Pizza Fria! 1. Até outro dia eu ria e bancava o podrão com os
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Pizza Fria! 1. Até outro dia eu ria e bancava o podrão com os
Pizza Fria! 1. Até outro dia eu ria e bancava o podrão com os amigos, dizendo que seria capaz de jantar pizza todo dia e que isso seria algo próximo à melhor coisa do mundo! Pizza todas as noites, e como sempre repito, comeria pela manhã a sobra, que às vezes é ainda mais gostosa! Não me prepararam pra esse terceiro dia seguido. Olho o pedaço amorfo de comida, amaldiçôo o queijo endurecido e penso o pior ao encarar o Gorgonzola chamando atenção dentre os 4 queijos! Jogo essa porra no microondas e encho um copo de coca. Encho dois, encho mais, e o barulho do micro avisando que ficou pronto me faz desejar que aquilo fosse o timer de uma bomba, que com o silêncio viria uma explosão, e com ela, o fim! Pizza fria é a parte que me cabe nessa farsa que comecei a montar no meio do ano passado, quando passei a tentar convencer meu pai que eu precisava morar em São Paulo, e sozinho. Em São Paulo e sozinho porque faria parte de todo um processo de edificação do caráter e formação moral, que na verdade, era um mal-ajambrado pano de fundo pra sair da alça de mira dos meus pais. No caso, meu pai, pois a mulher dele não é minha mãe, mas me trata muito mais como seu filho do que meu pai. Isso é conversa pra depois. Agora preciso comer, antes que a pizza esfrie de novo, definitivamente. 2. Eu precisaria de pouco tempo & espaço pra te dar uma idéia rasa, breve e necessária dos meus primeiros 11 anos de vida. 11 páginas seria um exagero, talvez 11 parágrafos dêem para o gasto – e olha que pretendo te falar aqui sobre os meus 20 anos, apenas e tão somente, mas tudo bem, pois dos 11 aos 20 eu passei em Taubaté, no interior de São Paulo, de qualquer forma, vai ser rapidinho. Fui o filho não planejado de um cara traindo a esposa na cidade maravilhosa, e essa mulher que me pariu, calhou de vir a ser uma cantora pseudo-cult-underground, com o perdão do pleonasmo. A história, eu não sei direito, assim como fiquei sabendo pouca coisa sobre o meu próprio pai durante muito tempo, acho que a minha mãe se orgulhava de me tratar como uma produção independente, mas sempre se referia a ele como “o filhodaputa”. Ela dizia de um jeito que eu, particularmente, acho muito feio, torcendo a boca e quase cuspindo quando chega no “t”, mas nunca tive coragem de falar nada sobre essa pronúncia um tanto desagradável. De repente, um monte de coisa começou a acontecer bem rápido na nossa vida, como uma música da minha mãe emplacar na trilha sonora de uma novela, o que impulsionou a venda do disco dela, levando a gente de um quarto-e-sala alugado em Flamengo-quase-Botafogo pra uma casa própria em Santa Tereza. Era o sucesso acontecendo, algo meio inesperado, se eu olhar com um pouco mais de apuro crítico – e, principalmente, com os “olhos” de hoje. É bom que eu te diga que escrevi isso aqui em uma noite, quase aos 40 anos. Portanto, muitas vezes eu parecerei uma criança mesmo diante do mundo, o que será proposital e pode até não funcionar. Em outras, parecerei precoce demais, aí o problema vai ser a minha falta de lembrança, de como vi e vivi o momento em que narrei. Assim, sou um cara de 40 anos, vivendo as aventuras dos 20, pode confessar que sou o Super Herói que você sequer sonhava que existia. Uma amiga da minha mãe gostava muito de mim, me achava bonitinho, gracinha, essas coisas todas, e trabalhava numa emissora de TV, cismou que na próxima novela tinha um papel de criança que era a minha cara! Fui lá e passei no teste, mas não fiquei famoso, claro que não, era um papelzinho bem mixuruca mesmo. Mas esse papel serviu de trampolim para aquilo que seria o meu auge: O Pedrinho! O cara que fazia o Pedrinho do “Sítio do Pica Pau Amarelo” estava velho pro papel, e iam escolher outro cara, que você já sabe que fui eu. Foi inacreditável; tudo o que se pode querer de um sonho: num momento eu assistia o “Sítio” e achava aquilo tudo mágico, no instante seguinte eu faço parte da mágica?! Foi algo um tanto efêmero, é verdade, mas suficiente para conhecer Os Trapalhões e vários astros de novela, e me manter longe da escola, o que é algo ainda mais mágico se você tem entre 9 e 10 anos. O lado ruim de ser popstar nessa idade é que você passa bem longe de tudo aquilo relacionado a Sexo, Drogas & Roquenrol, coisas inerentes à condição de “artista”. Até que alguém resolveu acabar com o “Sítio”. De uma hora pra outra, eu estava sem emprego, algo que não deveria preocupar-me, ao menos financeiramente, mas fazia falta tudo o que circundava, a mordomia de chofer me buscando em casa, roupas de graça, alguns comerciais de TV, reconhecimento na padaria e nos restaurantes, gente pedindo pra tirar foto... Na época, eu não sabia o que era uma lésbica, então eu não poderia sacar que minha mãe curtia outras freqüências; por isso, não fazia sentido ela se negar tanto a falar com a amiga que tinha me arrumado os testes pra novela e pra ser “Pedrinho”. A “nova amiga” dela não trabalhava com Televisão, infelizmente; era cantora, um pouco mais na crista da onda que a minha mãe na época. E o gerenciamento da minha “carreira artística” não estava na lista de prioridades das atribuições maternas dela. Aliás, atribuições e obrigações maternas não pareciam MESMO seu forte, a julgar pelo fato dela nem ter se tocado pro fato da minha demissão implicar, necessariamente, na matrícula em alguma escola. E assim, acabei passando 6 meses completamente à toa e entregue à saudável pedagogia da programação televisiva brasileira, que nunca primou pela qualidade. Os 6 meses só não foram prorrogados porque a minha mãe e a amiga resolveram se mudar pra Nova Yorque. Sim, aquela que fica nos EUA, tem a estátua da Liberdade e tudo mais. Elas se mudariam, o que não ficou muito claro pra mim, confesso que passei umas 48 horas pensando que eu me mudaria “pro estrangeiro”. Fui morar na casa do meu pai, o “filhodaputa”. No caso, casado; ainda casado, apesar do advento do qual eu advim – perdão, foi meio irresistível -, aparentemente devidamente superado. Pai de duas filhas, ambas mais velhas que eu. A mais velha morava em São Paulo e estudava para o Vestibular. A mais nova nunca falou comigo. Nunca me dirigiu a palavra. Infelizmente, de vez em quando me dirigia o olhar, mas era de um jeito que eu me contentava com seu silêncio, pois se ela falasse comigo da maneira como me olhava... 3 Culpa Católica. Não sei quem criou a expressão, ou quem deu a ela o significado que tem hoje em dia, mas ela se aplica 100% à mulher do meu pai, pelo menos no que diz respeito ao jeito que ela sempre me tratou. Desconsiderando aqueles sentimentos instintivos inegáveis, ela me tratou melhor que a minha mãe, ou melhor, me tratou mais como mãe. Sei lá como ela resolveu isso com o meu pai esse sim, me tratava de um jeito esquisito, but no hard feelings -, mas comigo era o maior barato. Lembro de ter ouvido, mais de uma vez, ela brigando com a minha irmã mais nova e dizendo, de um jeito bravo e sussurrante, "ele não tem culpa de nada". Era claro que eu era o "ele" da frase, e concordava com ela, eu não tinha culpa de nada, fosse qual fosse a parada. Uma coisa estranha, um dia talvez eu perceba que me faz mais falta do que fez na verdade e surja à baila numa conversa com um possível analista, seja o fato de eu nunca ter tido vó. Assim, a mãe da minha mãe morava no Piauí, e a do meu pai era uma dessas papa-hóstias mal-amadas, que vim a saber depois, meio que rompeu relações com meu pai quando ele aceitou que eu viesse pra casa dele, dizendo coisas super amáveis como "filho de puta não tem pai". Analisando a situação sob o prisma correto, não ter uma avó, sendo a alternativa ter uma avó como essa, deixa de ser algo tão desagradável. Por outro lado, a mãe da mulher do meu pai agia numa boa comigo, me tratava com gentileza e educação, dava presentes no Natal e Ovos de Páscoa do mesmo tamanho que os netos "de verdade" ganhavam. Ou seja, até hoje isso não me incomodou, mas aquela figura mítica, de Vovó Donalda que mora num sítio e faz doces incríveis, eu nunca tive. Provavelmente, quase ninguém teve, né? Falando em Natais, durante uns 5 anos eu nem tive que me preocupar muito com isso, pois os passava com a minha mãe, em Nova York. Foi pacífica a minha passagem por Taubaté. Estudei; fiz alguns amigos nem tão amigos que nem fizeram muita falta quando dei o fora pra São Paulo; dei o meu primeiro beijo em Taubaté, também, na escola, numa festa junina - clássico clichê -, numa menina que veio a ser a minha primeira namorada, e por quem eu e meu amigo mais próximo éramos apaixonados. E, obviamente, ela me largou e ficou com ele, depois largou dele e começou a namorar um idiota bem mais velho que provavelmente acabou comendo a desgraçada, que sequer deixava a gente pegar no peito por cima da blusa. Sei que cansa tanta obviedade, por isso fui embora, por isso vim pra São Paulo, conhecer outro tipo de gente e de situações. Alguns amigos criticavam essa minha idéia que se tornou fixa, dizendo que era besteira se mudar, ainda mais considerando que Taubaté era perto da praia. O problema aparece justamente quando "perto da praia" deixa de ser apenas uma condição geográfica favorável como a dos Portugueses e Espanhóis no Século XIII, e passa a ser meramente um conceito. Morar perto da praia não significa absolutamente NADA se você não tem o hábito de ir à praia! Acho que era só mais um argumento pra me convencer a não me mudar, essas pessoas muito apegadas à família, a uma casa, ou à cidade onde nasceu/cresceu ou foi criado. Parecia estranha a natureza destes vínculos, eu só via uma oportunidade melhor à frente, e queria ir. 4. Bom senso. Dentre as qualidades essenciais a uma pessoa, não sei se tenho alguma, mas no que diz respeito às periféricas, eu posso afirmar que o bom senso é uma característica marcante em mim, e eu comecei a notar isso com a chegada da adolescência, ali entre os 14 e os 15 anos. Na casa do meu pai, um ambiente inóspito pra mim e o melhor exemplo do que pode - e deve ser chamado de "mal necessário", eu sempre soube o meu lugar. No caso, eu sabia e procurava também me manter no "meu lugar" físico da casa, que era o meu quarto. Pouco saía de lá, mas também ficava muito pouco por lá, já que eu fazia parte do grupo de teatro da escola, tentando dar continuidade à vocação artística que eu achava que tinha. Eu saía dos ensaios e reuniões, e ia direto pra aula de inglês, chegando em casa bem no meio da hora do jantar. Eu não gostava de me sentar à mesa com eles, não suportava a idéia da minha irmã não olhar na minha cara, pois entendia que ela já deveria ter superado qualquer bode que dissesse respeito á minha existência. Na verdade, algumas vezes eu jantava com eles sim, mas era uma merda, porque como aquela escrotinha mimada não conversava comigo nem olhava na minha cara, era o maior clima na mesa, ninguém conversava. Sem falar que eu tinha que torcer pra quando me desse sede, a jarra de suco não estar perto dela, pois não queria correr o risco de pedir pra ela me passar e ser ignorado - e também não contribuiria para o espetáculo ridículo dela ao falar pra alguém pedir pra ela me passar o suco, ou o sal ou o guardanapo. O certo é que eu não gostava da idéia de sentar com eles à mesa, mas também não fazia disso um ato público de repúdio. Cumprimentava todo mundo ao chegar, e dizia que precisava tomar banho, de lá eu ia pro meu quarto. Logo a mulher do meu pai vinha me perguntar se eu não ia jantar, mas eu quase nunca jantava. Assistia televisão até tarde, ficava pensando na vida (eu pensava muito na vida nessa época), e depois ia fazer um lanche. Normalmente um copo de leite e pão com alguma coisa, a não ser quando tinha pizza, e pra minha sorte, eles comiam bastante pizza. Eu nunca enjoava de pizza, e era bom porque dava pra levar pro quarto num prato e comer com a mão. Um natal, meu pai me perguntou o que eu queria ganhar. Era o meu terceiro Natal entre eles, e a primeira vez em que a pergunta era feita. Desconfio que forçada pela mulher dele, pois não via meu pai como um ser humano dado a lampejos de sensibilidade. De qualquer forma, falei pra ele que não sabia, ainda não tinha parado pra pensar a respeito. Pensei a respeito e pedi um "walkman", mas como a generosidade era um sentimento em alta naquele ano e acabei ganhando um som 3 em 1, muito bacana. Mas não tinha fone de ouvido, e isso fazia toda a diferença. Sem que ninguém percebesse, fui falar com a minha irmã mais velha, que era uma pessoa mais apegada aos padrões universais de normalidade comportamental nas relações humanas e me tratava de forma cordata, o que possibilitava o pedido que ia fazer. - Você pode comprar um fone de ouvido pra mim? - Um fone? Mas você não acabou de ganhar um som novinho, pra quê você precisa de fone? Ouve música muito alto? - Não é isso. É que eu queria ouvir as músicas da minha mãe. Ela ficou me olhando. Não disse nada durante um tempão, mas me entendeu - ou entendeu a situação -, pois me abraçou - e aquela era a primeira vez que alguém me abraçava naquela casa! - A culpa é minha, viu? Meu pai falou que você queria um "walkman" e eu achei que seria mais legal te dar um som de verdade. E você foi muito econômico no seu pedido, pois a outra ganhou uma bicicleta, eu ganhei praticamente todas as roupas do shopping, acabei achando que o som era muito mais justo. - Valeu! - Mas acabou nem sendo, né Pedrinho? Eu posso te chamar de Pedrinho? - Pode. Muita gente na escola me chama assim ainda. - Eu vou comprar um fone de ouvido pra você, pode deixar. - Beleza... valeu de novo! - As músicas da sua mãe são muito legais! Eu escuto direto lá em São Paulo... Sorrimos um pro outro. Isso foi um contato. Um abraço e um sorriso selaram a nossa primeira tentativa de entendimento, e eu posso dizer que foi muito bem sucedida. Ela vinha de vez em quando, no máximo um final de semana por mês, e também nas férias de final de ano. Não éramos amigos, não falávamos pelo telefone quando ela estava em São Paulo, nem saíamos juntos, mas convivíamos muito bem dentro de casa. Depois que ela se formou, começou a trabalhar e passou a vir cada vez menos, só no Natal e olhe lá. O lado bom é que "a outra" também passou no vestibular de medicina e foi morar em Pelotas, tão distante de Taubaté que eu nem procurei saber direito onde ficava, preferia acreditar que era muito, muito longe! Foi bom voltar a ouvir as músicas da minha mãe! O curioso é que eu não sentia falta dela, a gente se comunicava através de cartas quilométricas que ela me mandava e eu respondia com o básico, nunca fui muito bom pra escrever. A minha mãe era mais ou menos uma "idéia", eu sabia que ela existia e estava lá em Nova York, acabei descobrindo não sei como que ela era lésbica, e procurava na memória alguma lembrança bem bacana pra me agarrar. Era sempre a viagem que a gente fez pelo nordeste de carro. O plano inicial era ir até Porto Seguro, mas chegamos até São Luís do Maranhão, onde ela vendeu o carro e voltamos de avião pro Rio. Fomos só nós dois, embora eu me lembre que estávamos sempre rodeados de gente. Eu não tinha certeza se ela conhecia tanta gente assim, ou se possuía uma facilidade além do comum de fazer amizades, pois apesar de termos ficado em vários hotéis, também acontecia de dormirmos na casa de algum "amigo", que tanto podia ser um amigo de verdade, ou o amigo de alguém a quem ela deu carona - sim, ela dava caronas aos montes, não podia ver um cabeludão com jeito de hippie na estrada que punha pra dentro do carro. Essa lembrança, revista com os olhos de hoje vai me trazer a constatação de que a minha mãe estava sempre bebendo, e que aquele cigarro fininho que ela e o pessoal sempre fumava fazendo força pra puxar a fumaça era maconha, mas mesmo assim eu gosto de lembrar desse tempo, em que éramos só eu e a minha mãe na estrada. Gosto de lembrar como ela me apresentava pros outros: - Esse é o meu filho, o meu Companheiro! E a gente se via de vez em quando. Eu passei algumas férias em Nova York, e ela sempre me dizia que a gente ainda ia viajar de costa a costa nos Estados Unidos, como naquela viagem que fizemos pelo Nordeste. Mas o que eu queria de verdade era morar com ela de novo, fosse onde fosse, mas nesse assunto ela nem tocava. Nem eu, e me causou profunda decepção quando ela voltou pro Rio, pra casa de Santa Tereza, e não falou pra eu voltar também. Depois ela acabou indo morar com a namorada da vez num apartamento minúsculo em Ipanema e transformou a casa num estúdio, decretando de maneira definitiva a minha permanência em Taubaté por sabe Deus quanto tempo. Acabou nascendo uma certa distância entre nós, e não sei dizer quem construiu o muro nem quem não fez questão de derrubá-lo, só que isso pouco importa. Porém, antes que o Soberano Criador dos céus e da terra decidisse sobre minha moradia, eu aproveitei o fato de estar no último ano do segundo grau e anunciei que no ano seguinte iria morar em São Paulo, pra estudar. - E você pretende fazer faculdade do quê? - Eu quero ser ator, pai. Bastou pra conversa ser encerrada ali, com uma risada meio cínica dele, que se levantou e saiu da sala. Dias depois, disse-me pra encontrá-lo no escritório que a gente precisava conversar, e dali fomos a um puteiro, o que era uma evolução em termos de intimidade totalmente incompatível com a relação que existia entre nós dois. Eu achei muito esquisito, mas aproveitei pra fazer o que devia, e só depois de muito tempo, pude entender que aquilo talvez tenha sido uma tentativa do meu pai descobrir se eu era veado, só por ter dito que eu queria ser ator. Não sei se consegui provar alguma coisa pra ele, ou se esse era realmente seu objetivo, mas não tardou muito a ele vir com uma contraproposta quase irrecusável: - Eu estava pensando que você podia estudar Administração de Empresas aqui mesmo em Taubaté, e me ajuda a cuidar dos negócios? Os negócios... até onde eu sabia, isso consistia numa imobiliária - a maior da cidade -, alguns imóveis que ele alugava e dois estacionamentos no Centro. Fascinante, não parece? Em português claro, eu seria uma espécie de sub-treco do vice-troço enquanto ele vivesse e desse as cartas, provavelmente recebendo um salário bacana, já incluso o Adicional de Monotonia. Pode me acusar a vontade de reclamar de barriga cheia, mas não era isso o que eu queria. Não era o que eu queria da minha vida! Esse papo/proposta voltou à pauta várias vezes em lanches, almoços e jantares, sempre da mesma maneira. Ele simplesmente não queria que eu fosse morar em São Paulo, e a minha inclinação artística só servia como pedra tumular para o assunto: - Olha aqui, esse negócio de “ser artista” é muito bacana pra quem tem sobrenome Matarazzo Suplicy, por exemplo, por que não enche barriga, viu? Quer ser artista, vai falar com a sua mãe! Fui falar com a minha mãe. E deu certo. Em princípio, mesmo sabendo que ela não era rica e sobrevivia tocando na noite, imaginei que ela me bancaria, pois disse na maior segurança do mundo pra eu ir procurar cursinho e lugar onde morar, pois eu iria sim, pra São Paulo! Mas na verdade, o que ela fez foi usar seu superpoder secreto de irritar e/ou ameaçar meu pai, pois ele acabou concordando. Não sei se ela ameaçava com processos, ou macumba, ou guardava um segredo terrível dele, ou simplesmente o alugava até conseguir o que queria, só sei que resolvia. E nos meus últimos minutos em Taubaté, lembrei de Monteiro Lobato, que dizia bater bem as botas antes de subir no trem para São Paulo, para da cidade não levar nem o pó das ruas. Não vim de trem, meu pai me trouxe até um flat em que me instalou até que eu achasse um colega para dividir um apartamento. Combinamos o valor da mesada simbólica, e ele fez questão de me lembrar: - Não esquece, hein? USP! Só USP! 4 Eu tive um professor muitíssimo gente boa em Taubaté, de Física, por incrível que pareça, pois normalmente os professores gente fina são de história ou literatura. Esse professor morava em São José e era filho de militares, portanto, se mudou bastante de cidade com os pais. E ele me dizia que sempre deu sorte por jogar futebol, pois mudava de escola e, assim que começava a jogar, logo se enturmava, então meio que se tornou um expert em mudanças de ambiente. E uma coisa que ele me disse que eu nunca vou esquecer é que as pessoas “normais” tinham uma certa dificuldade de adaptação, ao passo que os tranqueiras se achavam já no primeiro recreio, parecia que existia um código secreto que os identificava. Comecei a pensar bastante a respeito disso quando me dei conta que, com menos de uma semana em São Paulo eu já tinha mais “amigos” do que os que eu deixei em Taubaté. Bastou sentar no fundo, dormir em uma ou duas aulas, seguir o fluxo certo na hora do intervalo e ver onde o pessoal ia lanchar, e demonstrar uma saudável curiosidade na hora de saber onde seria o happy hour na sexta-feira. Amanheci num sábado totalmente novo na minha vida, com direito a caldo de cana e pastel numa feira perto da casa de um dos meus colegas onde acabei dormindo o resto do dia. E foi justo na casa desse meu colega que eu já considerava amigo, que eu me deparei com uma espécie de Guia de Lazer e Cultura, ou algo que o valha, um desses suplementos de jornal, com as dicas de cinema, teatro, bares e o escambau. Teatro! Teatro na segunda, na terça, todos os dias da semana! Peças a R$ 1,00, peças de graça! Eu sabia da imensa diversidade cultural que era essa cidade, mas não estava preparado pra isso... eu precisava de uma Internet, eu tinha que acessar o Google imediatamente e escrever “CURSOS DE TEATRO” na lacuna de pesquisa, eu precisava começar a minha vida! 5. Tive certeza que boa coisa não poderia ser. Não antes das 10 da manhã, tocando a campainha do meu flat sem nem ter sido avisado pela portaria. Tinha tudo pra ser meu pai, era uma questão quase aritmética: na minha segunda semana em São Paulo, eu fui no cursinho na segunda-feira e só. Já era sexta e eu não havia conseguido acordar nenhum dia na hora certa. HORA CERTA, ainda que pareça um tanto vago, aqui é extremamente adequado. Me parecia óbvio e perfeitamente aceitável que a direção do cursinho tenha ligado em casa e meu pai saiu de Taubaté só pra me carcar - ou, ainda