Ensaios de Geografia Crítica
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Ensaios de Geografia Crítica
Ensaios de Geografia Crítica José William Vesentini Ensaios de Geografia Crítica História, epistemologia e (geo)política EP Editora Plêiade São Paulo 2009 Copyright © 2009, José William Vesentini Direitos Reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização expressa do autor e do editor. Capa: Débora Gomes Déscio. Revisado pelo autor. Ficha de Catalogação V575e Vesentini, José William Ensaios de geografia crítica: história, epistemologia e (geo)política / José William Vesentini. - São Paulo: Plêiade, 2009. 220 p. ISBN: 978-85-7651-111-3 1. Geografia – História 2. Geografia - Filosofia I. Título CDU 91 (Bibliotecária responsável: Elenice Yamaguishi Madeira – CRB 8/5033) Conselho Editorial – Plêiade Profa. Dra. Beatriz Lage - USP Profa. Dra. Lídia Almeida Barros - UNESP Prof. Dr. Erasmo de Almeida Nuzzi - Fund. Cásper Líbero Prof. Dr. Flávio Calazans - UNESP Prof. Dr. Gustavo Afonso Schmidt de Melo - USP Prof. Dr. José Henrique Guimarães - USP Prof. Dr. Luís Barco - USP Prof. Dr. Maurizio Babini - UNESP Prof. Dr. Nelson Papavero - USP Prof. Dr. Ricardo Baptista Madeira - UniFMU Prof. Dr. Roberto Bazanini - IMES-SC Editora Plêiade Rua Apacê, 45 - Jabaquara - CEP: 04347-110 - São Paulo/SP [email protected] - www.editorapleiade.com.br Fones: (11) 2579-9863 – (11) 2579-9865 2009 Impresso no Brasil SUMÁRIO Apresentação ...........................................................................................7 Uma ciência periférica? Reflexões sobre a história e a epistemologia da geografia ...................................................................11 Controvérsias geográficas: epistemologia e política .............................53 O que é crítica? Ou qual é a crítica da geografia crítica? ..................101 Geografia crítica no Brasil: uma interpretação depoente ....................127 A questão da natureza na geografia e no seu ensino ...........................158 A atualidade de Kropotkin, geógrafo e anarquista ..............................173 A crise da geopolítica brasileira tradicional: existe hoje uma “nova geopolítica brasileira”? ...................................197 Golbery do Couto e Silva, o papel das forças armadas e a defesa do Brasil .............................................................................211 APRESENTAÇÃO Os escritos aqui reunidos foram elaborados em distintas ocasiões – alguns em 2001 e outros mais recentemente – e abordam, sob diversos prismas, a história, a epistemologia e a política da/na geografia, além da geopolítica brasileira. Alguns são inéditos e outros foram publicados anteriormente em revistas acadêmicas e/ou eletrônicas, mas, em geral, foram lidos por poucos em função da fraca tiragem e da escassa penetração desse tipo de periódico. A ordem em que se encontram foi uma escolha subjetiva. De fato, cada um deles é autônomo e pode ser lido independentemente dos demais. Os dois primeiros textos desta coletânea tratam da história e da epistemologia da geografia. O primeiro discute o que é cientificidade, qual é a natureza epistemológica da geografia e em que sentido se pode afirmar que as ciências humanas, como também a geografia, são ciências periféricas. Esse ensaio na verdade procura evidenciar como o projeto epistemológico da geografia, no século XIX – em especial com Humboldt –, ficou à margem tanto da crescente especialização nas ciências naturais, que abandonaram o ideal grego de um estudo integrado da natureza, como também da noção historicista – o homem como um produto do tempo histórico, e não mais das condições naturais, que através de revoluções atinge a sua maioridade – que estruturou as ciências humanas nesse período. O segundo ensaio versa sobre aqueles que provavelmente foram os três mais importantes debates ocorridos na história da geografia: a polêmica sobre o determinismo, deflagrada por autores franceses a partir da leitura de uma obra de Ratzel; a discussão a respeito do 7 José William Vesentini excepcionalismo da geografia ou sobre que tipo de ciência ela é, ocorrido nos Estados Unidos nos anos 1950; por fim, o embate entre Kropotkin e Mackinder, na Inglaterra vitoriana, sobre o que é ou o que deveria ser a geografia. Procuramos demonstrar que essas três polêmicas se entrecruzam e continuam atuais, ou seja, prosseguem sendo questões epistemológicas e políticas cruciais da ciência geográfica. Os escritos quarto e cinco encetam uma discussão sobre o que é crítica, como esta vem sendo entendida na geografia crítica e quando e como esta se instalou no Brasil. Isso significa que também eles têm um caráter histórico e epistemológico, além de sua evidente expressão política. O quinto ensaio enfoca a questão da natureza na geografia e no seu ensino. Também é uma contribuição para o que deve ser afinal uma geografia crítica, ou melhor, sobre como ela deve incorporar a questão da natureza, embora neste caso circunscrita à atividade educativa. O sexto texto é um longo comentário sobre a obra do geógrafo e anarquista Kropotkin, o grande marginalizado nos estudos relativos à história do pensamento geográfico. Procuramos demonstrar a inegável atualidade das ideias desse pensador avant-garde do final do século XIX e inícios do XX. Apesar de a primeira versão desse artigo ter sido redigida em 1986, como introdução a uma antologia de textos do intelectual russo, reescrevemos e ampliamos o escrito para incluí-lo nesta obra, o que significa que em grande parte ele é original. Finalmente, os dois últimos ensaios desta antologia tratam da geopolítica brasileira. Um deles discute o significado da escola geopolítica brasileira e porque ela ingressou numa crise a partir dos anos 1980. O outro aborda determinadas ideias de Golbery do Couto e Silva, o mais célebre dessa plêiade de pensadores geopolíticos que desde a década de 1920 procurou (re)pensar os rumos do Brasil. Qual seria a unidade deste conjunto de ensaios? Eles representam tentativas, em diversos assuntos – embora não tão afastados –, de construir uma geografia crítica a partir do significado moderno e kantiano desse adjetivo. Crítica que não se confunde meramente com “falar mal” dos objetos enfocados, entendimento amiúde encontrável entre alguns geógrafos autoproclamados radicais ou críticos. Por sinal, 8 Ensaios de geografia crítica procuramos também mostrar as diferenças, mesmo que relativas, entre uma atitude crítica e uma radical. Objetivamos construir uma geografia crítica, antes de mais nada, democrática e pluralista no sentido epistemológico apontado, por exemplo, por Habermas1. Pluralismo epistemológico que dialoga com várias correntes do pensamento, que aproveita elementos de cada uma, embora sempre procurando manter uma coerência teórica e uma correspondência com os fatos. Pode-se, ainda, recordar da leitura de Edgar Morin da complexidade epistemológica2, na qual não se trata mais de ser positivista (embora tenha algo aqui a ser resgatado), nem dialético (idem), tampouco apenas fenomenológico, estruturalista ou historicista, mas aceitar a complexidade do real e a validade, pelo menos parcial, de cada uma dessas perspectivas em determinados itens ou aspectos. Incoerência? Pontos de vista contraditórios e irreconciliáveis, como diriam os dogmáticos? De maneira nenhuma. Até poderia ser um discurso incoerente se não houvesse uma coesão teórica interna e, principalmente, uma preocupação em se adequar aos fatos. Sem a menor intenção de nos igualarmos e estes, cabe lembrar que, conforme esclareceu Hannah Arendt3, todo grande pensador utiliza ideias aparentemente contraditórias, fazendo uso, à sua maneira, de autores clássicos variados e que construíram teorias por vezes tidas como antinômicas. Se esta obra suscitar a crítica e o debate estaremos plenamente satisfeitos. Este é precisamente o seu objetivo: apresentar outros olhares, outras falas sobre determinados temas onde vem imperando, no Brasil, nos últimos anos, uma visão unilateral e hegemônica. Acreditamos no espírito acadêmico e científico, isto é, de livre debate, de crítica fundamentada, de crescimento a partir do diálogo com os outros. A construção do conhecimento, inclusive nas ciências, é uma atividade social alicerçada numa racionalidade comunicativa. Dessa forma, quod scripsi, scripsi; e urbi et orbi. Que venham agora as críticas, exceto – como ironizaram dois intelectuais alemães que viviam 1 2 3 HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2007. MORIN, E. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1979. 9 José William Vesentini na Inglaterra vitoriana – aquelas roedoras dos ratos. Que venham enfim os reclames, as correções, as discordâncias, os adendos, os acréscimos, a complementação... Não existe um destino melhor para qualquer obra intelectual do que ter sido útil para o avanço de algum tipo de conhecimento. São Paulo, abril de 2009. 10 Uma ciência periférica? Reflexões sobre a história e a epistemologia da geografia A ciência, as ciências. Se dizemos ‘a ciência’, acabamos fazendo um discurso completamente abstrato que esquece a diversidade entre as ciências [...] É ingênua a ideia que o conhecimento científico é reflexo do real; ele é uma atividade construída com todos os ingredientes da atividade humana [...] A ideia de certeza teórica, enquanto certeza absoluta, deve ser abandonada. Outra conclusão: a ciência é impura. A ideia de encontrar uma demarcação nítida e clara da ciência pura, de fazer uma demarcação entre o científico e o não científico, é errônea. Também dizemos que não existe uma fronteira nítida entre ciência e filosofia [...] A ciência deve ser considerada como um processo recursivo autoecoprodutor. Nada ilustra melhor essa ideia que a ideia de objetividade: é o produto último da atividade científica e esse produto se torna a causa primeira e o fundamento de onde ela vai partir novamente [...] O desenvolvimento das ciências da terra e da ecologia revitalizam a geografia, ciência complexa por princípio, uma vez que abrange a física terrestre, a biosfera e as implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas vitoriosas, privada do pensamento organizador [...] a geografia reencontra suas perspectivas multidimensionais, complexas e globalizantes. Desenvolve seus pseudópodes geopolíticos e reassume sua vocação originária. (EDGAR MORIN). 11 José William Vesentini Não é fácil definir o que é ciência – ou ciências, no plural. Ela possui certa unidade e, outrossim, uma grande diversidade. É diferente e, ao mesmo tempo, tem similaridades e inúmeros pontos de contato com outras modalidades do conhecimento humano: o senso comum, as doutrinas religiosas, a filosofia, as expressões artísticas, os mitos, o folclore e as tradições etc. Existe, praticamente, um consenso entre os epistemólogos, os historiadores e os filósofos da ciência, sobre haver uma diferença perceptível – uma ruptura e também, num certo sentido, uma continuidade – entre a ciência moderna e os saberes clássicos, na verdade filosóficos, que são vistos como a ciência tradicional. A ciência moderna nasceu ou começou a ser construída no século XVII. É certo, ela fez e continua a fazer uso de muitos elementos herdados daqueles saberes clássicos, tais como certo rigor e espírito sistemático (encontráveis, por exemplo, num Aristóteles), além da lógica e da matemática existentes desde a antiguidade. Alguns chegam até mesmo a afirmar que “a ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado”1. Provavelmente sim, especialmente nos seus albores, com a ciência tradicional, e também nas inúmeras teorias e classificações científicas mais simples existentes até os dias de hoje. Em todo o caso, a ciência moderna é vista como algo diverso da tradicional, apesar de essa diversidade ser objeto de polêmicas. A ciência moderna é mais empírica, dizem alguns; ou tem como base a indução, afirmam outros; ou é plena de experimentações, de testes que confirmam ou desmentem hipóteses, com um permanente confronto das teorias com os fatos ou com a realidade. Estabelecer essa diferença entre a ciência moderna e a tradicional passa pelo entendimento do que é científico, do que é cientificidade, enfim pela definição de ciência moderna. Alguns – poderíamos dizer, os positivistas lato sensu (categoria na qual se pode incluir boa parte dos marxistas) – argumentam que o que caracteriza a ciência moderna é o método científico2. Sabemos que essa 1 G. Myrdal apud ALVES, R. Filosofia da Ciência. São Paulo, Loyola, 2000. “Dentre as ideias maiores da filosofia positivista [encontra-se] a fé na unidade fundamental do método da ciência. Na sua forma mais geral, trata-se da certeza de que os modos de aquisição de um saber válido são fundamentalmente os mesmos em todos os campos da 2 12 Ensaios de geografia crítica ênfase no método, o método da ciência, começou com René Descartes. Esse filósofo e matemático do século XVII procurou teorizar, à sua maneira, os procedimentos de Galileu Galilei, tido como o primeiro cientista na acepção moderna do termo e, provavelmente, o introdutor do empirismo e da experimentação na pesquisa científica3. Para Descartes, o método consistia numa série de regras simples – a dúvida, a decomposição em partes menores (análise), a hierarquia do simples até o complexo e a sistematização4. Simples e ao mesmo tempo inovadoras para a sua época porque tinham como pressuposto a razão humana – amplamente escorada na lógica e na matemática – e não a escolástica, a interpretação dos textos sagrados e inquestionáveis. É evidente que esse método preconizado por Descartes nunca cobriu plenamente – hoje menos ainda – os requisitos mínimos para se definir a cientificidade de algum saber. Sequer entre aqueles que continuam apregoando o “método científico” como a essência da ciência moderna existe um mínimo consenso sobre o que exatamente seria esse suposto método unitário. Um desses adeptos desse soi-disant método científico como definidor da cientificidade afirma o seguinte: Nem todos concordam com o que seja método científico. E nem todos acreditam que ele possa estender seu braço além do seu berço, a ciência da natureza. Seu pai, Galileu, não se conforma com a observação pura e tampouco com a conjectura arbitrária. Galileu propõe hipóteses e as submete à prova experimental. Galileu engendra o método científico moderno, mas não enuncia seus passos e nem faz sua propaganda [...] A partir de Galileu introduziramse várias modificações no método científico. Uma delas é o controle estatístico dos dados [...] Uma investigação procede de acordo com o método científico se cumpre as seguintes etapas: (1) Descobrimento do problema ou experiência, como são igualmente idênticas as principais etapas da elaboração da experiência através da reflexão teórica.” (KOLAKOWSKI, L. La filosofia positivista. Madrid, Catedra, 1966). 3 Cf. DESANTI, J. T. Galileu e a nova concepção de natureza, in CHÂTELET, F. História da Filosofia, volume 3. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, pp. 61-112; e BEYSSADE, J. M. Descartes, in Idem, p. 81-114. 4 Cf. DESCARTES. Discurso do método. In: Os Pensadores – Descartes. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 29-71. 13 José William Vesentini lacuna num conjunto de conhecimentos. (2) Colocação precisa do problema. (3) Procura de conhecimentos ou instrumentos relevantes ao problema. (4) Tentativa de solução do problema com auxílio dos meios identificados. (5) Invenção de novas ideias. (6) Obtenção de uma solução. (7) Investigação das consequências da solução obtida. (8) Prova (comprovação) da solução. (9) Correção das hipóteses5. Percebe-se nessa fala de um epistemólogo reconhecido internacionalmente que não existe, entre os especialistas, uma concordância sobre no que exatamente consiste esse método e tampouco se ele pode ser aplicado às ciências que não estudam a natureza, isto é, as ciências sociais e as formais. Na verdade essas nove etapas do “método científico” mencionadas pelo autor são de sua lavra, como ele faz questão de afirmar inclusive como contraponto a uma série de teóricos da ciência6. Por sinal, algumas páginas após ter explicitado suas etapas do método científico, Bunge ameniza um pouco a sua crença num método unitário e afirma: “O nome é ambíguo [...] a expressão método científico é enganosa, pois pode induzir a crer que consiste num conjunto de receitas exaustivas e infalíveis que qualquer um pode manejar para inventar ideias e pô-las à prova [...] O que existe é uma estratégia de investigação científica. Há também um sem número de táticas ou métodos especiais característicos das diversas ciências e tecnologias particulares. Nenhuma dessas táticas é infalível [...] A pessoa de talento cria novos métodos e não o contrário”7. Como se vê, um quiproquó. O recurso ao vocabulário militar (estratégia e táticas) para tentar superar ou aperfeiçoar a ideia de um “método científico” mais cria confusão do que esclarece e fica a impressão de que o autor oscila entre a crença num método unificado e a aceitação da pluralidade de métodos, inclusive com a valorização das individualidades (do insight ou intuição deste ou daquele cientista etc.). 5 6 7 BUNGE, M. Epistemologia. São Paulo, Edusp, 1987. Idem, p. 32-5. Idem, p. 34, grifos do autor. 14 Ensaios de geografia crítica Lendo outros especialistas na temática fica ainda mais evidente o desentendimento sobre esse hipotético método unitário. Um epistemólogo egrégio propõe que na verdade esse método seja o de “conjecturas e refutações”. Em suas palavras: Quando deve ser considerada científica uma teoria? A resposta comumente aceita é que a ciência se distingue da pseudociência pelo seu método empírico, que é essencialmente indutivo, ou seja, parte da observação ou da experimentação [...] Na realidade, a crença de que podemos começar com observações puras, sem nada que se pareça com uma teoria, é absurda. A observação sempre é seletiva. Necessita um objeto elegido, uma tarefa definida, um interesse, um ponto de vista ou um problema [...] O problema ‘O que vem primeiro, a hipótese ou a observação?’, é solúvel como o problema ‘Quem vem primeiro, o ovo ou a galinha?’. A resposta à última interrogação é ‘Um tipo primitivo de ovo’, e a resposta ao primeiro é ‘Um tipo primitivo de hipótese’ [...] A ciência, assim, deve começar com mitos e com a crítica de mitos; não com o resultado de observações nem com a invenção de experimentos, mas, sim, com a discussão crítica de mitos e de técnicas e práticas mágicas [...] É possível resumir tudo o que foi dito afirmando que o critério para estabelecer o status científico de uma teoria é a sua refutabilidade ou sua testabilidade. O que temos proposto, então, é que não existe um procedimento mais racional do que o método do ensaio e erro, de conjecturas e refutações: de propor teorias intrepidamente; de fazer todo o possível para provar que estão erradas; e de aceitá-las provisoriamente, se nossos esforços críticos fracassam8. Temos aí uma concepção de método científico bem diferente do entendimento comum, que enxerga principalmente o empirismo, com a indução e a experimentação. Esse entendimento comum, por sinal, é coerente com o nascimento da ciência moderna com Galileu – e, por 8 POPPER, K. El desarrollo del conocimiento científico. Buenos Aires, Paidos, 1967, p. 59-65. 15 José William Vesentini outro lado, a indução e a experimentação continuam procedimentos válidos e utilizáveis em vários tipos de pesquisa científica. Mas a epistemologia de Popper tem como principal alicerce as teorias da relatividade de Einstein, na qual, ao invés da experimentação e da indução, como em Galileu, existe uma sofisticada dedução. (Einstein falava numa “experimentação imaginária”, na qual ele literalmente fantasiava eventos tais como o de uma pessoa dentro de um elevador quebrado em aceleração para o chão, que não sentia o peso do seu corpo, procurando com isso evidenciar uma insuficiência na explicação newtoniana da força da gravidade “puxando” o elevador e a pessoa para baixo). Uma dedução “pura” no sentido de encontrar falhas ou lacunas nas explicações anteriores – neste caso, na física newtoniana – e procurar, com o uso da razão, estabelecer outras, que necessariamente teriam de ser testadas pela observação posterior. Se não fossem submetidas a testes, a experimentos para verificar a validade de suas proposições, pouca diferença teriam da ciência tradicional e especulativa. Como se sabe, os astrônomos após a Primeira Guerra Mundial procuraram fotografar eclipses do Sol para verificarem se existiria um efeito previsto por Einstein, uma curvatura no espaço ao redor desse astro que faria a luz das estrelas se afastarem ou sofrerem certo dobramento. É lógico que nem toda teoria científica vai atender a esse requisito – isto é, hipóteses ou teorias construídas para sanar lacunas nas ideias científicas dominantes, que devem ser testáveis ou verificáveis pela observação ou experimentação posterior –, inclusive porque os objetos são completamente diferentes. Em todo o caso, tratase de uma concepção de ciência (de Popper, inspirada em Einstein) que valoriza mais a dedução e notadamente processo de uma crítica permanente, com as conjecturas (ensaios) e as refutações (erros). Continuando com a nossa seleção de opiniões sobre o “método científico”, por meio da qual se procura evidenciar que na verdade ele é um mito – não no sentido de não haver qualquer método científico (existem vários) e, sim, pela inexistência de um método único –, apresentamos, agora, o posicionamento de um assumido “anarquista metodológico”, um influente físico que dialoga com os teóricos da ciência. Segundo o seu ponto de vista: 16 Ensaios de geografia crítica A ideia de que a ciência pode e deve ser elaborada com obediência a regras fixas e universais é quimérica e perniciosa [...] Torna a ciência menos plástica e mais dogmática [...] Os cientistas não resolvem problemas por possuírem uma varinha de condão – a metodologia ou uma teoria da racionalidade – mas porque estudaram o problema por longo tempo e conhecem bem a situação, porque não são tolos (embora caiba duvidar disso hoje em dia, quando quase qualquer pessoa pode tornar-se um cientista) e porque os excessos de uma escola científica são quase sempre contrabalançados pelos excessos de alguma outra escola. Além disso, os cientistas só raramente resolvem os problemas; eles cometem erros numerosos e oferecem, frequentemente, soluções impraticáveis [...] Se desejamos compreender a natureza, devemos recorrer a todas as ideias, todos os métodos e não apenas a um número reduzido deles. A asserção de que não há conhecimento fora da ciência moderna nada mais é que outro conto de fadas. As tribos primitivas faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas que as da zoologia e da botânica de nosso tempo; conheciam remédios cuja eficácia espanta os médicos (e a indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte de lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros do grupo que a ciência por longo tempo considerou inexistentes; resolviam difíceis problemas por meios ainda não perfeitamente entendidos (construção de pirâmides, viagem dos polinésios)9. Enfim, uma posição pluralista ou “pós-moderna”, na qual não existe um método unitário e, sim, um grande número deles, que às vezes podem até ser opostos ou alternativos, mas que funcionam (ou não) neste ou naquele caso, na resolução (sempre provisória) deste ou daquele problema, na constituição de teorias que parecem se ajustar aos fatos ou pelo menos a uma série deles. Métodos nos quais pode-se 9 FEYRABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. Os grifos são do autor. 17 José William Vesentini incluir a aceitação (total ou parcial, dependendo do caso) de saberes tradicionais, do senso comum, da indução e contra-indução, da dedução e de “experimentos imaginários”, do ensaio e erro, de regras provisórias e de sua violação como condição para um novo avanço, da filosofia e das artes (por exemplo, literatura, poesia, música), da intuição e da criatividade. Como diz o autor, “A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico [...] O único princípio que não inibe o progresso é: vale tudo”10. Um ponto de vista que, mesmo sem negar a importância da ciência moderna, relativiza o seu status como o “conhecimento mais nobre ou racional”, ou como o “único saber que deve ser ensinado nas escolas”. Não é, portanto, o método que define a ciência moderna. Sequer existe um método científico unitário, como também, conforme reafirmou mais um especialista na filosofia da ciência11, no fundo não existe “a” ciência no singular – a não ser enquanto um conjunto de conhecimentos objetivos e racionais diferenciados que buscam compreender o mundo ou a realidade. De fato, existem ciências, no plural, com métodos variados, que estudam objetos (que, por sinal, não são fixos e invariáveis; eles variam no tempo, são entendidos de diversas maneiras e muitas vezes deixam de existir ou se transformam completamente) relativamente distintos, embora frequentemente sobrepostos, ou ocupam-se de “regiões do saber” tidas como diferentes. O que define, então, a ciência e a cientificidade? O conhecimento científico é objetivo e racional. Esta é uma afirmação axiomática, embora as ideias de racionalidade e de objetividade – como quaisquer outras – sejam passíveis de discussões12. Como afirma com pertinência Popper, a tarefa das ciências é encontrar explicações causais e satisfatórias para qualquer coisa que tenha algum interesse13. É evidente que causalidade não deve ser entendida como algo mecânico 10 Idem, grifos do autor. Cf. GRANGER, G.G. A ciência e as ciências. São Paulo, Editora da Unesp, 1994. 12 Cf. CASTORIADIS, C. Reflexões sobre desenvolvimento e racionalidade. In: As encruzilhadas do labirinto/2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; e POPPER, K. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1999. 13 POPPER, K. Conhecimento objetivo. Op. Cit., p. 182, grifo do autor. 11 18 Ensaios de geografia crítica e unilateral, na forma de um raciocínio simplista do tipo “causa é causa e consequência é consequência”. Na verdade, a causa, ou na maioria das vezes as causas – que consistem amiúde num número indeterminado de fatores –, pode ser algo probabilístico e não um fenômeno específico e totalmente delimitado; e a(s) consequência(s) pode(m) virar causa(s) e vice-versa14. Ipso facto, é pura fantasia desprovida de qualquer conteúdo a crença na existência de uma “lógica dialética” que teria superado o pensamento racional alicerçado na lógica formal e na causalidade. Como afirmou Edgar Morin, a palavra dialética tornou-se apenas uma panacéia utilizada para não enfrentar ou obnubilar as dificuldades teóricas e práticas15. Outrossim, o mais famoso antropólogo do século XX já tinha arrasado a pretensão de um filósofo (Sartre) de teorizar uma “razão dialética” apartada e superior à “razão analítica”, ao demonstrar com inúmeros exemplos que esse mesmo filósofo – como também Marx e Hegel (pelo menos nos trechos onde este não é propositalmente obscuro e especulativo) –, para explicar suas ideias, tinha constantemente feito uso da classificação, da distinção, da oposição e da definição, considerados – dentre outros – atributos da “superada” lógica formal16. Mas explicações causais e satisfatórias, objetivas e racionais, não significam definitivas. Não existem – e provavelmente nunca vão existir – explicações finais, isto é, definitivas. As explicações científicas sempre são aproximações que explicam melhor, mas nunca integralmente ou exatamente, um aspecto da realidade. O essencialismo – isto é, a crença numa “essência” dos fenômenos, que seria captada por alguma teoria – é uma doutrina filosófica (de Platão, Hegel, Marx e outros) e não científica17. Só que não é possível separar com exatidão, demarcando fronteiras rígidas, os conhecimentos científicos dos filosóficos, daqueles do senso comum, dos saberes de povos 14 Cf. MORIN, E. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005. MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003, p. 190. 16 Cf. LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1976, capítulo 9. 17 POPPER, K. Conhecimento Objetivo, Op.Cit. 15 19 José William Vesentini tradicionais e de alguns aspectos das artes. Mesmo sendo relativamente diferentes, todos esses conhecimentos ou saberes se imiscuem, se influenciam mutuamente, são enfim parcialmente imbricados. Contudo, isso não significa que a tarefa de definir o que é – e o que não é – científico seja inútil18. Como também não significa que procurar entender algo sem nunca encontrar uma explicação definitiva seja estéril. Se o fosse, seria perda de tempo fazer ciência ou mesmo dar qualquer explicação racional, pois esta sempre é contextualizada e provisória, ao contrário dos dogmas que se apresentam como absolutos e eternos. As explicações racionais e, em particular, as científicas são extremamente úteis e amiúde eficazes, gerando resultados práticos, seja pela sua aplicação (tecnologia ou ação mais eficiente sobre algo), seja pelo convencimento, pela sua aceitação como verdade provisória, o que é importante para as regras da sociedade. Como sistematizou um filósofo da ciência, esta é, em primeiro lugar, uma visão de uma realidade; é a busca de uma verdade (relativa), ou seja, um empreendimento que procura descrever e explicar algo que supostamente existe, que faz parte de um meta-conceito chamado realidade; e também, assinala, é um conhecimento que constantemente busca uma validação, isto é, um confronto permanente da teoria com os fatos19. Outro autor, num manual onde procura explicitar os cânones de uma pesquisa científica, assinala que a ciência tem quatro requisitos: (1) é um estudo sobre um objeto reconhecível e definido como tal pelos outros; (2) é um estudo que diz algo novo sobre o objeto, algo que ainda não foi dito ou uma nova perspectiva para o seu entendimento; (3) o trabalho deve ser útil aos demais pesquisadores ou cientistas da área; (4) deve fornecer elementos para a verificação ou comprovação das hipóteses apresentadas, o que significa que ele pode ser continuado 18 Neste ponto discordamos de MORIN, E. Ciência com consciência, op.cit., que sugere ser danosa a tentativa de separar, mesmo de forma relativa, a ciência da não ciência. Essa é a principal crítica que ele faz a Popper, autor constantemente mencionado em seus trabalhos. Se isso fosse verdade, nem teria sentido Morin escrever – como de fato escreveu – centenas de páginas explicando o que é ciência, em que períodos ela atravessou “revoluções”, quais são suas relações com a democracia, com a tecnologia etc. 19 GASTON-GRANGER, G. Op.Cit. 20 Ensaios de geografia crítica de alguma maneira – refutado total ou parcialmente, prosseguido com novas contribuições etc.20. Em resumo, as ciências consistem num conjunto extremamente heterogêneo. Elas não são iguais, sequer semelhantes em que pese o fato de que, por princípio, todas buscam compreender racionalmente algum aspecto do real, do mundo, de tudo o que existe afinal. Mas a própria realidade é diversificada, heterogênea, multifacetada, passível de ser perscrutada neste ou naquele aspecto com princípios ou lógicas distintos. Basta atentarmos para a coexistência do determinismo com o indeterminismo, do acaso com a necessidade, da ordem com o caos. Podemos até especular se a unidade que conferimos ao real não é apenas uma crença, um produto de nossas mentes. É lógico que não se está advogando algum tipo de idealismo que denega a existência de uma realidade exterior. Mas nada garante que esse real – ou realidades – seja algo unívoco. Acreditamos que o construtivismo epistemológico21 representa uma ultrapassagem da antiga querela entre os realistas ou materialistas e os idealistas. Nem o mundo é produto de nossas mentes e nem é uma realidade externa que se impõe a nós, como se fosse algo que apenas observássemos de fora, num sobrevôo. Num certo sentido, são as duas coisas concomitantemente, ou melhor, uma síntese das duas. Na verdade, o mundo ou o real – que só apreendemos pelas nossas teorias, nossas imagens, nosso conhecimento enfim – é construído pelo intelecto humano, embora não no sentido de ser uma fantasia, de não existir fora deste, mas, sim, pelo fato de só dispormos de aproximações e nunca verdades exatas ou uma correspondência perfeita entre as coisas e as nossas representações. Sei que muitos argumentam que os cometas – ou o relevo de uma área, ou os gases na atmosfera, ou outro fenômeno qualquer – existem objetivamente. Mas são as nossas teorias que constituem a ciência, o conhecimento científico, e não os pretensos “fatos” ou “coisas” que povoam o mundo externo. Ademais, inúmeros aspectos da realidade ou do mundo são objetos inventados por nós, pela sociedade, pelos pesquisadores, pelos 20 ECO. U. Como se faz uma tese. São Paulo, Perspectiva, 2000, 15ª reimpressão. Cf. HABERMAS, J. A ética da discussão e questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2007. 21 21 José William Vesentini vencedores de determinados embates (políticos ou intelectuais) etc. Por exemplo: os juízos de justo ou de verdadeiro, de certo ou de errado; as leis e as normas sociais; os fatos históricos (que na verdade são selecionados e reinterpretados pelos investigadores e nunca algo cuja objetividade e importância está além de qualquer discussão); as regiões geográficas (idem); as instituições sociais; os números e os teoremas matemáticos; as regras lógicas e por aí afora. Avaliando pelas teorias científicas, que afinal de contas constituem em média a melhor perscrutação que a humanidade dispõe para a explicação desse mundo objetivo, dessa realidade, é forçoso constatar que muitas vezes elas são contraditórias, não formando uma totalidade coerente e articulada. Mesmo assim elas são operacionais ou eficazes, e dão conta, cada uma à sua maneira, pelo menos durante algum tempo, do entendimento e até da ação sobre os fenômenos aos quais se referem. As ciências não vivem apenas no mundo das teorias. Elas se enraízam na sociedade, da qual dependem e são parte integrante. De forma mais específica, elas se materializam nas universidades e nos institutos de pesquisas e de fomento à atividade científica – e, eventualmente, nos setores governamentais ligados à defesa e ao militarismo. Indubitavelmente, existe nesse mundo social e acadêmico uma clara hierarquia com ciências “mais nobres”, ou supervalorizadas, ocupando o topo de uma pirâmide, e as “plebéias” ou depreciadas, que ficam na base dessa figura geométrica. Fazendo uma analogia com os Estados nacionais, existem ciências centrais e periféricas, desenvolvidas e subdesenvolvidas. Poucas delas servem de modelo para o que se denomina cientificidade – a física, em primeiro lugar, seguida pela astronomia, química e biologia; a matemática é tida como uma linguagem da ciência. São as “ciências desenvolvidas” ou as “verdadeiras ciências” no entendimento da parcela majoritária dos epistemólogos. Em contrapartida, um número bem maior de disciplinas – psicanálise, pedagogia, história, ciência do direito, ciências da comunicação, criminologia, entre outras, além da geografia e mais ainda da geopolítica – são taxadas de subdesenvolvidas ou periféricas (isso na melhor das hipóteses), de embriões de ciência ou até, algumas vezes, catalogadas como não ciências ou pseudociências. 22 Ensaios de geografia crítica Exemplos dessa atitude são incontáveis. Aquele que provavelmente foi o mais célebre epistemólogo do século XX, após definir cientificidade, proclamou de forma taxativa que tanto a psicanálise como todas as formas de saber das ciências humanas (sociologia, economia, história...) que utilizam o materialismo histórico carecem desse atributo, ou seja, não são científicas22. Um especialista em filosofia da ciência assinalou que “É bastante claro, realmente, que os saberes sociológicos ou psicológicos, econômicos ou linguísticos, não podem pretender, em seu estado presente e passado, ter a solidez e a fecundidade dos saberes físico-químicos, ou até biológicos.” Logo em seguida ele se pergunta: “Em que sentido, porém, é lícito atribuir-lhes o nome de ciências?” 23. Inclusive o autor de quem extraímos alguns trechos como epígrafe deste ensaio admite que, quando fala em ciência, se refere principalmente à física: Privilegiei a física porque é evidente que ela é uma ciência canônica, a primeira das ciências; ela que se considerou uma ciência completa, que tratou ao mesmo tempo do real e do universo, que executou um movimento extraordinário porque, quando achava ter atingido a perfeição, bruscamente perdeu seus fundamentos [...] Portanto, a física é interessante porque põe no estado mais puro, mais exemplar, todos os problemas da cientificidade24. Até mesmo um ferrenho defensor da cientificidade nas ciências humanas – embora sempre enfatizando que elas, pela peculiaridade de seus objetos, não podem almejar o mesmo grau de objetividade e sistematização das ciências da natureza – acredita piamente que nada mais são do que “ciências novas”25. Um sociólogo francês de prestígio assinalou que as disciplinas acadêmicas formam uma pirâmide do ponto de vista do seu prestígio e status; segundo ele, a geografia ocupa na hierarquia acadêmica uma posição bem abaixo da ocupada pela 22 23 24 25 POPPER, K. El desarrollo del conocimiento científico. Op. Cit. GASTON-GRANGER, G. Op. Cit. MORIN, E. Ciência com Consciência, p. 71. JUPIASSU, H. Introdução às ciências humanas. São Paulo, CNPq/Letras & Letras, 1994. 23 José William Vesentini economia26. E aquela que é de longe a mais conceituada premiação do avanço científico no mundo, o prêmio Nobel, seleciona somente as conquistas realizadas pela física, química e fisiologia ou medicina; esses é que são os prêmios cobiçados e de maiores prestígios – o “hall da fama”, como se diz. Os demais prêmios chamados de Nobel – da paz, de literatura e de economia – são considerados secundários, com menor prestígio e, no caso da economia, surgiram depois e à margem da Fundação Nobel da Suécia. Não é a premiação o que nos interessa. Tampouco o status social das ciências ou mesmo das disciplinas acadêmicas. (Duas coisas distintas: nem toda disciplina acadêmica é uma ciência; mas este não é um assunto que valha a pena abordar aqui e agora). Afinal, qualquer concessão de prêmios ou láureas, por melhor que seja o processo de escolha, sempre é subjetiva e discriminante. E o status social de uma ciência, de uma tecnologia ou mesmo de uma profissão depende fundamentalmente do seu maior ou menor sucesso financeiro – e também, de forma complementar, do seu poder no sentido de mando ou tomada de decisões sobre a vida das pessoas ou sobre os recursos econômicos –, o que pouco tem a ver com reais conquistas científicas. O que importa aqui é discorrer sobre a periferização da geografia, uma ciência que, nos albores da revolução científica, foi um saber de vanguarda, ocupando junto com a astronomia e a física (bem mais que a química, bem mais que a biologia) uma posição central no conjunto das ciências. Prosseguindo com o nosso paralelo com o desenvolvimento desigual das nações, não é absurdo afirmar que a geografia, neste aspecto, tem semelhanças, digamos, com Portugal 27. Esse pequeno país ibérico estava na vanguarda da expansão marítimocomercial européia do século XV – poderíamos mesmo dizer, respaldados no historiador Paul Kennedy, que era uma grande potência 26 BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998. Esta comparação é aleatória e tão somente metafórica. Ela não deve ser levada a sério em demasia. Poderíamos tomar outros exemplos de países que conheceram um declínio relativo no sistema internacional, mas o caso de Portugal nos parece interessante pelo seu intenso brilho no início da expansão marítimo-comercial européia que resultou na criação de um mundo unificado. Também a geografia conheceu o seu maior brilho, pelo menos até o momento, no período de nascimento da ciência moderna. 27 24 Ensaios de geografia crítica mundial28 – e que, nos séculos seguintes acabou se transformando num Estado periférico ou atrasado. A geografia também esteve na vanguarda das ciências. Nos séculos XVI e XVII – período da revolução científica, moderna com Copérnico, Bruno, Kepler, Bacon e principalmente Galileu –, a geografia integrava as matemáticas e desempenhou um importante papel na constituição de um novo mundo (com os descobrimentos, uma nova visão da superfície terrestre e uma nova cartografia) e na formação da chamada Scienza Nuova29. Dois estudiosos da história do pensamento geográfico assinalaram que: A geografia teve um papel destacado na revolução científica do século XVII, que assentou as bases da ciência moderna. Alguns dos problemas importantes da época tinham que ver com a estrutura, forma e magnitude da Terra. Os tratados sobre a esfera terrestre se viram afetados pela discussão e triunfo da concepção copernicana, que exigiu a elaboração de uma nova geografia que levasse em conta os movimentos da Terra e seus efeitos nos diversos lugares do globo. As travessias por grandes oceanos haviam colocado novos problemas para a navegação [...]30. O que ocorreu? Primeiro, temos que lembrar que é equivocada aquela imagem de um Estado (ou um saber) como eternamente desenvolvido ou, então, periférico – isto é, ele sempre o foi e sempre o será. A história, de uma forma geral – tanto a política, a econômica, a militar ou mesmo a cultural e a da tecnologia (nas quais se inclui, como um capítulo especial, a história das ciências) –, é plena de reviravoltas e surpresas. Tudo sofre mudanças, tudo se transforma, mesmo que, às vezes, uma determinada situação perdure por séculos. Os Estados, por exemplo, podem deixar de existir; ou novos deles, inclusive com traços completamente diferentes, podem surgir. Não é incomum que eles ganhem ou percam terras, parcelas do seu território. Isso também ocorre com as ciências ou os saberes no sentido amplo do termo. A 28 29 30 KENNEDY, P. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989. KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. São Paulo, Edusp, 1979. CAPEL, H. e URTEAGA, L. Las nuovas geografias. Barcelona, Salvat, 1988. 25 José William Vesentini geografia perdeu grande parte do seu antigo território, ou melhor, do seu campo de estudos. Boa parcela dos conteúdos – ou objetos – atuais da astronomia, da geologia, da geofísica, da antropologia, da economia e até da botânica, faziam parte das ciências geográficas durante séculos, mais de dois mil anos, desde a Grécia antiga (quando surgiu a palavra geografia, que sistematizou um ramo do saber, com Erastóstenes no século III a.C.) até por volta do século XVIII. Esse processo, na verdade, continua a ocorrer: como mostrou Bordieu31, a partir do momento – iniciado nos anos 1930 – em que o planejamento regional se tornou importante, gerando um enorme volume de recursos financeiros, além de prestígio político e social, os economistas passaram a se apropriar do objeto “região”, que antes era exclusivo da geografia. (A tradição geográfica no estudo das regiões vem no mínimo desde Estrabão, que viveu provavelmente no século I a.C. e criou a expressão “geografia regional”). Mais recentemente, a nova e promissora área das ciências geográficas, os Sistemas de Informações Geográficas (os SIGs ou GIS, Geographic Information System), passou a ser quase que totalmente controlada por engenheiros e físicos. Se servir de consolo, pode-se lembrar que tal fato não ocorreu nem ocorre apenas com a geografia. É algo relativamente comum com o avançar do conhecimento, o qual, afinal de contas, não é um processo evolutivo e linear, tal como a (falsa) imagem popular de uma escada com os degraus que vão subindo por etapas, mas, sim, processos, no plural, onde há rearranjos, recomposições, parecendo mais um caleidoscópio do que um filme32. As ciências não constituem, como pretendia Comte com o seu positivismo clássico, estudos separáveis por fronteiras tangíveis, tendo cada uma o seu “objeto de estudos” bem delimitado33. Mesmo com a ocorrência de uma crescente especialização a partir do século XVII – e mais ainda no século XIX –, as ciências continuam a ser imbricadas, 31 BORDIEU, P. Op. cit. Cf. as brilhantes análises de FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense/universitária, 1986; e também a interpretação do historiador Paul VAYNE. Foucault revoluciona a História. Brasília, Editora da UNB, 1982. 33 Cf. VERDENAL, R. A filosofia positivista de Augusto Comte. In: CHÂTELET, História da Filosofia, volume 5, p. 212-46. 32 26 Ensaios de geografia crítica continuam pelo menos em parte a estudar os mesmos objetos sob diversas perspectivas, com frequentes “invasões” do terreno da outra (o que gera inegáveis avanços, para horror dos positivistas) e, muitas vezes, até “roubando” parcelas deste. A filosofia, por exemplo, apesar de hoje não se considerar nem ser considerada pela comunidade acadêmica como uma ciência34, já foi tida como a “grande ciência”, a “ciência mais nobre de todas” nas palavras de Platão. Isso antes do advento da ciência moderna, que afirmou a necessidade de confrontar as teorias com os fatos e engendrou uma crescente divisão no trabalho intelectual e de pesquisas. A própria física, na época de Aristóteles, era vista como um ramo da filosofia. Por sinal, durante muito tempo a física – physiké, em grego, que significa natureza – era o estudo de toda a natureza, orgânica ou inorgânica, abrangendo temas que hoje são objetos da química e até da biologia. A lógica, que durante séculos foi parte da filosofia, no transcorrer do século XX tornou-se cada vez mais uma especialização da matemática. Também a pedagogia vem enfrentando uma crescente apropriação de parte do seu campo de estudos (e, principalmente, de atuação nos setores mais lucrativos ou de maior prestígio, em especial a política educacional), com a recente valorização do ensino como alicerce indispensável para o desenvolvimento econômico e social. Cada vez mais, economistas e outros profissionais que, como diria Bordieu, “ocupam posições hierárquicas na academia e na sociedade superiores às da pedagogia”, vem se apossando das decisões e dos cargos mais importantes na área educacional. Isso ocorre em praticamente todos os países do mundo (pelo menos naqueles que efetivamente possuem uma política educacional) e até mesmo nas organizações internacionais como a ONU, o Banco Mundial ou a UNESCO. Exemplos como esses poderiam ser multiplicados. Mas o que interessa agora é refletir sobre o caso da geografia. Essa reflexão, contudo, malgrado suas especificidades, perpassa a questão da cientificidade nas ciências humanas. Longe de serem “ciências novas” – uma ideia baseada na descoberta de Foucault de que o “homem” ou a “população” é um objeto de estudos 34 Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é filosofia? São Paulo, Editora 34, 2000. 27 José William Vesentini relativamente recente na história do Ocidente, pois foi construído nos séculos XVIII e XIX –, as ciências humanas (ou pelo menos uma parte delas: a história, a politicologia, a geografia35) têm uma longa e rica tradição que remonta à Grécia antiga. Basta pegarmos algumas análises ou escritos de Estrabão35b, que, sem dúvida, continuam relativamente atuais. É evidente que os lugares ou os povos analisados mudaram radicalmente, ou deixaram de existir. Mas boa parte da metodologia – de conhecimento in loco, observações sistemáticas, entrevistas e inquéritos com pessoas da região etc. – prossegue válida, assim como a perspicácia nas observações. No caso da história, basta dar uma espiada na História da guerra do Peloponeso, escrita no século V a.C, para comprovarmos que muitas interrogações que perpassam a obra (sobre a distinção entre fatos e interpretações, por exemplo) ainda são pertinentes36. No tocante à análise da vida política, quando relemos o livro Política, de Aristóteles, que viveu no século IV a.C., logo percebemos que a distância até nós não é tão grande. Sentimos certa estranheza com os conceitos aristotélicos de monarquia, aristocracia (e seu contrário, oligarquia) e democracia, mas é perfeitamente possível apreender o seu raciocínio arguto e até aceitar (mesmo que parcialmente) o seu ponto de vista. Mais ainda quando ele se refere à necessidade de uma boa distribuição da terra, principal riqueza da época, para existir uma forma de governo equilibrada e justa, sem grandes conflitos sociais37b. Inclusive, é perfeitamente possível utilizar esses textos clássicos nos cursos atuais – de graduação ou pós-graduação – em diversas áreas das 35 Estou colocando neste conjunto a geografia consciente dos problemas e polêmicas a esse respeito. Sem dúvida que durante séculos a geografia era mais ligada às matemáticas (e à astronomia) do que à história, apesar do fato de que alguns autores de obras ou reflexões geográficas (Heródoto, Estrabão) foram ao mesmo tempo historiadores e até antropólogos. Mas é certo que, no transcorrer do século XX, principalmente na sua segunda metade, a geografia acabou se firmando cada vez mais como uma ciência humana e social (apesar dos protestos de alguns poucos na área da geografia física). 35b STRABO. The Geography of Strabo. Loeb Classical Library edition, 1917, disponível in http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/ (capturado em março de 2009). 36 . TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília, Editora da UNB, 2001. 37 ARISTÓTELES. Política. Brasília, UNB, 1985. 28 Ensaios de geografia crítica ciências humanas. Não que eles sejam “manuais” no sentido de terem os conceitos ou as teorias “corretos”. Isso não existe, pelo menos não nas ciências humanas e na filosofia, sequer no livro mais recente do mais conceituado especialista; sempre polemizamos qualquer obra e relativizamos qualquer compêndio. Mas eles continuam a suscitar reflexões e debates, apresentam problemas ainda relevantes. Em contrapartida, praticamente ninguém vai utilizar um texto de Aristóteles ou de qualquer outro clássico da antiguidade num curso de física, química ou biologia. (A não ser que seja um curso de história da ciência, mas este tipo de estudo não é uma ciência natural). Na matemática isso seria possível, mas não nas ciências naturais. Nestas seria extemporâneo ou mesmo burlesco. O próprio campo de estudos da física, por exemplo – os seus objetos, o que inclui os conceitos e as teorias –, daquela época praticamente nada tem em comum com o que hoje é estudado. Os saberes são completamente diferentes: a física, a química e a biologia foram, de fato, reinventadas ou reconstruídas a partir dos séculos XVII e XVIII com a prática da experimentação (que os antigos e os medievais desconheciam ou não aceitavam), com o heliocentrismo e a teoria da gravitação universal e, posteriormente, nos séculos XIX e XX, com a teoria da evolução e a genética, com a relatividade especial e a geral, com a mecânica quântica etc. Daí se falar em ciência moderna a partir do século XVII, em contraposição à ciência (ou saberes) clássica ou tradicional. Essa revolução científica não ocorreu – embora tenha exercido um forte impacto – nas ciências humanas. Por esse motivo, até hoje é extremamente difícil – embora não impossível, ao menos em termos ideais, isto é, o que “deveria ser” um estudo filosófico em contraposição a um científico sobre tal ou qual tema (democracia, modernidade, globalização, crise ambiental etc.) – separar com precisão a filosofia das ciências humanas. Em contrapartida, é bem menos problemático diferenciar a filosofia das ciências naturais. Aqui, as diferenças de abordagem em praticamente qualquer tema (por exemplo, no que é o universo, a Terra, o espaço e o tempo, os quanta etc.) são colossais, são perceptíveis à primeira vista até mesmo para um leigo. Na verdade, foram principalmente as ciências naturais que se apartaram de forma crescente e visível dos saberes tradicionais, da filosofia, a 29 José William Vesentini partir do século XVII. Nas ciências humanas, em grande parte, isso ainda não ocorreu, pelo menos não de forma inequívoca. E talvez – quem sabe? – nunca vá ocorrer. Afinal, os objetos que estudam não comportam a experimentação, a rígida formalização e tampouco explicações causais unívocas38. É certo que muitas “ciências novas” surgiram no século XIX, em sua quase totalidade procurando se espelhar na metodologia, na sistematização e em alguns conceitos e teorias das ciências da natureza. Pode-se mencionar, entre outras, a sociologia (que, no início, com o seu fundador, Auguste Comte, pretendia ser uma “física do social”), a antropologia, a linguística, a ciência do direito, a criminologia, a ciência política (que, na visão de muitos, foi fundada por Maquiavel no século XVI39) e até a economia (a qual, na verdade, teria sido forjada, na sua forma moderna, no século XVIII –, seja com os fisiocratas, seja com Adam Smith). Mas, devido aos seus objetos – no fundo, o homem, a humanidade em algum de seus atributos, em geral as suas obras e atividades mais abstratas: economia, idiomas, regras e leis, cultura, instituições –, elas nunca alcançaram o grau de formalização (matematicidade, leis ou teorias que podem ser expressas em fórmulas e, principalmente, que são testáveis) das ciências naturais. Ao contrário do que imaginam alguns, os preconceituosos ou de visão estreita, isso não decorre de uma incapacidade dos investigadores nas ciências 38 Foi exatamente por esse motivo que, há mais de cem anos, Wilhelm Dilthey e outros propuseram diferenciar as ciências da natureza e as do espírito. Naquelas existiriam explicações e nestas compreensão. As explicações estariam ligadas à experimentação, à ideia de certezas (mesmo que relativas), a uma causalidade menos problemática. E a compreensão, por sua vez, seria composta por leituras ou interpretações – daí a valorização da hermenêutica – que nunca vão esgotar o objeto estudado. 39 FOUCAULT, M., nas suas aulas ministradas em 1978 no Collège de France (Segurança, Território, População, São Paulo, Martins Fontes, 2008), questiona essa ideia mesmo sem negar a importância da obra de Maquiavel e, principalmente, a sua enorme popularidade. A tradição na qual se inscreve O Príncipe (ela não foi a primeira nem a última obra do período com essa preocupação de ensinar ao governante como conquistar ou manter seu principado), segundo Foucault, caracteriza uma relação de exterioridade entre o príncipe e a sociedade. A análise política moderna e ainda atual, por outro lado, só teria sido iniciada a partir do final do século XVIII com as novas ideias de população (que passa a ser o objetivo último do governo no lugar do principado, que era mais identificado com o território) e de economia política, com seus objetivos de bem-estar, crescimento da riqueza nacional etc. 30 Ensaios de geografia crítica humanas, isto é, da falta de um “gênio” (um Einstein, um Newton ou um Darwin) que as revolucionasse. Nada disso. Mesmo com a noção de QI sendo questionada hoje, em especial a partir da descoberta das “múltiplas inteligências”, não temos dúvidas de que existiram e existem inúmeros cientistas sociais com elevadíssimo nível de inteligência (tanto lógico-matemática como linguística, passando pela musical, espacial, interpessoal, emocional etc., além de um grau de criatividade e criticidade provavelmente superior ao encontrável entre os cientistas da natureza40), que, mesmo assim, não conseguiram ou não puderam engendrar novas e revolucionárias teorias tais como as dos genes, dos quanta ou da relatividade. Principalmente teorias testáveis, que têm aplicação prática e geram uma tecnologia avançada, como são essas mencionadas teorias das ciências naturais. Inclusive, há o exemplo de várias eminências indiscutíveis – até alguns prêmios Nobel – em suas áreas (física, medicina, química ou matemática) que migraram para a filosofia ou para as ciências humanas e, de forma aparentemente inexplicável, nunca conseguiram reproduzir as suas descobertas ou teorias indiscutivelmente inovadoras nestas últimas áreas do conhecimento. Albert Einstein mencionou em algumas entrevistas que, quando era jovem, tinha o sonho de tornar-se geógrafo. Quando escolheu um curso superior, com relutância optou pela física e não pela geografia – segundo ele, porque esta seria “mais difícil” e exigiria muitas viagens para conhecer os lugares, algo que demandaria tempo livre e recursos financeiros41. Ao tomarem conhecimento deste fato, muitos estudantes 40 Digo isso não por algum tipo de preconceito ou de bazófia e, sim, pelo bom senso. Assim como é provável que boa parcela das pessoas que possuem uma inteligência físico-cinestésica mais desenvolvida procure se dedicar aos esportes (desde que as condições sociais e pessoais o permitam, evidentemente), também os que têm uma maior inteligência musical tendem a se dedicar às artes, e aqueles com maior espírito crítico, de uma forma geral (sempre há exceções), se identificam mais com a filosofia e/ou com as ciências humanas. 41 Não se pode esquecer que, no final do século XIX, a imagem do geógrafo identificava-se bastante com Alexander von Humboldt, tido como o grande nome da ciência na primeira metade desse século – na segunda metade, Darwin, que na juventude havia sido um admirador de Humboldt, ocupou o lugar de modelo exemplar de cientista, ou melhor, de naturalista. Humboldt, oriundo de uma família prussiana aristocrática e abastada, foi um incansável viajante e nunca trabalhou no sentido moderno do termo, ou seja, nunca exerceu 31 José William Vesentini ingênuos lamentam ter sido a geografia privada de um gênio que iria produzir neste campo do saber algo semelhante às duas teorias da relatividade. Um juízo no fundo popular, todavia singelo, que não atenta para o fato de que as inovações não dependem tanto das pessoas como do contexto ou das oportunidades. Não que pairem dúvidas sobre a genialidade desse cientista, isto é, a sua imensa criatividade e o seu altíssimo grau de inteligência lógico-matemática. De mais a mais, ele se dedicava quase integralmente aos estudos, e gostava disso, fatos que são importantíssimos – às vezes mais até que os níveis de inteligências ou de criatividade. Talvez, como geógrafo, ele contribuísse bastante para este ramo do conhecimento, mas, sem dúvida, que aqui ele não poderia dar origem a uma revolução semelhante à que operou na física. Sabemos serem, em grande parte, as circunstâncias que fazem o personagem, inclusive os gênios42. A física estava amadurecida, isto é, pronta para ser revolucionada no final do século XIX e inícios do XX. Mas a geografia não. Uma época da profunda reformulação na geografia já tinha ocorrido dos séculos XV ao XVII, outra menos espetacular no século XIX – esta última, na verdade, foi mais uma redução e redefinição do campo de estudos com uma nova sistematização. Felizmente para ele e talvez para toda a humanidade, Einstein optou pela física, pois quase certamente na geografia (como também na história, na sociologia etc.) não poderia gerar tamanho impacto como o que produziu na concepção e metodologia da ciência física, na descoberta da energia contida na massa, no entendimento do sistema espaço-tempo e do universo; muito menos algo como abrir caminho para a energia nuclear e para os armamentos atômicos. Convém recordar que o espaço geográfico não é o espaço-tempo da qualquer atividade remunerada. Ele viajava e pesquisava, escrevia livros e, eventualmente, dava alguma palestra somente pelo prazer de expor suas ideias. Quando seu irmão mais velho, Wilhelm, fundou a Universidade de Berlim e, depois de algum tempo, o convidou para formar um departamento de geografia, o primeiro no mundo, Humboldt declinou da tarefa e indicou o nome de Karl Ritter. 