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7 JORNAL LABORATÓRIO DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ - número 15 - 2009/1 Branca de Neve e os ...... anões ...... de setembro crise dos ...... anos ...... mares pela bola ...... ......ª arte a camisa ...... bicho de ...... cabeças 00 ...... abaixo dos ...... palmos ...... notas musicais trancado a ...... chaves ...... cores do arco-íris pintando o ...... ...... anos de azar jogo dos ...... erros ...... dá sorte os gatos têm ...... vidas as ...... maravilhas do mundo 2 As muitas versões de um número místico O número sete é aquele que se segue aos seis e precede o oito. Mas é também muito mais do que isso. Chamado de o “número mágico”, o sete está presente na natureza, na ciência e em diferentes culturas e crenças de todo o planeta. São sete os dias da semana, as cores do arco-íris, as notas musicais, os anões da Branca de Neve, as maravilhas da Antiguidade, os pecados e até os orifícios da cabeça! Não se sabe desde quando nem como o sete se tornou um símbolo e adquiriu significações e atribuições tão diversas. No entanto, a explicação mais adotada por historiadores, mitólogos e estudiosos de religião comparada é de que o fascínio pelo número surgiu a partir da observação da natureza pelos povos mais antigos. Ao contemplar o céu, as sociedades pré-históricas perceberam o ciclo da Lua, que se divide em quatro fases (Nova, Crescente, Cheia e Minguante) com duração de sete dias cada uma. Este dado assumiu grande importância na vida cotidiana de muitos povos, como babilônios, sumérios, hebreus, gregos e incas, pois era através da observação do céu que eles podiam prever a chegada das estações do ano e o período correto para o plantio e colheita. A partir de então, o sete teria se tornado referência no dia-a-dia dessas sociedades e por extensão ganhado significações que persistem até hoje. A semana de sete dias, por exemplo, é uma derivação do calendário lunar e, segundo evidências arqueológicas e históricas, teria sido utilizada pela primeira vez pelos babilônios que deram a cada dia o nome de um dos planetas que conheciam. Depois a semana de sete dias foi adotada pelos hebreus durante o período em os babilônios conquistaram o seu reino, Judá, em cerca de 500 a. C. Com a dispersão do povo hebreu, essa medição dos dias foi incorporada pelos islâmicos e, mais tarde, pelos gregos e romanos, que também atribuíram a cada dia um planeta que correspondia também aos deuses: Dies Solis (Dia do Sol), Dies Lunae (Dia da Lua), Dies Martis (Dia de Marte), Dies Mercuri (Dia de Mercúrio), Dies Iovis (Dia de Júpiter), Dies Veneris (Dia de Vénus) e Dies Saturni (Dia de Saturno). O sete também está presente em mais de um mito de criação, sendo o mais conhecido deles a Gênese hebraica e cristã, presente no Antigo Testamento, em que Deus cria o mundo em sete dias e descansa no último, que é o sagrado Shabat dos judeus. Por isto o sete é tido por estes povos como o número da criação, da perfeição e da união entre Deus e a Terra. A cultura hebraica está impregnada de significados para o sete, a Menorah, um dos pricipais objetos litúrgicos dos judeus, é um candelabro de sete braços que é aceso antes da oração do Shabat, quando surge a primeira estrela no céu de sexta-feira. Além disso, entre os cristãos, são sete os pecados, sete as virtudes e sete os sacramentos (confissão, eucaristia, crisma, ordem, matrimônio, batismo e extrema-unção). Entre os egípcios, o sete também está presente: são sete os deuses principais e sete os estágios de purificação pelos quais a alma passaria após a morte. Na China e entre os hindus, o número está ligado aos principais chakras, canais ou aberturas do corpo por onde circula a energia vital que o nutre. No mundo islâmico, o sete é igualmente importante, sendo o símbolo de perfeição e vastidão, presente nos sete céus, véus, terras e mares. No Irã, o número já é apresentado logo que a criança nasce. O rebento é envolvido em uma toalha com sete espécies de frutos e de grãos aromáticos e só recebe um nome no sétimo dia após sua chegada ao mundo. Na arquitetura sagrada, o sete é recorrente. Os pagodes, templos chineses, possuem por tradição sete degraus na entrada. O mais famoso, Churingham, é cercado por sete paredes pintadas com sete cores diferentes. No Ramayana, texto épico sânscrito de sete partes que é base da cultura indiana, sete pátios são mencionados como parte das residências dos reis hindus e sete são os portões que levavam aos palácios destes reis. Em Cuzco, o antigo panteão inca, um muro exibe, junto à figura de uma árvore cósmica, um desenho que representa sete olhos, “os olhos de todas as coisas”. Para os alquimistas, este número também possuía um significado profundo, pois eram sete os metais com que eles trabalhavam, além de sete os passos para se transformar