pior, encerrar meu ciclo paulistano antes mesmo dele começar de verdade. O cenário não ajudava nem um pouco, pra piorar; na noite anterior, vieram dois colegas e umas meninas pra cá e, como último recurso, misturamos o que restava da derradeira garrafa de vodca com clight de uva, e os resquícios ainda se faziam bastante presentes. Resolvi encarar de frente. - Você? - Eu! Nem vou perguntar se você está surpreso, porque é óbvio que está, por isso vou logo adiantando o que estou fazendo aqui, nossa, que zona esse apê, mas... porque você veio morar aqui e nem falou comigo? Era minha irmã. A mais velha, claro, com quem eu convivia numa boa. Apenas pra esclarecer, pois ela falava rápido e muito. - Eles mandaram a cavalaria, é? - Que cavalaria? E quem são "eles"? - O meu pai e... basicamente o meu pai. - Rá! Você achou que... ai, ai que pretensão, Pedrinho! Bom, na verdade você mal nos conhece, né? Acho que se justifica o seu temor, sua dúvida, sei lá, whatever! Você disse “cavalaria”, achou que... você leu “O Apanhador no Campo de Centeio”? - Não. - Pois deveria, mas nesse caso, o livro do Alex é mais pertinente, a frase no livro do Alex: ele se dizia “O Empurrador No Campo De Centeio”, sabe a pessoa que espreita todo mundo que ta pra fazer merda e ele só dá o toque final? É isso, num campo centeio eu sou muito mais empurradora do que apanhadora! O normal seria estar de ressaca e todos os sintomas, mas esse despertar meio brusco pareceu ter me deixado num estado de lucidez bastante incomum, mas a falação dela me dava a impressão que ao menos uma dorzinha de cabeça estava por vir. - Como é que foi isso de você vir morar aqui em São Paulo? E o mais esquisito, por quê você não foi morar comigo? - Ele - disse um "ELE" com muita ênfase e um quê de ironia afetada, pra ficar bem claro de quem eu estava falando - não quis... suspeitou que eu iria te atrapalhar, ou incomodar. Na real, eu acho que ele me julga uma espécie de má influência, e não queria nada desse tipo perto da filhinha de ouro dele. - Isso de filha de ouro, ai puta que pariu como me irrita! Ele não faz a menor idéia do que eu faço aqui e fica alardeando pros outros que eu sou a pessoa mais sensacional do mundo! - Olha... ele sabe o que você faz, tanto que repete o tempo todo, pra todo mundo, que tem uma filha formada em Administração de Empresas trabalhando numa firma de investimentos e ganhando a maior grana, que é totalmente independente dele, o blá blá blá de sempre! - É mesmo? Qual o nome dessa empresa, você sabe? - Não... - Liga pra ele e pergunta se ele sabe? Parei um pouco e fiquei olhando pra ela, agora com a absoluta certeza de não estar entendendo nada. - Aonde você quer chegar? - Meu pai acredita no que eu falo. O raciocínio dele é básico, quase Cartesiano com relação aos filhos: se eles não geram gastos, não precisam ser fiscalizados. Enquanto eu continuar independente dele financeiramente, ele vai engolir qualquer história que eu contar sobre a minha vida aqui. É assim que funciona. - Mas e aí, você faz o quê, afinal? - Programa. - Informática? - Putaria. - Fiquei esperando ela rir e dizer "tou brincando, Pedrinho, é claro que são programas de computador, seu tonto", mas ao invés disso, falou - Você quer descer e tomar um café? - Um café... Houve o choque, claro, mas além disso, não havia afinidade familiar ou outras afetividades que justificassem outros tipos de sentimentos, como decepção ou tristeza. Ela era puta, e isso me confundiu um tanto, pois ela era rica, ou menina-rica, "filhinha de papai", enfim, não PRECISAVA disso. Mas, fora o choque inicial e a confusão momentânea, não haviam maiores dramas a serem desenvolvidos. Durante o cafézinho, ouvi de sua própria boca que foi tudo uma questão de saco cheio. Saco cheio do pai que até a sustentava, mas por sustentar, sentia-se no direito de interferir na vida dela (direito esse de legitimidade questionável, mas não vem ao caso entrar nesse mérito agora), uma tendência natural ao desafio e à contravenção, um certo deslumbramento com a cidade de São Paulo, e talvez um apego pela coisa em si, sem maiores detalhes. O que também pouco importa, mas ela aparentemente fazia questão de me dar algumas explicações: - Eu tava no segundo ano e umas meninas começaram a correr atrás de programas de trainees, do dia pra noite apareciam na faculdade com umas roupas de "tia", e eu acabei não me entusiasmando muito. E coincidiu também de uma colega de classe ser garota de programa, nem sei como puxamos papo, sei que um dia ela me perguntou se eu topava e eu topei. 200 paus por duas horas, um cara educado, gentleman mesmo, fui até o flat dele, trepamos duas vezes e acabou. Táxi pra ir e pra voltar, não vi nada demais. "E aí eu voltei pra casa fazendo contas, Pedrinho... se eu fizesse um programa por dia, seriam 1.000 reais por semana, trabalhando só de segunda a sexta, 4 paus por mês. Sabe quando eu iria ganhar 4 paus por mês trabalhando duas horas por dia, com administração de empresas? Nunca! Ou eu até poderia chegar a ganhar uma grana assim, mas me convenci rapidamente que o esforço não valia nem um pouco a pena. É claro que nem sempre teve um programa por dia, e nem sempre é duzentão, mas tem dias com dois e uns poucos, no início, com até três na mesma noite. Chegava em casa com a perereca assada, mas com uma grana que eu nem acreditava! Fui levando a faculdade com a putaria, essa minha amiga me ajudou bastante e a gente teve a sorte de nunca precisar trabalhar em "casas", foi sempre por conta própria. Quer dizer, por curiosidade eu até andei frequentando umas casas dessas famosas daqui de São Paulo, mas... dá trabalho.” - Faz quanto tempo? - Uns 7 anos. - E pretende seguir essa carreira até quando? - Até quando der. Hoje em dia, eu trabalho muito menos do que antes, não tem nem comparação! Cobro mais caro, também... e já estou com meu apartamento comprado, meu carrinho quitado... sabe o que é irônico? - O quê? - Fiquei realmente curioso, e até ansioso para descobrir algo irônico nessa história toda. - Eu trabalho mesmo com investimentos. - Que tipo de investimento? - Mercado financeiro mesmo, Pedrinho. Tenho vários clientes que mexem com isso, alguns são verdadeiros mestres. E quando começou a me sobrar uma graninha, fui me informar com eles onde investir, e eles me deram dicas. Depois, eu fui pegando o jeito, e até que o tempo passado na faculdade serviu pra alguma coisa, pois hoje eu raramente peço outras opiniões, só mesmo quando quero fazer algum investimento mais ousado. - Então daqui uns tempos você pode parar de mexer com isso e viver do seu dinheiro aplicado? - Não... acho que não. O grosso do meu rendimento vem da putaria ainda, não dá pra pensar em parar. Na verdade, eu nunca pensei nisso. - Em parar? - É. Por que eu pararia? Tem o lance da AIDS e outros riscos, mas eu tomo todas as precauções. Ao menos acho que tomo, e risco tem em todo o lugar. São poucas horas de trabalho diário, muito tempo livre pra me cuidar e me divertir, consigo tirar férias, conheço gente interessante... sei lá, pra quem se vira na Augusta ou em lugares ainda piores, deve ser realmente podrão, Deus me livre dos "vintões" no Campo Belo e outras coisas do tipo! Mas no meu caso, sou privilegiada! Nasci bonita, isso é verdade. Me cuido, pois dependo muito do meu corpo. O resto a gente vai aprendendo, como tudo na vida. - Como tudo na vida... - Isso te incomoda, Pedrinho? Boa pergunta! Isso sequer existia até uns minutos atrás, como poderia agora me incomodar? Pra ser bastante sincero, eu não lembrava muito da existência dessa minha irmã, que agora morava na mesma cidade que eu. Ok, ela era puta. Beleza, foi bom tomar um café contigo, a gente se vê, liga qualquer hora, tchau! Porque isso haveria de me incomodar? - Eu tou te perguntando porque queria te chamar pra morar comigo? - Como? - O que você acha? - Eu... eu... - quase falei que ainda nem havia respondido se a "profissão" dela me incomodava, era muita informação, ainda mais assim, de manhã, no meio de uma ressaca... - Eu não sei o que dizer quanto ao convite, mas posso te adiantar que você fazer programa não me incomoda nem um pouco. Talvez eu me incomodasse mais se você fosse uma yuppie careta e funcionária de algum banco careta, pois gente careta me incomoda. Mas vem cá, porque você tá me convidando? - Intuição. Um pouco é isso, intuição. Tem também o fato de que você é meu irmão, e por mais que a nossa convivência tenha sido pouca, eu sinto que gosto de você. Eu tenho curiosidade sobre você, Pedrinho! Você é filho de uma cantora que grande parte da minha geração até chegou a curtir, você foi o Pedrinho do Sítio, que eu assistia, e de repente vem morar na minha casa... - Ok, ok. Eu concordo que como objeto de exploração eu posso até despertar interesse, mas o meu medo é de frustrar as suas expectativas. Você também está achando meio estranho, formal ou até improvável o diálogo? Pois é, talvez seja necessário te lembrar que isso é uma tentativa de reconstituição dos meus 20 anos, e o tempo acaba causando danos nos detalhes, aquelas minúcias que muitas vezes são tão necessárias. Mas nesse caso, acredite em mim: não fará falta nenhuma a omissão ou supressão de um outro detalhe. Eu poderia pular direto pra parte em que eu fui morar com a minha irmã, afinal de contas, antes de mais nada, é uma coisa lógica. Éramos irmãos, morávamos na mesma cidade, surgiu o convite. Além do convite, uma proposta: - Você dirige? - Sim. Quer dizer, tenho carteira de motorista. E lá em Taubaté eu ia pra todos os lugares de carro, mas aqui em São Paulo, não sei. - É a mesma coisa, você pega o jeito. Eu tenho uma proposta de emprego pra te fazer, Pedrinho. - De motorista? - Mais ou menos... Ela me explicou que a maioria das garotas de programa já não usava mais táxi, e sim, se juntavam e usavam um motorista. Sim, ela pensou no seu irmãozinho de 20 anos, recém-chegado a São Paulo para exercer essa "função". Era um trabalho simples, consistia em levar e buscar a minha irmã de um programa para o outro, com algumas pequenas regrinhas que ela iria me explicando com o tempo. Era, grosso modo, uma mistura de motorista e guarda-costas, se fosse necessário. Eu topei de cara! Me agradava a idéia de conviver com ela, com putaria e tudo. E ela ainda parecia ter sempre uma idéia a mais: - O que você combinou com meu pai sobre a grana pra sua moradia? - Ele pagou esse primeiro mês no flat e meio que mandou eu me virar a partir do segundo mês. - E te deu um limite de quanto você pode gastar? - Não, mas... - Liga pra ele e diz que arrumou um apartamento perto do cursinho e que vai dividir com outro carinha do interior. Arruma um celular pré-pago e diz que preferem não ter telefone em casa. Diz que vai te custar 600 paus por mês. 600 é um valor ideal. Mais que isso implica correr riscos desnecessários. Você tem conta em banco? - Tenho. - Manda ele depositar todo mês. Dia 30, pois o aluguel vence dia 5. - Mas e se ele... - Você ainda acha que ele vai vir até São Paulo conferir? Ela parecia bastante confiante no que dizia. E 600 paus, mais o "salário" que ela me prometeu, deixava-me um tanto confortável para desbravar toda a boemia