42 HEIDEGGER, M. (Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 1989, Parte II) afirmou que um gênio surge quando uma sociedade necessita, “em tempos de grande perigo”. Em geral, isso é válido para toda a história do conhecimento, pois quando as circunstâncias estão favorecendo (o que inclui as demandas sociais, o impasse das velhas teorias, que já não explicam aspectos da realidade, as condições materiais e institucionais favoráveis para o avanço do saber etc.) é que surgem – ou pelo menos são aceitas e incorporadas – as ideias novas e revolucionárias. 32 Ensaios de geografia crítica física relativística. Estamos falando, aqui, do espaço de uma cidade ou meio rural, do território de um Estado, do lugar de vivência de uma comunidade. É evidente que existem certas relações ou possíveis similaridades entre esses espaços. Por exemplo, a tridimensionalidade da localização absoluta no espaço geográfico, algo banal e conhecido há séculos, pode ser enriquecida pela proposição do tempo como uma “quarta dimensão”. Mas isso, no fundo, não é nenhuma novidade, pois os estudos clássicos já mostravam as mudanças na paisagem ou num determinado lugar com o transcorrer do tempo, assim como as marcas desta ou daquela época nos aspectos material e cultural dessa paisagem. Tempo que na física é uma coisa – Einstein gostava de afirmar que, no fundo, “o tempo é uma ilusão”43; e na história, na geografia ou na psicologia, ou mesmo na medicina, é outra coisa diferente. Na física relativística, o tempo é uma mera dimensão – um aspecto ou uma “medida” – do espaço. (Por exemplo: a idade o universo depende da sua extensão; e viajando no espaço, que é curvo, a uma velocidade superior à da luz é possível retornar ou avançar no tempo). Mas nas ciências humanas, em geral, o tempo é existência (individual ou coletiva), é a nossa vida com seus acontecimentos e obras; é, no fundo, irreversível, único e irrepetível. A fortiori, relações ou possíveis similaridades não significam uma identificação total, ou seja, uma subsunção do espaço geográfico no espaço-tempo da física; tampouco a subsunção do tempo histórico ao tempo reversível da física relativística44. Apesar de os geógrafos, em geral, terem uma clara e injustificada ojeriza pela concepção de dualidade (como se isso fosse apenas um mal-entendido ou uma incapacidade de integrar duas coisas), na física mais avançada se admite a existência de uma dualidade na mecânica quântica entre onda 43 Frase repetida com concordância por HAWKING, S. Uma nova história do tempo. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005. Também lembrada por PRIGOGINE, I. O fim das certezas. São Paulo, Editora da Unesp, 1996, embora neste caso o autor procure relativizá-la (não denegar totalmente e, sim, limitar o seu alcance) com a afirmação de que também existem eventos irreversíveis. 44 Desde pelo menos Heiddeger, os fenomenológicos e existencialistas em geral, além de outros filósofos e cientistas sociais, afirmam que o tempo humano não é o tempo da física inaugurada por Einstein. Não que um esteja certo e o outro errado. Nada disso: cada um deles é adequado ao entendimento da realidade à qual se refere. 33 José William Vesentini e partícula. Nas noções sobre o espaço, ou espaços, existe não apenas dicotomia, mas no mínimo tricotomia: o espaço na física é diferente do da geografia, que é diferente do da psicologia etc. A bem da verdade, a palavra espaço é ambígua e possui significados variados, algo que muitas vezes gera confusão – tal como na escrita de alguns autores, que apregoam estarem levando em conta um “espaço relativístico”45 quando, na verdade, estão praticando um mero jogo de palavras que acarreta pouco ou nenhum avanço no conhecimento da realidade. Esse tipo de retórica vazia, onde pretensamente se utiliza no conhecimento do social os conceitos ou proposições da física relativística, da mecânica quântica, do teorema de Gödel ou da teoria do caos, é frequente em alguns – poucos, embora normalmente famosíssimos – autores da filosofia e das ciências humanas em geral, conforme demonstraram com inúmeros exemplos dois físicos de renome46. Não se trata de denegar o valor das análises desses autores, algumas vezes ricas e originais. (Embora, em geral, predominem os discursos prolixos e sofísticos). O importante é não confundir o leitor, sugerindo que se está aplicando conceitos avançados da física ou da matemática quando, na verdade, se escreve a respeito de uma realidade completamente diferente. Seria possível fazer analogias entre as diversas realidades, isso sim, mas não sugerir que o mesmo conceito ou teoria é utilizável no mundo social e histórico. Como assinalaram os dois mencionados físicos, esses conceitos ou teorias da matemática e da física não se referem de forma alguma à sociedade e, quando eles são empregados na sua análise, inevitavelmente incorre-se numa distorção, num uso errôneo e inadequado47. Na geografia mesmo tornou-se comum, pelo menos no Brasil, tanto em artigos e livros como em teses acadêmicas, repetir a definição segundo a qual “espaço é uma acumulação desigual de tempos” como se fosse alguma novidade e um grande avanço frente ao “espaço 45 46 47 Cf. HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres, Edward Arnold, 1969. SOKAL, A. e BRICMONT, J. Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro, Record, 2006. SOKAL, A. e BRICMONT, J. Op. cit. 34 Ensaios de geografia crítica (tridimensional) newtoniano”48. Ora, em primeiro lugar essa definição tão somente reproduz, com outras palavras, uma das concepções de Kant a respeito do espaço: para esse filósofo, adepto manifesto da física newtoniana, o espaço mostraria, em suas marcas, em seus objetos, a ação do tempo nos seus diversos momentos49. Em segundo lugar, a referência a Einstein e à sua concepção de espaço-tempo encontra-se completamente deslocada ou “fora de lugar” nessa caracterização do espaço geográfico com os seus lugares e paisagens enquanto vivência e/ou como trabalho e relação interpessoal e com a natureza. Isso fica mais patente ainda quando recordamos que, para Einstein, o tempo se define a partir do espaço (e não o inverso, tal como nas grandes filosofias do século XIX: hegelianismo, marxismo e positivismo clássico), ao passo que, nessa definição, o espaço subordina-se ao tempo, passa a ser uma expressão material – uma “instância” – deste. Enfim, não estamos preocupados se o espaço-tempo relativístico foi ou não bem entendido e aplicado; isso seria praticamente um novo tipo de escolástica. Queremos apenas realçar que são realidades variadas e nada se ganha – a não ser em prolixidade e, para os tolos, uma sensação de estar acompanhando uma teoria avançada da física – com essa identificação do espaço geográfico (ou o tempo histórico) com o espaço-tempo de Einstein. De fato, o mundo histórico e social é diferente do físico, e mesmo na física existem alteridades nos objetos estudados pela microfísica – as partículas subatômicas – e a realidade maior do universo. A crença metafísica numa só realidade, com uma única lógica para todos os seus aspectos ou todo o universo, infelizmente fortíssima nas ciências humanas (e mais ainda na geografia), muitas vezes gera uma espécie de mimetismo, uma patética tentativa de imitar conceitos da física avançada que mais atrapalha do que ajuda no entendimento da 48 Cf. SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo, Hucitec, 1979. O autor introduz essa definição após a seguinte afirmação: “A concepção de um espaço relativo [...] em oposição à de espaço continente (container) supõe, em primeiro lugar, que se abandone a ideia de um espaço tridimensional, herdeira da filosofia de Newton, e que se passe a trabalhar com a ideia de um espaço quadrimensional, tarefa possível desde que Einstein introduziu um novo pensamento na física e na filosofia.” 49 Cf. KANT, I. Geografia Fisica. Bergamo, Leading Edizione, 2004. 35 José William Vesentini realidade. Nesse sentido, concordamos com a seguinte observação de um importante filósofo greco-francês: Como escreveu Norbert Wiener, ‘o sucesso da física matemática tornou o homem das ciências sociais ciumento da sua potência, sem que ele compreenda verdadeiramente as atitudes intelectuais que contribuíram para isso. Exatamente como tribos primitivas adotam modas ocidentais de roupa cosmopolita e de parlamentarismo a partir de um vago sentimento de que essas vestimentas ridículas e esses ritos mágicos os levarão diretamente ao nível da cultura e da técnica modernas, assim também os cientistas sociais forjaram-se o hábito de vestir de modo ridículo as suas ideias, a bem dizer imprecisas, da linguagem do cálculo infinitesimal’. A razão desse fracasso é clara: são escassos os aspectos dos fenômenos sociais que satisfazem às condições da teoria matemática50. Ipso facto, o caráter irreversível, original e único dos fenômenos histórico e sociais – e também dos lugares na geografia – talvez seja o elemento essencial para entendermos a especificidade das ciências humanas, suas diferenças qualitativas frente às ciências da natureza e as dificuldades que elas possuem para formalizar, para tratar tudo ou quase tudo como números e fórmulas. Por isso, a economia, entre todas as ciências do homem, é a que mais se aproxima, embora com enormes diferenças, do modelo da física. Os fenômenos econômicos – produção de bens e serviços, que podem ser medidos em termos monetários, dinheiro, mercadoria, trocas comerciais etc. – se prestam mais ao agrupamento, à generalização e à quantificação do que os acontecimentos históricos ou os lugares geográficos. Mas falamos em diferenças qualitativas, que, sem dúvida, decorrem dos objetos estudados, e não “atraso” ou mesmo em “juventude”, como apregoam alguns. Convém recordar que também existe – algo importantíssimo – a originalidade do ser humano, em especial o seu livre arbítrio e sua 50 CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto/1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 36 Ensaios de geografia crítica racionalidade. Racionalidade definida, de forma simplificada, como capacidade de avaliar e julgar as coisas, de ponderar suas causas e consequências. E o livre arbítrio, de forma complementar e inseparável da racionalidade, enquanto autonomia ou capacidade de decidir “livremente”. (É óbvio que as condições sempre exercem a sua influência, às vezes decisiva. Portanto, “livremente” deve ser entendido não como liberdade total e absoluta, que não existe para nada ou para ninguém, e, sim, como não condicionamento puro e simples pelo meio e/ou pela natureza biológica, na medida em que existe algo chamado de consciência racional junto com certa margem de opções). A racionalidade e o livre-arbítrio do ser humano produzem esta capacidade de reelaborar as coisas, inclusive a própria sociedade e o próprio comportamento, o que implica em transformar radical e constantemente o seu meio (cultural ou ambiental), algo que, lato sensu, é conhecido como história. Isso resulta numa diferença qualitativa fundamental das ciências do homem frente às ciências naturais, pois naquelas o sujeito é ao mesmo tempo objeto e nunca uma coisa que pode ser vista como externa, que pode ser manipulada em laboratório ou testada com certa margem de exatidão em experimentos controlados. Dessa forma, outra distinção fundamental entre as ciências da natureza e as da humanidade é a possibilidade da experimentação, sem dúvida o fator essencial na eclosão da revolução científica moderna. A experimentação reproduz fenômenos na física, na química e na biologia, fazendo com que eles possam ser conhecidos e medidos com precisão, algo que possibilita uma formalização e até mesmo certa previsibilidade. Sem dúvida que há diversidades entre, por exemplo, a física do universo, na qual se faz previsões praticamente exatas sobre a trajetória dos cometas, em comparação com a biologia, que normalmente convive com o acaso. Contudo, deixando de lado suas inúmeras variedades, podemos dizer que essas ciências formam um conjunto no qual, bem ou mal, existe uma grande margem de formalização e previsibilidade. Nas ciências humanas em geral – salvo exceções como determinados objetos na demografia ou na psicologia, ciências do homem que são em parte biológicas –, isso não é possível. Como reproduzir em laboratório, num experimento com as condições 37 José William Vesentini controladas, uma revolução, uma crise mundial ou um lugar geográfico específico? Não é possível porque eles são únicos, originais e em parte imprevisíveis, além de possuírem uma abrangência gigantesca – com milhares ou milhões de atores envolvidos, cujas ações se entrecruzam. Isso sem contar com as questões éticas e jurídicas contidas nos experimentos que envolvem seres humanos. Mesmo fatos aparentemente semelhantes – tais como as revoluções denominadas “socialistas”: a russa de 1917, a chinesa de 1949 ou a cubana de 1959; ou então a crise econômica mundial de 1929, que segundo alguns teria se repetido no final de 2008 –, na verdade, possuem diferenças significativas. Cada situação é específica e até mesmo as generalizações que fazemos – por exemplo, falar em revoluções “burguesas” e “socialistas”, ou em crises econômicas, ou mesmo em região no sentido geográfico do termo – sempre são questionáveis: em qualquer caso será possível demonstrar que a situação X é alter, é completamente diferente das situações Y ou Z, também classificadas no mesmo grupo ou conceito. Via de regra, nem mesmo é possível examinar com minúcias os fenômenos estudados pelas ciências humanas num microscópio ou num telescópio, pois, além de sua abrangência, eles são singulares e não repetíveis, com comportamentos que variam muito no tempo e no espaço, bem diferentes daqueles dos cometas, dos ventos, das bactérias e de outros objetos materiais não humanos. Evidentemente que as generalizações são possíveis, assim como os conceitos que abrangem um número indefinido de casos ou situações. Sem isso, seria até mesmo duvidoso falar em ciências humanas ou sociais. Mas cada situação social e histórica, ou lugar geográfico, é específico e estudar as suas peculiaridades é algo que faz parte das ciências do homem. As ciências sociais, de uma forma geral, são tidas como periféricas frente às da natureza. É lógico que, assim como no mundo subdesenvolvido existem Estados mais periféricos e outros nem tanto, além daqueles casos difíceis de serem classificados, também existe um amplo espectro de situações variadas na hierarquia das ciências. A economia, por exemplo, está mais bem posicionada do que a pedagogia, a sociologia ou a geografia. Não que ela seja vista como uma ciência indiscutível e modelar, tal como a física, e, sim, que 38 Ensaios de geografia crítica desfruta um maior conceito na sociedade e na academia por vários motivos. Primeiro, a importância do seu campo de estudos, a riqueza material, na sociedade capitalista. Segundo, a prosperidade de seus membros: os economistas, em média, ganham mais dinheiro, logo possuem maior status social do que os historiadores, geógrafos, sociólogos ou pedagogos. Por fim, em função do fato de que os temas/conceitos da ciência econômica se prestam mais à formalização do que a quase totalidade dos objetos das demais ciências humanas. Em contrapartida, a geografia quase sempre é vista com reticências, seja principalmente nas ciências naturais (onde alguns, ligados à geografia física, pretendem que seja o seu lugar) ou até mesmo nas ciências humanas. Entramos, aqui, no terreno da especificidade epistemológica da geografia. As análises epistemológicas sobre a geografia, de uma forma geral, são incipientes e débeis. Os grandes nomes da teoria do conhecimento, a partir do final do século XIX, praticamente nunca mencionam esta ciência. É como se ela não existisse enquanto disciplina científica. Algumas vezes, eles – isto é, autores como Popper, Carnap, Ayer, Bunge, Whitehead, Reichenbach, Lakatos ou Feyrabend – mencionam a sociologia ou a economia, raras vezes a história como disciplina científica (embora frequentemente façam referências às mudanças históricas), mas nunca a geografia. Também os filósofos importantes que refletem sobre as ciências, vistas de regra ignoram a geografia. Um recente e volumoso manual universitário norte-americano de filosofia, por exemplo, dedica dezenas de páginas para a filosofia da história, o mesmo tanto para a filosofia da matemática, para a do direito, da linguagem e até das ciências sociais, mas não se refere à geografia sequer neste último tópico51. Salvo engano, somente uma única obra relevante em termos internacionais editada nas últimas décadas sobre a filosofia das ciências destinou um capítulo à geografia. Trata-se da coletânea História da Filosofia, organizada por François Châtelet que, no seu volume 7, inclui um artigo sobre essa temática52. Fica patente, 51 BUNNIN, N. e TSUI-JAMES, E. P. (Org.). Compêndio de Filosofia. São Paulo, Loyola, 2003. LACOSTE, Yves. “A Geografia”, in CHÂTELET, F. (Org.). A filosofia das ciências sociais. Volume 7 da coleção História da filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, p. 221-74. 52 39 José William Vesentini todavia, que foi uma exceção motivada por amizade de dois professores universitários franceses, o filósofo organizador da coleção e o geógrafo convidado para escrever o artigo. Como se trata praticamente de um resumo ou uma espécie de rascunho do livro que o geógrafo editaria logo em seguida53, não é descabido supor que ele tenha comentado sobre essa obra em andamento advindo daí o convite para compor essa coletânea. Uma exceção que praticamente confirma a regra: a quase total omissão da geografia nas reflexões epistemológicas e filosóficas sobre as ciências desde, pelo menos, o final do século XIX. Entretanto, até meados do século XIX isso não ocorria. Basta recordar dos escritos de Montesquieu, no século XVIII, que, na verdade, construiu uma filosofia (política) a partir da geografia. Ou do maior filósofo do conhecimento desde a revolução científica moderna até pelo menos os primórdios do século XX, Kant, que lecionou uma disciplina chamada “geografia física” durante 48 semestres na universidade de Königsberg, entre 1756 a 1796, e incluiu a geografia na sua teoria das ciências. Inclusive, pode-se afirmar que o principal alicerce teóricoepistemológico desta disciplina prossegue sendo a filosofia kantiana com a asserção de que o campo de estudos da geografia é o espaço dos seres humanos. Essa ideia é mais aceita hoje do que a concepção de Humboldt e Ritter, os quais, influenciados pelo romantismo54, insistiam na “harmonia” entre a humanidade e a natureza. (São duas coisas relativamente diferentes que, por vezes, os geógrafos confundem. Estudar a “harmonia” ou mesmo as relações entre a humanidade e natureza não é o mesmo que estudar o espaço da sociedade humana. Boa parte dos geógrafos que adota esta última postura nos dias de hoje ignora completamente a natureza em si e considera tão somente o espaço social). Inclusive, esses dois geógrafos germânicos do século XIX leram e absorveram, em parte reproduziram, inúmeras ideias de Kant, embora no entendimento do campo de estudos da geografia eles 53 LACOSTE, Y. La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre. Paris, François Maspero, 1976. Neste livro, o autor praticamente reproduz, com ligeiras alterações e acréscimos, o conteúdo daquele ensaio citado na nota anterior. 54 Sobre a influência do romantismo em Ritter e particularmente em Humboldt, veja-se os dois primeiros capítulos de CAPEL, H. Filosofía y ciência en la geografía contemporánea. Barcelona, Barcanova, 1981. 40 Ensaios de geografia crítica tenham sofrido uma forte influência do espírito científico moderno – isto é, da necessidade de confrontar a teoria com os fatos, de perscrutar o mundo empírico – e do romantismo alemão da sua época. Essa sensível presença de Kant até os dias atuais não é nenhum demérito para a geografia. Inúmeros grandes nomes da teoria do conhecimento no século XX foram ou são neokantianos: Cassirer, Gadamer, Dawkins, Piaget e vários outros. As ideias de Kant influenciaram enormemente a sociologia de Max Weber, a antropologia de Franz Boas, a fenomenologia de Husserl e de Heidegger e até mesmo a epistemologia de Karl Popper. Para Kant, a história seria o estudo da humanidade no tempo, e a geografia seria esse estudo no espaço. Seriam duas ciências “especiais” e complementares, ambas sinópticas ou sintéticas (ao fazerem uso de elementos de várias outras ciências) e, em grande parte, idiográficas, embora a história sob um ponto de vista cronológico ou temporal e a geografia numa perspectiva corológica ou espacial. Elas seriam diferentes das ciências sistemáticas, as quais, em tese, estudam algum fenômeno específico sem grandes preocupações com o tempo e o espaço, tal como a física, a química, a biologia, a pedagogia etc. Essa interpretação foi reproduzida pelos dois grandes nomes da epistemologia geográfica no século XX: Alfred Hettner e Richard Hartshorne. E continua atual, sendo implicitamente admitida até pelos que dizem ter superado o espaço newtoniano através da incorporação do espaço quadrimensional (alguns falam até numa “quinta dimensão”, que seria o cotidiano!) da física relativística. Tanto os neopositivistas como os marxistas, os fenomenológicos e os pós-modernos, todos eles pensam o tempo e o espaço de forma newtoniana e kantiana, isto é, separadamente, a partir do que a geografia estudaria a humanidade sob um prisma espacial. Mas há variedades. Os neopositivistas, por exemplo, exorcizam a noção de ciência idiográfica. Afirmando que toda e qualquer ciência tem que ser nomotética, eles procuram construir “leis” ou teorias gerais que dêem conta da espacialidade de alguma atividade humana. Um labor digno de Sísifo, pois esbarra na referida originalidade, no caráter único e irrepetível dos fatos históricos e geográficos. A teoria dos sistemas foi o instrumental metodológico que mais fez avançar esse tipo de abordagem na ciência geográfica; contudo, ela é muito mais eficaz e deu seus melhores frutos na 41 José William Vesentini geografia física e não na humana. Já os marxistas enfatizam a noção de produção do espaço. Como estão utilizando uma filosofia que denega o espaço em função do tempo, da história, assumem a árdua e talvez infrutífera tarefa de complementar o materialismo histórico com a inclusão do espaço geográfico, advindo daí um insosso “materialismo histórico e geográfico”. Os fenomenológicos procuram perscrutar como os seres humanos percebem ou se identificam com o espaço, ou melhor, com os lugares. No fundo, eles não conseguem ir além do relativismo. Os pós-modernos são pluralistas e utilizam, em maior ou menor grau, elementos de todas as três correntes do pensamento anteriores, além de incorporarem ideias ou preocupações do anarquismo, do feminismo, de Nietzsche, de Foucault etc. Mas, de fato, nenhum deles logrou superar completamente a herança kantiana. Não por algum tipo de incapacidade intelectual e, sim, porque o nosso tempo ainda não o permite. Continuamos a vivenciar, nas ciências humanas e mesmo em nosso cotidiano, o espaço e o tempo separados, apesar de que todo momento só tenha concretitude no espaço e todo lugar seja marcado por uma temporalidade. Tempo e espaço são interligados, inclusive inseparáveis na prática, na existência dos fenômenos históricos ou geográficos. Mas são distintos e entendidos de forma separada e até oposta nos estudos, nas pesquisas, nas ciências humanas enfim. Um impasse dessa epistemologia kantiana, que em grande parte ainda norteia a legitimação científica da geografia, é certa idealização da realidade e, portanto, das ciências que a estudam por diferentes vieses. Só se pode admitir a existência de “ciências sistemáticas” no mundo físico e, em parte apenas, no biológico. Sem dúvida, a física e a química, em suas teorias e conceitos fundamentais, não precisam da referência ao tempo e ao espaço: o hidrogênio ou os átomos, as reações químicas ou as forças físicas (gravitacional, eletromagnética, nuclear fraca e forte), todos esses fenômenos são semelhantes hoje ou a 4 bilhões de anos, tanto aqui na Terra como numa galáxia situada a bilhões de anos-luz de distância. Não é necessário determinar temporal e espacialmente esses fenômenos para explicá-los. Mas, nas ciências humanas (as ciências biológicas ficam numa posição intermediária), não existem, de fato, conceitos e teorias sistemáticas, isto é, atemporais e independentes do lugar, de uma sociedade ou uma cultura específica. 42 Ensaios de geografia crítica É por isso que todas as ciências sociais são, ao mesmo tempo, históricas e geográficas. Históricas, pelo fato de terem que levar em conta, necessariamente, a historicidade ou temporalidade dos fenômenos; e geográficas, na medida em que todos os objetos que estudam variam enormemente no espaço, ou seja, são diferentes em função do lugar onde se situam – diferenças que, no fundo, decorrem de sociedades e culturas distintas, sem esquecer, evidentemente, que determinados traços de uma cultura possuem íntimas relações com o meio físico no qual ela se desenvolveu. Destarte, não é possível pensar um conceito abstrato de classe social, ou de sistema escolar, de produção econômica, de Estado ou mesmo de poder político, sem estabelecer profundas diferenças entre o que significam esses conceitos nesta e naquela sociedade, neste ou naquele momento da história. Diferenças por vezes incomensuráveis. Tanto que inúmeros autores afirmam que, no fundo, não é possível haver um conceito único de Estado, ou de política, de status social, de educação etc. Foucault, por exemplo, mostrou cabalmente que o que se entendia na antiguidade grega por medicina, por sexualidade ou por educação (poderíamos acrescentar: por geografia) são coisas bem diferentes do nosso entendimento atual. Por vezes, malgrado o nome em comum, trata-se de objetos completamente distintos. Tais diferenças, fatalmente, devem ser levadas em conta pelas ciências humanas. Normalmente, elas são maiores no tempo do que no espaço, ou pelo menos são percebidas dessa forma pela filosofia e pelas humanidades. Daí uma maior valorização da história pelas ciências sociais, isto é, uma ênfase muito maior nas diferenças suscitadas pelo tempo histórico. Na verdade, as ciências sociais proclamam abertamente a sua historicidade: são disciplinas que amiúde e explicitamente dizem ponderar sobre o tempo histórico com as suas transformações. Mas, dificilmente elas apregoam a sua geograficidade: isso parece ser visto como algo inferior ou sem importância. Foucault foi provavelmente o primeiro autor a escrever sobre essa depreciação do espaço em prol de uma temporalidade supervalorizada. Segundo ele, essa ênfase na dimensão temporal, na história, concomitante com uma desvalorização do espaço, teria se dado no 43 José William Vesentini século XIX a partir da ideia de revolução social55. Uma noção – ou um projeto – de revolução social que se tornou dominante a partir da Revolução Francesa. Creio que se pode acrescentar, de forma complementar, que também o mito do progresso contribuiu para essa ênfase no tempo, nas mudanças temporais, em detrimento das diferenças espaciais. Esse mito do progresso pressupunha um continuum infinito na história humana percebida como realizações sucessivas que vão tornando superadas as condições do passado. É o “mais e mais” ilógico e antiecológico a que se refere Castoriadis num brilhante ensaio sobre o tema: o mito de um progresso material que sempre utiliza mais recursos naturais, mais água, mais solos agriculturáveis, maiores conquistas sobre a natureza enfim56. Nesse mito, o espaço é algo inerte, identificado mais com o universo infinito do que com o nosso espaço geográfico finito; o tempo, por outro lado, é o locus privilegiado das mudanças. Poderíamos, talvez, acrescentar que também a teoria da evolução contribuiu, mesmo sem pretender (pelo menos essa nunca foi uma intenção de Darwin), para essa percepção do tempo – ou melhor, da história – como o lugar por excelência das mudanças e das transformações sociais e até naturais. Todos se recordam da ideia simplista de Marx – por sinal, um obstinado adepto do progresso e com a declarada pretensão de produzir “no reino do social” o mesmo impacto obtido por Darwin “no reino da natureza” – segundo a qual “Só existe uma ciência, a ciência da história”, que poderia ser dividida em história da sociedade e história da natureza57. Essa percepção, reiteramos, foi tributária da Revolução Francesa e de uma de suas sequelas: toda uma série de interpretações ou teorias da história autodefinidas como revolucionárias – anarquistas, positivista, marxista, socialistas utópicas – que se seguiram a esse evento. Como não podia deixar de ser, também essa revolução, em grande parte, decorreu – ou pelo menos contou com a inspiração – de toda uma série 55 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 212. CASTORIADIS, C. Reflexões sobre desenvolvimento e racionalidade. Op. Cit. 57 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Livraria e Editora Ciências Humanas, 1979. 56 44 Ensaios de geografia crítica de proposições igualitárias ou “comunistas” (palavra que deriva das “comunas” tão comuns na Idade Média), que se multiplicavam desde o século XVI a partir de autores como Thomas Morus ou Jean-Jacques Rousseau, além de outros58. No transcorrer dessa revolução, ou depois dela, surgiram as doutrinas anarquistas e socialistas – a palavra “socialismo” foi inventada por Pierre Lerroux em 1832. Na verdade, foram continuações, com nuanças, das ideias utópicas de Platão e Thomas Morus, e também dos juízos de Rousseau e outros, segundo os quais “a propriedade privada é a origem dos males sociais”, “os indivíduos nascem bons e a sociedade os corrompe” etc. Esses ideais são igualitários e louváveis. Bem ou mal, eles serviram de inspiração para grandes mudanças sociais que construíram a democracia moderna. Entretanto, eles possuem um viés autoritário na medida em que encerram propostas de implantação de um novo modelo, apriorístico, de governo ou de sociedade. Neste, os indivíduos terão que se ajustar a regras que não foram por eles escolhidas, as quais não podem mudar, pois seriam teoricamente “universais”, encerrando o “modelo ideal de sociedade”, o qual é fruto da mente de algum pensador, mesmo que este afirme que “deduziu objetivamente” esse esquema da análise do mundo ou da história. Essas ideias se tornaram hegemônicas nas ciências humanas. Inquestionavelmente, elas representaram um inegável avanço no conhecimento do social. Contudo, via de regra, elas ignoram o espaço, as diferenças territoriais entre os povos ou lugares, os quais, no fundo, quase sempre são diferenças culturais e sociais. Mas especificidades culturais e sociais, repetimos, também forjadas a partir da interação do social com o natural, com o seu espaço ou território, tendo-se em vista sua localização relativa, seus recursos naturais e como eles foram aproveitados etc. Imaginam apenas, ou principalmente, mudanças derivadas basicamente do tempo, da história. É como se a humanidade – e, no fundo, também a natureza – fosse basicamente uma só, com uma trajetória em comum. Como se as sociedades, em todos os lugares, com pequenas variações, tivessem que passar por “etapas” ou 58 Cf. MOSCA, G. e BOUTHOUL, G. História das doutrinas políticas. Rio de Janeiro, Zahar, 1967. 45 José William Vesentini “estágios” semelhantes. Como se tivessem um futuro pré-determinado e unívoco. Com isso, o espaço fica anulado, torna-se um simples palco inerte para os acontecimentos. Em outras palavras, ele passa a ser um mero quadro físico, negligenciável em face de sua pouca relevância, sem de fato implicar em diferenças significativas tanto na natureza quanto, principalmente, nas sociedades; as mudanças ocorreriam essencialmente na história, esta, sim, vista como um campo de lutas e alternativas59. Como afirmam até mesmo alguns geógrafos, o espaço seria o “corpo” do tempo ou da história, numa leitura organicista na qual o que importa no indivíduo é a consciência, o seu livre arbítrio e, principalmente, as suas ações, sendo secundários os traços corporais. As diferenças espaciais seriam apenas um detalhe, um mero atraso relativo de alguns lugares frente a outros, em suma, algo que a dinâmica essencialmente temporal tenderia a desmanchar ou a homogeneizar. Como ironizou Foucault, o tempo seria “dialético”, rico e fecundo, enquanto o espaço seria “conservador”, antirrevolucionário e identificado com o status quo60. Um extraordinário problema epistemológico da geografia é que as ciências sociais foram construídas ou reconstruídas, a partir do século XIX, com essa perspectiva essencialmente histórica. E o projeto unitário da geografia foi pensado a partir de uma filosofia kantiana – e também, como já mencionamos, romântica – anterior e/ou relativamente isenta dessa desvalorização do espaço. Um projeto que consiste num conhecimento científico, inspirado no parâmetro empirista da ciência moderna, que se propõe a unir o estudo da 59 Esse viés já se encontra em HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid, Alianza Editorial, 1982. Nesse ambicioso livro publicado postumamente em meados do século XIX, há uma primeira parte intitulada “os fundamentos geográficos da história universal”, na qual o autor comenta sobre a influência do espaço na história. Mesmo tendo sido em parte influenciado pela leitura de Montesquieu, e também de Kant, Humboldt e Ritter, Hegel desvaloriza o espaço, a geografia, em prol de uma dialética essencialmente temporal e inter-humana, sendo que as condições geográficas representam apenas obstáculos ou possibilidades que o espírito humano pode – e deve – superar. Existe aí uma percepção espacial mística: da mesma forma que o Sol nasce no Oriente e se põe no Ocidente, seria neste lugar – na Europa, mais especificamente – que o espírito tomaria consciência de si, enfim, que a história iria se realizar ou completar. 60 FOUCAULT, M. Op. Cit. 46 Ensaios de geografia crítica humanidade (geografia humana) com o estudo da natureza-para-oHomem (geografia física) sob um prisma espacial ou territorial, isto é, do meio ambiente (natural e cultural) ou das paisagens formadas pela interação entre a humanidade e a natureza. Um projeto que logo se chocou tanto com o desenvolvimento das ciências da natureza quanto também com essa visão essencialmente histórica das ciências sociais. Com as ciências naturais, porque estas logo abandonaram a ideia de elaborar um estudo integrado do meio físico (justamente este era o principal objetivo de Humboldt, que pretendeu fundar uma “geografia física”, na verdade, um estudo sintético ou integrado do clima com o relevo, com os solos, com a vegetação, com as águas etc)61. Era o antigo ideal grego para a física, entendida como a “ciência da natureza”, abandonado ou deixado de lado a partir da mecânica de Galileu – prosseguida com Newton, Einstein etc. –, que passou a estudar somente o mundo físico visto como apartado da química, da biologia, da hidrologia, da oceanografia e de outras ciências da natureza. Humboldt pretendeu, num certo sentido, retomar esse projeto – embora pensando mais na natureza-para-o-Homem, nas paisagens enfim, nas quais haveria uma harmonia no conjunto formado pelos elementos naturais e com as quais as comunidades humanas viveriam adaptadas ou em simetria. Mas retomar esse projeto foi uma ideia utópica numa época, em pleno século XIX, em que as ciências da natureza já haviam se compartimentado e se expandiam cada vez mais de forma autônoma, com as novas teorias na biologia, específicas e separáveis da física, com novas proposições na química, na geologia etc. Um projeto ambicioso e holístico para uma época analítica, na qual 61 “A realização mais importante de um estudo racional da natureza é apreender a unidade e harmonia que existe nessa imensa acumulação de forças [...] A tentativa de decompor em seus diversos elementos a magia do mundo físico é plena de riscos porque o caráter fundamental de qualquer paisagem e de qualquer lugar imponente da natureza deriva da simultaneidade de ideias e de sentimentos que suscita no observador. A Física do Mundo que procuro expor [...] é uma Geografia Física unida à descrição dos espaços celestes [...] é um ensaio sobre o Cosmos fundado sobre um empirismo equilibrado, ou seja, sobre um conjunto de fatos registrados pela ciência e submetidos à ação de um entendimento que compara e combina.” (HUMBOLDT, A. Cosmos. Ensayo de una descripcion física del mundo. In: MENDOZA, J. G., JIMÉNEZ, J. M. e CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico. Madrid, Alianza, 1982, p. 15967). 47 José William Vesentini separar e analisar as partes em minúcias tornou-se a essência da pesquisa e do conhecimento em praticamente todas as ciências. Um projeto no fundo destinado ao fracasso ou, de forma mais amena, a ser negligenciado e até menosprezado nas ciências naturais. Um projeto visto com desconfiança nas ciências humanas porque incorporava as influências do meio físico, algo considerado reacionário numa época em que predominava o ideal de revolução social feita exclusivamente a partir do intelecto humano (mesmo que apoiado no desenvolvimento das forças produtivas, processo no qual a natureza só entra enquanto recurso inerte). Como a geografia, com esse projeto holístico e, ao mesmo tempo, utópico e romântico, no fundo extemporâneo, conseguiu sobreviver – mesmo que às duras penas? Acredito que, primeiro, porque já era um saber clássico, de longa tradição – na verdade milhares de anos – e há tempos ensinado pelos preceptores ou pelas raras escolas que existiam até o século XIX (as civis e as militares, devido à importância estratégica dos conhecimentos geográficos). Recordemos, novamente, que um dos maiores pensadores do século XVIII, Kant, durante várias décadas foi professor de uma disciplina intitulada “geografia física”, sendo que as anotações de suas aulas foram editadas em seis livros e serviram como material de apoio até para Humboldt, apesar da visível falta de trabalho de campo e de dados empíricos originais ou às vezes sequer confiáveis62. Depois, e principalmente, porque ela se tornou uma disciplina escolar numa época em que ocorreu uma enorme expansão – na verdade, uma construção ou invenção – dos sistemas nacionais de ensino. A partir do século XIX, os Estados nacionais europeus – e, em seguida, o resto do mundo – precisavam formar um número cada vez maior de professores de geografia, e, com isso, houve também a sobrevivência desta ciência 62 KANT. Geografia Fisica. Bergamo, Leading Edizione, 2004. Utilizamos esta edição italiana, a única que encontramos após uma demorada pesquisa em bibliotecas e em livrarias on-line, em três volumosos tomos (cada um com 600 páginas), mas a edição original, em alemão, é de 1807-11. Humboldt cita muito esta obra de Kant, embora, como bom naturalista e alguém antenado com o espírito indutivo da ciência do seu tempo, ele buscou separar a especulação (muito comum no filósofo germânico) dos dados empíricos que coletou em suas viagens e observações in loco. 48 Ensaios de geografia crítica na academia, apesar de mal tolerada pelas ciências naturais e até mesmo pelas humanidades63. Mesmo que isso horrorize grande parte dos geógrafos, notadamente os que teorizam a história do pensamento geográfico (que quase sempre se inspiram no modelo idealizado da evolução da matemática ou da física64), temos que reafirmar este fato elementar: que a partir do final do século XIX, e durante todo o século XX, a geografia sobreviveu nas universidades principalmente porque havia se tornado uma disciplina obrigatória no sistema escolar. É tão somente uma constatação e não uma depreciação. Cabe, ainda, deixar claro que esse fato não diminui o valor da geografia para a sociedade e tampouco invalida sua cientificidade, pois já vimos que esta não consiste num padrão unívoco e, sim, numa pluralidade de conhecimentos racionais, obtidos a partir de métodos variados, sobre aspectos do real ou do mundo. Retornando novamente à nossa analogia das ciências tidas como secundárias com os países periféricos, temos que lembrar que, entre outras coisas, estes sofrem uma carência de capitais, de investimentos produtivos. Isso também ocorre com as referidas ciências, que sempre dispõem de poucas verbas em comparação àquelas vistas como centrais. Alguns falam até em big sciences (as pesquisas que são vistas como estratégicas ou potencialmente lucrativas, que recebem investimentos milionários) em contraponto às small sciences (as 63 Cabe recordar que a mais prestigiosa universidade do mundo, Harvard, fechou o seu departamento de geografia após a Segunda Guerra Mundial, período em que ocorreu uma grande retração desta disciplina acadêmica, com fechamento de cursos ou redução de vagas, nas principais universidades do país. Só recentemente, a partir dos anos 1990, com a volta da disciplina escolar geografia no ensino básico, em primeiro lugar (e também, secundariamente, com a crescente aceitação de um princípio holístico que busca derrubar as barreiras entre as diversas ciências), é que algumas universidades norte-americanas voltaram a abrir ou ampliar seus cursos de geografia. 64 É um modelo que, no fundo, não corresponde totalmente à realidade nem na matemática e muito menos na física, embora elas sirvam de inspiração, no qual as teorias científicas vêm primeiro e determinam a “prática”, isto é, a tecnologia, as aplicações e inclusive o seu ensino. Esse viés unilateral não vê que muitas vezes é no ensino, ou em qualquer outro tipo de “prática”, que as teorias são forjadas. E também não percebe que o ensino não se resume à transmissão dos rudimentos das ciências, mas tem outros objetivos como desenvolver no educando a sociabilidade e a criatividade, o espírito crítico, a capacidade de pensar por conta própria etc. 49 José William Vesentini ciências ou modalidades de pesquisas tidas como de pouca relevância, que recebem minguadas verbas)65. Nessa classificação, sem dúvida que a geografia – como também a história, a sociologia, a antropologia etc. – são incluídas entre as small sciences. Os gastos aqui, mesmo nos países mais ricos, são contados em no máximo milhares de dólares, enquanto, nas big sciences, eles atingem a casa dos milhões ou até dos bilhões de dólares. Na pesquisa física, por exemplo, foi construído recentemente, na Europa, um super-acelerador de partículas, o LHC (Large Hadron Collider), com um custo estimado de 9 bilhões de dólares. Essa é uma quantia dezenas de vezes maior que o total de todos os investimentos dedicados às ciências humanas desde meados do século XIX até os dias de hoje! E é apenas um experimento físico – obviamente com prováveis aplicações tecnológicas. Embora seja um mega-projeto, quase uma exceção, existem ainda vários outros com gastos bastante dispendiosos: só o telescópio Hubble, já considerado obsoleto, custou U$ 2,5 bilhões na sua construção, sem contar os volumosos gastos com a sua manutenção; o projeto Apollo, implementado durante 13 anos, custou cerca de U$ 23 bilhões; e várias outras pesquisas nas ciências naturais – desde o projeto genoma até um acelerador de partículas construído em 1999 no Texas – demandaram orçamentos na casa dos bilhões de dólares. É evidente que esses investimentos em pesquisas das big sciences sempre encerram perspectivas de ganhos (econômicos ou militares) com aquisição de tecnologia. Afinal de contas, são dispêndios compreensíveis, que bem ou mal ampliam o conhecimento humano. Não são gastos absurdos apesar de alguns duvidarem de sua eficácia em comparação com um número bem maior de investimentos na pesquisa de base66. Não se questiona aqui esse enorme volume de recursos em determinadas pesquisas ou explorações físicas, químicas e biológicas, mesmo que eventualmente elas possam resultar em armamentos mais letais. O que se evidencia é a descompassada diferença de tratamento entre as ciências, com algumas delas – a geografia, a história, a sociologia, a 65 LINTON, J.D. Why big science has trouble finding big money and small science has difficulties finding small money. In: Technovation, vol.28, issue 12, december 2008, p. 799801. 66 BROAD, W.J. Big Science: is it worth the price? In: The New York Times, 27/05/1990. 50 Ensaios de geografia crítica antropologia e até a pedagogia – recebendo somente algumas migalhas. Nesse sentido, elas de fato são ciências periféricas. E vão continuar a ser por um bom tempo, pois o desenvolvimento de um ramo do conhecimento depende bastante – embora não apenas, pois afinal de contas existem inegavelmente determinadas temáticas (inclusive alguns “falsos problemas”) nas quais despender milhões ou bilhões de dólares seria pura perda de tempo e de preciosos recursos – do volume de investimentos empregado nas suas pesquisas. Como o mundo moderno continua – e provavelmente vai continuar ainda por um longo período – a ser o mesmo, isto é, o mundo dos Estados-nações com as suas rivalidades, do desenvolvimento material como escopo básico, da recriação das desigualdades internacionais, sociais, regionais e até científicas (no sentido já apontado de disciplinas privilegiadas, ao lado de outras menosprezadas), nada indica que a periferização da geografia seja algo cujo final esteja próximo. Oxalá o otimismo dos adeptos do “paradigma da complexidade”, como Edgar Morin, torne-se realidade e, com isso, as ciências de pretensão holística, como a geografia, sejam de fato revalorizadas. Talvez isso seja apenas um sonho, uma utopia irrealizável. Ou talvez acabe por ganhar concretitude com a crise da modernidade, com o esgotamento de um modelo de desenvolvimento antiecológico e gerador de exclusões, com a crise, enfim, de um padrão de pensamento que desvaloriza o espaço em prol do tempo, que se recusa a ver as obras humanas – cultura, economia, instituições sociais – como parte indissociável da evolução da mãe-Terra. 51 José William Vesentini 52 Controvérsias geográficas: epistemologia e política* O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa [...] Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. (WALTER BENJAMIN). A história das ciências é plena de conflitos, polêmicas, alternativas que se contrapuseram num determinado momento. Talvez, esse seja exatamente o âmago do desenrolar de um saber: os contextos de indeterminação, de caminhos ou alternativas plurais que se enfrentam e suscitam um andar, menos ou mais acelerado, neste ou naquele sentido. O avanço do conhecimento, em especial o científico, não se faz tão somente com a descoberta de novos aspectos da realidade, de novos fenômenos ou de encadeamentos entre os mesmos, enfim, de novos achados sobre o(s) objeto(s) estudado(s) – ou mesmo da (re)construção dos objetos ou da invenção de novos. Ele também ocorre em oposição a * Texto elaborado em 2005 e disponibilizado na revista eletrônica Confins: http://confins.revues.org/personne1322.html?type=auteur 53 José William Vesentini modelos ou esquemas de pensamento dominantes e/ou tradicionais, no confronto com as ideias estabelecidas e constantemente reproduzidas. Esse processo é recorrente no desenvolvimento das ciências e existe desde os primórdios da chamada revolução científica. Basta lembrarmos que os primeiros cientistas na moderna acepção do termo – Copérnico, Leonardo da Vinci, Giordano Bruno e, principalmente, Galileu Galilei – travaram uma dura batalha contra os procedimentos cognitivos tidos como legítimos na sua época, procurando afirmar a racionalidade – a observação e a análise dos fenômenos, a indução e a dedução, as inferências com base no raciocínio lógico – contra a autoridade das escritas consideradas sagradas ou inquestionáveis. Um eminente físico chegou inclusive a afirmar que: “Na história da ciência, descobertas e ideias novas sempre suscitaram debates na comunidade científica, com publicações polêmicas a criticar as novas ideias, mas tais críticas frequentemente servem de ajuda ao desenvolvimento do novo pensamento”1. Em contrapartida, a história da geografia é demasiado indigente em controvérsias, afirma-se com frequência. Um conhecido geógrafo francês asseverou que existe uma quase total ausência de discussões teóricas na ou sobre a geografia, que seriam substituídas pelas intrigas de caráter pessoal: O sistema universitário não impediu as polêmicas em outras disciplinas. Em geografia, conflitos entre pessoas, sim, mas nada de problemas (ou quase nada...). A indolência dos geógrafos com relação aos problemas teóricos, indolência que se estabeleceu entre certas pessoas com alergia às vezes brutal, é acompanhada por uma preocupação em evitar toda e qualquer polêmica que possa desembocar num problema teórico2. Apesar disso, ocorreram, sim, algumas importantes polêmicas teóricas na geografia, embora em geral elas sejam reiteradamente omitidas ou 1 HEISENBERG, Werner. Física & Filosofia. Brasília, Editora da UNB, 1995, p.15. LACOSTE, Yves. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas, Papirus, 1988, p. 106. 2 54 Ensaios de geografia crítica denegadas – ou então distorcidas –, inclusive nas melhores obras sobre a história do pensamento geográfico. Nestas, via de regra, se despende um enorme esforço na ênfase à filiação teórico-metodológica de tal ou qual autor ou escola de pensamento – se positivista, historicista, fenomenológico, dialético etc. –, construindo, assim, uma totalidade homogênea – e, com isso, os conflitos e as tensões que poderiam implodir essa imagem de processos aparentemente unívocos são excluídos ou ignorados. Reconhecemos a importância desse tipo de análise, que valoriza o contexto e as grandes “correntes de pensamento”, procurando nelas encaixar a produção geográfica deste ou daquele autor. Mas só isso não basta, principalmente porque esse tipo de enfoque, mesmo que eventualmente de forma não intencional, denega o que há de mais importante no avanço do conhecimento científico: o pluralismo e o diálogo entre correntes de pensamento diferenciadas. Falta o “agora” a que se refere Walter Benjamim, isto é, o momento do relampejar no qual várias alternativas eram possíveis e uma delas acabou predominando. Iremos aqui retomar e reavaliar três controvérsias significativas na história da geografia, sendo que uma delas, justamente a de maior divulgação, foi na realidade um quiproquó, um falso debate, no qual somente um dos dois lados divulgou a sua versão e estereotipou o (pseudo-) opositor: a querela entre o determinismo alemão e o possibilismo francês. As outras duas foram de fato discussões entre oponentes que se reconheceram como tal, na qual cada um dos lados assumiu e defendeu o seu ponto de vista: a contenda de Mackinder versus Kropotkin a respeito do que é (ou deveria ser) a geografia; e o célebre debate entre os neopositivistas e os neokantianos sobre o “excepcionalismo” ou a especificidade da geografia enquanto saber científico: se ela está voltada, no essencial, para a construção de teorias gerais ou leis nomotéticas, ou, pelo contrário, se ela se ocupa no fundamental em realizar estudos monográficos, numa compreensão idiográfica sobre cada lugar ou região particular da superfície terrestre. Essas três querelas, como procuraremos demonstrar, não são águas passadas, isto é, problemas já resolvidos ou superados. Num certo sentido, os tópicos que elas abordam se entrecruzam e permanecem 55 José William Vesentini atuais; mais ainda, são temas fundamentais e que por diversas perspectivas continuam a fazer parte das grandes questões epistemológicas e políticas da geografia. A distinção entre determinismo e possibilismo, cabe recordar, foi iniciada a partir de um reproche francês à obra do iniciador – ou melhor, sistematizador – da geografia política moderna, Friedrich Ratzel. Essa distinção – ou melhor, essa construção teórica – avançou a partir do advento e da expansão da geopolítica e das suas pretensas vinculações com a geografia política ratzeliana. O escrito do geógrafo alemão que provocou essa reação francesa foi o livro Politische Geographie, editado em 1897. Nesse trabalho, Ratzel, num certo sentido, redefiniu ou reestruturou o estudo geográfico da política. Mesmo não tendo sido pioneiro no uso do rótulo “geografia política”, Ratzel sistematizou uma certa leitura da política – que muito deve ao realismo de Maquiavel – na sua dimensão espacial ou territorial e, ao mesmo tempo, reformulou a maneira pela qual a ciência geográfica abordava o fenômeno político. Como observou com propriedade um geógrafo suíço, Ratzel propôs um estudo nomotético da geografia política3, algo bem diferente dos escritos monográficos e idiográficos de Vidal de La Blache e discípulos sobre as regiões francesas; e nessa empreitada ele procurou estabelecer nexos causais entre o poder político e o espaço, ou melhor, o território. Essa obra de Ratzel suscitou uma forte reação francesa, que pouco a pouco construiu um inimigo teórico, a “escola geográfica determinista germânica”, que teria em Ratzel o seu mentor. Tanto o sociólogo Émile Durkheim4 quanto o historiador-geógrafo Paul Vidal de la Blache5, entre 1898 e 1899 – isto é, imediatamente após a publicação do referido livro de Ratzel e também de uma tradução para o francês de uma espécie de resumo deste6 –, teceram ácidas críticas às 3 RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993, p. 12. DURKHEIM, Émile. Morphologie sociale. I. Les migrations humaines. In: L’Année sociologique, 1898-9, p. 550-58. 5 VIDAL DE LA BLACHE, Paul. La Géographie Politique d’après les écrits de M. Fr. Ratzel. In : Annales de géographie, ano VII, n.32, 1898, p. 97-111. 6 RATZEL, F. Le Sol, la Societé et l’État. In : L’Année Sociologique n.III, 1898, p. 1-14. Existe uma tradução para o português publicada na Revista do Departamento de Geografia n. 2, FFLCH4 56 Ensaios de geografia crítica ideias ratzelianas da vinculação necessária entre o “solo” (espaço físico, ou melhor, território) e o Estado, em especial a dependência deste em relação àquele e o crescimento estatal sendo identificado com a expansão territorial. Eles assinalaram um exagero e um dogmatismo nas vinculações lógicas operadas por Ratzel, enxergando nelas um determinismo estreito. Mas foi o historiador Lucien Febvre – um exaluno e amigo de Vidal –, na sua monumental obra La Terre et l’evolution humaine, editada em 1922, quem criou de forma mais acabada e sistematizada a ideia da existência de duas escolas geográficas alternativas, uma “determinista” e simbolizada por Ratzel, e a outra “possibilista” e capitaneada por La Blache. No ano da edição desse livro de Febvre os dois principais protagonistas dessa trama já tinham deixado o mundo dos vivos: Ratzel viveu de 1844 a 1904 e Vidal de La Blache de 1845 a 1918. Ratzel, portanto, nunca chegou a responder – talvez nem mesmo a ler – as críticas francesas a respeito de sua obra. Febvre, é bom esclarecer, tinha como escopo principal o relançamento das bases de uma “introdução geográfica à história” (este é o subtítulo do seu livro, algo que lembra muito a célebre introdução especial de Hegel7), numa perspectiva na qual a geografia – o espaço, a “terra” – seria uma espécie de précondição, embora simples e em geral, salvo raras exceções, sem grande importância, a partir das quais vão se desenrolar os processos históricos, estes, sim, ricos e complexos. Taxando a geografia humana como uma “ciência nova” [sic!] e “auxiliar da história”, Febvre elabora USP, 1988. Este sucinto texto de Ratzel é uma espécie de resumo da sua obra Politische Geographie, de 1897. Lógico que uma síntese empobrecida na medida em que inúmeros temas do livro – fronteiras, política territorial, grandes potências mundiais e outros – ficaram de fora. Como observou en passant Jean BERVEGIN (Déterminisme et Géographie. Les Presses de l'université Lavai, 1992, p. 4-5), parece que todas as citações de Durkheim e de Vidal coincidem com esta tradução, mesmo quando eles citam a edição original, em alemão, daquela obra seminal de Ratzel. 7 HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid, Alianza Editorial, 1982, especialmente o capítulo “La conexion de la natureza o los fundamentos geográficos de la historia universal”, pp.161-99. É interessante que Febvre em momento nenhum cita Hegel, apesar dos inúmeros pontos de contato entre a sua obra e a do filósofo alemão. Será que isso se deveu a uma certa ojeriza pela tradição germânica, em especial a que engrandece o Estado, ou pelo fato de Hegel desprezar os historiadores e a sua história, preferindo uma filosofia da História com H maiúsculo, algo transcendental e teleológico? 57 José William Vesentini o seu trabalho com vistas a equacionar ou estabelecer três desígnios: prescrever a geografia como uma disciplina modesta (e subordinada à história); defendê-la das então recentes críticas de vários sociólogos franceses (especialmente Durkheim e o grupo ao seu redor, cuja grande expressão era o periódico L’Année sociologique), que encaravam a geografia humana como “imperialista” por invadir o campo de estudos da sociologia e pretender explicar tudo pelas condições geográficas8; e, por fim, retomar a antiga discussão – que pode ser encontrada em inúmeros pensadores clássicos, desde Hipócrates até Hegel, passando por Montesquieu – a respeito da influência das condições geográficas (especialmente o clima) sobre a história da humanidade. Neste último item, Febvre assume uma postura ambiciosa, semelhante à de Hegel, com a diferença que este valorizava a filosofia (só o filósofo capta a lógica da História, apenas ele poderia teorizar com propriedade; o historiador seria exclusivamente um cronista que relata os fatos); logicamente que Febvre enaltece a história e os historiadores (eles é que poderiam teorizar de forma científica sobre as relações entre os processos histórico-sociais e o meio ambiente; o geógrafo seria tão somente um descrevedor de paisagens, um auxiliar que realiza estudos monográficos sem nenhuma pretensão de teorizar ou “invadir o terreno da história”). Frente a isso, fica evidente a preferência de Febvre pelo tipo de geografia humana praticada por Vidal – os estudos monográficos, nos quais há pouca ou quase nenhuma teorização de natureza geral –, assim como a sua clara aversão pela tentativa ratzeliana de construir teorias e “leis” gerais a respeito das inter-relações entre o Estado, a sociedade e o espaço geográfico. A propósito do primeiro, Febvre reproduziu com concordância a seguinte afirmativa: “Vidal de La Blache disse que a defesa contra o espírito de generalização prematura é realizar estudos analíticos, monografias nas quais as relações entre as condições geográficas e os fatos sociais sejam considerados in loco, em um 8 Entre os sociólogos mencionados por Febvre que criticaram veementemente a geografia humana – e não apenas a de Ratzel, o alvo principal, mas também obras de Jean Brunhes, Camille Vallaux, Albert Demangeon e outros –, encontram-se principalmente F. Simiand, M. Mauss e M. Halbwachs, além do próprio Durkheim. Cf. FEBVRE, L. La Tierra y la evolución humana. Introducción geográfica a la historia. Barcelona, Editorial Cervantes, 1925, p. 25-35. 