Renault: a montadora e os fornecedores. Elementos de pesquisa

Transcrição

Renault: a montadora e os fornecedores. Elementos de pesquisa
Renault: a montadora e os fornecedores. Elementos de pesquisa comparada entre
Brasil e França1
Olga Lucia Castreghini de Freitas FIRKOWSKI2
AGB – Curitiba
Universidade Federal do Paraná
[email protected]
Patrícia BALISKI3
AGB – Curitiba
Universidade Federal do Paraná
[email protected]
Resumo
O presente trabalho visa contribuir com elementos para o entendimento da
inserção do grupo francês Renault no Brasil em meados da década de 1990,
especificamente em São José dos Pinhais no Aglomerado Metropolitano de Curitiba.
Entender essa localização requer compreender as transformações pelas quais o referido
grupo passou na década de 1990, as quais repercutiram diretamente no modelo
implantado no Brasil. Nesse período o grupo Renault iniciou um processo de
internacionalização e reestruturação interna, sendo uma de suas repercussões a
implantação da unidade industrial no estado do Paraná, materializando desta forma, um
novo paradigma produtivo, qual seja, o da localização conjunta entre montadora e
principais fornecedores (Parque Industrial de Fornecedores – PIF’s). Assim, a relação
entre montadora e fornecedores constituiu-se em uma das dimensões de análise e se
efetivou pelo estudo comparativo das relações existentes destes atores nas unidades
Renault Douai (Norte da França) e Renault Curitiba (Paraná, Brasil). Tal comparação se
baseou na análise da origem dos fornecedores, da importância no processo produtivo,
bem como na proximidade geográfica destes em relação às unidades montadoras: até 5
km, de 6 a 30 km, de 31 a 150 km, entre 151 e 300 km, entre 301 e 550 km, e mais de
1
Pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPQ: Observatório das Metrópoles/Instituto do Milênio/CNPQ
(Linha 1) e Bolsa PDE
2
Professora do Departamento de Geografia UFPR, Pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Núcleo
Curitiba
3
Bolsista PIBIC/CNPQ, integrante do Observatório das Metrópoles, Núcleo Curitiba
551 km. Observa-se que, enquanto na unidade francesa o predomínio é das classes de
proximidade de 151 a 300 km e de 301 a 550, no Brasil, o destaque é para as classes de
até 30 km e aquela de mais de 300 km. Isso revelou a materialização da lógica
organizacional do PIF no Brasil, agregando os principais fornecedores no entorno da
unidade, realidade inexistente em Douai no mesmo período. Desta forma, a localização
da Renault no Brasil pode ser compreendida como o reflexo de internacionalização do
grupo e principalmente como um teste de um novo modelo de organização produtivo
fora do território francês.
Palavras-chave: Renault, Parque Industrial de Fornecedores, Internacionalização,
Proximidade.
Introdução
A perspectiva de comparação de realidades tão distintas quanto a brasileira e a
francesa, no que concerne à indústria automobilística, foi motivada pela busca da
compreensão do contexto de origem e atuação da empresa Renault na França, bem
como da ampliação do horizonte explicativo para os processos desencadeados no Brasil,
quando de sua implantação em São José dos Pinhais (Região Metropolitana de
Curitiba), no final dos anos de 1990. Muitos desses processos, só podem ser
compreendidos se consideras certas lógicas vigentes no país de origem e que definiram
de modo apriorístico, seu funcionamento no Brasil.
A relação entre a montadora e seus fornecedores constitui-se numa das
dimensões dessas definições apriorísticas e será o objeto central de análise no presente
texto.
Contudo, serão também analisados os condicionantes das transformações na
indústria automobilística no período recente, sobretudo após a década de 1990, no
âmbito do paradigma produtivo-organizacional; o peso desse setor no conjunto da
indústria francesa, bem como as estratégias particulares da Renault para se adequar ao
novo paradigma produtivo, com ênfase na criação dos PIF’s – Parque Industrial de
Fornecedores, bem como do estabelecimento de unidades produtivas em novos locais de
produção, dentre eles o Brasil.
Acredita-se que por meio desses elementos, seja possível a ampla compreensão
do processo desencadeado no Brasil, na medida em que a empresa, muito embora
atuando em território nacional, pauta-se em uma “filosofia” de produção constituída a
partir de outra realidade.
Procedimentos da perspectiva comparada
De modo a efetuar a comparação pretendida, além da busca de informações em
bibliotecas especializadas na França e de contatos com pesquisadores sobre a temática,
apresentava-se como imperativo a obtenção de informações sobre os fornecedores da
Renault, tanto no Brasil quanto na França.