artística de Sampa! Ah, ela me falou para evitar dizer "Sampa", pois era cafona. - O que você veio fazer em São Paulo, Pedrinho? - Como assim? - Eu acho que nem todo mundo vem pra São Paulo atrás das chamadas OPORTUNIDADES! Tem gente que vem com um brilho diferente nos olhos, vem procurando outra coisa além de uma profissão. - E eu sou um desses casos? De brilho diferente nos olhos? - Eu acho que sim. Você não veio atrás de "casa, filhos, televisão"... você quer outra coisa... o que você quer? - Eu ia responder, mas na verdade, a deixa ainda era dela Eu tenho um cliente, sabe? Um cara muito rico, trabalha com auditoria, contabilidade, coisas grandes! Ele diz que veio pra São Paulo pra ser escritor! Que chegou aqui e tinha a história de um romance pela metade, e pretendia terminar aqui, com a vivência adquirida na cidade! Costuma falar que tinha duas camisas, uma calça e um sapato quando veio pra cá; que morou em pensão; que muitas vezes chegou a fazer só uma refeição por dia... - E como tá o livro dele? Ele terminou? - Segundo ele... continua escrevendo. Mas eu duvido que esse livro tenha existido algum dia, sabe? O que existe hoje é a história de um cara podre de rico, que pode comprar tudo o que quer, inclusive algumas horas de uma puta, pra quem ele pode dizer que sonha em ser escritor, que tem um romance em fase de execução, e que nem sempre foi assim, tão anti-séptico e cumpridor de seus deveres. Ele precisa desse contraponto pra missa das sete de todo domingo... Acho que era a hora de perguntar pra ela o que ela queria ser quando veio pra São Paulo, mas eu inverti a ordem das coisas e disse: - Eu vim pra ser ator! 6. A vida entrou nos eixos. Eixos pouco ortodoxos, sou forçado a admitir, o que também muito pouco me importava. Havia uma rotina, havia uma vida, haviam perspectivas. Minha irmã me ajudou a encontrar uma escola de teatro, e ainda me explicou que uma escola ter o nome de um diretor de novelas da Globo não era, necessariamente, um bom sinal. Pelo contrário, eu deveria me abster de acalentar sonhos envolvendo a Rede Globo. Acabei descobrindo uma escola bacana, que já tinha um grupo de teatro. Com a ajuda da minha especialista em pequenas fraudes, disse para o meu pai que aquele cursinho era muito ruim e que iria trocar pra um outro muito melhor. - Fala pra ele te mandar a grana que você paga aqui. - Ele vai desconfiar... até EU desconfiaria, Nina. - Deixa eu pensar... já sei! Manda o boleto da escola de teatro pra ele e diz que é um cursinho especializado pra ECA. - O que é éca? - ECA, Pedrinho! Escola de Comunicação e Artes da USP. Como você nunca ouviu falar? - Nina, nunca passou pela minha cabeça fazer faculdade pra ser ator! Mesmo essa escolinha aí me parece uma coisa meio babaca. - É... eu não sei, não posso te ajudar nisso. Sinceramente, não tenho a menor idéia de como uma pessoa se torna ator ou atriz. Aliás, você sabe como funciona? - Sei. Eu sou ator, Nina. - Porque você foi o "Pedrinho do Sítio"? - Não. Eu sou porque eu sei que eu sou. Não vou conseguir te explicar, não vou fazer ninguém entender, nunca! Eu sei disso, e na verdade pouco me importa. Cara, meu pai queria que eu fosse cuidar do estacionamento dele, da imobiliária dele, será que ele tem noção? - Eu te entendo. - Olha, eu convivi com a minha mãe, ela é artista! Sempre foi, nunca precisou ter "empregos" e nem por isso a gente deixou de comer. - Sua árvore genealógica é uma loucura, né? - Eu não tenho árvore genealógica, Nina! Você me desculpa pelo que vou dizer, mas eu caí no mundo e ninguém soube direito o que fazer direito comigo. Quer dizer, minha mãe me curtiu por um certo tempo, depois eu acho que perdeu a graça, ela tinha vida demais por viver, e não me cabia na história dela. Meu pai? Ah, meu pai simplesmente abriu um outro campo na planilha dele de "DESPESAS" no excell e colocou meu nome lá! E de novo, espero que você compreenda o que eu digo, mas eu não tenho muitas esperanças sobre a durabilidade desse nosso relacionamento, viu? Eu aceito que as pessoas tenham prioridades, e "shit hapens", mas eu nunca fui prioridade pra ninguém. Saca? - A gente tava só falando da sua mudança de escola... - A gente nunca tá só falando de determinada coisa, NUNCA! Tem sempre um outro assunto à espreita, e com você, eu prefiro que seja tudo às claras, sempre. - Beleza. Por mim, tudo bem. Só mais uma coisa. - Sim? - Se o meu pai complicar no lance do cursinho, você diz que tudo bem, que sua mãe paga. - Mas a minha mãe não... ah, saquei... - Isso! Ele vai antever toda a cadeia de acontecimentos: você liga pra sua mãe, sua mãe começa a ligar como uma louca em casa, a minha mãe começa a ficar atormentada, quando se derem conta, o elefante tá no meio da sala, sem saberem o que fazer com ele. Realmente, eu estava bem assessorado no terreno dos pequenos golpes. O apartamento da minha irmã era um dois-quartos honesto na parte mais baratinha dos Jardins, quase Centro (tem gente que chama de Cerqueira César, mas experimente, pra ver se alguém reconhece de cara. Equivale a chamar o Bixiga de Bela Vista), mas do outro quarto eu só usava mesmo o armário, pois dormia invariavelmente no sofá-cama da sala. O legal era que o apartamento funcionava só como moradia, mesmo, ela não atendia no local, pra isso ela rachava um quarto de flat com umas amigas, ou ia pros locais dos clientes. Até onde pude perceber, sem me alongar em exercícios muito complexos da minha perspicácia, ninguém sacava a real atividade da minha irmã. Aprendi a dirigir em São Paulo, descobri que "caminhos" e "atalhos" tem peso de ouro na cidade, e aprendi a saber curtir o verdadeiro prazer de cruzar a 23 de Maio na madrugada, a admirar o prodígio arquitetônico de avenidas como a Sumaré, e descobrir que a Paulista foi feita para pedestres, qualquer outro tipo de meio de transporte utilizado nela é puro desperdício. De tempo, de energia, de paisagem. Foi muito fácil me acostumar com São Paulo. Eu me senti confortável, pela primeira vez em muitos anos. 7. - Você tá triste? - Legal... Você tá me perguntando. - Claro que tou, né? - É que normalmente não funciona assim; nas sub-relações humanas, a pessoa chega pra outra e diz: "você tá triste...". Mas ao invés de interrogação ao final, lançam umas reticências, saca? Pra dar um ar meio "Olha só como eu te conheço, você está me passando uma impressão de tristeza, e do alto da minha benignidade infinita, te dou a oportunidade de abrir o seu coração!" - Mas você tá triste ou não, porra? - Angustiado... melancólico. Ou apaixonado. - É mesmo? - Uma menina lá do grupo. - E ela? - Não sei. Quer dizer, você perguntou se ela também gosta de mim? - Ou se sabe que você gosta dela. - Acho que não. É uma coisa meio recente, ainda não sei direito o que é, não ta transbordando, ainda. - Não é a namorada do Diretor não, né? - Não... o diretor é meio bicha. - Eu esqueci. Eles normalmente são. - Por quê você perguntou isso? - Ah, porque seria um desses clichês imperdoáveis, Pedrinho. - Ela é atriz. Atriz mesmo, já fez peça e tudo. E também escreve. Me dá os textos dela pra ler; são contos, peças... ela anda pensando em escrever um romance! Eu ainda nem sei a diferença. Romance é um conto grande? E novela, um meio termo? Ela tem uma peça quase pronta, disse que se precisar, vende o carro que ganhou do avô pra produzir, acho isso do caralho! - Será que essa menina vai te estimular a ler? - Ela me emprestou um livro, disse que é o escritor favorito dela! - Que livro é? - Um fininho, chama "Cartas na Rua", acho. - Cuidado! - Com o quê? - Com o Bukowski. - Who? - O autor, Pedrinho; já-já essa mina te apresenta o Kerouac, e aí já era! Suscetível como você é, vai correr o mundo, "On The Road"! - Ela disse que vai me emprestar esse, mas emprestou prum cara que ainda não devolveu. - Tenha ainda mais cuidado com o Jack. - E com a mina, você recomenda cuidado, também? - Com ela não. Você vai quebrar a cara de qualquer jeito, Pedrinho. É a sua cara enfrentar um trapézio sem rede de proteção, essa menina já te encantou, vai te inspirar, te apaixonar e te arrasar. É quase matemático, meu irmãozinho, mas ainda assim você vai se lembrar dela pra sempre, e vai achar que ela é a mulher da sua vida. Não vai? - Eu ainda nem sei se gosto dela. Só tou meio angustiado e melancólico, por enquanto. Mas confio no seu faro. Chegamos ao destino. É a mesma coisa, deixo ela e espero a ligação, normalmente uma hora e meia depois. Se ela não ligar em duas horas, eu ligo no celular dela. Se ela não atender, ou der caixa postal, deu merda! Uma hora e meia é tempo mais que suficiente pra ir até o boteco onde o pessoal do Grupo vai tomar uma cerveja diariamente, preciso conferir se ELA vai estar lá. Acelero o carro ao perceber que cada minuto é importante! 8. O combinado era sempre o mesmo: Se em duas horas e 15 ela não me ligasse, era pra eu ligar, e eu sempre deixava um despertador pra não perder a hora, pois algumas poucas vezes cheguei a ligar em virtude do tempo estourado. Normalmente eram atrasos voluptuários, ou o programa estava bom e ela esticou por conta própria, ou o cliente renegociou sua permanência. Mas a orientação dela era bem clara: se em alguma das vezes em que eu ligasse, ela não atendesse, era pra eu ir direto pra onde ela havia sido deixada, pois havia dado merda. O que ainda não tinha acontecido. Ainda. Naquela noite, passou do horário e eu liguei, mas caiu na caixa; "deu merda", pensei, enquanto me dirigia a milhão pro flat em Moema onde a havia deixado. Ainda bem que, nem dois minutos depois ela me ligou de volta: - Relaxa, Pedrinho, eu tava falando com uma amiga no telefone. A gente tava pensando em dar uma esticada, você tá afim? Olhei no relógio: 3 e meia. - Onde cê tá pensando? - Onde, Pedrinho, onde? No LoveStory, claro! Pra quem não sabe: LoveStory era o bar/boate/balada onde as garotas iam depois dos programas, não necessariamente pra fazer programas. O horário era adequado, segundo diziam, pois eu ainda não tinha ido. Ainda. - Minha amiga é uma gata, Pedrinho, e eu andei falando super bem de você, viu? - 'Bora. A amiga era linda! Linda de um jeito meio estonteante, e eu nunca imaginei que poderia utilizar esse adjetivo, mas não conseguia pensar em nada que fosse minimamente mais apropriado. Ruivinha semi-natural, olhos verdes, alta, peituda peito é fundamental - e um sorriso que era capaz de parar uma guerra, se fosse preciso. Além de mal nos adjetivos, estou pior em metáforas, mas se a minha irmã falou realmente bem de mim pra ela, e isso surtisse efeito, seria capaz de agradecerlhe por toda a eternidade e mais algumas prorrogações. O LoveStory era um inferninho, tal qual eu sempre imaginara um quando ouvia essa expressão. Cheio, uma música extremamente eclética, e o melhor: um DJ interativo, que falava entre as músicas! Duramos lá dentro o tempo de matarmos 3 vodcas com energético, as meninas tomaram umas 20 cantadas e eu fiquei tão preocupado em que postura assumir (Namorado? Irmão? Segurança? Cafetão?) perante elas, que não pude prospectar o ambiente feminino, mas tenho certeza que pouca coisa conseguiria chamar a minha atenção mais do que a amiga da minha irmã. Deby! Débora, provavelmente, mas