58 Ensaios de geografia crítica campo bem escolhido e delimitado”9. Mas, em relação ao geógrafo alemão, ele é impiedoso: “Ratzel, dominado pelo seu parti pris de antropogeógrafo e por suas preocupações de origem mais política do que científica, que em certos momentos fazem a sua mais recente e menos fecunda obra, Politische Geographie, parecer uma espécie de manual do imperialismo alemão”10. E no último capítulo do livro ele esclarece que: Que não nos pergunte, pois, por que contraditoriamente defendemos a geografia humana contra as críticas da morfologia social [a sociologia de Durkheim e discípulos], ou, mais exatamente, reivindicamos para ela o direito de uma existência livre e independente [...] e agora dedicamos todo um esforço na sua crítica. Nossas críticas se dirigem não contra a geografia humana em geral e, sim, contra uma concepção viciada e pueril de seu papel e de seus meios. [...] Nunca cansaremos de repetir que a geografia não tem por objeto investigar as ‘influências’ da Natureza sobre o Homem, como se diz, ou do Solo sobre a História. Essas palavras com maiúsculas não tem nada a ver com um estudo sério. E ‘influência’ não é uma palavra científica e, sim, astrológica. Que ela fique, pois, de uma vez para sempre, com os astrólogos e outros charlatães11. O contexto histórico da época é imprescindível para explicamos o surgimento, a expansão e a popularização dessa construção teórica. Em primeiro lugar, cabe lembrar da secular rivalidade franco-alemã (ou prussiana) no crepúsculo do século XIX, com a derrota francesa em 1871, fato ainda dolorosamente nítido na consciência de Vidal e de Durkheim, que o vivenciaram. Em segundo lugar, a Primeira Guerra Mundial, que mais uma vez colocou a França e a Alemanha em lados opostos. E, em seguida, a ascensão do nazismo e a criação e notável difusão da “geopolítica alemã” dos anos 1920, 1930 e 1940, em especial ao redor da Zeitschrift fur Geopolitik (Revista de Geopolítica), 9 FEBVRE, L. Op.Cit., p. 489. Idem, p. 57. 11 Idem, p. 477-79. 10 59 José William Vesentini editada pelo general Karl Haushofer, que contou com a colaboração de inúmeros geógrafos (embora também historiadores, cientistas políticos, militares, juristas etc), os quais, por diversas vezes e de diferentes maneiras, reproduziram ou se apropriaram de determinadas ideias ratzelianas, forneceram mais lenha para a fogueira das críticas à escola determinista germânica e a sua natureza “mais político-ideológica do que científica”. O clima de rivalidade, de disputa de poder entre França e Alemanha, além do fato de que os colaboradores daquele periódico frequentemente repercutiam as ideias nazistas de uma “raça ariana superior” e do “destino manifesto” da Alemanha em se tornar uma grande potência mundial, foram elementos determinantes no desenrolar dessa construção segundo a qual existiria uma escola geográfica determinista e que ela teria gerado a geopolítica de Haushofer e seus colaboradores. Até mesmo um importante geógrafo alemão da época, Leo Waibel, que fugiu de seu país devido ao regime nazista e se exilou nos Estados Unidos (embora tenha vivido alguns anos no Brasil), no afã de desancar aquela geopolítica germânica bastante identificada com o totalitarismo, acabou meio apressadamente rotulando-a como um “produto da escola geográfica determinista” e bastante diferente de outra abordagem geográfica mais aberta e liberal, que a seu ver não seria tanto simbolizada por Vidal de La Blache e, sim, pelo seu mestre Alfred Hettner12. A partir daí, e em especial com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, essa identificação do determinismo com a geopolítica e desta última com os regimes totalitários acabou por predominar durante algumas décadas, sendo repetida, embora com algumas nuanças, por importantes geógrafos como Jean Gottman, Camille Vallaux, Pierre George e inúmeros outros autores, inclusive não geógrafos (historiadores, cientistas políticos, sociólogos), tanto na França como em outros países – principalmente latinos –, como o Brasil, a Espanha, o México, a Argentina etc. 12 WAIBEL, L. Determinismo geográfico e geopolítica. In: Boletim Geográfico. Rio de Janeiro, IBGE, 1961, n.164, p. 613-7. 60 Ensaios de geografia crítica Sem dúvida que aquela geopolítica alemã dos anos 1920, 1930 e 1940, de uma maneira geral, foi racista e dogmática, além de manifestar uma clara simpatia pelo nazi-facismo. E também é inegável que podemos encontrar facilmente nas obras de Ratzel, notadamente naquele mencionado livro de 1897 e também na obra anterior Antropogeografia, uma série de afirmações que exageram a importância do tamanho do território para o poderio de um Estadonação, as quais, mesmo tendo um fundo de verdade, inflam demais o peso do espaço físico para o advento e o desenvolvimento da civilização e, em particular, do Estado moderno, visto por Ratzel como o coroamento do processo civilizatório. Mas esse rótulo “determinismo” seria de fato apropriado para Ratzel e, mais ainda, para toda a tradição geográfica alemã do final do século XIX e da primeira metade do século XX? Afinal de contas, o que significa determinismo do ponto de vista epistemológico? Claude Raffestin reproduz e concorda com a afirmativa de René Thom, que prefaciou a célebre obra de Laplace – Ensaio filosófico sobre a probabilidade –, segundo a qual “A ciência é determinista” na medida em que busca uma ordem, uma regularidade, um encadeamento entre os fenômenos, uma forma mesmo que complexa de causalidade, sem a qual o conhecimento científico não seria possível13. Quando lemos algum físico teórico importante – Einstein, Max Plank, Hawding ou até mesmo Heisemberg – logo constatamos que eles aceitam tranquilamente o que denominam “princípio do determinismo”, segundo o qual as coisas e os fenômenos são encadeados ou se influenciam mutuamente, que existem causas – mesmo que por vezes probabilísticas – e efeitos, razões e consequências. É evidente que o determinismo absoluto de Laplace, segundo o qual seria possível conhecer tudo, inclusive o passado e o futuro, desde que se dispusesse de todas as informações pertinentes, de toda a rede das forças e das causas que agem no universo, é algo no mínimo duvidoso. Mas o princípio do determinismo ou causalidade continua a ser aceito pelas ciências naturais e, em grande parte, apesar de certas nuanças, até 13 RAFFESTIN, C. “Préface”. In: BERGEVIN, J. Déterminisme et Géographie. Les Presses de l'université Lavai, 1992, p. I-XII. 61 José William Vesentini mesmo pelas ciências humanas. Nas ciências naturais ele foi abalado pelas relações de incerteza que existem na microfísica, ou o princípio da indeterminação de Heisemberg, mas continua a ser uma espécie de norte ou axioma básico14. Nas ciências humanas e sociais esse princípio determinista sempre foi amenizado pela questão do livre arbítrio humano, da natureza original dos seres humanos, que podem criar coisas novas e decidir entre alternativas possíveis sem se submeterem a leis férreas e inquebrantáveis. Mas amenizado não quer dizer anulado e, mesmo no estudo do social-histórico, existe a preocupação com a busca das “determinações” de um acontecimento ou de um processo, ou seja, aquele conjunto de fatores que o originaram e/ou que o explicam. Dessa forma, a discussão mais pertinente aqui não é sobre o “princípio da determinação” em si, pois sem ele a ciência, tal como a conhecemos hoje e desde Galileu Galilei, não seria possível, mas, sim, sobre o caráter ou a substância dessas determinações ou relações causais. Alguns cientistas e filósofos – os chamados “realistas” – pensam que elas seriam inerentes ao real, ao mundo, às coisas e fenômenos. Outros – os “idealistas” –, afirmam que, no final das contas, elas, essas determinações, seriam um produto da nossa lógica ou da nossa linguagem, mas que, mesmo assim, seriam imprescindíveis para se conhecer e agir no mundo15. O que se criticou muito em Ratzel – e também, ou principalmente, em autores que se proclamavam como seus discípulos, como a geógrafa norte-americana Ellen Semple – foi um determinismo exagerado e estreito, que não buscava explicações complexas e, sim, uma causa única e unilateral, que via apenas a importância do meio físico para a sociedade e não valorizava a criação humana em si, a tecnologia e a (re)produção da natureza. Mas a critica a esse determinismo estreito – ou visão unilateral, como preferimos – considerou toda a busca de determinações espaciais como equivocada, algo absurdo e sem sentido 14 Cf. HAWDING, S. W. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro, Rocco, 1988, p. 87. Cabe ainda lembrar a famosa frase de Einstein: “Deus não joga dados”, pela qual o eminente físico reafirmava a validade do determinismo, mesmo com a introdução do princípio de indeterminação na física quântica. 15 Cf. BERVEGIN, op. cit., p. 15, que reproduz sobre isso uma frase de Ludwig Wittgenstein: “O mundo é constituído de fatos no espaço lógico”. 62 Ensaios de geografia crítica do ponto de vista científico. E a contraposição a isso, o chamado possibilismo, pouco acrescentou a uma antiga discussão filosófica e científica sobre a originalidade do ser humano, sobre o livre arbítrio e a sua liberdade de criar e fazer coisas novas. Desde no mínimo Maquiavel, o criador ou sistematizador da concepção moderna de política (e da relativa autonomia do político em relação ao divino, aos fenômenos físicos, à economia etc), por sinal um autor importante para a obra de Ratzel, que essa questão a respeito do que o ser humano cria e o que determina a sua ação já vinha avançando bastante. “Julgo feliz aquele que sabe combinar as suas ações com o sentido [ou ‘as determinações’] do seu tempo”, afirmou Maquiavel em O Príncipe, acrescentando ainda que, em parte, os acontecimentos (políticos) decorrem de circunstâncias externas e, em parte, do livre arbítrio do(s) sujeito(s) que age(m)16. Ora, seria justamente esta a questão que permitiria a Vidal de La Blache ou a Lucien Febvre se contraporem ao raciocínio causalístico unívoco que detectaram em Ratzel, complexizando as “causas” ou motivos das ações ou dos processos políticos – tal como a “evolução dos Estados”, um dos temas prediletos de Ratzel – e incluindo aí o livre arbítrio dos seres humanos, a tensão entre a lógica (as determinações) e a política ou o acaso (as indeterminações, a produção do novo). Mas, ao invés de trilhar esse caminho – algo que exigiria um maior esforço intelectual, além de uma aceitação parcial da abordagem ratzeliana –, eles preferiram a cômoda atitude de rotular o geógrafo germânico como “determinista”, ignorando a importância do princípio do determinismo para a ciência moderna, e contrapor a isso uma inopiosa perspectiva “possibilista”. Tão somente repetir que as condições geográficas oferecem “possibilidades”, e que o Homem as aproveita desta ou daquela maneira, não produz nenhum avanço no conhecimento científico e tampouco nessa clássica problemática filosófica sobre o maior ou menor peso das determinações (que não são apenas naturais, diga-se de passagem) frente à indeterminação ou o livre arbítrio do ser humano. 16 MAQUIAVEL. O Príncipe. São Paulo, Abril Cultural, 1979, col. Os Pensadores, p. 103. 63 José William Vesentini Um geógrafo inglês, numa obra recente, chegou a afirmar que: “A crítica exarcebada ao ‘determinismo geográfico’ obnubilou ou obscureceu a análise das influências do ambiente sobre o social”17. E um professor de história econômica na Universidade de Harvard, que nos anos 1990 publicou um importante livro sobre as causas da riqueza e da pobreza das nações, comentou que a geografia produziu um escasso material sobre as possíveis influências da localização, do meio físico etc, no desenvolvimento de determinados países (Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha) em contraponto ao pouco desenvolvimento de outros (as nações africanas, por exemplo), provavelmente devido à forte (auto) repressão que sofreu (ou se impôs) a partir dos exageros “deterministas” de autores como Ellen Semple, que por sinal também foi professora nessa mesma universidade norte-americana, que depois dela – ou devido a ela – fechou o seu curso de geografia18. Enfim, acreditamos que essa oposição entre uma geografia determinista e outra possibilista é e sempre foi algo sem sentido do ponto de vista epistemológico (embora, como já vimos, tenha tido um forte sentido para os seus protagonistas sob o aspecto da ideologia nacionalista e até mesmo da defesa de interesses corporativistas), que mais atrapalhou do que ajudou no desenvolvimento da ciência geográfica. Mas a problemática real que perpassa toda essa querela – aquela do livre arbítrio humano versus as determinações ou o contexto (ambiental e social) – ainda continua de pé; ela prossegue sem ter incorporado grandes avanços. Num certo sentido, ela retornou ou reapareceu naquela controvérsia ocorrida nos Estados Unidos nos anos 1950, na qual Fred Shaefer se opôs a Richard Hartshorne e a grande questão em debate era sobre que forma de conhecimento a geografia é, se idiográfica ou nomotética. Esse debate entre Shaefer e outros contra Hartshorne passou para a história da geografia como a questão do “excepcionalismo”, numa clara demonstração de que os vencedores deixam a sua marca ou o seu rótulo na memória coletiva. Essa qualificação, na verdade, foi uma forma de simplificar e estereotipar o pensamento de Hartshorne, o grande nome 17 18 UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 262. LANDES, P. Riqueza e a pobreza das nações. Rio de janeiro, Editora Campus, 1998, p. 1-16. 64 Ensaios de geografia crítica da geografia norte-americana desde o final dos anos 1930 até inícios da década de 1960, o qual nessa querela foi identificado com o status quo, como um conservador que não admitia a renovação quantitativa e cientificista na sua disciplina. Só que a questão é mais complexa e, no fundo, ela envolve duas aporias: a natureza da geografia como ciência (se idiográfica ou nomotética) e a utilidade da geografia, a possibilidade de se construir um saber geográfico essencialmente pragmático e preditivo. Fred Shaefer iniciou essa controvérsia com o seu famoso artigo no qual cognominou de “excepcionalismo” a abordagem corológica na geografia, então defendida entre outros por Hartshorne (mas que, num certo sentido, também era a de Vidal de La Blache e, sem dúvida alguma, a de Hettner), pela qual o objetivo desta ciência seria não o de estabelecer leis gerais e, sim, conhecer casos (regiões, lugares) particulares. Retomemos um importante trecho desse autor: O pai do excepcionalismo é Immanuel Kant. Mesmo sendo considerado como um dos grandes filósofos do século XVIII, Kant foi um geógrafo medíocre quando comparado aos seus contemporâneos ou mesmo a Bernardo Varenius, que morreu mais de um século e meio antes dele. Kant produziu a sua asserção excepcionalista não somente para a geografia, mas também para a história. Segundo ele, a história e a geografia encontram-se numa posição excepcional, diferente das chamadas ciências sistemáticas [...] Ritter usou essas ideias, assim como Hettner e finalmente Hartshorne. [...] O que os cientistas fazem é [...] aplicar em cada situação concreta todas as leis que envolvem as variáveis que eles consideram como relevantes. As regras pelas quais essas leis são combinadas, o que é livremente chamado interações das variáveis, estão elas mesmas entre as regularidades que a ciência tenta descobrir. Não há nenhum desafio, como imagina Hartshorne, para o cientista social produzir uma lei singular que poderia explicar a complexidade da situação do porto de Nova Iorque. Uma descrição dessa situação é única no óbvio senso que nunca haverá uma região ou localidade exatamente como Nova Iorque com 65 José William Vesentini todos os serviços que fornece para o seu entorno. Nunca haverá uma lei para um caso assim. Pois, que importância teria uma lei que levasse em conta somente um caso? Mas, por outro lado, a geografia urbana atualmente conhece alguns princípios sistemáticos, os quais, aplicados ao porto de Nova Iorque, podem explicar, não tudo mas alguma coisa, sobre a estrutura e as funções dessa realidade. Esse é o ponto. Ou devemos desistir de explicar porque nós não podemos explicar todas as coisas? Nesse ponto a geografia encontra-se na mesma situação das outras ciências sociais. Ou devemos rejeitar a sociologia porque a predição sobre o resultado das eleições não é ainda tão confiável como alguns gostariam, ou porque não podemos assegurar com certeza se em cinco anos a Argentina terá uma ditadura ou uma democracia? [...] Qualquer um que rejeite o método científico em qualquer área da natureza, rejeita por princípio a possibilidade de predição. Em outras palavras, rejeita o que é normalmente conhecido como determinismo científico. A atitude intelectual por trás dessa atitude na maioria dos casos é alguma versão da doutrina metafísica do livre arbítrio. [...] Se determinismo é entendido como a existência generalizada de leis na natureza, sem nenhuma ‘exceção’, então essa é a base comum de toda a ciência moderna. [...] O que podemos inferir disso tudo sobre o futuro da geografia? Parece-me que, desde que os geógrafos cultivem os aspectos sistemáticos da sua disciplina, a geografia é uma ciência como outra qualquer. Todas as formas de leis que distinguimos contêm fatores espaciais. [...] [Mas] eu não sou otimista no caso da geografia rejeitar a busca de leis, exaltando os aspectos regionais e graças a isso limitar-se a uma mera descrição. Neste caso, os geógrafos sistemáticos deverão se encaminhar para e finalmente até se integrar nas ciências sistemáticas19. O que salta à vista nesse texto, no qual se critica uma tradição geográfica que vai de Kant até Hartshorne, passando por Hettner, Vidal 19 SHAEFER, F.K. “Exceptionalism in geography: a methodological examination”. In Annals of the Association of American Geographers, n.43, 1953, p. 226-49. Os grifos são nossos. 66 Ensaios de geografia crítica de La Blache, Leo Waibel e outros, é a defesa absoluta do princípio do determinismo “sem nenhuma exceção”, chegando-se ao absurdo de considerar o livre arbítrio humano como uma mera “doutrina metafísica”. Existe aí uma influência explícita de Karl Popper20, o qual, naquele momento (Popper sofisticou o seu ponto de vista mais tarde, após os debates com a Escola de Frankfurt nos anos 196021), encarava a física como o modelo por excelência a ser seguido por qualquer disciplina que almejasse o status de ciência. Cabe esclarecer que Popper pessoalmente não se envolveu nessa querela – e, provavelmente, nem tomou conhecimento dela. Acreditamos inclusive que ele teria certa afinidade teórica com o igualmente neokantiano Hartshorne. Mas a epistemologia popperiana, na sua leitura por Shaefer auxiliado por Bergmann, serviu como instrumento na luta contra as ideias de Hartshorne. Não existiriam diversidades no real e, portanto, tampouco nas ciências, nas quais deveria haver um “método” unitário, um paradigma único de busca de leis ou princípios lógico-matemáticos, de preferência construídos de forma dedutivista – a indução e a ênfase no empírico em si eram menosprezados. Admitia-se que a ciência nunca conheceria tudo ou a “essência” das coisas – tal como na imagem kantiana do navegante que se orienta pela estrela Polar sem nunca a alcançar –, mas acumularia gradativamente um rol de conhecimentos (ou melhor, de leis e teorias) que permitiriam uma previsão cada vez mais apurada dos fatos, advindo daí uma forte recusa em analisar os casos particulares ou únicos, que só teriam algum sentido se incorporados num esquema ou numa teoria classificatórios. As teorias ou “leis” nomotéticas, destarte, deveriam necessariamente desembocar numa forma de previsão e qualquer conhecimento que não atendesse a esse requisito seria não-científico22. 20 O autor submeteu o texto, antes da publicação, à leitura e sugestões do filósofo (e seu amigo) Gultav Bergmann, um discípulo (e ex-aluno) de Karl Popper. 21 Cf. ADORNO, T., POPPER, K. e Outros. La disputa del positivismo em la sociologia alemana. México, Ediciones Grijalbo, 1973. 22 “Há um critério para se determinar o caráter ou status científico de uma teoria? [...] Afirmo que o critério para se estabelecer o status científico de uma teoria é a sua refutabilidade ou a sua testabilidade. Uma teoria que não é testável não é científica. Toda ‘boa’ teoria científica implica numa proibição: proibição de que ocorram certas coisas.” (POPPER, K. El desarrollo del conocimiento cientifico. Buenos Aires, Paidos, 1967, p.43-7). 67 José William Vesentini Todavia, fica aqui uma dúvida: e se alguma região ou aspecto do real não atender a essa exigência, se em determinado campo do conhecimento não for possível construir leis dedutivistas ou tentar prever que tal fato poderá ou não ocorrer? A resposta a isso é simples: quanto um conhecimento, tal como a geografia tradicional, não corresponder a esse paradigma, não puder construir leis dedutivistas ou preditivas, então ele não é científico, tal como afirmou Shaefer. Por sinal, foi exatamente esse o “julgamento” que Popper fez em relação à psicanálise e a todo estudo do inconsciente humano, para mencionarmos apenas um exemplo23. Também se encontra nesse texto uma desvirtuação dos “oponentes”, começando por Kant e terminando com Hartshorne, sendo este o principal alvo das críticas. Ignora-se, provavelmente de forma deliberada, que esses autores jamais advogaram um “excepcionalismo” puro e simples (isto é, um caráter único, completamente diferente de todo o restante, como se esse restante – isto é, a ciência – fosse homogêneo) para a geografia ou a história, mas, sim, uma ênfase na complexidade e na diversidade do real e, portanto, das ciências. Basta recordarmos aqui um texto de Hartshorne, no qual ele afirma que mais útil do que inquirir “se a geografia é uma ciência” seria refletir sobre “que tipo de ciência é a geografia”, numa evidente percepção de que a realidade não é a mesma em todas as suas manifestações e, dessa forma, existiriam ciências (no plural) e não “a” ciência24. 23 POPPER, K. Op. Cit., p.44-6. “Podemos substituir a indagação ‘A geografia é uma ciência?’, pela pergunta muito mais útil: ‘Que espécie de ciência é a geografia?’ A geografia é um campo cuja matéria inclui a maior complexidade de fenômenos, e, ao mesmo tempo, preocupa-se, mais do que a maioria das demais ciências, com o estudo de casos individuais – dos inumeráveis lugares do mundo e do próprio caso ímpar do [nosso] mundo. Por essa razão, a geografia é menos capaz do que muitas outras ciências de elaborar e empregar leis científicas. Mas, não obstante isso, a exemplo de outros domínios científicos, ela preocupa-se em elaborar leis na medida do possível.” (HARTSHORNE, Richard. Questões sobre a natureza da geografia. Rio de Janeiro, IPGH, 1969, p. 228-9). Esta obra de Hartshorne, originalmente publicada em 1959, foi uma resposta a determinadas críticas – principalmente as de Shaefer e seguidores – feitas ao seu monumental trabalho de 1939, The Nature of Geography. 24 68 Ensaios de geografia crítica O que na realidade Kant asseverou, por sinal de forma bastante razoável, foi que existem diversas formas de conhecimento, do artístico ao filosófico, do científico (que pode ser mais ou menos nomotético ou idiográfico, e nunca exclusivamente uma coisa ou outra) ao senso comum, etc, e eles não são estanques ou sequer hierarquizados. Nem Kant e tampouco Hartshorne afiançaram que a geografia seria uma saber totalmente idiográfico; eles apenas admitiram que a realidade estudada pela geografia, e principalmente pela história, tem muito de particular ou de irrepetível (não recorrente) e, dessa forma, cabe utilizar, embora não de maneira única ou exclusiva, uma abordagem idiográfica. Mas existe no texto de Schaefer uma aversão pela monografia, por qualquer estudo aprofundado sobre uma realidade específica nas suas determinações (e indeterminações) particulares: isso é visto como uma mera “descrição” (e não uma explicação), numa total desvalorização não apenas da geografia regional, mas também da biologia, embora de forma inconsciente na medida em que o seu inspirador, Popper, pelo menos até aquele momento, nunca havia estudado seriamente outras ciências naturais além da física e em particular as teorias de Einstein. De maneira até mesmo hilária, no final do seu afamado texto, Shaefer ameaça abandonar à sua própria sorte a geografia regional – ou a perspectiva geográfica que “exalta os aspectos regionais” –, caso ela não mude radicalmente, e se juntar de vez ao time dos cientistas sistemáticos (ele pensava em especial na economia, vista pelos neopositivistas como a ciência social mais próxima do seu arquétipo de cientificidade). Uma questão essencial nesse debate é sobre a existência de uma ciência no singular – com um “método” universal – ou de diversas ciências no plural. Ou, sob um outro ponto de vista complementar, sobre a existência de uma só realidade, com “leis” universais e invariáveis, ou realidades que possuem especificidades com lógicas relativamente diferentes. Na sua resposta ao texto de Schaefer, Hartshorne colocou muito bem o problema: O fato de a geografia constituir um dos campos do conhecimento em que uma soma relativamente grande de esforços é empregada no estudo de casos individuais, e 69 José William Vesentini não na tentativa de elaborar leis científicas, tem preocupado os críticos, em nosso meio, há mais de meio século [...] Não há dúvida que todos nós podemos concordar com Hettner, que a ciência não há de permitir que o conceito do livre arbítrio a impeça de procurar determinar as causas das ações humanas ao máximo de sua capacidade como ciência [...] [Todavia] afirmar que a ciência refutou a possibilidade de um certo grau de livre arbítrio, ou que se pode esperar que ela venha refutar essa possibilidade, seria pretender saber o que não podemos conhecer. [Muitos] aferram-se ao determinismo científico como um artigo de fé filosófica que deve ser defendido na qualidade de alicerce do qual depende a estrutura da ciência. Qualquer sugestão de dúvida, a menor presunção de que existe a possibilidade do livre arbítrio, deveria, por conseguinte, ser atacada com veemência e escárnio como sendo anticientífica [...] A nossa conclusão é a seguinte: quer pelo fato de que um certo grau de livre arbítrio é uma realidade, quer pela circunstância de que jamais poderemos conhecer de maneira completa os fatores e processos que determinam as decisões humanas individuais, sempre há de permanecer uma área oculta em qualquer estudo no campo das ciências sociais, que não poderá ser explicado por leis científicas. Em resumo, como afirma Allix, ‘o único determinismo verdadeiro é o estatístico’. Mas em muitos aspectos da ciência importa conhecer determinados casos individuais. As mais fidedignas estatísticas de mortalidade não serão capazes de dar uma resposta à secular pergunta de quem indaga: ‘quanto tempo de vida eu ainda terei?’[...] Asseverar, como fazem alguns, que a formulação de leis científicas constitui o propósito final da ciência, é confundir os meios com o fim. O propósito da ciência é compreender o universo ou a realidade, com o maior grau de fidedignidade possível. Embora os cientistas do século XIX confiantemente esperassem que todo o conhecimento da realidade seria em breve organizado segundo leis gerais, nenhum domínio logrou reduzir todos os seus resultados a esses termos, e não podemos hoje prever que isso jamais seja possível [...] A geografia busca descrever 70 Ensaios de geografia crítica e classificar fenômenos, estabelecer, sempre que possível, princípios lógicos ou leis gerais, alcançar o máximo de compreensão sobre as inter-relações entre esses fenômenos e organizar esses resultados em sistemas ordenados25. Apesar da visão, a nosso ver, limitada que Hartshorne tinha da geografia – como uma ciência corológica, que estuda as diferentes áreas ou regiões da superfície terrestre (perspectiva que também encerra um elemento de verdade, embora não dê conta de toda a produção geográfica passada, presente ou em devir) –, temos que concordar com ele que a função primordial da ciência não é estabelecer “leis” gerais e, sim, conhecer a realidade. Determinadas “leis” ou princípios lógicos até podem ter – e têm efetivamente – o seu lugar, dependendo da realidade estudada. Mas elas são instrumentos do conhecimento, em contextos nos quais isso é possível, e não o seu objetivo primordial. A realidade ou o “mundo” no sentido geral, enfim tudo o que existe e/ou que pode ser conhecido, é complexo e multifacetado e nada nos garante que um método adequado para uma área do conhecimento também o seja para outra diferente. Um dos principais dogmas do positivismo, em todas as suas vertentes (inclusive em determinados meios “dialéticos” ou marxistas), é a crença de que existe um único método válido para todos os aspectos da realidade, para todo o conhecimento científico. A ciência atual caminha numa direção oposta a essa, numa aceitação da pluralidade – de métodos e de procedimentos, de formas de conhecimento ou de explicações – do real, conforme atesta um importante filósofo: Se o método, no sentido profundo do termo, pudesse ser unificado por toda a parte, a diversidade de regiões [do real, do conhecimento] se reduziria a uma diversidade simplesmente aparente [...] Uma tal unificação mais ou menos direta dos métodos parece fora de questão hoje, talvez para sempre. Não é nem mesmo possível considerá- 25 HARTSHORNE, op. cit., p. 222-6. 71 José William Vesentini la dentro do domínio antropológico [isto é, nas ciências humanas]26. Nessa mesma perspectiva, um conhecido especialista em filosofia da ciência argumentou que existem ciências, no plural, e não apenas uma ciência27. No entanto, a despeito da flagrante debilidade do ponto de vista de Schaefer e demais neopositivistas, que no fundo advogavam uma geografia pragmática e voltada para o planejamento (não podemos esquecer que vivíamos então na época áurea do capitalismo keynesiano), o fato é que esse viés tornou-se vencedor naquele momento e logrou uma profunda repercussão no desenrolar da geografia, em especial na anglo-saxônica. A partir daí a abordagem regional na geografia sofreu um enorme declínio, da mesma forma que as tentativas de integrar o natural com o social. A geografia norteamericana, dos anos 1960 em diante, procurou imitar o exemplo das ciências sociais e, em especial, o da economia, tornando-se numa espécie de prima pobre da “economia espacial”. O discurso sobre o espaço como categoria abstrata substituiu as análises dos fenômenos na sua dimensão espacial. Mencionando um exemplo bastante significativo, David Harvey, provavelmente o nome mais conhecido da escola geográfica anglosaxônica desde os anos 1970, mesmo tendo nas suas palavras operado um deslocamento de uma abordagem “liberal” até uma “marxista”28, nunca deixou de lado uma percepção de ciência com uma forte influência do artigo de Schaefer. A sua concepção de pesquisa, inclusive após ter optado pelo marxismo, continua sendo a de aplicar “o” método científico, no singular (só que agora usando menos a matemática, como uma linguagem unificadora, e mais o materialismo histórico, com a mesma função), sem nunca aprofundar as determinações concretas de qualquer situação específica – isto é, sem nunca encarar um processo, um lugar ou uma obra (um edifício, por 26 27 28 CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto/1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 214. GRANGER. G. G. A ciência e as ciências. São Paulo, Editora da Unesp, 1994. HARVEY. D. A justiça social e a cidade. São Paulo, Hucitec, 1980, p. 7. 72 Ensaios de geografia crítica exemplo) em sua singularidade mesmo que contextualizada – e sempre tentando elaborar “leis” ou conceitos gerais que dêem conta de tudo num mesmo esquema. O seu entendimento, expresso numa obra clássica de 1969, com ligeiras alterações, continua a nortear a sua produção em temas como a justiça social ou a condição pós-moderna: Os geógrafos tiveram grandes dificuldades para libertar-se dessa forma particular de explicação [o método idiográfico] [...] A tese kantiana supõe também que o espaço pode ser examinado, e os conceitos espaciais desenvolvidos, independentemente do seu conteúdo. O que é lamentável é que essa afirmação de um espaço absoluto não tenha sido explicitamente discutida e reconhecida como uma das proposições básicas da tese kantiana [...] Podemos concluir que a geografia é escassa em teorias e muito rica em fatos. Podemos afirmar que as leis [científicas] podem ser estabelecidas tanto na geografia física quanto na humana [...] O complicado e multivariado sistema que os geógrafos tentam analisar (sem as vantagens do método experimental) é difícil de manejar. A teoria, em última instância, requer o uso da linguagem matemática, pois somente se pode manejar a complexidade de interações de forma consistente usando semelhante linguagem. A análise dos dados requer um computador rápido e métodos estatísticos adequados, e a verificação das hipóteses também requer métodos. A incapacidade dos geógrafos em desenvolver teorias reflete em parte um lento crescimento dos métodos matemáticos apropriados para tratar os problemas geográficos. Os deterministas realizaram toscos intentos de explicação sistemática, porém nos anos 1920 caíram em desgraça29. 29 HARVEY, D. Explanation in Geography. Londres, Edward Arnold, 1969, p. 64-8. Também RAFFESTIN (Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993, p.23-4) vai por um caminho semelhante, afirmando que o grande problema de Ratzel na sua tentativa de superar a abordagem idiográfica e estabeler “leis” era a fragilidade dos métodos estatísticos da sua época. 73 José William Vesentini Percebe-se nessa fala uma recusa em distinguir a realidade natural da social e uma total desconsideração pela questão do livre arbítrio do ser humano, além do fato – muito estranho para quem apregoa estar considerando não mais o “espaço absoluto” de Newton e de Kant, mas, sim, o “espaço relativo” de Einstein – de ignorar completamente a problemática da indeterminação de certos processos (inclusive físicos, tal como enuncia o “princípio da indeterminação” de Heisenberg30, que mesmo a contragosto Einstein referendou). Até mesmo nos seus trabalhos mais recentes, por sinal de excelente qualidade, prevalece um esquematismo lógico-formal que denega as contradições inerentes e as indeterminações do(s) objeto(s) estudado(s), nos quais a “justiça social” é subsumida a uma problemática de “produção e distribuição” (ignorando assim as contradições históricas e, principalmente, as lutas sociais que determinam a sua realidade específica em tal ou qual contexto), e a “dualidade” entre modernidade e condição pós-moderna é vista como reflexos da produção fordista (estandardizada, baseada na economia de escala, etc.) e da produção flexível (economia de escopo, descentralização e diversidade, etc.)31. Enfim, a tentativa de superação da abordagem idiográfica, a exorcização do original ou do singular32, resultou, em grande medida, 30 “Na mecânica quântica as relações de incerteza impõem um limite máximo definido na precisão com que posição e momento linear, ou tempo e energia, podem ser medidos simultaneamente. Como uma separação infinitesimalmente estreita significa uma imprecisão infinita com respeito às posições no espaço-tempo, os momentos lineares ou as energias ficam completamente indeterminados.” (HEISENBERG, op. cit., p. 123). 31 Cf. HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992. Nessa importante obra, talvez o livro (acadêmico) de geografia com maior difusão internacional nos últimos 20 anos, o autor consegue discorrer sobre temas variados – a renovação urbana de Baltimore, a problemática da habitação popular em Los Angeles, o prédio da IBM em Nova Iorque ou o filme Blade Runner – sem nunca mencionar os seus contextos específicos, as contradições e os grupos ou projetos alternativos que se entrecruzaram etc., mas apenas catalogando-os como “modernos” ou “pós-modernos”. Também não existe nenhum mapa, nenhuma localização no espaço concreto desses fenômenos estudados, mas tão somente considerações abstratas sobre “o significado de espaço e tempo” neste ou naquele filme, na pós-modernidade, etc. 32 Não desconhecemos que William BUNGE (Perspectivas de la geografía teorica, in: MENDOZA, J.G., JIMÉNEZ, J.M. e CANTERO, N.O. El pensamiento geográfico. Madrid, Alianza, 1982, pp.521-30), seguindo a trilha de Schaefer, estabeleceu uma esdrúxula diferenciação entre o único ou original e o singular, sendo que este último, a ser levado em consideração pela ciência geográfica, seria tão somente um caso específico e sempre enquadrável numa 74 Ensaios de geografia crítica numa análise depauperada, que generaliza em demasia e – malgrado a sua prolixidade – perde completamente as especificidades de cada situação ou processo. Convém esclarecer que não se está, aqui, defendendo os méritos da “abordagem idiográfica” contra os “nomotéticos” e muito menos assumindo aquele discutível e limitado ponto de vista – que veio de Kant, passou por Hettner e talvez tenha se encerrado com Hartshorne – segundo o qual a geografia estuda as “diferenciações de áreas” na superfície terrestre. O que se procura demonstrar é que a crítica – necessária – da geografia como um saber essencialmente idiográfico, no final das contas, foi superficial em demasia e perdeu algo importante no seu percurso. Ela não consistiu, afinal, numa verdadeira crítica – na qual deve existir uma superação com subsunção ou incorporação do que foi criticado como parte de uma síntese superior – e, sim, numa mera rejeição. Em função de um modismo – ou comodismo – epistemológico, denegou-se a contradição inerente ao social-histórico, a indeterminação do fenômeno social e político enquanto relação de forças, o papel do contingente ou do acaso e a relação problemática entre sujeito e objeto no estudo do social: Impossível falar da História no singular [...] Devemos nos interrogar sobre as formas da história: sobre a distinção entre uma história regida por um princípio de conservação ou de repetição e de uma história que por princípio abre lugar para o novo [...] O que é, pois interrogar? Em um sentido é fazer o enterro do seu saber. Em um outro sentido, aprender graças a esse enterro. Ou ainda: renunciar à ideia de que haveria nas coisas mesmas [...] um sentido inteiramente positivo ou uma determinação em si prometida ao conhecimento, como se isso que analisamos não se tivesse já formado sob o efeito de um deciframento de sentido, em resposta a um questionamento da história, da sociedade [...] como se o ‘objeto’ não devesse nada a teoria geral, ao passo que aquele primeiro seria algo desprezável pela ciência, um malentendido da geografia tradicional. Mas essa perspectiva nos parece facciosa e somente aceitável pelo pressuposto de que existiria um só tipo de conhecimento, o nomotético. 75 José William Vesentini nossa própria interrogação, o movimento do pensamento que nos faz ir até ele e às condições sociais e históricas nos quais se exerce33. Retomar esse debate, afinal, significa repensar a coexistência necessária, mesmo que problemática, entre as abordagens idiográfica e nomotética na geografia. Mais ainda, significa colocar a relação de complementaridade entre objeto e sujeito, a identificação e tensão, ao mesmo tempo, entre o investigador e a realidade a ser estudada: as inter-relações entre ambiente geográfico e o social-histórico, ou mais especificamente, pensando-se em Ratzel, a política na sua dimensão espacial. Enfim, deve-se examinar o fenômeno político, base do socialhistórico, como conflito e indeterminação, incorporando a questão da coexistência entre a necessidade (lógica ou determinação) e a contingência (abertura para o novo, singularidade ou originalidade). A nosso ver, esses são os elementos basilares a serem incorporados na análise geográfica, em especial a geográfico-política, mesmo sem deixar de lado a superação do idiográfico puro e simples e a necessidade de construir categorias, conceitos ou princípios lógicos, que devem ser abertos e provisórios e nunca sobrepostos de forma dedutiva a qualquer realidade estudada, que sempre encerra as suas determinações específicas. Cabe, ainda, recordar a dimensão política dessa controvérsia sobre o “excepcionalismo”. Tratava-se não apenas de definir o estatuto epistemológico da geografia como ciência, mas, fundamentalmente, qual seria a sua utilidade prática. Foi fácil estereotipar Hartshorne como conservador e adepto do tradicionalismo na geografia e na sociedade. Como se sabe, ele foi oficial do exército norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhou como estrategista no Pentágono, ajudou a redefinir os limites da Alemanha e de Berlim redivididas no pós-guerra e, durante a sua vida acadêmica e de pesquisas, elaborou vários trabalhos de geografia política ou geopolítica (este rótulo, evidentemente, não era usado) a respeito de fronteiras, territórios e o papel estratégico dos Estados Unidos no mundo. Ademais, como 33 LEFORT, C. As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 15-7. 76 Ensaios de geografia crítica assinalaram vários de seus críticos34, ele era anticomunista e defensor radical do sistema político e do way of life europeu-ocidental e principalmente norte-americano. Schaefer, por outro lado, era simpatizante do partido comunista (ele próprio afirmava, e vários outros repetiram, que a CIA o vigiava ou perseguia, uma informação nunca comprovada) e infelizmente morreu jovem, antes mesmo da publicação do célebre artigo (por sinal, a sua única contribuição conhecida para a geografia), fatos que provavelmente tiveram um grande peso na forte identificação, no clima de simpatia que se criou entre a sua figura e os então jovens geógrafos norte-americanos ou britânicos “rebeldes”, que propugnavam uma completa renovação na tradição geográfica. Contudo, paradoxalmente, o jovem geógrafo marxista e socialista fazia uso das ideias do neopositivista Popper como seus alicerces teóricos, propugnando um modelo da física (ou mais modestamente da economia keynesiana) como o ideal para a renovação geográfica, para a construção de uma geografia preditiva que fosse útil nos planejamentos (urbanístico, regional, territorial enfim). Esse entendimento shaeferiano, vitorioso no transcorrer das circunstâncias – afinal, ele foi uma espécie de bandeira ou ícone para a chamada “revolução quantitativa” dos anos 1960 e 1970 –, produziu, no final das contas, uma ciência geográfica pragmática, voltada para a preparação de “técnicos” e completamente apartada do ensino, da educação, atividade que desde meados do século XIX sempre tinha sido a sua principal raison d’être. Os cientistas sociais, a partir daí, tomaram conta do ensino das humanidades – história, geografia e sociologia – no sistema escolar norte-americano, tendo ocorrido uma multiplicação de cursos superiores de ciências sociais e, de maneira complementar, uma retração dos cursos de geografia, com fechamentos de vários departamentos e cursos nas universidades35. 34 Cf. BUNGE, op. cit., onde há várias referências à “conhecida ideologia anticomunista de Hartshorne”, por sinal um ex-professor de Bunge. 35 É evidente que essas mudanças no sistema escolar norte-americano não se explicam apenas, nem principalmente, pela vitória da perspectiva neopositivista na geografia. Elas também envolveram a disciplina história e têm outras determinações, que neste texto não iremos explicitar. Em todo o caso, até inícios dos anos 1990, eram os departamentos universitários de ciências sociais, e nunca os de geografia ou de história, que preparavam os professores de história, sociologia e geografia, disciplinas que eram lecionadas juntas nos 77 José William Vesentini Foram as circunstâncias, afinal – em especial o avançar do fordismo e do seu modelo de escola técnica ou profissionalizante, dos planejamentos que envolviam a reorganização do espaço e, provavelmente, até mesmo a aspiração de grande parte dos novos geógrafos em exercer atividades com melhor remuneração e maior status social (pelo menos na época) que a de professor nas escolas fundamentais e médias –, e não a maior ou menor veracidade ou fundamentação das ideias deste ou daquele oponente, que decidiram a perspectiva vitoriosa nessa contenda. Mas não deixa de ser irônico o fato de que o lado tido como de “esquerda”, ou supostamente rebelde frente ao status quo, era antipluralista (pois admitia apenas um único método científico e, mais ainda, aceitava tão somente o modelo dedutivista e preditivista de ciência) e acabou por gerar um instrumento extremamente útil, pelo menos naquele momento, para o sistema capitalista no seu centro principal, para a multiplicação dos planejamentos típicos da economia keynesiana ou intervencionista da época, que ocorreram especialmente nos Estados Unidos. Em contraposição, o lado tido como conservador e direitista era defensor da democracia e do pluralismo e, mesmo não recusando uma função pragmática para a geografia, enfatizava o seu caráter humanístico. Sinal dos tempos. Relendo os textos daquela controvérsia nos dias de hoje, após a crise do marxismo e a derrocada do socialismo real, após uma revalorização da democracia (que não é mais vista como burguesa) e principalmente do pluralismo, temos a impressão de que os sinais foram invertidos. Em todo o caso, não é esta a nossa preocupação fundamental aqui e agora. Ademais, essa controvérsia sobre a função social da geografia já havia sido iniciada anteriormente, num outro contexto, no Reino Unido do final do século XIX. ensinos fundamental e médio. Para se ter uma ideia dessas mudanças, principalmente com a retomada da formação dos professores pelos cursos de geografia nos anos 1990, quando a abordagem neopositivista está em crise (além de ter ocorrido uma revalorização da escola e do ensino da geografia a partir da globalização e da terceira revolução industrial), com a reabertura de alguns departamentos em universidade, veja-se o importante relato de HARDWICK, S.W. e HOLTGRIEVE, D.G. Geography for Educators. Standards, themes and concepts. New Jersey, Prentice Hall, 1996. 78 Ensaios de geografia crítica O debate entre Mackinder e Kropotkin ocorreu nas seções da então poderosíssima Royal Geographical Society (RGS) de Londres, na penúltima década do século XIX. Ambos proferiram falas, em seções dessa sociedade, a respeito do que é e do que deveria ser a geografia, e, posteriormente, as publicaram em revistas especializadas36. Existe aí uma discórdia, ou uma sensível diferença de perspectiva, que prossegue talvez até com maior intensidade nos dias atuais: se a geografia deve ser útil para o sistema, para o “comércio” como dizia Mackinder (isto é, os interesses imperialistas britânicos da época), ou se ela deve servir basicamente aos ideais humanísticos de combate aos preconceitos, de crítica ao imperialismo, às injustiças e desigualdades, tal como advogava Kropotkin. Este último abriu o debate com os seus comentários sobre “o que a geografia deve ser”, que na realidade constituíam uma proposta de reforma profunda na educação geográfica, no ensino da geografia. Levando em conta aquele período de colonização européia e particularmente britânica na Ásia e na África, e o fato que a RGS congregava não apenas geógrafos, mas principalmente uma boa parte da elite econômica e social da época interessada nos negócios do ultramar (negociantes, industriais, membros da família real, diplomatas), kropotkin proferiu a seguinte fala: Assistimos hoje o despertar de um interesse pela geografia que lembra o que ocorreu com a geração anterior, durante a primeira metade no nosso século [...] Não se deve estranhar, portanto, que os livros de viagens e os de descrição geográfica em geral estejam se tornando no tipo mais popular de leitura. Era também natural que esse renascimento do interesse pela geografia dirigisse a atenção do público sobre a escola. Foram realizados inquéritos e descobriu-se, com estupor, que conseguimos fazer com que esta ciência – a mais atrativa e sugestiva para pessoas de todas as idades – resultou nas escolas num 36 KROPOTKIN, P. “What Geography Ought to Be”. In: The Nineteenth Century, XXI, 1885, pp.238-258; e MACKINDER, H.J. “On the scope and methods of Geography”. In: Proceedings of the Royal Geographical Society, n.9, 1887, p. 141-60. 79 José William Vesentini dos assuntos mais áridos e carentes de significado [...] A discussão recentemente iniciada pela [Real] Sociedade Geográfica, o Informe antes mencionado pela sua Comissão Específica na sua exposição, foram em geral acolhidos com simpatia por parte da imprensa. Nosso século mercantilizado parece ter entendido melhor a necessidade de uma reforma quando se colocou em evidência os chamados interesses ‘práticos’ da colonização e da guerra. [A geografia escolar] pode constituir um poderoso instrumento tanto para o desenvolvimento geral do pensamento como para familiarizar o estudante com o verdadeiro método de raciocínio científico [...] A geografia deve cumprir também um serviço muito mais importante. Deve nos ensinar, desde a mais tenra infância, que todos somos irmãos, qualquer que seja a nossa nacionalidade. Nestes tempos de guerras, de ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades entre as nações, habilmente alimentados por gente que persegue seus próprios e egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em que a escola deve fazer alguma coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio para anular esses ódios ou estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar que cada nacionalidade contribui com sua própria e indispensável pedra para o desenvolvimento geral da humanidade, e que somente pequenas frações de cada nação estão interessadas em manter os ódios e rivalidades nacionais. [...] Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes que todos os homens são irmãos, quaisquer que sejam as suas nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as chamadas ‘raças inferiores’. Desde que se admita isso, a reforma da educação geográfica é imensa: consiste nada menos que na completa renovação da totalidade do sistema de ensino de nossas escolas37. 37 KROPOTKIN, op. cit., p. 240-3. 80 Ensaios de geografia crítica Sem dúvida que essa proposta de Kropotkin era inaceitável para o status quo britânico, mais interessado não tanto no ensino e , sim, na geografia enquanto conhecimento e mapeamento dos territórios – com os seus recursos naturais e os seus povos, potenciais trabalhadores e/ou mercado consumidor – a serem colonizados. Além disso, a sua concepção de irmandade de toda a humanidade, a sua defesa das chamadas “raças inferiores” (um conceito frequente na época, mas que Kropotkin usava com reticências), era algo que se chocava contra a principal justificativa do colonialismo: a civilização dessas “raças” ou povos bárbaros, a missão civilizatória européia (isto é, o “fardo do homem branco”), que deveria levar o progresso e a verdadeira cultura até essas sociedades arcaicas, as quais, no fundo, se dizia estarem sendo beneficiadas pelo domínio colonial. Kropotkin é irônico a esse respeito: Quando um político francês proclamava recentemente que a missão dos europeus é civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e as matanças [genocídios] – não fazia mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos fatos que os europeus estão praticando diariamente. E não poderia ser de outra maneira, pois desde a mais tenra infância inculca-se o desprezo pelos “selvagens”, ensina-se a considerar determinados hábitos e costumes dos “pagãos”como se fossem verdadeiros crimes, a tratar as “raças inferiores”, como são chamadas, como se fossem um verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado enquanto o dinheiro ainda não penetrou. Até agora os europeus têm ‘civilizado os selvagens’ com whisky, tabaco e sequestros; os têm inoculado com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é chegado o momento em que nos devemos considerar obrigados a oferecer-lhes algo melhor – isto é, o conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna, a forma de utilizar o conhecimento científico para construir um mundo melhor38. Kropotkin, como se percebe, era um entusiasta da ciência moderna, tanto que pensava que ela seria a melhor dádiva que o europeu poderia 38 KROPOTKIN, op. cit., p. 244. 81 José William Vesentini fornecer aos africanos ou asiáticos em geral. Neste ponto, aliás, ele não diferia muito da imensa maioria dos grandes pensadores do século XIX, tais como, dentre outros, Humboldt, Darwin, Marx ou Comte. Só que Kropotkin, ao contrário destes, inclusive os considerados de “esquerda” ou extremamente críticos frente ao sistema, como por exemplo Karl Marx, não aceitava a ideia de que o colonialismo europeu na África e na Ásia seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o desenvolvimento das forças produtivas, do capitalismo e, consequentemente, do posterior socialismo – nessas regiões do globo39. Kropotkin viveu exilado em Londres durante cerca de 30 anos, pois havia fugido de um presídio na Rússia; na RGS, ele provavelmente era apenas tolerado, ou talvez visto com um misto de benevolência e curiosidade: afinal ele era originário de uma aristocrática família russa – a Casa Real de Rurik, que governara a Rússia antes dos Romanov –, além de ter sido secretário da Imperial Sociedade Geográfica Russa antes de sua prisão por incentivar e participar de revoltas camponesas. O fato de ser um utopista, paradoxalmente, deve até ter contribuído para com essa complacência, pois boa parte da elite econômica e social também gosta de divagar sobre um mundo perfeito, sobre as lamentáveis injustiças e desigualdades, principalmente quando a temática é abstrata e não representa uma ameaça concreta aos seus interesses materiais. Mas criticar o colonialismo, a “missão civilizatória européia”, e propor aquele tipo de reforma no ensino – voltada para combater os preconceitos, inclusive aqueles baseados na ideologia nacionalista, enfatizar a cooperação e a irmandade entre todos os povos e “raças” – também já era demais. Não era esse o caminho que a maior parte dos membros dessa Sociedade Geográfica desejava, muito embora fosse desagradável ou pouco refinado contestar esse ideário diretamente, ou seja, sustentar a ideia de “raças superiores” e a necessidade de brutalidade e matanças para “civilizar os povos 39 Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: MARX, K. e ENGELS, F. Sobre o colonialismo. Vol.I, Lisboa, Estampa, 1974, p. 47-8 e 103-4. Esse autor, neste e em outros textos onde analisa o colonialismo britânico ou a tomada de terras “dos preguiçosos mexicanos” pelos norte-americanos, chega a menosprezar as matanças e a brutalidade com o argumento de que isso tudo seria secundário, seria tão somente o preço a pagar para se acelerar o “sentido da História”. 82 Ensaios de geografia crítica bárbaros”. Aqui entra a compreensão de Mackinder, que, segundo a leitura de Short40, representou uma alternativa – que se tornou vitoriosa – frente às propostas geográficas de Kropotkin. Mackinder, ao contrário de Kropotkin, não era um adepto do ensino universal, acessível a todos e igual para as diferentes classes sociais. Ele via a educação geográfica como algo indispensável para as “classes educadas”, para a elite; mas, por outro lado, ela seria dispensável e até contraproducente para o treinamento da “classe proletária apenas meio educada”41. No final da sua mencionada fala na Real Sociedade Geográfica, ele conclui: Acredito que com estas propostas que esbocei [isto é, a concepção de geografia que ele havia apresentado], podese elaborar uma geografia que satisfaça tanto as demandas práticas do homem de Estado e do comerciante como as demandas teóricas do historiador e do cientista, além das demandas do professor. Sua amplitude e complexidade inerentes devem ser invocadas como o seu mérito principal [...] Para o homem prático, tanto para se obter uma posição no Estado como para acumular uma fortuna, ela pode constituir uma fonte insubstituível de informações; para o estudante, uma base estimuladora [...]; para o professor ela pode constituir um instrumento para o desenvolvimento dos poderes do intelecto, exceto sem dúvida para esta velha classe de mestres que medem o valor disciplinar de um tema pela repugnância que ele inspira nos alunos. Tudo isso, afirmamos, em função da unidade do tema [união do aspecto teórico com o prático na geografia]. A alternativa seria dividir o científico e o prático. E resultado dessa divisão seria a ruína de ambos42. Apesar de a concepção de Sir Mackinder ter logrado uma indiscutível vitória no transcorrer dos acontecimentos – ele se tornou, pouco a 40 SHORT, John R. New world, new geographies. New York, Syracuse University Press, 1988, p. 97-8. 41 Apud SHORT, op. cit., p. 97. 42 MACKINDER, op. cit., p. 160. 83 José William Vesentini pouco, no grande nome da geografia britânica no final do século XIX e inícios do XX –, não se pode esquecer, como observou com propriedade Kearns43, que existia um clima de diálogo e cordialidade entre os dois protagonistas, que inúmeras vezes participaram juntos de reuniões ou de comissões de estudos da RGS. Além disso, entre os membros da RGS existia uma divisão – ou uma dúvida – quanto a apoiar ou não o imperialismo (Mackinder era um defensor fervoroso do império britânico; e Kropotkin um crítico de qualquer forma de dominação internacional), sendo que essa sociedade geográfica tinha fama de liberal devido a uma série de atitudes ousadas para a época, tais como, por exemplo, solicitar insistentemente ao governo britânico para que pressionasse a França com vistas à libertação do geógrafoanarquista Elisée Reclus, preso por ser uma das lideranças da Comuna de Paris de 1871; e quando de sua soltura, a RGS o convidou para proferir em Londres uma série de palestras sobre o valor do ensino da geografia44. Mackinder e Kropotkin concordavam, embora cada um à sua maneira, num ponto que é fundamental para se entender os seus pontos de vista: que a teoria da evolução de Darwin deveria suscitar um profundo impacto na geografia45. Algo perfeitamente normal para a época, pois Darwin foi tido como o grande “modelo” de cientista no século XIX (após algumas décadas nas quais brilhou a figura de Humboldt, por sinal a grande fonte de inspiração para o naturalista britânico), assim como Newton o havia sido para o século XVIII. O próprio Marx, como se sabe, apregoava com vanglória que a sua obra representaria, para o domínio do social, o mesmo que a de Darwin para o domínio da natureza. Mas Kropotkin e Mackinder tinham leituras bem diferentes a respeito da teoria da evolução, que naquele momento era identificada com Darwin, sem dúvida, mas também com Lamarck e Huxley, autores frequentemente mencionados (às vezes com concordância, às vezes 43 KEARNS, Gerry. “The political pivot of geography”. In: The Geographical Journal, vol.170, n.4, December 2004, p. 340. 