 D. D. Gaillard, American Anthropologist (série antiga), 7: 293.296, 1894. 18 física e espiritualmente. Um pouco de cabelo do homem que ele matou é colocado pelo seu “pai” numa bolsa de pele de veado juntamente com uma pena de coruja para garantir a sua “cegueira” e uma pena de falcão para “matá-lo” e a cerimônia torna este remédio sujeito à sua vontade. Ele abraça a bolsa, chama-a “filha” e usa-a daí por diante para trazer chuva.24. A cerimônia toda tem por fim anular um perigoso poder e livrar o matador da maldição, e tornar o poder benéfico. Os Mohave tiveram uma cerimônia da qual temos menos pormenores. Só o mestre de cerimônias podia tocar o escalpo durante as cerimônias de quatro dias, e tinha que se incensar oito vezes por dia.25 Como salientei numa discussão anterior sobre o Sudoeste, não há em Zuñi traço cultural que apresente tantas semelhanças com as instituições fora dos Pueblo como a “dança do escalpo”. Do ponto de vista das atitudes Pueblo ela apresenta elementos flagrantemente atípicos, que são, contudo, bem conhecidos da região central da América do Norte. Um destes é o ato de morder o escalpo, de que há notícias em Laguna 26 e Zuñi. Este ato é desempenhado em face de um forte sentimento de que o escalpo contamina. Em Zuñi dizem que a mulher sobre a qual este ato recai é livre da maldição porque ela chega ao ponto de “agir como um animal”. E um reconhecimento quase suigeneris nesta cultura do estado de êxtase, e é exemplo de um traço cultural difundido, a “dança do escalpo”, o qual foi aceito entre os Pueblo sem a reconstrução que seria necessária para pô-lo de par com as suas atitudes dominantes. Aceito este fato, podemos examinar a “dança do escalpo” dos Zuñi, para ver em que direções ela se modificou nas suas mãos. Em primeiro lugar, eles modificaram a libertação da maldição, de modo que esta não é mais, como entre os Pima e Papago, uma dramatização de atitudes ambivalentes para com o sagrado - de um lado, o que polue, de outro, o que tem poder - mas é como qualquer retiro que se faz para se conseguir ser membro de uma sociedade. A “dança do escalpo” dos Zuñi é uma iniciação à sociedade policiadora do sacerdócio do arco. É absorvida no seu padrão de fornecer organizações fraternais formais para tratarem de todas as situações. A organização do sacerdócio do arco é complicada, tem responsabilidades especiais, 24 Russell, The Pima Indians. Bureau of American Ethnology, Reports: 26: 204; J. William Lloyd, Aw-awtan Indian Nights, 90. Westfield, New Jersey, 1911: e Benedict, ms. 25 Kroeber, Handbook, 752. 26 Franz Boas “Keres Texts”, Publications of the American Ethonological Society, 8: 290. 19 durante toda a vida. A maldição que recai sobre o matador e a libertação da mesma tomam lugar secundário com referência ao padrão de iniciação, até se tornarem novo conjunto de funções sociais. De modo semelhante, a limpeza do escalpo, que em culturas mais dionisíacas é feita com a língua, lambendo-se as gostas frescas de sangue, é para os Zuñi um rito de adoção, um batismo em água pura, o que é feito pelas irmãs do pai para dar “status” no clã. Esse rito deve ser executado não só por ocasião da adoção, como do casamento e, como vimos, na “cerimônia do escalpo”. A idéia que fundamenta o ato entre os Zuñi é a da adoção de uma influência nova e benéfica no “status” tribal - um exemplo claro, seguramente, de como as configurações Pueblo enfraquecem os comportamentos mais violentos. Sua atitude é especialmente clara nas preces da “dança do escalpo”: Pois é certo que o inimigo, Embora vivesse de destroços, Chegou à maturidade Graças à chuva caída pelas invocações dos Sacerdotes do Milho. (Assim ele cresceu em importância.) Embora o inimigo Quando vivo Fosse dado à falsidade, Agora se tornou capaz de augurar Como será o mundo, Como serão os dias... Embora não tivesse valor, Era um ser-das-águas E um ser-do-grão; Desejando as águas do inimigo, Cobiçando os seus grãos E sua riqueza, Vós esperareis com impaciência os seus dias (a “dança do escalpo”), Quando em água pura Vós tiverdes banhado o inimigo (escalpo) Quando na piscina do Sacerdote do Milho Ele tiver sido preparado, Todos os filhos do Sacerdote do Milho Entoando os cânticos dos antepassados Dançarão para ele. E quando os seus dias tiverem passado, Então um bom dia, Um lindo dia, Um