Déby era perfeito! Aliás, era quase perfeito; perfeito mesmo foi descobrir que a Déby ia pro flat com a gente. "Vamos terminar a festa em casa, tenho vódca muito melhor que aquele veneno falsificado do LoveStory, e nem precisa misturar com energético nenhum", foi o que disse a minha irmã, mas eu nem precisava de vodca nenhuma. Aliás, se minhas intenções se encontrassem com minhas pretensões no infinito das paralelas quase esquina com o final do arco íris, seria prudente da minha parte dosar o meu consumo alcóolico. Acho que não mencionei que no trajeto de volta a Déby veio sentada na frente, ao meu lado. Resolvi medir a temperatura do momento, e procurei alguma espécie de CD bunda que agradasse incontestavelmente, um Jack Johnson ou similar equivalente anti-séptico, mas a própria rádio me ajudou tocando uma música do próprio. "Adooooooro Jack Johnson!" - Foi o que disse a Déby, chegando mais perto de mim a ponto de deitar a cabeça no meu ombro. No outro ombro, mais perto da porta, senti dois tapinhas, provavelmente da minha irmã no banco de trás, provavelmente encorajadores, provavelmente... Chegamos em casa e eu dispensei a vodca, bem como alternei Jack Johnson por "Underworld", joguei um DVD ao vivo e busquei "Born Slippy", já prevendo a reação que causaria, como de fato causou! - Essa música é demais! Ah, Trainspotting, dá vontade de sair correndo por aí com um All Star branco, não dá? Eu sempre sonhei que meu tipo de homem seria uma mistura de Ferris Bueller com Mark Renton... Não faço a menor idéia do que ela está falando, de tudo aquilo eu só identifiquei "Trainspotting", que é um filme doidaço, mas o resto me pareceu meio esquisito e desconexo. Irrelevante, também, pois a Déby ali podia qualquer coisa, inclusive falar sobre taxa de juros e demais assuntos chatos de economia, ela era a Déby! Percebi que minha irmã tinha entrado pro quarto e de lá não saiu mais. Bom sinal, claro! Esqueminha de mulher, tava na cara! Partir pra cima ou esperar algum sinal mais evidente que terei alguma chance com a mulher mais linda e gostosa do mundo? Ela veio pra cima com tudo e mais um pouco. Bendita música, bendito clima, glória ao álcool, aleluia! O que será que a minha irmã andou falando de mim pra ela? Beijos, muitos beijos! Tirei a blusa dela e fiquei livre das calças, tudo foi se amontoando e a gente só se beijava. Mas se ela me beijava, como eu sentia essa sensação de que alguém chupava o meu pau? A MINHA IRMÃ chupava o meu pau! E chupava muito bem, preciso ser justo, mas porra! Em quantas religiões, culturas e legislações isso é proibido, condenado, execrado? Entrei no clima inevitavelmente, era difícil lembrar de conceitos, princípios e dogmas numa hora daquelas. E a Déby seguia me beijando, mas eu a conduzi de modo que sentasse em cima de mim, sou péssimo em descrições, acomete-me uma certa timidez pra descrever exatamente a dinâmica da cena toda, mas de repente eu chupava a Déby e era chupado pela minha irmã. Sei que é horrível ficar escrevendo isso, deve ser igualmente chocante ler a irmã dos outros fazendo coisas desse naipe, mas o cenário piorou à medida em que ela enfiou o dedo no meu rabo. Quero que fique registrado para toda a posteridade que ninguém jamais havia posto o dedo no meu cu, e rogo pelo seu crédito a ponto de aceitar o fato de que, depois disso, ninguém voltou a colocar. Foda é que, a partir do momento em que você aceita sua irmã chupando seu pau, fica complicado demonstrar pudores com um dedinho enterrado na bunda, mas de fato estava desagradável, a despeito de todos os conselhos dados nas sessões de cartas de revistas femininas. Usei minha linguagem corporal pra dar uma gingada com a pélvis, tentando demonstrar que não estava legal a, digamos, carícia, e ela, "do ramo", entendeu perfeitamente. Com menos escrúpulos, acabei gozando com ela ali na função, quase ao mesmo tempo em que fiz a Déby gozar, o sonho de todo homo erectus (perdão, foi inevitável) ali acontecendo comigo, à parte o fato de uma das participantes desse Calígula Pocket Show ser a minha irmã. Que, por sinal, sendo a única que não gozou, foi pra cima da Déby, e enquanto eu passava pela depressão post coitum, acabei me deleitando com todas as peripécias das duas, evitando cochilar e adiando ir até a cozinha pegar qualquer bebida. Todo mundo gozado e gozoso, minha irmã enfim saiu, me deu um beijinho bem carinhoso na bochecha (sem ironia) e eu transei um monte com a Déby naquela noite. Um monte é um monte, sinal também de que não contei "quantas" foram, até pela irrelevância de tal aritmética. Ela foi embora de manhã, sem acordar nem dormir nem nada. O sol beteu forte na janela da frente e ela disse que precisava ir de qualquer jeito. Linda, linda, linda! Mais uma sexta-feira que o Cursinho não teria a honra da minha bon vivant presença, cochilante mesmo com o sol na cara, sofá pra que te quero... ********************************************* Fui acordado pela minha irmã, com um copo de suco de laranja e uns pãezinhos de queijo bem quentes. Claro que tinha tudo pra pintar um climão, mas ela encurtou o caminho: - O que você achou de ontem? - Achar o quê, né? - Ficou chateado? - Não... ainda não parei pra pensar, na verdade. - Nem eu - ela riu, e imaginou que era a deixa pra eu cair também na gargalhada, o que não aconteceu e instaurou, com pequeno atraso, o climão. Ela foi pra cozinha, talvez ganhar distância, e de lá mesmo me disse - Eu não queria te grilar nem nada. Foi meio instintivo, e sei lá... tenta entender: eu te considero SIM, meu irmão. Mas não reconheço o impeditivo que torna o que a gente fez ontem algo errado, proibido, condenável. Faz sentido? - Teoricamente sim, Nina, mas... - Eu não consigo aceitar que a sua mãe foi ter alguma coisa com o meu pai! - Oi? - Eu sempre achei a sua mãe "demais"! Ela era A cantora, algumas músicas dela faziam todo o sentido pra mim, foi completamente estranho descobrir que ela tinha um rolo com um cara casado, do interior de São Paulo. O meu pai! - Num tou conseguindo acompanhar... você ficou decepcionada com a minha mãe?! - Pode-se dizer que é um ângulo interessante de ver a coisa, mas não é exatamente isso. Eu sempre tive uma certa curiosidade sobre você, a sua figura, o "Pedrinho do Sítio"! E quando você foi morar com a gente, eu achei aquilo o máximo! - Não tanto quanto a sua irmã... - Uma idiota, a SUA irmã! Caguei pra ela, cago pra ela desde os tempos mais remotos, foda-se. Era a cara dela não te aceitar em casa, dar chilique, bancar a TFP e tudo. Mas você entendeu o porquê de ontem? - Eu acho que o porquê de ontem não chegou a ser explicado, nem será, mas eu entendo aonde você quer chegar sim. Só tem uma coisa que não ficou muito clara pra mim. A Déby também?... - Faz programa? - Isso. - Olha... eu diria que ela é free-lancer. - Como assim? - A Déby hoje é aeromoça, ganha uma grana boa, tá prestes a fazer só vôo internacional e tudo, mas no passado ela fazia programa sim. Família de classe média que perdeu muita grana no Plano Collor, ficou meio perdida, até acho que pagou o curso de aeromoça com a grana da putaria. - E hoje em dia? - Recai de vez em quando, faz uns "frilas", como eu te disse. Cliente antigo, ou dicas muito boas, grana alta e fácil. - Deixa eu te perguntar, ontem foi... - Foi o quê? - Programa? - Não, fica tranquilo! Não teve nada de profissional ontem, foi amadorismo puro! Você achou a Déby muita areia pra você, é? - Ela é muita areia pra mim! - É linda, né? Ah foda-se, vou te contar: ela me aluga faz tempo, querendo dar pra você. É uma coisa muito louca dela, de querer transar com o "Pedrinho do Sítio". - Uma fantasia? - Tipo isso. Já pensou em explorar melhor essa possibilidade? - Nunca imaginei que alguém pudesse ter esse tipo de tara. O curioso é que eu sempre quis transar com uma aeromoça, desde quando eu sempre ia sozinho pra Nova York e elas meio que cuidavam de mim. - Interessante... - Por que "interessante"? - Porque é interessante, ué. Sem outros significados profundos ou psicanalíticofreudianos, só achei interessante essa tara. Sempre achei aeromoças um tanto assépticas. - Ah não...! Eu me imaginava tomando um drink com uma delas no aeroporto... - "Tomando um DRINK"? Só o Tony Ramos e o Tarcísio Meira tomam drinks, isso se for na novela das 8! - Ok, ok. Me imaginava saindo com uma delas, uniformizada, com o coque e tudo, pronto pra desarrumar, cabelão caindo todo bagunçadão, e sexo animal all night long! - Uau! Fez todo o sentido agora... pode deixar que eu dou um toque na Déby e da próxima vez ela vem uniformizada. - Próxima vez? - Por que não? - Legal... Interessante que a gente ficou se olhando, e mesmo sendo as primeiras horas do dia pra nós, entendemos que era um bom momento pra primeira cerveja, que ela trouxe com dois copos estrategicamente climatizados. - Tem uns pedaços de pizza na geladeira, você quer que eu coloque no micro? - Não precisa, eu prefiro fria. - Fria? Mas é de mussarela, o queijo tá duro! - Eu prefiro. E acho que a pizza, assim, é a mais honesta de todas as comidas. Ao comer um pedaço de pizza que tá na geladeira, vem só a pizza, nenhuma expectativa a mais, sacou? - Existem mulheres "pizza fria"? - Existem equivalentes e amostras pra essa metáfora em todo lugar. Mas eu só tou falando de pizza mesmo. - A gente nunca tá só falando de Pizza, Pedrinho! - "As you wish"... - disse imitando a voz do Darth Vader enquanto metia os dentes no queijo semi-duro da pizza de mussarela, café da manhã completado com cerveja, cinismo, iconoclastia e niilismo sem medidas. Macunaíma são os outros, pois de heróis nós não tínhamos nada, mas "sem nenhum caráter" colava na gente como decalque da OP nos anos 80 colava em qualquer vidro de carro. Já tinha tocado o "foda-se" pro cursinho, acreditava piamente que o meu lance com o grupelho de teatro realmente ia dar em algum lugar e confortava-me com o "emprego" que a minha irmã havia me arrumado. O salário não era lá essas coisas, claro, mas eu tinha onde morar, comida, roupa lavada e passada e cheirando a confort, além de possibilidades "Debbys" que se abriam cada vez mais, bastando apenas ampliar as minhas perspectivas. - Acho sua mãe um tesão, Pedrinho! - Sexualmente falando? - Totalmente! - É mesmo? A sua sempre me tratou muito bem, mas nunca mexeu com meus chakras básicos. - Acho que por não mexer com os chakras básicos do nosso querido pai que ele foi mexer com os chakras e tudo mais da sua mãe. - Interessante... - Olha, eu tenho que te perguntar, mas não se ofenda nem se sinta constrangidinho, tá? - Medo. - Você aceitaria fazer uns programas? - Não. - Nossa, tudo isso é convicção? - Acho que sim. Não me vejo fazendo isso. - Não se vê fazendo o quê, trepando? - Boa ação diversionária, sister, mas acho que você me entende. - Claro. Mas pensa aí a respeito, viu? - Você diz isso porque acha que eu... sei lá... levo jeito? - Levar jeito é algo muito vago nessa área, Pedrinho, eu ainda não tenho elementos suficientes pra te avaliar. Mas eu posso dizer que você tem um pau legal. - É? - Tira esse sorrisão da cara, moleque, não tou dizendo que você tem um pauzão, que é o ápice do elogio ao ego e cercanias da