Como todo trabalho que necessita de dados dessa natureza, considerados
sigilosos pelas empresas, as dificuldades foram muito grandes. No caso brasileiro,
utilizou-se uma base de dados relativa ao ano de 2001 e, no caso francês, uma base de
dados relativa ao ano de 1995, obtida por meio de fonte secundária, qual seja, um anexo
de uma tese de doutorado contendo a relação detalhada dos fornecedores da unidade da
Renault em Douai (norte da França).
De posse de tais informações, precedeu-se a organização dos dados utilizando-se
os mesmos critérios, ou seja, a localização do fornecedor em relação à montadora em
quilômetros, além de uma unidade que permitisse dimensionar a participação do
produto fornecido na produção do automóvel. Para o caso brasileiro trabalhou-se com a
inserção do produto na cadeia de produção do automóvel e para o caso francês com o
volume mensal de compras.
Desse modo, foram elaborados mapas que permitiram a comparação de ambas as
realidades, muito embora, os marcos temporais fossem distintos, ou seja, enquanto no
caso brasileiro os dados refletem a nova estruturação da indústria automobilística, no
caso francês os dados refletem exatamente o período de transformação e enxugamento
do total de fornecedores, como será discutido no texto. Mesmo com essas diferenças,
acredita-se positiva a comparação, pois se trata de compreender a lógica espacial dessa
indústria e suas condicionantes em realidades tão distintas, na primeira (França) esse
setor industrial tem um forte peso no processo de industrialização, desde sua gênese,
bem como os processos de transformação são mais lentos em razão desse tempo mais
longo de existência. Quanto ao Brasil, apesar desse setor também ter um grande peso no
âmbito da industrialização, o processo se deu por meio da implantação de unidades
multinacionais, o que resulta em lógicas pré-definidas por uma ordem distante.
O papel da Renault no contexto da produção mundial de automóveis
O setor automobilístico francês mostra-se intrinsecamente relacionado ao
desenvolvimento industrial naquele país, revelando de modo inequívoco, o grande peso
desse setor no conjunto das empresas francesas. Dentre as cem maiores empresas
francesas em 2007, em primeiro lugar aparece o setor “construção do automóvel”, com
28% das empresas, em terceiro lugar o setor “equipamentos” com 9%, em quinto lugar
o setor “pneus” com 5%. Juntos, esses setores diretamente vinculados à produção do
automóvel, totalizam 40 empresas e, igualmente, 40% do total (Tabela 01).
Tabela 01 - Cem maiores empresas francesas, classificadas segundo o número de
funcionários por setor, em 2007
Setores
Quantidade
Funcionários
Construção do automóvel
28
129077
Aeronáutica
9
35497
Equipamentos
7
13842
Componentes eletrônicos
7
15389
Pneus
5
18151
Telecomunicações
5
12243
Construção naval
5
11166
Farmácia
5
9552
Alimentação
5
9329
Material elétrico
4
13620
Armamento
4
8165
Transformação do aço
2
6779
Combustíveis
2
4838
Metalurgia
2
4397
Joalheria
1
8900
Produtos agrícolas
1
2765
Material de manutenção
1
2516
Mecânica de precisão
1
2469
Artigos metálicos
1
2003
Material médico
1
1914
Edição impressa
1
1804
Informática
1
1748
Petróleo
1
1600
Máquinas industriais
1
1586
Total
100
319350
Fonte: L’Usine Nouvelle, n. 3064-3065, jul-ago 2007, p. 68-69.
%
40,4
11,1
4,3
4,8
5,6
3,8
3,4
2,9
2,9
4,2
2,5
2,1
1,5
1,3
2,7
0,8
0,7
0,7
0,6
0,5
0,5
0,5
0,5
0,4
100
Quanto aos empregos, esses três setores ocupam 161.070 funcionários, o que
corresponde a 50% dos funcionários ocupados no total das 100 maiores empresas
francesas.
A centralidade exercida pelo setor automotivo na economia pode ser também
observada pelo fato de que 7 entre as 10 maiores empresas francesas são desse setor,
com destaque para a participação da PSA Peugeot-Citröen, ficando a Renault em
posição secundária no conjunto.
Muito embora a marca Renault seja reconhecida internacionalmente no âmbito
da produção de veículos, foi apenas no final dos anos de 1990 que a empresa lançou-se
numa estratégia de internacionalização, seja por meio da implantação de novas unidades
produtivas no Brasil, Europa de Leste e China, seja por meio das alianças e aquisições
como aquela com a Nissan e Dacia. Até então, predominava sua característica de
atuação mais regional, centrada na França e na Europa Ocidental.