dia de muito alarido, De muita alegria, Um bom dia, 20 Conosco, que somos vossos filhos, Vós passareis.27 Não é o terror, nem o horror, que encontra expressão em linhas como estas. Pelo contrário, a atenção é voltada de um modo realista para a existência mortal sem relevo do inimigo, fazendo-se o contraste com a sua beneficência presente quanto à chuva e as colheitas. Tanto a situação de perda de alguém por morte como a situação de assassinato mostram, portanto, fortes contrastes nas três configurações culturais norte-americanas que estivemos considerando. Vou escolher arbitrariamente uma outra configuração contrastante, que talvez em nenhuma outra parte do mundo seja tão bem ilustrada como na América do Norte. A busca de engrandecimento pessoal na Costa Noroeste é de tal maneira levada a efeito, que se aproxima de uma institucionalização do tipo megalomaníaco de personalidade. A censura sobre a qual se insiste em civilizações como a nossa, está ausente em auto-glorificações tais como um discurso público Kwakiutl; e quando se exerce a censura, como entre as tribos do golfo da Geórgia, seus auto-rebaixamentos não são, de modo patente, expressões de humildade, mas equivalentes das auto-glorificações tão comuns entre os Kwakiutl. Qualquer uma de suas canções serve para ilustrar o teor comum: Eu sou o grande chefe que faz as pessoas se envergonharem Eu sou o grande chefe que faz as pessoas se envergonharem Nosso chefe traz vergonha às faces. Nosso chefe traz inveja às faces. Nosso chefe faz as pessoas cobrirem as faces pelo que ele está sempre fazendo neste mundo Dando sempre festas de óleo para todas as tribos. 28 .......................................................................................................................... Eu comecei no mais alto das tribos. Bem feito! Bem feito! Eu vim rio-abaixo pondo fogo às tribos com minha tocha Bem feito! Bem feito! Meu nome, só o meu nome, deu-lhes a morte, eu, o grande Propulsor do mundo. Bem feito! Bem feito!29 É francamente acentuada a competição num jogo de elevar o próprio “Status” e de proteger-se pela humilhação dos companheiros. Num grau menor, esta busca de 27 Ruth Bunzel, Zuñi Ritual Poetry. Bureau of American Ethnology, Reports: 43. 28 Franz Boas, Ethnology of the Kwakiutl. Bureau of American Ethnology Reports, 35: 1291. 29 Ibid., 1381. 21 prestígio é característica dos índios das Planícies. Mas o quadro é agudamente contrastante. Os índios das Planícies não institucionalizam o complexo de inferioridade e suas compensações. Não se preocupam em descobrir insultos em toda situação. São tudo, menos paranóides. Mas é em termos desses determinados conjuntos psicológicos que a busca de engrandecimento pessoal é levada a efeito na cultura da costa do Pacífico Norte. O complexo de inferioridade, provavelmente, nunca foi institucionalizado com tanto alarde. Encara-se como insultos a maior amplitude de atos, não somente atos pessoais depreciativos mas todos os acontecimentos infelizes, como o golpe dado por um machado ou o virar de uma canoa. Todos esses acontecimentos ameaçam a segurança do ego dos membros dessa civilização de tipo paranóide, e, de acordo com o seu padrão, podem ser afastados pela distribuição de riquezas. Se não puderem ser, a resposta é perfeitamente característica: o amor-próprio é ferido e o homem retira-se para a sua cama por semanas, ou talvez, tira a própria vida. Este extremo de sentimento próprio negativo está bem distanciado das manifestações de vergonha devidas a exibições indecentes, ou à quebra de tabu, em outras regiões. É uma simples birra o comportamento de uma pessoa cujo amor-próprio é tudo o que ela tem e que foi ferida no seu orgulho. Todas as circunstâncias da vida são consideradas na Costa Noroeste, não como ocasiões para pesar violento, ou júbilo igualmente violento, ocasiões para livre gasto de energia de diferentes modos, mas primordialmente como promovendo, todas do mesmo modo, a competição pelo insulto. São ocasiões para a requerida luta por prestígio. O sexo, o ciclo de vida, a morte, a guerra, constituem todos matéria-prima quase equivalente para padronização cultural a este fim. A puberdade de uma menina é um acontecimento para o qual seu pai acumulou riquezas durante dez anos a fim de demonstrar sua grandeza por meio de uma vasta