44 Idem, p. 339. 45 Idem, p. 341. 84 Ensaios de geografia crítica com reproches) pelos dois geógrafos. Mackinder enfatizava a luta pela sobrevivência, a competição entre as espécies e os indivíduos. Kropotkin, por outro lado, valorizava muito mais a ajuda mútua, o cooperativismo entre espécies e indivíduos. É evidente que o “reino animal” era visto mais como uma espécie de metáfora, ou melhor, fonte de inspiração ou de “legitimação” do social. O que cada autor visava, no final das contas, era o entendimento da ordem do mundo, do espaço geográfico mundial, com vistas a pensar não apenas o presente, mas principalmente o futuro. Mackinder, como um pensador político realista, entendia a ordem internacional como uma espécie de “lei da selva”, na qual o poderio militar e as guerras seriam não apenas inevitáveis, como até mesmo uma condição indispensável para a existência de um sistema internacional com o exercício da hegemonia por uma grande potência mundial. A sua leitura direcionava-se para a manutenção e o fortalecimento do império britânico e acabou lhe conduzindo às teorias da heartland e da world island, enfim às condições geográficas que permitiriam a hegemonia no espaço mundial. Kropotkin, em contrapartida, sendo um utopista e, portanto, idealista, apesar de reconhecer a importância histórica das lutas e das guerras, advogava que a cooperação e a ajuda mútua – entre os indivíduos, os povos, as nações, as culturas – seria um vetor tão ou mais importante que o conflito. Seu objetivo não era o de pensar as determinações espaciais para o exercício da hegemonia mundial por parte de um Estado, mas, sim, as condições para a paz permanente com a cooperação entre todos os povos e nações. Dessa forma, Mackinder entendia a evolução – tanto natural como histórica – como o resultado de conflitos, de lutas e guerras, principalmente entre os Estados, o sujeito que privilegiava. Já Kropotkin encarava a evolução – também natural e histórica – como uma progressiva cooperação ou ajuda mútua entre os sujeitos, mas não tanto o Estado, instituição que exorcizava, mas, sim, os indivíduos, classes, povos e culturas46. Não há qualquer dúvida que, grosso modo, a 46 MACKINDER. H.J. “The geographical pivot of history”. In: The Geographical Journal, London, 1904, n.23, pp.421-37; e KROPOTKIN, P. Mutual Aid, a factor of evolution. London, Freedom Press, 1902. 85 José William Vesentini história deu razão a Mackinder, pois os acontecimentos subsequentes – as duas guerras mundiais, a perda de hegemonia mundial por parte do império britânico e a notável ascensão dos nacionalismos, que atropelaram até mesmo a chamada “luta de classes” – estiveram muito mais próximos do seu ponto de vista. Embora não totalmente, pois sabemos que, em parte, os esquemas mackinderianos foram desmentidos pelos fatos47. Mesmo que estes, como sói acontecer, tenham adequado-se muito mais à visão realista que com a perspectiva utópica. Mas isso não significa que as ideias kropotkinianas tiveram pouca ou nenhuma valia. O geógrafo russo representou uma alternativa idealista, algo do tipo “um outro mundo é possível”, pelo menos em tese, só que ele se encontra bastante distante da realidade com as suas determinações essenciais. As suas ideias, entretanto, de início solitárias, se expandiram enormemente no transcorrer do século XX com a crescente consciência de que o colonialismo é inaceitável, que a democracia e os direitos humanos são valores universais, que não existem “raças superiores e inferiores”, que o ensino deve ser universal e acessível a todos, além de não admitir qualquer diferenciação de qualidade da educação de acordo com a classe social dos indivíduos. Pensando agora no significado conjunto de todas as três polêmicas analisadas, acreditamos que sejam pertinentes as seguintes interrogações. Elas produziram algum avanço – seja epistemológico, seja político ou mesmo gnosiológico – na ciência geográfica? Essas temáticas estão já superadas ou continuam vivas? Se elas continuam vivas, sob que formas se manifestam atualmente e qual é a sua importância? A nosso ver, as principais questões que perpassaram essas três controvérsias são: as inter-relações entre o social e o seu meio ambiente; a natureza idiográfica ou nomotética da geografia; e o papel social desta disciplina, o para que ela serve ou deveria servir. Não há a menor dúvida de que estas questões continuam vivas e atuais. Em variadas e diferentes circunstâncias, sob diversas formas ou roupagens, elas continuam sendo frequentemente retomadas ou rediscutidas. Elas 47 Cf. ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília, Editora da UNB, 1986, pp. 264-71. 86 Ensaios de geografia crítica ainda fazem parte dos grandes dilemas epistemológicos e/ou políticos da ciência geográfica, sendo, ao mesmo tempo, heranças do passado e desafios para o futuro. Examinemos, sucintamente, a velha polêmica sobre as relações ou influências recíprocas entre o social e o natural. A rigor, é melhor se falar não tanto em natural e, sim, em ambiental ou mais propriamente em espacial. Quando Ratzel se referia à importância do “solo” para o Estado, ele não apontava somente para os aspectos naturais do território, tal como entenderam os seus críticos. O próprio conceito de território, assim como a sua conquista e/ou formação – como Ratzel sabia muito bem –, já é uma realidade histórico-social e nunca uma obra da natureza. O geógrafo germânico, ao realçar a importância do “solo” ou do território como uma pré-condição básica para a existência do Estado, não se referia tanto à natureza original – o clima, o relevo, as riquezas minerais, a disponibilidade de água ou a fertilidade natural dos solos –, mas, principalmente, aos elementos que são – e, reiteramos, ele tinha pleno conhecimento disso – eminentemente históricos: a localização (não apenas absoluta e, sim, relativa), o formato, o tamanho e as fronteiras do território. Tudo isso sem se esquecer do poderio econômico (Ratzel enfatizava principalmente o “comercial”) e militar. Ora, esses mencionados elementos somente são inteligíveis ou plenamente dimensionáveis se analisados de uma forma relacional, o que significa dizer que eles só têm algum significado em termos de poder quanto contrapostos a esses mesmos elementos nos demais Estados, algo que varia muito de acordo com o lugar e o momento, com a tecnologia disponível – principalmente para as relações comerciais e a guerra, pensando-se, como Ratzel o fazia, em termos de relações de força –, como partes, afinal, de um contexto histórico e espacial bem maior, internacional ou até mesmo planetário. Vejamos um exemplo. Num trecho do seu livro onde examina as “potências mundiais”, Ratzel esclarece: Depende do espaço dado em cada época para se saber o quanto os Estados devem crescer a fim de se tornarem “potências mundiais”, ou seja, terem como associados todo o mundo conhecido e nele exercerem a sua influência [...] 87 José William Vesentini Uma potência assim grande e assim extensa no sentido de estar diretamente presente em todos os países e em todos os mares, atualmente, só pode ser o império britânico. Uma imensa massa territorial como a da Rússia por si só não faz uma potência mundial, algo que necessitaria também de uma extensão suplementar sobre o Atlântico e sobre o Pacífico, pois que somente os oceanos lhe abririam a rota e lhe permitiriam estender o seu poder sobre os Estados do hemisfério ocidental e do hemisfério austral. Daí portanto que a Rússia somente poderá ser uma potência mundial na medida em que abrir uma rota até o oceano Índico, o que lhe permitiria um contato direto até o Atlântico e sobre o Pacífico48. A questão, assim, é a importância ou o significado do espacial para o político (ou o social) e não a influência da “natureza”, algo difícil de ser identificado com precisão quando pensamos no território de um Estado, quando consideramos uma sociedade na sua dimensão espacial ou geográfica, pois praticamente todos os elementos que, com frequência, são tidos como naturais – a localização e os traços físicos do território: as riquezas minerais, as águas, as formas de relevo ou os solos –, em geral, são reapropriados ou, muitas vezes, reconstruídos pela ação humana e, no fundo, só têm algum sentido quando vistos de forma histórica e relacional. Mesmo se quisermos pensar apenas na “natureza em si”, o elemento fundamental, nos dias de hoje, para se entender o comportamento humano, pelo menos em parte, não seria mais o clima, tal como especulavam os teóricos do século XVIII e de grande parte do século XIX, mas, principalmente, a herança genética. Mas este já é um tema que pouco tem a ver com a pesquisa e a reflexão geográficas. É certo que Ratzel, em diversos momentos, exagerou a importância do tamanho do território – e também de certos traços naturais favoráveis (principalmente o clima e a localização absoluta) desse “solo” – para o poderio estatal. Mas acreditamos que isso é absolutamente natural em qualquer autor, de qualquer área do saber, que procura construir ou desenvolver um objeto – no caso de Ratzel, a importância da geografia 48 RATZEL, F. Géographie Politique. Paris, Editions Régionales Européennes, 1988, p. 279. 88 Ensaios de geografia crítica ou do espaço geográfico para a vida política. Normalmente, existe uma tendência de supervalorização do objeto que se estuda ou da perspectiva que se adota para analisar esse objeto. Não é exatamente isso que fazem praticamente todos os estudos biográficos? Não é isso que faz, hoje, a chamada sociobiologia? Não é isso que fazem os físicos teóricos e os astrônomos em geral, quando falam sobre tempo e espaço como se fossem tão somente realidades físicas do universo?49 Não foi exatamente isso que fez Freud quando tentou entender a guerra apenas pelo viés do milenar comportamento agressivo dos seres humanos? Esse exagero na importância do seu tema de estudos não é o que observamos, hoje, em alguns geneticistas, que afirmam que todo o comportamento dos indivíduos é pré-determinado pelo seu genoma? Qualquer reducionismo deve ser criticado – e a crítica, cabe insistir, é um dos instrumentos fundamentais para o avanço do conhecimento científico. Nenhum autor, nenhum cientista, seja do passado, do presente ou do futuro, está acima das críticas, isto é, possui uma obra absolutamente irreprochável. Mas criticar não significa desqualificar o oponente, tal como fez Lucien Febvre em relação a Ratzel. Significa contribuir para o avanço do saber, corrigindo determinados aspectos de um discurso, ajudando a lapidar uma determinada temática. A crítica científica em geral não invalida o trabalho criticado; ela mostra os seus limites, apontando fatos ou processos que ele não leva em consideração ou não consegue explicar. Dessa forma, se, por um lado, as generalizações ratzelianas foram em parte simplistas, exagerando a importância do “solo” para o Estado, por outro lado, ele teve a coragem de inaugurar – ou de se aventurar em – um campo do saber que é importante e que pouco avançou; que talvez tenha ficado relativamente estagnado exatamente porque os críticos em geral se limitaram a denegar essa tentativa, numa atitude proibitiva ou repressora, ao invés de procurarem expandir as pesquisas e as reflexões sobre a temática. Já mencionamos que o resultado disso foi catastrófico para a geografia, que se viu impossibilitada de – ou se recusou a – pensar inúmeros 49 Estamos pensando, aqui, nas observações de Husserl, Heidegger e de vários outros existencialistas ou fenomenológicos, segundo as quais o tempo e o espaço cotidianos do ser humano não são aqueles da física, seja ela newtoniana ou relativística. 89 José William Vesentini temas fundamentais para se entender a diversidade sócio-econômica no espaço mundial (ou às vezes até regional ou nacional). Quanto à natureza idiográfica ou nomotética da ciência geográfica, pensamos que é melhor abandonar a separação dicotômica entre esses dois tipos de saberes, como se eles fossem opostos e completamente diferentes entre si; ou como se apenas as “leis” ou teorias nomotéticas merecessem o adjetivo científico. Acreditamos que todo ou quase todo conhecimento científico – ou toda “região” ou aspecto do real, que a ciência busca compreender – possui elementos originais ou únicos e, ao mesmo tempo, a possibilidade de se construir “leis” ou teorias de validade universal. É lógico que, dependendo do campo de estudos, existe uma maior preeminência de uma dessas duas vertentes. Usando uma imagem gráfica, podemos visualizar uma linha, um continuum que vai da ciência mais nomotética até a mais idiográfica. Deixando-se de lado as lógicas e as matemáticas, isto é, as ciências formais, e pensando-se apenas nas ciências empíricas, ou melhor, que estudam o mundo empírico, teríamos próxima daquele primeiro pólo a física, considerada como a ciência que melhor simboliza o modelo de um saber nomotético. No pólo oposto ou do outro lado dessa linha – não exatamente no pólo e, sim, nas suas vizinhanças – teríamos a história, a ciência mais próxima do modelo idiográfico. Mas nem a física, nem a história estariam exatamente nos dois pólos, ou seja, nenhuma delas é totalmente nomotética e tampouco cem por cento idiográfica. Em posições intermediárias teríamos as demais ciências: apenas para mencionar alguns exemplos, a química estaria bem próxima da física, praticamente colada, a geologia e a biologia aproximadamente no meio dessa linha ou continuum; e a geografia um pouco além delas, mais para o lado da história, porém, um pouco mais distante que esta do pólo idiográfico. É um modelo simples e trivial, sem dúvida, mas que nos ajuda a compreender a complexidade e variedade das ciências que buscam perscrutar a realidade (ou realidades?) em todos os seus aspectos. Não há, portanto, nenhuma a necessidade de dogmas apriorísticos e imutáveis, tais como a ideia de um único “método científico”, seja ele positivo ou dialético, ou a crença na cientificidade como atributo tão 90 Ensaios de geografia crítica somente do saber nomotético. Se determinados aspectos do real são únicos e irrepetíveis (por exemplo: um acontecimento ou processo histórico, uma região geográfica, uma espécie biológica ou mesmo um indivíduo), por que não conhecê-los cientificamente? A bem da verdade existe, sim, a presença – e uma presença marcante, extremamente importante para a compreensão dos objetos de estudos – do único e irrepetível na geografia, principalmente (embora não só) na geografia regional e na humana, com especial destaque para a geografia política. Exemplificando: a conceituação e a classificação das fronteiras é algo necessário numa perspectiva científica e é um tema eminentemente geográfico-político. Mas nenhum conceito ou teoria vai dar conta das especificidades, da concretitude – no sentido de concreto como “síntese de múltiplas determinações” – de uma fronteira específica (por exemplo, entre o Brasil e a Argentina). Logo, o idiográfico (os casos particulares, únicos e irrepetíveis) e o nomotético (as leis ou teorias de validade geral) se complementam e, ao contrário da física ou da química, a geografia não pode deixar de lado a especificidade dos casos que estuda, pois se ficasse apenas nas fórmulas, nas classificações ou nas teorias gerais, produziria estudos medíocres que pouco explicariam sobre os objetos concretos com as suas determinações (o contexto espaço-temporal, em suma) e indeterminações (a criação ou produção do novo, a presença de um vivido específico ou original) particulares ou específicas. Não precisamos lembrar com detalhes o fracasso da geografia quantitativa (e, mais ainda, da história quantitativa), que nunca conseguiu produzir nada de novo do ponto de vista de explicações sobre realidade, sobre o espaço geográfico ou o tempo histórico. Os próprios expoentes dessa tradição na geografia – tais como David Harvey, William Bunge e vários outros –, já no final dos anos 1960 denunciavam esse fato e propunham um novo paradigma mais qualitativo e crítico. Isso não significa que se aboliu o uso da matemática, dos computadores e da estatística na geografia. Longe disso. Apenas que a realidade estudada pela geografia (ou, mais ainda, pela história) não se presta a fórmulas simples, tais como as da física, 91 José William Vesentini por exemplo (falamos aqui em simples e não em simplistas50, pois é fora de dúvida que elas funcionam muito bem na compreensão e até na previsão dos fenômenos físicos). Essa realidade geográfico-política, feliz ou infelizmente, sempre demanda explicações longas e complexas, e que nunca esgotam completamente o tema estudado. Como é amplamente conhecido, a geografia política é a modalidade da ciência geográfica mais próxima da história, é um dos flancos privilegiados onde elas se imbricam ou se sobrepõem parcialmente. Logo, a problemática do irrepetível, dos processos únicos e originais, da tensão entre necessidade (determinação) e contingência (indeterminação) é algo essencial na reflexão geográfico-política. Isso não quer dizer que ela seja uma forma de conhecimento essencialmente idiográfica, mas, sim, que esta abordagem também tem um lugar, mesmo sem desconsiderar a elaboração de teorias ou conceitos gerais. E não se deve confundir, como fizeram Schaefer e vários outros, o idiográfico com o descritivo, pois nem todo estudo de um caso único é descritivo e, em contrapartida, também pode existir a descrição do objeto estudado numa teoria nomotética. Sem dúvida que a geografia política anterior a Ratzel era idiográfica e descritiva, mas não é necessário que esses dois atributos coexistam; ademais, cabe lembrar que a descrição continua a desempenhar um papel importante em determinadas áreas do conhecimento científico, inclusive em algumas ciências naturais, hoje consideradas como paradigmáticas ou avançadas (em vários campos da biologia, por exemplo). A geografia política, assim sendo, deve levar em conta e refinar constantemente os conceitos nomotéticos: de fronteiras, território e territorialidade, poder ou poderes, Estado (e as suas diversas formas históricas e geográficas), cidade-capital, média ou grande potência mundial, ordem internacional etc. Só que nunca podemos ignorar o estudo específico, que nunca consiste somente na “aplicação” de 50 Lembramos aqui que “simples” não deve ser entendido como o oposto de “complexo”, como é usual no senso comum. Epistemologicamente, o contrário de complexo é simplista e o oposto de simples é complicado. Por sinal, inúmeras explicações complexas – como as teorias da relatividade, de Einstein – no fundo são extremamente claras e simples. Veja-se, a esse respeito, as observações de ARDOINO, Jacques, in MORIN, E. (Org.). A religação dos saberes. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, p. 548-58. 92 Ensaios de geografia crítica conceitos ou teorias gerais (apenas os trabalhos medíocres fazem isso), de tal Estado concreto na sua formação territorial, desta ou daquela fronteira ou cidade-capital, de tal ou qual ordem geopolítica internacional etc., com todas as suas determinações (e indeterminações) características. Enfim, esperamos ter deixado claro o nosso ponto de vista, no qual a geografia – em especial, a geografia política – é simultaneamente um saber nomotético e idiográfico (sem necessariamente ser descritivo) e onde os estudos de caso contribuem para enriquecer os conceitos que nunca são ou estão completamente acabados. Por fim, permanece a questão da finalidade prática da geografia, da sua utilidade para a sociedade. Que os conhecimentos geográficos têm serventia para o Estado, para a guerra, para organizar um território, para mapear e utilizar os recursos naturais (ou até controlar a população e as atividades econômicas), isso tudo é algo sabido e propalado desde, no mínimo, o grego Erastóstenes, que afinal foi quem engendrou a palavra geografia. Sabemos que o geógrafo romano Estrabão, que viveu no século I a.C., já detalhava a importância da geografia para um caçador, para um general, para um agricultor. Qualquer conhecimento sobre a realidade, no final das contas, é um instrumento de poder, isto é, pode servir para se agir sobre essa realidade. Mas o problema que surgiu nos debates entre Kropotkin e Mackinder, e que continua a ser reproduzido em inúmeros congressos ou encontros de geógrafos e em várias publicações51, é o para que e para quem serve ou deveriam servir os conhecimentos geográficos. Se eles servem apenas para o exercício do poder ou se também poderiam ser usados como contra-poder, se são úteis apenas para o Estado ou para o sistema, ou se, pelo contrário, são aproveitáveis para as rebeliões, para as classes populares no sentido de contribuírem para uma maior justiça social e menores desigualdades econômicas. 51 Basta lembrarmos da revista Antipode, cujo primeiro número tem um editorial que afirma que os geógrafos deveriam construir uma “geografia radical” para estudar e denunciar as injustiças e as desigualdades. Ou ainda de Yves Lacoste e a sua revista Hérodote, que afirmam que existem “outras geopolíticas” (além daquela do Estado, de Haushofer e Mackinder) e no fundo propõem a elaboração de uma “geopolítica dos dominados”. 93 José William Vesentini No fundamental, esta é uma questão – ou um dilema – que oscila entre a necessidade e a ética, ou, numa perspectiva individualista, é a tentativa de conciliar o imperativo de sobrevivência lato sensu numa sociedade específica com os princípios ou valores morais nos quais se acredita. Esta questão acompanha os intelectuais e os cientistas em geral – e não apenas os geógrafos – desde o advento do pensamento racional na antiguidade (as críticas de Platão aos sofistas já demonstram isso), ou talvez até antes disso. Provavelmente, o caso mais exemplar a esse respeito, pelo menos no século XX, tenha sido o dilema dos cientistas, especialmente físicos, com a construção da primeira bomba atômica no laboratório de Los Alamos, Novo México52. Eles se engajaram nessa dura tarefa porque acreditavam estar ajudando a derrotar o totalitarismo, mas, ao mesmo tempo, tinham consciência de que abriam uma caixa de Pandora, um poderoso instrumento de destruição de obras e vidas humanas. Um outro exemplo célebre é o do filósofo Martin Heidegger, que, ao contrário de inúmeros contemporâneos (como a sua discípula Hannah Arendt, o geógrafo Leo Waibel ou o mais famoso de todos os que abandonaram a Alemanha devido ao nazismo, Albert Einstein), ficou na Alemanha no transcorrer dos anos 1930, foi nomeado reitor da universidade de Freiburg e, de acordo com inúmeras evidências, teria aderido entusiasticamente ao regime nacional-socialista53. Este último exemplo é meridiano: o nazismo representa praticamente tudo o que há de antiético, de distorção dos princípios humanistas, democráticos e até mesmo religiosos. Fica fácil, dessa forma, condenar aqueles pensadores que trabalharam em prol desse regime e, em contrapartida, elogiar os que se recusaram a fazê-lo. Mas essa facilidade é apenas aparente, ela se aplica somente a determinados atos políticos do filósofo alemão e não às suas ideias, às suas contribuições teóricas, as quais, no final das contas, são tidas como a grande obra do existencialismo e da fenomenologia do século XX e, de forma explícita e incontestável, 52 A peça teatral O caso Oppenheimer, de Heinar Kipphaardt, evidencia muito bem as dúvidas e os dilemas dos cientistas participantes do Projeto Manhattan, de 1945, do qual resultou a primeira bomba atômica da história. 53 Cf. FARIAS, Victor. Heidegger e o nazismo. São Paulo, Paz e Terra, 1988. 94 Ensaios de geografia crítica influenciaram importantes autores liberais (como Hannah Arendt) e até mesmo radicais (como Jean-Paul Sartre). Qualquer teoria que, de fato, procure explicar (ou construir) algum objeto segundo os cânones científicos (algo que não tem nada a ver com um “método” único e excludente), qualquer pesquisa científica realizada de forma séria e honesta, sempre tem um valor que independe da opção ideológica do investigador. É por isso que os dois grandes nomes das ciências sociais da segunda metade do século XIX até meados do século XX foram Marx e Weber, dois personagens com opções éticas e ideologias bastante distintas54, mas que produziram importantes obras que já foram utilizadas – por autores com diferentes concepções – na economia, na sociologia, na ciência política, na história e mesmo na geografia. A própria Escola de Frankfurt, ou teoria crítica, que segundo alguns seria fundamental para alicerçar a geografia crítica55, fez amplo uso de ideias de Marx, de Weber, de Freud e até de Heidegger. Essa natureza perscrutadora das ideias científicas – que nada mais são que tentativas de explicar ou compreender algum aspecto do real – permite que elas sejam utilizadas de diferentes maneiras e por diversos sujeitos, independentemente de seus princípios éticos ou de seus posicionamentos políticos. É por isso que tanto Kropotkin quanto Mackinder, apesar de suas sensíveis diferenças no tocante a princípios e posicionamentos sobre o colonialismo europeu e as desigualdades sociais e internacionais, ou sobre o papel da geografia na sociedade, produziram ambos obras clássicas e de alta relevância científica. As ideias pedagógicas de Kropotkin parecem ter sido escritas hoje, tal a sua atualidade: quase que todas as reformas educacionais do final do século XX e desta primeira década do século XXI, normalmente com base num importante documento produzido sub o patrocínio da UNESCO56, 54 É amplamente conhecido o fato de que Weber concebia uma “ética da responsabilidade”, baseada principalmente em Maquiavel, ao passo que Marx convencionalmente é visto como um adepto da “ética da convicção” ou de “princípios”. Cf. WEBER, Max. A política como vocação. In: Ciência e Política, duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1998, p. 55-124. 55 UNWIN, op. cit., p. 262. 56 Cf. DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco/Cortez, 1996. 95 José William Vesentini reafirmam que o principal objetivo da atividade educativa é combater todas as formas de preconceitos ou estereótipos, aprendendo a conviver ou viver junto com os outros. Mas também Mackinder não é um “cachorro morto”; suas teorias geopolíticas, segundo alguns, ainda continuam válidas e imprescindíveis para uma boa compreensão do mundo pós-guerra fria57. Entretanto, a imensa maioria dos intelectuais e cientistas em geral, geógrafos incluídos, não produz teorias ou ideias novas, mas tão somente reproduz desta ou daquela forma as que existem. O problema da utilidade do conhecimento, neste caso, não se refere tanto à natureza das ideias ou das teorias científicas e, sim, às atividades que cada um exerce. A realidade cotidiana desses profissionais da ciência é prosaica, com opções bem menos evidentes que aquelas de Oppenheimer ou de Heidegger, que, no fundo, são casos extremos ou exemplos paradigmáticos. Quase ninguém dispõe de uma escolha tão cristalina como a de ajudar ou não a fabricação de uma bomba atômica, de trabalhar ou não em proveito do regime nazista ou então de poder optar por exercer a sua profissão de forma a estar, de forma inequívoca, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A quase totalidade dos intelectuais e cientistas – sejam filósofos, matemáticos, físicos, sociólogos, historiadores ou geógrafos –, a bem da verdade, possui limitadas opções de escolha sobre o que fazer, que tipo de atividade exercer levando-se em conta os seus princípios éticos. O que predomina é a necessidade material aliada às oportunidades, e estas dependem das circunstâncias. Existem diversas atividades comumente exercidas por esses profissionais: a educação elementar e média, a universidade, as consultorias, as pesquisas de opinião e de mercado, os planejamentos, as análises ambientais, eventualmente alguma assessoria para ONGs ou movimentos sociais etc. Mas ninguém pode asseverar, a priori, qual dessas atividades ou ramos de atuação seria melhor do ponto de vista dos princípios de não reproduzir o sistema e contribuir para minimizar as injustiças e as desigualdades sociais. Todos podem meramente reproduzir o status 57 Cf. MELLO, Leonel I. A. A geopolítica do poder terrestre revisitada. Lua Nova. São Paulo, Cedec, 1994, n.34, p. 55-69. 96 Ensaios de geografia crítica quo, como também podem contribuir para alterá-lo; e essa alteração tanto pode ser boa como ruim, tanto pode reduzir como ampliar as injustiças e desigualdades. Existe um juízo bastante popular segundo o qual o trabalho num movimento social ou numa ONG seria uma garantia do uso “politicamente correto” do conhecimento científico. A nosso ver, isso é um equívoco. Apesar de importantíssimas para a vida democrática, as ONGs, em geral, são norteadas pela promoção ou defesa de uma causa, que defendem com unhas e dentes (mesmo que pesquisas científicas mostrem sua inadequação ou inoperância; ou que pesquisas de opinião pública mostrem que são antidemocráticas). Isso sem falar que, nas últimas décadas, a criação de ONGs virou um bom negócio e uma boa parte delas está preocupada tão somente com a sua expansão a qualquer custo, com as verbas que pleiteiam junto aos governos ou às instituições internacionais, com as contribuições dos simpatizantes e, em geral, a sua principal atuação é na mídia, com vistas a se promoverem, a ficarem em evidência, o que lhes permite conseguir mais verbas ou mais contribuições voluntárias. Nesses termos, via de regra – malgrado existirem exceções –, elas apenas manipulam o conhecimento científico com vistas aos seus objetivos. Quanto aos movimentos sociais, apesar de, em média, serem indiscutivelmente mais sérios ou legítimos que as ONGs, também podem, eventualmente, batalhar por causas corporativistas que se chocam com os interesses maiores da sociedade; como também podem ser – algo, infelizmente, não muito raro no Brasil – instrumentalizados por lideranças que visam a interesses (ou valores) pessoais, com frequência espúrios, ora dogmáticos, ora meramente arrivistas (ou ambos). Ademais, nada garante que um intelectual que trabalhe numa ONG séria ou num movimento social legítimo (essas seriedade e legitimidade, é bom deixar claro, nunca são eternas ou constantes e sempre variam de acordo com as circunstâncias) vá de fato produzir algo de relevância ou de valor científico. Não é incomum que ele apenas reproduza, com outras palavras, com uma roupagem mais ou menos acadêmica, o discurso das lideranças – ou de certas lideranças –, nem sempre correspondendo aos anseios dos participantes comuns (e muito menos aos da sociedade em geral). Esse viés, normalmente, é resultado de um 97 José William Vesentini excesso de engajamento com uma correlata ausência de distanciamento crítico, ou melhor, uma forte e ingênua identificação desse empreendimento com determinados sonhos ou desejos pessoais, fato que gera uma recusa inconsciente de enxergar as suas tensões e contradições. É o deslumbramento estorvando o rigor da análise. Isso explica porque raramente encontramos uma produção científica de qualidade, a respeito de processos vistos como inovadores ou revolucionários, por parte de intelectuais que estavam neles engajados. Quase toda contribuição teórica importante de autores coetâneos a esses processos, que de fato compreenderam os seus diferentes aspectos e, muitas vezes, até anteciparam o seu devir, foi produzida por pessoas que estavam à margem deles, ou que, mesmo participando, lograram manter sua autonomia intelectual. Basta lembrar que as duas mais importantes análises coevas da revolução russa de 1917 não foram engendradas por simpatizantes que vivenciaram e participaram ativamente dos acontecimentos, mas, sim, por dois pensadores críticos e que não deixaram o redemoinho das paixões anular o seu discernimento: Kropotkin e Rosa Luxemburgo58. Ambos eram entusiastas defensores de uma futura sociedade socialista e igualitária, ambos viam com regozijo os sovietes ou movimentos espontâneos de camponeses, operários e soldados. Mas nenhum deles permitiu que seus desejos – tampouco a amizade com alguns protagonistas – obscurecessem a sua percepção e consciência crítica. Eles acertaram em cheio nas suas apreciações sobre o significado essencial dos acontecimentos, enxergando com clareza que, ao contrário do discurso de personagens mitificados (como Lênin ou Trotsky), a realidade nua e crua é que se iniciava em outubro de 1917 a implantação de um regime burocratizado e repressor das mais elementares liberdades democráticas, em suma, a emergência da primeira experiência totalitária do século XX. Fica a lição: nenhum tipo de atividade, por si só, garante o uso “politicamente correto” dos conhecimentos científicos e/ou 58 LUXEMBURG, R. A Revolução Russa. Lisboa, Ulmeiro, 1975 (original de 1918); e KROPOTKIN, P. “Cartas a Lênin (1920)”. In: ZEMLIAK, M. (Org.) Kropotkin – Obras. Barcelona: Editorial Anagrama, 1977, p. 270-294. 98 Ensaios de geografia crítica geográficos. Tudo depende do contexto e da forma específica de atuação. E o engajamento, por princípio algo louvável, não deve nunca obstaculizar o imprescindível distanciamento crítico, pois, sem ele, não há uma produção de conhecimento científico de qualidade a respeito do social-histórico. Esse debate ou desafio a respeito do por que e para que serve ou deveria servir a geografia, enfim, continua atual e não resolvido, porquanto não é um problema apenas teórico e, sim, práxico no sentido de ação humana com suas determinações e indeterminações. Ou seja, essa não é uma problemática que pode ser teorizada de uma forma nomotética ou universal. É uma questão que se repõe constantemente, ontem, hoje e sempre, embora com diferentes roupagens. Ela envolve circunstâncias, formas de luta e estratégias, além de princípios, que não são eternos e imutáveis, mas que, pelo contrário, conhecem nuanças ou, às vezes, se metamorfoseiam, na medida em que o discurso científico é uma forma de poder e as relações de poder são complexas, dinâmicas e instáveis, são relações sociais e históricas plenas de tensões e conflitos. 99 José William Vesentini 100 O que é crítica? Ou qual é a crítica da geografia crítica?* Geografia ou geografias críticas. A bibliografia da/sobre essa vertente geográfica já é bastante significativa. Entretanto, uma dúvida se impõe: o que é crítica? Em que sentido esse verbete vem sendo empregado na(s) geografia(s) crítica(s)? Qual é, afinal, o significado do adjetivo crítico, frequentemente utilizado, algumas vezes com diferentes sentidos, em várias áreas do conhecimento? (Basta lembrarmos das ideias de reflexão crítica, atitude crítica, teoria crítica, pensamento crítico, ensino crítico, pedagogia crítica, racionalismo crítico e inúmeras outras). Esta preocupação, longe de ser diletante ou superficial, é algo que se impõe fortemente com as mudanças na realidade social, em especial com a crise terminal do antigo mundo socialista e com a relativização das noções políticas de esquerda e direita, as quais, para muitos, não têm mais sentido na realidade atual. Como iremos esquadrinhar logo adiante, a noção de crítica (especialmente a de crítica social), a partir da Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX, viu-se associada à ideia política de uma esquerda, isto é, àqueles que propugnavam uma mudança radical na sociedade com vistas a uma maior igualdade e liberdade. Por isso, tornou-se muito comum a identificação das noções de crítica e de radical, algo que também iremos problematizar. * Texto elaborado em 2009 para a revista Geousp, São Paulo, Depto. de Geografia da FFLCHUSP, no prelo. 101 José William Vesentini Para início de conversa, a verdade é que ninguém mais sabe ao certo o que é esquerda e direita hoje. Isso por várias razões. Pelo fracasso de todas as experiências autodenominadas socialistas, fundamentadas bem ou mal no marxismo e tendo se apresentado como “críticas” ao capitalismo e alternativas “radicais” a ele. Pela crescente complexização da sociedade moderna, em especial com o declínio das lutas trabalhistas que tanto marcaram o século XIX e a primeira metade do XX, lutas essas sempre identificadas com a esquerda e com todas as vertentes libertárias ou socialistas. Pelo advento de novos sujeitos e frentes de lutas no plural – feministas, ecológicas, étnicas, de orientação sexual, de moradia, de imigrantes de regiões pobres em áreas mais desenvolvidas etc. –, por vezes até antagônicos. Pela expansão e o enorme poderio da mídia, a qual, juntamente com as pesquisas de opinião, faz com que praticamente todos os partidos políticos reformulem os seus discursos em função do que o público quer neste ou naquele momento, independentemente de sua posição ideológica (se é que isso ainda existe). Por tudo isso, reiteramos, as noções de esquerda e direita tornaram-se problemáticas para definir todo um espectro de posições políticas no mundo atual. Existe ainda uma perda de referências. A grande bandeira de luta da velha e heróica esquerda, aquela do século XIX e da primeira metade do século XX, a de uma sociedade utópica1 que garantisse concomitante o máximo de liberdade e de igualdade, foi completamente destroçada por inúmeros acontecimentos e estudos científicos: pela soturna realidade de todos os socialismos reais, em primeiro lugar, e também por pesquisas e reflexões lógico-matemáticas, tais como, por exemplo, aquelas do prêmio Nobel de economia Amartya Sen, nas quais se demonstra 1 Na verdade, estamos generalizando de forma proposital para evitar uma digressão sobre as controvérsias a respeito da utopia no pensamento crítico (que nunca foi nem é apenas marxista), no qual há autores que a exorcizam e outros que a assumem. Por exemplo: Marx e Engels, em primeiro lugar, além de grande parte dos marxistas do início do século XX (Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Kautsky e outros) nunca foram adeptos da utopia e, pelo contrário, desancaram os socialistas utópicos, acreditando firmemente que o socialismo não era uma ideia utópica e, sim, “científica”, um resultado de “leis” inexoráveis da História (assim mesmo, com H maiúsculo). A respeito da aversão do pensamento marxiano pela utopia remeto às análises de FAUSTO, Ruy: A esquerda difícil. São Paulo, Perspectiva, 2007, p. 31-50. Em todo o caso, não há dúvida de que, durante o transcorrer do século XX, o projeto socialista passou a ser visto como utópico e essa defasagem entre ciência e utopia se estreitou sensivelmente. 102 Ensaios de geografia crítica cabalmente que é impossível existir um máximo de igualdade sem sacrificar a liberdade e vice-versa2. Nesses termos, alguns autores que se consideram progressistas e apregoam um mundo melhor, com maior justiça – entendida como garantias para as liberdades democráticas, que não são algo eterno e acabado e, sim, partes de um processo de constante criação e reinvenção de direitos – e igualdade (embora nunca total), falam em ir “além da esquerda e da direita”3, enquanto alguns poucos outros despendem os maiores esforços no sentido de conservar, embora redefinindo, essas categorias políticas4. A manutenção desses rótulos – algo que no Brasil e na América Latina em geral é um esforço quase exclusivo da autodenominada “esquerda”, sendo que, nos Estados Unidos, ao inverso, é mais identificado com os conservadores – não deixa de pagar um elevado preço teórico. De fato, trata-se mais de um apego a uma identidade vista como “positiva” (esquerda na América Latina e direita nos Estados Unidos), que, no fundo, faz parte da autodefinição de certas pessoas e grupos, uma tentativa de se manter fiel a um certo passado (ou a determinadas tradições) e, no extremo – no caso de alguns partidos –, é algo que visa angariar simpatias e votos. Sem dúvida que existem teóricos sérios e bem-intencionados procurando manter esses rótulos políticos. Não estamos nos referindo a autores panfletários com visíveis insuficiências teóricas, que não conseguem ir além do marxismo-leninismo, do tipo Ignácio Rangel, Emir Sader, Robert Kurz e outros, que escrevem como se ainda vivêssemos no século XIX, se recusando a analisar seriamente – e aprender com – a experiência dos totalitarismos (nazismo e comunismo), que menosprezam as conquistas democráticas. Pensamos em teóricos do calibre de Norberto Bobbio e Ruy Fausto 5, dentre 2 SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro, Record, 2001. Cf. LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983; e GIDDENS, A. Para além da Esquerda e da Direita. São Paulo, Unesp, 1995. 4 BOBBIO, N. Esquerda e Direita. São Paulo, Editora Unesp, 1995; e FAUSTO, R. A esquerda difícil, op. cit. 5 Idem, idem. 3 103 José William Vesentini poucos outros. Bobbio, por exemplo, acredita que a esquerda, hoje, define-se fundamentalmente pela busca de uma maior igualdade social, enquanto a defesa da liberdade seria mais um atributo da direita. E Fausto pensa que uma esquerda nos dias atuais deve ser defensora intransigente da democracia – por sinal, Bobbio também advoga essa posição, embora identificando democracia com o liberalismo, algo que Fausto repudia – e ir além do marxismo (posição também defendida pelo liberal Bobbio), deixando de lado a ideia de uma “ditadura do proletariado” (ou de qualquer outro tipo de ditadura) e mesmo a de uma economia planificada sem a propriedade privada nos moldes genericamente apontados por Marx, recuperando o ideal anarquista e socialista utópico de autogestão, de cooperativas de pequenos produtores ou trabalhadores etc. Essas proposições, contudo, embora sejam as mais palatáveis (sem dúvida que as mais democráticas) entre os que se autointitulam esquerda, nos parecem, em certa medida, frágeis. Primeiro, no caso de Bobbio, significaria deixar de lado os reclames por liberdades (contra as prisões arbitrárias e a tortura, contra a violação dos direitos humanos, pela ampliação dos direitos das mulheres, dos homossexuais, das etnias minoritárias, dos idosos etc.) para a direita, algo evidentemente absurdo e oposto a toda tradição progressista da esquerda. É certo que Bobbio assinalou que a liberdade mais defendida pela direita é a do mercado, mas, mesmo assim, insistiu em que a bandeira de luta da esquerda é basicamente a igualdade e não as liberdades. Entretanto, mesmo a liberdade do mercado – algo que nos dias atuais inclui a proteção dos consumidores, o combate aos cartéis e monopólios, inclusive àqueles estatais etc. – é fundamental para qualquer democracia moderna, na medida em que ainda não foi encontrado um substituto aceitável. Durante algum tempo pensou-se que a estatização e a planificação da economia fossem melhor que o mercado, mas isso já foi completamente descartado ao ponto de alguns autores da new left, inclusive economistas que participaram de planos quinquenais na Hungria e na China na época em que vigorava a economia planificada, terem afirmado que, se houver um novo 104 Ensaios de geografia crítica socialismo no século XXI, sem dúvida que ele terá por base a economia de mercado6. Depois, existe o fato óbvio de que somente a vigência da democracia, logo, das liberdades e da participação, é que se pode garantir um mínimo de igualdade – mas nunca total, pois isso é um sonho utópico no sentido literal da palavra (isto é, “que não existe em lugar algum”), tal como a ilha imaginada por Thomas Morus. Na prática, a própria vigência das liberdades conduz a certa desigualdade na medida em que as pessoas e os grupos são desiguais nas suas potencialidades, nas suas necessidades, no seu valor de barganha para a sociedade, na criatividade ou nas formas de luta etc. E tentar impor uma igualdade total através da única forma possível, qual seja, pela força através de um regime não democrático – um partido único no poder (ou um líder carismático) que diz representar os trabalhadores ou o povo –, como foi demonstrado exaustivamente, é algo que sempre resulta em privilégios abusivos para alguns, que mandam e desmandam de forma arbitrária, que usam em seu proveito pessoal os bens tidos como públicos. Quanto à posição de Fausto, acredito que de fato seja interessante investir esforços na busca de alternativas libertárias do tipo economia com base em cooperativas, autogestão em empresas e outras instituições etc. O problema é que, muitas vezes, essas experiências cooperativas ou autogestionárias resultam na ditadura de uma pessoa ou um grupo; ou então na promoção de interesses corporativos – ou de grupelhos específicos – que são opostos aos interesses maiores da sociedade. Não podemos continuar a ser ingênuos hoje, depois de tantas experiências de manipulação de assembléias – basta lembrar, sem a menor pretensão em denegar, de inúmeras instrumentalizações da “vontade popular” em alguns orçamentos participativos –, a respeito do assembleísmo. Vistas de regra existem partidos ou grupelhos organizados que conseguem impor os seus pontos de vista apriorísticos nas resoluções, seja pelo cansaço da maioria, seja pela manipulação dos votos. E, ao contrário de Bobbio, Fausto não enfrenta o dilema da igualdade versus a liberdade; ele continua – tal como no século XIX – a escrever como se essa antinomia não existisse. Parodiando o título do 6 Cf. NOVE, Alec. A economia do socialismo possível. São Paulo, Ática, 1989. 105 José William Vesentini seu livro, podemos dizer que, de fato, é difícil ser (inequivocamente) de esquerda – como também de direita – no século XXI. Essa polêmica evidentemente já chegou até a geografia crítica. Desde a última década do século XX, logo depois da debacle do socialismo real no Leste europeu e na ex-União Soviética, surgiram várias listas de discussão – ou fóruns, como se denominam – na Internet a respeito do que seria uma geografia crítica hoje7. Dando uma rápida espiada em algumas dessas mensagens – pois é praticamente impossível ler todas (são milhares), algo que provavelmente nem mesmo o mediador de cada um desses grupos consegue fazer –, logo se percebe que não existe sequer um mínimo consenso entre os participantes a respeito do que é ou deveria ser uma geografia crítica: para alguns, é sinônimo (ou no mínimo complementar) ao adjetivo radical, e/ou do adjetivo socialista (embora nunca fique claro que tipo de socialismo); para outros, simplesmente de denúncia de grupos neonazistas, de alguma forma de desigualdades ou injustiças, ou de agressões à natureza em qualquer parte do mundo, e assim por diante. Também em livros e artigos acadêmicos esse debate se encontra em andamento. Dois geógrafos britânicos, apesar de admitirem haver “inúmeras desavenças sobre o que seria esquerda”, concluíram o seu artigo de forma extremamente otimista, afirmando que ela, hoje, “representa o futuro”8. Esse texto suscitou um enorme debate. Tanto que é já é considerado o ensaio mais citado entre todos os que já foram publicados nessa revista – Antipode –, que em 1969 inaugurou a “geografia radical” anglo-saxônica. Nesse mesmo número da revista existe um diálogo com esse texto, por parte de um autor marxista que censura a ênfase no pluralismo em Thrift e Amin e os chama – de forma depreciativa, pois acredita por um motivo obscuro qualquer (não explicitado) que há semelhanças entre o pluralismo científico e a “conversão ao neoliberalismo” da esquerda trabalhista britânica (Tony 7 Por exemplo, http://www.jiscmail.ac.uk/lists/crit-geog-forum.html, fórum de geografia crítica existente desde março de 1996. 8 THRIFT, Nigel e AMIN, Ash. What is Left ? Just the Future. In : Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37, Issue 5, November 2005, p. 220-238. 106 Ensaios de geografia crítica Blair e outros) – de neocríticos9. Logo no ano seguinte, veio uma intervenção de uma geógrafa norte-americana, que estranhou tanto otimismo – ou tanta ingenuidade – por parte daqueles dois autores num momento em que inegavelmente a esquerda se encontra em crise10. Outro autor norte-americano, nesse mesmo ano, assinalou – para horror de autores como Smith – que, a partir do final dos anos 1980 nos Estados Unidos, por influência do pensamento pós-moderno em ascensão, que gradativamente passou a substituir o neomarxismo como referência teórica nos círculos engajados da geografia acadêmica, pouco a pouco a bandeira de uma “geografia radical” foi sendo substituída pela de “geografia crítica”11. Considero pertinente este último ponto de vista, pois na verdade a proposta de uma geografia crítica surgiu primeiramente na França, em 1976, com Yves Lacoste e outros participantes da revista Hérodote, que desde o início se mostraram reticentes em relação ao marxismo e incorporaram ideias de pensadores anarquistas (Réclus) e, principalmente, pós-modernos (Foucault). Esse geógrafo francês chegou mesmo a assinalar, de forma foucaultiana, que o marxismo negligenciou o espaço em prol de uma supervalorização do tempo12. É bem verdade que com a expansão da geografia crítica para a Itália, Espanha, Brasil e outros países da América Latina, um certo marxismoleninismo com fortes influências de Althusser e discípulos passou a ocupar o lugar do pensamento pós-moderno, pelo menos em grande parte, conforme já havíamos assinalado em dois textos dos anos 8013. 9 SMITH, Neil. What is left? Neo-critical Geography, or the flat pluralist world of business class. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.37, Issue 5, november 2005, p. 887889. 10 WILLS, Jane. What’s left? The left, its crisis and rehabilitation. In: Antipode. A Radical Journal of Geography. Vol.38, Issue 5, November 2006, p. 907-15. 11 BLOMLEY, Nicholas. Uncritical critical Geography? In : Progress in Human Geography. Vol.30, n.1, 2006, p. 87-94. 12 LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas, Papirus, 1988, p. 139-51. 13 VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do conhecimento científico. In: Anais do 4º. Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB, 1984, Livro 2, Vol.2, p. 423-32 e Geografia e discurso crítico (da epistemologia à crítica do conhecimento). In: Revista do Departamento de Geografia 4. São Paulo, USP, 1985, p. 7-13. 107 José William Vesentini Basta lembrar, para exemplificar, do livro extremamente dogmático do geógrafo italiano Massimo Quaini14, que conseguiu enxergar nos escritos de Marx e de Engels toda uma análise e até mesmo a “solução” para os problemas ambientais e territoriais hodiernos! Em todo o caso, mesmo continuando a existir uma forte presença de marxistas ortodoxos nesta geografia – aqueles que têm por base teórica e filosófica os escritos de Lênin, Althusser e discípulos como Martha Harnecker (com a sua leitura estruturalista e empobrecida da obra de Marx), o velho Lúckas ou Trotsky –, não há dúvidas de que ela avançou no sentido de incorporar autores marxistas heterodoxos ou neomarxistas (como Léfebvre), intelectuais pós-marxistas (como Habermas) e até mesmo pós-modernos (como Foucault, Guattari, Giddens e outros). Prosseguindo com o seu pensamento, o mencionado geógrafo norteamericano questiona sobre o que seria de fato uma atitude crítica e coloca a seguinte dúvida: será que todos nós, que dizemos praticar uma geografia crítica, somos realmente críticos?15. Ele ainda se pergunta, com base num questionamento de um colega seu da universidade (cujo nome não mencionou), se o adjetivo crítico, na verdade, não se tornou redundante; e afirma que a tradição crítica nas ciências sociais teria começado com Marx, que num trecho célebre decretou: “Entretanto os filósofos somente têm interpretado, de várias maneiras, o mundo. A questão principal é transformá-lo”16. A meu ver, o autor acertou em cheio ao questionar o significado de crítica (ou mesmo de radical, num outro plano) nos dias de hoje. Mas errou completamente ao identificar o conceito de crítica com esse chamado ao engajamento que Marx proclamou em 1845 nas suas Teses contra Feuerbach. Como iremos mostrar a seguir, esse é um tremendo desacerto, típico da geografia anglo-saxônica em geral que, via de regra, não conseguiu discernir os significados (diferentes) de crítica e de radical, nem tampouco esquadrinhar o longo percurso, que começou muito antes de Marx, da crítica na vida social e política. 14 15 16 QUAINI, M. Marxismo e Geografia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. BLOMLEY, 2006, op. cit., p. 87. MARX, K., apud BLOMLEY, op. cit. 108 Ensaios de geografia crítica Ipso facto, este nosso ensaio constitui uma modesta tentativa de contribuição, por meio de uma releitura dos significados de crítica em primeiro lugar, e também dos adjetivos radical e esquerda. Uma releitura que vai até as origens e procura mostrar as mudanças que a noção de crítica sofreu em alguns momentos históricos cruciais. Tentaremos, principalmente, polemizar o que significa uma atitude crítica hoje e se essa adjetivação ainda é necessária na geografia do século XXI. Vamos iniciar pela semântica. No senso comum, a palavra crítica normalmente é vista sob um viés negativo, enquanto uma censura ou condenação, como um julgamento sempre desfavorável. Criticar, no entendimento comum, amiúde encontrável na mídia, em filmes, em discursos políticos e mesmo em assembléias populares ou trabalhistas, significa basicamente “falar mal” de alguma pessoa, ideia ou teoria, de algum projeto ou de alguma proposição17. Entretanto, essa não é a acepção filosófica e científica do conceito. Na filosofia, na epistemologia e nas ciências humanas em geral, o significado de crítica é o de um procedimento que implica em discernimento, critério, apreciação minuciosa e julgamento que não precisa ser, necessariamente, negativo. Mais ainda: é um procedimento tido como necessário e até mesmo imprescindível para o aprimoramento e o avanço do conhecimento18. Etimologicamente, a palavra crítica vem do grego kritikòs, que significa o ato de examinar ou julgar alguma coisa. Essa palavra é um derivativo do vocábulo grego krinò, que pode ser entendido como a 17 Até mesmo alguns poucos cientistas sociais incorporaram esse viés equivocado. Um autor brasileiro bastante citado e tido como especialista em metodologia científica, por exemplo, asseverou que: “Do ponto de vista metodológico, critica é sempre negativa. Crítica ‘positiva’ é outra coisa, quer dizer, é elogio.” (DEMO, Pedro. Mitologias da avaliação. São Paulo, Cortez, 2002, p. 30). 18 “A postura crítica torna-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é um instrumento de progresso [científico]; é a crítica que distingue a postura científica da experiência précientífica, onde se fazem erros e se espera até que se esteja arruinado com eles [...] Quando se tem postura crítica, explora-se os erros de forma positivamente crítica, aprendendo-se conscientemente a partir deles.” (POPPER, Karl. O racionalismo crítico na política. Brasília, Editora da UNB, 1994, p. 51). 109 José William Vesentini capacidade de distinguir, de estabelecer uma distinção19. Com os gregos da antiguidade, portanto, os criadores do vocábulo, a crítica implicava numa reflexão, num ato reflexivo no qual se avaliava ou examinava alguma coisa: uma ideia, uma teoria, um comportamento, uma peça de teatro, uma obra literária etc. Uma avaliação tanto dos aspectos positivos como negativos, um julgamento, digamos assim, da “qualidade” dessa coisa, de sua validade ou veracidade (total ou parcial) e de seus erros ou equívocos (idem). Michel Foucault procurou datar o momento em que a crítica passa a ter um significado político. Numa conferência pronunciada em 1978 na Sociedade Francesa de Filosofia, ele afirmou que, no Ocidente, com o advento da modernidade, especialmente entre os séculos XV e XVI, a palavra crítica começa a denotar um tipo de posição política, uma oposição ao ato de governar, que, convém recordar, naquele momento se identificava com a nascente monarquia absolutista. Na interpretação desse autor: Eu proporia então, como uma primeira definição da crítica, esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma governado. Não querer ser governado assim, não é não mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas, porque, sob sua antiguidade ou sob o seu brilho mais ou menos ameaçador que lhes dá a soberania de hoje, elas escondem uma ilegitimidade essencial. A crítica é então, desse ponto de vista, em face do governo e à obediência que ele exige, opor direitos universais e imprescritíveis, aos quais todo governo, qual seja ele, que se trate do monarca, do magistrado, do educador, do pai de família, deverá se submeter. À questão “como não ser governado?”, responde-se dizendo: “quais são os limites do direito de governar”?20. 19 Cf. SIERRA, Pelayo Garcia. Diccionario Filosófico. Biblioteca Filosofía en Español, Oviedo, 1999 ; e também CARROLL, Robert. The Skeptic’s Dictionary, disponível in http://www.skepdic.com/, consultado em julho de 2007. 20 FOUCAULT, M. Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. In : Bulletin de la Société Française de Philosophie, Vol. 82, nº 2, avr/juin 1990, p. 35-63. 110 Ensaios de geografia crítica Mas foi com Kant, no século XVIII, que a crítica assumiu o seu significado moderno, praticamente o mesmo posteriormente retomado por Hegel, por Marx e por tantos outros filósofos ou cientistas sociais que se utilizaram desse conceito para definir alguma teoria ou corrente de pensamento: Adorno e Horkheimer com a sua teoria crítica, Karl Popper com o seu racionalismo crítico, Paulo Freire e Giroux, dentre outros, com a proposta de uma pedagogia crítica etc. Tanto que a filosofia kantiana também é conhecida pelo nome de criticismo21. Sua monumental obra, Crítica da Razão Pura, é uma tentativa de examinar minuciosamente as propriedades da razão pura, aquela desligada da experiência, estabelecendo os seus limites. Não se trata, porém, de uma radical negação da razão e, sim, uma autocrítica desta, uma espécie de continuação do projeto iluminista de, utilizando a razão com base na ciência moderna, combater todas as formas de escuridão (ignorância por crenças e superstições, dogmatismo religioso, autoritarismo no conhecimento e na vida política). Nas suas palavras: O objetivo desta Crítica da razão pura especulativa reside na tentativa de mudar o procedimento tradicional da Metafísica e promover assim uma completa revolução nela segundo o exemplo dos geômetras e investigadores da natureza [...] Com base num lance superficial de olhos sobre esta obra, poder-se-ia pensar que a sua utilidade seja somente negativa, ou seja, de não ousarmos jamais elevarnos com a razão especulativa acima dos limites da experiência [...] Ela se tornará, porém, imediatamente positiva quando nos dermos conta de que os princípios, com cujo apoio a razão especulativa ultrapassa os seus limites, na verdade têm como resultado inevitável, se os observarmos mais de perto, não uma ampliação mas uma restrição do uso da nossa razão [...] Contestar a utilidade positiva deste serviço prestado pela Crítica equivaleria a dizer que a polícia não possui nenhuma utilidade positiva por ser a sua principal ocupação fechar a porta à violência22. 