No contexto da produção mundial4, pode-se afirmar que a Renault ocupa posição
intermediária, ou seja, não se apresenta dentre as maiores companhias, contudo, seu
peso mundial não pode ser negligenciado, sobretudo após a recente parceira com a
Nissan. No ano de 2005, a Renault produziu cerca de 2.500.000 veículos (Atlas
Renault), dos quais 87% foram veículos de passeio ou particulares.
Diferentemente da VW ou da GM, a atuação das montadoras francesas tanto
Renault quanto Peugeot é mais concentrada na Europa Ocidental, com incipiente
expansão para a Europa Oriental e países emergentes, dentre eles o Brasil. Assim,
quando se observa a repartição mundial de sua produção, 51% é originária na França;
24% na Europa Ocidental e 25% no “resto do mundo”, onde se insere a América do Sul
e, em particular, o Brasil. Os maiores mercados da Renault em 2005 foram,
respectivamente: França, Espanha, Reúno Unido, Alemanha e Itália, confirmando sua
característica de forte atuação européia.
Dos cerca de 126 mil trabalhadores do Grupo Renault em 2007, 55% estão na
França, distribuídos pelas seis unidades produtivas localizadas em Batilly (produzindo o
Master II e o Mascott), Dieppe (Clio III Renault Sport, Mégane II Renault Sport), Douai
(Mégane II, Mégane II conversível e Scénic II), Flins (Clio III e Twingo), Maubeuge
(Kangoo, Kangoo Express, Kangoo II, Kangoo II Express e Kubistar (Nissan)) e
Sandouville (Espace IV, Laguna II Berlina, Laguna II Estate, Laguna III Berlina,
Laguna III Estate e Vel Satis), o que demonstra a relevância do país de origem no
âmbito da atuação da montadora (Figura 01).
4
No ano de 2005 foram produzidos no mundo cerca de 66 milhões de veículos, sendo 46 milhões de
carros de passeio ou particulares e 20 milhões de veículos comerciais (OICA, 2007), o Japão produziu
cerca de 9 milhões, seguido pela Alemanha com 5,3 milhões e EUA com 4,3 milhões.
Figura 01
A unidade brasileira da Renault ocupa discreta posição no conjunto do Grupo,
tendo produzido no ano de 2005, pouco mais de 60 mil veículos, o que correspondeu a
cerca de 2,5% da produção total da Renault naquele ano. No Brasil, tal produção
posiciona a Renault distante dos maiores produtores como a Volkswagen que produziu
mais de 500 mil veículos no ano de 2004.
A reestruturação produtivo-organizacional e a redução dos fornecedores
No âmbito da Renault, a reestruturação produtivo-organizacional que
caracterizou o setor automotivo após a década de 1980, pode ser observada por meio da
redução do total de fornecedores, assim, enquanto em 1985 a central de compras da
Renault tratava com 1415 fornecedores, em 1989 esse número caiu para 900
(Archambeu, 1987).
Para Gorgeu e Mathieu (1991, p. 10) nos anos de 1980 colocou-se em curso um
severo processo de seleção de fornecedores, o que ocasionou uma grande redução no
número total dos mesmos. Para os autores, na Renault e na PSA tal redução se fez
acompanhar da desintegração, tendo em vista que os construtores “abandonaram certas
técnicas como a forja e a cablagem que passaram a ser confiadas a especialistas
exteriores. Eles compram funções completas como o assento, a linha de escapamento, o
conjunto de pára-choques, isto lhes permite transferir para seus fornecedores operações
de montagem que, anteriormente, eram feitas em suas fábricas”.
A redução do número de fornecedores tem repercussão direta nas exigências
sobre aqueles que são selecionados e, nessa perspectiva, as montadoras francesas
privilegiaram os fornecedores de origem européia.
A escolha dos fornecedores se baseia em rígidos critérios de adequação dos
fornecedores às demandas da montadora, dentre as quais a qualidade tem destaque, além
da capacidade para participar do desenvolvimento técnico; capacidade de entregar as
quantidades solicitadas em prazos cada vez mais curtos; competitividade de preços;
situação financeira e capacidade de ser um líder europeu.
Tais critérios são os que, de fato, selecionam os fornecedores que participam
diretamente do processo produtivo do automóvel, assim, trata-se de uma seleção
pautada por exigências da montadora e de uma seleção que ocorre e revela uma
estratégia da sede da empresa, portanto, localizada na França. Desse modo, tais critérios
julgam de modo apriorístico os fornecedores, ou seja, no âmbito não de uma atuação
localizada num ou noutro país, mas da grande estratégia da empresa. Com isso, quando
da implantação da Renault em Curitiba, tais enlaces já estavam definidos, os
fornecedores já eram parceiros da montadora e com ela seguiram para a nova
localidade.