distribuição de riqueza; não é como um fato na vida sexual da menina que ele figura na cultura deles, mas como um degrau na escalada de seu pai para posição social mais alta, portanto para ela própria também. Uma vez que, nesta região, toda riqueza que é distribuída precisa ser devolvida com usura (do contrário aquele que recebe perderá inteiramente o prestígio) fazer-se alguém pobre é o primeiro ato na aquisição da riqueza. Mesmo uma briga com a esposa é coisa que só um grande homem se pode permitir, pois isso envolve a distribuição de toda a sua riqueza, até dos vigamentos de sua casa. Mas, o chefe, se tem bastante riqueza para 22 esta distribuição de propriedade, saudará a ocasião, da mesma maneira que faz quando da puberdade da filha, como um degrau na escada da ascensão.30 Isto aparece claramente na reinterpretação da situação de pesar por morte, nesta região. Mesmo o corte de cabelo por luto tornou-se não um ato de pesar por parte dos parentes próximos, mas o serviço da fratria oposta significando o seu tributo à grandeza do morto, e o fato de que os parentes do falecido podem recompensá-los. De modo semelhante, é também outro passo para cima na busca de prestígio e aquisição de riqueza. Todos os serviços para o morto são executados de modo semelhante. O que a sociedade acentua por ocasião de morte é a distribuição de riquezas por parte da fratria enlutada para a fratria oposta encarregada dos ritos. Sem referência ao seu caráter de situação de perda ou de perigo, a morte era usada, justamente como a ocasião da primeira menstruação da menina ou a de uma disputa doméstica, para demonstrar a boa situação econômica do grupo familiar e para rebaixar os pretendentes rivais à riqueza semelhante. Entre os Haida31 o grande potlutch fúnebre, um ano depois da morte e no qual era distribuída esta riqueza, organizava-se em torno da transferência da qualidade de membro da sociedade hibernal de dança, aos membros da fratria do hospedeiro por parte dos membros da fratria dos hóspedes, como retribuição à riqueza que estava sendo distribuída a eles - atividade sem dúvida que se refere a idéias de propriedade e prestígio e de cerimonial de inverno entre os Haida, e não à perda envolvida na morte, nem mesmo ao perigo associado ao cadáver ou ao espírito. Como dizem os Kwakiutl “eles lutam com a riqueza” ― isto é, para alcançar e manter status baseado na riqueza e nas prerrogativas herdadas; portanto, “eles lutam” também, com um funeral. Esta reinterpretação da situação de perda por morte em termos da “luta com a riqueza” é, contudo, apenas uma parte do padrão de comportamento da Costa Noroeste. Está acomodado também ao padrão de preocupação com o insulto. A morte de um parente, não apenas numa guerra, mas por doença ou acidente, era uma afronta a ser apagada pela morte de uma pessoa de outra tribo. As pessoas ficavam envergonhadas até que se tivessem acertado as contas. A pessoa que sofreu a perda era perigosa na maneira por que o é qualquer homem que tenha ficado deploravelmente envergonhado. Quando a irmã do chefe Neqapenkem e sua filha não voltaram de Victoria, diziam as pessoas, ou porque seu barco virara ou porque beberam uísque ruim, ele reuniu os guerreiros. 30 Boas, op. cit., 1359. 31 John R. Swanton, The Haida, Jesup Expedition Report, 5: 176, 179. 23 “Agora, pergunto a vocês, tribos, quem irá lamentar? Irei eu, ou algum outro?” O principal respondeu: “Você não, Chefe, deixe isto para algum outro das tribos”. Eles levantaram o bastão de guerra e os outros se adiantaram dizendo: “Viemos aqui pedirlhe para ir à guerra, pois qualquer outro pode fazer as lamentações pela morte de nossa irmã”. Começaram então com ritos guerreiros completos para “fazer afundar” o Saneteh pelos parentes mortos do chefe. Encontraram sete homens e duas crianças adormecidos e mataram-nos com exceção de uma menina que conservaram cativa.32 Ainda mais, tendo morrido o filho do chefe Qaselas, este, seu irmão e seu tio saíram para apagar a nódoa. Foram recebidos por Nengemalis na primeira parada que fizeram. Depois de terem comido, disse Qaselas: “Então Chefe, voltou contar-lhe as novas. Meu príncipe morreu hoje e você irá com ele. E assim eles mataram o anfitrião e sua esposa.” E Qaselas e seu bando sentiram-se bem quando chegaram a Sebaa pela tardinha ... Isto não se chama