21 22 LEGRAND, Gerard. Dicionário de Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1986, p. 103-4. KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Abril Cultura, Col. Os Pensadores, 1974, p.14-5. 111 José William Vesentini A crítica, nesses termos, não é somente negativa – o “falar mal” de algo ou mesmo somente apontar lacunas, problemas, insuficiências, contradições –, mas também positiva na medida em que auxilia no avanço ou no aprimoramento do objeto criticado, promove, enfim, uma revolução no sentido de propor novas alternativas ou perspectivas. Mas o criticismo kantiano vai mais além. Prosseguindo com a interpretação de Foucault, temos que a crítica kantiana vincula-se à de esclarecimento, isto é, da conquista da maioridade pelo ser humano: A definição que Kant dava de crítica não é distante de como ele entendia a Aufklärung [esclarecimento, ilustração]. É característico, com efeito, que, em seu texto de 1784 sobre o que é a Aufklärung, ele a definiu em relação a um certo estado de menoridade no qual estaria mantida, e mantida autoritariamente, a humanidade. Em segundo lugar, ele caracterizou essa menoridade por uma certa incapacidade na qual a humanidade estaria retida, incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem alguma coisa que fosse justamente a direção de um outro [...] Em terceiro lugar, creio que é característico que Kant tenha definido essa incapacidade por uma certa correlação entre uma autoridade que se exerce e que mantém a humanidade nesse estado de menoridade, correlação entre este excesso de autoridade e, de outra parte, algo que ele considera, que ele chama uma falta de decisão e de coragem. [...] Enfim, é característico que, nesse texto Kant dá como exemplos de retenção da menoridade da humanidade, e por consequência, como exemplos, pontos sobre os quais a Aufklärung deve erguer esse estado de menoridade e maioridade em, certo tipo, os homens, precisamente a religião, o direito e o conhecimento. O que Kant descrevia como a Aufklärung, é o que eu tentei até agora descrever como a crítica, como essa atitude crítica que se vê aparecer como atitude específica no Ocidente a partir, creio, do que foi historicamente o grande processo de governamentalização da sociedade. Com relação a essa Aufklärung (cujo emblema, vocês bem o sabem e Kant lembra, é ‘sapere aude’ [atreva a conhecer, a pensar por 112 Ensaios de geografia crítica conta própria], praticamente um contraponto a uma outra voz, aquela de Frederico II, que dizia ‘que eles raciocinem tanto quanto querem contanto que obedeçam’). Como Kant vai definir a crítica? Eu diria que a crítica será aos olhos de Kant o que ele dirá ao saber: você sabe bem até onde pode saber? Raciocina tanto quanto queira, mas você sabe bem até onde pode raciocinar sem perigo? A crítica dirá, em suma, que está menos no que nós empreendemos, com mais ou menos coragem, do que na ideia que nós fazemos do nosso conhecimento e dos seus limites, que aí vai a nossa liberdade, e que, por consequência, ao invés de deixar dizer por um outro “obedeça”, é nesse momento, quando se terá feito do seu próprio conhecimento uma ideia justa, que se poderá descobrir o princípio da autonomia e que não se terá mais que escutar o obedeça; ou antes que o obedeça estará fundado sobre a autonomia mesma23. Nesses termos, a crítica para Kant implica um projeto de autonomia, de libertação da razão das amarras do autoritarismo, do tradicionalismo e das crendices. É uma contribuição para a revolução democrática no sentido de maior autonomia da humanidade e dos indivíduos ou cidadãos, isto é, de ousar pensar o impensável, de raciocinarmos por conta própria independentemente dos dogmas e das proibições. Ou seja, um convite a “mudar o mundo” no sentido de construir uma sociedade com maior justiça e igualdade, com maior progresso científico, com esclarecimento enfim. Não podemos negligenciar que, em grande parte, a obra de Kant representa certa continuação do iluminismo e, ao mesmo tempo, reflete uma admiração pela Revolução Francesa. Hegel retomou essa concepção de crítica, mesmo procurando à sua maneira superar o criticismo kantiano. Sabemos que ele valorizou a História – com H maiúsculo, vista como a realização paulatina da razão através de etapas ou avatares, num processo teleológico com um final pré-definido. A dialética, para ele, não é apenas um procedimento – visto como algo sem grande importância – de oposição (tese e antítese) 23 FOUCAULT, M. Op. cit., p. 40. 113 José William Vesentini que gera uma síntese, como em Kant. Para Hegel, a dialética é supervalorizada e tem uma dimensão ontológica: ela se dá ou surge no mundo sob a forma dos processos históricos. A dialética hegeliana não pretende ser apenas uma forma de lógica, mas também uma ontologia. De forma extremamente pretensiosa, ela se apresenta como a “verdade” – o que capta a “essência” – ou o movimento da História. Marx prosseguiu com esse viés hegeliano da dialética como a realização da História, sendo esta uma dinâmica complexa que atravessaria várias fases e, afinal, desembocaria na completa libertação do ser humano. Afirmando ter colocado Hegel em posição invertida, com os pés no chão, ele substituiu a razão ou o espírito pelas condições materiais e a luta de classes, que também num processo teleológico, por etapas, conduziriam ao socialismo e, após um período de transição, ao comunismo, a História enfim realizada ou acabada. Sua principal obra, O Capital, tem como subtítulo Crítica da Economia Política, numa inegável inspiração kantiana na qual a crítica é uma superação com subsunção e, mais ainda, é um procedimento revolucionário que aponta para uma libertação do ser humano, para uma completa autonomia no futuro. Procurando estabelecer os limites da economia política clássica (de Adam Smith, David Ricardo e outros) – que seria, antes de tudo, uma economia burguesa ou justificadora do sistema capitalista –, Marx acreditou ter encontrado a sua superação com a análise das contradições do capitalismo, o qual inexoravelmente cederia lugar a um novo modo de produção sem a propriedade privada dos meios de produção. Ao contrário do que pensam alguns, a crítica de Marx ao capitalismo e à economia política não significou uma “crítica negativa” no sentido de apenas apontar erros, problemas, mistificações ou contradições. Como mostrou com propriedade Berman24, é na obra de Marx – muito mais do que na de Ricardo, de Smith, de Keynes ou de qualquer outro autor tido como ideólogo da economia de mercado – que vamos encontrar os mais rasgados elogios ao capitalismo, em especial ao imenso “progresso” que ele promoveu, à sua “missão civilizadora”, à criação de um mercado mundial integrado. O sentido que Marx dava ao termo 24 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 85-125. 114 Ensaios de geografia crítica crítica, convém repetir, era o de um procedimento kantiano de entender profundamente algo, inclusive nos seus aspectos positivos, assinalando a sua importância histórica e, ao mesmo tempo, apontando os seus limites ou as suas insuficiências (ou as suas “contradições”, nos termos da dialética hegeliana). Sabemos que, a partir do final do século XIX – e até o final do século XX –, a noção de crítica esteve identificada basicamente com o marxismo, como se fosse um atributo somente da “esquerda” (vista como os adeptos do socialismo) e tendo o capitalismo como objeto privilegiado, o alvo por excelência das críticas. No entanto, ao contrário do procedimento crítico adotado por Marx, o marxismo posterior, com raras exceções, somente viu aspectos “negativos” e inaceitáveis no capitalismo (e mesmo na democracia!), como se este fosse um sistema que de forma inelutável amplia as desigualdades e entrava o “progresso”, isto é, o desenvolvimento das forças produtivas. É evidente que, hoje, essa leitura precisa ser reexaminada e superada. Precisa ser criticada enfim. Não é mais possível levar a sério a concepção de dialética como portadora do segredo da história, ou como o “método científico” por excelência; muito menos, a existência de um sujeito qualquer (o proletariado, os trabalhadores, o espírito, as massas, a multidão, os movimentos sociais, as ONGs ou qualquer outro agente) que seria o redentor da humanidade. Não apenas o capitalismo, mas também o socialismo real, assim como qualquer outro projeto de sociedade que repudie o mercado e a democracia (por exemplo, aqueles alicerçados em valores religiosos; ou o populismo autoritário “de esquerda” da América Latina), deve igualmente ser objeto de profundas críticas. Malgrado os equívocos e as insuficiências de Marx e de Hegel – em especial a tentativa de teleologizar a história e a pretensão de identificar um agente portador do futuro e do segredo da história (a razão ou o proletariado) –, não se pode perder de vista o que há de comum entre eles e Kant. Ou, em outras palavras, o entendimento da crítica não como falar mal ou desancar um pensamento, mas, sim, como compreensão minuciosa dos seus fundamentos e limites, como superação na qual se incorpora o que foi superado como parte de uma 115 José William Vesentini síntese ou teoria superior. Ao mesmo tempo, crítica como um projeto de autonomia da humanidade, de crescimento do ser humano no sentido de libertação das amarras do tradicionalismo, das crendices, da exploração social e do autoritarismo. Acreditamos que esta deva ser a concepção reproduzida pela geografia crítica – ou pelo menos por grande parte dela, que afinal é plural. Crítica como superação com subsunção e, ao mesmo tempo, como um engajamento em algum projeto de libertação que amplie o espaço da democracia, que combata todas as formas de dogmatismo e de autoritarismo. Todavia, existe hoje um grande dilema: a ideia de projeto de libertação tornou-se extremamente problemática, embora de maneira alguma dispensável. Mas a profunda compreensão desse fato requer algumas explicações. Em primeiro lugar, ao contrário do que pensam alguns, não se trata de denegar completamente a geografia clássica ou tradicional, substituindo-a pelo materialismo histórico com os seus conceitos fundamentais (modo de produção, formação econômico-social, classes sociais alicerçadas na produção, a teoria marxista do valor, o socialismo como etapa que substituirá o capitalismo etc.). Com tal procedimento, mesmo quando existe a tentativa de enriquecer ou completar o marxismo com a incorporação do espaço geográfico – a formação econômico-social transforma-se em formação sócio-espacial, a luta de classes passa a abarcar os conflitos ambientais e territoriais, o materialismo histórico passa a ser chamado de materialismo históricogeográfico etc.25 –, não existe uma verdadeira crítica da tradição geográfica. Não há uma superação com subsunção e tampouco um projeto de libertação realista e coerente com a nossa época. O que existe nesse procedimento é apenas a substituição da tradição geográfica por uma teoria do século XIX (mesmo que esta seja lida a partir de algum autor posterior: Luckács, Althusser ou até Lèfebvre) que imaginou ter superado o capitalismo pela análise de suas contradições e limites, os quais pretensamente conduziriam ao socialismo. Sem dúvida, naquele momento de ascensão dos 25 HARVEY, D. Spaces of Capital. Towards a Critical Geography. New York, Routledge, 2001, passim. 116 Ensaios de geografia crítica movimentos operários, essa construção teórica era crítica. Mas, nos dias de hoje, ela se encontra envelhecida, até mesmo caduca, além de completamente deslocada dos verdadeiros projetos de libertação, que não se identificam mais com esse agente idealizado por Marx, o proletariado, o qual, sejamos francos, sequer existe no mundo empírico26. Insistir nessa via sem levar em conta a experiência dos totalitarismos do século XX – que em boa parte nela se alicerçaram – e as mudanças na vida social e econômica, com o advento de novos sujeitos e campos de luta, nada mais é que, consciente ou inconscientemente, partilhar um projeto de ascensão ao poder por uma camada de burocratas que fala em nome dos trabalhadores, dos excluídos ou da História27. Destarte, a história do século XX – e em especial a crise do mundo socialista, a emersão de novos sujeitos e formas de luta social, a par das profundas mudanças ocorridas no capitalismo, que não pode mais ser entendido pelas análises marxistas clássicas –, evidencia que a crítica da economia política também deve ser criticada, que ela também possui os seus limites e insuficiências, cada vez mais evidentes. Assumir o materialismo histórico como “a” teoria na qual a geografia deve ser diluída é um procedimento acrítico, que não realiza, sequer minimamente, uma análise crítica da geografia, tal como aquela de Kant frente à razão pura, ou mesmo a de Marx frente ao capitalismo. Apenas se incorpora, de forma mecânica e sem grande criatividade, determinados conceitos ou preocupações espaciais a um corpo teórico já constituído, este, sim, nascido de uma tradição crítica, embora datada e integrada a outros tempos, outras circunstâncias. Pouco se avança no 26 Claude LEFORT (As formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 249) foi um dos primeiros a perceber isso, tendo sugerido que o proletariado foi mais uma invenção da “fértil imaginação de Marx”. 27 Como já havia assinalado muito bem CASTORIADIS, C. (A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 82-5), o marxismo no século XX pouco a pouco degenerou numa ideologia da burocracia, num discurso legitimador de um partido ou um grupo de burocratas que pretende alcançar o poder e/ou que já o exerce de forma totalitária, isto é, sempre reprimindo violentamente as criticas e oposições, que são taxadas de “burguesas” e antirrevolucionárias, e sempre falando em nome de uma pretensa comunidade dos trabalhadores, do povo ou do proletariado. 117 José William Vesentini conhecimento da realidade; em geral tão somente velhos chavões ou estereótipos são regurgitados. Devemos, então, indagar sobre o que seria um procedimento crítico nos dias de hoje. Nesta época de pós-modernidade, com múltiplos sujeitos e verdades, com visões de mundo alternativas e igualmente aceitáveis, cada uma dentro de seu ponto de vista, continuar propagando a ideia de crítica como a realização do sentido da história é algo completamente extemporâneo. Ninguém mais tem o direito de falar em nome da história e nenhum sujeito ou agente social é o detentor da verdade entendida como algo unívoco. Outro problema é que não temos mais aquele otimismo dos séculos XVIII e XIX a respeito da unicidade da humanidade. Poucos acreditam hoje num projeto de libertação que inclua todas as culturas e civilizações, todos os povos num único modelo societário para o futuro. Cada vez mais se valorizam as diferenças e as alteridades, a questão dos Outros, com suas diferentes concepções a respeito do ideal de uma sociedade no futuro. Isso posto, cabe uma interrogação: qualquer discurso que critique outro(s) no sentido de incorporá-lo(s) numa nova síntese, e que contenha um projeto qualquer de autonomia, pode ser considerado crítico? Exemplificando: se pensarmos numa perspectiva cristã fundamentalista, adepta do criacionismo, crítica seria uma compreensão dos fundamentos e limites da ciência – neste caso, do neodarwinismo – procurando superá-la com o ato de a incorporar como parte de uma teoria que mantivesse os dogmas da religião e ao mesmo tempo admitisse certas mudanças temporais na natureza e no advento dos seres vivos? (E também existiria um projeto de autonomia ou libertação nesse caso, mesmo que em outra vida). O mesmo valeria para os fundamentalistas islâmicos, para os hinduístas, para os adeptos da supremacia branca etc? Cairíamos então num relativismo segundo o qual todos os pontos de vista se equivalem e, assim sendo, qualquer discurso que procurasse compreender uma teoria e incorporá-la num projeto qualquer de “libertação” seria considerado crítico? É evidente que não. Então, como sair desse impasse? 118 Ensaios de geografia crítica Em primeiro lugar, temos que lembrar que, para Kant, existe um vínculo indissociável entre crítica e democracia, sendo que esta consiste num processo que implica na crescente libertação da humanidade em relação às crendices, ao autoritarismo, às tradições que reproduziam ou reproduzem uma sociedade rigidamente estratificada e com privilégios para alguns. Crítica, nessa concepção kantiana e moderna, deve ser algo que contribui para a liberdade e a igualdade dos seres humanos, e nunca algo que justifique ou legitime qualquer tipo de ditadura, de autoritarismo ou de totalitarismo, de privilégios, de racismo ou de preconceitos. Não vivemos mais uma batalha entre direita e esquerda, tampouco entre capitalismo e socialismo. Um intelectual que enxergou muito bem um dos principais conflitos neste novo século foi o escritor Francis Wheen, que afirmou: A nova batalha será entre o melhor do legado do Iluminismo (racionalismo, empirismo científico, separação da Igreja e do Estado) por um lado e, do outro, várias formas de obscurantismo e relativismo destituído de valores, frequentemente mascarado como ‘antiimperialismo’ ou ‘antiuniversalismo’ - para dar um verniz atraente radical a atitudes profundamente reacionárias28. Assim sendo, não tem sentido adotar aquela posição comodista que considera críticas determinadas ideias que servem de propaganda para fundamentalismos ou dogmatismos, mesmo que elas sejam extremamente ácidas em relação ao capitalismo, que é exorcizado como o demônio do nosso tempo. Críticas essas, por sinal, que estão mais para o “falar mal” de algo e nunca para a análise de seus fundamentos e limites; que, no fundo, constituem tão somente impropérios a respeito do capitalismo, da globalização e até mesmo da democracia. Em segundo lugar, temos que levar em conta que a geografia é ou pretende ser uma ciência. O que Kant almejava com a sua crítica como prolongamento do iluminismo era exatamente libertar a humanidade 28 WHEEN, F. Answer to the question: Left and right defined the 20th century. What's next?, in Prospect, march 2007, http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=8342, capturado em março de 2007. 119 José William Vesentini das amarras dos dogmatismos e dos autoritarismos, da escuridão enfim. Essa iluminação através da razão seria comandada pela ciência moderna. O escopo da ciência – ou melhor, das ciências, no plural, para evitarmos o mito de um método único para todos os aspectos do real – é desenvolver ou dilatar o conhecimento humano sobre a realidade em todas as suas dimensões. Um conhecimento que, não raro, serve para ampliar nosso controle sobre a natureza, tanto a interna (nosso corpo e mente) como a externa (através da redução das distâncias, da ampliação da oferta de alimentos, ou mesmo de novas substâncias, da produção de máquinas e até de armamentos etc.). Sem dúvida, esse controle hoje, ao contrário dos séculos XVIII e XIX, é tido como problemático. Sabemos que muitas vezes ele gera consequências nocivas para determinados ecossistemas e grupos humanos ou, em alguns casos, até mesmo para a biosfera e para a humanidade como um todo. Contudo, bem ou mal, ele sempre foi e continua sendo o motor que impulsiona o chamado desenvolvimento, inclusive nas suas possíveis formas sustentáveis. Mesmo que critiquemos o conhecimento científico – algo que, como vimos, faz parte do seu próprio modo de ser, no qual a crítica é necessária para suas correções e rearranjos. Mesmo que deneguemos essa excrescência da ciência moderna, o cientificismo, que advoga uma absurda atitude arrogante e imperialista frente às demais formas de conhecimento – desde o artístico ao filosófico, passando pelos diversos sensos comuns, pela experiência de vida das comunidades tradicionais e dos povos ditos selvagens etc. Mesmo assim, os cânones do conhecimento científico continuam sendo a melhor maneira de superar o relativismo puro e simples e avançar nessa problemática do que é uma atitude crítica hoje. Um dos grandes méritos da ciência ou das ciências é admitir que suas verdades, embora frequentemente úteis e eficazes, sempre são provisórias e sujeitas a correções ou superações. O conhecimento científico não procura nem aceita o Absoluto. Ele relativiza os conceitos e teorias, embora não no sentido do relativismo ingênuo, ou puro e simples, na qual tudo é igual e, portanto, não existe qualquer hierarquia e tampouco nenhuma forma de aprimoramento ou avanço 120 Ensaios de geografia crítica gradativo do conhecimento. A ciência relativiza os conceitos e teorias – e até mesmo os objetos – ao considerá-los como verdades provisórias e sempre sujeitas a testes, a confrontos com a realidade e com outras explicações, mas cujo sentido, mesmo havendo encontros e desencontros, avanços e possíveis recuos, sem dúvida que tem um norte, que é um crescente acúmulo de informações cada vez mais eficazes no sentido de compreender (e agir sobre) o mundo, o real em todos os seus aspectos. É justamente aqui que encontramos a via que nos permitirá reconhecer a criticidade numa teoria, num discurso: a sua relatividade em termos de contextualização e significado para o universo do qual faz parte. Não existem ideias ou teorias críticas em si. Elas só o são em função do papel que desempenham no seu contexto, razão pela qual podem ser críticas numa época, num momento e num lugar determinados – por exemplo, o marxismo na Europa Ocidental do século XIX –, e também podem ser completamente acríticas em outra época ou lugar, tal como ocorre, como já mencionamos, com o marxismo em praticamente todo o mundo nos dias de hoje. Voltando, agora, para a seara da geografia, podemos seguir com a inquietação de Blomley. Sem dúvida que existe certa verdade na afirmação que há diferentes vertentes autodenominadas críticas na geografia (como na ciência social e na filosofia em geral) e que talvez o melhor seja deixar de lado esse adjetivo, pois, afinal de contas, já não teria ele cumprido o seu papel? (Que foi o de servir de bandeira de luta contra a geografia tradicional, que praticamente não existe mais ou, pelo menos, já não conta com teóricos que a defendam). Mas, por outro lado, cabe uma indagação. Como os geógrafos ditos críticos vêm enfrentando esse problema da crítica? Uma parte deles, felizmente minoritária (talvez não na América Latina), continua a agir e escrever como se nada de importante tivesse ocorrido nos últimos anos e décadas, como se vivêssemos ainda uma luta entre “esquerda” (os adeptos do socialismo e críticos do capitalismo) e “direita” (os adeptos do capitalismo, que seriam por definição conservadores e inimigos do pensamento crítico). Crítica aqui é entendida como “falar mal” dos demônios do nosso tempo: o capitalismo, naturalmente, junto com a 121 José William Vesentini globalização vista como neoliberal, a democracia “burguesa” e a imprensa livre (principalmente quando esta desanca regimes autoritários e populistas “de esquerda”, quando denuncia os abusos dos direitos humanos em Cuba etc.). São produzidos panfletos – ou estudos pouco fundamentados, onde o objeto criticado sequer é compreendido de fato –, nos quais, via de regra, existe uma interpretação paranóica ou conspiracionista da história: foi a CIA quem promoveu os atentados de 11 de setembro de 2001, com vistas a obter apoio para as invasões do Afeganistão e do Iraque; as cobranças de organizações internacionais, especialmente o Banco Mundial, com a qualidade do sistema escolar, é apenas parte de um projeto neoliberal com vistas a privatizar o nosso ensino público; as preocupações com os desmatamentos na Amazônia são meramente uma faceta do imperialismo que objetiva internacionalizar aquela região (o que significaria deixá-la aos cuidados dos países ricos, principalmente dos Estados Unidos); as denúncias de presos políticos em Cuba ou da pobreza e do autoritarismo na Coréia do Norte ou na Venezuela, no fundo, fazem o jogo do imperialismo norte-americano, que almeja derrubar aqueles regimes revolucionários etc. Para essa vertente, o pluralismo é um mal, o marxismo (entendido como se fosse algo unívoco) é o único “método” científico válido, as citações de algum autor (seja do próprio Marx ou, mais frequentemente, de algum marxista posterior) substituem as análises ou até mesmo o raciocínio, não existiria nenhum aspecto positivo na globalização e nas novas tecnologias, mas tão somente uma constante ampliação das desigualdades sociais e espaciais, e por aí afora. Contudo, sem dúvida que existem sérias tentativas de renovar dentro das geografias críticas, que não são meramente panfletárias e comodistas, que procuram enfrentar os desafios de uma nova realidade, inclusive aquele da crise do marxismo e da absoluta incapacidade de grande parte das geografias críticas, e principalmente das radicais, em incorporar essa questão até os primórdios dos anos 1990. Nem todos os geógrafos ditos críticos são dogmáticos e meramente reproduzem estereótipos. Existe uma vertente crítica na boa acepção do termo, que procura realizar uma análise crítica tanto do capitalismo como também – ou talvez mais ainda – do socialismo real, que buscou e busca subsídios não apenas no marxismo (embora também criticado pelo 122 Ensaios de geografia crítica reducionismo econômico e, principalmente, pela valorização do tempo em detrimento do espaço), mas notadamente nos anarquismos (especialmente de Réclus e Kropotkin), em Foucault e na pósmodernidade. Mencionando apenas um exemplo entre muitos, uma expressiva parte dos geógrafos autointitulados críticos, ao constatar as radicais mudanças no capitalismo e o final do socialismo real, vem procurando, nos últimos anos, renovar as suas teorias, com o uso de conceitos ou ideias da teoria crítica, isto é, da Escola de Frankfurt, em especial as de Habermas. Um dos expoentes dessa vertente, ao procurar superar a “geografia radical” e construir uma “geografia crítica”, assim se expressou: As correntes radicais da geografia, em todas as suas variantes, não apenas procuraram elaborar uma crítica do positivismo lógico, como também efetuar mudanças sociais e políticas. Em face do visível êxito do capitalismo nos anos 1980 e da queda dos regimes comunistas da Europa durante os anos 90, a geografia radical fracassou retumbantemente nos seus objetivos práticos. No exame das razões desse fracasso, devemos reexaminar as cinco características chaves da teoria crítica de Habermas: as relações entre teoria e prática, a teoria dos interesses cognoscitivos, a teoria da competência comunicativa, o interesse pela emancipação e a prática da autorreflexão [...] O trabalho da geografia crítica consiste em exprimir as desigualdades e convencer as pessoas do poder sobre suas prováveis repercussões, além de participar ativamente na criação de novas formas de organização social e econômicas. Em poucas palavras, devemos reconhecer o mal-estar de nossa sociedade, adotar uma postura autorreflexiva frente a ela e atuar como psicanalistas da situação da qual fazemos parte29. Notamos um grande avanço nessa proposta que, como havia assinalado Blomley, significa a passagem de uma geografia radical para uma geografia crítica, pois crítica não se identifica com – embora 29 UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p. 250-3. 123 José William Vesentini pressuponha – um mero engajamento. O engajamento com os problemas sociais e territoriais, inclusive os ambientais, foi a grande bandeira de luta dos radicais anglo-saxônicos contra a geografia que predominava na sua realidade até o final dos anos 1960: a geografia pragmática ou quantitativa, voltada para planejamentos e aparentemente “técnica” ou “neutra”. Ele teve o seu papel positivo. Mas o mundo mudou, os problemas se modificaram – alguns se ampliaram, outros se contraíram, outros novos surgiram e outros ainda adquiriram distintas facetas – e o simples engajamento, embora necessário, se tornou problemático (engajamento, por sinal, que de forma visível hoje pode denotar uma atitude intransigente, antidemocrática ou até terrorista, principalmente quando tido como “radical”30). Não existe engajamento apenas por um “outro mundo” ou um “mundo melhor”. Afinal de contas, o que quer dizer “melhor”? Sem dúvida, é algo que pode ser defendido com convicção até mesmo por neonazistas, maoístas, bolivaristas e vários outros tipos político-ideológicos com viés autoritário. Assim, os termos radical e crítica não se identificam completamente. Eles podem se sobrepor em algumas ocasiões, mas, em geral, apontam para atitudes diferentes. Voltando à proposta de Unwin, observamos que, nela, o papel do geógrafo crítico não é o de meramente ser um terrorista intelectual ou um incendiário – isto é, um engajado de forma radical – e, sim, um “psicanalista” que detecta problemas e, ao mesmo tempo, potenciais. Como se sabe, o psicanalista 30 O termo radical, ao contrário de crítica, não possui uma rica tradição filosófica e epistemológica. Na verdade, ele veio do latim (radic = raiz) e, deixando de lado o seu uso na matemática, na química, na linguística etc., ele tem dois significados principais. Primeiro, denota uma atitude intransigente, inflexível, sem um verdadeiro diálogo com os outros. Segundo, e de acordo com a sua origem etimológica, significa ir às origens ou à raiz das coisas. É amplamente conhecida a frase tautológica de Marx segundo a qual “a raiz do Homem é o próprio Homem”, ou melhor, as suas relações no mundo do trabalho. O problema é que os dois significados frequentemente se misturam – inclusive em Marx, famoso pela sua arrogante intransigência frente a qualquer ideia que não as suas (inclusive dos socialistas utópicos, anarquistas etc.) – e, ademais, a “raiz” das coisas, exceto das árvores, é algo extremamente problemático: para os geneticistas a raiz de um indivíduo está na sua herança genética; para determinados antropólogos e também num outro plano, para os psicanalistas, a raiz de uma sociedade está nos seus mitos e valores; para os ecologistas, está nas relações com a natureza; e assim por diante. 124 Ensaios de geografia crítica não destrói a personalidade que analisa e, sim, a reconstrói, a ajuda no seu encontro, na superação dos seus problemas e fobias. A esse respeito, alguns diriam, citando Gramsci, que para o novo nascer o velho tem que morrer. Talvez sim, mas somente num sentido metafórico. Pois o novo sempre significa certo prolongamento, com determinadas nuanças, do velho. Não se trata do nascimento de um indivíduo que vai – depois de várias décadas – substituir outro que envelhece e morre. Essa visão organicista é equivocada na medida em que é a mesma sociedade, embora transformada, que perdura. Ela pode mudar sua estrutura produtiva, revolucionar seus valores, melhorar substancialmente a qualidade de vida de seus membros. Mas sempre haverá certa continuidade, uma herança que permanece. O velho, portanto, nunca morre totalmente. É por isso que ainda hoje somos herdeiros dos egípcios, dos gregos e dos romanos da antiguidade31, dos iluministas do século XVIII ou dos socialistas, no plural, do século XIX. Quanto a Unwin, a filiação desse geógrafo à teoria crítica na sua versão habermaniana pressupõe uma aversão ao tradicional dogmatismo do marxismo-leninismo e, principalmente, uma aceitação da democracia, que, ao invés de ser combatida, deve ser preservada e inclusive expandida. Mesmo sem concordarmos inteiramente com a posição de Unwin (deixando de lado, por ora, o porque disso), cabe elogiar o avanço teórico e político contido na sua proposta (como também na de Blomley e outros) de uma transição da geografia radical para uma geografia crítica pós-marxista aberta e plural. 31 FREUD, S. (Moisés e o monoteísmo. São Paulo, Imago, 1997), por exemplo, analisou com argúcia como o egípcio Moisés propagou uma religião monoteísta cujos mitos até hoje influenciam uma grande parte do mundo. Quanto à importância da filosofia – e das artes – grega ou do direito romano para a nossa vida atual, creio que é desnecessário insistir nesse item. 125 José William Vesentini 126 Geografia crítica no Brasil: uma interpretação depoente* O advento e a expansão da geocrítica no Brasil Existe um mito que, neste ensaio, procuramos questionar, o de que a geografia crítica no Brasil se iniciou com o Encontro da AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros) realizado em 1978 em Fortaleza. A nosso ver, existe aí uma supervalorização dessa associação e uma completa desconsideração dos professores de geografia que, muito antes desse evento e à revelia da AGB, combatiam a ditadura militar e implementavam um ensino crítico da disciplina. Este texto tem o caráter de um depoimento pessoal na medida em que foi elaborado a partir da memória de quem viveu esse período e tem uma visão diferente daquela que, pelo menos nos meios acadêmicos, se tornou hegemônica. Em primeiro lugar, surge uma dúvida: do que estamos falando de fato? O que é uma geografia crítica? Assim, para discorrermos sobre o itinerário da geografia crítica no Brasil, temos obrigatoriamente que definir do que estamos falando e quando esse fenômeno se iniciou. Alguns identificam geocrítica tão somente com um discurso geográfico não mnemônico que procura explicar ao invés de descrever. Já li uma dissertação de mestrado, por sinal premiada, que reproduz esse viés superficial e equivocado. Ora, se isso fosse verdade, existiria uma geografia crítica no país desde os anos 1910 (com as obras de Delgado * Texto elaborado em outubro de 2001 para integrar nosso site na net: www.geocrítica.com.br. Fizemos ligeiras alterações na redação para o incluir nesta coletânea. 127 José William Vesentini de Carvalho) ou, pelo menos, a partir da década de 1950 (com os estudos de Pierre Monbeig). Mas essa é uma visão ingênua, que estereotipa a geografia tradicional, não vê as suas diversas nuances e os seus trabalhos mais ricos e profícuos. E também não compreende a verdadeira reviravolta operada pelas geografias críticas, no plural, que não apenas procuram explicar as relações sociedade/natureza (não confundir com a “adaptação do Homem ao meio”, algo que a geografia tradicional algumas vezes fazia muito bem) e as relações de poder no espaço, como, principalmente, buscam atuar no mundo, desenvolver o espírito crítico do educando, engajar-se nas questões e lutas sociais (das mulheres, dos moradores, dos ambientalistas, enfim dos que pleiteiam uma sociedade democrática e tolerante, dos que contribuem para engendrar uma realidade mais justa). Não se pode dissociar o advento das geografias críticas da reação ou do posicionamento crítico dos geógrafos frente a dois processos ou marcos fundamentais para a história do pensamento geográfico na segunda metade do século XX: os movimentos sociais contestatórios dos anos 1960 e 1970 (contracultura, lutas pelos direitos civis e sociais, reação à guerra do Vietnã, movimento feminista, maio de 1968 etc.) e a falácia da razão instrumental ou, mais especificamente – em nossa disciplina –, da geografia pragmática e voltada para o planejamento. A geografia crítica, no final das contas, foi aquela – ou, mais propriamente, aquelas, no plural – que não apenas procurou superar tanto a geografia tradicional quanto a quantitativa, como principalmente procurou se envolver com novos sujeitos, buscou se identificar com a sociedade civil, tentou se dissociar do Estado (esse sujeito privilegiado naquelas duas modalidades anteriores de geografia, a tradicional e a pragmática) e se engajar enquanto saber crítico – isto é, aquele que analisa, compreende, aponta as contradições e os limites, busca contribuir par um projeto de autonomia – nas reivindicações dos oprimidos, das mulheres, dos indígenas, dos afro-descendentes e de todas as demais etnias subjugadas, dos excluídos, dos dominados, dos que ensejam criar algo novo, dos cidadãos em geral, na invenção de novos direitos. Os primórdios da geografia crítica no Brasil, a nosso ver, enraizaram-se em dois elementos principais. Primeiro, a influência e os subsídios 128 Ensaios de geografia crítica oriundos do Primeiro Mundo e, em especial, da França – o nosso grande farol até inícios dos anos 1980. Segundo, e principalmente, a luta contra a ditadura militar e, ao mesmo tempo, contra o projeto de capitalismo dependente e associado, contra a ideologia da guerra fria e os seus tristes reflexos na repressão policial, nas torturas, no cerceamento do pensamento crítico etc. Ao contrário do que se pensa (se é que quem crê nisso pensa!), a geografia crítica no Brasil – como também na França, segundo o depoimento de Yves Lacoste1 – não se iniciou nem se desenvolveu inicialmente nos estudos ou teses universitários. Tampouco no IBGE e muito menos nas análises ambientais ou nas de planejamento. Ela se desenvolveu, a partir em especial nos anos 1970, nas escolas de nível fundamental (de 5a à 8a séries) e principalmente no ensino médio, o antigo colegial ou 2o grau. E também, cabe reconhecer, em alguns pouquíssimos cursinhos pré-vestibulares que, até inícios dos anos 1970, tinham um perfil bem diferente daquele que é praticamente exclusivo hoje. Ao invés de serem fábricas que apenas massificam os alunos e visam lucros, eram, em alguns poucos casos, redutos de leituras e discussões de obras críticas. Eram espaços de contestação e livre discussão – inclusive de filmes por vezes censurados, venda de jornais alternativos, peças teatrais que alguns grupos apresentavam especialmente para os professores e alunos etc. Eu mesmo tive o privilégio de discutir em seminários num cursinho, em 1969, obras como Geografia do Subdesenvolvimento (de Yves Lacoste), Panorama do mundo atual (Pierre George), Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina (Gunder Frank), Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado Jr.), Formação econômica do Brasil (Celso Furtado), Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels) e outras. A geocrítica no Brasil, portanto, se iniciou como um esforço, por parte de alguns docentes, em superar (o que não significa abandonar totalmente) a sua tradição, a sua formação universitária, aquilo que as universidades diziam que “deveria ser ensinado”. Esses professores de geografia procuravam suscitar nos seus alunos a compreensão do 1 Cf. o texto desse autor – “O ensino da geografia” –, disponível na rede in: http://www.geocritica.hpg.com.br/geocritica04.htm 129 José William Vesentini subdesenvolvimento (a importância, nos anos 1970, do livro Geografia do subdesenvolvimento de Yves Lacoste foi enorme, embora esse tema incorporasse também outros autores e obras significativos da época: Paul Baran e Paul Sweezy, Harry Magdoff, Teotônio dos Santos, Rui Mauro Marini, André Gunder Frank etc.), ligando esse tema com o sistema capitalista mundial e as suas áreas centrais e periféricas. Eles procuraram também enfatizar a questão agrária do Brasil, a questão da distribuição social da renda (um tema recorrente no nosso pensamento crítico desde os anos 1970), a questão da pobreza e da violência policial. Eles – esse pequeno grupo de professores do ensino médio, principalmente, os verdadeiros introdutores da geografia crítica no Brasil – estavam fazendo tudo isso enquanto os “setores avançados” da universidade – é evidente que estamos nos referindo aos cursos superiores de geografia, inclusive na USP – enfatizavam obras/temas como A organização do espaço, de Jean Labasse, os Pólos de desenvolvimento, de François Perroux, ou, no máximo, o livro Geografia ativa, de Pierre George e outros, em suma, temáticas distantes de qualquer posicionamento crítico e claramente comprometidas com o planejamento estatal. Em grande parte, pode-se mesmo afirmar que a introdução da geografia crítica na academia deveu-se ao “encontro” ou diálogo desses professores de nível médio (ou de alguns cursinhos pré-vestibulares) mais engajados e críticos com alguns raros docentes universitários que também estavam descontentes com toda aquela situação de controle, repressão e censura que existia na segunda metade dos anos 1960 e nos anos 70 no Brasil. Só para mencionar um exemplo significativo, podemos lembrar que, nesse período, sequer se podia falar em geografia política e muito menos em geografia do subdesenvolvimento nas universidades. Na própria USP, no Departamento de Geografia (considerado, com razão, como o “mais avançado” do país nessa época, o único que não foi subjugado nem pelos cursos de curta duração – estudos sociais – e muito menos pelo pragmatismo de inspiração norteamericana que rebaixava, ou melhor, travestia, a nossa disciplina de uma ciência humana e social para uma geociência), havia uma disciplina chamada “geografia do mundo tropical”, que ocupava o lugar do estudo do subdesenvolvimento e procurava “analisar” a realidade da 130 Ensaios de geografia crítica América Latina, da África e de grande parte da Ásia sob esse parâmetro alicerçado na “Terra”, isto é, o tropicalismo! Alguns poucos docentes universitários “abriram as portas” da academia para esses professores críticos e, com uma boa dose de coragem, aceitaram orientar (ou melhor, conceder a sua assinatura ou aval, pois em geral eles dominavam esses novos temas menos que certos orientandos) a elaboração de dissertações de mestrado ou teses de doutorado sobre assuntos/objetos que até então eram oficialmente interditados à pesquisa e ao saber geográficos: a autoajuda dos moradores de bairros populares, os problemas do desenvolvimento capitalista no campo, análises críticas da geopolítica brasileira e de seus projetos, a escola e o ensino da geografia como aparatos ideológicos, a industrialização e a produção do espaço em alguma região específica, o espaço geográfico como locus (e instrumento) de lutas sociais, as desigualdades (e a natureza classista) das formas de apropriação social do espaço etc. A nosso ver, foi a partir desta confluência – entre uma meia dúzia (se tanto) de docentes universitários com doutorado e um punhado de (ex-)professores do ensino médio que já estavam revolucionando há anos esse saber nas salas de aula – que surgiu oficialmente, enquanto legitimação pela academia, a geografia crítica no Brasil. A geografia acadêmica e a AGB A influência de Gramsci, direta ou indireta, foi notável nessa referida confluência que oficializou, via academia, a geocrítica no Brasil. O conceito gramsciano de hegemonia com base cultural foi o leitmotiv que conduziu esses professores críticos até a pós-graduação, até as pesquisas e a carreira universitária. É lógico que não foram todos os professores críticos de geografia que caminharam até a universidade nos anos 1970 ou inícios dos anos 80. Alguns desses professores foram presos, torturados e até assassinados nos porões da ditadura. Outros se engajaram em movimentos de “guerrilha” urbana ou rural. Outros, ainda, “sumiram” dos grandes centros urbanos, como São Paulo, onde a repressão policial era mais acirrada e constante, indo trabalhar em 131 José William Vesentini regiões distantes de onde eram conhecidos, muitas vezes em pequenos centros urbanos do interior (ou do litoral), temerosos e, ao mesmo tempo, relativamente desiludidos pelo desmantelamento dos grupelhos autointitulados revolucionários. Mas uma parcela deles fez esse referido percurso, procurando gramscianamente “tomar a universidade”, local a partir do qual teriam uma maior influência cultural e, consequentemente, política. Foram eles que produziram as primeiras obras – as primeiras teses ou dissertações, as primeiras pesquisas acadêmicas –, aquelas que ficaram, em muitos casos sendo publicadas total ou parcialmente, as quais estão disponíveis em certos arquivos e bibliotecas e, dessa forma, servem de marco como os albores (pelo menos no sentido documental) da geocrítica no Brasil. Essa foi a primeira geração dos geógrafos críticos no Brasil. Convém reiterar, para evitar mal-entendidos, que estamos nos referindo à geocrítica no sentido dado a partir dos anos 1970 por Yves Lacoste e outros, na qual evidentemente existem altos e baixos, trabalhos de excelente nível e outros nem tanto. Não devemos ser maniqueístas. Não existem apenas boas pesquisas e ótimos textos nesta nova modalidade de geografia; pelo contrário, alguns são dogmáticos e até panfletários! Por outro lado, malgrado a predominância do mnemônico e dos assuntos tratados de forma compartimentada, existiram excelentes trabalhos na chamada geografia tradicional, por exemplo os de Pierre Monbeig. Foi a geração que produziu trabalhos pioneiros de pesquisas e/ou reflexões críticas acadêmicas nos anos 1970 (principalmente no final dessa década) e nos anos 1980. Depois dela, veio a segunda geração, aquela dos anos 1990 e desta primeira década do século XXI, a qual, em grande parte, é constituída por ex-alunos ou orientandos dessa primeira geração (com a qual convive). Talvez a principal diferença entre elas seja que a primeira geração era, pelo menos até o final dos anos 80, essencialmente gramsciana no sentido de acreditar que estava promovendo uma revolução (anticapitalista e igualitária) na geografia e na universidade. A segunda geração, por sua vez (é lógico que toda regra admite exceções e que existem interpenetrações ou sobreposições), preocupa-se muito mais com o método, com novos enfoques para analisar o “espaço”, com o prestígio científico ou social. Mas essas diferenças são, antes de mais nada, relativas e, desde o 132 Ensaios de geografia crítica início, já havia determinadas ambiguidades ou aporias nas geografias críticas tanto no Brasil como no exterior2. Afirma-se, comumente, que o Encontro de 1978 da AGB teria sido o marco fundamental da introdução da geocrítica no Brasil. Sem nenhuma intenção de desmerecer esse importante Encontro, que ocorreu em Fortaleza e teve inúmeros méritos, acreditamos que essa interpretação é exagerada e mitificadora. É uma espécie de “discurso dos vencedores”, isto é, propagado por um punhado de geógrafos, na época estudantes (de graduação ou de pós-graduação) ou professores universitários sem grande prestígio (mas com potencial) e dominados/subordinados institucionalmente pelos medalhões, que contestaram a supremacia destes e democratizaram a AGB. Este foi, afinal, o grande significado desse encontro: uma democratização, mesmo que relativa (como toda democratização afinal, pois a democracia não é uma forma acabada e permanente e, sim, um processo de (re)invenção de direitos e que se expande continuamente), da AGB no nível nacional. A partir daí, deixaram de existir duas categorias de sócios na AGB nacional: os plenos, os professores universitários, que podiam ser membros da diretoria; e os demais, que pagavam suas anuidades mas não podiam concorrer aos cargos decisórios. A partir desse evento, todos, pelo menos em tese, podiam votar e ser votados, se inscrevendo na época apropriada – a cada dois anos – para concorrer aos cargos diretivos dessa associação. É lógico que esse punhado de “contestadores” (como foram chamados na ocasião) acabou por dominar a AGB nacional – e talvez até eles tenham se tornado nos “novos mandarins” – daí a expressão que empregamos, “discurso dos vencedores”. Mas também o tema engajamento social, a favor dos explorados/dominados, foi apregoado, pela primeira vez num Encontro nacional da AGB, tendo como base (ou como uma espécie de “aval”, pois era uma obra oriunda da França) o livrete de Yves Lacoste, A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, 2 Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do o conhecimento científico, publicado nos Anais do 5 Congresso Brasileiro de Geógrafos (São Paulo, julho de 1984, v. 2, p. 423-33). 133 José William Vesentini para fazer a guerra3. Mas, a partir dessa democratização da AGB nacional (pois a AGB-SP, a seção regional de São Paulo da associação, já havia sido democratizada dois anos antes, desde 1976, e inclusive foi dela que surgiu a “edição pirata” dessa obra de Lacoste), não se pode falar em “introdução da geografia crítica no Brasil”, como muitos fazem. Isso consiste numa espécie de história institucional, algo que lembra muito os historiadores tradicionais, que denegam as lutas populares e só promovem as mudanças nas instituições oficiais, além de desqualificar toda uma ação anterior de centenas de professores de geografia, alguns dos quais pagaram caro por essa ousadia de revolucionar o conteúdo geográfico (e a prática pedagógica) nas salas de aula. Por outro lado, não se pode exagerar a importância – que todavia existe – ou a difusão da AGB. Provavelmente, no mínimo 80% do professorado de geografia do país, a imensa maioria dos geógrafos portanto (pois o ensino sempre foi e ainda é o grande mercado de trabalho para os formados em geografia), até hoje nunca sequer ouviu falar dessa associação4. (Imagine-se, então, em 1978, quando a AGB era bem mais elitizada!). Apesar de uma louvável (e relativa) democratização a partir de 1976-78, a AGB ainda prossegue como um reduto de alguns professores universitários, principalmente dos mais 3 A primeira edição dessa obra, em francês, deu-se em 1976 (e logo surgiu uma tradução portuguesa, que foi xerocada em São Paulo e originou uma “edição pirata” brasileira, com milhares de exemplares que, em grande parte, foram vendidos em Fortaleza durante o Encontro de 1978). Uma edição mais recente, traduzida de uma nova versão ampliada escrita pelo autor, foi publicada em 1988 pela editora Papirus, de Campinas. Nesta, existe uma introdução de nossa autoria que realiza uma espécie de “balanço” a respeito do significado dessa obra na geografia brasileira. 4 Utilizo esse número (e esse raciocínio) com base em pesquisas feitas em 1995-6 por alunos do meu curso, Geografia crítica e Ensino, nas antigas Delegacias Regionais de Ensino da Grande São Paulo, quando constatamos que 54% dos professores de geografia na rede pública a a (de 5 a 8 séries e no ensino médio) não são formados nesta disciplina, sendo estudantes (principalmente de história, ciências sociais ou geografia) ou engenheiros, advogados, teólogos ou seminaristas, historiadores ou sociólogos etc. A única referência que grande parte desse pessoal possui, sobre as mudanças na geografia, é a que está contida nos (poucos) bons livros didáticos, que algumas vezes eles usam para preparar suas aulas (mas não como livrotexto dos alunos, que no máximo possuem um caderno). Se essa é a realidade da Grande São Paulo, o centro dinâmico da economia nacional, imagine-se então a situação mediana no restante do país! 134 Ensaios de geografia crítica jovens (doutores) e não mais apenas dos “figurões” (catedráticos) como era anteriormente, e pouco tem a ver com a realidade da geografia que predomina no Brasil e no mundo (e que contém o futuro desta disciplina), que é a geografia escolar no ensino fundamental e médio. Não se trata de uma apreciação destrutiva e, sim, de uma mera constatação, ou, se preferirem, uma autocrítica construtiva no sentido de se identificar com essa associação e se preocupar com suas insuficiências. Para sermos sinceros (e autocríticos), temos que aceitar que a AGB tem uma escassa representatividade entre os próprios geógrafos – cabe lembrar que o professor de geografia também é um geógrafo, apesar de sofrer preconceitos por parte dos “técnicos”. Ademais, apesar de ela ter se tornado mais aberta a partir dos anos 1980, continua não sendo uma instituição de fato democrática. Creio ser desnecessário lembrar que em seus encontros e congressos – principalmente na escala nacional, pois existe muito mais abertura em algumas AGBs locais –, via de regra, existe um verdadeiro “pensamento único”, com mesas-redondas nas quais, praticamente, todos têm a mesma ideologia (só existem briguinhas por motivos pessoais), com os mesmíssimos convidados a cada novo evento para exporem suas surradas ideias, com uma completa ausência de “outras falas” em palestras ou mesas-redondas que abordam temas considerados “quentes”, tais como a reforma agrária e as transformações no campo, as novas tendências da geografia (aqui somente os marxistas-leninistas dogmáticos são convidados), geopolítica, globalização etc. Alguns dizem, sem pejo, que isso é absolutamente “normal”, pois os “revolucionários” chegaram ao poder na AGB, o que, com isso, está impedindo que os “reacionários” tenham voz. Afora a absoluta ausência de um espírito democrático e mesmo crítico nesse posicionamento (no sentido de crítica como troca de opiniões, como crescimento mútuo a partir de várias alternativas), não são apenas os “reacionários” ou os tradicionalistas que são reprimidos. Até mesmo os pontos de vista libertários são desestimulados a participar. Toda instituição democrática – vide, por exemplo, os Encontros da ANPOCS, nas quais sempre há diferentes pontos de vista sobre temas considerados “quentes” ou controversos –, principalmente as culturais e acadêmicas, deve ser pluralista e aberta às diferentes 135 José William Vesentini interpretações. Rosa Luxemburgo, criticando os bolchevistas em 1918, afirmou com propriedade que “a liberdade de quem pensa igual não é liberdade. A verdadeira liberdade é para os que pensam de forma diferente”. Existe, assim, um bolchevismo hegemônico na AGB, pelo menos em grande parte de sua direção nacional. É lógico que existem inúmeras razões que justificam (embora não legitimem) essa elitização da AGB. Estamos falando agora da elitização, de sua pouca representatividade, pois nada justifica o bolchevismo em pleno século XXI. Primeiro, existe a necessidade de suporte das universidades para que as AGBs locais – que, afinal, são a base da nacional – possam existir: elas, em geral, inclusive a de São Paulo, na qual a nacional está ancorada, mal conseguem pagar sozinhas a conta do telefone ou do provedor da internet (imagine-se, então, o aluguel de alguma sala); e tanto os diretores quanto os funcionários são professores ou estudantes que realizam voluntaria e gratuitamente essas tarefas. Temos, aliás, que elogiar o trabalho voluntário e gratuito de todos os que contribuem para manter essa associação, que sem eles deixaria de existir. Mas não há porque esconder que a maioria dos estudantes que colabora acaba sendo manipulada, é apenas mão-deobra barata para que alguns poucos professores universitários prossigam com sua doutrinação marxista-leninista. Depois, há o excesso de trabalho e os baixíssimos salários percebidos pelos professores do ensino fundamental e médio no Brasil, os quais, por esse motivo, não têm tempo nem o mínimo de recursos financeiros necessários para pagar as anuidades e frequentar assiduamente as assembléias e os encontros da AGB. Mas esses fatores atenuantes, se em parte justificam o elitismo (isto é a AGB como reduto de alguns poucos professores universitários e, no fundo, uma instituição desconhecida pela imensa maioria dos geógrafos), de maneira alguma justificam o bolchevismo, principalmente após a crise do marxismo e do socialismo real, após a constatação da total ausência de democracia – ou mesmo de qualquer eficácia econômica sob o ponto de vista do bem-estar da imensa maioria da população – nesses países que seguiram os ensinamentos do marxismo-leninismo. Ademais, confundir a AGB com a geografia do Brasil, como fazem aqueles que divulgam a ideia de que o Encontro de Fortaleza teria sido o “deflagrador” da 136 Ensaios de geografia crítica geografia crítica no país, é não enxergar a realidade, é confundir o todo com uma pequena parte. A geografia educativa Já vimos que foi a partir da atividade educativa que a geocrítica se iniciou e se desenvolveu no Brasil. Daí, ela se expandiu até a atividade de pesquisas nas universidades, em especial na pós-graduação. Muitos cometem o equívoco de identificar a geografia escolar com o conteúdo dos livros didáticos, o que é um viés unilateral e, portanto, deformador. Nessa ótica, surgiram determinados trabalhos, principalmente algumas dissertações de mestrado defendidas nos anos 1990, que afirmaram que a geografia escolar crítica no Brasil teria nascido ou com o livro Estudos de Geografia, de Melhem Adas, cuja primeira edição saiu no final de 1972, introduzindo nos compêndios da disciplina uma vertente geográfica inspirada em Pierre George, ou com a nossa obra Sociedade e espaço, originalmente editada em julho de 1982. A nosso ver, nenhuma dessas opções é a rigor verídica, embora a segunda seria mais correta se estivéssemos falando tão somente dos manuais escolares e não da geografia escolar crítica como um todo. O livro didático é apenas uma parte da geografia escolar; inclusive, nem é a mais relevante. Ele é mais ou menos importante de acordo com o lugar e a conjuntura: será fundamental no caso de professores/escolas que o têm como base única e inquestionável, como uma “muleta” afinal. Mas ele será pouco importante no caso, mais comum do que se pensa, em que os professores/escolas os utilizam como ele deve ser utilizado: como um complemento, como um material didático de apoio ao professor e não como o definidor de toda a atividade educativa5. Para mencionar a minha experiência pessoal, pois lecionei geografia nas escolas fundamentais e médias desde que ingressei no primeiro ano da graduação, no início de 1970 (a falta de docentes desta disciplina era e ainda é imensa aqui em São Paulo), portanto, muito antes de publicar o meu primeiro livro didático, já elaborava textos ou traduzia/adaptava 5 Cf. MOLINA, O. Quem engana quem? Professor versus livro didático. Campinas, Papirus, 1987. 