Face da nítida preferência das montadoras francesas por fornecedores europeus,
pode ser observada na afirmação de Gorgeu e Mathieu (1991, p. 13), segundo a qual,
“os construtores desejam que os fornecedores sejam os mesmos em todos os países onde
eles têm fábricas de montagem [...] eles devem ser os melhores sob todos os aspectos e
os líderes na Europa em sua especialidade [...] os construtores não estimulam a situação
de monopólio, nem privilegiam apenas um, mas desejam ter para cada família de
produtos dois fornecedores no mínimo e quatro ou cinco no máximo”.
Na perspectiva das entregas rápidas e dos horários rígidos das mesmas, os
fornecedores devem estar o mais próximo possível da montadora. Para tanto, o espectro
de possibilidades apontadas por Gorgeu e Mathieu (1991, p. 20), é o seguinte:
- fluxo sincrônico: relaciona-se ao fornecimento de equipamentos volumosos, tais como
assentos, escapamentos, reservatórios, dentre outros, ou necessários em grande
variedade. Os produtos são produzidos em tempo real, sem estoques e há entre um e
dois fornecedores para cada produto. Nesse caso, a distância do fornecedor até a
montadora é função do tempo de entrega necessário, na ótica dos construtores, é
desejável uma distância curta, entre 30 e 40 quilômetros;
- entrega em Recor ou kanban: a sigla RECOR significa « Remplacement d’Encours
bases sur la Consommation », ou seja, “Substituição de componentes baseado no
consumo”; nesse caso a localização pode ser um pouco mais distante;
- entrega em SPARTE: Système de Programmation des Approvisionnements
Rationalisé Par une Technique Economique ou Sistema de Programação dos
Abastecimentos Racionalizado pela Técnica Econômica, trata-se de uma estratégia de
antecipação do consumo, o construtor não sabe exatamente a hora que o veículo passará
nos diferentes postos de montagem, mas somente os carros que serão montados em seis
dias. Esse sistema não exige a proximidade do fornecedor.
A localização dos fornecedores próxima ao construtor revela sua estratégia de
conjunto, mas como afirmam Gorgeu e Mathieu (1991, p. 26), o fornecedor é livre para
escolher a localização que melhor lhe convier, porém, para o fornecedor a liberdade de
escolha de uma implantação é limitada à distância do construtor, mas também ao tempo
de transporte e as redes de transporte disponíveis.
A unidade fornecedora instalada perto do construtor pode ser de diferentes tipos:
apenas um local de estocagem de produtos; uma unidade onde são feitas as últimas
operações em função das características do produto a ser entregue; uma unidade de
montagem de elementos fabricados fora; ou uma verdadeira unidade de fabricação.
A localização dos fornecedores de proximidade é orientada pela relação do seu
produto com o tempo de requisição do mesmo, ou seja, quanto mais curto o tempo de
requisição, mais próxima deve estar o fornecedor.
Proximidade e criação dos PIF’s – Parques Industriais de Fornecedores
O anúncio da implantação da Renault no Paraná se deu em 1995, e seu efetivo
funcionamento ocorreu no ano de 1998. A despeito das condições locais favoráveis para
tal empreendimento5, esse período foi marcado por importantes turbulências no âmbito
da empresa e de sua estratégia de localização em nível internacional.
Concomitante a esses acontecimentos no Brasil, onde a chegada da empresa era
festejada e tomada como marco na transformação da economia paranaense, na Europa a
5
Aporte de capital pelo governo estadual no âmbito da guerra fiscal, elevação nos níveis de consumo de
veículos novos em razão da estabilização da economia, doação de terreno por parte da prefeitura
municipal, dentre outros.
Renault passava por um processo de reestruturação, que culminou com o fechamento da
unidade produtiva da Renault em Vilvoorde, na Bélgica, em fevereiro de 1997, em
nome da racionalização da produção do grupo na Europa. A unidade belga era uma das
mais antigas do grupo, tendo sido implantada em 1932, e produzindo progressivamente
modelos como o Juvaquatre, Dauphine, R4, R8, R11, R5, depois o Clio e o Mégane.
No início dos anos de 1990, havia uma crise de superprodução de veículos na
Europa, em 1995 era anunciada uma previsão considerável de perda de capitais para o
ano seguinte.
Assim, as afirmações de Fischer (1994) ganham materialidade, ao se referir ao
território da empresa como flutuante, em permanente construção, ao sabor da conjuntura
e das oportunidades, descontínuo, marcado por ligações e relações entre os lugares,
pelos fluxos de troca. Trata-se de um espaço móvel, estruturado por fluxos e redes,
marcado pela lógica de adaptação permanente às mudanças de condições da produção
industrial.