guerra, mas “morrer com aqueles que estão mortos”.33 Trata-se aí de pura caça de cabeças, uma versão paranóide do sentimento de perda por morte, que permanece quase único na América do Norte. Aqui a morte é institucionalizada em práticas tais como esta, como o principal exemplo dos incontáveis acontecimentos infortunados da vida que perturbam o orgulho de um homem e são tratados como insultos.34 Tanto a preocupação com prestígio como a preocupação com insultos, fundamentam também o comportamento centralizado em torno do assassinato de um inimigo. A “dança da vitória” tornou-se permanente, institucionalizando as sociedades as prerrogativas mais ferozmente guardadas dessas tribos; ela constitui uma das organizações de prestígio mais elaboradas de que temos notícia. O traço original sobre o qual é construída é preservado entre as tribos ao sul. Primeiro era uma “dança de vitória” com a cabeça do inimigo segura nos dentes. Como mostrou o Professor Boas, isto se tornou, à medida que se elaborou na configuração da Costa Noroeste, a dança 32 Boas, op. cit., 1363. 33 Boas, op. Cit., 1385. 34 Neste pequeno esboço acentuei os aspectos diferenciados do luto na Costa Noroeste e omiti a forte institucionalização da morte como impureza, nesta região, sendo este traço comum a regiões que discutimos. Não há área que tenha levado mais além a idéia de impureza - os enlutados, as mulheres em menstruação, as mulheres ao darem. à luz, homens e mulheres após relações sexuais, todos são impuros. Isto é institucionalizado de diversos modos em diferentes tribos, na medida em que entra em conflito com os mecanismos de prestígio. 24 canibal35 e o padrão das sociedades secretas. Os dançarinos das sociedades secretas Kwakuitl são ainda considerados “guerreiros”, e as sociedades, que atuam normalmente apenas durante a estação hibernal, sempre funcionam numa época de guerra, seja qual for a estação. Ora, essas sociedades secretas constituem as grandes confirmações de prestígio e de riqueza pela distribuição de posse, e a forma final na Costa Noroeste da idéia original da “dança da vitória” é, portanto, a de sociedades secretas enormemente elaboradas, rigidamente prescritas das quais a qualidade de membro estabelece e valida o status social.36 Sendo a força dominante a competição por prerrogativas, diferente se torna a situação da pessoa que matou outra. Podem-se obter prerrogativas, de acordo com a idéia deles, não só pela morte de parentes, mas pela de uma vítima, de modo que se uma pessoa foi morta pelas minhas mãos, eu posso reclamar suas prerrogativas. A situação do que mata não é, portanto, a de burlar uma aterrorizante maldição ou de celebrar um triunfo de bravura pessoal; é uma situação de distribuição de grandes quantidades de riqueza para validar os privilégios que ele tomou por violência no momento em que (incidentalmente, quanto a comportamento institucional) tomou também a vida do proprietário. Isto, é o tirar a vida perde importância diante do imenso edifício do comportamento próprio à configuração da Costa Noroeste. Tal como na situação de perda por morte, o padrão levou à institucionalização da caça de cabeças com todas as suas regras rígidas de procedimento. Meled matou o chefe do grupo local Gexsem. “Se ele (Meled) tivesse pago uma moeda ou se tivesse dado sua filha em casamento ao irmão mais velho daquele que ele atirou, então seu grupo local teria sido desonrado, porque ele pagou para não ser morto em troca. Só pagam aqueles que são fracos de espírito”. Ele não pagou, e foi morto em vingança. Mas o homem que o matou à primeira vista não era membro do grupo local do chefe cuja morte estava vingando. A mãe desse chefe pagou ao vingador um escravo, mas o que aconteceu constituía uma desgraça para o grupo local dela e, a despeito da morte de Meled, não se tinha por certo que a nódoa sobre o nome do grupo local do chefe morto tivesse sido 35 12th and Final _Report on the North-Western Tribes. British Association for the Advancememt of Science, 51, 1898. 36 É óbvio, pela natureza do caso, que este jogo de prestígio da Costa Noroeste pode ser desempenhado apenas por membros selecionados da comunidade. Uma grande parte da tribo não constitui mais do que a assistência desses atores principais, e a configuração de vida para eles necessariamente difere. Precisamos compreender, particularmente, essas culturas de “fãs” e as atitudes psicológicas características dos atores, de um lado, e, de outro, daqueles que constituem a assistência. 