137 José William Vesentini outros, de autores variados e que em sua maioria sequer eram mencionados nos departamentos de geografia das universidades: Lacoste, Kropotkin, Brunhes, Gunder Frank, Magdoff, Sartre, Simone de Beauvoir, Baran e outros, a respeito do capitalismo e do “socialismo real”, do sistema capitalista mundial, do movimento feminista e as conquistas das mulheres no mundo e no Brasil, dos movimentos sociais urbanos, da geopolítica mundial etc. Lembro, em especial, de duas experiências marcantes na minha carreira docente no ensino médio: o COE (Centro de Orientação Educacional, uma escola particular no bairro da Lapa, São Paulo, que virou uma cooperativa dirigida pelos próprios professores) e o curso supletivo do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Lecionei naquele primeiro colégio, de 1973 até 1977 (tendo como grande parceiro Gumercindo Milhomem), e no sindicato, de 1974 até 1976 (tendo como grande companheiro “Toninho” Pavanello). No COE, em primeiro lugar, nós redefinimos todo o conteúdo da geografia escolar – inicialmente, em 1973, tentamos usar livros didáticos, especialmente aquele primeiro de Melhem Adas recém-lançado na época, mas depois concluímos que eles eram inadequados para a nossa “proposta gramsciana” e passamos a só trabalhar com textos especialmente elaborados em função da realidade dos alunos e dos novos temas que abordávamos. Em segundo lugar, também mudamos a relação professor/aluno e a própria organização espacial da sala de aula. Abolimos as aulas expositivas e só trabalhávamos com leituras de textos (alguns com mapas e gráficos, que deviam ser interpretados), debates, dinâmica de grupos e estudos do meio. Chegamos levar todos os alunos para uma praia em Cananéia, no litoral de São Paulo, ficando lá uma semana inteira realizando um estudo de campo interdisciplinar que envolvia as marés, os recursos naturais e os problemas ambientais locais, a economia e a população (valores, cultura, demografia) de uma comunidade de pescadores, além da história oral e documental do lugar. Orientamos os alunos nos levantamentos sobre mendigos e população de rua no bairro da Lapa, sobre os problemas ambientais e de moradia nesse bairro etc. Por sinal, tudo isso incomodava alguns, que denunciaram o colégio como “subversivo”, e o antigo DOPS, a polícia política da época, dirigida em São Paulo pelo delegado138 Ensaios de geografia crítica torturador Fleury, duas vezes invadiu o colégio e prendeu para interrogatório alguns professores (aqueles que, por azar, estavam lá naquele momento), além de ter roubado equipamentos da nossa gráfica (nossa aparelhagem para imprimir textos e apostilas, inclusive com cores). Por iniciativa minha, reorganizamos o espaço das salas de aula: abolimos o quadro-negro, a mesa do professor e as carteiras individuais dos alunos e no seu lugar colocamos algumas mesas redondas, para os alunos ficarem permanentemente em grupos – cada um olhando para os outros ao invés de todos olharem para o professor ou para o quadronegro – e, com frequência, abríamos uma imensa mesa-redonda na sala para realizar algum debate. Quanto ao Sindicato dos Metalúrgicos, onde lecionei em cursos supletivos durante cerca de 3 anos para alunos trabalhadores, também introduzimos textos críticos e novos temas (inclusive o direito de greve e a luta de classes), mas não mudamos a organização espacial da sala de aula e nem mesmo a relação professor/aluno, pois cada classe tinha centenas de estudantes e as aulas expositivas eram uma imposição. No entanto, fomos advertidos várias vezes pela direção do sindicato (na época pelega) que deveríamos “maneirar” nas aulas, pois o pessoal do DOPS havia entrado em contado com o sindicato, dizendo que receberam algumas denúncias e poderiam até fechar o curso supletivo. Inclusive, foi esse o motivo da nossa demissão (minha e do outro colega da área, o Pavanello, que há alguns anos morreu num acidente de carro) pela diretoria pelega do sindicato; afinal, não ensinávamos “o que deveria” (isto é, nomes de rios ou de planaltos) e, sim, outros temas “sociais” que não eram geográficos! Enfim, concluindo esta “digressão” de natureza pessoal (recordando que este texto tem um caráter depoente), gostaria de deixar claro que essas experiências – em especial, os textos que elaborei nesse período (coloco na primeira pessoa do singular porque tanto o Gumercindo quanto o Pavanello, dois importantes companheiros nessas jornadas, não gostavam de redigir textos e, sim, de lecionar; os textos, principalmente aqueles com os novos temas, eram de minha exclusiva responsabilidade) – foram a base para a edição posterior dos meus primeiros livros didáticos, Sociedade e espaço (de 1982) e Brasil, sociedade e espaço (de 1984), que, não por acaso, são direcionados para o ensino médio. 139 José William Vesentini O parágrafo anterior, quase que biográfico, só tem sentido porque acredito que isso foi o que ocorreu, mutatis mutandis, com dezenas, talvez centenas de outros professores de geografia pelo Brasil afora, alguns anteriormente, desde o final dos anos 1960. Ouvi falar sobre experiências similares, talvez até mais férteis, aqui em São Paulo (inclusive em alguns raríssimos cursinhos pré-vestibulares), em Santo André, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras cidades. Não posso escrever a respeito delas por falta de material de apoio. Mas acredito que foram experiências desse tipo que, no final das contas, deram início à geografia crítica no Brasil. Mesmo porque, quando examinamos a história de vida de muitos dos que produziram no final dos anos 1970 e nos anos 1980 as obras pioneiras da geocrítica brasileira, logo percebemos que, via de regra, eles começaram como professores no ensino médio (ou em cursinhos) e, antes mesmo de ingressarem na pós-graduação ou na carreira universitária, já elaboravam textos e abordavam em suas aulas determinados temas que eram considerados “não-geográficos”. Quanto aos compêndios escolares, reitero o que já afirmei: que eles não têm tanta importância assim (inclusive é no seu uso pelos professores na sala de aula que eles adquirem tal ou qual característica) e que a incorporação por alguns deles, nos anos 1970, das ideias georgeanas (isto é, de Pierre George e a sua “geografia ativa”) não significou de maneira nenhuma uma reviravolta crítica. Foi somente uma renovação dentro do tradicional, na qual houve a abertura para alguns poucos novos temas – o planejamento, a conservação dos recursos naturais e o subdesenvolvimento entendido enquanto um rol de “características” –, mas que eram assuntos e abordagens ainda não críticos e comprometidos com o Estado enquanto sujeito, além de reproduzirem uma visão idílica de sociedade – uma comunidade nacional sem contradições – típica da geografia chauvinista. Algo, portanto, muito distante daquilo que, desde o início, foi essencial na geocrítica, ou seja, a crítica do capitalismo e do socialismo real, a compreensão do subdesenvolvimento como parte periférica e integrante do sistema capitalista mundial, a incorporação crítica da geopolítica, a questão ambiental (e não meramente a “conservação dos recursos naturais”), o distanciamento relativo frente ao Estado e, principalmente, uma 140 Ensaios de geografia crítica abertura para as contradições e para os sujeitos sociais (desde o proletariado até as mulheres, passando pelos moradores, consumidores, etnias subjugadas etc.) e as suas lutas. As publicações e a difusão na mídia A expansão da geocrítica no Brasil também ocorreu no plano das publicações (revistas acadêmicas e em especial livros) e, pelo menos em parte, na difusão pela mídia – rádio, televisão, revistas para o grande público e jornais. Houve um sensível aumento – embora ainda insuficiente quando comparado à história ou às demais ciências sociais – nas publicações geográficas não didáticas. No caso das obras didáticas, ocorreu, a partir do final dos anos 1980, uma progressiva mudança, com praticamente todos os autores tradicionais passando a incorporar – algumas vezes de forma indevida e tão somente mecânica ou imitativa – parte dos conteúdos críticos. Sem dúvida que houve neste setor um avanço inegável. Mas, coincidentemente ou não, a vendagem dessas obras no conjunto vem diminuindo bastante e constantemente com o decorrer dos anos. Isso porque, no tocante às escolas públicas, verificou-se uma perda de poder aquisitivo das famílias de baixas rendas, o que implicou num sacrifício do compêndio escolar – de todas as disciplinas e, em particular, das estereotipadas como “menos importantes”. Por outro lado, no que se refere às escolas particulares, tornou-se cada vez mais comum o uso de apostilas padronizadas elaboradas por grandes redes que vendem as suas franquias: Objetivo, Positivo, Anglo, Pitágoras etc., que são essencialmente voltadas para o sucesso no vestibular e acabaram por dominar cerca da metade das escolas particulares existentes no território nacional. Talvez pela primeira vez, pelo menos no Brasil, livros geográficos não didáticos passaram a ser lidos e até citados por profissionais de áreas diversas: urbanistas, sociólogos, filósofos, cientistas políticos, economistas etc. Para mais uma vez mencionar um exemplo pessoal (afinal esta é uma escrita de natureza depoente), o meu livro A capital da geopolítica, de 1987 (mas baseado na minha tese de doutoramento, de 1985, portanto uma obra acadêmica), conheceu sete edições e foi 141 José William Vesentini lido não apenas por geógrafos, mas também – ou talvez até principalmente – por urbanistas, cientistas políticos, militares, historiadores e estudiosos de relações internacionais. Sei disso por informações de livreiros e também pelos inúmeros convites para falar sobre o assunto oriundos de departamentos de história ou de ciências sociais, de seções do IAB, de associações de moradores etc. Mas sem dúvida que o trabalho pioneiro nesse sentido foi aquele mencionado livro-manifesto de Yves Lacoste, de 1976, que foi lido e citado por centenas de profissionais de outras áreas e também por jornalistas (lembro-me de uma resenha dessa época, assinada por Giles Lapouge, no sisudo jornal O Estado de S. Paulo, que ocupou duas páginas inteiras num domingo!). Por sinal, esse livrete de Lacoste, que nem de longe é sua principal obra, foi provavelmente o trabalho geográfico (deixando-se de lado publicações não acadêmicas tais como a revista National Geographic) mais divulgado em todo o mundo desde pelo menos os anos 1960, tendo sido traduzido e reeditado em dezenas de idiomas: do inglês ao árabe, do japonês ao alemão, do sueco ao italiano etc. Depois dele, só o livro A condição pós-moderna, de David Harvey (de 1989), alcançou tamanha difusão internacional. E a geografia brasileira passou a publicar muito mais que anteriormente, com o revigoramento de alguns periódicos já existentes (como o Boletim Paulista de Geografia) e o surgimento de novos outros (como a revista Terra Livre e inúmeras outras de seções locais da AGB e/ou de departamentos de geografia das universidades). Autores que escreveram sucintos livros de divulgação da geocrítica, como principalmente Rui Moreira (O que é geografia, de 1980) e Antonio Carlos Robert de Moraes (Geografia: pequena história crítica, de 1981), alcançaram enormes vendagens e sucessivas reedições. Também os livros dogmáticos Introdução à geografia – geografia e ideologia, de Nelson Werneck Sodré (de 1976), e Marxismo e geografia, de Massimo Quaini (editado no Brasil em 1979), tiveram uma grande importância na propagação da geografia crítica para o grande público brasileiro e para os estudantes universitários, pelo menos durante uma fase inicial que ocorreu de meados dos anos 1970 até o final dos anos 1980. Para os professores de geografia em geral, que afinal são – pelo menos em tese – os grandes consumidores dessas obras, na medida em 142 Ensaios de geografia crítica que o grande mercado de trabalho no Brasil para os geógrafos sempre foi o ensino, duas coletâneas de textos sobre a geografia escolar, de autores variados (brasileiros e franceses), tiveram e ainda têm uma grande importância: Para onde vai o ensino da geografia? (editora Contexto, 1989, organização de Ariovaldo U. de Oliveira) e Geografia e ensino: textos críticos (editora Papirus, 1989, por nós organizada). São obras que passaram a ser recomendadas em quase todos os concursos para professores, que conheceram várias reedições e que incorporam pontos de vista diferenciados (e às vezes até alternativos) e refletem bem a natureza pluralista da geocrítica no que se refere ao entendimento do ensino da disciplina. Depois delas, nos anos 1990 e nesta primeira década do século XXI, surgiram inúmeros outros livros que podem ser classificados como geografia crítica, inclusive alguns sobre as novas perspectivas para o ensino da geografia. Essas obras mencionadas representam apenas os primeiros livros críticos no Brasil, no final dos anos 1970 e nos anos 1980. Um autor que merece um destaque à parte nessa trajetória da geocrítica no Brasil é Milton Santos. Não tanto pela sua influência nas pesquisas ou nos trabalhos científicos, muito menos pela sua influência no ensino da disciplina, mas, sim, pela sua presença marcante na academia (como um “novo mandarim”) e principalmente na mídia. Ele publicou, em 1978, a obra Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma geografia crítica, que, no fundo, pretendeu emular com o mencionado livro-manifesto de Yves Lacoste e também propugnar uma “nova geografia”, só que “científica” e “não ideológica” (com uma forte clivagem entre ciência e ideologia, inspirada em Althusser, que Lacoste considera sem importância) e que enfatizasse o espaço enquanto “totalidade”. Mas essa proposta, a nosso ver, é problemática e representa um atraso em relação à de Lacoste ou mesmo em relação ao pensamento gramsciano dos professores que já lecionavam uma geografia crítica anteriormente. Isso devido, em primeiro lugar, a um ecletismo (não confundir com pluralismo), isto é, mistura ou sobreposição sem coerência, sem trabalhar a interligação das perspectivas, da análise sistêmica via ecossistemas com a concepção kantiana do “espaço como acumulação desigual de tempos”, com a ideia hegelo-marxista de totalidade (entendida pelo viés althusseriano, 143 José William Vesentini que afinal de contas é stalinista), com certo cientificismo (separação rígida entre ciência e ideologia, na pretensão de “fundar” uma geografia científica ou uma espaciologia) e com visível flerte com determinadas ideias terceiro-mundistas panfletárias. Em segundo lugar, devido à falta de engajamento e de sujeitos sociais, além das ambiguidades na noção de espaço, que se torna fetichizado. Se Lacoste escreveu a sua obra em face do maio de 1968 na França e como uma análise/denúncia da importância do raciocínio geográfico para a guerra do Vietnã, tendo como interlocutores os cidadãos em geral, pensando em contribuir para a expansão dos direitos democráticos (entre os quais ele incluiu o “saber ler os mapas” e “conhecer o espaço geográfico para nele atuar mais eficazmente”), Santos, por sua vez, não soube muito bem a quem se dirigir e com um viés positivista propôs uma “nova ciência” – inclusive sugeriu o termo espaciologia – que enfocasse o espaço enquanto sujeito (sic) e como totalidade (ou melhor, como formação sócio-espacial, inspirada na leitura althusseriana de formação sócioeconômica; Althusser afirma que essa formação tem instâncias – a econômica, a política e a ideológica – e Santos nela acrescenta a “instância espacial”). É evidente que tal proposta teórico-metodológica não poderia ter grande aplicabilidade nas análises de fato críticas, ou mesmo nas pesquisas engajadas (que, em alguns casos, não são críticas), pois quem estuda, por exemplo, as lutas pela terra no meio rural tem que privilegiar os sujeitos sociais envolvidos nos conflitos e não uma espaciologia abstrata; quem estuda a questão da moradia nas cidades tem que privilegiar os movimentos sociais urbanos – ou então a política estatal – em contraposição aos interesses imobiliários; e quem estuda as fronteiras ou o território tem que buscar os atores e os seus instrumentos (inclusive ideológicos) que (re)construíram esses objetos e não ficar regurgitando a respeito do espaço enquanto totalidade. Por isso, autores como Foucault (nas relações entre espaço e poder e no entendimento deste como uma rede e não uma pirâmide, como algo mais amplo que o Estado) e Lèfebvre (no entendimento do espaço produzido pelo capitalismo e pelas lutas sociais), principalmente, além de outros (Lipietz e Francisco de Oliveira, na questão regional, José de Souza Martins, na análise dos sujeitos do meio rural brasileiro, Claude 144 Ensaios de geografia crítica Raffestin, na redefinição de conceitos como território/territorialidade, espaço/espacialidade etc.), foram e são muito mais importantes nos trabalhos acadêmicos da geocrítica brasileira – em especial, nas geografias política, social, regional, demográfica, urbana e agrária – do que a espaciologia de Milton Santos. Este, no final das contas, só acabou produzindo uma meia dúzia de discípulos bem comportados e pouco criativos, que recolhem informações ou dados estatísticos sobre temas “novos” (telecomunicações, aeroportos, hotéis, sistema bancário etc.) e tão somente os reproduzem acompanhados de frases estereotipadas extraídas do mestre (tais como “este espaço manda e aquele obedece”, “isto é um fixo e aquilo é um fluxo” ou “o território é desigualmente apropriado”), sendo incapazes de engendrar qualquer tese ou mesmo qualquer ideia nova a respeito do assunto abordado. Pode-se exemplificar isso com o último livro de Santos, uma publicação praticamente póstuma, O Brasil, território e sociedade no início do século XXI (editado em 2001 em co-autoria com Silveira, além da ajuda de inúmeros estagiários, que receberam bolsas de iniciação científica durante anos e fizeram levantamentos bibliográfico e de dados, além de resenhas de livros e teses). É o mais ambicioso de todos os trabalhos da espaciologia: os autores sugerem na introdução que ele já nasceu como um clássico comparável às obras de Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes (sic). Essa obra representa, com perfeição, a incapacidade da espaciologia em produzir qualquer trabalho importante ou mesmo criativo. Existe nas 473 páginas dessa obra um amontoado de dados estatísticos, cartogramas e informações descritivas, que podem ser facilmente obtidos por qualquer pessoa em almanaques ou anuários especializados (inclusive na internet) – sobre a rede bancária no Brasil e sua localização no território, os aeroportos, as redes de transportes, as refinarias de petróleo e os dutos, os shoppingcenters, os telefones e computadores etc. – e nenhuma tese ou ideia nova a respeito do significado disso tudo, apenas a constante repetição, em cada capítulo, de clichês ou frases estereotipadas do seguinte tipo: “alguns espaços mandam” (o Sudeste, especialmente São Paulo) e outros “obedecem”, “o território é desigualmente apropriado”, “o lugar é continuamente extorquido” etc. Não existe nenhuma análise dos sujeitos, das classes ou grupos sociais, e nem mesmo qualquer 145 José William Vesentini referência às lutas e conflitos ou aos projetos que (re)constroem o espaço ou o território. É uma obra que lembra muito aqueles longos artigos tradicionais do IBGE, editados na revista brasileira de geografia nos anos 1950, 1960 e parte dos anos 1970, sobre a atividade industrial, as cidades grandes e médias, os estabelecimentos agropecuários etc., nos quais nunca havia uma explicação geográficocientífica e, sim, um acúmulo de informações e dados estatísticos, sempre acompanhados de cartogramas que mostravam a distribuição do objeto estudado no território nacional. A única diferença é que este livro procurou “sintetizar”, ou melhor, abordar na mesma obra todos aqueles temas – e alguns outros – que as publicações do IBGE enfocavam separadamente. Mas, no fundo, eles não estão integrados no livro e, sim, divididos em capítulos distintos nos quais sempre é repetida ad nauseam a retórica pseudo-crítica de que o “território é apropriado desigualmente”, que a “guerra fiscal é uma guerra de lugares” (e não de sujeitos sociais) e que existem “áreas que mandam” (ou exploram) e outras que são “subordinadas”. Antes que algum desinformado imagine que estamos negando que o território é “desigualmente apropriado” ou que existem regiões mais e outras menos desenvolvidas – pensando-se não somente em termos de localização de indústrias ou de shopping-centers e, sim, de padrão de vida dos habitantes (algo meio negligenciado no livro) –, gostaria de lembrar que essa é uma velha discussão das ciências sociais (desde, pelo menos, Marx e já abordada por geógrafos do passado como Kropotkin e outros) e que o pensamento crítico, em todas as suas vertentes, sempre reprochou essa interpretação conservadora de que uma região (ou lugar, ou mesmo país) explora outras. Isso porque essa ideia implica num fetiche do espaço, que passa a ser visto como um “sujeito”. Ela omite as relações sociais de dominação e faz o jogo dos dominantes ao espacializar ou reificar uma atividade inter-humana. O próprio Marx, autor que teoricamente serve de alicerce para esse tipo de raciocínio panfletário, citado várias vezes na obra (sempre com frases descontextualizadas), já afirmava que a exploração é essencialmente 146 Ensaios de geografia crítica social e nunca espacial6. É lógico que ela se manifesta ou se concretiza no espaço, mas é produto de relações sociais. Não é por acaso que as elites ou as oligarquias regionais dessas áreas consideradas atrasadas se identificam plenamente com esse discurso pseudo-crítico – do tipo, por exemplo, deste raciocínio simplista encontrável dezenas de vezes com ligeiras alterações no livro: “Se São Paulo, que é apenas um estado, possui 30 aeroportos – ou shopping-centers ou universidades –, por que o Piauí, que também é um estado, só possui dois?”. Existe aí uma entidade mitificada, o território dos estados, que acaba sendo mais importante que os cidadãos. Em nenhum momento do livro se mostra que São Paulo tem cerca de 25% da população nacional e o Piauí apenas 1,5%, Roraima 0,2% e Tocantins 1,5%. Mas, a todo momento, se repete que São Paulo tem 61 shopping-centers (em 1999), o Rio de Janeiro 23 e, em contrapartida, nos estados nordestinos e nortistas os shopping-centers são restritos a algumas capitais ou áreas metropolitanas7. Ou que, na “região concentrada” (o Centro-sul), existem 72% da rede bancária do país e uma agência bancária para cada 142,4 quilômetros quadrados, algo 126 vezes maior do que essa mesma densidade na região Norte8. Uma bobageira, pois qualquer estudante de ensino médio um pouco perspicaz irá recordar que o Centro-sul do Brasil concentra mais de 65% da população nacional e que a região Norte, com apenas 5% desse total possui uma extensão territorial gigantesca, o que torna óbvia essa densidade bem menor de agências bancárias por Km2. Existem, sim, desigualdades regionais – por sinal, perceptíveis e importantes – no Brasil, mas esse tipo de discurso que nivela todos os Estados, que substitui a análise das desigualdades sociais por comparações simplistas entre unidades da Federação, que fetichiza os territórios estaduais e as regiões – as quais, no fundo, são uma ficção, uma construção dos políticos ou do investigador – nada revela de novo 6 Para evitar uma enorme digressão, no final deste texto incluímos um adendo no qual se discute com mais detalhes essa questão do sujeito nas relações de exploração e dominação – se regiões ou classes/grupos sociais. 7 Cf. SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 151-2. 8 Idem, p. 188. 147 José William Vesentini (pelo contrário, esconde muita coisa) e nada tem de crítico. Esse raciocínio ideológico acaba por encobrir a dominação social autoritária (que normalmente acompanha qualquer situação de subdesenvolvimento), criando um “inimigo” a ser combatido por todos (isto é, as “regiões mais desenvolvidas”), igualando dominantes e dominados, as elites regionais e a imensa maioria da população. Não por acaso, esse tipo de discurso conta com a total adesão das oligarquias regionais na medida em que implica na reivindicação de mais investimentos para a “região explorada”, mais verbas que no final das contas, vão ser apropriadas por essa elite. Observe-se, ainda, que existe um sujeito implícito nesse tipo de discurso – o Estado, naturalmente –, que seria o ator encarregado de “corrigir (de cima para baixo) os desequilíbrios territoriais” através de uma realocação dos seus gastos (que, logicamente, originam-se nos impostos pagos em especial pelos cidadãos das áreas mais ricas e populosas, os quais nunca são consultados ou sequer auscultados nesse raciocínio autoritário). Entretanto, é inegável a importância que Milton Santos teve na difusão, através da mídia, da geocrítica brasileira. Que eu saiba, ele foi o único geógrafo a sair nas páginas amarelas da revista Veja, a ser longamente entrevistado em praticamente todos os programas importantes da televisão e também por todos os principais jornais e revistas do país, a escrever periodicamente colunas na página 3 do jornal Folha de S. Paulo etc. Ao seu redor, criou-se um grupo com ramificações em todo o território nacional (e até no exterior – por exemplo, na Argentina) que constantemente o promovia. Foram realizados, na primeira metade dos anos 1990, vários encontros ou seminários internacionais sobre a nova ordem mundial ou sobre o novo mapa-mundi, com subsídios oriundos do CNPq e de outros órgãos públicos de financiamento (nos quais Santos e o seu grupo sempre tiveram um grande poder), sendo convidados vários importantes geógrafos franceses e norte-americanos e, indefectivelmente, ele era designado para ser o conferencista da abertura, a grande estrela do evento. Esse entourage conseguiu até – e essa foi a verdadeira “pedra de toque” de toda a estratégia de promoção da sua figura e, por tabela, de todo o grupo – forjar uma imagem sua 148 Ensaios de geografia crítica como “refugiado esquerdista” da ditadura militar9 e, principalmente, convencer a mídia brasileira que o então recém-criado e desconhecido prêmio Vautrin Lud, que Santos ganhou em 1993, era uma espécie de “prêmio Nobel da geografia”. Enfim, a partir dos anos 1990, pouco a pouco a figura de Santos e a geocrítica brasileira passaram a se confundir na mídia. Isso nunca ocorreu no plano da realidade – isto é, das pesquisas acadêmicas, das teses e das obras publicadas – e muito menos na consciência da maior parte dos geógrafos, em especial do professorado. Mas sem dúvida que ocorreu na mídia e, por conseguinte, na compreensão de boa parte do público e até dos profissionais de outras áreas. Eu mesmo há alguns anos ouvi uma pergunta-afirmação, feita por um jornalista que fazia doutorado na USP e lecionava no departamento de jornalismo de uma universidade federal num estado sulino, se foi depois e devido a Milton Santos que a geografia deixou de ser uma disciplina descritiva e voltada para a memorização de nomes de capitais ou de rios... E, também há alguns anos, um professor universitário de geografia de um país latino-americano me enviou um e-mail solicitando ajuda no levantamento das obras de Santos (e apenas dele) para que ele pudesse escrever um artigo sobre a “história da geografia crítica no Brasil”... Resta apenas avaliar se essa identificação da geocrítica brasileira com a figura do Milton Santos, operada através da mídia, foi positiva ou negativa. Talvez tenha sido positiva, na medida em que contribuiu para ampliar, embora não muito, o espaço da geografia nos meios de comunicação de massas. Mas talvez tenha sido negativa, na medida em que obliterou outras falas, outros caminhos e alternativas diferenciadas, sugerindo uma homogeneidade onde sempre houve pluralidade e uma rica complexidade. Em todo o caso, devemos lamentar a sua morte prematura em junho deste ano (2001), num momento em que ele estava 9 Uma imagem, a rigor, maquiada, pois, até o golpe militar de 1964, Santos foi muito ligado a José Aparecido, uma das figuras-chave do governo populista e direitista de Jânio Quadros. Ele se auto-exilou na França por conveniência e não devido a qualquer perseguição séria por parte dos órgãos de repressão. Ademais, só podemos lamentar nossa cultura subdesenvolvida que transforma em “heróis” aqueles que, no pós-64, saíram do país e viveram durante algum tempo no Chile, em Cuba ou na França, pois quem de fato contribuiu na luta contra a ditadura militar foram os que permaneceram e continuaram a atuar apesar de todos os riscos. 149 José William Vesentini numa grande efervescência intelectual. Pois, bem ou mal, ele sempre buscou incorporar novos temas ao discurso geográfico e, indiscutivelmente, teve o mérito de acompanhar as mudanças que ocorreram nos últimos anos e décadas no espaço mundial e no território brasileiro. Que ele descanse em paz e que, mesmo sem sua importante contribuição, as geografias críticas do/no Brasil prossigam neste seu itinerário de revolucionar o ensino da disciplina, de abordar/incorporar novos temas e de realizar novos – de preferência de forma inovadora e original, além de comprometida socialmente – estudos e pesquisas. ADENDO – A POLÊMICA SOBRE O ESPAÇO COMO SUJEITO Os comentários que fizemos sobre a obra de Milton Santos – em especial, sobre o livro póstumo – demandam uma discussão mais detalhada sobre o que alguns geógrafos denominam fetiche do espaço10. Ou seja, o espaço visto não apenas como condição e expressão material das relações sociais, mas como um sujeito, um ator nos processos históricos. Trata-se de uma interpretação oriunda do marxismo-leninismo – acredito que a sua origem remonta ao livro de Lênin, Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de 1917, que já analisamos num escrito anterior11. Cabe apenas recordar que esse livro foi escrito basicamente como contraponto à social-democracia de Kautsky e com o nítido propósito de legitimar a “tomada do poder” por um partido supostamente marxista num país considerado atrasado, a Rússia, o qual, para Marx, não era ainda, devido ao fraco desenvolvimento de suas forças produtivas – e, consequentemente, à reduzida proporção do proletariado na população total –, um candidato a transitar do capitalismo ao socialismo. Nesse livro, Lênin, mesmo sem o dizer ou talvez perceber, contrariou as ideias de Marx (alguns 10 Cf. VILLENEUVE, P. Y. Classes sociais, regiões e acumulação do capital. In: Seleção de Textos n. 8, AGB-SP, 1981, p. 1-20. 11 Cf. VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas, Papirus, 2003. 150 Ensaios de geografia crítica dogmáticos dizem que “superou” ou “enriqueceu”) sobre a exploração social, e sugeriu que existiria uma exploração entre Estados nacionais, ou seja, entre espaços nacionais diferenciados – os países desenvolvidos ou exploradores (na época, potências coloniais) e os países periféricos ou explorados. A ideia de nações oprimidas (e não apenas classes exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença – já ultrapassada pelos fatos – na impossibilidade do capitalismo prosseguir para além dessa fase, isto é, a fase do imperialismo. Num trecho do livro, Lênin assinala: Os monopólios, a oligarquia, a tendência à dominação em detrimento da liberdade, a exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou débeis por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes: tudo isso deu origem a essas características distintivas do imperialismo, o que nos obriga a qualificá-lo de capitalismo parasitário ou em estado de decomposição 12. Essa assertiva contraria frontalmente os escritos de Marx, que, afinal, foi o forjador da noção de exploração social alicerçada no trabalho vivo não pago, isto é, na mais-valia. Só existe exploração ou transferência de mais-valia entre pessoas, entre o trabalho e o capital, afirmou com clareza Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em suas palavras: Já vimos que a taxa da mais-valia depende, em primeiro lugar, do grau de exploração da força de trabalho [...] Outro fator importante para a acumulação é o grau de produtividade do trabalho social. [Assim] um fiandeiro inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo número de horas com a mesma intensidade [...] Apesar dessa igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do produto semanal do inglês, que trabalhou com uma poderosa máquina automática, e o do chinês que trabalha com uma roda de fiar. No mesmo espaço de tempo em que 12 LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, Anteo, 1971, p. 153, grifo nosso. 151 José William Vesentini um chinês fia uma libra-peso de algodão, o inglês consegue fiar várias centenas de libra-peso13. Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do que a China porque tinha uma tecnologia mais avançada – o que, para Marx, significava maior quantidade de mais-valia relativa e, portanto, uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o chinês – e não devido a uma transferência de riquezas da China para a Inglaterra. Para Marx, a Inglaterra era mais rica porque produzia internamente mais riquezas ou mais-valia – e isso mesmo com os operários ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por semana que os chineses, ou até mesmo com estes últimos trabalhando bem mais; só que eles produziriam menos valor devido ao menor desenvolvimento tecnológico. Assim, para Marx, a exploração do trabalho é um processo inter-humano, uma relação social e nunca uma relação inter-regional ou internacional. As pessoas, na verdade as classes – e não os espaços –, é que são os sujeitos dos processos sociais e das relações no mundo do trabalho. É exatamente por esse motivo que a “revolução social”, para esse clássico, deveria necessariamente ocorrer primeiro nas regiões mais desenvolvidas pela ótica capitalista. Ou seja, pela ótica marxiana, regiões com maior acumulação de capital, com tecnologia mais evoluída e, portanto, com maior exploração do trabalho; não se deve confundir exploração do trabalho com pobreza. Afinal, de onde Santos retirou esse juízo de que algumas regiões “mandam” e outras “obedecem” ou que as primeiras exploram as segundas? Indiretamente foi de Lênin, do marxismo-leninismo pela via de autores posteriores ao líder bolchevique. Como se sabe, Santos retornou ao Brasil no final dos anos 1970, após um exílio voluntário no exterior, e trouxe com ele, através de inúmeras publicações e cursos ou orientações de alunos, uma visão estruturalista influenciada pelo marxismo althusseriano (ou seja, de Luis Althusser e discípulos, tão em moda na Paris da primeira metade dos anos 1970). Sem dúvida que no Brasil, nos círculos mais enfronhados com as discussões marxistas ou pós-marxistas, já se havia superado essa leitura empobrecida do 13 MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, p. 696704, passim. 152 Ensaios de geografia crítica marxismo. Alguns intelectuais brasileiros tinham escrito ácidas críticas ao althusserianismo (Giannotti, por exemplo, que era tido nos meios uspianos como o “mais proeminente marxista brasileiro”; hoje, ele afirma ter superado essa sua fase da vida14); também o importante texto do historiador inglês Thompson, que evidenciou o stalinismo insidioso que existe na leitura althusseriana do marxismo, era amplamente conhecido15. Mais ainda, nessa época já trabalhávamos com outros autores, críticos embora não-marxistas, na geografia brasileira: Foucault, principalmente, como também Lefort, Castoriadis e outros, que Santos nunca admitiu no seu esquematismo teórico, provavelmente porque isso implicaria numa “implosão” do seu edifício conceitual fechado e alicerçado na ideia de totalidade. Do althusserianismo Santos incorporou a ideia de totalidade enquanto formação sócio-espacial e o espaço como uma “instância” dessa sociedade total. Outra grande influência que sofreu e assimilou na sua obra foi da fase neomarxista de Henri Lefèbvre, por sinal um crítico de Althusser e um dos poucos marxistas (depois de Gramsci) que valorizou o espaço na análise do capitalismo. Lefèbvre, nos seus trabalhos a partir do final dos anos 1960 (ocasião em que deixou de ser o principal teórico do Partido Comunista Francês, sendo substituído pelo seu desafeto Althusser), não mais admitia uma “totalidade fechada” e esquematizada, mas isso não impediu que Santos pinçasse algumas ideias de suas obras para construir uma espaciologia fundamentada na formação sócio-espacial e na percepção do espaço como um sujeito. Enfim, Santos aproveitou uma ou outra coisa desse autor – como a noção de “produção do espaço” e principalmente a “luta de lugares”, de contradições “do espaço” e não apenas “no espaço” –, mas sempre encaixando todas essas noções no seu edifício estrutural, na sua leitura althusseriana de “instâncias” e de “formação sócio-espacial”. 14 GIANNOTTI, J. A. Contra Althusser. In: Teoria e Prática n.3, São Paulo, 1968; e Certa herança marxista, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. No primeiro texto, o então filósofo marxista reprocha Althusser por fazer uma leitura cientificista e anti-historicista de Marx centrada na oposição (que seria estranha para o criador do materialismo histórico) entre objeto de conhecimento e objeto real. Já no recente livro, o pensador pós-marxista e em tese pluralista afirma que Marx é apenas um clássico como outro qualquer e que sua leitura do real cometeu o equívoco de confundir contradição com contrariedade. 15 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. 153 José William Vesentini Uma leitura frágil e equivocada. Não porque denuncia as desigualdades regionais ou territoriais, algo trivial e teorizado com mais propriedade pelos filósofos e cientistas sociais desde pelo menos o século XIX (E mesmo pelos economistas brasileiros que, desde no mínimo os anos 1950, já tinham feito diagnósticos das desigualdades regionais do país muito mais ricos e operacionais que o amontoado de informações díspares coletadas por Santos. Basta lembrar da obra de Celso Furtado de 1959, A operação Nordeste); mas, sim, porque amiúde cai num discurso meramente prolixo e vazio, inclusive panfletário. Nem tem a sofisticação do marxismo, no qual supostamente se apóia, porque não consegue teorizar a transferência interespacial de valor, base da exploração. Fica apenas no que Marx denominava aparências: tantos aeroportos, agências bancárias ou shopping-centers aqui nesta região, outros tantos ali na outra região, um número menor que, dessa forma, “comprova uma apropriação desigual do espaço”, logo uma exploração. Simplista, não? Mas é isso mesmo. Enfim, um quiproquó sobre a hipotética exploração de alguns lugares sobre outros. Mas exploração é uma categoria social, inter-humana, que não pode existir entre coisas, entre espaços. É por isso que grande parte dos pensadores marxistas ou neomarxistas, desde as últimas décadas, deixou de lado a ideia leninista de “nações exploradas” – ou mesmo de classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem teto, dos sem terra etc. Pois, para haver exploração, é necessário existir trabalho não pago, ou seja, geração de mais-valia. Ninguém é explorado porque não tem emprego, terra ou capital. Tampouco porque não tem na sua localidade um aeroporto ou um shopping-center. Por isso a noção de excluídos tornou-se mais usada para se referir a essa situação – social, regional ou internacional – de pobreza ou de carência16. 16 Um importante intelectual brasileiro [que nada tem a ver com Santos, exceto por um grupelho de sequazes em comum] encetou uma crítica à noção de exclusão, argumentando que todo excluído de uma forma ou de outra é útil ao sistema ou, em outras palavras, a exclusão seria “uma expressão da contradição do desenvolvimento capitalista” (MARTINS, J. de S. Exclusão social e a nova desigualdade. S. Paulo, Paulus, 1997). Considero equivocado esse ponto de vista – devedor da filosofia de Hegel e de seu maior discípulo, Marx – que sempre parte de uma totalidade imaginada explicando tudo, como algo onipresente e com um destino pré-fixado, o que implica em desconsiderar as anomalias, o contrapoder que não se subsome à pretensa “luta de classes”, o contingente e o surgimento do novo. Ademais, esse 154 Ensaios de geografia crítica A categoria exploração pressupõe trabalho, atividade produtiva, extração de riquezas, mais-valia enfim, enquanto a noção de exclusão significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa – seja do trabalho, do acesso à escola ou à saúde gratuitas e/ou de boa qualidade, do acesso à moradia ou à terra etc. Essa percepção teórica mais sofisticada é algo que falta a Santos. Mas, no fundo, ele nunca se preocupou com isso, pois aparentemente o que objetivava era gerar impacto, ser promovido na mídia e na academia, publicar dezenas de livros em pouco tempo e ter uma trupe ao seu redor ajudando na sua promoção. Um conto de Machado de Assis – um diálogo entre pai e filho, com conselhos daquele para este – retrata bem o seu objetivo plenamente alcançado: O meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável [...] Nenhum [ofício] me parece mais útil e cabido que o de medalhão [...] Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom-tom trazê-los consigo para os discursos de sobremesa, de felicitação ou de agradecimento. Melhor que tudo isso, porém, que não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil [...] Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos [...] Que Dom Quixote solicite os favores dela mediante ações heróicas ou custosas [mas] o verdadeiro medalhão tem outra política. Quanto à matéria do discurso, tens à escolha: ou os negócios miúdos ou a metafísica. Mas se puderes adota a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os argumento apenas retoma as críticas feitas pela sociologia latino-americana dos anos 1970 contra a ideia de marginalidade, identificada sem mais com a exclusão como se esta última fosse apenas uma nova roupagem daquela, como se não tivesse pressupostos diferentes. Longe de ser “um estado, uma coisa fixa e irremediável”, como o autor interpreta, a exclusão é uma noção ética – no sentido dado por Richard Rorty – que implica em ação afirmativa, em demanda por novos direitos. 155 José William Vesentini partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Neste ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade. Foge a tudo o que possa cheirar a reflexão, originalidade etc17. 17 MACHADO DE ASSIS. Teoria do Medalhão, publicado originalmente in Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1881. 156 Ensaios de geografia crítica 157 A questão da natureza na geografia e no seu ensino* Uma grande verdade é uma verdade cujo oposto também é verdadeiro. (NIELS BOHR). O processo histórico da humanidade como um todo consiste em uma gradual apropriação da natureza pelo espírito, a qual encontra-se fora dele, mas também de certa maneira dentro dele. (GEORG SIMMEL). I A natureza é histórica e, portanto, social. A natureza é uma realidade objetiva independente do social-histórico. Essas duas afirmações aparentemente contraditórias são verdadeiras, embora parciais se entendidas isoladamente. Elas se complementam e podemos mesmo dizer que formam um conjunto complexo, que costumava ser denominado “dialético”, enfim, um processo contraditório de oposição e, ao mesmo tempo, complementação. A natureza é histórica enquanto discurso(s), enquanto percepção pelo conhecimento humano, que logicamente varia no tempo e no espaço. É histórica também enquanto * Texto elaborado com vistas a ser apresentado numa reunião de professores de geografia de colégios de aplicação de diversas partes do Brasil, a ser realizada em outubro de 1995 e que acabou não ocorrendo por falta de verbas. O convite que os organizadores fizeram para que realizássemos uma fala sobre esse tema acabou, portanto, sendo desfeito, mas o texto foi redigido, após inúmeras leituras e reflexões, e acreditamos que mereça uma discussão por parte dos geógrafos e, especialmente, dos professores de geografia. 158 Ensaios de geografia crítica relação com a sociedade, na qual, mesmo influenciando alguns aspectos do social, ela com frequência é modificada pela ação humana. Mas a natureza é igualmente uma realidade objetiva, um encadeamento de processos naturais (ou seja, físico-químicos e biológicos) que possui a sua dinâmica própria e autônoma. Como realidade objetiva, a natureza é um complexo que inclusive originou, num certo momento, a vida humana, que continua a fazer parte dela enquanto organismo que nasce e morre, que necessita de oxigênio, comida, repouso, que possui, enfim, um ritmo biológico independente do social apesar de intimamente interligado a ele. Justamente o grande problema da ciência geográfica, e em particular do seu ensino, é o entendimento desse processo contraditório, desse ser e não ser concomitante da natureza. Para alguns – e isso desde os clássicos do século XIX, que em sua maioria tinham uma visão empirista e objetivista do real –, só existe o aspecto material e autônomo da natureza. Ela seria apenas uma coisa em si, uma realidade objetiva e à margem do social-histórico. Nesses termos, quer a natureza seja vista como um palco (ou a “terra”) que o homem vai ocupar, ou mesmo quer ela seja entendida como recurso para a sociedade moderna, trata-se de algo pré-definido e cuja objetividade nunca é posta em questão. Já outros, em contrapartida, vêem somente o subjetivo, o(s) discurso(s) sobre a natureza, como se ela fosse essencialmente uma ideologia no sentido mais vulgar dessa categoria. A primeira natureza, ou natureza original e independente da ação humana, não mais existiria e, no seu lugar, haveria tão somente uma segunda natureza ou natureza humanizada, reelaborada pela sociedade moderna. O grande desafio, aqui, seria o de estudar as contradições da sociedade, sendo a natureza compreendida como um subproduto destas. Na primeira interpretação, a empírico-objetivista, a realidade é uma só (o universo enquanto categoria mais abrangente do ponto de vista das coisas que existem), mas sem a preocupação com a conceituação de totalidade ou de globalidade. Seria uma somatória de fenômenos na qual o importante não é partir do todo e, sim, das partes, analisando ou até descrevendo cada uma isoladamente e depois, se possível, realizando sínteses provisórias. E, na segunda interpretação, a 159 José William Vesentini ideológico-subjetivista, a realidade também é uma só (a sociedade moderna ou capitalista, com suas ideias sobre universo, natureza, formação sócio-espacial etc.) e existe uma grande preocupação com a conceituação de sua unidade, ou melhor, de sua totalidade. O ideal aqui é partir do todo para se chegar às partes, sendo que uma lógica prédeterminada de totalidade (as contradições do modo de produção capitalista) é que determina a dinâmica de cada parte e mesmo a da natureza, que afinal de contas nada mais seria que recurso(s) instrumentalizado(s) pelo social. Para superarmos esses dois vieses, temos que absorver o que há de verdadeiro em cada um, procurando compatibilizá-los e tentando ir além deles. É o que iremos encetar neste ensaio. Nossa intenção é mostrar que a natureza é uma realidade objetiva, obviamente que dinâmica e complexa, e ao mesmo tempo um (ou vários) discurso(s) ou interpretação(ões). Indo mais além, procuraremos avaliar em que medida a natureza é e não é social, o que, por um lado, dá certa razão aos que advogam uma separação ou até oposição entre o natural e o social-cultural e, por outro lado, também justifica a ideia de uma certa unidade ou complementaridade entre a sociedade e a natureza. Por fim, no tocante ao ensino da geografia, justamente o campo no qual essa problemática se coloca de forma mais aguda, iremos demonstrar que o ponto de partida não é a concepção de natureza – como normalmente se pensa – e, sim, a realidade do educando, podendo-se, dessa forma, enfocar a dinâmica natural desta ou daquela maneira, com ou sem integração imediata com o social, tudo dependendo do conteúdo a ser estudado e, principalmente, do nível de desenvolvimento intelectual e da realidade existencial dos alunos. II Que a natureza seja uma realidade objetiva parece haver poucas dúvidas. Uma realidade extremamente complexa e, provavelmente, até contraditória em vários aspectos, é certo, mas com sua(s) própria(s) dinâmica(s) que independe(m) do pensamento ou da ação humanos. Imaginar o contrário, que a natureza é só discurso ou interpretação, seria regredir até um idealismo já há muito superado pela história da 160 Ensaios de geografia crítica filosofia e, em particular, pelos avanços das ciências naturais nestes últimos dois ou três séculos. A história da ciência nesses séculos pode ser vista como uma longa narrativa de lutas contra a religião e o idealismo, como uma afirmação cada vez mais categórica da autonomia dos fenômenos naturais frente aos ideais humanos. Sabemos dos escândalos ocasionados pelo desmanche do sistema geocêntrico, pela teoria da evolução biológica, pelas novas ideias sobre a origem do universo e da Terra, pela genética com as suas aplicações... Pode-se argumentar que a ideia de natureza é uma abstração e o que conhecemos de fato são coisas ou fenômenos isolados, que os cientistas fazem uso de paradigmas diferentes e até antinômicos de acordo com o aspecto do real a ser estudado, que nossa interpretação sobre o mundo é plena de reviravoltas. Tudo isso é correto, ao menos parcialmente. Só que nada disso elimina o fato segundo o qual a categoria natureza é essencial para a ciência moderna, que busca cada vez mais abordagens integradoras – sejam interdisciplinares, transdisciplinares ou até holísticas – e produz não só teorias e, sim, resultados concretos incontestáveis. Alguns afirmam que o estudo de um rio ou de um relevo com sua estrutura geológica só tem sentido quando o relacionamos com a dinâmica social, com o uso que o homem faz desses recursos – seja poluindo o rio e/ou usando suas águas para abastecimento urbano, seja construindo uma estrada ou um túnel nessa unidade de relevo, ou explorando algum minério no subsolo. Creio que ninguém discorda que esse uso é importantíssimo, notadamente no ensino elementar e médio. No entanto, convém não esquecer que a humanidade só constrói modernas estradas, túneis ou mecanismos de captação e filtragem de águas fluviais porque existem estudos científicos sobre o rio em si e enquanto parte das águas e da sua dinâmica no planeta, sobre os minérios ou as unidades de relevo em si, como dinâmicas próprias e autônomas frente à lógica social. O estudo da natureza em si, de processos naturais em sua autonomia, é condição sine qua non para o seu uso pela sociedade moderna. Mais ainda, é um pré-requisito indispensável para se resolver os enormes problemas ambientais colocados por esse uso de forma intensiva, um dos grandes desafios do 161 José William Vesentini século XXI. Como afirmou com propriedade o filósofo e cientista político italiano Norberto Bobbio, sempre é melhor uma análise sem síntese do que uma síntese sem análise. Alguns geógrafos não compreendem isso e pensam, de forma simplista, que pode existir uma síntese sem análises prévias. A visão de natureza que a geografia herdou e reproduziu no seu ensino foi a cartesiano-newtoniana, na qual a física é a ciência chave para se explicar o universo, categoria que nessa leitura se confunde com a de natureza em seu nível mais abrangente. Daí o estudo geográfico da natureza ter sido denominado “geografia física” e as escassas tentativas de abordagens globalizantes – ou de criar sínteses – tinham por base princípios da física clássica: causalidade simples, analogia, espaço absoluto, natureza como fenômenos físicos em primeiro lugar, que não têm vida consciente, mas, quando muito, vida vegetativa ou passiva, isto é, determinada pelo meio abiótico. No fundo, nem poderia ter sido diferente, pois a geografia moderna nasceu na época da Primeira Revolução Industrial, no século XIX, destinada essencialmente, por um lado, a mapear e descrever territórios para que o emergente Estadonação pudesse controlá-los de forma mais eficaz, e, por outro lado, destinada a reproduzir uma ideologia nacionalista para as crianças e adolescentes que cursavam o ensino de massas que se expandia na época e passava a se tornar obrigatório. Ocorre que o contexto histórico-social dos nossos dias – a nova ordem mundial com uma revalorização da questão ambiental, a revolução técnico-científica com as profundas mudanças que ocasiona na sociedade moderna e nos seus valores dominantes – exige uma revisão nessa concepção de natureza. Pouco a pouco, no discurso científico em geral (e não somente na geografia em particular), a visão cartesianonewtoniana de natureza, na qual os fenômenos físicos constituem a chave para a sua unidade e dinâmica, vai cedendo lugar a uma visão mais ecológica, na qual a natureza-para-o-Homem passa a ser entendida como a biosfera e os processos de vida começam a ganhar terreno nas explicações da dinâmica e mesmo da unidade dessa natureza em nosso planeta, que, afinal de contas, é a única que interessa ao estudo da geografia. 162 Ensaios de geografia crítica É interessante registrar, sem nenhuma pretensão de estabelecer nexos de causalidade linear, que essa mudança ocorre paralelamente à passagem da Segunda para a Terceira Revolução Industrial. De fato, na Primeira e na Segunda Revolução Industrial os avanços da humanidade sobre a natureza – a criação de uma segunda natureza, de acordo com as formulações clássicas de Marx – tinham um forte conteúdo mecânico: a máquina a vapor como símbolo dos primórdios da industrialização original, as máquinas elétricas e o automóvel como símbolos da segunda etapa desse processo industrial. Durante muito tempo, os notáveis avanços da ciência e da tecnologia moderna, que no fundo sempre permitiram ao homem libertar-se cada vez mais (embora nunca totalmente) das amarras da natureza, estiveram bastante identificados com as descobertas e aplicações da física (e, em segundo lugar, da química, que alguns epistemólogos dizem ser praticamente um segmento da física). Isso é válido para o desenvolvimento dos meios de transportes e comunicações, para o aperfeiçoamento das máquinas industriais, para as construções de edifícios e outras obras de engenharia, para o aprimoramento dos armamentos etc. Quando consultamos qualquer obra a respeito da história da ciência moderna com ênfase em suas aplicações, com ênfase na tecnologia que gerou, logo notamos que a maior parte das referências será para descobertas físicas – da eletricidade à energia nuclear, do estudo da atmosfera e sua dinâmica aos aviões e satélites artificiais, do estudo dos materiais às construções ou às explicações sobre o centro da Terra. Desde Galileu Galilei (e Descartes como o seu “complemento” em nível teórico) até os “grandes nomes” da ciência do século XX (Einstein, Mach, Bohr, Heisenberg e outros), o progresso técnico do capitalismo confunde-se, em grande parte, com as aplicações das descobertas físicas. Não pretendemos com essa constatação ideologizar a física, o que seria ridículo frente aos inegáveis avanços que ela suscitou no conhecimento humano, e, sim, mostrar a sua eficácia para a modernidade e, ao mesmo tempo, o porquê de sua primazia na visão capitalista de natureza, visão pragmática e mecânica que entende a natureza basicamente como recurso(s) e objeto(s) sem vida. O “novo paradigma” nos estudos sobre a natureza, a respeito do qual tanto se especula desde as obras de Kuhn e de Capra, provavelmente 163 José William Vesentini não vai derivar da relatividade ou da teoria dos quanta, como geralmente se imagina, e, sim, da biotecnologia, em particular da ecologia e da genética. Não devido a um pretenso equívoco daquelas duas primeiras teorias – longe disso! – e, sim, em razão de uma maior aplicabilidade, nos moldes da revolução técnico-científica em andamento, da abordagem ecológica e da engenharia genética. Cada vez mais a natureza (repito: natureza-para-o-Homem) deixa de ser vista como o universo ou como um complexo sistema físico e passa a ser entendida como um encadeamento de ecossistemas – o que leva até a biosfera ou, segundo alguns, até Gaia –, como um imenso complexo vivo no qual o homem pode intervir, não mais apenas fazendo máquinas ou obras de engenharia, não mais desmatando e/ou aplainando de forma acelerada e construindo cidades ou monoculturas, e, sim, agindo de acordo com os princípios da ecologia (controlando biologicamente as pragas, conservando certos ecossistemas ou espécimes etc.) e/ou com os princípios da genética (mapeando e manipulando genes, criando novos organismos e substâncias). Aliás, ao contrário do que pensam certos militantes ambientalistas ingênuos, ecologia e genética não se contradizem (sendo uma voltada para a conservação dos seres vivos e a defesa dos alimentos naturais e a outra apregoando a modificação dos seres vivos e criando alimentos artificiais), mas, sim, se complementam no avançar da Terceira Revolução Industrial. A ecologia, entendida como pesquisa/conservação de ecossistemas e seres vivos em sua máxima diversidade, é condição básica para o avanço da genética, do estudo de genomas dos seres vivos e da criação artificial de novos seres vivos ou organismos geneticamente modificados. E, como veremos a seguir, ambas são fundamentais para esta nova fase de expansão industrial (ou pós-industrial, como advogam alguns), que é a revolução técnicocientífica. A ação do homem na natureza, a partir do advento do capitalismo e da sua visão pragmática sobre o mundo, sempre foi a de um conquistador frente aos domínios que anexou. Dominar a natureza foi o lema básico da modernidade desde no mínimo o século XVII. Neste final de século e de milênio, começa a haver uma mudança significativa nessa visão e também, embora de forma mais tímida, nessa ação. Os motivos 164 Ensaios de geografia crítica para isso são vários: crescente consciência ecológica ou ambiental da humanidade, que teve como marcos importantíssimos a Primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) e, vinte anos depois, a Eco-92 no Rio de Janeiro; o acúmulo de problemas ambientais (buraco na camada de ozônio, efeito-estufa com o acúmulo de CO2 na atmosfera, acidentes nucleares e advento novas armas letais produzidas em massa nos anos 1960 e 1970, intensos desmatamentos nas poucas reservas florestais ainda originais, crescente carência de água potável em diversas regiões do planeta, ampliação das áreas desérticas ou semiáridas em inúmeros lugares etc.), juntamente com a percepção de que eles não têm uma dimensão meramente local ou regional, como se imaginava até o início dos anos 70, e, sim, planetária ou global; e, por fim, a crise da bipolaridade e da Guerra Fria, entre 1989 a 1991, com o advento da nova ordem mundial, na qual a preocupação dos países ricos com uma hipotética guerra mundial, em grande parte, desloca-se para os problemas ambientais planetários. É lógico que essa cada vez mais aguda preocupação dos países ricos com a questão ambiental planetária não se fundamenta apenas nos riscos de catástrofes, ou nas possibilidades de empobrecimento da diversidade biológica e cultural para as futuras gerações, mas tem, igualmente, um motivo bastante prático: a biodiversidade vem se transformando num negócio lucrativo (e com um vastíssimo campo de expansão), com o desenvolvimento da biotecnologia e com todos os demais aspectos interligados, quais sejam: as indústrias de novos materiais, as pesquisas biológicas de novas fontes de energia, os novos remédios e tratamentos médicos com a engenharia genética, a nova agropecuária com o melhoramento genético de animais e plantas, inclusive com a futura produção in vitro numa escala gigantesca etc. Se destruir a natureza foi um princípio essencial da modernidade nestes últimos séculos, agora o imperativo de a conservar vem cada vez mais ganhando terreno. Mas não conservar como guardar ou não usar e, sim, como utilizar de outra forma, como banco de dados genéticos, como ecoturismo, como reserva de expansão da biotecnologia. De uma ação semelhante ao de um exército conquistador que extermina grande parte da população dominada, que procura 165 José William Vesentini arrasar o terreno e reconstruir tudo, a estratégia da sociedade moderna frente à natureza passa atualmente por uma transição no sentido de tornar-se semelhante ao do colonizador que conserva e utiliza as populações nativas, que procura não eliminá-las e, sim, redirecioná-las para seus valores e interesses (mesmo que, para isso, tenha também que fazer transigências ou adaptações de seus próprios valores em função da realidade do colonizado). É aí que a engenharia genética se encontra com a ecologia: para manter essa nova expansão com a criação de novos seres vivos, de novas substâncias resultantes da manipulação genética, torna-se necessário dispor de organismos selvagens ou originais, que constituem uma espécie de reserva ou de banco de dados para as presentes ou futuras necessidades de correções ou melhoramentos dos organismos já manipulados, os quais sempre necessitam de proteção do homem, de constantes introduções de novos genes em função de novas pragas ou agentes patogênicos que inevitavelmente surgem. Exemplificando, podemos dizer que a agropecuária avançada, que tem por base a engenharia genética e até dispensa grandes extensões de solo ou de espaços naturais, que prescinde mesmo das boas condições naturais, e que, por esse motivo, representa um novo patamar no domínio do homem sobre a natureza (no qual se chega até a criar novos seres vivos, algo que até a pouco era tido como atributo apenas de Deus), na realidade precisa mais do que nunca de reservas de natureza nativa ou selvagem, de grande diversidade biológica enquanto condição mesmo de sobrevivência a longo prazo. Esse fato deixa patente que nunca haverá somente a segunda natureza, que sempre deve haver reservas de primeira natureza como elemento indispensável para a sobrevivência da sociedade moderna e da própria humanidade. No seu limite, como se percebe hoje, a produção humana de uma segunda natureza necessita e até depende da existência de reservas da primeira natureza, de ecossistemas nativos. Daí ser completamente absurda aquela ideia marxista – infelizmente reproduzida por alguns geógrafos que se dizem críticos – sobre o final da primeira natureza, ou sua pouca importância na sociedade moderna, enfim, sobre um pretenso domínio absoluto do homem frente à natureza original. 