Para Freyssenet, Fridenson e Pointet (1995, p. 82), a estratégia de futuro do
grupo Renault anunciada em meados de 1995, justamente no momento do anúncio da
implantação de uma unidade produtiva no Brasil era:
“prosseguir o esforço de qualidade sobre os produtos e os
serviços; desenvolver um grupo coerente cuja atividade
essencial é a atividade automotiva; o grupo continua aberto a
toda cooperação ou parceria para se desenvolver e conquistar
novos mercados; oferecer uma gama completa, veículos
particulares e utilitários, renovados a um ritmo sustentado; a
vocação de construtor generalista é reafirmada e completada
pelo conceito de “voiture à vivre” (carro para viver), quer dizer
posto ao serviço do homem; internacionalizar a Renault por
dois meios transformando-a na primeira marca na Europa e
buscando novas aberturas internacionais; uma instalação
industrial está em estudo no Brasil; prosseguir os esforços de
produtividade para um futuro mais competitivo sobre os custos
e os prazos na Europa.”
Uma das estratégias para a viabilização das mudanças, foi encontrar uma nova
forma de organização da produção, que assumia novas características e necessidades.
Para Adam-Ledunois, Guédon e Renault (2007), a criação dos Parques
Industriais de Fornecedores (PIF), materializava essa nova organização do sistema
industrial, com vistas a aumentar a competitividade dos construtores de automóveis. Os
PIF’s têm como fundamento a localização em proximidade de certos fornecedores,
sobretudo os equipamenteiros6, visando a otimização do tripé qualidade-custo-prazo.
Contudo, no âmbito dessa proximidade geográfica, não se trata de supervalorizar
a distância métrica entre dois pontos, a distância que importa na atualidade não é essa,
mas aquela que se relaciona ao tempo, função direta das infra-estruturas de transporte.
Outra forma de proximidade é a organizada, ou seja,
“a capacidade de uma organização fazer interagir seus
membros. Duas lógicas distintas sustentam a proximidade
organizada, uma lógica de pertencimento e uma lógica de
similitude. Segundo a lógica de pertencimento, as interações
entre dois membros de uma organização são facilitadas por
regras comuns que as regem. Essas últimas podem ser
implícitas ou explicitas. A lógica da similitude pode se definir
como o compartilhamento pelos membros de uma organização
de um mesmo sistema de valores, de representações. As
interações se encontram simplificadas por um ‘background’
comum”(Adam-Ledunois, Guédon e Renault, 2007, p. 5).
O PIF é assim, “um espaço reservado a alguns fornecedores de primeiro plano
ao interior ou na proximidade imediata de uma fábrica de produção de um construtor. A
essência mesma dos PIF é então agrupar em um mesmo lugar atores independentes,
implicados em uma mesma cadeia de produção. A proximidade geográfica é o elemento
chave na origem da criação desses sítios...” (Adam-Ledunois, Guédon e Renault, 2007,
p. 12).
A produção modular do automóvel significa que os fornecedores produzirão a
montante, a montagem de diferentes peças que se constituirão em módulos ou conjuntos
prontos. Como tais módulos são mais volumosos que as peças individuais que os
compõem, e como eles necessitam entrar na produção em momentos precisos
(sincronia), a proximidade geográfica é importante, muito embora em casos específicos
não seja vital.
Cada fornecedor em proximidade mantém sua identidade de empresa e cultural,
contudo, eles devem adotar as convenções do construtor, “no contexto de um PIF, um
dos efeitos imediatos da proximidade reside na criação de um espaço de relações” [...] a
proximidade geográfica é um facilitador da aprendizagem inter-organizacional quando
ela é ativada pela proximidade organizada” (Adam-Ledunois, Guédon e Renault, 2007,
p.15-16).
6
Equipamenteiros é a denominação francesa para os fornecedores de mais alto nível na hierarquia
produtiva, no Brasil são denominados de fornecedores de primeiro nível ou de primeira camada.
Ainda segundo Adam-Ledunois, Guédon e Renault (2007, p. 19) “a criação do
PIF é uma iniciativa dos construtores”. Eles desejam que se implantem à sua
proximidade os fornecedores de peças particularmente incômodas, frágeis ou
diversificadas. A obtenção de um mercado implica para tais fornecedores que eles
aceitem se implantar no interior de um PIF pela duração do programa. O construtor está
também fechado nas relações de parceria durante a duração contratual. Este estado de
coisas sugere uma ambivalência entre a proximidade geográfica buscada (respondendo
as necessidades de proximidade ligada notadamente à tensão dos fluxos produtivos) e a
proximidade geográfica sofrida (que impõe constrangimentos de proximidade).