25 apagada. “Se outro homem do grupo local Gexsem tivesse matado Meled, então não teria havido desonra para o seu grupo, e todos os homens teriam deixado de falar sobre 37 isso. A morte na Costa do Pacífico Norte é, portanto, antes de tudo, uma situação de insulto e uma ocasião para a validação de prerrogativas. É absorvida na configuração característica desta região e feita para servir as tendências dominantes na sua cultura. Há naturalmente aspectos de cultura, especialmente de cultura material, que são independentes de muitos dos fins e virtudes que uma sociedade pode fazer para si mesma. Não quer dizer que a sorte do arco enrolado com tendões de animais dependerá do fato de ser a cultura dionisíaca ou apolínea. Mas o âmbito de aplicação do ponto que estou apresentando é contudo maior do que geralmente se supõe. Radin, por exemplo, sustentou de modo muito convincente, baseado no material Winnebago, a grande importância da individualidade e da iniciativa individual “entre os primitivos”.38 Ora, os índios das Planícies e os Winnebago dão, entre os nossos exemplos mais importantes de primitivos, segundo todos os observadores, grande valorização cultural ao indivíduo. A este se permite iniciativa institucionalmente garantida em sua vida, como não se pode facilmente encontrar em outras regiões. Basta comparar esses índios com os Pueblo, para se compreender que a hipótese de Radin, quanto à iniciativa pessoal muito grande, é um fato de primordial importância entre os Winnebago e os índios das Planícies ocidentais, mas não extensivo à toda a cultura primitiva.. Trata-se de uma atitude a ser estudada, independentemente, em cada área. O mesmo é verdade também da descrição de Malinowski do modo pelo qual os Trobriandeses os povos da Melanésia em geral, bem podemos acrescentar - fizeram da reciprocidade um traço básico de comportamento na sua cultura. Ele descreve as obrigações recíprocas de gente do mar e de terra, de chefe e subordinados, das duas divisões da casa, de marido e esposa e de outros determinados parentes em reciprocidade e daí deduz que “tradição” é uma palavra fraca invocada pelo antropólogo para encobrir a nossa ignorância daquilo que realmente mantém coesa a “sociedade”, função que é desempenhada pela reciprocidade. Mas esta organização da sociedade aqui é de um tipo definido, altamente incaracterístico, digamos, da Sibéria, e fundamental em 37 Boas, op. cit., 1360. 38 Primitive Man as Philosopher, p. 32 e seg. 26 qualquer descrição da Melanésia. De que modo ela está ligada às atitudes fundamentais, nessa região, ainda está por definir. As configurações culturais estão, para a compreensão do comportamento de grupo, na relação em que os tipos de personalidade estão para a compreensão do comportamento individual. No campo psicológico não se dá mais ao comportamento a mesma interpretação, digamos, para o tipo ciclóide e para o tipo esquizóide. Reconhecese que, na compreensão ou mesmo na mera descrição do comportamento individual, é ponto crucial. a organização da personalidade total.39 Se isto é verdadeiro na Psicologia Individual, onde a diferenciação individual tem sempre que ser limitada pelas formas culturais e pela curta duração de uma vida humana, é ainda mais imperativo na Psicologia Social, onde são sobrepujadas as limitações de tempo e de conformidade. O grau de integração que pode ser alcançado é, naturalmente, sem comparação, maior do que o que sempre se pode achar na Psicologia Individual. Deste ponto de vista, as culturas são projeções ampliadas da Psicologia Individual, com proporções gigantescas e uma longa duração de vida. Esta é uma interpretação de Psicologia Cultural tirada da Psicologia Individual, mas não está sujeita às objeções que sempre se tem que opor a versões tais como as de Frazer ou Lévy-Bruhl.40 A dificuldade de se interpretarem as prerrogativas do marido como devidas ao ciúme, ou as sociedades secretas como devidas ao caráter exclusivo dos grupos de idade e de sexo, é que isto põe de lado o ponto crucial, o qual não é a ocorrência do traço, mas a escolha social que elegeu a sua institucionalização nessa cultura. A fórmula