Uma seleção de citações de Johan Huizinga
Transcrição
Uma seleção de citações de Johan Huizinga
Uma seleção de citações de Johan Huizinga ― Consideradas três obras: Nas sombras do amanhã; O outono da Idade Média e Homo Ludens. Seleção e ocasionais comentários por João Borba (em Abril de 2013). Huizinga é famoso sobretudo como historiador (um dos mais importantes e influentes do mundo no que diz respeito a métodos historiográficos e, quanto aos conteúdos, no que diz respeito à passagem da Idade Média para o Renascimento). Apesar disto, as presentes citações foram selecionadas de modo a ressaltar acima de tudo não os resultados de sua pesquisa histórica, mas o ponto de vista, a perspectiva geral (ou abordagem) de que ele parte no conjunto dos seus estudos e posicionamentos. A ideia é refletir o que há de filosófico no conjunto das reflexões desse grande historiador ― cujas aproximações com a filosofia são mesmo notórias. As citações estão distribuídas pelos sumariados abaixo: Sumário Sobre a Europa entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundiais..............................................................................2 Sobre o conceito de Revolução............................................................................................................2 Sobre a História da humanidade em geral e sobre os estudos de História..........................................3 Sobre Cultura e Natureza......................................................................................................................9 Sobre o conhecimento e o desenvolvimento humano......................................................................13 Sobre o poder da mídia, o controle e a passividade do público........................................................16 Sobre ética..........................................................................................................................................17 Sobre o poder do Estado....................................................................................................................20 Sobre o mito do herói.........................................................................................................................21 Sobre a diferença entre o jogo e a imaturidade, ingenuidade ou comportamento pueril.............................................................................................23 Sobre o jogo e o autêntico espírito lúdico..........................................................................................25 Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico............................................................29 Sobre a linguagem, o simbolismo e o pensamento simbólico (mágico-mitológico)...................................................................................35 Sobre o misticismo e os limites da linguagem ...................................................................................37 Sobre arte, poesia e literatura em geral.............................................................................................39 Observação: Esses temas (listados no Sumário) acompanham em alguma medida os temas anunciados pelos próprios títulos dos capítulos dos 3 livros de Huizinga considerados ― Nas sombras do amanhã, O outono da Idade Média e Homo Ludens ―, mas não completamente, visto que a ideia era justamente a de cruzar citações dos três livros organizando-as segundo os temas tratados, para dar uma visão mais global do conjunto dos posicionamentos do autor. Um exame mais cuidadoso, no entanto, deve considerar as mudanças de posicionamento do autor de época para época (e portanto de livro para livro). Por exemplo, em Nas sombras do amanhã ― obra que tem diversas passagens sob marcante influência platônica ― ele demonstra grande pessimismo em relação aos traços de infantilidade que encontra nas culturas humanas; e ali não encontramos ainda muito nítida a imensa valorização do lúdico que vemos mais tarde, em uma obra bastante posterior como Homo Ludens (de 1938). No entanto, O outono da Idade Média, ressaltando a ludicidade nas artes e formas de vida da Baixa Idade Média, e tendo sido escrito em época próxima à de Nas sombras do amanhã, é um livro que já anuncia perceptivelmente essa valorização posterior do lúdico. 1 Sobre a Europa entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundiais Vivemos num mundo dementado. Disso estamos bem certos. Para ninguém seria surpresa se amanhã a loucura cedesse ao frenesi, e este deixasse a nossa pobre Europa num estado de torpor, de perturbação mental, com engenhos ainda a rodar, bandeiras tremulando ao vento, mas o espírito morto. Por toda parte há dúvidas quanto à solidez da nossa estrutura social, vagos receios do futuro iminente, um presságio de que a nossa civilização trilha o caminho da ruína. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 7. Capítulo Ambiente de decadência. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Sobre o conceito de Revolução Desta velha e sempre renovada representação duma simples revulsão ou reversão da sociedade, nasceu o conceito de Revolução. O termo revolução derivou-se da rotação duma roda. No fundo da imagem estava sempre a Roda da Fortuna. No sentido político o termo fica de início limitado a uma simples e imediata reviravolta, como por exemplo em 1688. Não é senão depois do grande acontecimento se 1789 que o conceito de revolução, no decurso do século XIX, vem a ser imbuído de todo o significado que o socialismo lhe havia de dar. Revolução, como conceito ideal, preserva sempre o conteúdo primário do pensamento original — aperfeiçoamento súbito e duradouro. Esta representação, consagrada pelo tempo, duma revulsão da sociedade, abrupta e conscienciosamente desejada, é das que o espírito do nosso tempo se recusa a aceitar, baseado no moderno e bem fundado conhecimento, que considera tudo o que se encontra no homem e na natureza como produto de numerosas forças interdependentes, atuando a longo prazo. No processo de forças sociais em ação recíproca, o espírito vê na ação da vontade humana um simples fator de significação reduzida, sem por esse motivo professar a aderência a um determinismo rígido. Agrupando-se eficientemente e fazendo uso das suas energias, com o melhor resultado possível, o homem pode tirar vantagem das forças naturais e sociais que regem os processos dinâmicos da sociedade. Pode influenciar certas tendências do processo, mas não alterar-lhe o sentido principal. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 16-17. Capítulo Receios de antes e de agora. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 2 Sobre a História da humanidade em geral e sobre os estudos de História Há casos em que toda uma civilização pereceu, e há outros em que marchou triunfante a caminho de novas formas de existência. Podemos, pois, ver o caso histórico como um processo acabado. E, embora uma tal autópsica histórica ao passado não ofereça a promessa de uma cura do presente, nem talvez mesmo dum prognóstico, nenhum método imaginável, que nos possa levar ao conhecimento profundo da natureza do mal, deverá deixar de ser tentado. (...) Poder-se-á perguntar: mas no decorrer desses vinte séculos a civilização não esteve sempre num estado de crise? Não é precária em último grau toda a história da humanidade? Sem dúvida, mas isso é sabedoria para declamação filosófica, útil na ocasião própria. Vistos pelo prisma histórico, contudo, certos complexos de acontecimentos passados apresentam-se como períodos de intensa transformação cultural delimitada com maior ou menor clareza. Tais são: a transição da Antiguidade para a Idade Média; da Idade Média para os tempos modernos; e do século XVIII para o século XIX. (...) Seja o que for que a comparação histórica nos possa fornecer para uma compreensão da presente crise, nenhuma garantia nos pode dar a respeito das suas consequências. A conclusão segura de que, de qualquer maneira, tudo irá pelo melhor, não é afiançada por qualquer paralelo histórico. Continuamos a correr para o desconhecido. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 19-20 e 26. Capítulo A crise atual comparada às do passado. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] As categorias ficção e história, no seu significado simples e corrente, já não se distinguem com clareza. (...) A voga do conceito "mythos" é o exemplo mais flagrante. Aceita-se uma representação em que são propositalmente incluídos os elementos "desejo" e "fantasia", mas que apesar disso se diz representar o "passado" e servir de teor de vida, confundindo assim irremediavelmente as esferas do conhecimento e da vontade. O pensamento "condicionado pela existência", na sua luta pela expressão, deixa que o fantasioso da alegoria, sem o freio do raciocínio crítico, penetre no argumento lógico. Se a vida não pode se exprimir em termos de lógica, o que todos têm de admitir, então chega a vez ao poeta de fazer a sua aparição onde falha a aproximação lógica. Assim tem sido desde que o mundo conheceu a arte da poesia. No processo do desenvolvimento cultural, porém, pensador e poeta puderam ser bem diferenciados e a cada um foi concedido o seu domínio próprio. Ultimamente a nova "filosofia da vida" tem revelado certa tendência para reincidir numa confusão desnorteante de meios de expressão lógicos e poéticos. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 90-91. Capítulo O culto da vida. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 3 Quando analisamos os últimos dois mil anos e neles distinguimos as unidades históricas chamadas civilizações, os períodos de florescimento parecem ter sido sempre relativamente curtos. Tanto quanto parecem indicar os nossos imperfeitos meios de medida, raras vezes vão além de dois séculos. Para a civilização helênica são os séculos V e IV antes de Cristo; para a civilização romana o primeiro século antes e o primeiro depois de Cristo (embora aqui haja motivo para divergência de opiniões); para o medievalismo ocidental os séculos XII e XIII; para a Renascença e Barroco os séculos XVI e XVII. Por mais vagas e mesmo arbitrárias que tais delimitações tenham de ser, as fases específicas de maior desenvolvimento não são longas. (…) contra tudo o que parece pressagiar declínio e ruína, a humanidade contemporânea, à exceção de alguns fatalistas, opõe unânime e firmemente esta enérgica declaração: mas não queremos perecer (…). Nós não esperamos o fim do mundo [como parece tender a ocorrer em tempos de declínio cultural]. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 198. Capítulo Perspectivas. O novo brota sempre do velho. Mas os vivos não sabem nem podem saber o que é verdadeiramente novo e que está destinado a triunfar. Toda grande ação é seguida duma reação. Se a reação se mostra lenta na sua chegada, tenhamos paciência e aguardemos a história. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 200. Capítulo Perspectivas. Na resultante de qualquer época há sempre um componente que é depois considerado como novidade, o inesperado., o imprevisível. Esta incógnita pode ser sinônimo de ruína, mas enquanto a perspectiva pode hesitar entre ruína e salvação, é nosso dever ter esperança. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 200-201. Capítulo Perspectivas. Toda época anseia por uma vida mais bela. Quanto mais profundos o desespero e a consternação diante de um presente incerto, tanto maior será esse desejo. (…) É bem verdade que cada época deixa mais rastros de seu sofrimento do que de sua felicidade. Suas desgraças se tornam sua história. Uma convicção talvez instintiva nos diz que a soma total de paz e de felicidade destinadas às pessoas não pode variar muito de uma época para outra. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 2 - O anseio por uma vida mais bela. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 47. 4 O anseio por uma vida mais bela sempre teve três caminhos que apontavam para esse objetivo distante e feliz. O primeiro levava diretamente para fora do mundo: o caminho da renúncia. Aqui parece que a vida ideal somente pode ser alcançada do outro lado, mediante a libertação de tudo o que é terreno; toda a atenção dispensada ao mundo atrasa a prometida bem-aventurança. Todas as grandes civilizações trilharam esse caminho; o cristianismo já inculcara nos homens, de forma muito veemente, o ideal de renúncia como propósito da vida individual e base da cultura, o que por muito tempo impediu quase completamente o s homens de trilhar o segundo caminho. Esse segundo caminho era aquele que apontava para a melhora e o aperfeiçoamento do próprio mundo. A Idade Média mal conheceu essa aspiração (…). Nada contribuiu tanto para essa atmosfera de temor à vida e de dúvida em relação aos tempos futuros quanto a ausência de uma determinação firme de tornar o próprio mundo melhor e mais feliz. Naquele mundo não havia qualquer promessa de coisas melhores. Quem ansiava por algo melhor, mas não conseguia se despedir do mundo e de toda a sua magnificência, só podia cair em desespero (…). No momento em que se envereda pelo caminho de uma melhora positiva do próprio mundo, tem início uma nova era, na qual a coragem e a esperança tomam o lugar do temor à vida. Na verdade, esse conceito só irá surgir no século XVIII. O Renascimento extraiu a sua noção enérgica de vida de outras formas de satisfação (...). O terceiro caminho para um mundo mais belo é o do sonho. É o caminho mais fácil, mas que mantém o objetivo igualmente distante. Quando a realidade terrena é tão perdidamente trágica e a renúncia ao mundo tão difícil, não nos resta nada além de colorir a vida com um brilho claro, vivê-la no país dos sonhos, temperar a realidade com o êxtase do ideal. Basta um tema simples, um único acorde, para se deixar levar pela fuga fascinante: um olhar para a felicidade sonhada de um passado mais belo já é suficiente, um olhar para o heroísmo e sua virtude, ou então para os alegres raios de sol da vida na natureza (…). (…) a fuga da dura realidade para um mundo de aparência bela (…) atinge a forma e o conteúdo da vida comunitária do mesmo modo que as outras duas aspirações, e quanto mais primitiva for a cultura, mais forte isso se torna. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 2 - O anseio por uma vida mais bela. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 54-56. 5 OBSERVAÇÂO: A citação a seguir, da página 56 desta edição brasileira (traduzida por Francis Petra Janssen), lamentavelmente não apresenta todo o conteúdo que aparece em outras edições, deixando passar em branco uma brilhante aplicação do platonismo aos estudos de História por parte de Huizinga, acrescentada e corrigida mais adiante pelo próprio autor com recurso ao marxismo. Essa aproximação de Huizinga em relação ao platonismo, na verdade fundada em passagens de Platão interpretadas fora de contexto e em sentido discutível, tenderia a me colocar em dúvida quanto ao meu antiplatonismo, se não fosse o fato de que o que vejo aí é realmente uma “reinvenção” seminietzscheana de Platão por parte de Huizinga em um sentido inteiramente novo... e não de fato o Platão original ― Cf. HUIZINGA, Johan: O declínio da Idade Média: um estudo sobre as formas de vida, pensamento e arte em França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV, Lisboa: Pelicano/Casa Portuguesa, p. 39, tradução de Augusto Abelaira. Em meu entendimento, o modo como Huizinga lê Platão uma valorização do lúdico (segundo a edição portuguesa), que transparece nesta e em outras passagens de diferentes obras suas, acabaria conduzindo a uma valorização muito maior do elemento passional na alma humana, e a uma considerável relativização da noções platônicas de verdade e supremo bem, o que não me parece condizer com o espírito do platonismo (que rejeito) quando se consideram suas atitudes em relação aos (bons e sempre injustiçados) sofistas ― alguns deles sim, muito mais ajustados ao que Huizinga pretende ver em Platão. A princípio, a falta de quase todo esse parágrafo de Huizinga se deve, provavelmente, não a alguma falha da edição brasileira aqui utilizada, que parece consideravelmente cuidadosa, mas à edição consultada pelo tradutor, pois como a própria edição nos esclarece, o próprio Huizinga foi fazendo inúmeros acréscimos e correções a cada nova edição do livro. Na tradução brasileira, seja em função de correções de Huizinga conforme a edição consultada, seja por interferência do tradutor, as referências claríssimas ao platonismo quase desaparecem. Na verdade as diferenças entre esta tradução brasileira e a portuguesa são consideravelmente grandes do início ao fim (para não dizer assustadoras, a ponto de as duas serem quase irreconhecíveis uma perante a outra)... a começar pelo título (mais belamente traduzido ao que parece na brasileira, mas de modo talvez incompleto). Há muitas explicações que se perdem na passagem da edição portuguesa para a nossa, embora a nossa seja mais extensa. Seria preciso verificar qual o sentido geral das diferenças entre uma edição e outra. Isto ficará mais claro quanto cotejarmos parágrafo a parágrafo as duas edições por inteiro para verificarmos as diferenças com mais cuidado. Seguem abaixo, por enquanto, para que o leitor possa compará-las e ter uma ideia do que estou dizendo, as duas traduções da referida citação. A edição. 6 Na edição brasileira: Seria o terceiro caminho para um mundo ideal, a fuga da dura realidade para um mundo de aparência bela, apenas uma questão da cultura literária? Sem dúvida é mais do que isso. Ele atinge a forma e o conteúdo da vida comunitária do mesmo modo que as duas outras aspirações, e quanto mais primitiva for a cultura, mais forte isso se torna. O impacto dessas três mentalidades na vida real difere bastante. O contato mais próximo e consistente entre as atividades da vida e o ideal constitui-se quando a ideia aponta para a melhoria e a perfeição do mundo em si [que é a segunda das três mentalidades]. Nessas instâncias a ousadia e a força inspiradora desaguam no próprio trabalho material, a realidade imediata é carregada de energia; realizar a obra da sua vida é também um modo de lutar pelo ideal de um mundo melhor. Se quisermos, também aqui o sonho de felicidade é o motivo inspirador. Até certo ponto, toda cultura almeja tornar real um mundo imaginário mediante a recriação das formas sociais. Ao passo que em outras instâncias isso somente se refere a uma recriação espiritual, a proposição de uma perfeição ilusória, oposta à dura realidade que se quer esquecer, aqui o objeto do sonho é a própria realidade. É ela que se quer remodelar, purificar e melhorar; o mundo parece estar no caminho certo para o ideal, basta o ser humano continuar trabalhando. A forma de vida ideal parece bem pouco distanciada da existência ativa; só existe uma ligeira tensão entre realidade e sonho. É consideravelmente pouco o que se exige da arte de viver ali onde já se cansou de aspirar pela mais alta produção e pela divisão justa dos bens, onde o conteúdo do ideal é prosperidade, liberdade e cultura. Não há mais necessidade de acentuar que o ser humano é um ser nobre (nobleman), ou um herói, ou um sábio, ou um cortesão de boas maneiras. No caso da primeira das três mentalidades, a influência na vida real é bem diferente: trata-se da renúncia ao mundo. O sentimento de falta da felicidade eterna torna o desenvolvimento e a forma da a existência terrena indiferentes, ainda que a virtude seja cultivada e mantida. Aceitam-se as formas de vida e as da sociedade pelo que são, mas tenta-se permeá-las com uma moralidade transcendente. Com isso, a rejeição do mundo pela sociedade terrena não exerce uma ação puramente negativa de abnegação e renúncia, mas também difunde-se em trabalho piedoso e caridade. E como é o impacto da terceira mentalidade sobre a vida: a busca por uma vida mais bela segundo um ideal sonhado? As formas da vida são recriadas em formas artísticas. Mas não apenas nas obras de arte em si se expressa o sonho de uma vida bela, pois ela quer enobrecer a própria vida com jogos e formas. E é justamente aqui que se fazem as maiores exigências à arte de viver das pessoas, exigências que somente podem ser satisfeitas por uma elite, em vida lúdica artificiosa.Nem todos podem viver como heróis e sábios: é uma diversão cara colorir a vida com uma tintura heroica ou idílica e, além disso, nem sempre dá certo. A ânsia pela concretização do sonho de beleza nas formas da própria sociedade tem um caráter aristocrático impresso no seu vitium originis. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 2 - O anseio por uma vida mais bela.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 56-57 [Nesta edição consta uma bibliografia de Huizinga segundo a qual o livro teria sido publicado pela primeira vez em 1919. Consta também uma lista de edições estrangeiras do livro, na qual no entanto essa edição original em holandês não está presente, nem a edição portuguesa pela Editora Ulisseia, baseada na edição Penguin Books (também não apresentada), embora conste uma outra edição portuguesa ― pela Editora Verbo ― traduzida pelo mesmo Augusto Abelaria da versão da Editora Ulisseia.] 7 A mesma citação na edição portuguesa: Mas seria apenas uma questão de literatura, esse terceiro caminho para a vida sublime, esse vôo da acre realidade para a ilusão? Era de certeza algo mais do que isso. A História presta pouca atenção à influência destes sonhos de vida sublime na civilização e nas formas da vida social. O conteúdo desse ideal é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário. Toda a inspiração para elevar a vida a esse nível, seja apenas na poesia, seja na prática, é uma imitação. A essência da cavalaria é a imitação do ideal do herói, assim como a imitação do antigo sages é a essência do humanismo. Mais forte e mais duradoura de todas é a ilusão de um regresso à natureza e aos seus inocentes prazeres pela imitação da vida pastoril. Desde Teócrito ela nunca deixou de dominar a sociedade civilizada. Ora, quanto mais primitiva é a sociedade maior necessidade de pôr a vida real de acordo com um padrão ideal transborda para além da literatura e inunda a esfera do cotidiano. O homem moderno é um trabalhador. Trabalhar é o seu ideal. O vestuário do homem moderno é, desde o fim do século XVIII, essencialmente uma veste de operário. Desde que o processo político e a perfeição social passaram a ser fatores predominantes no consenso geral e se busca o próprio ideal na mais elevada produção e na mais justa distribuição dos bens, deixa de ser necessário imitar o herói ou o sages. O próprio ideal se democratizou. Nos períodos aristocráticos, por outro lado, ser representante da verdadeira cultura significa, por meio da conduta, dos costumes, das maneiras do vestuário, do porte, dar a ilusão de ser heroico, cheio de honra e dignidade, de sabedoria e, em todos os casos, de cortesia. Isto parece ser possível por meio da referida imitação de um passado ideal. O sonho da passada perfeição enobrece a vida e suas formas, enche-as de beleza e atualiza-as como formas de arte. A vida é regulada como um nobre jogo. Apenas um pequeno grupo aristocrático pode realizar o padrão desse jogo artístico. Imitar o herói e o sages não é tarefa para todos. Sem ócios e riqueza não se consegue dar à vida um colorido épico ou idílico. A aspiração de realizar um sonho de beleza nas formas da vida social traz como vitium originis a marca da exclusividade aristocrática. HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida, pensamento e arte em França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. Capítulo 2 - O pessimismo e o ideal de vida sublime. Lisboa: Ulisseia/Penguin Books, sem data, p. 39-40 Tradução de Augusto Abelaria (esta edição, baseada na da Penguin Books, declara que a primeira versão do livro original foi publicada em 1924.) Para compreender o espírito medieval como uma unidade total, é necessário analisar as formas básicas de seu pensamento não apenas levando em conta as representações da fé e da especulação mais elevada, mas também a sabedoria de vida do cotidiano e das práticas mundanas. Pois são as mesmas grandes linhas de pensamento que dominam tanto as expressões mais elevadas quanto as mais comuns. E, enquanto no terreno da fé e da especulação continua sempre em pauta a questão de até que ponto as formas de pensamento são resultado de uma longa tradição escrita, cuja origem remonta até os gregos e os judeus, ou mesmo até os egípcios e babilônios, vemos essas formas atuando ingênua e espontaneamente na vida comum, sem nenhuma carga de neoplatonismo ou outras correntes similares. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 375. 8 Sobre Cultura e Natureza O que é e em que consiste a cultura? Uma definição exaustiva é praticamente impossível. Tudo quanto podemos fazer é enumerar algumas condições e requisitos essenciais, sem os quais não pode haver cultura. Cultura requer, em primeiro lugar, um certo equilíbrio de valores materiais e espirituais. Este equilíbrio permite o desenvolvimento duma certa disposição social que se reputa superior, porque proporciona outros valores mais elevados que a mera satisfação das necessidades ou da ambição. Estes valores habitam o domínio do espiritual, do intelectual, do moral e do estético. Por sua vez, esses diversos domínios terão de estar em equilíbrio e harmonia para que a eles se possa aplicar o conceito de cultura. (...) Esse equilíbrio poder-se-á considerar como um funcionar harmonioso e eficaz das várias atividades culturais dentro do todo. O resultado de tal coordenação das atividades culturais manifesta-se na ordem, na força estrutural e no ritmo vital da sociedade considerada. (...) A segunda característica fundamental de cultura é que toda ela deverá conter um elemento de esforço orientado para certo objetivo e este objetivo é sempre um ideal, não o ideal dum indivíduo, mas o ideal de uma sociedade. A natureza desse ideal é muito variável. Pode ser puramente espiritual (...). Pode ser um ideal social (...). Pode ainda ser econômico ou higiênico (...). Para os esteios da cultura o ideal significa sempre melhoramento (...). Quer o objetivo esteja no céu ou na terra, no saber ou na riqueza, a condição essencial para sua busca e obtenção é sempre ordem e segurança. (...) Dessa exigência de ordem provém tudo o que é autoridade; da de segurança tudo o que é direito. No fundo de dezenas de diferentes sistemas jurídicos e de governo há sempre os agrupamentos sociais, cuja luta pelo aperfeiçoamento dá origem à cultura. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 30-32. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 9 Se (...) domínio da natureza fosse o único pressuposto de cultura, pouca razão haveria para negar às formigas, às abelhas, às aves, ou aos castores o direito à sua posse. Todos esses animaizinhos, alterando partes da natureza, aplicam-nas a uso próprio. Se estas atividades incluem ou não um esforço no sentido de melhorar, isto é uma pergunta cuja resposta fica ao cuidado da psicologia animal. Mas (...) (...) dizer que cultura é domínio da natureza, no sentido de construir, matar e assar, é deixar a história em meio. A palavra "natureza", rica em sentido, ainda inclui natureza humana e essa terá de ser também controlada. (...) É somente na consciência humana que a função de cuidar e providenciar toma o aspecto de Dever. (...) Numa fase juvenil da organização social, a obrigação estende-se em convenções, normas de conduta e de cultos, em forma de tabus. A consciência de ter certos deveres adquire um valor ético, desde o momento em que não haja absoluta necessidade material de respeitar aquilo que sentimos ser uma obrigação perante um semelhante, uma instituição ou um poder espiritual. (...), sempre que numa comunidade as regras de conduta social são geralmente observadas, é pela ação dum impulso genuinamente ético. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 30-34. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Cultura, como condição da sociedade, existe quando o domínio sobre a natureza no campo material, moral e espiritual assegura um estado superior e melhor do que aquele que adviria das condições naturais existentes, estado cujas características se resumem num harmonioso equilíbrio de valores materiais e espirituais e num ideal mais ou menos homogêneo, para cuja consecução convergem várias atividades da comunidade. Se a descrição atrás feita — da qual a avaliação "superior" e "melhor", com o seu matiz subjetivo, não pode ser eliminada — surge agora a questão de saber se em nossos dias existem as condições essenciais de cultura. Cultura pressupões domínio da natureza. Esta condição parece, com efeito, ter atingido um grau de realização mais elevado que o de qualquer outra civilização anterior nossa conhecida. (...) e o domínio da natureza humana? Não me apontem os triunfos da psiquiatria, da assistência social ou da guerra ao crime. Domínio da natureza humana só poderá significar domínio de todo indivíduo sobre si mesmo. Conseguiu ele isso? HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 35-36. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 10 O que muitas vezes parece é que o homem, abusando da liberdade obtida pelo seu controle da natureza física, se recusa a dominar-se a si próprio, sempre pronto a repelir todos os valores que o espírito para ele conquistara. Os direitos e as pretensões da natureza humana são invocados em toda parte para se oporem à autoridade de leis ética absolutas. a condição de domínio da natureza fica assim apenas a meio do caminho. (...) O desejo de melhorar, impelindo todas as comunidades e todos os indivíduos, vê por centenas de olhos diferentes. Cada grupo persegue a sua própria concepção de bem estar, sem a integrar num ideal comum, sobreposto aos vários desejos particulares. somente a expressão desse ideal comum, quer atingível quer ilusório, poderá justificar plenamente a noção "cultura moderna". (...) As manifestações contemporâneas que nos rodeiam parecem excluir toda ideia de um autêntico equilíbrio. Um sistema econômico do mais puro requinte atira diariamente cá para fora com um montão de produtos e põe em movimento forças que ninguém precisa, que para ninguém trazem vantagens, que toda a gente teme e que muitos escarnecem por inúteis, absurdas e prejudiciais. O café é queimado para se manter o preço; o material de guerra encontrará ávidos compradores, mas ninguém quer que ele seja utilizado. (...) Há também uma superprodução intelectual, um excesso permanente da palavra escrita e "radiodifundida", e uma divergência de pensamento quase irremediável. A arte foi apanhada no círculo vicioso que agrilhoa o artista à publicidade e por meio desta, à moda, qualquer delas, por sua vez, depende dos interesses comerciais. Ao longo de toda a série, desde a vida do Estado à vida da família, parece estar em curso um desconjuntamento como o mundo jamais conheceu. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 37-39. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 11 O incremento da segurança, do conforto e das possibilidades de conquista do necessário, em suma, a maior facilidade de existência, teve duas consequências. Por um lado preparou o terreno a todas as formas de renúncia à vida: negação filosófica do seu valor, "spleen" puramente emotivo e aversão à própria vida; por outro lado incutiu a crença no direito à felicidade: fez com que os povos exigissem da vida um certo número de coisas. Relacionado com este há um outro contraste. A atitude ambivalente, pairando hesitante entre a renúncia e o gozo da vida, é exclusivamente peculiar ao indivíduo isolado. Ao contrário, a coletividade aceita, sem hesitação e mais convicta do que nunca, a vida terrena como objeto de todo esforço e toda ação. Não há duvida de que se trata de um autêntico culto à vida. Surge-nos agora uma pergunta, motivo de séria reflexão: poderá uma cultura adiantada sobreviver sem que seja, em certa medida, orientada para a morte? Todas as grandes civilizações do passado o foram. Há indícios de que o pensamento filosófico de nossos dias segue também essa rota. Parece naturalmente lógico, além do mais, que uma filosofia que dá maior valor à existência que ao conhecimento, deva incluir na sua visão o fim dessa existência. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 94-95. Capítulo O culto da vida. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Sabemos que o mundo de hoje não pode voltar atrás. Compreendemos isso logo que olhamos para a ciência, para a filosofia e para a arte. (…) E o mesmo sucede com a tecnologia e sua gigantesca aparelhagem, ou com toda a máquina econômica, social e política. (…) E todavia, esta perspectiva duma civilização à mercê do seu próprio dinamismo intrínseco, dum domínio sempre crescente da natureza (…), assemelha-se mais a um pesadelo. (…) Barbarização pode definir-se como sendo um processo cultural pelo qual uma condição de alto valor, já obtida, vai sendo espezinhada e substituída por elementos de qualidade inferior. É matéria de controvérsia saber se esses elementos opostos, superior e inferior, correspondem à antítese elite-massa. Em qualquer dos casos a aceitação desta polaridade exige que os termos elite e massa sejam despidos da sua significação social e considerados simplesmente como tipos de intelecto ou atitudes espirituais. Foi neste sentido, recentemente, que Ortega y Gasset usou os termos na sua Revolta das massas. O nosso conhecimento duma completa barbarização no passado limita-se apenas a um exemplo: a decadência da civilização antiga no império romano [isto é, o mergulho na Idade Média]. Todavia (...), a comparação com o presente é dificultada por uma grande diferença de circunstâncias. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 191. Capítulo Perspectivas. 12 Sobre o conhecimento e o desenvolvimento humano A falácia do silogismo: "Conhecimento de si mesmo é sabedoria — o mundo conhece-se melhor que nunca — ergo o mundo tornou-se mais sábio", tem origem na ambiguidade dos termos. O "mundo", em abstrato, nem tem conhecimento nem poder de ação; manifesta-se unicamente através do pensamento e da ação dos indivíduos. Além disso, o termo "conhecimento" pode ser tudo menos permutável com sabedoria, ponto este que mal requer elaboração. (...) mesmo onde há um desejo genuíno de conhecimento e de beleza, a intrusão ruidosa da moderna engrenagem cultural torna muito difícil a esse homem médio a fuga ao perigo de lhe serem impostas as suas noções e valores. Um conhecimento tão variado como superficial, e um horizonte intelectual demasiado extenso para uma vista desprovida de bagagem crítica, têm de conduzir a um enfraquecimento da capacidade de julgar. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 57 e 59-60. Capítulo Enfraquecimento da capacidade de julgar. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] As teorias racistas deram-nos um exemplo da pseudociência usurpando o lugar da verdadeira ciência para servir a Força. Na verdadeira ciência, naquela que se dirige à descoberta e construção de meios do poder, a Força encontra um instrumento ainda mais forte para a prossecução dos seus fins. "Saber é poder", outrora o pregão triunfante da era Vitoriana, começou agora a ter um timbre sinistro aos nossos ouvidos. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 77. Capítulo A ciência erroneasmente aplicada. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Aqui temos o fulcro da atual crise da civilização: o conflito entre conhecer e ser, entre a inteligência e a existência. Mas isto nada tem de novo. (...) Na primeira metade do séc. XIX, esta verdade antiga, já conhecida de um Nicolau de Cusa, é novamente tomada por Kierkegaard, cuja filosofia tem o seu centro na antítese do "existir" e do "pensar" e dela se aproveitou para assentar a sua fé em alicerces mais firmes ainda. Só muito mais tarde é que outros pensadores forçaram este pensamento a seguir caminhos alheios a Deus para o deixarem cair no nihilismo e no desespero, ou na adoração da vida terrena. Nietzsche, sinceramente convencido do trágico exílio do homem dos domínios da verdade, e dando à ânsia de vida a interpretação de ânsia de poder, repudiou o princípio intelectual com todo o vigor poético do seu gênio. O pragmatismo privou o conceito de "verdade" do seu direito à validade absoluta, submetendo-o às variações do tempo. (...) Um conceito de verdade reduzido apenas ao valor relativo arrastaria inevitavelmente na sua esteira uma espécie de igualitarismo ideológico, uma abolição de 13 todas as diferenças de categoria e valor de ideias. Sociólogos como Max Weber, Max Scheler, Karl Manheim e Oswald Spengler introduziram ultimamente a expressão Seinsverbundenheit des Denkens que pode ser, muito imperfeitamente, vertida por "subordinação do pensamento ao ambiente e à vida". O próprio conceito aproxima-se do materialismo histórico, ex-professo anti-intelectual. Assim, se fundiram as tendências de toda uma época que, para evitar o vago termo "anti-intelectual" ousamos chamar de anti-noética, numa corrente poderosa que em breve havia de ameaçar o que há mjuito se julgava ser barreiras intransponíveis da cultura intelectual. Georges Sorel, em suas Réflexions sur la Violence, formulou as consequências práticas e políticas de tudo isto, tornando-se por esse fato o pai espiritual de todas as ditaduras contemporâneas. (...) (...) Um anti-intelectualismo sistemático, prático e filosófico, tal como aquele que estamos a assistir, afigura-se-nos algo verdadeiramente novo na história da cultura humana. (...) Quando as antigas correntes do pensamento recsavam a vassalagem à Razão, era sempre em favor do supra-racional. O que se alardeia como sendo a cultura de hoje, não só nega a Razão, mas ainda o próprio cognoscível, e isto em favor do infra-racional, das paixões e dos instintos. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 83-87. Capítulo O repúdio do princípio intelectual. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Uma filosofia que de início declara as suas verdades básicas condicionadas por uma certa forma de vida a que serve, é realmente supérflua para os defensores dessa forma e inútil para o resto do mundo. Serve apenas para racionalizar e apoiar a ordem existente. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 95. Capítulo O culto da vida. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 14 Um perigo ficará sempre inalienavelmente ligado à doutrina anti-noética da vida. A primazia dada ao viver em detrimento do compreender arrasta necessariamente, com o abandono dos critérios de compreensão, o abandono das normas morais. Se a autoridade prega violência, terão a palavra os violentos. em princípio é negar-se a si próprio o direito de os dominar. E neste princípio eles hão de ver a justificação dos seus instintos animais ou patológicos. Talvez uma autoridade militar, rigidamente disciplinada, possa mantê-los dentro de certos limites. Contudo, no fanatismo dum movimento popular, se tornarão os pagens do assassínio. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 148-149. Capítulo Heroísmo. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra, e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933 — no caso desta citação especificamente, há uma provável referência à juventude nazista, que já existia desde 1922. Esses jovens a certa altura adquiriram o costume de sair às ruas na Alemanha com seus uniformes cometendo atos de agressão e vandalismo, movidos por ódio racial e considerando esses atos "heroicos", como uma atitude de luta contra o que achavam "errado" ( e o que achavam "errado" era que houvesse aceitação e reconhecimento de quem consideravam "diferente" e "inferior" como tendo os mesmos direitos que eles).] Uma superstição que passa por ser científica dá origem a uma confusão de ideias muito maior do que aquela que se contenta com as simples práticas populares. (…) A forma mais espalhada e mais perniciosa da moderna superstição não reside numa pronta aceitação de afinidades misteriosas, nem num apela à pseudociência, mas sim dentro da esfera puramente racional e da confiança na verdadeira ciência e na verdadeira tecnologia. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 164-165. Capítulo Superstição. (…) uma fé em meios e métodos, cuja ineficácia é clara como o dia e está fora de toda a dúvida, não merece outro nome que não seja superstição. Um mundo que vive em tais crenças é um mundo estúpido. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 168-169. Capítulo Superstição. 