Desse modo, a proximidade geográfica será fundamental para a redução no fluxo
de tempo de circulação dos produtos, facilitando, sobremaneira, as operações de JIT e a
produção modular subjacente.
A política de parceria com fornecedores foi estimulada após 1998, quando
Carlos Ghosn presidia o grupo Renault. Assim, a implantação de fornecedores de
proximidade passou a fazer parte das estratégias produtivas do grupo
A lógica de proximidade e implantação dos PIF’s norteou a concepção da
unidade brasileira da Renault em Curitiba, inaugurada em 1998. O que permite concluir
que sua implantação no Brasil representou uma espécie de “teste” de um novo modelo,
facilitado pelo fato de que a unidade era inexistente, ou seja, não implicando quaisquer
constrangimentos, físicos ou sociais, para sua instalação. Trata-se, de fato, daquilo que
Mathieu e Gorgeu (2004) denominaram de greenfield plants, ou seja, unidades
implantadas e desprovidas de heranças passadas que pudesse oferecer resistência ao
novo modelo e permitindo as experimentações exigidas pelo pós-fordismo à produção
do automóvel.
Foi assim no Brasil, a unidade “experimental” da Renault foi implantada e seus
resultados positivos favoreceram a implantação do modelo na França. Há que se
destacar que, tal qual no caso da deslocalização da unidade de Vilvoorde na Bélgica,
parece que há uma tentativa de “preservar” as unidades instaladas em território francês,
de modo a não perturbar a ordem sócio-organizacional do grupo. Assim, experiências
piloto e mesmo o fechamento de unidades são realizados preferencialmente nas
unidades instaladas em outros países, que não a França.
Estratégias espaciais comparadas: a proximidade entre fornecedor e montadora no
Brasil e na França
Para além das considerações apontadas anteriormente e de modo a alcançar o
objetivo da comparação entre as estratégias espaciais da Renault e de seus fornecedores
no Brasil e na França, foram analisadas as relações montadora-fornecedores nas
unidades Renault Douai e Renault Curitiba.
A unidade da Renault Douai foi implantada no ano de 1970, na região do NordPas-de-Calais, cuja principal cidade é Lille, já a unidade Renault Curitiba foi implantada
no município de São José dos Pinhais (Região Metropolitana de Curitiba), na segunda
metade da década de 1990.
Tal comparação se baseou na análise da origem dos fornecedores da unidade da
Renault Douai, por volumes de compras e na definição das escalas de proximidade
geográfica, utilizando-se a mesma classificação definida para a análise do caso
brasileiro, qual seja: até 5 km da montadora; entre 6 e 30 km; entre 31 e 150 km; entre
151 e 300 km; entre 301 e 550 km e mais de 551 km.
Essas classes de proximidade foram adaptadas daquelas definidas por Mathieu e
Gorgeu (2004), que apontam a seguinte relação de proximidade inter-firmas: 1) inferior
a 3 km da montadora: trata-se de proximidade imediata, sobretudo quando os novos
estabelecimentos são criados para entrega em sincronia com a montadora; 2) até cerca
de 200 ou 300 km: são estabelecimentos que buscam solução para os problemas de
qualidade e é possível efetuar o deslocamento de ida e volta no mesmo dia; 3) mais de
500 km: são aqueles estabelecimentos onde as entregas são feitas a cada 24 ou 48 horas;
nesse caso, há necessidade de estoque de produtos pela montadora.
O fato de os dados retratarem períodos temporais distintos, respectivamente
1995 para a unidade francesa e 2001 para a brasileira, possibilitou a avaliação das
distintas lógicas, ou seja, nessa época na França a estratégia dos PIF’s ainda era
incipiente, enquanto no Brasil a unidade produtiva foi implantada inteiramente nessa
lógica. Como resultado, a significativa diferença entre o número de fornecedores nas
duas unidades, como pode ser observado na Tabela 02, bem como das classes de
proximidade entre fornecedor e montadora.
Tabela 02 – Classes de Proximidade na Renault
Número de Fornecedores
Classes de Proximidade
Douai1 (França)
Curitiba2 (Brasil)
Até 5 km
0
5
De 6 a 30 km
11
18
De 31 a 150 km
32
2
De 151 a 300 km
112
0
De 301 a 550 km
92
47
Mais de 5513
22
2
Total
269
744
1
Fonte dos dados: Delmer-Lantreibrcq (1996)
Fonte dos dados: Baliski e Firkowski (2007)
3
Na Unidade Douai o limite máximo é de 1230 km e na Unidade Curitiba é de 870 km.