qualquer matéria em ouro. Entre os budistas, bem como entre os gregos, eram sete os sábios reconhecidos. Na Grécia, são muitos os mitos que envolvem o número: as sete Hespérides, as sete portas de Tebas, os sete filhos e as sete filhas de Niobe, as sete cordas da lira. Na África, o sete é sinal de perfeição e unidade, de união dos contrários (quatro é o feminino e três, o masculino) e também símbolo da fecundação. Na Umbanda, o sete também é reverenciado: sete são as “Encruzilhadas do Caboclo”, bem como as etnias que a praticam (Oriente, Omolocô, Almas, Angola, Nagô, Gêge e Kêto). Também encontramos o sete nas seitas e religiões ocultistas. Entre os cabalistas, são sete os Sephiroth, as emanações de Ain Soph (“Sem limites”, em hebraico), que é Deus em seu aspecto mais sublime. Elas formam a árvore da vida, metáfora da natureza divina, ou Pleroma, princípio e fim do mundo criado. Já no sufismo, filosofia mística do islamismo, são sete os níveis de consciência, que correspondem aos estados de espírito. Na matemática o sete também se destaca. Ele é o único número primo que não é nem múltiplo nem divisor de um outro número entre 1 e 10. Além disto, o resultado da divisão de qualquer inteiro não múltiplo de 7, por 7, resulta sempre na 142857 periódica. Faça o teste! Rafael N. Godinho Sofia Moutinho NO 15 - 2009/1 EDITORIAL Sete são as colinas de Roma, os anões da Branca de Neve, os algarismos romanos, os sábios da Grécia, as cabeças da Hidra, os pecados capitais e os desastres do Apocalipse. A História talvez ainda não tenha registrado, mas sete também são os anos de existência do “Número Zero”. Nelson Rodrigues dizia que não há coincidências burras. Mas a inteligência delas a gente só descobre depois que acontecem. E foi assim, fechando as últimas matérias, que nos demos conta de que esta edição sob o signo do sete acontece não só no sétimo aniversário do jornal mas, também, no fim de um ciclo em sua coordenação. Não, nós professores não estamos enfrentando a crise dos sete anos. E, apesar de não termos nada de divino, é justo que descansemos no sétimo ano. Não para ficar de papo para o ar, mas para dar lugar a uma nova coordenação que, esperamos, tenha o fôlego e as sete vidas de um gato. Nestes sete anos, escrevemos sobre tudo: ditados populares e clichês, esportes e religiões, a Urca e as ruas do Rio. Sempre tendo em mente que, mais importante do que qualquer coisa, é o espírito de experimentação – que permite, por exemplo, editarmos um número inteirinho sobre a mística de um número. O jornalismo não é uma das sete artes, mas permite exercitar a cada dia a esperança, a fortaleza, a prudência, o amor, a justiça e fé e a temperança – estas, sete, sendo as clássicas virtudes humanas. Sendo o sete também a conta de mentiroso, encerramos este editorial no sexto parágrafo com a sensação de dever cumprido e muito bem arrematado aqui. Ok, sete é também o numero da perfeição, mas, modestos que somos, preferimos que seja aqui o número de sorte para todos nós. O que não é pouco. André Motta Lima, Mauricio Schleder e Paulo Roberto Pires Universidade Federal do rio de Janeiro reitor Aloisio Teixeira escola de comUnicação direção Ivana Bentes coordenação do curso de Jornalismo Ana Paula Goulart núcleo de imprensa Elizabete Cerqueira coordenação executiva Cecília Castro programação visual número 15 - 2009/1 Informativo produzido pelos alunos da Escola de Comunicação da UFRJ orientação acadêmica e de texto Maurício Schleder Paulo Roberto Pires coordenação editorial André Motta Lima coordenação gráfica e design Cecília Castro assessoria de imprensa Elizabete Cerqueira apoio Divisão Gráfica da UFRJ Este número foi produzido com matérias elaboradas pelos alunos da disciplina Jornal Laboratório. As fotografias e ilustrações são de responsabilidade dos alunos. TIRAGEM: 500 exemplares distribUição GratUita NO 15 - 2009/1 O número da sorte 3 Nos cassinos dos EUA ou nas ruas do Brasil, a mística influencia apostadores de jogos de azar A roleta gira pela primeira vez, as figuras se organizam de forma insatisfatória e os créditos diminuem. Na segunda tentativa, duas cerejas em sequencia devolvem as esperanças. O apostador, porém, só vai realmente sentir-se um vencedor quando os três setes aparecerem lado a lado, dando o prêmio máximo no caça-níquel.