mente masculina. - Você disse que o meu pau é legal... - Sim, e é mesmo. Mas não quer dizer que seja um super pau, apesar de que, normalmente um pau grande é um pau legal. O que eu quis dizer é que seu pau é bacana, não tem esquisitices como peles sobrando nem é torto pra nenhum lado. - Enfim, um pau legal? - Sim. - Mesmo assim, a resposta ainda é não. - Ok. - Mas como seria, hein? - Como seria o que? - O processo todo, dá pra saber se a mina é muito baranga antes? Pois vocês nem precisam se preocupar em levantar nada, né? - Ah, eu te colocaria em esquemas legais, junto comigo ou alguém de confiança, normalmente casais. - Casais? - É, tem uns caras que gostam de ver outro cara comendo a mulher dele, mas eventualmente eles gostam de levar na bunda também. - Tá bem louca? Agora é que não, não e NÃO definitivamente! Enrabar peludo... - Isso tudo é preconceito? - É uma mera questão de preferência, Nina, não me venha com discursinhos! Eu me reservo o direito de escolher quem eu como, e a regra é que minhas relações sexuais serão restritas a indivíduos do sexo feminino. - Nem por muito dinheiro? - Eu prefiro não abrir esse canal de debate, prefiro nem sequer definir o que é "muito dinheiro". Ficamos assim? - Ficamos. - Mas se algum dia pintar algum lance como o de ontem, só "por amor a camisa" mesmo, acho que você pode contar comigo. - Acho que você tá querendo me comer, Pedrinho... Ela riu. Riu de um jeito que foi suficiente para eu perceber que esse era um daqueles momentos em que você está prestes a ter que se decidir. Ela era linda, mas era minha irmã. Ela era, ora essa, "puta", mas era minha irmã. Ela até poderia não ser minha irmã na real, pois a minha paternidade foi uma coisa muito mais de consenso do quê de comprovação propriamente dita. Ela era minha irmã, minha irmã, minha irmã! E dessa vez, não seria nada muito alucinante, com música alta rolando e pré-sexo na sala com a amiga, dessa vez EU teria que tomar uma atitude, estava claro que EU deveria dar o primeiro (e, de certa forma, último) passo. Minha irmã foi uma das mulheres mais lindas que eu já conheci... 9 São vários os tipos de ressaca, mas essa que me atrapalhava o desjejum podreira era uma das mais poderosas de todos os tempos. Antes, apresento meu desjejum podreira, que consistia em um x-bacon sem salada e com ovo, acompanhado por uma coca-light de 600 ml, rango que eu encarava por opção, não por sacrifício ou falta de algo mais saudável/nutritivo, pois em casa tinha empregada e se eu quisesse, até poderia comer algo com mais cara de "almoço", envolvendo arroz e feijão, com salada e essas coisas todas. Eu comia aquilo tudo porque gostava de sair de casa e me sentar na padoca simpática que tinha na esquina e conseguia resistir à tentação de se sofisticar como a maioria das padocas da região. E ali eu não precisava me comunicar muito, sabiam o que eu queria, levavam pra mim na mesa e me deixavam ler o jornal ou revistas ou algum livro, sem perguntas desnecessárias ou conversas que não chegariam a lugar nenhum. Acho que o fato dos empregados e o próprio dono serem mau humorados na essência, contribuía muito para minha frequência por ali, principalmente naquele dia específico, em que já mencionei uma ressaca homérica, mas, devo deixar bem claro, uma ressaca merecida! A noite anterior, obviamente envolvendo bebedeira em larga escala, foi inesquecível! Era meu aniversário, mas eu não tinha esperanças de comemoração, até porque me acostumara com o anonimato e ostracismo, não ligava mesmo e estava trabalhando normalmente, até que a minha irmã não me ligou dentro do horário normal, eu esperei um pouco e liguei de volta sem resultado, chegando rapidamente à infeliz conclusão que alguma coisa tinha dado errado. Corri o mais rápido que pude para o hotel onde a havia deixado e nem me dei conta da facilidade com que o porteiro me informou em qual apartamento ela estava. Tudo bem que sempre havia amizade entre esse pessoal do backstage (porteiros, motoristas de táxi, polícia) e o pessoal que exercia a mesma, por assim dizer, "profissão" da minha irmã, mas se eu fosse mais atento, deveria ter desconfiado. Porém, não foi preciso muito raciocínio pra entender o que estava acontecendo quando minha irmã abriu a porta do quarto vestida de "piloto" e eu vi umas 6 amigas dela (Deby inclusa) vestidas de aeromoça. - Feliz aniversário, Pedrinho! Você faz questão da demonstração do que fazer em casos de emergência? Foi uma comemoração e tanto, envolvendo chantily com exagero e algemas com moderação. Chicotes e demais acessórios que induzem à violência não foram requisitados, e eu me senti muito bem vindo aos meus 20 anos, até mesmo a dor de cabeça da manhã seguinte me parecia uma justa paga por tudo aquilo. Mas a temporada de eventos estranhos estava só começando, e no início eu interpretei como delírio a música que vinha do alto-falante da padoca, pois era uma das músicas da minha mãe - a que mais havia feito sucesso na época - cantada por uma voz conhecida, o vocalista de uma dessas bandinhas tchenga-lenga dos Anos 80. Me desculpe se eu não sou mais específico acerca da banda, eu sei que quase todas as bandas desse período eram tchenga-lenga (ainda que você não saiba o que é isso, imagino que faça uma idéia), mas a improbabilidade dessa banda - que eu julgava extinta e consumida pelo limbo da história - cantando uma música da minha mãe só não era maior do que a hipótese da minha mãe estar cantando junto. Eu deveria estar feliz? Não sei, o que tudo isso significava? Tentei me lembrar da última vez que ouvira uma música da minha mãe no rádio, e não consegui me recordar quanto tempo havia se passado, registrei apenas que provavelmente foi de madrugada. Eu estava me levantando pra ir ligar pra ela em casa, quando a minha irmã entrou na padaria com cara de quem tinha ouvido a mesma coisa que eu; aquilo estava realmente acontecendo! O mistério não era tão grande assim, era tudo resultado do projeto "Acústico da MTV", que, dentre outras coisas, ressuscitava bandas que já se encontravam em um estágio pra lá do ostracismo. E essa banda, no caso, resolveu colocar uma música da minha mãe e até convidou-a pra dividir o palco, outra das estratégias comumente utilizadas por esse povo, de chamar artistas de outras épocas, se levemente undergrounds ou malditos, tanto melhor. Sim, o normal seria que eu estivesse sabendo de tudo, acho que me sentiria "prestigiado" se tivesse recebido um telefonema dela comunicando as boas novas, mas tive que tomar conhecimento através do rádio, confirmando tudo com o auxílio da onipresente internet. Daí ao show em si foi tudo uma questão de semanas, mas tudo mudou muito, ao menos em termos de perspectiva! Calhou da música da minha mãe ter sido escolhida como “de trabalho”, tocou pra cacete nas rádios e quando fomos ao Music Hall com nome de algum cartão de crédito ver o show da banda, minha mãe se apresentaria como convidada especial! Ela me disse pra eu ir ao camarim depois do show, que ela tinha uma surpresa pra mim! Passei o dia sonhando com a nossa casa em Santa Tereza, Rio de Janeiro, ou qualquer lugar do mundo, pouco importava, tive certeza que ela iria me chamar pra voltar a morar com ela, enfim! Fui com a minha irmã, camarote open bar e tudo o mais que fosse possível pra suportar as músicas da banda, e quando a minha mãe entrou, me toquei que nunca tinha visto ela num palco daqueles. Vi em bares, teatros pequenos, auditórios de faculdade, mas ali, com todas aquelas luzes e efeitos, a impressão de que algo MÁGICO estava acontecendo só era reforçada. A música era linda! E me lembro de têla escutado tantas vezes na vida, mas nunca como ali, com 5 mil pessoas cantando junto, uma energia inacreditável! Até mesmo pra quem nunca se ligou muito nisso de “energia”, como eu. Foi duro esperar até o final do show, e pior ainda disputar a tapa com adolescentes raivosos o direito de entrar no camarim, mas quando a vi e nos abraçamos, foi... um abraço de mãe! E estar de volta aos braços da mãe da gente é sempre algo indescritível, e quando descrito, dificilmente escapa ao lugar-comum piegas, mas sim, por mim eu ficaria naquele abraço pelo resto da noite! - É a sua namorada? Claro que eu ia dizer que não era, mas a minha irmã se adiantou e disse “sou, muito prazer!”, e deliberadamente jogou um charme pra cima da minha mãe. Até aí eu não me surpreendi, minha irmã era um tanto destrambelhada mesmo, eu até poderia dizer que isso era “a cara dela”. Por outro lado, quando a minha mãe RETRIBUIU o flerte, aquilo me desconcertou completamente! Fiquei olhando as duas ali e pensando “E se fosse verdade?”, sem saber direito como reagiria se a minha mãe de fato desse em cima da minha namorada! Não desmenti ninguém, deixei as duas naquela esgrima esquizofrênica de olhares e gestuais. E a surpresa que a minha mãe tinha pra mim era um carro. Um carro zero, “mil”, mas podia ser uma Ferrari que não substituiria o que eu imaginava que seria a surpresa! Estou falando sério, até porque não sou dos mais ligados em carros, e só pensaria em trocar o que eu queria por um carro se ali estivesse o Mach 5 do Speed Racer. Não sei se consegui disfarçar a minha decepção, pois ela parecia verdadeiramente feliz em me dar aquele presente, e era pra estar mesmo, ela não tinha nada a ver com as minhas expectativas. Na verdade, tinha sim, pois não é um absurdo nenhum um filho querer morar com a mãe, A MÃE! Sim, algumas relações nesse sentido são bizarras, caras com mais de 40 morando com a mãe foge ao natural, mas não era o meu caso! E ainda fiquei pensando se em algum momento passou pela cabeça dela querer morar junto comigo, ou se eu era como um dos amigos da sua lista que você lembra que precisa contemplar depois que ganhou sozinho na Mega Sena. 10-SUTIL PARADOXO Já ouvi dizer que o Brasil e a África um dia foram um só. Simples assim, pelas bordas e por alguns outros indícios, dizem isso pra gente e pronto, acreditem! Quer dizer, em alguns cursos extremamente específicos devem explicar de onde vem essa teoria, e devem ir mais além das bordas que praticamente se encaixam como se fossem peças do maior quebra-cabeças do mundo, mas pra leigos e incautos como eu, entregaram dessa forma e me mandaram acreditar. Da mesma forma, mas agora eu acho que quero dizer outra coisa, tem o Baratão do Kafka. O cara que vira barata na Metamorfose, acho que você sabe do que eu estou falando, mas tenho um professor no curso de teatro que outro dia começou a explicar o que aquilo significava. Quero muito acreditar que tamanha asneira tenha simplesmente vindo da cabeça dele, pois nada pra mim fazia tanto sentido quanto simplesmente aceitar que o cara virava uma barata e dali pra frente era tudo uma questão de ir adiante com a história. Eu queria que o mundo fosse um lugar onde o baratão do Kafka dispensasse explicações e significado, ou então que me explicassem de forma mais convincente esse negócio da África e do Brasil se “despregarem”, ainda que, mesmo à falta de explicações plausíveis, mesmo a teoria per se já explique um monte de coisas. O que eu quero realmente é não ter que te explicar muita coisa sobre essa passagem de tempo entre