4
A Unidade Curitiba conta com 11 fornecedores localizados no exterior, o que totaliza
85 fornecedores.
2
Observa-se que, enquanto na unidade francesa o predomínio é das classes de
proximidade de 151 a 300 km e de 301 a 550, no Brasil, o destaque é para as classes de
até 30 km e aquela de mais de 300 km. Isso revelou a materialização da lógica
organizacional do PIF no Brasil, agregando os principais fornecedores no entorno da
unidade, realidade inexistente em Douai no mesmo período.
Em relação a essa última, merece destaque a diferença observada na distância
máxima de localização dos fornecedores nos dois países, ou seja, na França essa
distância alcança 1230 km, enquanto que no Brasil, 870 km. Isso se explica também
pela localização de Douai no extremo norte do território francês, portanto
significativamente distante dos fornecedores localizados no extremo sul, mesmo que
minoritários (Figura 02).
Observa-se a grande pulverização na procedência dos componentes do veículo
pelo território francês, contudo, com grande destaque para a região do entorno de Paris.
Ainda na lógica pré PIF, a Figura 02 demonstra a supremacia dos fornecedores
localizados a mais de 150 km da unidade de Douai, e mesmo a conclusão de que os
componentes utilizados em maior volume eram procedentes da região de Paris.
Dos 269 fornecedores identificados no caso francês, 11 ou 4% localizavam-se
entre 6 e 30 km da unidade produtiva; 32 ou 12% entre 31 e 150 km; 112 ou 41,6%
entre 151 e 300 km; 92 ou 34% entre 301 e 550 km e 22 ou 8% a mais de 551 km. A
inexistência de fornecedores localizados na classe de até 5 km, revela a inexistência do
PIF.
Figura 02
Observa-se que, justamente, a classe de proximidade de maior incidência de
fornecedores, corresponde à distância de Douai a Paris, revelando o papel ativo dessa
antiga região industrial.
Por sua vez a Figura 03, produzida a partir do agrupamento de fornecedores da
Renault Curitiba, permite observar a concentração de fornecedores em dois grupos de
distância, quais sejam, aquela que alcança até cerca de 30 km a partir da localização da
montadora e aquela onde a localização é superior a 400 km.
A concentração de fornecedores na escala de proximidade de até 30 km a partir
das montadoras permite reforçar conclusões já apresentadas em outros trabalhos
(Firkowski, 2001, 2002), acerca da inconveniência da escala de análise que abrange
toda a Região Metropolitana de Curitiba e seus vinte e seis municípios componentes,
posto que, além do município de São José dos Pinhais, a montadora conta com
fornecedores instalados apenas em Curitiba (4), Quatro Barras (4), Piraquara (1),
Araucária (2), e Fazenda Rio Grande (1).
Figura 03
Destaca-se que a grande relevância em relação ao número de fornecedores se dá
no grupo localizado há mais de 400 km de distância da montadora. Nesse conjunto
encontram-se fornecedores localizados na cidade de São Paulo e nos municípios de seu
entorno (dentre outros: São Bernardo do Campo, Diadema, Guarulhos, Santo André),
além daqueles do interior, tanto em direção ao Vale do Paraíba (dentre outros: Taubaté,
São José dos Campos), quanto ao noroeste do estado (dentre outros: Jundiaí, Campinas,
Sumaré, Americana, Limeira). A esses se somam os localizados no entorno de Belo
Horizonte (Contagem) e em Porto Alegre e entorno (Gravataí).
Observa-se a ausência da escala intermediária, aquela que vai de 151 a 300 km
de distância entre a montadora paranaense e seus fornecedores, com isso, a nova
dinâmica industrial não desencadeou efeitos de localização pelo interior do estado.
Conclusões
A partir do exposto, é possível aglutinar algumas das principais conclusões,
resultantes da perspectiva comparativa realizada, são elas:
a) o momento de implantação da unidade produtiva da Renault no Brasil foi,
simultaneamente, um momento de dificuldades da Renault na França;
b) a instalação no Brasil materializou a estratégia de internacionalização da empresa,
cujo caráter regional era até então predominante, tendo em vista sua forte atuação dentro
da própria França;
c) a unidade produtiva brasileira representou um teste - não por acaso fora da França -,
de uma nova organização da produção, por meio da implantação do Parque Industrial de
Fornecedores (PIF);
d) a proximidade não era realidade nos sítios de produção franceses até meados dos
anos de 1990, o teste no Brasil foi decisivo para a ampliação dessa estratégia produtiva
na França, como revelou a comparação entre as classes de proximidade nos dois países;
e) os fornecedores da Renault que se implantaram no Brasil eram, em sua quase
totalidade, aqueles escolhidos pela empresa a partir de sua estratégia francesa,
predominando os de origem francesa ou no máximo européia;
f) as parcerias estabelecidas entre a montadora e os fornecedores já estavam definidas
previamente à implantação no Brasil, restando pouca margem de inserção para
fornecedores locais.