é sempre sem valor diante da situação oposta. Na interpretação das configurações culturais tal como apresentei nesta discussão, é esta escolha da sociedade que constitui o ponto crucial do processo. É provável que haja potencialmente mais ou menos a mesma amplitude de temperamentos e dotes individuais, mas do ponto de vista do indivíduo no limiar dessa sociedade, cada cultura já escolheu, certos desses traços para se constituir, e certos outros para por de lado. O fato central é que a história de cada traço é compreensível exatamente em termos de ter passado pelo crivo da aceitação social. Isto envolve um outro aspecto do problema de configurações culturais, aquele que diz respeito ao ajustamento do indivíduo à sua sociedade. Como dissemos, é 39 William Stern, Die menschliche Personlichkeit, Johann Ambrosius Barth, Leipzig, 1919. 40 Vide Clark Wissler, Science, 63: 193-201, 1916. 27 provável que mais ou menos a mesma amplitude de temperamentos individuais seja encontrada em qualquer grupo. Mas o grupo já fez sua escolha daqueles dotes e peculiaridades humanos que irá usar. Das pequenas tendências nesta ou naquela direção, ele se inclinou tanto para uma delas, que manipulação alguma pode mudar agora sua direção. A maioria das pessoas que nascem na cultura tomará a tendência desta e, com toda a probalidade, a fará inclinar-se ainda mais. São mais afortunados aqueles cujas disposições inatas estão de acordo com a cultura em que acontece terem nascido - os de tendências realistas que nasceram entre os índios das Planícies ocidentais, os que são sujeitos a “ilusões de referência” que nasceram na Costa Noroeste, os apolíneos que nasceram entre os Pueblo, os dionisíacos que nasceram entre os índios norte-americanos que não os Pueblo. Na situação particular que estivemos discutindo, a pessoa que tende a entregar-se violentamente ao pesar está culturalmente bem aparelhada entre os Cheyenne; aquela que teme a expressão violenta e que deseja recobrar-se da situação penosa com um mínimo de expressão, em Isleta. A pessoa que é muito sensível a referência pessoal em qualquer situação da vida, mesmo na morte, encontra suas tendências paranóides bem canalizadas entre os Kwakiutl De modo contrário, mal ajustada é a pessoa cujo tipo de disposição não é acentuado pela sua cultura. O dionisíaco que nasceu entre os Pueblo precisa reeducar-se ou então nada será na sua cultura. De modo semelhante, o apolíneo, na Califórnia, é afastado da atividade social enquanto não pode aprender a tomar para si o comportamento institucionalizado local. A pessoa que não interpreta prontamente os acontecimentos externos como insultos, apenas com extrema dificuldade pode ter função entre os índios da Costa do Pacífico Norte ou do noroeste da Califórnia. É claro que não há qualquer descrição generalizada possível do tipo divergente ele representa aquele conjunto de capacidades humanas que não é acentuado na sua cultura. Na medida em que sua cultura se encaminha numa direção que lhe é alheia, será ele que sofrerá. A compreensão inteligente da relação do indivíduo para com sua sociedade, portanto, envolve sempre a compreensão dos tipos de motivações e capacidades humanas acentuados em sua sociedade e a coerência ou incoerência destes com aqueles que são inatos no indivíduo em questão, ou que são o resultado de condicionamentos feitos bem cedo na família. Pode-se supor sempre, sem contestação, que uma boa maioria de qualquer população será completamente assimilada aos padrões de sua cultura - aprenderá a ver a vida em termos de violência, ou de sobriedade, ou de 28 insultos, conforme o caso. Mas a pessoa que nada é na sua sociedade, a pessoa inaproveitável, não é um tipo a ser especificado e descrito na base de uma psicologia anormal universalmente válida; apenas representa o tipo não acentuado pela sociedade em que nasceu. Tudo isto tem um significado muito importante quanto à formação e ao funcionamento dos traços culturais. Temos em demasia o hábito de estudar religião, digamos, ou os complexos de propriedade, como se o fato fundamental sobre eles fosse uma reação humana universal: como o temor, por exemplo, ou o “instinto da aquisição” dos quais derivam. É verdade que tem havido instituições humanas que mostram esta correspondência direta com emoções humanas simples: as