o último evento e o próximo, pois não faria muito sentido colocar a coisa em termos de dias, meses, anos, na verdade nem um ano se passou, basta? O tempo passou, posso te dizer isso, devo te dizer isso, e minha mãe novamente se inseriu na minha vida que pouco mudara desde o show no qualquercoisamusichall, e com isso, mais uma vez me fez pensar que pensava em me levar pra morar com ela de novo. Mas tudo é uma questão de perspectiva, e tudo porque ela mencionou arroz com ovo. Arroz com ovo era o que a gente jantava toda noite na casa de Santa Tereza, e sempre tive aquilo como a mais doce das minhas memórias, mesmo que no lugar do arroz fosse pão francês, o importante era o ovo mole, cientificamente frito sem quebrar a gema, que seria perfurada pelo garfo ou pela casca do pão, conforme o instrumento que estivesse mais à mão. O importante era esperar essa hora do dia, depois dos desenhos que passavam na TV e que eu assistia logo depois de chegar da escola, minha mãe me mandava pro banho e quando eu saía, já de pijama, ela me colocava na bancada da pia da cozinha enorme enquanto fritava os ovos e esquentava o arroz (quando tinha arroz). Era a cozinha que era enorme ou eu que era muito pequeno? Acho que tudo é só uma questão de prisma e perspectiva, pois minha mãe queria dizer algo totalmente diferente quando falou comigo que queria conversar comigo sobre “arroz com ovo”, que também era o nome de uma música dela. Quer dizer, uma “brincadeira” que a gente fazia, uma coisa nossa mesmo, que nunca chegou a ser formatada, mas tecnicamente, era a nossa parceria, a nossa música, uma poesia bêbada e pueril inventada por uma mãe e seu filho ao longo de muitos e muitos anos jantando a mais prosaica das refeições e sempre dando um jeito de transformar isso em um acontecimento. Às vezes cantávamos em dueto, outras vezes fazendo primeira e segunda voz, mudávamos a letra, incluíamos partes aqui e ali, e assim a vida ia seguindo. Até que esquecemos disso. Até que ela me chamou ao Rio pra comunicar que em virtude do sucesso da sua música no Acústico da bandinha bunda, recebera um convite da MTV pra fazer o seu Acústico, e pensava em incluir “Arroz com Ovo” no repertório. - O quê? - E eu queria que você cantasse comigo? - Queria que eu... Era sempre assim. Não teria graça simplesmente pedir algo bizarro, o legal era atordoar pedindo algo ainda mais bizarro em seguida, tornando tudo meio inegável. E mesmo que eu dê a entender que daqui pra frente as coisas vão parecer a separação que ocorreu entre o Brasil e a África, adianto que, em virtude das separações que acontecerão nessa passagem de tempo que não quero medir, é melhor que você aceite a coisa como baratão do Kafka e siga adiante. Assim todo mundo sai perdendo menos. - O que você anda fazendo, Pedrinho? - Agora? - Não... – aquele silêncio depois da resposta monossilábica e negativa deixava mais ou menos claro que eu deveria ter entendido o que ela queria dizer com aquela pergunta. Resolvi arriscar: - No final do ano eu devo ajudar no cenário e luz na peça que a escola vai montar, é um texto do Vianinha. - E aí? - E aí o quê? - Você vai ajudar nessa peça, mas o que você quer? - Olha, eu... honestamente, eu não tou entendendo onde você quer chegar. - Eu tou indo embora. - Embora? - É. E mais um monossílabo precede um silêncio idiota, como se tudo fizesse o maior sentido, como se as explicações fossem um luxo, um supérfluo do qual se abre mão na gôndola dos produtos importados num supermercado. - Você vai embora pra onde? - Pra Suíça, perto da fronteira com a Itália. A descrição geográfica era quase perfeita, embora o meu conhecimento do mapa da Europa não ajudasse muito a dar uma idéia, mas foda-se a geografia, o sentido daquilo não estava no futuro endereço dela. - Existe um plano? Um projeto? O que tem na Suíça? - Putaria. Pagam em Euro. Um programa de 15 minutos custa 80 Euros, o movimento é gigantesco nessa época do ano, pretendo fazer 100 mil em 3 meses! - Isso é... Eu não conseguiria dizer em voz alta o que aquilo me parecia. Primeiro, eu tinha que ter certeza que não se tratava de uma brincadeira. Tentei recapitular: eu estava na sala, vendo “Chaves” no meio da tarde, e ela me perguntou mais ou menos o que eu ia fazer da minha vida. Pra depois falar que ia pra Europa fazer uma grana dessa forma? - Mas você não precisa de dinheiro! - Quem disse? - E precisa? - Todo mundo precisa de dinheiro, Pedrinho! - Ta bom, ta bom. Mas você não precisa se submeter a ISSO por dinheiro! - Como você chegou a essa conclusão? - Eu não cheguei a conclusão nenhuma, eu só acho isso. ACHO. Suponho. E imagino que se você usar o bom senso, vai achar isso também! - Eu comprei a minha passagem. Eu tou indo no sábado, mas é claro que você pode ficar aqui no apartamento, alguém teria que ficar aqui cuidando das coisas, das minhas plantas... - PORRA!!!! - O que foi? - Você não vai pra Suíça porra nenhuma! A gargalhada dela foi muito mais humilhante do que um soco na cara que tomei no meio do recreio quando eu fazia quarta série! - Pedrinho... – o tom de voz seguiu o intuito da gargalhada. - Porra... Suíça? No sábado? - Vão ser só 3 meses. E pode ficar tranqüilo que você não vai ficar desempregado, capaz até de ganhar muito mais, vou te indicar umas amigas. - Você não entende. - O quê? - Que isso pra mim não é um emprego. E que eu não vou ficar de motorista pras suas amigas, nem fodendo! - Vai viver de quê? - Minha mãe vai me sustentar, ta enchendo o cu de grana com esse “revival” que inventaram pra ela! Outro dia eu li uma crítica dizendo que é impressionante como ela sempre está sorrindo enquanto canta, mas é claro que está! Outro dia estava no limbo, ninguém lembrava dela, não ganhava um puto, e só porque uma bandinha bunda a descobriu, a coisa mudou. Tem que rir mesmo, tem que rir muito! – A minha irmã riu. Eu adorava quando a fazia rir – Olha, a minha mãe me pediu um negócio escroto, mas... - Que negócio? - Ela quer que eu cante uma música com ela no Acústico. - Que barato! - Eu tinha certeza que você ia achar o maior barato, mas não é o maior barato! O objetivo disso passa longe de ser o maior barato! Não faz o menor sentido que as pessoas me vejam CANTANDO com a minha mãe. Que as pessoas pensem que nós temos uma relação linda, que “levar um som em casa” era uma coisa super natural, eu disse que não ia fazer isso! Mas agora eu tou pensando em mudar de idéia. - Aí, já ta pensando no que fazer da vida, ao invés de dar uma força na cenografia e luz da peça de final de ano da escola! - Não. Eu vou fazer isso pra te dar a grana. - Quê? - Não sei se vou ganhar 100 mil, mas... - Pode parar! Pedrinho, puta que pariu! Já te ocorreu, nesses breves minutos em que você traçou essa estratégia esdrúxula, que se eu quisesse ser sustentada por alguém, eu poderia muito bem escolher que esse alguém seria o meu pai? Ou um marido? É claro que a opção do marido, além de estúpida, reserva mágoas e decepções num futuro não muito distante, mas você ta acompanhando a minha linha de raciocínio? - E aí você escolheu esse caminho? - Eu o que? - Você detesta os homens. A instituição homem, o conceito homem. O que quer que seja, você resolveu ser... - Puta! - Isso. Você escolheu ser... prostituta porque... - Porque era o mais fácil. Não venha, por favor, querer analisar a minha opção. Foi matemática pura! Não existe um motivo por trás, nem revoltinha ou desejo de vingança, meu pai não deixou de me pagar um curso de inglês por sovinice, eu sempre tive tudo o que quis. Sempre! E os homens são todos uns idiotas, sim, mas isso só facilita o meu trabalho! - Por quê? - Porque vem todos com a idéia que são exclusivos! Ou que tem o pau do século, ou que ganharam uma medalha de chupador emérito de bucetas, sempre achando que são melhores que os outros. Sempre com medo de encarar a verdade, vem pra cama comigo achando que vão dar espetáculo, “vou mostrar pra essa putinha como é um homem de verdade”, isso pra não falar naqueles com vocação pra apóstolo, os que acham que vão “me tirar dessa vida”, que vão me mudar. Você quer me dar uma puta grana pra eu não ir pra Suíça, pra quê? O que vem depois disso? Eu sou isso o que você ta vendo, eu não vou deixar de ser puta por você, talvez por ninguém, mas por você, tenho certeza que não. - Eu queria que você não fosse embora, só isso. Eu quero que você fique aqui comigo, exatamente do jeito que você é. Eu não iria te pedir pra mudar absolutamente nada. Só pra você ficar. Ela não falou nada. Virou de costas pra mim. Olhou pra cima. Te dou o direito de imaginar que música poderia tocar ao invés desse silêncio que ficou entre nós dois por quase um minuto, não sei dizer, já deixei claro meu desprezo por determinadas passagens de tempo, mas ela foi andando em direção à porta. - Aonde você vai? Eu vou sair. Eu te levo. Eu vou a paisana, Pedrinho. Ta, mas... e se der alguma merda? Ela enfim se virou na minha direção. Veio e me beijou. No rosto. Com um abraço. Disse pertinho da minha orelha: - Os homens são todos uns idiotas, Pedrinho, mas eu não quero que você seja um. Nunca mais fale pra uma mulher que quer ficar com ela sem que ela mude absolutamente nada. E pode ficar tranqüilo, se der merda eu te ligo, como sempre. Mas vai dar tudo certo... 11 Acho que foi alguma forma de conspiração a meu favor que organizou as coisas daquela maneira. Deixei a minha irmã no aeroporto de madrugada e, na volta pra casa, ouvi pelo rádio a notícia da morte da minha mãe num acidente de carro. É claro que assim, eu não tive muito tempo de assimilar a ida da minha irmã pra Suíça fazer o que ela pretendia, mas como ela mesma disse, eram apenas 3 meses. Minha mãe estava morta, obviamente, pra sempre. Era incrível que as notícias envolvendo ela chegavam a mim dessa forma, pelo rádio ou pela MTV. É claro que tudo isso é uma maneira de tangenciar a coisa em si, pois pouco importava como eu tomava conhecimento do fato, e sim o fato propriamente dito. Eu achei que fosse desmaiar em plena Marginal Tietê, parei o carro no primeiro posto que achei aberto e fiquei pensando no que fazer. Voltei ao aeroporto e tentei me enfiar no primeiro vôo para o Rio. Antes disso, um pouco de drama, na espera silenciosa pelo avião. Os jornais do dia chegaram e constatei que a morte dela tinha ocorrido depois de fechada a edição... estava me prendendo a cada detalhe cheio de irrelevância, como se algum deles pudesse mudar o que tinha acabado de acontecer. De qualquer forma, era muito estranho. Nenhum tio pra ligar, nenhum parente próximo, nada! Eu fui pro Rio, mas não sabia pra onde eu precisava ir. Primeira parada: Instituto Médico Legal, por puro instinto e um pouco de orientação. Tive que ligar pro meu pai, como último recurso: - Pai? - Você sabe que horas são? - Minha mãe morreu nessa madrugada, de acidente de carro, eu tou indo pro Rio... Eu não sei se esperava que ele me dissesse pra aguardá-lo no aeroporto que ele iria comigo, via minha situação de uma maneira tão precária, que qualquer coisa QUALQUER COISA – serviria. Ele me pediu para aguardar uma ligação, que iria ver com o seu advogado acerca de providências, e assim, eu soube que deveria ir direto para o