15 Sobre o poder da mídia, o controle e a passividade do público Em formas de sociedade mais antigas e mais restritas era o homem quem proporcionava a si mesmo os entretenimentos. O povo cantava, dançava e divertia-se. Na civilização de hoje, tudo isto desapareceu em grande parte, para se assistir às canções, danças e divertimentos dos outros. Sem dúvida que sempre houve atores e espectadores, mas o que é significativo, é que atualmente o elemento ativo cede constantemente terreno ao elemento passivo. Até mesmo no domínio dos esportes, essa importantíssima parte da moderna cultura, há uma tendência crescente entre as massas para terem os outros a jogar por elas. Esse afastamento da participação ativa nas ocupações culturais veio a ser ainda mais completo com o aparecimento do cinema e do rádio. A passagem do teatro para o cinema é a passagem da peça para o reflexo da peça. A palavra e o gesto passam de ação viva a simples reprodução. A voz transmitida através do éter não é mais que um eco. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 60-61. Capítulo Enfraquecimento da capacidade de julgar. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Com a crescente falta de mérito da palavra falada ou escrita, motivada pelo progresso da civilização ao dar-lhe tão vastas possibilidades de expansão, aumenta proporcionalmente a indiferença pela verdade. A margem de erro vai se alargando firmemente em todos os campos à medida que a atitude irracionalista se expande. (…) Tal como os vapores da fumarada e da gasolina sobre as cidades, assim paira sobre o mundo uma névoa de palavras ocas. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 187-188. Capítulo A arte e a literatura. Um exemplo duma grande realização técnica é a telegrafia sem fios. Apesar disso, com todas as suas utilíssimas e benéficas possibilidades, ameaça indiretamente prejudicar a cultura. Ninguém duvidará por um momento do extraordinário valor deste novo instrumento de comunicação. Os S.O.S., a música e as notícias para pessoas isoladas nos mais remotos lugares, são apenas alguns dos seus múltiplos dons. E todavia, como órgão de informação, o rádio, na sua função de todos os dias, traduz em muitos aspectos um regresso a uma forma menos eficaz de transmissão do pensamento. Não nos estamos a referir aos conhecidos males da prática popular: escutar sem atenção, passar rapidamente de uma a outra estação, apanhando assim uma mistura incoerente de sons e pensamentos etc. Além de todos estes defeitos, que não são inevitáveis, o rádio constitui uma forma de assimilação do conhecimento mais vagarosa e mais restrita (…). Ler é a função cultural mais eficaz. Pela leitura, o espírito absorve muito mais rapidamente; está continuamente selecionar, fortificar-se a si próprio, salta, 16 detém-se a pensar; exerce mil atividades mentais interditas àquele que só escuta. Num artigo intitulado The decline of the Writen World, um defensor do filme e do rádio a serviço do ensino profetizava, satisfeito e seguro, um futuro próximo em que a criança seria educada por imagens e palestras. Se tal profecia se viesse a realizar, teríamos dado um enorme passo para o barbarismo. Dificilmente se poderia ter imaginado melhor método de ensinar a juventude a não refletir, de a manter no puerilismo e muito provavelmente de a aborrecer ao máximo. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 192-193. Capítulo Perspectivas. Sobre ética Viver é lutar. É uma verdade já velha (...) — luta, isto é, vontade e energia em ação para superar os obstáculos que se opõem à consecução de um certo objetivo. Quase toda ação da alma humana é expressa em termos de combate. Uma das características mais essenciais do organismo vivo é que este está mais ou menos apetrechado para uma atitude de combate. A identificação "vida e luta" quadra bem, tanto no sentido puramente biológico, como no espiritual. Há de haver poucas verdades que uma escola de pensamento, na sua tarefa de tudo subjugar às exigências da vida, queira pregar com mais ardor. Mas qual será o significado que ela atribui a isso? (...) Uma coisa, porém, é certa: no que geralmente se pensa a propósito dos deveres sociais, a noção do bem e do mal absolutos desempenha um papel relativamente insignificante. Para muita gente a ideia de luta pela vida foi transferida do campo da consciência individual para o da vida pública coletiva. Nessa transferência a ideia perdeu muito do seu conteúdo ético. A luta pela vida, aceita como um destino e um dever, é concebida quase exclusivamente como luta duma certa comunidade por uma certa prosperidade geral, isto é, como uma tarefa cultural. É uma luta contra certos males públicos. (...) As resistências com que a coletividade se julga ameaçada são geralmente exercidas por outros grupos humanos. A luta pela vida, tomada como um dever público, torna-se então uma luta de homens contra homens. Estes outros, contra os quais se dirige a luta, já não aparecem teoricamente sob a forma de "perversos". Na luta pelo poder ou pelas riquezas, são simplesmente rivais, tiranos políticos ou econômicos. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 99-100. Capítulo O culto da vida. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 17 A tendência para exaltar o ser e o viver, dando-lhe a primazia sobre o compreender e o avaliar (...) que encarniçadamente se nega a ser guiada pelo intelecto, não pode encontrar direção em qualquer espécie de ética conscienciosa dos seus alicerce no "conhecimento. Mas que fica então para guiar e dirigir, se já não se procura a diretriz numa crença metafísica visando uma felicidade incorpórea e extramundana, nem no pensamento ansioso de verdade, nem numa ordem moral ampla e geralmente reconhecida, que contenha valores, tais como justiça e caridade? Como sempre, a resposta terá de ser: Só a própria vida cega e impenetrável. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 120. Capítulo Declínio das normas morais. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] O mundo atual já avançou bastante no caminho que conduz à renúncia absoluta das normas éticas. Dificilmente consegue já distinguir o bem do mal. Tem a tendência para considerar toda a crise da civilização contemporânea como uma simples luta entre forças opostas, um duelo entre adversários que disputam a supremacia. E todavia, a única esperança está na recognição de que nesta luta as ações humanas devem ser governadas pelo princípio absoluto do bem e do mal. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 209. Capítulo Katharsis. Katharsis, assim chamavam os gregos ao estado de espírito produzido pelo espetáculo duma tragédia; uma espécie de silêncio do coração em que a piedade e o medo se fundiram, uma purificação da alma nascida da compreensão dum significado mais profundo das coisas; um estado que dispõe ao cumprimento sério do dever e à aceitação do destino; que rompe o hybris tal como se faz na tragédia; que nos liberta das paixões violentas da vida e nos dá a paz à alma. Para conseguir a purificação necessária à hora presente, impõe-se uma nova askesis. Aqueles que se dispõem a criar essa cultura purificada terão que se assemelhar aos que despertam ao romper da aurora. Terão de afugentar os maus sonhos da noite ― sonhos de almas saídas do lodo e que para lá querem voltar; sonhos dum cérebro cujas circunvoluções são fios de aço: sonhos de corações frágeis como o vidro; sonhos de mãos transformadas em garras e de dentes feito lâminas. Deverão recordar, enfim, que o homem pode querer não ser um animal. Esta nova askesis não será uma renúncia ao mundo para conquistar o céu; será o domínio próprio e uma justa apreciação da força e do prazer. A exaltação da vida terá de baixar um pouco o seu tom. Será preciso recordar o que já Platão dissera das ocupações do sábio: que eram uma preparação para a morte. Só uma orientação firme da vida para a morte pode enobrecer o uso das próprias forças vitais. A nova askesis deverá comportar uma rendição, rendição a tudo quanto se possa conceber como ideal. [E] nem um povo, nem uma classe, nem a existência individual própria poderão ser objeto deste pensamento. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 212. Capítulo Katharsis. 18 Donde quer que surja o botão, ainda o mais frágil, do verdadeiro internacionalismo (melhor diríamos internacionalidade), cuidai dele, regai-o com a água criadora da consciência nacional, contanto que ela seja pura. Assim há de florir com mais vigor. O sentido internacional ― esta palavra já implica a preservação das nacionalidades, mas só daquelas que se compreendem e resolvem pacificamente os conflitos ― pode tornar-se modelo da nova ética da qual deverá desaparecer a oposição coletivismoindividualismo. Será sonho pensar que um dia o mundo possa conhecer tal situação? Mesmo que fosse, nunca deveríamos abandonar esse ideal. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 213-214. Capítulo Katharsis. [Na Baixa Idade Média] Em todas as coisas procurava-se pela “moralidade”, como dizia o homem medieval, ou seja, a lição que dali se extraía, o significado moral mais essencial, Cada caso histórico ou literário tende a se cristalizar numa parábola, , num exemplo moral, numa evidência: cada declaração, numa sentença, num texto, num dito. (…) Um povo com tantos provérbios em uso deixa a discussão, a motivação e a argumentação por conta dos teólogos e dos filósofos; o provérbio encerra cada caso referindo-se a um juízo, que acerta bem no alvo. Ele se abstém de muita conversa disparatada e preserva-se da falta de clareza. O provérbio sempre desata os nós; uma vez aplicado o provérbio, a questão está encerrada. A habilidade de cristalizar pensamentos apresenta vantagens significantes para a cultura. (…) Outra forma de cristalização do pensamento semelhante ao provérbio é o lema, cultivado com uma predileção especial no período medieval tardio. Os lemas não tratam de uma sabedoria aplicada em geral, como o provérbio, mas de um encorajamento pessoal ou uma lição de vida, elevado a uma insígnia pelo portador, que o imprime com letras douradas à própria vida (...). HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 377, 382 e 386. 19 Sobre o poder do Estado [Atualmente] a adoração do sucesso que (…) exerce uma influência atenuante na apreciação do mau procedimento econômico, é capaz de eliminar praticamente do juízo político toda e qualquer indignação moral. E essa adoração vai a tais extremos, que muitos parecem estar prontos a ajuizar de uma organização política, cujas doutrinas fundamentais detestam, pelo grau de sucesso com que ela leva a termo o seu objetivo prefixo. Incapaz de ajuizar a natureza desse objetivo, dos meios com que ele é perseguido, e [incapaz de fazê-lo] até o ponto em que ele na realidade é executado, o espectador contenta-se com os sinais exteriores de realização, os únicos que o leitor do jornal ou o turista pode observar. Deste modo, um sistema político que primeiro o cumulou de desgostos e a seguir de medo e de pavor, poderá ainda, pouco a pouco, obter seu bom acolhimento e até mesmo a sua admiração. Injustiça, crueldade, coerção da consciência, opressão, falsidade, perfídia, dolo, violação de direito? — Mas veja como eles embelezaram as cidades e que maravilhosas estradas construíram! HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 122. Capítulo Declínio das normas morais. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] "O Estado não pode causar danos". São as palavras duma teoria política desfrutando presentemente de uma popularidade que se estende para muito além da esfera do Moderno Despotismo. Segundo esta opinião, o Estado não se pode considerar obrigado às normas morais da sociedade humana. Qualquer tentativa para o submeter ao veredito do juízo ético terá de se inutilizar de encontro à independência absoluta do político como tal. O Estado está fora de toda a ética. Poder-se-ia perguntar: e também acima de toda a ética? Talvez que o teórico do Estado amoral evite afirmá-lo. Recorrerá à construção que já vimos anteriormente, a construção do político como categoria absoluta, governada unicamente pela oposição amigo-inimigo, quer dizer, por uma oposição que apenas expressa perigo e obstrução, e o esforço para os eliminar. Com efeito, (...) nesta oposição "amigo" significa nada mais que "não perigoso". Portanto, o Estado tem que ser julgado somente pelas suas realizações no exercício do Poder. Embora essa interpretação em si seja nova, a teoria do Estado amoral pode ser tudo menos nova. Mais ou menos justificadamente, pode dizer-se que deriva de pensadores como Maquiavel, Hobbes, Fichte e Hegel. Na própria história a teoria encontra, aparentemente, valioso apoio. é que, em verdade, a história pouco mais patenteia que a avidez, ambição de poder, interesse pessoal e temor, como motivos dirigentes das ações recíprocas, concordantes ou opostas, dos Estados entre si. A época do absolutismo sistematizado reunia todos esses motivos sob a designação de "raison d'état". HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 125-126. Capítulo Regna regni lupi? [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 20 Para o Estado não pode haver delitos políticos nem crimes que ele possa [ser acusado de] cometer. Em teoria isto também deve se aplicar ao Estado inimigo. Este também deve estar imune à condenação e ao juízo moral. Mas aqui revela-se imediatamente a lastimosa debilidade destas ideias sobre o Estado, plenas como estão dos odores corruptos da avidez e da loucura humanas. Na prática, esta pomposa teoria do Estado fora de toda moralidade é válida unicamente para o próprio Estado. É que, quando a hostilidade atinge o ponto crítico, a voz serena e sublime do argumento transforma-se em guincho histérico, buscando avidamente a insinuação e a difamação do inimigo no velho arsenal da virtude e do pecado (...) Mas então o inimigo não é também um Estado? (...) Regna regnis lupi, o Estado lobo do Estado. Não é uma lamentação pessimista semelhante ao velho homo homini lupus, mas um dogma e um ideal político. Ora, infelizmente para esta teoria, toda comunidade, até mesmo a dos animais, se baseia na confiança mútua de seres que se podiam exterminar uns aos outros. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 132-133. Capítulo Regna regni lupi? [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Sobre o mito do herói A humanidade sempre precisou da visão de uma faculdade mais elevada no homem, de força e coragem humanas em alto grau, para apoio e alívio na dura luta pela vida e como interpretação de grandeza da ação. O pensamento mitológico colocou a realização destas visões na esfera do super-humano. Os heróis eram semi-deuses (...), o termo foi também aplicado a seres humanos vulgares; tais como os que tivessem tombado pela pátria e os tiranicidas. Mas eram sempre os mortos. (...) Só muito mais tarde é que ele começa a ser usado em referência aos vivos, e mesmo então só no sentido retórico. (...) Durante todo o século XIX, a representação do heroico foi, em reduzida escala, um modelo e um ideal a seguir. (...) Há algo de trágico no fato de a degeneração do ideal heroico ter a sua origem na popularidade superficial que a filosofia de Nietzsche conseguiu nos anos noventa [a partir de 1890]. A concepção do poeta-filósofo, nascida no desespero, foi acolhida pelo grande público antes de ter passado pelas provas do pensamento puro. O vulgo dos anos noventa falava do "super-homem" como se se tratasse de um irmão gigante. Essa vulgarização prematura do ideal de Nietzsche foi, sem dúvida, o começo da tendência do pensamento, que em nossos dias fez do heroísmo o seu mote e o seu programa. No processo de popularização o ideal do heroico sofreu assim uma pasmosa alteração que o priva de todo o seu significado mais profundo. O título honorífico de "herói", embora por vezes retoricamente aplicado aos vivos, ficara sempre reservado aos mortos, precisamente como o atributo "santo". era o prêmio de gratidão que os vivos concediam aos mortos. Ninguém se orgulhava de ser um herói, mas sim de cumprir o seu dever. 21 Depois do aparecimento das várias formas de despotismo popular (...) Heroísmo é uma doutrina política, é mesmo representado como uma nova ética destronando a velha, que muitos julgam já desnecessária e inútil. Seria tolice desprezar o valor deste sentimento. A sua veracidade e a sua significação devem ser postas a prova. O entusiasmo pelo heroico é a prova mais significativa da grande revulsão do saber e compreender para o imediato praticar e viver, fato que constitui por assim dizer o foco da crise cultural. Glorificação da ação por si mesma, narcotização da faculdade crítica pelo sobre-estímulo da vontade, obscurecimento da ideia pela beleza da ilusão, são tudo qualificações que, para o crente na atitude anti-noética perante a vida, correspondem a tantas outras justificações do heroísmo. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 140 e 144-146. Capítulo Heroísmo. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] Por heroísmo entende-se sair fora dos limites habituais. Neste mundo é por vezes necessário que as coisas saiam fora dos limites. Mais uma vez se chega ao ponto do pensamento em que o juízo tem de ficar inconcludente. Ninguém pode desejar que o mundo continue, em todos os seus aspectos, a seguir a confusa viela para onde o impeliram leis imperfeitas e uma conduta ainda mais imperfeita. (...) A nossa época precisa deste tônico porque está fraca. a exaltação do heroico é em si um fenômeno de crise. Demonstra que as ideias de serviço, tarefa e cumprimento do dever, já não exercem no grande público a necessária força propulsora. Têm de ser ampliadas como que por um alto-falante. Têm de ser atiçadas como um fogo que se extingue. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 147. Capítulo Heroísmo. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] O atual heroísmo de camiseta e braço levantado muitas vezes na prática pouco mais significa que uma tosca reafirmação do conscienciosismo do "nós". Uma determinada entidade, "nós e os nossos" com o nome de "partido", tem o monopólio do heroísmo e reparte-o entre seus servos. Tais asserções do conscienciosismo do "nós", sociologicamente são da mais alta importância. Encontram-se me todos os períodos e em todas as raças sob a forma de ritos, danças, gritos, emblemas etc. Se a nossa época perdeu realmente o desejo de compreender e determinar racionalmente o seu procedimento, seria muito natural que ela voltasse aos primitivos métodos de instilar o sentido da unidade e da força. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 148. Capítulo Heroísmo. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933] 22 A barbarização tem início quando, numa velha cultura que outrora, no decurso de muitos séculos, se guindara à pureza e clareza do pensamento e da compreensão, os vapores do mágico e do fantástico se erguem novamente do fermento fervente das paixões para irem nublar a compreensão; quando o mythos suplanta o logos. A todo instante se vê como o novo credo da heroica vontade de poder, com a sua exaltação da vida e detrimento da compreensão, é a expressão exata das tendências que fascinam e arrastam ao barbarismo (…). Na verdade a “filosofia da vida” faz exatamente isso: põe o mythos acima do logos (...) As divindades atuais, mecanização e organização, foram portadoras da vida e da morte. Cobriram todo o mundo de fios condutores, estabeleceram o contato mundial, por toda parte tornaram possível a cooperação, a concentração de forças e compreensão mútua. Simultaneamente, armaram a cilada ao espírito, puseram-no a ferros e sufocaram-no.Conduziram o homem do individualismo ao coletivismo; mas sem guia para seu discernimento, o homem apenas conseguiu compreender o mal inerente a todo coletivismo, a negação dos mais profundos valores pessoais e a escravidão do espírito. Teremos um futuro de mecanização da sociedade sempre crescente, e somente governado pelas exigências da utilidade e do poder? HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 194-195. Capítulo Perspectivas. Sobre a diferença entre o jogo e a imaturidade, ingenuidade ou comportamento pueril Puerilismo chamaremos nós à atitude duma comunidade cujo comportamento é mais imaturo do que o estado das suas faculdades críticas e intelectuais poderiam deixar supor. Que, em vez de fazer do jovem um homem, adapta a sua própria conduta à do adolescente. O termo nada tem que ver com infantilismo em psicanálise. Baseia-se unicamente na observação de fatos culturais e sociológicos evidentes. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 151. Capítulo Puerilismo. Façamos apenas uma leve alusão àquele espírito de marcha e parada militar que inundou o mundo. As multidões formam uma massa compacta, não há praça suficientemente espaçosa que as possa conter, uma nação inteira fica a pé firme, rígida e atenta como milhares de soldadinhos de chumbo. Até o espectador estrangeiro é incapaz de se furtar à fascinação deste espetáculo. Isto dá a impressão de grandeza, de poder. É puerilidade. Forma vazia que dá ilusão de um desígnio sério e meritório. Os que ainda são capazes de refletir sabem que nada disto tem valor. Simplesmente revela quão intimamente se relaciona o heroísmo popular com um certo puerilismo geral. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 153. Capítulo Puerilismo. 23 O moderno puerilismo manifesta-se de duas maneiras. Por um lado, atividades de natureza confessadamente séria e universalmente tidas por sérias (...) são penetradas pelo espírito do divertimento e chegam a comportar todas as características destes; por outro lado, atividades aceites como tendo um caráter de jogo perdem a verdadeira qualidade de divertimento pela maneira como são executadas.(...) HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 154. Capítulo Puerilismo. Se temos de admitir que na verdade a sociedade moderna manifesta um acentuado grau de puerilismo, surge a questão de saber se ela partilha desta característica com os períodos civilizados anteriores, e se assim é, se uma comparação com estes lhe é desfavorável neste aspecto. Poder-se-ia facilmente demonstrar que outrora a sociedade se conduziu muitas vezes duma maneira que só poderia ser qualificada de infantil. Parece haver, contudo, uma diferença entre as infantilidades do passado e a puerilidade do presente. Nas fases mais primitivas da civilização, grande parte da vida social é levada em forma de jogo, isto é, dentro duma esfera mental artificial governada pelas suas próprias regras e abrangendo temporariamente toda conduta num sistema de ação voluntariamente aceito. Um procedimento convencional toma o lugar da perseguição direta da utilidade ou do prazer. Se o jogo é religioso esta atividade torna-se um culto ou um rito. Mesmo que os ritos ou as competições envolvam derramamento de sangue a ação continua a ser um jogo. Tal espécie de jogo exige uma limitação local, a criação dum campo vedado ao mundo exterior. A vida corrente é excluída do recinto enquanto dura o jogo. O antigo temenos grego, as liças do torneio, o palco dum teatro, o "ring", são desses círculos consagrados ao jogo. A realidade fora do campo é esquecida; há uma rendição geral à ilusão comum e o juízo independente é posto de lado. Todo verdadeiro jogo ainda encerra estas características. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 156-157. Capítulo Puerilismo. A característica mais fundamental do autêntico jogo, quer se trate de um culto, de uma representação, de uma competição ou de uma festividade, é que em determinado momento ele cessa. Os espectadores se retiram, os atores tiram as máscaras, a exibição acabou. É aqui que se revela o mal do nosso tempo. É que hoje, em muitos casos, o jogo nunca acaba, e daí não ser verdadeiro jogo. Houve uma contaminação de efeitos remotos entre jogo e atividade séria. As duas esferas começam a misturar-se. Nas atividades de natureza exteriormente séria esconde-se um elemento de jogo. Por outro lado, o que é realmente jogo já não é capaz de manter o seu caráter de verdadeiro jogo em virtude de ser tomado muito a sério e de ser tecnicamente muito complicado. assim se perdem as indispensáveis qualidades de desprendimento, naturalidade e alegria. Até certo ponto, algo de semelhante a esta contaminação se manifestou em todas as culturas, tanto quanto podemos ver no passado. Mas é um privilégio dúbio da moderna civilização ocidental ter dado a maior intensidade a esta (di)fusão das duas esferas de vida. Um grande número de cultos e de 24 ignorantes tem perante a vida a mesma atitude de criança perante o jogo. Caracteriza-se por uma falta de sentido do decoro, uma falta de dignidade pessoal, de respeito pelos outros e pelas suas opiniões, e por uma excessiva concentração sobre sua própria personalidade. A debilitação geral da capacidade de julgar e do impulso crítico preparou terreno à expansão dessa atitude. Ora, se é interessante, não deixa de ser inquietante, notar que a emergência deste estado de espírito foi facilitada não só pelo minguado desejo de julgamento individual, pelo efeito "standardizador" da organização de grupos que fornecem uma lista de opiniões já feitas, e pelas sempre acessíveis oportunidades de diversão banal, mas ainda pelo maravilhoso desenvolvimento das facilidades técnicas. Perante o seu mundo pleno de maravilhas o homem é como uma criança diante dum conto de fadas. Pode viajar pelo espaço, falar para outro hemisfério ou ter em sua casa um continente, graças ao rádio. Aperta um botão e a vida desfila na sua frente. Tal vida poder-lhe-á dar maturidade? Pelo contrário. (...) Valeria a pena investigar como nas diferentes línguas o vocabulário próprio do jogo inunda continuamente o sério... HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 158-159. Capítulo Puerilismo. (…) embora seja verdade que a sociedade vai tomando esse rumo, isto é, a direção do maior controle técnico no exercício do poder e do cálculo prudente dos efeitos desejados, o tipo humano se tornou ao mesmo tempo mais e mais indisciplinado, mais pueril, mais suscetível a reações do sentimento (…) HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 196. Capítulo Perspectivas. Sobre o jogo e o autêntico espírito lúdico O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma à ideia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam as regras que os proíbem morderem, ou pelo menos com violência, a orelha do próximo. Fingem estar zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto, experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras formas muito mais complexas, verdadeiras competições, belas representações destinadas a um público. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 3. 25 (…) mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando “instinto” ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe “espírito” ou “vontade” seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria essência. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4. (…) reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da concepção determinista de um mundo regido pela ação de forças cegas, o jogo seria inteiramente supérfluo. Só se torna possível, pensável e compreensível quando a presença do espírito destrói o determinismo absoluto do cosmos. A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4. Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos encontramos. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4. Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está “só fazendo de conta” ou quando está “só brincando”. (…) Esta característica de “faz de conta” do jogo exprime um sentimento de inferioridade do jogo em relação à “seriedade”, o qual parece ser tão fundamental quanto o próprio jogo. Todavia, conforme já salientamos, esta consciência do fato de “só fazer de conta” no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade, com um enlevo e um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra “só” da frase acima. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador. Nunca há contraste bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade, jogo. É possível ao jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade. (…) Visto que não pertence à vida “comum”, ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele se insinua como atividade 26 temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização (…) como um intervalo em nossa vida cotidiana. (…) O jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento e a limitação. É “jogado até o fim” dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e um sentido próprios. O jogo inicia-se e, em determinado momento, “acabou”. Joga-se até que se chegue até um certo fim. Enquanto está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação. E há, diretamente ligada à sua limitação no tempo, uma outra característica interessante do do jogo, a de se fixar imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova no espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento (…). A limitação no espaço é ainda mais flagrante do que a limitação no tempo. Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea (…) são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11-13. Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 13. O elemento de tensão (…) desempenha no jogo um papel extremamente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace (…), conseguir alguma coisa difícil, ganhar, acabar com uma tensão.(...0 Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova as qualidades do jogador (…). Porque, apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo. (…) As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 13-14. 27 As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. É claro que nem todos os jogos de bola de gude, ou de bridge, levam à fundação de um clube. Mas a sensação de estar “separadamente juntos”, numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo (…). O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em que frequentemente se envolve por se fazer dele um segredo. Isto é, para nós, e não para os outros. O que os outros fazem “lá fora” é coisa que no momento não nos importa. Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida cotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 15. Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces e outros meios semelhantes. A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a “representar” uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma coisa. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 16-17. O jogo tem por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento é possível à “vida cotidiana” reafirmar seus direitos, seja devido a um impacto exterior, que venha interromper o jogo, ou devido a uma quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do jogo, a uma desilusão, um desencanto. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 24. 28 O homem moderno pode buscar individualmente a confirmação de sua visão da vida e o mais puro desfrutar de sua alegria de viver em qualquer momento de paz, escolhendo ele mesmo a sua maneira de descontração. Mas numa época em que os luxos espirituais ainda eram pouco difundidos e pouco acessíveis, é necessário um ato comum, ou seja, a festa. E quanto maior o contraste da miséria do dia a dia, tanto mais indispensável é a festa e tanto mais fortes são os estimulantes necessários para, transformando esse êxtase em beleza e prazer, expiar a escuridão da realidade do dia a dia. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 18 - A arte na vida. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 431. Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico Se verificamos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa “imaginação” da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa “imaginação”. Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida. As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. (…) Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza. Um outro exemplo é o mito, que também é uma transformação ao uma “imaginação” do mundo exterior, mas implica em um processo mais elaborado do que ocorre no caso das palavras isoladas. O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto, verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações e mistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo, tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra. Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas têm suas raízes no solo primevo do jogo. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 7. 29 Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo definitivamente do curso da evolução natural. (…) As crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade. Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas “horas de ócio”. Liga-se a noções de obrigação e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11. Mais do que uma realidade falsa, a representação é a realização de uma aparência: é “imaginação”. No sentido original do termo. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17. A representação sagrada é mais do que a simples realização de uma aparência, é até mais do que uma realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem. Mas tudo isto não impede que essa “realização pela representação” conserve, sob todos os aspectos, as características formais do jogo. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17. O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representa” não exprime o sentido exato da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui “representação” é realmente identificação, a identificação mística ou a reapresentação do acontecimento. (…) O culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática,uma figuração imaginária de uma realidade desejada (…). Como devemos encarar um processo espiritual que se inicia com uma experiência inexpressa dos fenômenos cósmicos e conduz a sua representação imaginária no jogo? HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 18-19. 30 Diríamos então que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nos animais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da sociedade o jogo se encontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar “vida” ou “natureza”. O que era jogo desprovido de expressão verbal agora adquire uma forma poética. Na forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e de racionalidade, a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pouco a pouco, o jogo vai adquirindo a significação de ato sagrado. O culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o fato inicial. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 21. O culto é a forma mais alta e mais sagrada da seriedade. Como pode ele, apesar disso, ser jogo? (…) Estamos habituados a considerar o jogo e a seriedade como uma antítese absoluta. Contudo parece que isto não permite chegar ao nó do problema. (…) A criança joga e brinca dentro da mais prefeita seriedade, que a justo título podemos considerar sagrada. Mas sabe perfeitamente que o que está fazendo é um jogo. Também o esportista(...). O mesmo se verifica no ator que, quando está no palco, deixa-se absorver inteiramente pelo “jogo” da representação teatral, ao mesmo tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo é válido para o violinista, que se eleva a um mundo superior ao de todos os dias, sem perder a consciência do caráter lúdico da sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode ser própria das atividades mais elevadas. Mas permitirá isto que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afirmando ser também meramente lúdica a atividade do sacerdote que executa os rituais do sacrifício? À primeira vista isto parece absurdo, porque aceitá-lo para uma religião nos obrigaria a aceitá-lo para todas. Assim, nossas ideias de culto, magia, liturgia, sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo conceito de jogo. (…) Essa identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão, que não hesitava em incluir o sagrado na categoria do jogo (Cf. PLATÃO, Leis, VII. 796 B). A identificação platônica entre o jogo e o sagrado não desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas regiões do espírito. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 22,23. 31 Verificamos que uma das características mais importantes do jogo é sua separação espacial em relação à vida cotidiana. É-lhe reservado, quer material ou idealmente, um espaço fechado, isolado do ambiente cotidiano, e é dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras têm validade. Ora, a delimitação de um lugar sagrado é também a característica primordial de todo ato de culto. Esta exigência de isolamento para o ritual, incluindo a magia e a vida jurídica, tem um alcance superior ao meramente espacial e temporal. Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam um certo isolamento artificial tanto dos ministros quanto dos neófitos. Sempre que se trata de proferir um voto, de ser recebido numa ordem ou numa confraria, de fazer um juramento, ou de entrar para uma sociedade secreta, de uma maneira ou de outra há sempre essa delimitação de um lugar do jogo. O mágico, o áugure, o sacrificador, sempre começam por circunscrever seu espaço sagrado. O sacramento e o mistério implicam sempre um lugar santificado. De um ponto de vista formal, não existe diferença alguma entre a delimitação de um espaço para fins sagrados e a mesma operação para fins de simples jogo. (...) Mesmo estabelecida a identidade formal do ritual e do jogo, continua sendo necessário saber se esta semelhança vai mais longe que o aspecto puramente formal (…) ― as práticas rituais, desenrolando-se dentro do quadro formal do jogo, são marcadas também pela atitude e pela atmosfera do jogo. (…) A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 23-24. Quais são, então, a atitude e o ambiente predominantes nas celebrações sagradas? A palavra celebrar diz tudo: o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de pretexto para uma festa. (…) As consagrações, os sacrifícios, as danças e competições sagradas, as representações, os mistérios, tudo isto vai constituir parte integrante de uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos, que as provas a que é submetido o iniciado sejam cruéis, que as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não impede que o ambiente seja de festividade, implicando a interrupção da vida cotidiana. (…) Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma eliminação da vida cotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo têm em comum suas características principais. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 25. 32 Não se pense, todavia, que que o estabelecimento de uma estreita relação entre o espírito do jogo e o ritual possa servir para explicar tudo. O jogo autêntico possui, além de suas características formais e de seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais, a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar “apenas fazendo de conta”. Permanece de pé a questão de saber até que ponto essa consciência é compatível com os atos rituais efetuados dentro de um espírito de devoção. Se nos limitarmos aos ritos sagrados das culturas primitivas, não será impossível determinar o grau de seriedade com que são efetuados. Tanto quanto me consta, os etnólogos e antropólogos concordam todos com a ideia de que o estado de espírito que preside às festas religiosas dos povos selvagens não é de ilusão total. Existe uma consciência subjacente de que as coisas “não são reais”. [A atuação dos] encarregados da direção do conjunto das cerimônias (…) assemelha-se em tudo à dos pais que brincam de Papai Noel com seus filhos: conhecem a máscara, mas escondem-na deles. (…) A atitude dos neófitos oscila entre o êxtase, a loucura fingida, o frêmito de horror e a afetação dos garotos. (…) HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 26. É impossível determinar de maneira rigorosa o limite a partir do qual a gravidade religiosa passa a ser simples divertimento (fun). Entre nós, um pai que seja um tanto ou quanto pueril poderá ficar seriamente zangado se seus filhos o surpreenderem no exato momento em que estiver preparando os presentes de Natal. No capítulo intitulado Primitive credulity, de seu livro The Threshold of Religion, R. R. Marette expõe a ideia de que em todas as religiões primitivas se encontra um certo elemento de “faz de conta” (makebelieve). Tanto o feiticeiro como o enfeitiçado são ao mesmo tempo conscientes e iludidos. Mas um deles escolhe o papel do iludido. “O selvagem é um bom ator, capaz de deixar-se absorver inteiramente por seu papel, tal como a criança quando brinca; e, também tal como a criança, é um bom espectador, capaz de ficar mortalmente assustado com o rugido de uma coisa que sabe perfeitamente não ser um verdadeiro leão”. (…) O comportamento dos indivíduos aos quais se atribui poderes sobrenaturais pode frequentemente ser definido como um playing up to the role (manter-se fiel ao papel). (...) Apesar desta consciência parcial do caráter fictício das coisas na magia e nos fenômenos sobrenaturais em geral, os mesmos observadores insistem que daí não deve concluir-se que todo o sistema de crenças e práticas seja apenas uma fraude inventada por um grupo de “incrédulos”, tendo em vista dominar os “crédulos”. É certo que esta interpretação não só é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nas tradições dos próprios indígenas, mas mesmo assim, não é possível que ela esteja correta (…): é impossível perder de vista, por um momento só que seja, o conceito de jogo, em tudo quanto diz respeito à vida religiosa dos povos primitivos. (…) Mais ainda: a unidade e a indivisibilidade da crença e da incredulidade, a indissolúvel ligação entre a gravidade do sagrado e o “faz de conta” e o divertimento, são melhor compreendidas no interior do próprio conceito de jogo. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 27-28. 33 Quando uma certa forma de religião aceita uma identidade sagrada entre duas coisas de natureza diferente, como por exemplo um ser humano e um animal, não podemos definir corretamente essa relação como uma “ligação simbólica”, no sentido em que a entendemos. A identidade e unidade essencial de ambos é muito mais profunda do que a relação entre uma substância e sua imagem simbólica. É uma identidade mística. Um se tornou o outro. Em sua dança mágica o selvagem é um canguru. Quer queiramos ou não, sempre transpomos as concepções religiosas do selvagem para o plano de exatidão rigorosamente lógica de nosso tipo de pensamento. Exprimimos a relação entre ele e o animal com o qual se identifica como sendo uma “realidade” para ele, e um “jogo” para nós. O selvagem diz que se apoderou da “essência” do canguru. Mas o selvagem nada sabe das distinções conceituais entre “ser” e “jogo”, nada sabe sobre “identidade”, “imagem” ou “símbolo”. Portanto, continua em aberto a questão de saber se a melhor maneira de apreender o estado de espírito do selvagem no momento em que celebra seus rituais não será o recurso à noção primária e universalmente compreensível de “jogo”. Em nossa concepção do jogo, desaparece a distinção entre a crença e o “faz de conta”. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 29-30. A noção de jogo associa-se naturalmente à de sagrado. Qualquer prelúdio de Bach, um verso de qualquer tragédia prova isso. Decidindo considerar toda a esfera da chamada cultura primitiva como um domínio lúdico, abrimos caminho para uma compreensão mais direta e mais geral de sua natureza, de maneira mais eficaz do que se recorrêssemos a uma meticulosa análise psicológica ou sociológica. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30. O jogo sagrado, pelo fato de ser indispensável ao bem-estar da comunidade e um germe de intuição cósmica e de desenvolvimento social, não deixa de ser um jogo que, como dizia Platão, se processa fora e acima das austeras necessidades da vida cotidiana. (…) Segundo a concepção de Platão, a religião é essencialmente constituída pelos jogos dedicados à divindade, os quais são para os homens a mais elevada atividade possível. Seguir esta concepção não implica de maneira nenhuma que se abandone o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar este a mais alta expressão possível daquilo que escapa às regras da lógica. Os atos de culto, pelo menos sob uma parte importante de seus aspectos, serão sempre abrangidos pela categoria do jogo, mas esta aparente subordinação em nada implica o não reconhecimento de seu caráter sagrado. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30. 34 Sobre a linguagem, o simbolismo e o pensamento simbólico (mágico-mitológico) Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir sempre que duas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa de valor geral. Em outras palavras, qualquer associação com base em qualquer semelhança pode se transformar diretamente na ideia de uma conexão essencial e mística (…). A equalização simbólica baseada em características comuns somente fará sentido se as características forem consideradas verdadeiramente essenciais. Rosas brancas e vermelhas florescem entre espinhos. O espírito medieval imediatamente vê neste fato um significado simbólico: virgens e mártires brilham em glória entre os seus perseguidores. Como se dá o postulado da equivalência? Ele se dá porque as qualidades são as mesmas: beleza, ternura, pureza, e o vermelho-sangue das rosas também são atributos das virgens e dos mártires. Mas essa conexão só será significativa de fato e cheia de sentido místico se o elo que conecta os dois termos do conceito simbólico, a qualidade portanto, contiver o essencial. Em outras palavras, como se as cores vermelho e branco não valessem como meros rótulos para distinções físicas com base quantitativa, mas fossem encaradas como realidades independentes. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 336-337. Para o espírito primitivo, tudo o que é denominável imediatamente assume uma essência, seja ela uma qualidade, uma forma, o que for. A coisa então se projeta automaticamente nos céus. Sua essência pode quase sempre (não necessariamente sempre) ser personificada; a qualquer instante começa a dança dos termos antropomórficos. Todo realismo, no sentido medieval, acaba sendo um antropomorfismo. Se o pensamento que atribuiu uma entidade independente a uma ideia quer torná-la visível, não há outro modo além da personificação. É aqui que se situa a transição do simbolismo e do realismo para a alegoria. A alegoria é o simbolismo projetado num poder de imaginação superficial; é a expressão intencional, e com isso também o esgotamento de um símbolo; a transição de um grito apaixonado para uma frase gramaticalmente correta. Goethe descreve o contraste assim: “ A alegoria transforma a manifestação em um conceito, o conceito em uma imagem, de forma que o conceito possa sempre se manter associado à imagem e nela ficar preservado. O simbolismo transforma a manifestação em ideia, a ideia em uma imagem, de forma que a ideia permaneça sempre eficaz e inalcançável e, mesmo que possa ser proferida em todas as línguas, permaneça inexprimível.” A alegoria tem, portanto, o potencial de ser reduzida a um pedante lugar-comum e ao mesmo tempo reduzir uma ideia a uma imagem. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 338. 35 O pensamento simbólico proporciona aquela intoxicação, aquela confusão pré-intelectual dos limites de identidade das coisas, aquele abrandamento do pensamento racional que leva a intensidade do sentimento pela vida a seu auge. (…) O valor moral do modo de pensar simbólico é inseparável de seu valor criativo. A formulação simbólica é como a música adicionada ao texto das doutrinas formuladas de maneira lógica, que sem essa música haveriam de soar excessivamente ásperas, excessivamente pobres. (...) O desvanecer da Idade Média apresenta todo esse mundo de pensamento em sua última floração. O mundo era perfeitamente representado pelo simbolismo que tudo abrangia, e os símbolos individuais se transformaram em flores petrificadas. Desde sempre, aliás, o simbolismo possuíra a tendência a se tornar puramente mecânico. Uma vez estabelecido como fonte de pensamento, ele não só brota da fantasia e entusiasmo poéticos, mas se acopla às funções intelectuais como uma planta parasita e degenera até virar mero hábito e uma doença do pensamento. Surgem perspectivas completas de contato simbólico, em especial quando este brota de uma simples correspondência entre números. São meros exercícios aritméticos. Os doze meses devem significar os doze apóstolos, as quatro estações, os evangelistas, e o ano inteiro, então, só pode ser Cristo. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 339-340. O símbolo só conserva o seu valor emocional em função da santidade das coisas que representa: tão logo o simbolismo passa do puro domínio religioso para o exclusivamente moral, a sua degeneração irremediável é exposta. (…) Naturalmente, porém, mesmo nas manifestações mais insossas, o simbolismo e a alegoria tinham para o espírito medieval um valor sentimental muito mais vivo do que imaginamos. A função das equiparações simbólicas e das figuras personificadas estava tão desenvolvida, que qualquer pensamento se transformava quase automaticamente em um personnage. Qualquer ideia era considerada uma entidade, qualquer qualidade, uma substância, e, enquanto entidade, era imediatamente personificada pela inteligência que a concebera. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 341-342. 36 A forte tendência medieval de criar um órgão para cada função não passa de um resultado da forma de pensamento que atribuía independência a cada qualidade, que via cada uma delas como uma ideia em separado. O rei da Inglaterra tinha entre os seus magna sergenteria (altos postos de sargento) um oficial para segurar a cabeça dele quando atravessasse o canal e ficasse enjoado; em 1442 essa posição foi ocupada por um tal de John Baker, que depois a passou para suas duas filhas. É necessário analisar sob a mesma luz o costume de dar um nome próprio a todas as coisas, mesmo as inanimadas. Trata-se, por mais pálido que seja, de um traço de antropomorfismo primitivo quando, mesmo na vida militar atual ― que em vários aspectos significa uma volta a um comportamento de vida primitivo ―, se dão nomes a canhões. (…) Quando vemos que nos dias de hoje os navios continuam a ter nomes, mas apenas uma ou outra casa manteve o hábito e os sinos não os têm mais, isso deve-se ao fato, por um lado, de os navios mudarem de lugar e precisarem ser identificados a qualquer momento, mas também porque o navio contém mais qualidades próprias que a casa, o que também está expresso no she (ela) usado no idioma inglês para referir-se a embarcações. Deve-se imaginar que essa percepção pessoal das coisas era muito mais forte na Idade Média: nesse período, cada coisa recebia um nome, desde os calabouços dos cárceres até cada casa e cada relógio. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 376-377. Sobre o misticismo e os limites da linguagem A língua humana é incapaz de evocar uma visão tão drástica da felicidade como ela o faz com o horror. Para encontrar material cru que descreva a feiura e a miséria, basta mergulhar fundo nos recantos mais baixos da humanidade; mas para descrever a suprema sensação de felicidade, é preciso esticar o pescoço bem para o alto, na direção do céu. [Dioniso Cartuxo, na Idade Média,] esfalfa-se em superlativos desesperados, o que não passa de mero reforço matemático da imaginação, sem nenhum esclarecimento ou aprofundamento da ideia de felicidade. [E faz o mesmo em relação a Deus.] (…). Mas de que adianta acumular superlativos ou visões qualitativas da altura, da amplidão, da incomensurabilidade e da inesgotabilidade? Continuam sendo meras imagens, tentativas de reduzir a ideia do infinito a imagens nascidas do mundo finito; isto leva ao enfraquecimento e à exteriorização do conceito de eternidade. Eternidade não é tempo mensurável. Cada sensação, uma vez expressa, perde sua imediatez; cada característica atribuída a Deus tirava-lhe um pouco de Sua imponência. Neste ponto começa a ingente luta para alçar-se, com o poder da mente humana, à absoluta ausência de imagem da divindade. Sem estar vinculada a nenhuma cultura ou época, essa luta repete-se em todos os lugares e sempre da mesma forma. (…) Mas o apoio da imaginação não pode ser abandonado de pronto. Uma a uma, as deficiências dos meios de expressão se tornam evidentes. As encarnações concretas da ideia e as vestes multicoloridas do simbolismo são as primeiras a caírem por terra: feito isto, não se fala mais de sangue e expiação, nem mais de Eucaristia, nem Pai, Filho e Espírito Santo. No misticismo de Eckhart, Cristo quase não é 37 mencionado, e tampouco o são a Igreja e os sacramentos. Mas as expressões para a visão mística do Ser, da Verdade, da Divindade permanecem ligadas a conceitos naturais, aqueles de luz e de vastidão. Mais tarde, bruscamente, invertem-se e passam a ter um caráter negativo: silêncio, vazio e escuridão. Em seguida, também se reconhece a insuficiência desses conceitos amorfos e sem conteúdo, e tenta-se resolver essa insuficiência conectando-os continuamente a seus opostos. Por fim, não resta nada além da pura negação; a divindade, que não é reconhecida em nada do que existe, pois está acima de tudo, passa a ser chamada pelos místicos de “Nada”. (…) É evidente que essa progressão do espírito contemplativo até o abandono de toda e qualquer representação não aconteceu exatamente nessa sequência. A maioria das declarações místicas apresenta todas essas fases misturadas entre si. Elas já existiam na Índia, estavam completamente desenvolvidas em Pseudo-Dionísio Aeropagita, que é a fonte de todo o misticismo cristão, e ressurgem no misticismo alemão do século XIV. (…) Ver Deus por intermédio da negação, diz Dionísio em outro momento, é mais perfeito do que pela afirmação. (…) É certo que Ele é incompreensível e desconhecido, impenetrável e inexprimível, e distingue-se de tudo o que ele faz mediante uma excelência e diferença incomensuráveis e única (…). Será que o poder das imagens fora derrotado? Sem imagem nem metáfora é impossível expressar qualquer pensamento. Quando se fala da essência incompreensível das coisas, cada palavra é imagem. Falar dos desejos mais elevados e mais íntimos somente por negações não satisfaz o coração, e sempre que o sábio atinge o impasse, o poeta vem em seu socorro. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 16 - O realismo e o sucumbir da imaginação no misticismo. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 361-362 e 366-367. O caminho do misticismo leva para dentro do infinito e para a falta de consciência. Ao negar toda conexão entre a divindade e tudo o que é particular e nomeável, anula-se a transcendência; a ponte que leva de volta à vida foi subitamente interrompida. (…) O misticismo intensivo representa uma volta à vida espiritual pré-intelectual. Todo intelectualismo fica sem efeito, é subjugado e tornado supérfluo. Apesar disso, o misticismo contribuiu para a cultura com ricos frutos, isso porque ele se desenvolve por estágios preparatórios e só aos poucos descarta as formas do costume e da cultura. Os seus frutos para a civilização nasce nos primeiros estágios, abaixo do limite superior da vegetação. É ali que desabrocha o pomar da perfeição moral, necessário como preparativo para qualquer um que deseje a contemplação: a paz e a ternura, o abrandar do desejo, a simplicidade, a moderação, a diligência, a seriedade e o fervor. Foi assim na índia e é assim aqui: o efeito inicial do misticismo é moral e prático, consistindo, acima de tudo, no exercício da caridade. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 16 - O realismo e o sucumbir da imaginação no misticismo. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 367-368. 38 Sobre arte, poesia e literatura em geral Há meio século que a arte vem se afastando cada vez mais da razão. (…) A arte poética de todos os tempos, mesmo quando o poeta se transporta aos maiores êxtases, mantém sempre um elo que a liga à expressão racional. (…) [Agora] o quinhão do não-racional e do antiracional é cada vez maior (…), vemos a poesia a seguir propositadamente uma derrota diferente da da razão. Os poetas principais começaram a negar-se ao reconhecimento do critério de inteligibilidade lógica (…). Este divórcio da razão e da arte poética tem o seu correspondente nas artes plásticas com o alheamento das formas visíveis da realidade. Ars imitatur naturam fôra durante muitos séculos, desde a sua formulação por Aristóteles, um artigo de fé bem firme. O tratamento estilístico, ornamental ou monumental do assunto nunca o suprimiu, embora desse por vezes a impressão de perturbar o cumprimento desse princípio. O significado da sentença de Aristóteles nunca foi o de que a arte simplesmente copia o que vê na natureza. Tem um sentido muito mais profundo: a arte imita a natureza, isto é, tal como ela, cria formas. Contudo, a reprodução perfeita da realidade visível ficou sempre o ideal universalmente acarinhado. Para a expressão plástica, respeito pela natureza significava de certo modo respeito pela razão, visto que esta é o órgão com que o homem interpreta e compreende o seu ambiente. (…) A ruptura só se verifica quando o artista tenta criar formas fora da realidade, tal como esta se apresenta ao observador comum. Se por vezes na composição artística as figuras isoladas podem ser ainda tiradas da natureza, o seu agrupamento é tal, que o todo já não corresponde a uma percepção da realidade passada pelo crivo da lógica. (…) Com a sua completa renúncia ao concreto da imagem natural como esqueleto da expressão pictórica, a arte da pintura rejeita todos os meios vulgares da faculdade perceptiva (…). HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 171-174. Capítulo A arte e a literatura. Uma certa analogia entre a situação da arte e a da ciência é inegável. (…) Olhando porém mais de perto, descobre-se uma diferença fundamental entre os dois fenômenos. (…) Para a arte não há um imperativo absoluto; não há uma disciplina do espírito que a constranja. O seu impulso criador centraliza-se na vontade. E aqui é que se manifesta um fato de grande importância; a arte aproxima-se, muito mais que a ciência, da moderna filosofia da vida que sacrifica a compreensão à existência. A nova arte julga poder representar e interpretar verdadeira e sinceramente a vida sem fazer uso da função intelectual, esquecendo que, apesar de tudo, tal interpretação com a sua expressão continua a ser um ato do intelecto. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 175-177. Capítulo A arte e a literatura. 39 (…) a ânsia perpétua de originalidade, outra enfermidade do nosso tempo, torna a arte muito mais suscetível que a ciência a todas as influências corruptivas exteriores. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 179-180. Capítulo A arte e a literatura. Passando em revista, no sei todo, o desenvolvimento do processo espiritual desde os meados do século XVIII tem-se a impressão de que no decurso deste processo a percepção estética e sentimental foi penetrando cada vez mais no domínio do pensamento. Esta apreciação estética e sensível introduziu-se na compreensão lógica. Por outro lado, em trabalhos de beleza e sensibilidade, o elemento “razão” inerente às suas formas de expressão, tornou-se progressivamente mais débil. Este processo geral atinge o seu ponto extremo e culminante no momento em que nega ao conhecimento a primazia como meio de compreensão do mundo. O perigo desta irracionalização, reside, sobretudo, no fato de ela ser acompanhada pelo maior desenvolvimento das forças técnicas. É evidente que a adoração da vida, originada pela irracionalização da cultura, não pode senão promover o culto do eu. Mas o culto do eu significa a exasperação da ânsia de bem-estar terreno. Ora se esta ânsia tem ao seu dispor as ilimitadas possibilidades duma faculdade técnica altamente desenvolvida, o perigo inerente a todo culto do eu será muitíssimo maior para a sociedade, visto que a realização desse desejo ardente de bem-estar conduz necessariamente à destruição do bem-estar dos outros. (…) Um regresso à razão e ao racionalismo não é suficiente para nos arrancar ao abismo. O peso para equilibrar essa cooperação de fatores destrutivos só o podemos encontrar nos mais altos valores éticos e metafísicos. HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 186. Capítulo A arte e a literatura. [O conceito de formalismo:] A noção inerente da realidade transcendental das coisas significa que cada ideia é definida por limites fixos, está isolada numa forma plástica, e que essa forma é dominante. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 392. [Normalmente] é a forma que ameaça sobrepujar o conteúdo e o impede de se renovar. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 18 - A arte na vida. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 458. 40 O mesmo princípio de estilo leva a resultados bem distintos nas belas-artes e na literatura. Mesmo se o pintor decidir simplesmente reproduzir uma realidade externa em linha e cor, ele sempre acaba pondo atrás dessa imitação meramente formal alguma reminiscência do não pronunciado ou do impronunciável. Mas se o poeta não tentar nada além de simplesmente expressar com palavras uma realidade já visível ou já compreendida, então se esgota na palavra o tesouro do não pronunciado. Pode ser que o ritmo e a sonoridade ali contidos lhe proporcionem uma nova beleza não pronunciada. Mas se também esses elementos forem fracos, o poema apenas manterá o seu efeito enquanto a ideia prender a atenção do ouvinte. (...) Mas quando a ideia em si já não diz mais nada, o poema consegue manter o seu efeito somente pela forma. A forma tem uma importância sem igual, e pode até ser tão nova e viva que a questão do conteúdo da ideia mal vem à tona. (…) Para o pintor, a época de tal limitação mental só chega mais tarde. Pois ele vive do tesouro do não pronunciado e é a plenitude desse tesouro que determina o resultado mais profundo e mais duradouro de toda a arte. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 483. Eis aí o efeito da “elaboração irrefreada” na pintura. O pintor, esse pintor [Jan Van Eyck] tinha a capacidade de, dentro de um espaço que não chegava a meio metro quadrado, dar asas a seu desejo mais descompromissado de detalhamento (ou deveríamos dizer: à satisfação dos pedidos mais exigentes de um mecenas ignorante?) sem nos cansar mais que o que faria um olhar rápido para a aglomeração viva da realidade. Pois um vislumbre é só o que nos é permitido; a força das dimensões estabelecia limites, e adentra-se na beleza e no caráter especial disso tudo que está representado, sem esforço mental: muitos dos detalhes que merecem atenção nem mesmo são notados, ou já desaparecem instantaneamente da consciência e servem apenas para efeitos de cor ou de perspectiva. Se atribuímos essa característica geral de “elaboração irrefreada das particularidades” também à literatura do século XV (…) tudo ocorre de outra forma. (…) a relação entre o assunto principal e os assuntos secundários na poesia [é] justamente inversa à da pintura. Na pintura, a diferença entre o assunto principal (ou seja: a expressão adequada do tema) e os assuntos secundários é pouca. Tudo ali é essencial. Para nós, um simples detalhe pode determinar a completa harmonia da obra. (…) Mas é justamente no detalhe que o pintor está totalmente livre. Quanto ao tema principal [na Idade Média], a ideia do motivo sagrado, lhe foi estipulada uma rígida convenção; cada cena religiosa possui o seu código iconográfico, do qual não se tolera nenhum desvio. No entanto [nos detalhes] ele tem um campo ilimitado para desenvolver livremente o seu entusiasmo criador. Na poesia do século XV, no entanto, essa relação de certa forma se inverte. Quanto ao tema principal, o 41 poeta é livre: ele pode encontrar uma nova ideia, se puder, enquanto justamente o detalhe e o pano de fundo são dominados em grande parte por convenções. Flores, o prazer da natureza, tristezas e alegrias, todos esses elementos têm as suas formas fixas de expressão, as quais o poeta pode lustrar e colorir um pouco, mas não renovar. Ele lustra e colore infinitamente, pois lhe falta a salutar limitação imposta ao pintor pelo preenchimento do espaço vazio; o espaço do poeta é sempre ilimitado. Ele não tem a limitação dos meios materiais, e justamente por causa dessa liberdade ele, proporcionalmente, precisa de uma capacidade mental maior que a do pintor para fazer algo bom. Os pintores medianos ainda continuam sendo um deleite para os olhos da geração seguinte, mas o poeta mediano afunda no esquecimento. Para demonstrar o efeito da “elaboração irrefreada” numa obra poética do século XV, seria necessário acompanhá-la passo a passo, em todo o seu conteúdo (e elas são longas!) HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 489-492. Comparado à pintura, o que constitui no poema [medieval tardio] o efeito diferente da elaboração extensa da cena natural? Qual é o efeito da expressão de uma mesma inspiração através do uso de diferentes meios? O fato de o pintor, devido à natureza de sua arte, ser obrigado a manter uma fidelidade simples à natureza, enquanto o poeta se perde na grande superficialidade amorfa e na enumeração de motivos convencionais. A prosa, neste aspecto, aproxima-se mais da pintura do que a poesia. Ela está menos presa a certos motivos. Muitas vezes expõe mais enfaticamente a reprodução precisa de uma realidade vista e a executa usando meios mais livres. Com isto, talvez a prosa demonstre melhor do que a poesia o profundo parentesco entre a literatura e a arte. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 494-495. A característica básica do espírito medieval tardio é o seu caráter predominantemente visual. Este está ligado de maneira íntima ao atrofiamento das ideias. O pensamento se dá a partir de concepções visuais. Tudo aquilo que se quer expressar é acomodado em termos visuais. A absoluta falta de conteúdo intelectual das representações alegóricas ou poemas podia ser tolerada porque a satisfação situava-se toda naquilo que se tinha visto. A tendência de reproduzir o imediato externamente visível encontrou uma expressão mais forte e mais absoluta nos meios pictóricos do que nos literários. E do mesmo modo, uma expressão mais forte pelos meios da prosa do que pelos da poesia. Por isso a prosa do século XV, em muitos aspectos, se situa como um meio termo entre a pintura e a poesia. Todos os três possuem em comum a elaboração irrefreada das particularidades, a qual contudo, conduz a um realismo direto na pintura e na prosa, realismo que a poesia desconhece e não tem nada melhor a dispor. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 494-495. 42 Na pintura a reprodução da natureza era de caráter meramente secundário e por isso podia permanecer pura e sóbria. Uma vez que o pano de fundo não era importante para o tema, por não fazer parte do estilo hierático, os pintores do século XV podiam reproduzir um certo grau de naturalidade harmônica em sua paisagem,, que as rigorosas regras quanto ao tema ainda lhes proibiam na cena principal (…). Quanto menor for a ligação entre a paisagem e a ideia central, tanto mais harmônica e natural será a pintura como um todo. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 504. As belas-artes, sempre que descem ao nível da caricatura, conseguem somente expressar um limitado sentimento cômico. Reproduzido apenas visualmente, o cômico tendo a tornar-se novamente sério. Apenas nos casos em que a adição do elemento cômico na representação da vida é muito pequena ― quando não passa de um tempero e não o sabor dominante do próprio prato ―, a imagem consegue acompanhar o passo da expressão em palavras. A pintura de gênero contém o elemento cômico em seu grau mais fraco. (…) Porém, mesmo no caso do gênero, a palavra passa a ter uma dimensão maior do que a da imagem. Ela consegue reproduzir explicitamente o estado de espírito. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 21 - A palavra e a imagem. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 521. 43
Documentos relacionados
O jogo, o sagrado e o pensamento mágico
Seleção de citações de Huizinga: Jogo & Sagrado; Linguagem; Misticismo; Arte ― Consideradas três obras: Nas sombras do amanhã; O outono da Idade Média e Homo Ludens. Seleção e ocasionais comentário...
Leia mais