166 Ensaios de geografia crítica Dessa forma, a nossa visão atual sobre a natureza passa por uma transição no sentido de considerá-la não mais essencialmente como um sistema físico sem vida e, sim, como um complexo (e um encadeamento de processos) biológico, no qual logicamente também entram os fenômenos abióticos ou físico-químicos, mas no qual o fundamental passa a ser a diversidade orgânica como essência da permanência e da dinâmica das coisas. De uma interpretação cartesiano-newtoniana, fundada na causalidade e no espaço e tempo absolutos, passamos a uma visão ecológica (um encadeamento de ecossistemas ou paisagens naturais que sempre vivem um equilíbrio instável) que valoriza bastante a probabilidade e até o acaso (o caos, a indeterminação, o papel da contingência nas mudanças), que revaloriza a vida em sua diversidade e onde o espaço e o tempo, categorias indissociáveis, são normalmente relativizados. Do universo infinito passamos à biosfera com seus limites tangíveis. Não que isso signifique que a biosfera deixe de fazer parte do universo, cuja finitude é constantemente demonstrada, mas com suas características próprias e talvez até sem paralelo no cosmos, como a verdadeira natureza-para-oHomem enfim. Isso tudo exige, não o final do estudo geográfico da natureza em si, como apregoam aqueles que pretendem reduzir tudo ao econômico ou ao “modo de produção”, e, sim, uma passagem da geografia física para uma verdadeira geografia da natureza, algo que por sinal já vem ocorrendo nos últimos anos ou décadas, como comprovam os estudos/propostas sobre geossistemas, as análises integradoras do meio ambiente ou de paisagens naturais, a renovada preocupação com a dimensão temporal nos fenômenos naturais. III Isso posto, podemos agora voltar nossa atenção para o ensino da geografia. Também, aqui, temos que considerar o atual contexto histórico-social da nova ordem mundial, da globalização e da revolução técnico-científica. Ensino de geografia para quê? Para formar cidadãos, afirma-se comumente com certa razão. Mas cidadãos de um novo mundo no século XXI, no qual o mais importante não é inculcar um 167 José William Vesentini patriotismo exacerbado (o que a geografia tradicional fazia muito bem) e, muito menos, fornecer informações (sobre unidades de relevo, rios, cidades, cultivos etc.) para serem memorizadas ou “assimiladas”. Tampouco “conscientizar” o aluno, naquela perspectiva de haver uma consciência “verdadeira” ou “revolucionária” que o professor deveria transmitir ou ensinar. Tudo isso são valores ou princípios já superados, de outros momentos históricos ou de outros papéis sociais para a escola. O mais importante hoje, na escola para a Terceira Revolução Industrial – e, provavelmente, não haja outro caminho para a modernidade neste final de século –, é ensinar o aluno a aprender, a pesquisar, a ter autonomia, pois a reciclagem constante e um novo papel mais valorizado do conhecimento, que sempre se renova, é uma característica marcante da nova força de trabalho (e até do cidadão pleno neste mundo cada vez mais globalizado) sob a revolução técnicocientífica. O fundamental no ensino da geografia, que se revaloriza com a globalização atual, é deixar o educando conhecer o mundo em que vive, desde a escala local até a regional, a nacional e a planetária. Deixá-lo conhecer o mundo em que vive não significa meramente transmitir informações e, sim, orientar pesquisas, discussões, interpretação de bons textos e mapas, elaborar e operacionalizar com frequência trabalhos de campo (estudos do meio, excursões, visitas a fábricas, museus, bairros específicos etc.). A grande preocupação do ensino da geografia, em nível fundamental e médio, não é com a unidade/dicotomia entre o social e o natural, como insistem alguns (que no fundo estão apenas levando até as crianças ou adolescentes uma velha e talvez já superada discussão da geografia acadêmica), e, sim, com o desenvolvimento intelectual do educando, com o aprender a aprender sendo mais importante que o conteúdo específico a ser ensinado. A geografia escolar, cabe recordar, é um instrumento e não um fim em si no processo de desenvolvimento intelectual dos alunos do ensino fundamental e médio. Entender isso é básico para se posicionar frente à questão da natureza no ensino da geografia. Não existe uma fórmula ou um modelo único de estudo da natureza no ensino da geografia. Tudo depende do conteúdo a ser ensinado e da 168 Ensaios de geografia crítica realidade (econômica, social, cultural, psicogenética e até espacial, no sentido de local onde residem) dos alunos com os quais se trabalha. Caso estejamos lecionando uma realidade regional, por exemplo – seja a Amazônia, o Nordeste ou o sul da Ásia –, então, é lógico que teremos que integrar (e não embaralhar ou fundir) os conteúdos referentes ao social e ao natural, sem a preocupação em um ter que vir necessariamente antes do outro, ou que cada uma dessas partes tenha exatamente 50% do espaço das aulas, o que seria ridículo e artificial na medida em que o importante é motivar o educando e fazê-lo se interessar pelo conhecimento dessas realidades e não ficar reproduzindo no ensino fundamental ou médio as picuinhas dos departamentos de geografia das universidades (nos quais, normalmente, há constantes brigas por contratações de novos professores, por maior ou menor carga horária das disciplinas de geografia física e humana, que, no fundo, nada mais são que disputas por poder). Não dá para se estudar o sul da Ásia sem fazer referências às monções e às chuvas torrenciais, por exemplo, assim como não é possível lecionar o Nordeste brasileiro sem discutir o clima semiárido e as secas (mesmo que seja para desmistificá-las enquanto fator explicador para a pobreza ou as migrações), e tampouco é possível um estudo adequado da Amazônia sem uma especial atenção para o meio natural com ênfase na floresta e sua diversidade. Só que esses elementos ou processos naturais não devem ser necessariamente o ponto de partida desses estudos e, muito menos, ocupar metade de todo o conteúdo a ser ensinado. Seria muita ingenuidade ou falta de bom senso negar que os processos sociais (a luta pela terra e os desmatamentos na Amazônia, os choques culturais-religiosos e a herança da dominação colonial no sul da Ásia, a concentração das riquezas no Nordeste e o poderio das oligarquias tradicionais) são muito mais importantes para a compreensão de todas essas realidades regionais mencionadas. Mas o estudo dos processos naturais em si não deve ser omitido, pois ele também possui a sua parcela de contribuição para o conhecimento dessas realidades. Já, no caso de estarmos trabalhando com crianças de 5a ou 6a séries, o ideal é partir do concreto para se chegar ao abstrato, a melhor forma para deixá-las descobrir ou construir os conceitos básicos da geografia. 169 José William Vesentini Nesse ensino não tem sentido pretender fundir a parte humana com a física, pois os conceitos elementares – seja o de coordenadas geográficas, de mapa, de densidade demográfica, de tipos de clima, de espaço geográfico, de lugar, de região ou de Estado-nação – são muito mais facilmente compreendidos quando estudados isoladamente, com exemplos e, na medida do possível, com experiências ou trabalhos de campo, e só depois é que podem ser interligados com os demais aspectos do real. Não se pode fazer sínteses a todo momento, pois antes delas devem existir análises. Não há nada de incorreto em se estudar a natureza em si, o clima, por exemplo (com observações das nuvens, da direção dos ventos, com visitas a estações meteorológicas etc.), ou a vegetação (inclusive com excursões a bosques ou matas para examinar as plantas, os solos, a hidrografia local etc.). O importante é, sempre que possível, estabelecermos relações dos elementos naturais entre si (numa visão globalizante da paisagem ou do ecossistema) e também deles com a ocupação humana (real ou potencial); mas existem alguns momentos em que o estudo ou explicação de um aspecto do real, isoladamente, torna-se necessário. A ideia de nunca separar o social do natural é fantasiosa, sem nexo do ponto de vista científico. Existe o momento de separar e o de unir, o momento de isolar um elemento para melhor estudá-lo e o de relacionálo com outros fatores, da mesma forma que tanto a análise quanto a síntese são imprescindíveis ao avanço do conhecimento. E não adianta ficar repetindo que a “lógica dialética” supera a lógica formal e a ciência moderna (que a tem como alicerce), pois isso é apenas um chavão que só foi levado a sério de fato na União Soviética dos anos 1930, na época áurea do stalinismo – e que, por sinal, ocasionou um enorme atraso no desenvolvimento científico soviético. A dialética não é nenhuma teoria ou lógica redentora ou messiânica, mas tão somente uma questão filosófica bastante polemizada na segunda metade do século XX. Não será a partir dela que iremos reavaliar o estudo da natureza no ensino da geografia e, sim, em função dos objetivos da geografia escolar, da realidade dos alunos e dos avanços do conhecimento científico, o qual não deve ser meramente reproduzido no ensino elementar e médio e, sim, adaptado, reelaborado em função da necessidade do educando pesquisar e construir conceitos. 170 Ensaios de geografia crítica 171 José William Vesentini 172 A atualidade de Kropotkin, geógrafo e anarquista* Piotr Ayexeyevich Kropotkin viveu entre 1842 e 1921. Foi um moscovita de família rica e aristocrática que decidiu viver modestamente de seu próprio trabalho – como geógrafo e secretário, durante alguns anos, da Sociedade Geográfica Russa, como professor, como jornalista e até como tipógrafo. Sua vasta obra, que procura incorporar ou integrar determinadas ideias libertárias na geografia, bem como sua peculiar concepção do que a geografia deveria ser, representa seguramente um dos principais capítulos ainda não escritos de uma história crítica do pensamento geográfico. Sem nenhuma dúvida, ele foi o principal omitido em quase todas as obras que discorreram sobre esta tradição discursiva. Sua fala e seus inúmeros escritos, via de regra, foram solenemente ignorados e, assim, silenciados, e isso numa proporção muito maior do que em relação a Élisée Réclus, seu grande amigo. Mesmo a “geografia crítica” francesa, que em grande parte nasceu ao redor da revista Hérodote, buscou recuperar certas ideias de Réclus – principalmente por ele ter sido francês – e deixou Kropotkin de lado. E a “geografia radical” norte-americana, que o homenageou com um número especial da revista Antipode, em 1976, na realidade incorporou muito pouco seus ideais e proposições, preferindo aquilo que ele denominava “socialismo autoritário”, ou seja, as teorias econômicas marxistas e o princípio da planificação no lugar da autogestão. * Artigo originalmente escrito como introdução para uma coletânea de textos de Kropotkin por nós organizada e publicada pela Associação dos Geógrafos Brasileiros, seção São Paulo (AGB-SP): Seleção de Textos n.13, Piotr Kropotkin, março de 1986, 80 páginas. Fizemos várias alterações e acréscimos nesta versão, mas boa parte do texto de 1986 foi mantida. 173 José William Vesentini Por outro lado, no entanto, esse anarquista russo constitui provavelmente o geógrafo que, desde Humboldt, recebeu o maior número de citações – elogios, críticas ou referências – oriundas de nãogeógrafos: inúmeros biólogos, antropólogos, filósofos, cientistas políticos, sociólogos, militantes políticos de esquerda, escritores etc., de várias partes do globo, o mencionaram. Juntamente com Proudhon, Bakunin, Godwin e Stirner, Kropotkin representa um dos cinco grandes nomes do anarquismo. Ele é sempre exaustivamente analisado nos trabalhos que abordam as ideias socialistas do século XIX e dos primórdios do XX. Ao contrário de Réclus, que costuma ser lembrado apenas de passagem – e nem sempre –, Kropotkin com frequência é objeto de capítulos inteiros nas obras de autores que analisam o anarquismo, tais como Daniel Guérin, George Woodcock, Ivan Ivakumovic, Paul Avrich, I. L.Horowitz, James Joll e vários outros. Também os estudiosos que trabalharam com as ideias urbanísticas – como são os casos de Lewis Munford e de Françoise Choay –, que tratam da metodologia das ciências – como Paul Feyerabend – ou que abordam a evolução humana – como Ashley Montagu, dentre outros –, costumam fazer longas referências a esse geógrafo e anarquista que abordou de forma original essas questões, além de outras, em seus estudos. Literatos eminentes escreveram sobre Kropotkin: desde Leon Tolstoi (que influenciou Gandhi) até Noam Chomsky, passando por autores tão diferentes como Bernard Shaw, Paul Goodman, Oscar Wilde e Hebert Read, podemos encontrar em seus livros e artigos considerações elogiosas sobre o “príncipe anarquista”. (Kropotkin recebeu esse apelido, por parte de alguns biógrafos, devido ao fato de descender da antiga Casa Real de Rurik, que governara a Rússia antes dos Romanov; todavia, desde os 22 anos de idade que ele decide não mais receber auxílio da família, passando a ser autossuficiente e inclusive contrário às ideias aristocráticas, na medida em que opta por ser um militante da luta contra as desigualdades sociais e a dominação social). E as ideias de Kropotkin exerceram uma inegável influência em vários movimentos populares com ênfase na autonomia, com especial destaque para as experiências de autogestão na Espanha revolucionária de 1936-7. 174 Ensaios de geografia crítica Qual teria sido o motivo dessa exclusão de Kropotkin na geografia? Por que esse geógrafo (e militante político), que chegou a receber uma medalha de ouro na Sociedade Geográfica Russa pelas suas investigações sobre aspectos da geografia física da Sibéria, que até o fim de sua vida preocupou-se com (e escreveu sobre) o ensino da geografia, com as relações sociedade/natureza e outros temas congêneres, acabou sendo marginalizado pela geografia acadêmica em praticamente todas as suas vertentes? Por que, até mesmo nos últimos anos e décadas, as análises ditas críticas ou radicais relutam em incorporar ou recuperar Kropotkin, preferindo normalmente a cômoda (mas incorreta) atitude de identificá-lo com Réclus, passando então a falar quase que exclusivamente deste último? Provavelmente, isso tenha ocorrido porque Kropotkin é difícil de ser enquadrado, classificado, delimitado nos moldes da epistemologia tradicional da geografia, seja ela “positivista” ou “dialética” – como muitos gostam de diferenciar, de forma maniqueísta e simplificadora. Geografia e anarquismo (ou socialismo libertário), ciência e militância a favor dos interesses populares (algo que não se confunde com o ideário de qualquer partido ou burocracia), para Kropotkin, eram elementos indissociáveis. Já em Élisée Réclus é possível, ou pelo menos é menos difícil, separar o joio do trigo, isto é, a “ciência” da “não-ciência”, a geografia do anarquismo. Suas obras libertárias, tais como o relato sobre a Comuna de Paris de 1871 (da qual participou e inclusive foi um dos líderes) ou a exposição dos princípios anarquistas, não são apresentadas como geografia e, de fato, diferem bastante dos trabalhos geográficos tais como L’Homme et la Terre ou a Nouvelle Géographie Universelle1. Em Kropotkin, ao contrário, salvo em raras 1 É bem verdade que Réclus, especialmente na obra L’Homme et la Terre (cujo título, por si só, já representa uma inversão do rótulo que simbolizava o paradigma da geografia tradicional: a Terra e o Homem), aborda temas avançados para o discurso geográfico da sua época, tais como a luta de classes, a educação e as ciências, as formas de propriedade, a colonização e a dominação dos países desenvolvidos em relação aos demais. Todavia, apesar de Réclus proclamar o seu ideal libertário na introdução e/ou na conclusão das suas obras geográficas, predomina em L’Homme et la Terre, e principalmente nos 19 volumes da sua Nouvelle Géographie Universelle, um discurso geográfico separável do anarquismo e na qual os elementos físicos, em especial as bacias hidrográficas e as unidades de relevo que servem como seus divisores, têm destaque como agentes definidores das regiões estudadas. Mas esse 175 José William Vesentini exceções – como em trabalhos de juventude, em particular sobre geomorfologia; ou na colaboração com Réclus na parte sobre a Rússia na enciclopédia deste, na qual se procurou respeitar o espírito da obra –, os aspectos geográficos e os libertários entrelaçam-se, são de fato inseparáveis. Para ele, a filosofia anarquista, vista como um ser-emconstrução, caminha junto e enleada com a ciência moderna tanto na perspectiva metodológica quanto na contribuição conjunta para a libertação da humanidade do reino da necessidade e da opressão de alguns sobre muitos2. Quando Kropotkin critica – no sentido moderno da palavra crítica: percebendo sua originalidade e seu caráter inovador na ciência e, ao mesmo tempo, apontando limitações – Darwin e especialmente a leitura de Huxley sobre a evolução das espécies, mostrando como a “ajuda mútua” (expressão que criou) é tão ou mais importante que a luta pela sobrevivência no processo evolutivo3, ou quando critica a divisão do trabalho e a hierarquização das tarefas, propondo uma reordenação societária e espacial baseada em comunas autogeridas e sem os poderes instituídos nos Estados nacionais 4, ele logra ser ao mesmo tempo anarquista e geógrafo. Ou melhor, Kropotkin – apesar de reconhecer as diferenças individuais e as aptidões de cada um, que deveriam ser respeitadas e até estimuladas – argumenta que a verdadeira liberdade pressupõe a supressão da autor, longe de representar uma “geografia descritiva” que teria se tornado ultrapassada com o surgimento da obra de Vidal de La Blache, como argumentaram alguns trabalhos sobre a história do pensamento geográfico, na realidade aponta para caminhos negligenciados até muito recentemente nesta disciplina, como demonstraram muito bem LACOSTE, Yves – Géographicité et géopolitique: Élisée Reclus (in: revista Hérodote n.22, 1981), e GIBLIN, Béatrice – Réclus: um écologiste avant l’heure? (in: revista Hérodote n. 22, 1981). 2 Cf. KROPOTKIN, P. La ciencia moderna y el anarquismo. In: HOROWITZ, I.L (org.). Los Anarquistas. Madrid, Alianza, 1975, p. 181-202. (Trata-se de uma parte da obra de Kropotkin publicada originalmente em francês no ano de 1913). 3 Cf. KROPOTKIN, P. El apoio mutuo, um factor de evolucion. Buenos Aires, Proyección, 1970. (Original, em inglês, de 1902, com o título de mutual aid). Neste importante livro, Kropotkin acrescenta algo à teoria da evolução, posteriormente reconhecido por Darwin – embora não pelo agressivo Huxley, o “buldogue de Darwin”: a ajuda mútua entre os animais. Ao mesmo tempo ele critica Marx por ser demasiado “darwinista” no mal sentido, isto é, alguém que só vê a luta de classes e não a cooperação, a auto-ajuda intra e entre as classes, além das “nãoclasses” (mulheres, etnias ou “raças” subjugadas etc.). 4 Cf. KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres. Madris, Ediciones Júcar, 1978. (Original de 1898, em inglês). 176 Ensaios de geografia crítica oposição entre o trabalho manual e o intelectual, assim como a supressão de toda compartimentação rígida que a divisão capitalista do trabalho engendra no conhecimento científico5. Além disso, Kropotkin abominava o Estado-nação (assim como qualquer forma de Estado), as fronteiras políticas, os chauvinismos e a glorificação da pátria. Ao se referir aos objetivos do ensino da geografia, Kropotkin assinalou: É tarefa da geografia mostrar que a humanidade é uma só, que as diferenças nacionais ou locais não devem servir para ocultar a imensa semelhança que existe especialmente entre as classes trabalhadoras de todo o mundo, que as fronteiras políticas são relíquias de um passado bárbaro e que os nacionalismos exarcebados, as guerras e os preconceitos entre nações ou em relação às ‘raças inferiores’ só servem para manter ou reforçar os interesses de grupos ou classes dominantes6. Como se percebe, alguns dos escopos que ele propunha à geografia colidiam frontalmente com as determinações essenciais que originaram a institucionalização da ciência geográfica. Essa institucionalização acadêmica em meados do século XIX – ou, pela ótica oficial, o “nascimento” da geografia moderna e científica –, esse lugar então conseguido junto à divisão capitalista do trabalho intelectual, fundamentalmente pela via dos patrocínios estatais, foi inseparável do engendramento dos Estados-nações e da escolarização das sociedades. Naquele contexto de rápida industrialização e urbanização, a construção dos Estados tipicamente capitalistas, isto é, os Estados nacionais, foi um processo no qual o papel desempenhado por instituições que impunham uma unidade nacional – como a escola e o exército – foi crucial. A consolidação de uma certa geografia no sistema escolar em expansão, desde as universidades até o ensino 5 Cf. KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres, op.cit., especialmente capítulo VIII, p. 142-64. KROPOTKIN, P. What geography ought to be. In: Antipode: a Radical Journal of Geography, vol.10-11, n.1-3, 1976, p. 6-15. (Ensaio foi publicado originalmente in The Nineteenth Century, Londres, dezembro de 1885). 6 177 José William Vesentini elementar, ligou-se à “naturalização” do Estado nacional, à ênfase no território em sua conceituação. O “país”, com o seu território e as suas fronteiras, com a sua população e a sua economia, com a sua organização político-administrativa “nacional” e as suas tradições (em geral inventadas), passa a ser entendido como um ente telúrico, fruto de um processo natural7. Não é por acaso que inúmeros geógrafos ilustres, tidos como fundadores de “escolas geográficas”, sempre foram bem relacionados com importantes personagens ligados à unificação nacional via expansão da escola enquanto instituição subordinada ao Estado que se redefinia e fortalecia. Por exemplo, o linguista e educador Wilhem von Humboldt, irmão mais velho de Alexander, o forjador ou sistematizador da geografia moderna, foi o escolhido pelas autoridades prussianas da época (1810) para construir um modelo de universidade – cume de todo o sistema escolar – apropriado ao Estado-nação que se unificava, ou melhor, que estava sendo construído. Vidal de La Blache, tido como o “fundador da escola geográfica francesa”, elaborou um modelo de geografia caracterizado pela sua eficácia no sistema escola francês reformulado por Jules Ferry. Também sir Halford Mackinder, o grande nome da geografia britânica no final do século XIX e inícios do XX, foi um dos responsáveis pela introdução da disciplina escolar geografia no sistema escolar do Reino Unido. Kropotkin, em contraponto, trilhou um caminho inverso. Ele também defendia a introdução e/ou expansão da geografia nos currículos escolares, mas com outros objetivos completamente diferentes da promoção do nacionalismo. Mesmo tendo origens nobres, tendo cursado as melhores escolas de Moscou, onde sempre foi o aluno mais brilhante, chegando até a receber elogios do Tzar Nicolau I, e com um eventual futuro garantido como um dos mais jovens generais do exército russo (atividade na época reservada à nobreza), Kropotkin, para decepção da família, resolve tornar-se geógrafo e, posteriormente, o que é ainda mais grave, anarquista, inimigo declarado de qualquer forma de autoridade e, principalmente, do Estado. Sua opção de vida 7 Cf. HOBSBAWN, E. e RANGER. T. (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984; e também HOBSBAWN, E. A era do capital. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 101-116. 178 Ensaios de geografia crítica acabou por levá-lo, em 1874, à prisão-fortaleza de Pedro-e-Paulo, por incentivar e participar de algumas revoltas camponesas. Dois anos depois ele consegue fugir desse cárcere, indo para alguns países da Europa Ocidental (Suíça, França e finalmente Inglaterra, onde acaba se estabelecendo), nos quais viveu durante cerca de 40 anos e onde escreveu e publicou as suas obras mais importantes. Sua concepção libertária fez com que ele acabasse sendo marginalizado pela geografia acadêmica da sua época, já que ela era organicamente ligada ao Estado8. E também quase todas as obras sobre a história do pensamento geográfico omitiram a importância de Kropotkin, o que não é surpreendente se atentarmos para o fato de que toda história linear ou evolutiva, como nos ensina Walter Benjamin, é sempre um discurso dos vencedores9. Posto que os vencidos representam sempre alternativas possíveis mas não efetivadas, o continuum da história, o procedimento historicista de estabelecer conexões casuais (como se tal processo tivesse necessariamente que resultar naquilo que ocorreu), subsume-se indefectivelmente na memória construída pelos vencedores. É nesse sentido que Walter Benjamin refere-se à cumplicidade dos vencedores de todas as épocas. Por outro lado, não é possível uma história linear “dos vencidos”, mas apenas críticas a momentos específicos nas quais se recuperam fragmentos de alternativas que romperiam com esse continuum. Dessa forma, apesar das diferenças teórico-metodológicas entre os inúmeros autores que construíram esse objeto denominado história do pensamento geográfico, todos eles reproduziram por distintos vieses o discurso do poder na medida em que fixaram essa história como um processo linear, como algo que possui um sentido unívoco. Kropotkin não tem, assim, lugar nesse tipo de construção – a não ser como curiosidade, ou então como caricatura, como “discípulo de Réclus”, o qual, afinal, não teria dito coisas muito diferentes de seus contemporâneos –, pois ele foi um dos que “combateram contra a história”, para usar uma expressão de Nietzsche e, portanto, seria uma 8 Cf. VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo, Ática, 1987, capítulo 1; e também RAFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993. 9 Cf. BENJAMIN, W. Tesis de filosofia de la historia. In: Discursos interrumpidos I, Madris, Taurus, 1972, p. 177-191. 179 José William Vesentini fala que, ao ser registrada com fidelidade, implodiria essa imagem de “evolução”, esse sentido histórico construído a partir de (pretensas) necessidades inelutáveis. Kropotkin representou, no interior do anarquismo, o principal teórico de uma corrente denominada anarco-comunismo ou comunismo libertário. Outros nomes representativos dessa tendência foram Enrico Malatesta (o mais importante após Kropotkin), Carlo Cafiero, François Dumartheray e os irmãos Elie e Élisée Reclus, entre outros. O anarquismo, que como se sabe tem como característica básica uma recusa radical do Estado (mesmo que “provisório” ou de transição) e de qualquer forma de autoridade, sempre foi marcado pela pluralidade, por tendências ou correntes bem diferenciadas, por posições extremas que vão do individualismo mais arraigado até um coletivismo social, além, evidentemente, da clássica oposição entre os que apregoam a violência, os atos terroristas, os assassinatos de personagens ligados ao poder, e aqueles que condenam esse tipo de violência e defendem um pacifismo, uma rebelião não-violenta no estilo da “desobediência civil”. Se o anarquismo foi individualista – e até simpático ao egoísmo – com Max Stirner (que chegou a exercer certa influência em Nietzsche), por outro lado, foi também coletivista ou mutualista com Proudhon, passando por posições intermediárias que se manifestam de forma especial no contraditório (mas sempre fértil intelectualmente) Bakunin10. Dentro desse emaranhado de posições, Kropotkin ganhou um lugar de destaque por dois motivos principais. Pelo seu pacifismo e recusa de métodos violentos e individualistas, pela sua crença na solidariedade humana e no progresso da ciência, ele contribuiu para que o anarquismo deixasse de ser identificado como uma doutrina de violência e destruição indiscriminadas para se consolidar como um projeto de reordenação societária pela via da ação conjunta dos povos11. E a sua inspiração baseada nas comunas, assembléias ou sovietes, possui como finalidade a criação de uma sociedade comunista (esse 10 Cf. ARVON, H. El anarquismo. Buenos Aires, Paidos, 1971; e GUÉRIN, Daniel. Anarquismo. Rio de Janeiro, Germinal, 1968. 11 Cf. WOODCOCK, George. Anarquismo – uma história das ideias e movimentos libertários. Porto Alegre, L&PM, 1983, vol.I, p. 163-70. 180 Ensaios de geografia crítica termo vem de comuna, tendo como grande exemplo a de Paris de 1871, embora Kropotkin tenha feito algumas críticas a esta pelo fato de ter aplicado, em alguns casos, o sistema representativo ao invés da democracia direta12). Kropotkin foi vítima de um grande mal teórico do século XIX: o cientificismo. Bastante próximo ao marxismo neste ponto, ele acreditava que a sociedade seria regida por “leis” – conceito inspirado na metodologia das ciências naturais da época – e que esse mecanismo oculto que determinaria o funcionamento e a evolução histórica do social tenderia naturalmente para o comunismo, que seria uma sociedade sem classes e sem Estado. Influência do iluminismo, sem dúvida, com sua concepção de “progresso” inevitável da humanidade. E também uma crença na “cientifização” progressiva da sociedade humana e da sua ação sobre a natureza. Portanto, assim como Marx, ele tinha uma concepção de “sentido” unívoco para a história, de “progresso”. Contudo, diferentemente do “socialismo autoritário” (é assim que ele denominava o marxismo), o “socialismo libertário” que propunha não fazia qualquer concessão ao Estado, nem conhecia nenhum período de transição entre o capitalismo e o socialismo. Comunismo e socialismo, dessa forma, para ele eram sinônimos. Nesses termos, o Estado não deveria ser “tomado” ou instrumentalizado por qualquer “classe revolucionária”, mas pura e simplesmente extinto. No seu lugar deveria ser construída uma nova forma de gestão do social, que iria das comunas autogeridas – isto é, com democracia direta, onde todos se conhecessem e tivessem os mesmos direitos de falar, fazer as leis, participar da administração etc. –, até uma federação mundial formada por várias nações (mas não Estados-nações), que no fundo nada mais seria do que a reunião das comunidades autônomas13. Ele manifestou uma grande sensibilidade, e isso ainda no final do século XIX, para a situação das mulheres. Inclusive essa é um das 12 Cf. KROPOTKIN, P. A Comuna de Paris, 1871. In: WOODCOCK, G. (org.). Os grandes escritos anarquistas. 13 Cf. KROPOTKIN, P. La conquista del pan. In: ZEMLIAK, M. (org.). KROPOTKIN – Obras. Barcelona, Anagrama, 1977, p. 80-126. 181 José William Vesentini críticas que fez a Marx, que só enxergava o proletariado. De nada adiantaria uma libertação do homem frente ao capital, afirmou, se as mulheres continuassem subordinadas na sociedade e na família, ocupando posições subalternas e fazendo os serviços domésticos. Ele propunha que esses serviços fossem mecanizados e que fossem realizados tanto pelas mulheres quanto pelos homens, e que aqueles tivessem também uma participação igualitária no trabalho extralar e na condução das questões políticas14. Era radicalmente contrário a qualquer forma de hierarquia e diferenças nos rendimentos, além de abominar o sistema de assalariamento. Uma das mais ácidas críticas que fez a Marx refere-se à questão da hierarquia dos rendimentos numa sociedade socialista: para Marx, deveria existir, provisoriamente, uma diferenciação salarial entre o trabalho manual e o intelectual, entre, por exemplo, um engenheiro (que teria um “custo de produção” maior devido à sua formação) e um faxineiro, que teria que ganhar menos. Kropotkin não aceitava essa diferenciação nos rendimentos e muito mesmo essa divisão do trabalho entre um indivíduo que fosse permanentemente faxineiro e outro que apenas trabalhasse como engenheiro: para ele, as pessoas deveriam realizar atividades tanto manuais quanto intelectuais e, se ocorressem longas diferenciações de atividades, estas deveriam ser produzidas “naturalmente” pelos gostos e aptidões de cada um e nunca de forma premeditada, sendo que, dessa forma, não poderiam implicar em diferenças em nível de rendimentos15. Frente a Marx, Kropotkin adota uma posição crítica, mas de respeito à obra intelectual desse autor, apesar de considerar o “pai do socialismo científico” como um “revolucionário de gabinete”, que apenas propõe autoritariamente os seus esquemas teóricos para a “classe proletária” vista como revolucionária. A seu ver, em grande parte, Marx ainda estaria ligado aos valores mentais do capitalismo (pela aceitação da divisão do trabalho e pela atitude dúbia em relação ao poder político instituído, ao Estado, entre outras coisas). Entretanto, o teórico do socialismo libertário cita com frequência O capital em suas obras, 14 15 Cf. KROPOTKIN, P. La conquista del pan, op.cit., p. 119-126. CF KROPOTKIN, P. Campos, fabricas y talleres, op.cit. 182 Ensaios de geografia crítica algumas vezes de forma elogiosa, com um respeito que advêm do reconhecimento do esforço intelectual de Marx, da dedicação deste aos estudos da realidade social. Kropotkin também foi um investigador infatigável – provavelmente, o maior dentro do anarquismo – e um crítico da neutralidade do labor científico. Daí, então, essa sua simpatia (ou identificação) para com o autor de O capital, mesmo possuindo sérias divergências com este no tocante ao significado de socialismo e de revolução. Sua obra de maior vigor teórico – Mutual aid: a factor of evolution, trabalhada de 1888 até 190216 –, por exemplo, representa um tour de force intelectual que dificilmente encontra paralelos. Nessa obra, Kropotkin cita documentos e livros de cerca de uma dúzia de idiomas diferentes, do russo ao francês, inglês, polonês, italiano e alemão, passando pelo latim e por dialetos medievais (como certas línguas eslavas ou latinas faladas no século XI em cidades que interessavam a Kropotkin devido à organização comunitária que adotavam), além de citar – e, em alguns casos, realizar – pesquisas avançadas, na época, de biologia e antropologia. Mas Kropotkin não foi apenas um teórico. Ele com frequência se disfarçava de camponês ou de operário, adotando pseudônimos, trabalhando na lavoura ou na indústria e participando, nessa condição, de revoltas e movimentos populares. Quando foi preso, em 1874, ele estava usando a identificação de “o camponês Borodin” para encobrir agitações que promovia, junto com amigos anarquistas, em bairros operários e áreas rurais vizinhas a São Petersburgo. Frente ao marxismo posterior a Marx, principalmente frente ao bolchevismo, Kropotkin assume uma posição de crítica radical, que ficou patente no seu posicionamento por ocasião da Revolução russa de 1917. Para ele, a revolução de fato ocorreu em fevereiro, ocasião em que houve uma multiplicação espontânea dos sovietes com o correlato enfraquecimento do poder do Estado. O poder “à margem do Estado”, criado pela expansão dos sovietes ou comunas de operários, marinheiros, soldados ou moradores, além das cooperativas espontâneas de camponeses, competia com a autoridade estatal e, em muitos locais, até prescindia desta. Quando os bolcheviques chegaram 16 KROPOTKIN. El apoyo mutuo, un factor de evolucion, op. cit. 183 José William Vesentini ao poder estatal em outubro, com o apoio de grande parte dos setores populares e até mesmo da maioria dos anarquistas (devido à promessa de acabar com a guerra e ao slogan oportunista de Lênin: “Todo poder aos sovietes”), Kropotkin, ao saber da notícia por um amigo eufórico, declarou, para decepção deste: “Isso enterra a revolução”17. Tal posição é compreensível, tendo-se em vista a ideia kropotkiana de revolução como uma ação popular contra (e nunca via) o Estado. A própria noção de “governo revolucionário” era para ele um absurdo, uma verdadeira contradição nos termos, uma vez que o objetivo de uma revolução social seria o de abolir o governo e fundar uma nova forma de gestão do social com base na democracia direta18. As palavras que Kropotkin proferiu em 1919, relativas à atuação dos bolcheviques pelo fortalecimento do Estado, foram exemplares: A Rússia mostrou a maneira como o socialismo não dever ser feito [...] A ideia de conselhos operários para controle da vida política e econômica do país é, em si mesma, de extraordinária importância [...] mas, enquanto o país estiver dominado por uma ditadura de partido, os conselhos de operários e camponeses perdem naturalmente o significado. Estão degradados num papel passivo idêntico ao que desempenhavam os representantes dos estados na monarquia absolutista19. Kropotkin, por sinal, já havia desenvolvido em 1905, num verbete sobre “anarquismo” que escreveu para a Enciclopédia Britânica, um conceito de capitalismo de Estado, que aplicou posteriormente à Rússia sob o domínio dos bolcheviques: Os anarquistas consideram, portanto, que entregar ao Estado todas as fontes principais da vida econômica (a terra, as minas, as ferrovias, os bancos, os seguros, etc.), 17 Citado por WOODCOCK, George. Anarquismo – uma história das ideias e movimentos libertários, op.cit., p.193. 18 Cf. JOLL, James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1977, p. 177-80. 19 Citado por CHOMSKY, Noam. O poder americano e os novos mandarins. Lisboa, Portugália, s/d, p. 33. 184 Ensaios de geografia crítica assim como o controle de todos os principais ramos da indústria, além de todas as funções que acumula já em suas mãos (educação, defesa do território, etc.), significaria criar um novo instrumento de domínio. O capitalismo de Estado não faria mais que incrementar os poderes da burocracia e o próprio capitalismo. O verdadeiro progresso consiste na descentralização, tanto territorial quanto funcional, em desenvolver o espírito local e de iniciativa pessoal, e numa federação livre que esteja construída de baixo para cima, ao invés da hierarquia atual que vai do centro para a periferia20. No início de 1919, Kropotkin enviou uma carta aberta aos trabalhadores da Europa ocidental explicando a situação russa e solicitando aos trabalhadores que pressionassem os seus governos no sentido de evitar intervenções armadas na Rússia, pois esse “cerco”, essas invasões e o apoio ocidental aos militares tzaristas revoltosos, a seu ver, iria tão somente resultar no fortalecimento dos bolcheviques (e do poder estatal), devido à união frente ao inimigo comum e ao enaltecimento da ideologia nacionalista21. Percepção sem dúvida alguma bastante perspicaz, pois o que ocorreu naquele momento foi de fato um fortalecimento do Estado russo – e, portanto, dos bolcheviques – e um correlato enfraquecimento dos sovietes e demais órgãos populares de gestão da economia ou de microespaços. Esse fortalecimento do Estado e da burocracia, junto com o atrelamento dos sovietes, das cooperativas espontâneas e dos sindicatos, ao partido único (os demais foram declarados ilegais), além da proibição de qualquer forma de greve, das violentas restrições à liberdade de imprensa, da implantação do taylorismo na indústria e do fortalecimento do exército e da polícia (a Tcheca, precursora da KGB), realmente muito se beneficiou da guerra civil e das invasões ocidentais na Rússia. A “pátria em perigo” foi uma palavra de ordem e de mobilização muito utilizada pelos bolchevistas para reforçar os 20 KROPOTKIN, P. Folletos revolucionarios II. Barcelona, Tusquets editor, 1977, p. 126, grifos nossos. 21 KROPOTKIN, P. Carta a los trabajadores de la Europa occidental. In: Folletos revolucionarios II, op.cit., p. 87-93. 185 José William Vesentini aparatos estatais de repressão e o seu controle sobre esse poder instituído que renascia após ter sido semidestruído pela revolução dos sovietes. É por demais sabido que esse período de 1918 a 1921, com um certo caos na economia e no abastecimento agrícola às cidades, com a guerra civil e as invasões, significou uma quase total liquidação do operariado russo mais avançado politicamente: a produção industrial do país caiu para menos de 20% do seu total em 1916, o operariado passa de cerca de 3 milhões, em 1917, para menos de 1,5 milhão em 1921. Nesse contexto, a preocupação de Kropotkin, em 1919, demonstra uma acuidade espantosa, uma lucidez ímpar em relação ao que estava acontecendo e ao provável futuro da Rússia. Salvo engano, somente Rosa Luxemburgo teve na mesma época uma percepção tão aguda do que ocorria na revolução russa. Para ela, a concepção leninista de partido, se levada às últimas consequências, tenderia à ditadura de uma minoria de burocratas sobre a massa. Sua percepção de “ditadura do proletariado” implicava numa afirmação radical da democracia: “A liberdade reservada apenas aos membros do partido, por mais numerosos que eles sejam, não é liberdade. A liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferentemente”22. Mas Kropotkin, ao inverso de Rosa Luxemburgo, que escreveu essa sua obra sobre a revolução russa em 1918, não raciocinava em termos de partido e de “tomada do poder” (isto é, do governo e da máquina estatal). Ele percebia claramente um antagonismo entre o projeto de revolução alicerçado em partidos (e organização nacional via Estado) e o projeto de revolução oriundo dos sovietes, das comunas, dos conselhos (com organizações locais, regionais e até mundial, com base na destruição do Estado e a estruturação de múltiplas formas de autogestão). Enfim, encerrando esta sucinta apresentação sobre a obra de Kropotkin, cabe deixar claro que, para ele, geografia e liberdade devem caminhar juntas, são mesmo inseparáveis. Uma geografia libertária? Talvez, embora esse rótulo nunca tenha sido usado por Kropotkin. Mas a sua percepção de ciência expressa um engajamento do sujeito do conhecimento na libertação dos homens frente aos imperativos da natureza e, principalmente, frente à dominação de alguns sobre muitos. 22 LUXEMBURGO, R. A revolução russa. Lisboa, Ulmeiro, 1975, p. 65. 186 Ensaios de geografia crítica Não se trata apenas do combate ao capital, da ingênua (mas politicamente “realista”, num realismo burocrático) ideia de que a socialização dos meios de produção vai trazer naturalmente a sociedade sem classes e sem exploração. Trata-se, antes de mais nada, de dar primazia às relações de dominação, de combater qualquer forma de autoridade23 e, principalmente, o Estado. Até o final de sua vida, Kropotkin foi coerente com a sua filosofia política: em fevereiro de 1917, Kerensky lhe ofereceu um cargo de ministro no seu governo, oferta recusada; e, logo em seguida, em novembro desse ano, Lênin lhe solicitou uma colaboração com o “governo revolucionário”, tendo proposto uma edição em russo das principais obras de Kropotkin, que ele recusou por não aceitar ajuda ou alianças com qualquer tipo de governo. Apesar de já velho e debilitado na época, a grande preocupação de Kropotkin na revolução russa foi contribuir para que os sovietes e as cooperativas espontâneas se desenvolvessem livremente, de baixo para cima, sem subordinação ao Estado e a qualquer partido político. Em que as ideias kropotkianas poderiam subsidiar uma geografia crítica? Ora, neste momento em que a problemática de uma construção da geografia crítica se coloca, surgem já certos percalços ou descaminhos24. Um marxismo vulgar e mecanicista em muitos casos substitui a criticidade ou tenta encobrir a ausência de uma adequada reflexão filosófica, e um certo stalinismo – mesmo que “renovado” via Althusser ou via o velho Luckács – algumas vezes serve apenas como amparo para frágeis críticas à geografia tradicional que mal conseguem esconder o desejo de dominação, de instrumentalização desse “nova geografia” para fins burocrático-estatais. Uma recuperação crítica da obra de Kropotkin – e também, é bom ressaltar, de outros autores fecundos, críticos e não autoritários, tais como Foucault, Lefort, 23 No próprio enterro de Kropotkin em 1921, em Moscou, acompanhado por cerca de 100 mil pessoas (foi talvez o último movimento de massas tolerado ou não controlado pelos bolcheviques), havia inúmeras faixas onde se lia uma das ideias mais veementemente defendidas por ele: “Onde há autoridade não há liberdade”. 24 Cf. VESENTINI, J. W. Percalços da geografia crítica: entre a crise do marxismo e o mito do o conhecimento científico. In: Anais do 4 Congresso Brasileiro de Geógrafos. São Paulo, AGB, 1984, livro 2, v. 2, p. 423-432. 187 José William Vesentini Habermas, Castoriadis25 etc. – bem que poderia contrabalançar esse dogmatismo que se faz presente, essa crença soteriológica na unidade, na uniformidade, na recusa das diferenças. Kropotkin, apesar de um otimismo acrítico em relação ao conhecimento científico e ao “progresso” da humanidade, manifestou, já no sinal do século XIX, uma salutar sensibilidade frente às diferenças e particularidades, assim como uma aguda compreensão do fato de que a questão do poder transcende (e incorpora) o problema econômico stricto sensu. Pode-se, ainda, mencionar que na vasta obra kropotkiana existe muita novidade, em relação ao discurso geográfico clássico ou tradicional, que poderia ser retomada ou recuperada. Por exemplo, a sua preocupação com os jovens e com os conflitos de gerações, a sua preocupação com o ensino e com a degradação ambiental. Sua percepção de natureza já superava a querela sobre quem domina quem, o homem ou a natureza. Para ele, era evidente que a evolução tecnológica trazia um domínio da humanidade sobre a natureza circundante; o problema que via nessa questão era que essa instrumentalização da natureza pela sociedade moderna também acarreta consequências negativas para o social e, o que considerava crucial, agrava ou se soma às diferenças sociais. ADENDO – KROPOTKIN E O ENSINO DA GEOGRAFIA Uma das grandes preocupações de Kropotkin era o ensino, que para ele deveria ser universal, gratuito e igual para todas as classes, para toda a população. Esse posicionamento, hoje, pode parecer banal e indiscutível, mas até os primórdios do século XX era comum a ideia que deveria existir um ensino diferenciado para a elite, mais completo, 25 Por sinal, é visível a proximidade de inúmeros escritos de Castoriadis – principalmente aqueles dos anos 1950 e inícios dos 60, publicados inicialmente na revista Socialisme ou barbarie, sobre o conteúdo do socialismo, as críticas à burocracia e a necessidade de autogestão – com as ideias de Kropotkin. 188 Ensaios de geografia crítica ao lado de outro mais simples para a maioria da população, para os trabalhadores manuais. Mackinder, por exemplo, advogava esse ponto de vista elitista. Kropotkin arrolou as seguintes ideias, numa conferência sobre o que a geografia (escolar) deveria ser: A criança busca em todas as partes o homem, a atividade humana, as lutas contra os obstáculos. Os minerais e as plantas deixam-na fria; ela está atravessando uma etapa em que prevalece a imaginação. Quer dramas humanos, o que significa que a melhor maneira de suscitar-lhe o desejo de estudar a natureza é pelos relatos de pescadores e caçadores, de navegantes, de enfrentamentos com os perigos, de costumes e hábitos, de tradições e migrações [...] Esta é a tarefa da geografia na primeira infância: tomando a humanidade como intermediária, desenvolver nas crianças o interesse pelos grandes fenômenos da natureza, despertar seu desejo de conhecê-los e explicálos. A Geografia deve cumprir, também, um serviço muito mais importante. Ela deve nos ensinar, desde nossa mais tenra infância, que todos somos irmãos, independentemente da nossa nacionalidade. Nestes tempos de guerras, de ufanismos nacionais, de ódios e rivalidades entre nações, que são habilmente alimentados por pessoas que perseguem seus próprios e egoísticos interesses, pessoais ou de classe, a geografia deve ser – na medida em que a escola deve fazer alguma coisa para contrabalançar as influências hostis – um meio para anular esses ódios ou estereótipos e construir outros sentimentos mais dignos e humanos. Deve mostrar que cada nacionalidade contribui com sua própria e indispensável pedra para o desenvolvimento geral da humanidade, e que somente pequenas frações de cada nação estão interessadas em manter os ódios e rivalidades nacionais [...] Existe uma terceira, que talvez o seja ainda mais: a de combater os preconceitos que nos foram inculcados em relação às chamadas “raças inferiores” – e isto numa época que tudo nos leva a crer que os contatos que vamos ter com elas vão ser cada vez mais intensos. Quando um político francês proclamava recentemente que a missão dos europeus é 189 José William Vesentini civilizar essas raças – ou seja, com as baionetas e as matanças [genocídios] – não fazia mais do que elevar à categoria de teoria esses mesmos fatos que os europeus estão praticando diariamente [notadamente na África e na Ásia, no final do século XIX]. E não poderia ser de outra maneira, pois desde a mais tenra infância inculca-se o desprezo pelos ‘selvagens’, ensina-se a considerar como se fossem verdadeiros crimes determinados hábitos e costumes dos ‘pagãos’, a tratar as “raças inferiores”, como são chamadas, como se fossem um verdadeiro câncer que somente deve ser tolerado enquanto o dinheiro ainda não penetrou. Até agora os europeus têm “civilizado os selvagens” com whisky, tabaco e sequestros; os têm inoculado com seus vícios; os têm escravizado. Porém, é chegado o mo mento em que nos devemos considerar obrigados a oferecer-lhes algo melhor – isto é, o conhecimento das forças da natureza, a ciência moderna, a forma de utilizar o conhecimento científico para construir um mundo melhor. Assim, o ensino da Geografia deve perseguir três objetivos principais: despertar nas crianças a afeição pela ciência natural em seu conjunto; ensinar-lhes que todos os homens são irmãos, quaisquer que sejam as suas nacionalidades; e deve ensinar-lhes a respeitar as chamadas ‘raças inferiores’ [...] Existe atualmente na pedagogia uma tendência no sentido de cuidar demasiadamente da mente infantil, até o ponto de frear o raciocínio individual e de restringir a originalidade; e existe também uma tendência dirigida no sentido de facilitar em demasia a aprendizagem, até o ponto de produzir uma criança desacostumada a realizar qualquer esforço intelectual próprio [...] Concedamos a nossos educandos mais liberdade para seu desenvolvimento intelectual! Deixemos mais espaço para o seu trabalho independente, sem mais ajuda do professor do que a estritamente necessária26. 26 KROPOTKIN. What geography ought to be. Op. cit. Os grifos são do autor. 190 Ensaios de geografia crítica Esse é um texto, a nosso ver, exemplar. Mesmo tendo sido elaborado em 1885, ele continua sendo de uma grande atualidade e importância. Para entendermos a sua originalidade e profundidade, temos que lembrar o contexto que o cerca. Afinal, que tipo de escola existia – e que tipo de geografia era ensinada – e o que Kropotkin propõe de novo? Com quem ele dialogava? Temos que recordar que o final do século XIX era um momento de colonialismo, de partilha da Ásia e especialmente da África pelas potências européias, que justificavam essa dominação – que implicava até mesmo em genocídios, no uso do trabalho exaustivo e compulsório, na tentativa de imposição aos colonizados dos idiomas, valores e hábitos dos colonizadores – através da ideia de que os europeus tinham a “nobre missão” de levar a verdadeira “civilização” para os demais povos ou “raças”, termo bastante empregado naquele momento histórico. Além disso, havia um clima de nacionalismos exarcebados, de ferrenhas disputas entre as potências européias por terras e mercados, algo que se refletia até mesmo no ensino. Basta lembrar dos livros didáticos de geografia dessa época, que normalmente estereotipavam os “outros”, os estrangeiros, e supervalorizavam a “sua” nação, chegando até mesmo a arrolar o número de soldados ou de navios de guerra que cada país “importante” tinha, sempre subestimando o potencial dos “eternos adversários” (por exemplo: a Alemanha e a Inglaterra, no caso da França, e vice-versa) e inflando os dados sobre a “nossa pátria”. Inúmeros geógrafos, que em grande parte eram mais viajantes ou exploradores a serviço do colonialismo, participavam intensamente dessa aventura expansionista, seja produzindo ideias pretensamente científicas sobre a superioridade do modelo civilizatório europeu, seja pela compilação de dados sobre os recursos naturais e humanos de uma dada região: mapeamentos e estudos sobre minérios, rios e lagos, relevo e solos, climas, povoamento e suas características etc. A Royal Geographical Society of London, onde Kropotkin proferiu essa fala, tinha concorridas reuniões com a presença de membros da família real, comerciantes, banqueiros, industriais interessados no alargamento de seus negócios etc. A título de parêntesis, poderíamos lembrar do filme Mountains of the Moon (As montanhas da Lua, de Bob Rafelson, de 1989 e já amplamente 191 José William Vesentini disponível em vídeo ou DVD nas locadoras), que mostra algumas dessas reuniões dessa instituição com ênfase na polêmica entre dois geógrafos (Richard F. Burton e John H. Speke) a respeito da nascente do rio Nilo. Kropotkin participou em várias dessas reuniões da Royal Geographical Society e este seu texto foi uma intervenção nessa sociedade, depois publicada numa revista científica. Uma fala, portanto, destinada não apenas aos geógrafos como também à elite britânica da época, aquela que decidia os rumos da política externa e educacional. Como se deduz facilmente, Kropotkin era uma “voz vencida”, alguém visto com um misto de benevolência e curiosidade – afinal ele era de uma aristocrática família russa e, ao mesmo tempo, de forma paradoxal, anarquista e, consequentemente, um utopista que apostava numa humanidade sem guerras e sem as intensas desigualdades de classe, de gênero, de etnias etc. Como um exilado russo que viveu em Londres durante décadas, ele polemizou com os “grandes nomes” da geografia britânica do período – a começar por sir Halford Mackinder. Mackinder apregoava, de forma “realista”, que a geografia “deve servir aos homens do Estado e aos comerciantes”, embora também deva satisfazer “os reclames do sistema escolar”27. Kropotkin, ao contrário, exorcizava qualquer tipo de serviço para o Estado e, principalmente, para os “comerciantes” (ou seja, os interesses colonialistas) e tinha uma clara aversão ao tipo de geografia descritiva e chauvinista que era ensinado nas escolas fundamentais e médias. Ele acreditava no progresso como algo inexorável – e na ciência moderna como o modelo por excelência do conhecimento – e no princípio de que os seres humanos são iguais por natureza e que as divisões em nações, classes, gêneros, grupos étnicos ou religiosos etc, seriam apenas provisórias e tenderiam a se anular com o desenrolar da história humana. Daí a sua ideia de que a educação deveria combater qualquer forma de ufanismos nacionalistas, de preconceitos ou estereótipos, qualquer tipo de racismo ou de discriminação por etnias ou “raças”; e também a sua ideia de que, ao invés de “civilizar” os asiáticos e africanos, a melhor coisa que a 27 Cf. MACKINDER, H. J. “On the Scope and Methods of Geography”. In: Proceedings of the Royal Geographical Society, IX, 1887, p. 159-60. 192 Ensaios de geografia crítica Europa poderia lhes fornecer seria a ciência moderna, o conhecimento da dinâmica da natureza como uma forma da humanidade controlar sem depredar o seu meio e construir uma sociedade mais rica e mais justa. E como um bom seguidor das ideias de Pestalozzi e de Fröbel, educadores de vanguarda na época, Kropotkin advogava um ensino que não fosse meramente discursivo e, sim, alicerçado em trabalhos de campo, em observações da realidade, em uma gradativa construção pelos educandos de conceitos, valores e atitudes. Nota-se, no final desse trecho, que reproduzimos um apelo aos professores para que deixem os alunos descobrir as coisas, para não facilitarem em demasia a aprendizagem, para que os educandos enfrentem desafios que contribuam para desenvolver sua imaginação, sua inteligência, sua criatividade. Como avaliar a importância das ideias de Kropotkin para a sua época? E qual seria a sua possível atualidade? Sem dúvida que Kropotkin deve ser visto como uma das vozes daquele rico e diversificado grupo de pensadores “de esquerda”, tal como eles se posicionavam a partir do exemplo da Revolução Francesa: os “socialistas” em geral – os anarquistas, socialistas utópicos, marxistas – da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Ele foi amigo de Élisée Reclus, também geógrafo e anarquista e um dos líderes da Comuna de Paris de 1871. Ele leu com atenção as principais obras “socialistas” desse período, desde as de Marx até as de Phoudon e Bakunin, passando pelos escritos de Owen, Fourier e outros. Mas esse grupo, convém reiterar, era extremamente heterogêneo e possuía ideias muitas vezes antinômicas. Por exemplo: Marx e também alguns outros pensadores de “esquerda” da época, ao contrário de Kropotkin, não criticavam o colonialismo europeu na África e na Ásia e até mesmo chegaram a defender as brutalidades e as matanças com o argumento de que, apesar dos pesares, isso seria “progressista” no sentido de acelerar a história – isto é, o desenvolvimento do capitalismo e, posteriormente, do socialismo – nessas regiões do globo28. E também o sistema escolar era visto por alguns (Owen, Fourier, Kropotkin) como “progressista” 28 Cf. MARX, K. “O domínio britânico na Índia”. In: Sobre o colonialismo. Op. cit., p. 47-8 e 103-4. 