práticas mortuárias que expressam pesar, os costumes de casamento que expressam preferência sexual, as práticas agrícolas que começam e terminam com o suprimento da tribo. Contudo, mesmo o enumerá-las deste modo torna forçosamente claro o quanto é difícil encontrar tais exemplos. Na verdade, a agricultura e a vida econômica em geral estabelecem-se usualmente outros fins que não a satisfação da procura de alimento, o casamento usualmente expressa outras coisas mais flagrantemente que não a preferência sexual, e o luto, de modo notório, não traduz o pesar. Quanto mais intimamente conhecemos a ação interior de diferentes culturas, mais facilmente podemos ver que a variabilidade quase infinita de qualquer traço cultural, quando o acompanhamos pelo mundo, não é a manifestação das variabilidades de alguma simples reação humana subjacente. Uma outra força maior esteve em ação, força que usou as situações recorrentes de casamento, morte, aprovisionamento, e o resto, quase que como matéria-prima, e elaborou-as para expressar seu próprio intento. Esta força que inclina as ocasiões para seus objetivos e as amolda a si podemos chamar o “impulso dominante” dessa sociedade. Algumas sociedades puseram toda esta matéria-prima em harmonia notória com este impulso dominante, sociedades estas a que Sapir, aprioristicamente teria permitido chamar de “culturas autênticas”.41 Muitas não o fizeram. Sapir sustenta que uma coerência própria legítima que proscreve as pretensões hipócritas é a marca de uma “cultura autêntica”. Parece-me que as culturas podem ser sólida e harmoniosamente construídas sobre fantasias, padrões de medo, ou complexos de inferioridade, e entregar-se ao máximo em hipocrisia e pretensões. A pessoa que tem uma tendência inextirpável para encarar os fatos e evitar a hipocrisia pode ser proscrita de uma cultura que é contudo, na sua 29 própria base, simétrica e harmoniosa. Porque uma configuração é bem definida não quer dizer que seja honesta. É, contudo, a realidade de tais “configurações de cultura” que está em questão. Eu não acho que o desenvolvimento de tais configurações em diferentes sociedades seja mais místico ou difícil de entender do que, por exemplo, o desenvolvimento de um estilo de arte. Em ambos, se tivermos os dados disponíveis, podemos ver a integração gradual de elementos e a dominância crescente de alguns poucos impulsos estilísticos. Em ambos, se tivermos os dados, podemos sem dúvida traçar a influência de indivíduos dotados que inclinaram a cultura na direção de suas próprias capacidades. Mas a configuração da cultura contudo, sempre transcende os elementos individuais que entraram na sua formação. A configuração cultural se constrói por gerações, pondo de lado, como nenhum indivíduo pode fazer, os traços que não tem afinidade com ela. Ela toma para si modos de expressão rituais, artísticos, e outros que solidificam sua atitude e a fazem explícita. Muitas culturas nunca atingiram esta harmonia completa. Há povos que parecem oscilar entre diferentes tipos de comportamento. Como a nossa própria civilização, eles podem ter recebido demasiadas influências contraditórias de diferentes fontes externas e sido incapazes de reduzi-las a um denominador comum. Mas, o fato de que certos povos assim não fizeram, não torna desnecessário estudar a cultura deste ponto de vista, assim como o fato de lerem algumas línguas oscilado entre diferentes artifícios gramaticais fundamentais na formação do plural ou na designação do tempo, não torna desnecessário estudar as formas gramaticais. Estes impulsos dominantes são tão característicos de áreas particulares quanto o são as formas das casas ou as regulamentações da herança. Estamos ainda demasiado impossibilitados pela falta de descrições de cultura relativas a tais fatos, para sabermos se as distribuições de impulsos são coincidentes com a distribuição da cultura material, ou se em algumas regiões há muitos desses pertencentes a uma só área cultural definida de acordo com traços mais visíveis. As descrições de cultura deste ponto de vista precisam incluir muita coisa que o trabalho de campo mais antigo ignorou, e sem o trabalho de campo pertinente, todas as nossas proposições são puro romancear. 41 E. Sapir “Culture, Genuine and Spurious”. American Journal of Sociology, 29: 401-417, 1924. 30