Referências
ADAM-LEDUNOIS, S. e RENAULT, S. Mouvement de creation de Parcs
Fournisseurs : Le cas de Renault Sandouville. New Geographies of production in the
auto industry. Bordeaux, Mars 2001.
ADAM-LEDUNOIS, S., GUÉDON, J. e RENAULT, S. Les Parcs Industriels
Fournisseurs : au-delà de la proximité géographique. Cahier de recherche. Caen: École
de Management de Normandie. n. 47, 2007, 26 p. Disponível em <http://www.groupeesc-rouen.fr/img/docs/aims/07.pdf>, acesso em setembro de 2007.
ARCHAMBEAU, Olivier La fabrication des moteurs dans l’industrie automobile
française. Maitrise de geographie. Iniversité Paris I, 1986-1987, 185 p.
ATLAS Renault. Édition mars 2006, disponível em < www.renault.com>, acesso em 12
de dezembro de 2006.
BALISKI, P. ; FIRKOWSKI, O. L. C. F. . Proximidade, Indústria Automobilística e
Espaço Urbano em Curitiba. Anais do X Simpósio Nacional de Geografia Urbana,
Florianópolis, 2007. v. 1.
DELMER-LANTREIBECQ, Sylvie Le complexe automobile du Nord-Pas-de-Calais :
mutations industrielles et recompositions spatiales. Thèse de Doctorat en Géographie
humaine. Université de Lille, 1996.
FIRKOWSKI, O. L. C. F. . 2. A dimensão espacial da implantação da indústria
automobilística no aglomerado metropolitano de Curitiba. In: Silvia ARAUJO. (Org.).
Trabalho e capital em trânsito: a indústria automobilística no Brasil. Curitiba:
Editora da UFPR, 2007, v. 1, p. 49-78.
FISCHER, A. Industrie et espace géographique. Paris: Masson, 1994.
FREYSSENET, M., FRIDENSON, P., POINTET JM (dir.), Les données économiques
et sociales de Renault. Les années 70 et 80, Paris : GERPISA, 1995, 222 p. Éditions
numérique disponível em <www.freyssenet.com>, 2006, 6,8 Mo. Acesso em abril de
2007.
GORGEU, Armelle e MATHIEU, René. Les prratiques de livraison en juste a temps en
France entre fournisseurs et constructeurs automobiles. Dossier de recherche n. 41,
Paris : Centre d’Etudes de l’Emploi, 1991.
GORGEU, A. e MATHIEU, R. Les liens de Renault avec sés fournisseurs:
equipementiers et sous-traitants. Actes du GERPISA (Groupe d'Etudes et de
Recherches Permanent sur l'Industrie et les Salariés de l'Automobile). Evry: Université
d'Evry-Val d'Essonne, n. 14, 1995, p. 41- 58.
L’Usine Nouvelle. La France de l´industrie 2007. Paris, n. 3064-3065, jul-ago 2007,
178 p.
LAIGLE, Lydie La coopération inter-firmes. Approches théoriques et application au cas
des relations constructeurs-fournisseurs dans l’industrie automobile. Thèse pour le
Doctorat en Sciences Économiques. Université Paris XIII, 1996, 569 p.
MATHIEU, R. e GORGEU, A. La proximite geographique dans les relations entre les
constructeurs automobiles et leurs fournisseurs. Quatrième Journées de la Proximité.
Marseille, 2004, 28 p. Disponível em <http://139.124.177.94/proxim/papers.php Acesso
em 14 de fevereiro de 2006.
OICA - ORGANISATION INTERNATIONALE DES CONSTRUCTEURS
D'AUTOMOBILES, disponível em www.oica.net, acesso em 19 de fevereiro de 2007.
RENAULT, Site Institucional, disponível em <www.renault.com>
STORAI, Christophe. Les strategies internationales des firmes du secteur automobile.
Thèse de doctorat en sciences economiques. Université de Nice-Sophia Antipolis,
1995, 357 p.
VIRVILLE, Michel de, Retour sur Renault Vilvoorde. Seminaires les Amis de l’École
de Paris, Paris:École de Paris, 2001. Disponível em <http://www.ecole.org>, acesso
em 15/11/2007.