193 José William Vesentini no sentido de possibilitar uma maior igualdade entre as pessoas e a inculcação de novos valores e atitudes mais igualitários, sendo que, para outros (como Marx, por exemplo), a luta pela universalização e democratização do ensino – por ele tido como “burguês” – era algo superficial e até mesmo histriônico29. Kropotkin jamais professou a crença numa “classe predestinada” a fazer a revolução, o proletariado, mas, pelo contrário, sempre realçou os inúmeros “sujeitos” ou campos de lutas que deveriam ser levados em consideração com a mesma ênfase: a natureza com a sua dinâmica e o seu equilíbrio, que deveria ser respeitado (e nunca aquele desprezo absoluto pela “natureza em si” que existe em alguns socialistas desse período), as classes trabalhadoras (no plural), as crianças e os jovens, as mulheres, as etnias minoritárias e as “raças” tidas como inferiores, os povos estrangeiros, em especial aqueles mais diferentes de “nós” e, dessa forma, mais discriminados etc. Neste sentido, será que poderíamos ver em Kropotkin um pensador mais próximo daquilo que, a partir dos anos 1970, seria rotulado como pós-modernidade? O pensamento de Kropotkin, inegavelmente, tem atualidade. Quando consultamos algum bom texto sobre como deve ser a educação no século XXI – por exemplo, o excelente trabalho de Edgar Morin30 ou, então, o relatório de um grupo de pesquisadores/educadores realizado a pedido da UNESCO31 – logo notamos que há uma ênfase na educação não enquanto um mero ensinamento de conceitos, mas, sim, como atividades direcionadas para o educando aprender a aprender, a ser, a conviver (combatendo, assim, todas as formas de preconceitos) e a fazer. Mais importante do que levar o aluno a assimilar um conceito ou mesmo a aprender a escrever corretamente é fazê-lo perceber o absurdo dos preconceitos e estereótipos, é contribuir para nele desenvolver atitudes democráticas e o hábito do diálogo. E o sistema escolar nada tem de burguês, mas, pelo contrário, deve, sim, ser visto como um passaporte para a cidadania, que inclusive deveria ser global ou 29 Cf. MARX, K. Critica ao Programa de Ghota. Porto, Portucalense Editora, 1971, p. 32-3. MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo, Cortez/Unesco, 2000. 31 DELORS, J. (Org.). Educação, um tesouro a descobrir. Brasília, MEC/Unesco, 1998. 30 194 Ensaios de geografia crítica planetária segundo Edgar Morin, ou então como a maior herança ou tesouro da humanidade, como aparece naquele mencionado estudo da UNESCO. Um importante filósofo francês, estudioso da democracia moderna, já havia observado que Marx se enganou cabalmente quando menosprezou tanto a democracia quanto o ensino como instrumentos de mudança social no final do século XIX: A democracia que conhecemos instituiu-se por vias selvagens, sob o efeito de reivindicações que se mostraram indomesticáveis. E todo aquele que tenha os olhos voltados para a luta de classes, se deixasse os sendeiros marxistas (é verdade que se finge, às vezes, não mais segui-los, mas conserva-se a direção), deveria convir que ela foi uma luta para a conquista de direitos [...] Seus representantes mais ativos [da burguesia], na França, tentaram de mil maneiras atravancar sua dinâmica [da democracia em sua expansão] no século XIX. Viram no sufrágio universal, no que era, para eles, a loucura do número, um perigo não menor que o socialismo. Durante muito tempo julgaram escandalosa a extensão do direito de associação e escandaloso o direito de greve. Procuraram circunscrever o direito à educação e, de modo geral, fechar, longe do povo, o círculo das “luzes”, da ‘superioridade’ e das “riquezas”32. As propostas de Kropotkin para o ensino da geografia têm uma grande atualidade. Como ele já preconizava no final do século XIX, ensino deve levar o aluno a adquirir uma paixão pela natureza e pela sua conservação racional, e isso sem entrar num atrito cego ou mítico com a ciência moderna. Deve ter como uma de suas preocupações essenciais mostrar – ou melhor, como preconizada Kropotkin, deixar o aluno descobrir oferecendo a ele desafios – que a humanidade é uma só apesar das diferenças, que todos ou povos ou “culturas” (Kropotkin falaria em “raças”, mas esse termo era absolutamente normal na sua época) contribuem à sua maneira para a rica complexidade de toda a humanidade. 32 LEFORT, C. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 26. 195 José William Vesentini 196 A crise da geopolítica brasileira tradicional: existe hoje uma “nova geopolítica brasileira”?* Durante grande parte do século XX existiu no Brasil uma verdadeira escola geopolítica com um peso significativo nos destinos do país. A nosso ver, ela se encontra em crise desde os anos 1980. Será que existe uma “nova geopolítica brasileira”? Se existir, mesmo que potencialmente, quais seriam os seus pressupostos? Examinaremos essa ideia nas linhas a seguir. Há praticamente um consenso, entre os acadêmicos que estudam esta temática, que existiu, no Brasil, uma importante (inclusive em termos internacionais) escola geopolítica que incluiu nomes como o de Golbery do Couto e Silva (o mais famoso de todos, devido à sua forte presença nos governos militares), Mario Travassos, Everardo Backeuser, Octávio Tosta, Lysia Rodrigues, Carlos de Meira Mattos, Therezinha de Castro, José E. Martins, Juarez Távora e vários outros. Existem inúmeras teses, livros, artigos de revistas acadêmicas e até atlas geopolíticos e geoestratégicos que realçam a importância desta escola de geopolítica, tais como – apenas para citar alguns – os de Tambs, Chaliand e Rageau, Vesentini, Costa, Miyamoto, Mello e Lorot1. * Texto publicado com o título La crisis de La geopolítica brasileña tradicional. Existe hoy uma nueva geopolítica brasileña?, na revista Política y Estrategia, Santiago de Chile, n.108, outubro de 2007. 1 TAMBS, L. A. “Latin American geopolitics: a basic bibliography”. In: Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, IBGE, n.73, 1970, p. 71-105; CHALIAND, G. e RAGEAU, J. P. Atlas estratégico y geopolítico. Madrid, Alianza Editorial, 1983; VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo, Ática, 1987; COSTA, W. M. Geografia política e geopolítica. São Paulo, 197 José William Vesentini Essa escola geopolítica brasileira produziu uma rica e vasta bibliografia – sob a forma de livros, artigos e ensaios em revistas, principalmente militares, planos e projetos a serem operacionalizados pelo Estado etc. – desde a década de 1920 até os anos 1980, quando ingressou numa fase de declínio. Nosso objetivo, aqui, é mostrar sucintamente no que consistiu essa escola geopolítica brasileira, quais foram suas preocupações e temas básicos, quando e porque entrou em crise e, principalmente, como ficou o pensamento geopolítico brasileiro a partir de então. O emprego do termo escola geopolítica requer algumas explicações. É comum, por parte de vários autores o uso desse vocábulo, mas sem nenhuma preocupação justificatória. Um recente estudo voltou a empregar essa palavra, mas em parte alguma surge alguma explicação para o seu uso; existe nesse livro tão somente uma descrição – embora bastante cuidadosa – dos temas e análises desenvolvidos por três geopolíticos brasileiros daquele período que mencionamos (Castro, Golbery e Meira Mattos), uma escolha, por sinal, subjetiva e questionável2. O mesmo poderia ser dito em relação aos demais autores que empregaram essa expressão, escola geopolítica brasileira, que na verdade nunca foi muito bem explicitada. Apesar disso, a nosso ver essa denominação tem a sua razão de ser. Acreditamos que é, de fato, possível falar numa escola geopolítica brasileira devido às seguintes razões. Em primeiro lugar, porque todos os autores representativos de uma forma ou de outra dialogaram entre si, se complementaram, mesmo que eventualmente tenham discordado em determinados itens – tais como, por exemplo, na questão de como integrar o território brasileiro, seja através de rodovias, para alguns, seja por ferrovias, para outros, ou por hidrovias, para uns poucos; ou, então, na maior ou menor ênfase na região platina ou na Amazônia; ou ainda, no período da guerra fria, entre uma clara opção pelo campo ocidental e norteamericano ou uma tentativa de alcançar alguma liderança no mundo em desenvolvimento, particularmente na América do Sul e nas nações Edusp, 1988; MIYAMOTO, S. Geopolítica e poder no Brasil. Campinas, Papirus, 1995; MELLO, L. I. A. A geopolítica do Brasil e a bacia do Prata. S.Paulo, Annablume, 1997; LAROT, P. Histoire de la géopolitique. Paris, Econômica, 1995. 2 FREITAS, J. M. C. Escola geopolítica brasileira. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 2004. 198 Ensaios de geografia crítica africanas onde se fala o português. Contudo, apesar das discordâncias pontuais, existiu algo em comum a todos eles: a preocupação com as fronteiras e com a integração nacional ou territorial, uma crítica ao federalismo com uma correlata defesa de um Estado centralizado e, principalmente, uma preocupação ou uma aspiração sobre o futuro do país, consubstanciado na ideia de um “Brasil, grande potência”, seja ela regional (na América do Sul ou, eventualmente, na América Latina e no Atlântico Sul) ou mundial. Indo um pouco além, e aqui talvez resida a principal razão para o uso dessa expressão, acredito que existiu um projeto geopolítico para o Brasil, ou melhor, um projeto de reestruturação político-territorial pensado pelos geopolíticos brasileiros daquele período – dos anos 1920 aos anos 1980 – e que, se implementado, faria com que o país se modernizasse caminhando rumo ao status de uma potência regional ou até global. Destarte, aqueles geopolíticos formaram uma verdadeira escola de pensamento porque tinham um projeto em comum, tinham os seus autores clássicos ou inspiradores (Alberto Torres, Oliveira Viana e, um pouco mais tarde, Mario Travassos), além de abordarem temas comuns, que foram muito bem arrolados por Miyamoto3, quais sejam: a geografia dos transportes e das fronteiras, a mudança da capital federal para o interior e a redivisão territorial do país. Poderíamos, ainda, acrescentar um tema central, a segurança nacional (entendida essencialmente como segurança do Estado e não da sociedade), além da integração nacional, da necessidade do país se tornar autossuficiente em armamentos, da presença do Brasil no mundo e na América do Sul. Sabemos que esse pensamento geopolítico brasileiro – ou melhor, esse projeto para o país – não ficou só no papel. Da teoria ele se incorporou à prática. A partir do Governo Getúlio Vargas, que chegou ao poder em 1930, o ideário geopolítico foi sendo cada vez mais implementado. Já mostramos num estudo anterior que esse projeto geopolítico, por volta de 1927-30, se encontrou e se amalgamou com os reclames do empresariado industrial, basicamente paulista, que naquele momento começava a tomar consciência dos seus interesses específicos e dos 3 MIYAMOTO, S. Geopolítica e poder no Brasil , op. cit. 199 José William Vesentini rumos que gostaria que o Brasil trilhasse4. Também aos empresários industriais desagradava o regime federativo da chamada República Velha (de 1889 a 1930), principalmente os impostos que cada estado cobrava para os produtos oriundos dos demais. Em resumo, o governo Vargas foi o primeiro que colocou em prática, pelo menos em grande parte, algumas ideias dessa escola geopolítica e do empresariado paulista: a marcha para o oeste, a construção de estradas com vistas à integração nacional (e não mais visando tão somente interligar alguma área agropecuária ou mineradora a um porto de exportação), o final dos impostos alfandegários entre os estados e, por fim, um notável fortalecimento do governo federal – e também das forças armadas, que passaram a ter o monopólio de certos armamentos que antes eram utilizados também pelas milícias estaduais – que se sobrepôs aos estados e municípios, os quais, durante a República Velha, tiveram maior poder e autonomia. Depois de Vargas, inúmeras propostas geopolíticas foram operacionalizadas pelo governo de Juscelino Kubitscheck (1956-60), principalmente a interiorização da capital federal (e também a construção de inúmeras rodovias que permitiram a ocupação efetiva do Brasil central e parte da Amazônia) e, sem a menor dúvida, pelo regime militar que se instalou em 1964 e perdurou até 1985. Uma boa parte dos dirigentes desse regime militar era de geopolíticos, inclusive alguns presidentes da República e vários ministros. Cabe aqui, mais uma vez, recordar que o nome mais famoso foi o do general Golbery do Couto e Silva, que exerceu uma influência notória nos governos Castelo Branco (1964-67), Ernesto Geisel (1974-79) e Figueiredo (1979-85). Durante o regime militar, houve uma expansão da indústria bélica no Brasil, com fortes subsídios estatais, a ponto de o país ter se tornado num grande exportador mundial de armamentos. Não podemos esquecer que quando do término da ditadura militar no Brasil, em 1985, foi descoberto na Serra do Cachimbo, no sul do Pará, um fosso – perfurações de 320 metros de profundidade revestidas de concreto – destinado a ser o local de experiência da primeira bomba atômica do país, uma informação a princípio desmentida pelas autoridades, mas 4 VESENTINI, J. W. A Capital da Geopolítica. Op. cit., p. 123-33. 200 Ensaios de geografia crítica depois confirmada pelas análises de cientistas – inclusive pela Sociedade Brasileira de Física – e até mesmo, passados vários anos, por entrevistas de militares que participaram do programa. Também durante o regime militar ocorreu uma maior ocupação da Amazônia brasileira, com a construção de rodovias e com a criação da SUDAM (superintendência para o desenvolvimento da Amazônia), além de ter havido o término e a consolidação de Brasília como capital federal de fato5. Por que esse pensamento geopolítico, com o seu ideário, entrou em crise nos anos 1980? Por que depois da morte de Golbery, em 1987, praticamente não foram criadas novas ideias nessa escola geopolítica? (Alguns poucos sobreviventes, mesmo que aposentados ou na reserva, como o general Meira Mattos, falecido em 2007, continuaram a propagar as ideias geopolíticas clássicas, mas, a meu ver, sem se adequarem de fato ao novo mundo pós-guerra fria, às novas tecnologias da terceira revolução industrial, que, conforme esmiuçamos em outro trabalho6, mudaram inclusive os conceitos de guerra e de grande potência). Acreditamos que isso ocorreu devido a vários fatores, mas o principal deles é que ficou evidente, a partir da década de 1980, que esse projeto para o Brasil tinha pressupostos questionáveis, enfim, que ele deveria ser radicalmente repensado. Sem dúvida que também a crise do “modelo econômico” aplicado pelo regime militar contribuiu para isso. O final dos fáceis empréstimos internacionais baseados nos eurodólares e notadamente, a partir de meados dos anos 1970, nos petrodólares, junto com a consciência na nova conjuntura internacional dos anos 1980 de que a enorme dívida externa do país deveria ser paga, a par do progressivo declínio de determinados parâmetros da segunda revolução industrial – produção em massa, sem controle de qualidade, o uso massivo de uma força de trabalho não qualificada etc. – fizeram com que o “modelo” de desenvolvimento do Brasil, que havia sido a economia com maior crescimento em todo o mundo nos anos 1970, entrasse em crise. Desde os anos 1980 que o Brasil conhece medíocres 5 6 Cf. VESENTINI, J. W. Op. cit., p.163-9. VESENTINI, J. W. Novas geopolíticas. São Paulo, Contexto, 2000. 201 José William Vesentini taxas anuais de crescimento da economia, em geral inferiores à média mundial e até mesmo à média dos países latino-americanos. Também nos anos 80 ficou evidente que o crescimento econômico não foi acompanhado por melhorias sociais – ao contrário, a distribuição social da renda se tornou cada vez mais concentrada a partir da década de 1960. E, nos anos 1980 – como também, infelizmente, malgrado ter ocorrido algumas melhorias, nos dias de hoje –, o Brasil não estava preparado para as novas demandas exigidas pela revolução técnicocientífica em andamento. Um sistema escolar com uma qualidade em franca decadência desde o final dos anos 1960 – apesar de uma sensível expansão quantitativa –, que resulta numa força de trabalho em geral pouco qualificada e com baixíssimo nível de escolaridade em termos internacionais, a par de um poder aquisitivo médio extremamente reduzido para a imensa maioria da população, fez com que o país perdesse inúmeras oportunidades no mundo globalizado. Sem dúvida que isso tudo – e muitos outros processos, que não caberiam neste ensaio – contribuiu para o final do regime militar. Mas a crise da geopolítica não foi apenas um subproduto da crise desse regime; ela foi também um resultado de sua própria aplicação. Paradoxalmente, pode-se dizer que a geopolítica brasileira entrou em crise porque, tendo sido operacionalizada em grande parte, em suma, não produziu os resultados que prometia. Depois de várias décadas de implementação do ideário geopolítico, o Brasil não se transformou num país de fato moderno e desenvolvido, numa potência indiscutível na América do Sul e no mundo. O Brasil quase chegou a possuir a bomba atômica – algo que não teria alterado praticamente em nada seu status na comunidade internacional e muito menos melhorado o padrão de vida da população –, mas continua a ser um país problemático, com uma sociedade carcomida, com desigualdades sociais bem maiores que a imensa maioria das demais nações do globo, e ainda dependente de investimentos e tecnologia estrangeiros. De fato, o ideário geopolítico da escola brasileira era alicerçado numa concepção ultrapassada de potência, de segurança, de modernização e de desenvolvimento. Uma concepção geopolítica sem dúvida clássica, que poderíamos chamar de napoleônica, coerente com as ideias dos 202 Ensaios de geografia crítica “grandes nomes” da geopolítica clássica (Kjellén, Mackinder, Mahan ou Haushofer), mas completamente equivocada por não valorizar minimamente os chamados “recursos humanos”, o “poder cerebral” na denominação de alguns economistas. Havia uma visão militarista de potência, que levou em conta apenas a dimensão do território, com sua localização e suas características, o tamanho da população e sua distribuição no espaço, os recursos econômicos brutos e o poder militar; mas que ignorou a importância da educação e da melhor qualidade de vida e até mesmo do poder aquisitivo da maioria da população – isso sem falar na expansão das liberdades, fundamental para o desenvolvimento, segundo o premio Nobel Amartya Sen 7. Em suma, uma concepção de potência mundial ou regional – e não de uma sociedade democrática e com um desenvolvimento sustentável – que, sem dúvida, a nosso ver, fracassou não porque tenha sido “desvirtuada” ou aplicada de forma incorreta, como diriam alguns, e, sim, exatamente porque foi operacionalizada e não deu – nem poderia dar, em face de seus pressupostos – os resultados almejados. A partir daí, será que existe uma “nova” geopolítica brasileira, com novos pressupostos, com novas ideias, enfim, uma nova escola ou uma nova safra de bons geopolíticos? Minha resposta é não. No mundo político e governamental pode-se dizer que existe um momento de perplexidade a esse respeito. As ideias geopolíticas foram durante décadas criticadas de forma radical por praticamente todos os espectros da esquerda, que agora está no poder (seja via PT ou PSDB) e que, na verdade, nunca teve, e continua a não ter, nenhum projeto viável ou realista para o futuro do país. Teve, sim, o sonho ou devaneio de que combater o capitalismo seria suficiente para garantir a construção de uma sociedade igualitária e não dependente, sempre pensando apenas em termos de luta de classes e modos de produção, nunca em termos de relações internacionais ou do papel do Brasil no mundo. Daí a perplexidade e a falta de um projeto para o século XXI. Quanto ao mundo acadêmico, nele ocorreu, a partir dos anos 1980, uma multiplicação de estudos sobre geopolítica – ou de geografia política, de relações internacionais, de ciência política com ênfase no espaço e 7 SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 2000. 203 José William Vesentini no papel do Brasil no mundo etc. –, por sinal, com trabalhos de boa qualidade. Mas não estudos de fato geopolíticos no sentido de pensar o Brasil como potência regional ou mundial. Por sinal, uma boa parte desses estudos é histórica, isto é, propõe-se a historiar ou analisar a geopolítica brasileira, e não a recriá-la. Não existe mais nenhum projeto coerente (a não ser propostas casuísticas e oportunistas de criação de novos Estados) de reordenação político-espacial para o país. A escola geopolítica brasileira virou uma fonte de pesquisas, só que ela não existe mais. Talvez surja uma “nova escola geopolítica” (ou de geoeconomia, como dizem alguns) que refaça um projeto para o Brasil, mas, até o momento, desde os anos 1980 até esta primeira década do século, o que existe são estudos em geral isolados, que pouco dialogam entre si e, via de regra, de natureza histórica, que esmiúçam tal ou qual ideia ou proposta de ação, que comparam este e aquele autor, mas sem o caráter abrangente ou genérico, sem o pragmatismo da “velha” geopolítica. A geopolítica clássica sempre implicou numa forte identificação com o Estado, que subsumia a nação e a sociedade, que as incorporava e comandava. Sempre pensou o mundo como um palco de disputas e guerras entre os Estados, esse ator privilegiado e quase exclusivo, uma espécie de “selva” onde só os fortes sobrevivem. Muitos continuam a pensar dessa maneira, às vezes até reproduzindo ainda hoje velhas propostas (como a do Brasil desenvolver armas nucleares, voltar-se mais para o “interior”, ou numa outra leitura para a América do Sul e o mundo subdesenvolvido, deixando de lado o chamado Norte geoeconômico), mas não creio na seriedade nem no alcance dessas ideias. Dificilmente elas conseguirão lograr a influência que a escola geopolítica brasileira teve, que praticamente chegou a ser um partido político à margem da disputa eleitoral – mas disputando o poder do Estado por outras vias – e que se tornou vitorioso em vários momentos e circunstâncias. A escola geopolítica brasileira alcançou tamanha repercussão e teve tanta influência na vida política do país, em grande parte, devido ao fato de ter sido produzida quase que exclusivamente por militares – os poucos civis que colaboraram via de regra eram professores em 204 Ensaios de geografia crítica colégios militares. Os militares no Brasil, pelo menos durante boa parte do século XX formaram um grupo coeso e fortemente politizado, quase um partido político no sentido de proporem mudanças, terem um projeto, um ideário, e lutarem pela sua implementação pelo Estado 8. Podemos, talvez, afirmar que a geopolítica representou uma espécie de “porta de entrada” dos militares brasileiros na vida política, isto é, uma forma de teorizarem – e pressionarem – sobre os destinos do país, ao mesmo tempo em que aparentemente estavam apenas discutindo questões militares ou geoestratégicas, pois a geopolítica tinha os conflitos armados no seu âmago (o poder era sempre visto, antes de tudo, como relações de força) e contava com inúmeros militares entre seus autores clássicos (Haushofer, Mahan e vários outros). A partir de 1985, com a redemocratização do país, mesmo que indiscutivelmente capenga ou relativa, os militares se retraíram, passaram a se ocupar basicamente dos seus problemas corporativos – ou então das questões específicas de estratégia militar – e, ao mesmo tempo, começa a predominar uma percepção de que seriam os verdadeiros partidos políticos que deveriam se encarregar dessa tarefa de produzir ideários ou projetos para o futuro do país. Mas, para encerrar, não poderíamos afirmar que algumas ideias da escola geopolítica continuam a nortear a política do governo federal brasileiro? Certos analistas parecem sugerir essa ideia, ao afirmarem que no governo Lula a política econômica é neoliberal, uma continuação do governo anterior, ao passo que a política externa seria nova e ousada, uma espécie de atualização do terceiro-mundismo – ou meridionalismo, como querem alguns. Existem, de fato, certas evidências que poderiam corroborar essa ideia. Por exemplo: logo no início do primeiro governo Lula, em 2003, o ministro da ciência e tecnologia afirmou que o Brasil deveria buscar o conhecimento necessário para a fabricação da bomba atômica. Ele durou pouco no cargo. Mas a imprensa constantemente noticia que, nesse mesmo governo, muitos estão apregoando a ideia de que o Brasil deve retomar o intento – que existia como parte do “projeto nuclear paralelo brasileiro”, cujo grande escopo era a bomba – de fazer um submarino 8 Cf. STEPAN, A. Os militares na política. São Paulo, Artenova, 1975. 205 José William Vesentini movido a reatores nucleares. Isso, sem contar com as tentativas do governo brasileiro de liderar a América do Sul e a América Latina como um todo, que resultou em inúmeras concessões ao Peru, ao Uruguai e até – nas rediscussões sobre tarifas do Mercosul – à Argentina9. Mas esse assistencialismo internacional na América do Sul, com vistas a alcançar uma “liderança natural” – nas palavras do chanceler Celso Amorim –, logo foi atravancado pela política externa do governo Hugo Chaves da Venezuela, que dispõe de fartos recursos oriundos dos altos preços internacionais do petróleo. Mas há também os esforços diplomáticos – consubstanciados com criação do G-4 – no sentido do Brasil se tornar o país latino-americano que dispõe de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU numa possível reestruturação desta. Ou ainda o envio de tropas brasileiras para ajudar na pacificação do Haiti, em 2004. Ou uma pretensa ênfase no fortalecimento do Mercosul, como uma tentativa de se contrapor à influência norte-americana nesta parte do mundo. Ou ainda, segundo alguns, uma “nova” política externa que procura mais e mais se aproximar dos países do Sul – Índia, China, África do Sul e, principalmente, países latino-americanos – ao mesmo tempo em que, supostamente, amplia sua independência em relação a Washington. No entanto, todas essas evidências – ou algumas outras no mesmo sentido – não comprovam que a escola geopolítica brasileira continua ativa e, muito menos, a existência de um novo ideário geopolítico. São, de fato, ocorrências mais de política externa do que doméstica. Nesta última, na política stricto sensu, predomina um populismo de caráter assistencialista que, na substância, pouco difere dos antigos regimes populistas de Vargas, Kubitschek ou Jango. Na política econômica prossegue o modelo, construído no governo anterior (de Fernando Henrique Cardoso), que alguns equivocadamente denominam neoliberal: uma ênfase na busca de credibilidade perante o mercado financeiro internacional, com juros altos para atrair capitais externos e, ao mesmo tempo, conter a inflação, um notável esforço no sentido de 9 Cf. FERREIRA, O. S. “A política externa do governo Lula”. Palestra proferida em agosto de 2004 na PUC-SP e disponível in http://br.monografias.com/trabalhos/politaca-externagoverno/politaca-externa-governo.shtml. 206 Ensaios de geografia crítica ampliar o volume das exportações, com vistas a acumular divisas, determinadas políticas populistas e assistencialistas para a população mais carente etc. Mas, na política externa, segundo a leitura de alguns, existiria algo de novo e radicalmente diferente dos governos anteriores. Essa leitura de natureza dualista, que enxerga uma política interna ortodoxa e uma política externa nova ou até revolucionária, é extremamente duvidosa. Primeiro, porque ambas as políticas se imbricam, já que em grande parte a externa – por exemplo, a busca de novos parceiros comerciais – depende da interna. Segundo, porque esses “fatos novos” na política exterior – pelo menos uma boa parte deles – podem ser vistos como atitudes ou orientações isoladas, muitas vezes movidas pelas circunstâncias e não por um projeto de longo prazo. Eles não constituem um verdadeiro projeto geopolítico para o século XXI, tampouco um projeto de desenvolvimento, no sentido de se forjar uma grande potência. A bem da verdade, a maior parte desses procedimentos são já antigos – uma constante no Estado brasileiro, independente deste ou daquele governo – tal como, por exemplo, o fato de que, desde a criação da Liga das Nações, em 1919, o país já pleiteava uma vaga como membro permanente do Conselho de Segurança daquela organização. E o envio de tropas brasileiras para o Haiti, no atual governo, foi precedido pelo envio de tropas para o Timor Leste, no governo anterior. Também não se pode esquecer que o Mercosul, visto por alguns como o símbolo de uma nova geopolítica regional, foi criado em 1991 – ou seja, muito antes do atual governo – e, por sinal, nos anos recentes anda meio estagnado e necessitando de uma reformulação. Ademais, o Mercosul surgiu como uma decorrência da reprodução de uma tendência mundial, a partir da globalização e do sucesso da União Européia, de constituir mercados supranacionais em várias partes do mundo. Embora importantíssimo, ele representou mais um mimetismo do que uma nova e efetiva iniciativa local, ou seja, uma geopolítica regional mais empurrada pelos ventos da globalização do que por uma vontade própria e deliberada com vistas a unir o Cone Sul. Quanto a uma maior aproximação com alguns países do Sul – se é que a China pode continuar a ser incluída nesse grupo –, não se deve ver nisso nenhuma nova geopolítica ou mesmo uma radicalmente nova 207 José William Vesentini política externa, pois, por um lado, é consequência do notável crescimento da China, a qual, a bem da verdade, estreita seus laços com praticamente todos os países do mundo, inclusive e principalmente com os Estados Unidos e a União Européia, e não apenas com os do Sul; por outro lado, temos que lembrar que, apesar da impressão em contrário, ou dos textos panfletários, em média as economias do Sul – desde que se inclua neste grupo a Índia, a China, os “tigres asiáticos” etc. – cresceram percentualmente bem mais que as do Norte nas últimas duas ou três décadas. Com isso, várias dessas economias chamadas de emergentes – inclusive a brasileira – se tornam cada vez mais complexas e industrializadas, o que vem gerando uma nova divisão internacional do trabalho na qual os intercâmbios Sul-Sul em geral – ou seja, não apenas os do Brasil com outros países meridionais – cresceram enormemente nesse período de tempo. Por sinal, ao mesmo tempo em que amplia suas relações de troca com outros países do Sul, o Brasil, de forma insistente e pragmática, também procura – embora nem sempre consiga – encetar acordos especiais de comércio e/ou de transferência de tecnologia com a Europa, com o Japão e até com os Estados Unidos. Não existe – nem deveria existir, pois seria puro idealismo desprovido de senso de realidade – qualquer orientação no sentido de dar primazia aos países do Sul, como sonham alguns. Existe, sim, uma notável mobilização, desde pelo menos o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com vistas à abertura do mercado, especialmente das exportações, algo que tem sido particularmente bem-sucedido nos últimos anos. Bemsucedido, convém aclarar, não devido a um pretenso novo direcionamento da política externa, mas basicamente em função da crescente procura internacional por certas commodities – como a soja e seus derivados, as carnes, os minérios e seus derivados etc. – que o Brasil produz em grande quantidade e que, além do mais, conheceram um sensível aumento nos seus preços nestes últimos anos (isto é, entre 2004 e meados de 2008). Em resumo, não existe uma nova geopolítica para o Brasil no sentido de um projeto coerente para os desafios do século XXI. Uma geopolítica diferente da clássica, alicerçada em novos pressupostos: não 208 Ensaios de geografia crítica mais o poderio militar e, sim, o econômico-social, que depende fundamentalmente do softpower e dos chamados recursos humanos – educação, tecnologia, poder aquisitivo para a população em geral, influência cultural em outros países etc. – e também da expansão das liberdades, de uma maior participação dos cidadãos nas decisões e no controle dos gastos públicos, enfim, da implementação de uma democracia entendida como processo permanente10. Será que algum partido político engendrará um novo projeto com esses pressupostos? Duvido muito, pois todos eles estão preocupados apenas com cargos e vantagens – sejam legais ou ilegais –, com o uso da máquina pública em benefício pessoal e de apadrinhados. Surgirá esse novo projeto na academia? Talvez, mas é forçoso reconhecer que o mundo mudou tão radicalmente desde o final do século passado e os intelectuais acadêmicos, salvo raríssimas exceções, são demasiadamente lentos em rever as suas ultrapassadas ideias. Uma boa parte deles, no Brasil, ainda vive sob a ideologia da guerra fria, raciocinando em termos de “derrubar o capitalismo”. (Com vagas propostas de um “socialismo democrático”, que soam estranhas vindas de vozes que não admitem contestações ou críticas, que não admitem outros caminhos que não os seus, e que, de forma declarada ou disfarçada, continuam a ter como norte o marxismo-leninismo). Ou, então, de se “vingar” da derrocada do antigo mundo socialista, como se o mundo fosse um campeonato de futebol no qual neste ano ganha o time X e no ano seguinte o Y. Uma outra parte, a que se voltou para a geopolítica antes repudiada, recupera – de forma entusiasta e não crítica – determinadas ideias de geopolíticos militares como Mário Travassos, Meira Mattos ou Golbery do Couto e Silva, como se não vivêssemos em uma nova realidade na qual os pressupostos dessa geopolítica clássica já se tornaram superados. Mas o mundo intelectual é rico e complexo, pleno de aporias e controvérsias, e em alguns casos é aberto para o mundo, para pensar as mudanças. Por isso mesmo constitui um campo no qual podem surgir novas ideias ou um novo paradigma geopolítico. 10 Cf. LEFORT, C. A invenção democrática. S. Paulo, Brasiliense, 1983. 209 José William Vesentini 210 Golbery do Couto e Silva, o papel das forças armadas e a defesa do Brasil* Este ensaio procura analisar criticamente alguns aspectos do pensamento geopolítico do general brasileiro Golbery do Couto e Silva (1911-1987). Como é amplamente conhecido, Golbery foi um dos principais nomes da chamada “escola geopolítica brasileira”. Não foi o grande ideólogo dessa escola – posição normalmente atribuída a Mario Travassos1 –, mas, sem dúvida, se tornou na sua figura mais conhecida após ter participado, como uma espécie de “conselheiro do Príncipe”, dos governos militares de Castelo Branco (de 1964 a 67), Geisel (de 1974 a 79) e Figueiredo (1980-81)2. Em face do seu desempenho como uma espécie de intelectual orgânico desses referidos governos, ele * Texto elaborado em 2008 a pedido de uma revista militar chilena. Publicação no prelo. TRAVASSOS, M. Projeção continental do Brasil. São Paulo, Brasiliana, 1935. 2 O governo do general Figueiredo prosseguiu até 1985, mas Golbery solicitou a sua demissão como Chefe da Casa Civil em 1981, após a recusa do executivo em apurar com rigor o episódio conhecido como Riocentro. Nesse pavilhão, o Riocentro, milhares de pessoas comemoraram o Dia do Trabalho quando uma bomba explodiu no estacionamento. A explosão ocorreu no carro de um militar, matando o seu ocupante, um capitão lotado nos chamados “órgãos de inteligência”, na verdade um membro da “linha dura” dos órgãos de repressão da época. Ao que tudo indica, ele pretendia detonar a bomba no meio da multidão para culpar os “terroristas de esquerda”, fato que justificaria a continuidade – e maiores verbas e pessoal – para a organização na qual trabalhava. Mas, por um acidente qualquer, o artefato explodiu no seu carro e as tentativas de incriminar uma suposta rede terrorista de oposição ao regime ficaram completamente desmoralizadas. Malgrado o receio de Figueiredo em apurar com rigor o fato e punir os responsáveis, a “abertura lenta e controlada” imaginada por Golbery, com o apoio de Geisel (foram eles que escolheram Figueiredo para ser o último presidente militar), prosseguiu e, em 1985, a presidência da República no Brasil foi novamente ocupada por um civil. Veja-se, sobre isso, as análises de STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à Nova República. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 44-55. 1 211 José William Vesentini recebeu os epítetos de “satânico Doutor Go”, “mago” ou “feiticeiro”, além de outros. O papel de conselheiro ou consultor de governo, exercido por Golbery, muitas vezes foi exagerado pela mídia ou pelos comentaristas. É sempre mais fácil e cômodo criar ou hipostasiar um personagem maligno e onipotente, que manipula tudo, do que estudar os diversos grupos em oposição e diálogo numa conjuntura, enfim, o entrechoque de interesses que resulta numa ação muitas vezes diferente do pretendido por qualquer grupo isoladamente. Existe ainda a carência de fontes, ou a dificuldade de acesso a elas, inclusive hoje, passados mais de vinte anos do final da ditadura militar no Brasil. Apesar disso, não há dúvidas de que Golbery desempenhou um papel importante naqueles três governos militares citados, embora tenha sido execrado e colocado no ostracismo pelos outros dois, os governos mais “linha dura” dos generais Costa e Silva (1967-69) e Médici (1969-74). Como assinalou um influente jornalista brasileiro, no prefácio à reedição de textos variados de Golbery: “Numa época em que o poder político esteve em poucas mãos, as de Golbery estão entre as que mais poder tiveram”3. Também um acadêmico, especialista em ciência política e relações internacionais, lembrou com propriedade a importância das ideias de Golbery para a chamada “abertura controlada” que ocorreu no Brasil no início dos anos 1980, quando os militares, após uma fase transitória de distensão ou afrouxamento – e negociação a respeito de anistia de ambos os lados (governo militar e oposição) e a escolha de “pessoas confiáveis” entre os civis –, entregaram novamente o poder para os civis4. E, por fim, uma dissertação de mestrado assinalou o seguinte: Golbery foi uma das principais personagens da história brasileira, desde os anos 50. Unia perfeitamente as qualidades de intelectual e homem prático – era um intelectual orgânico da burguesia brasileira. Sua 3 GASPARI, Elio, Prefácio, in COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica e Poder. Rio de Janeiro, Universidade, 2003, p. X. 4 MELLO, Leonel I. A. “Golbery Revisitado: da democracia tutelada à abertura controlada” in MOISÉS e ALBUQUERQUE - Dilemas da Consolidação da Democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. 212 Ensaios de geografia crítica peculiaridade: agir nas sombras. Mas o fato de atuar quase sempre nos bastidores não diminui sua, às vezes, dramática importância para a história do Brasil5. A nosso ver, pode-se afirmar que toda a obra de Golbery está norteada por duas preocupações maiores: o futuro desejável do Brasil e o papel dos militares na sua concretização. O futuro do país é entendido como algo complexo, decorrente de uma quase fatalidade geopolítica – localização, tamanho e características do território (e logicamente também das fronteiras, vistas como a epiderme do território), população com seus valores, especialmente o nacionalismo, sua distribuição geográfica, sua coesão, suas lideranças – aliada a um planejamento estratégico que procure explicitar e direcionar os recursos e os esforços do país no sentido da sua “vocação geopolítica”. Justamente aqui entra o papel dos militares, que seriam os guardiões da integridade territorial, os responsáveis pela resolução dos inevitáveis conflitos externos e também pela paz interna, além dos teóricos do planejamento estratégico. Logicamente, existe toda uma filosofia da história por trás desse entendimento. O mundo todo é atomizado, compartimentado em Estados, nos quais existem as nações (mas, hierarquicamente, aqueles primeiros precederiam e dirigiriam estas últimas), numa anarquia internacional onde reinam as disputas, os conflitos, as guerras por expansão ou engrandecimento. Trata-se, fundamentalmente, de uma concepção hobbesiana segundo a qual: Francamente não entendemos [...] que alguém possa acreditar hoje nos velhos sonhos de uma paz mundial estável, fundada [...] na justiça internacional, na inatingível liberdade das nações, reconhecida e respeitada por todos, e nesse princípio tão lógico, tão moral, mas não menos irreal, da autodeterminação e absoluta soberania dos povos, o qual, nem por não se poder nele confiar de forma alguma, importa que se deixe de usá-lo e defendê-lo a todo 5 ASSUNÇÃO, Vânia N. F. O satânico Doutor Go. A ideologia bonapartista de Golbery do Couto e Silva. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC, 1999. 213 José William Vesentini custo com argumento único, que é, dos fracos contra os fortes. O ideal da ‘renúncia à guerra como instrumento da política’, proclamado ingenuamente [...], viu-se inteiramente ultrapassado pela realidade indiscutível dos fatos6. Mas o avanço da história, dos direitos democráticos e dos tratados internacionais, além da tecnologia moderna, não teria amenizado essa luta de todos contra todos? Golbery acredita que não. Da mesma forma que inúmeros pensadores gregos (por exemplo, Platão ou mesmo Aristóteles), Golbery pensa que a própria democracia – em especial com a demagogia já conhecida pelos gregos acrescida hoje pela expansão de uma imprensa livre – encerraria os perigos do uso da palavra para ludibriar as massas e chegar ao poder, desvirtuando os verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Ademais, a tecnologia moderna na verdade coloca meios mais poderosos para conquistar ou subjugar outros Estados. Em suas palavras: Os progressos surpreendentes da técnica e da industrialização acelerada rompem, pela continuidade do ar e pela permeabilidade do éter, a escala de todas as compartimentações espaciais em que se educara o espírito moderno. Abre-se a era da história continental que Ratzel predissera. Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes e os fracos dia a dia mais fracos; as pequenas nações se vêem, da noite para o dia, reduzidas à condição humilde de Estados pigmeus [...] E num mundo em que as distâncias dia a dia mínguam, em que os continentes viram ilhas ou penínsulas e os mares tornam-se apenas lagos [...] em que todas as barreiras físicas vão perdendo sua histórica significação de obstáculos intransponíveis, a vida de relação dos Estados pela interdependência [...] sobrepõe-se à sua vida própria7. 6 COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica do Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1967, p. 21-2. 7 Idem, p. 22-3. 214 Ensaios de geografia crítica O mundo, portanto, é uma espécie de “lei da selva” na qual os povos ou nações, organizados sob a forma civilizada de Estado, devem procurar sobreviver e se fortalecer. Existem ameaças tanto internas (a falta de coesão e de nacionalismo, a luta de classes, a demagogia de certas lideranças políticas) quanto principalmente externas (os outros Estados com os seus propósitos, vistos como absolutamente naturais e até inevitáveis, de expansão ou engrandecimento). Nesse sentido, deve-se elaborar um planejamento estratégico para pensar o papel do país no mundo, o seu futuro desejável. Esse futuro – ou “vocação” – deve alicerçar-se na geopolítica, isto é, como esclarece o autor, “na política feita em decorrência das condições geográficas”8. O planejamento estratégico, tendo por base uma análise geopolítica, deve indicar os Objetivos Nacionais Permanentes, deve avaliar com critério a conjuntura (interna e internacional), deve medir os potenciais e as ameaças, para, enfim, definir as diretrizes governamentais. Neste ponto, o autor envereda por uma discussão teórico-geográfica sobre a (pretensa) antinomia entre determinismo e possibilismo9, para em seguida concluir que, malgrado não mais haver lugar para um monocausalismo nas ciências sociais, não há dúvidas que o Estado é uma espécie de organismo – e, como tal, deve crescer para se desenvolver – profundamente interdependente com o seu meio geográfico, que oferece ou permite determinadas potencialidades, as quais o Estado deve despertar ou desenvolver: A antiga luta entre deterministas e possibilistas transcende os limites restritos da geografia para o âmbito da filosofia política. Mais uma vez a força telúrica do meio físico é o pomo de discórdia, segundo nela se queira enxergar a verdadeira modeladora do homem, da sociedade e do Estado [...] ou se entenda ao contrário apenas como um condicionamento mais ou menos elástico que sempre 8 COUTO E SILVA, Golbery. Geopolítica e poder, op. cit., p. 537. Já demonstramos anteriormente (ver o capítulo 2 deste livro) que essa querela entre deterministas e possibilistas, na verdade, não existiu e foi inventada por pensadores franceses (Durkheim, Vidal de La Blache e especialmente Lucien Febvre) no início do século XX. Em todo o caso, muitas vezes ela é apenas um pretexto para retomar essa antiga discussão entre a determinação das circunstâncias, inclusive o meio físico, versus o livre arbítrio humano. 9 215 José William Vesentini faculte, com maior ou menor largueza, o direito de livre escolha, a natureza como um ‘reservatório de energias’ que ao homem cabe despertar [...] De qualquer forma, porém, avaliando a conjuntura internacional à luz de objetivos nitidamente nacionais [...] os dois mestres da geopolítica prática – um marinheiro [Mahan] e o outro geógrafo e estadista [Mackinder] – o que realmente fizeram foi estratégia, não apenas estratégia militar ou naval, mas estratégia em sua mais elevada acepção. É por isso que na obra de ambos encontramos de fato não só formulados, mas debatidos e defendidos os verdadeiros conceitos estratégicos que sugeriam aos respectivos governos: Mahan [queria] afirmar a hegemonia norteamericana no continente ocidental e no Extremo Oriente, visando no futuro suceder a Inglaterra na liderança do mundo; e Mackinder [queria] conservar a supremacia britânica, impedindo a emergência no continente de um poder capaz de controlar o ‘coração do mundo’ [...] impedir qualquer aliança entre a Alemanha e a Rússia, estabelecendo entre as duas uma cintura de paísestampões, o célebre “cordão sanitário”10. Assim, caberia ao estrategista pensar as diretrizes nacionais com base numa análise das condições geográficas e da conjuntura, especialmente a internacional. Esta é a tarefa à qual se dedica o autor. Seguindo a trilha iniciada, ou pelo menos identificada, com o general Góis Monteiro11 – uma figura mitológica nas forças armadas brasileiras, ideólogo do papel político ativo dos militares, que foi a principal base de apoio militar para a chamada revolução de 1930 (isto é, a deposição pelas armas do governo de Washington Luis) e importante sustentáculo da manutenção de Getúlio Vargas no presidência de 1930 até 45, assim como da sua deposição nesta última data –, Golbery, desde que era coronel, já vinha atuando como um intelectual militar preocupado com os rumos da política. Ele escreveu o famoso Memorial dos Coronéis, de 10 Idem, p. 25-6. GÓIS MONTEIRO. A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. Rio de Janeiro, Andersen, 1932. 11 216 Ensaios de geografia crítica 1954, assinado por 81 oficiais do exército que, por meio desse manifesto, expressaram publicamente a sua insatisfação com a vida política no Brasil, protestando contra determinadas medidas legislativas, contra a inflação e a corrupção, contra o “clima de negociatas” que envolve a vida política e contra o abandono de certos quartéis, com escassez de soldados e de equipamentos, fatos que colocariam em risco a segurança nacional12. Apesar de na ocasião ter apenas a patente de tenente-coronel (portanto, inferior à de coronel), nesse mesmo ano ele ainda redigiu o Manifesto dos Generais, assinado por 30 generais, que pedia a renúncia do Presidente da República do Brasil, que novamente era Getúlio Vargas13. Já despontava, assim, a sua vocação como escriba e estrategista, como um intelectual dos militares encarregado de elaborar e redigir manifestos, ideias e planos para o país. Por sinal, as principais preocupações de Golbery sempre foram a Segurança Nacional, junto com os Objetivos Nacionais Permanentes, que aparecem com destaque em todos os inúmeros textos, depois reunidos em livros, que escreveu desde 1952 até inícios dos anos 1980. Muito mais do que o Desenvolvimento (também um objetivo a alcançar, mas sempre dentro da ordem ou da segurança) ou do que a Democracia (também valorizada, embora não a “liberal” e, sim, a “responsável”, isto é, que não coloque em risco a Segurança). Por sinal, a democracia só é apregoada pelo autor na medida em que seria um contrapeso ao arbítrio, ao totalitarismo que gera divisões e tensões e produz uma espécie de panela de pressão que pode estourar a qualquer momento. Não estaria aqui justamente a ideia na qual germinou a “abertura lenta e controlada” da segunda metade dos anos 1970 e primeira metade dos anos 1980 no Brasil? A concepção de democracia do autor deixa claro que: Na verdade, sem controle social não haveria sequer sociedade [...] O método democrático caracteriza-se na verdade por um jogo balanceado de sanções e de estímulos, nunca interditando nem abafando, antes 12 13 COUTO E SILVA, G. Op. cit., p. 503-10. Apud GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 133. 217 José William Vesentini revigorando, um pleno e salutar exercício da iniciativa individual, tornando este tanto mais benéfico e útil para o próprio cidadão quanto mais se enquadre nos objetivos visados [...] Não sou, estou longe de ser, um esquerdista, mas acho que as contradições são, até certo ponto, o ‘sal da vida’, porque elas obrigam a buscar soluções aos problemas [...] Eu também penso, como Huntington e antes dele Toynbee, que as elites precisam ter desafios pela frente para que sejam capazes de manter a criatividade a condução dos negócios do país. Elite sem contestação acaba perdendo inteiramente o poder criador14. Qual seria o papel do Brasil no mundo, de acordo com Golbery? Um papel importante em face de sua dimensão territorial (quase metade da América do Sul), de sua localização (distante da arena conturbada da Eurásia e controlando todo o Atlântico sul) e de seu efetivo populacional (cerca de metade da América do Sul). Analisando a conjuntura internacional no pós-1945, Golbery assinala que existem dois campos em luta, o “Ocidente democrático e cristão”, liderado pelos Estados Unidos, e o “Oriente comunista”, capitaneado pela Rússia ou pela União Soviética (o autor usava essas duas denominações como sinônimas). Sua opção é claramente por um alinhamento brasileiro ao “mundo ocidental e cristão”, como um guardião na América do Sul e também no Atlântico Sul (o que inclui boa parte da África), dos ideais deste mundo. Ao contrário do entendimento da imensa maioria dos pensadores que comentou essa opção de Golbery, acreditamos que ele a assumiu não por uma questão de princípio – isto é, uma ferrenha ideologia anticomunista e pró-capitalismo – e, sim, por pragmatismo, por acreditar ser esse o melhor alinhamento para os interesses nacionais do Brasil. A seu ver, os Estados Unidos representavam um campo virtualmente ganhador – mais eficiente em sua estratégia militar, com uma economia mais sólida e dinâmica –, além de geograficamente mais próximo do Brasil. Especulando um pouco, creio não ser incorreto afirmar que Golbery – como quase toda a 14 COUTO E SILVA, G. Planejamento estratégico, 2ª edição. Brasília, Editora da UNB, 1981 p.408 e p.509. 218 Ensaios de geografia crítica sua geração de militares autoritários e preocupados com a “subversão” social, com os distúrbios ou a “anarquia” que minariam a coesão da nação – até mesmo preferia um regime político do tipo soviético à democracia liberal (que detestava!), pois aquele primeiro exercia um maior controle sobre a sociedade civil15. Mas a análise geopolítica, junto com os interesses econômicos em comum (os investimentos norte-americanos no Brasil), além de outros fatores – como a luta conjunta contra o fascismo na Itália, a assunção da religiosidade cristã (apesar das diferenças do catolicismo brasileiro frente ao protestantismo norte-americano) em contraposição ao ateísmo declarado do regime soviético, o treinamento de vários oficiais do exército, inclusive Golbery, nos Estados Unidos no pós-guerra, ocasião em que ficaram impressionados com a eficiência militar daquele país etc. –, induziram o autor a apregoar um alinhamento com os Estados Unidos ou com o “Ocidente”. Um alinhamento pragmático e conjuntural, portanto, e não uma posição permanente norteada por algum princípio inquebrantável. Entretanto, não se tratava de um alinhamento passivo, de um liderado que somente espera – e eventualmente acompanha – as iniciativas do líder, e, sim, de um posicionamento ativo na defesa da América do Sul e do Atlântico Sul, uma região do globo que estaria destinada a uma hegemonia brasileira. Nas suas palavras: Se a geografia atribuiu à costa brasileira e a seu promontório nordestino um quase monopólio de domínio do Atlântico Sul, esse monopólio é brasileiro e deve ser exercido exclusivamente por nós, por mais que estejamos sem tergiversações dispostos a utilizá-lo em benefício dos 15 Evidências disso são as constantes invectivas do autor contra a democracia vista como liberal. Ademais, um colega seu – e companheiro de ministério em dois governos militares, que ele recomendou para cargos nesse regime –, o coronel Jarbas Passarinho, que em 1984 chefiou a delegação brasileira nas cerimônias do funeral de Yuri Andropov, ficou encantado com o que viu na União Soviética. A ordem aparente e sem contestações (greves proibidas, sindicatos controlados, um partido único no poder, uma polícia política supostamente eficiente e bem informada sobre tudo) encantou o coronel, que chegou a afirmar – algo amplamente noticiado nos jornais na época – que “é exatamente isso que ele sempre sonhou para o Brasil”. 219 José William Vesentini nossos irmãos do norte, a quem nos ligam tantos e tão tradicionais laços de amizade e de interesses, e em defesa ao mesmo tempo da civilização cristã, que é a nossa, contra o imperialismo comunista de origem exótica [...] E se a velha Inglaterra soube reconhecer, desde cedo, o destino norte-americano, facilitando-lhe uma política de mãos livres no continente ocidental, à sombra protetora da esquadra britânica [...] não parece demais que os EUA reconheçam também aquilo que devemos defender, a todo custo, como um direito inalienável, traçado pela própria natureza no mapa do Atlântico Sul16. Por sinal, o Brasil é visto como uma potência regional ao mesmo tempo marítima (no Atlântico Sul) e continental (na América do Sul). Nesse contraponto existiria inclusive um dilema brasileiro: “É que entre essas duas se situa um grande dilema brasileiro, muito mais importante amanhã do que mesmo hoje – o do antagonismo entre as forças continentais e as atrações marítimas”17. O Brasil deveria se preparar para agir – principalmente contra as ameaças da expansão socialista – tanto na América Latina, especialmente na América do Sul, como também na África, a começar pelas então colônias de Portugal. Um apoio à luta maior, à guerra fria liderada pelos Estados Unidos. Mas com cautela, sem ser subordinado em demasia, pois não se admite qualquer ingerência estrangeira, nem mesmo norte-americana, no Brasil e no seu entorno: Mas, na hipótese acima figurada [expansão comunista na América do Sul] não só não devemos contar com qualquer apoio exterior, antes, tudo devemos fazer para que este venha a ser inteiramente desnecessário, evidentemente supérfluo e até mesmo injustificado, a fim de que a ocupação estrangeira, sob pretextos quaisquer ou quaisquer razões por muito ponderáveis que sejam, não se torne a preço desmesurado de uma segurança que não 16 17 COUTO E SILVA, G. Geopolítica do Brasil, op. cit., p. 52, grifos nossos. Idem, p. 61. 220 Ensaios de geografia crítica tenhamos sabido manter como homens [...] E, além disso, prepararmo-nos, na América Latina, para dar uma mão a qualquer de nossos vizinhos na defesa de um inigualável patrimônio comum, contra quaisquer investidas exóticas18. Em síntese, a defesa do Brasil é pensada por Golbery no contexto do mundo pós-1945 até inícios dos anos 1980, qual seja, o mundo da guerra fria e da luta do capitalismo contra o pretenso expansionismo soviético. Ele não prestou muita atenção à Amazônia, embora na citação anterior ela fique implícita quando se refere à “defesa de um inigualável patrimônio comum”. Ele também não se referiu à expansão do crime organizado e em especial do narcotráfico, praticamente inexistente ou pouco visível até a sua morte, em 1987. Tampouco fez qualquer menção aos problemas territoriais e diplomáticos ocasionados pelos milhares de brasileiros que adquiriram terras nas faixas de fronteira no território do Paraguai, os “brasiguaios”, atualmente ameaçados por invasões de movimentos sem terra e/ou por desapropriações no país vizinho; assim como não viu ou preferiu se calar sobre os milhares de brasileiros que, da mesma maneira, adquiriram terras na região de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Quanto à Argentina, tradicional rival ou adversário do Brasil na América do Sul, em especial no Cone Sul, o autor também não dedica nenhuma atenção especial. O contrário é que é verdadeiro, pois a obra de Golbery repercutiu bastante nos geopolíticos do país vizinho19. Ele considerava as fronteiras no sul e sudoeste do Brasil, com a Argentina, Uruguai e Paraguai, como já consolidadas, oferecendo poucos riscos, dando maior atenção para as fronteiras a oeste e ao norte, prescrevendo novas etapas de ocupação demográfica e militar do território em 18 Idem, p. 194. Um general argentino não esconde a sua contrariedade quando analisa a obra de Golbery: “El autor brasileño se muestra como um pensador de imaginación y hábil expositor [...] Pero lo que es grave desde un punto de vista geopolítico es que sua análisis, especialmente cuando se refiere a la América del Sur o al África Suroccidental, es francamente tendencioso. Lo que sucede es que Golbery trata de presentar al Brasil como el núcleo central de la América del Sur, área este sobre cual debe ejercer um ‘destino manifesto’ que non choca con los intereses norteamericanos.” (GUGLIALMELLI, J. E. Geopolítica Del Cono Sur. Buenos Aires, El Cid Editor, 1979, p. 212. Os grifos são do autor). 19 221 José William Vesentini direção do centro-oeste e ao norte do país (a Amazônia). Mas o maior risco no tocante à defesa do Brasil, a seu ver, era o expansionismo soviético com a sua busca de possíveis aliados na América do Sul. Acreditava piamente que a geografia reservou ao Brasil um destino grandioso, de potência regional na América do Sul e de partes da África por via do Atlântico Sul, cabendo apenas aos brasileiros – em especial ao governo – não deixar escapar as oportunidades criadas pela sua geopolítica. 222