IML do Rio, a fim de reconhecer o corpo. E foi só. Meu pai entendeu que ao me dar essa informação, estava com a “missão cumprida”, não me perguntou se eu precisava de alguma coisa nem nada. Ficou mais ou menos claro pra mim que eu não deveria esperar por ele no velório. No velório, eu vi os primeiros rostos familiares, embora eu não conhecesse nenhuma daquelas pessoas. Eram cantores, compositores, artistas de um modo geral, de quem eu tinha discos ou cujo trabalho eu acompanhava pela televisão. Fãs, aos montes, meninas de mãos dadas, de cabelos curtos, óculos escuros estilo aviador e munhequeiras de couro, se beijando e cantando músicas da minha mãe, uma espécie de heroína, porta-voz e agora mártir de algum tipo de lesbianismo pretensamente cool e extremamente popular entre as adolescentes. Uma jornalista me perguntou se eu era filho dela; uma outra quis confirmar se eu tinha sido o “Pedrinho” da primeira versão do Sítio do Pica Pau Amarelo, e antes que as coisas começassem a ficar muito incômodas, a namorada-companheira-esposa da minha mãe apareceu e se apresentou. Advogada, que conveniente! Foi a primeira pessoa que me abraçou, e ficou naquele abraço por muito tempo, sem conseguir parar de chorar. Me deu a mão entrelaçando os dedos aos meus e pareceu querer ficar ali até que tudo terminasse. Foi quando eu entendi que as coisas com a minha mãe tinham acabado antes que eu e ela pudéssemos nos sentar com as cartas na mesa para o acerto de contas. A última vez que eu vi a minha mãe foi no Rio, na casa de Santa Tereza que ela transformou em Studio e Escritório dela, agora que a carreira ia de vento em popa, com a “redescoberta” de sua obra, disco acústico pela MTV e algumas de suas canções sendo gravadas por artistas “da moda”. Ela tinha me pedido pra cantar “Arroz com Ovo” como parte do repertório do disco acústico. Na hora, eu disse que não, “nem fodendo”, me neguei terminantemente a participar da gravação que seria dali alguns dias e que transcorreu sem a minha presença. O material estava pronto e eu tinha recebido uma cópia em casa, onde ela canta “Arroz com Ovo” e diz que era uma música que tinha feito comigo, o grande companheiro dela... eu gostei daquela versão, era a primeira vez que a música era gravada oficialmente. Eu digo oficialmente, porque extra-oficialmente fizemos um take no estúdio de Santa Tereza, onde antigamente era o meu quarto. Era um dueto simples, com ela ao piano e eu tocando os únicos acordes que ainda me lembrava no violão, ficou uma coisa realmente tosca, mas ela disse que tinha sido a melhor parceria da vida dela. Depois disso, fui encontrá-la de novo sobre uma maca de ferro no IML, e me impressionou o fato dela estar só de calcinha, nem mesmo um lençol a cobrir seu corpo e seu rosto bastante machucados. Tempos depois, vim saber que isso é mais ou menos uma estratégia dos legistas, que conforme o choque demonstrado pela pessoa, mais legítimo é o reconhecimento. O que quer que seja, fez com que eu perdesse a força nas pernas, literalmente, sendo amparado pelo funcionário que estava me falando que conhecia alguém que poderia embalsamar o corpo por um preço melhor que o que cobravam no mercado, mas eu consegui ignorá-lo e sair dali com a certeza que não precisava. Eu não esperava ver o meu pai no velório, mas esperava menos ainda ver a esposa dele e a minha irmã. A minha outra irmã, a que não falava comigo. - Meus sentimentos. Foi a primeira coisa que ela me falou. Convivemos por quase 7 anos na mesma casa e ela nunca me dirigiu a palavra, e agora isso: “meus sentimentos”. Quais? Sim, minha filha, de quais sentimentos estamos falando aqui? Quero ver a prova da existência desses sentimentos, de preferência com firma reconhecida em cartório, pois eu não acredito que eles existam, lembre-se, EU SOU A PROVA VIVA DE QUE O SEU PAPAI PULOU A CERCA E ESTRAGOU A SUA IMAGENZINHA DE SAGRADA FAMÍLIA! - Obrigado por vocês terem vindo... - Você ta precisando de alguma coisa? Tem onde ficar? Antes que eu me desse conta que não tinha simplesmente pensado nisso, a namorada da minha mãe falou: - Ele vai ficar em casa. Eu deveria ter me sentido confortável, certo? Era pra eu me sentir em casa? Eu nunca mais vi a minha outra irmã, por quem eu ainda era profundamente apaixonado. Por um momento, eu desejei que a minha história fosse roteirizada por algum autor medíocre de novelas da Globo e um Exame de DNA pudesse determinar que eu não era filho do meu pai e aí, todas as coisas que fizemos e tudo aquilo que eu sentia poderia ser simplesmente perdoado. Mas na verdade, qual hipócrita moralista eu queria convencer com isso? Eu não me sentia nem um pouco culpado por nada, do sexo ao amor, passando pela paixão, o que me incomodava era o fato de não haver reciprocidade da parte dela. Ela desapareceu pra sempre da minha vida. 12. - Quantos anos você tem mesmo? 20. Estuda? Faço Teatro no “Macunaíma”, lá em São Paulo. E canta, também? Não. Ela ficou me olhando, como se quisesse entrar em alguma espécie de assunto verdadeiramente delicado. - Nunca pensou em cantar? - Profissionalmente, você diz? - É. - Nunca. Por que você ta me perguntando isso? - Sua mãe me mostrou a gravação de “Arroz com Ovo” que fez com você. Eu já estava “morando” com ela há uns dois meses, no apartamento que vivia com a minha mãe. Ela estava me ajudando com o que chamava de “providências legais” envolvendo a morte dela. Eu era o único herdeiro, ia ficar com a casa de Santa Teresa, os direitos autorais e alguma grana que ela tinha no banco. Aparentemente, o contrato com a MTV tinha sido muito bom e, em termos de marketing, a morte dela tinha sido uma excelente “estratégia” de lançamento do seu Acústico. A namorada da minha mãe era muito rica, não ia entrar em nenhum tipo de disputa comigo pelo que quer que fosse, e a menos que eu estivesse muito enganado, pretendia “cuidar” de mim dali por diante. - Olha, Eduardo, eu posso estar sendo muito intrometida ao dizer isso, mas preciso te falar, pois de uma certa forma, eu trabalhei como empresária da sua mãe com todos esses contratos mais recentes que ela assinou, e que de uma certa forma acabaram garantindo o seu futuro. Ela não concordava com muita coisa que teve que fazer nesse Acústico, dividiu o palco com alguns artistas que realmente desprezava, mas dizia o tempo todo que era por você, que queria, antes de ficar priorizando a sua “integridade artística”, garantir que você pudesse ser independente sem ter que voltar a pedir dinheiro pro seu pai. Ela ganhou um bom dinheiro e você vai ganhar bastante com as vendas do Acústico, mas ela esperava que o seu “pé de meia” viesse com essa turnê. - Interrompida. - É... interrompida. Mas existe uma forma de garantir essa sua “previdência”. - Pode falar. - O Acústico vai vender pra cacete, todo mundo sabe. Mas nem se compara com o que venderia o material que ela deixou... as inéditas, o Baú dela! Tem muita coisa legal ali, que ela se dedicou de verdade e que ela achava que era a essência da sua música! Tem duas gravações de músicas que ela fez com Cazuza e que ninguém nunca gravou, nem sonham que existe! - E eu tenho que concordar? - Tem. E tem que permitir que aquela gravação de “Arroz com Ovo” entre no disco... Será que eu estava disposto a cometer essa necrofilia com a arte da minha mãe? Primeiro, eu queria saber de quanto estávamos falando, se era realmente um dinheiro que me possibilitaria nunca ter que trabalhar com nada que não estivesse minimamente ligado a teatro. Eu queria ter a segurança de que, ao permitir algo desse tipo com a obra da minha mãe, pelo menos iria aplacar a consciência sendo um artista, como ela queria que eu fosse. Na verdade, nós nunca tivemos uma conversa nesse sentido, como nunca tivemos um monte de conversas que os filhos tem com as mães. Durante muito tempo, minha mãe foi pai & mãe pra mim, ouro de mina como diz aquela música do Djavan que ela cantava muito melhor que o próprio Djavan. Depois, meu pai não conseguiu ser absolutamente nada na minha vida além de um fornecedor de dinheiro para o meu sustento básico, produzindo em mim um desejo de fugir de perto dele o mais rápido que desse. Eu achei que era só uma questão de dinheiro, mas de repente me tornei incompatível com a vida da minha mãe, e ela foi embora antes que eu conseguisse aceitar ou entender como isso aconteceu. Quando eu disse que escrevi tudo isso aos 40 anos, tentando lembrar essas coisas que aconteceram quando eu tinha 20, menti. Eu sou o mesmo jovem de 20 anos que acabara de perder a mãe e o primeiro amor no mesmo dia, cada uma de um jeito diferente, mas pouco importava. Fiquei sem nenhuma das duas. Se eu realmente tivesse 40 anos, poderia dizer que a minha irmã morreu graças a drogas muito fortes ou um coração muito fraco, mas eu ainda não sei disso. Eu sei muito sobre a perda, entretanto. O que tenho visto de gente falando sobre a separação de uma banda favorita, ou do campeonato que o seu time de futebol perdeu e a derrota parecia impossível, fico com muita inveja da importância que essas pessoas conseguem dar a isso. Eu queria ter 40 anos. Queria saber que tudo isso passou, que eu consegui me tornar um adulto, não me suicidei e aprendi a lidar com a vontade de morrer – essas duas coisas se confundem de um jeito muito particular na minha cabeça... Fiquei mexendo nas coisas da minha mãe e encontrei uma foto dela com o Cacaso marcando o livro de poesia dele, justo nessa aqui: “Minha pátria é minha infância Por isso, vivo no exílio” Epílogo - Eu concordo com a inclusão da nossa versão de “Arroz com Ovo”, com uma condição. - Qual? - Eu quero que entre uma música que eu fiz ontem. Pode colocar que a letra é minha e dela, pouco importa, tem tanta coisa que eu acho uma merda nisso aí que a gente ta fazendo... eu vou pra Santa Tereza agora gravar, você pode pedir pra algum técnico de som ir pra lá? - Posso, claro. - Será que você consegue alguma cantora pra fazer esse dueto comigo, pra ficar parecido com “Arroz com Ovo”? - Você tem alguma em mente? - Seria legal alguma dessas bem lésbicas, mas pode ser alguém que é a nova Marisa Monte da semana, ou algo do gênero. - Eu posso sondar quem se interessaria, talvez demore algumas semanas. - Tudo bem. Eu posso ficar morando aqui com você até... - Até o dia em que você quiser ir embora, Eduardo. Você pode ficar aqui o tempo que você quiser, essa casa é sua! - Você não quer ir pra Santa Tereza comigo ensaiar? - Ensaiar? - Você não canta? - Profissionalmente? - Profissionalmente... a gente está prestes a lançar um disco que vai vender como água só porque uma pessoa morreu jovem, eu canto duas músicas nesse disco, por que você resolveu se importar com profissionalismo agora? Eu fiz a letra da música em 15 minutos, e devia ser tão ruim quanto qualquer uma dessas músicas que fazem sucesso nas rádios atualmente. Depois, coloquei os 3 acordes de violão que eu sabia fazer e o resultado saiu como eu esperava. Entramos no estúdio, ligamos os aparelhos, eu entreguei a parte que a namorada da minha mãe cantaria e disse: - É sobre o tempo que eu passei longe da minha mãe, foi o melhor que eu consegui fazer. Chama “Pizza Fria”. Sorocaba, 23 de março de 2008