“Eles têm uma verdadeira fixação no sete, principalmente nos jogos!”, conta Vitor Alves, estudante de publicidade que passou quatro meses nos EUA, em intercâmbio, visitou cassinos em Las Vegas e constatou a obsessão dos norte-americanos com o dito número da sorte. “Nos caça-níqueis, tirar este número dá direito ao prêmio máximo. Há jogos de dados em que vence quem tira o sete. Existem caras que apostam obsessivamente neste número, nas roletas. E os cassinos aproveitam esta mística também nas propagandas. Um deles tinha uma carta de baralho gigante, com o sete, brilhando na entrada”, prossegue ele, confirmando que a mística do sete encontrou nos jogos de azar o lugar ideal para ganhar ainda mais força. A relação entre o sete e a sorte é, de fato, bastante explorada. Os cassinos não perdem a chance de vincular o misticismo do número aos jogos para atrair mais clientes. “Quando inauguramos o cassino, nosso gerente queria que o telefone tivesse um número fácil. Por isso, escolheu o sufixo 7777, porque este é o número da sorte. Como a sorte é um fator muito importante em jogos de azar, é possível que isso exerça uma influência nas pessoas”, conta Candace Penney, do Lucky Seven Casino, na Califórnia. O jogo de dados pode ser considerado o principal responsável pela força deste mito. Nele, rola-se dois dados, e o vencedor é aquele que somar o sete. Coincidência ou não, a soma parte sempre dos lados opostos do dado: 6 e 1, 5 e 2, 4 e 3. Some a isso o fato de desde o Império Romano haver apostas baseadas nos dados – e no tal sete - e pronto: surge o mito do número da sorte. Número não possui a mesma fama no Brasil Em terras tupiniquins, entretanto, a lenda não tem tanta força. O professor de inglês André Diniz, que viveu nos EUA dos quatro aos 16 anos, vê de forma clara as diferenças. “O máximo de traço que existe aqui no Brasil são os caçaníqueis, que mostram o sete como prêmio máximo, mas acho que as pessoas não ligam muito para isso”, diz. Para ele, as superstições que relacionam o algarismo ao azar são muito mais fortes no Brasil. “Tem a crise dos sete anos no casamento, a ideia de que quebrar um espelho dá sete anos de azar. Isso tudo é muito mais entranhado na cultura brasileira”, conclui. Na verdade, o próprio número não ajuda. Na Mega Sena, o jogo mais popular do país, o sete não figura nem entre as dezenas mais sorteadas, nem entre aquelas que raramente aparecem. Está exatamente no meio, tendo saído apenas dez vezes nos últimos 12 meses. Para completar, até 20 de maio, não saía há quatro sorteios. Além disso, o fato de os jogos de azar serem proibido no Brasil também ajuda a enfraquecer um pouco o mito. Não à toa, no mais conhecido jogo ilegal da nação, o sete tem uma participação mais ativa e até gera certa mística. No famoso Jogo do Bicho, o carneiro, animal representado pelo número, está entre os cinco resultados mais frequentes. Além disso, é um dos mais apostados nos pontos espalhados país afora. Sil vana Triani, de 40 anos, faz parte do grupo de pessoas que deposita sua fé no carneiro. “Depende muito dos sonhos também. Quando sonho com algum outro bicho, eu aposto nele. Mas quando não acontece sempre jogo no carneiro”, conta ela, que já chegou a ganhar duas vezes graças a sua persistência. Outro exemplo de insistência e superstição é Nelson Santos, um camelô de 26 anos, que quase diariamente tenta a sorte grande. Curiosamente, ele só confia em um caça-níquel, próximo à estação de metrô da Pavuna, para fazer a sua fé. “Eu sou bastante supersticioso. Já tentei jogar em outras máquinas, mas nunca consegui nada. Nesta aqui, me sinto mais confiante, tenho mais segurança. Sei que ainda vou tirar os três setes nela”, explica ele, apontando para a máquina. Entretanto, esta confiança rendeu poucos frutos a ele. “Ganhei poucas vezes, e sempre uma merreca. Mesmo assim, procuro sempre jogar aqui. Acho que qualquer pessoa que aposta em algum jogo tem suas manias e neuroses. Faz parte da graça de apostar”, acredita Nelson. Para Laís Salomão, numeróloga há sete anos, toda a mística religiosa e histórica do número é a grande responsável por ele ser tido como um algarismo da sorte. Entretanto, no Brasil, outros fatores também influem. “Acho que é uma crença mais pessoal, depende muito da criação que cada pessoa recebe, da cultura em que ela está inserida”. Certo mesmo é que o sete é, de fato, poderoso. “É um número com grande força espiritual, dos estudos, da meditação, do isolamento em busca do conhecimento. Geralmente, pessoas guiadas pelo sete têm a missão de mudar de forma significativa a vida de outras pessoas”, explica. Felipe Schmidt 4 NO 15 - 2009/1 Na morte, restaram quatro palmos Superlotação dos cemitérios cariocas reduz a profundidade das sepulturas e exige novas alternativas Sete palmos de terra. Não há quem nunca tenha ouvido falar na expressão que já inspirou música, poesia e até série televisiva. Mas será que todos sabem de onde ela vem? Equivalente a aproximadamente 1,55, metros a medida se refere à profundidade das covas e pode estar em vias de extinção. Os cemitérios do Rio de Janeiro, criados há mais de 100 anos, estão com falta de espaço e quando se trata de vencer a superlotação nem a lei é respeitada. De acordo com o artigo 19 do Decreto “E” Nº 3.707 de 06 de fevereiro de 1970, as covas rasas devem ter medida mínima de 1,55 metros de profundidade por 2,10 metros de comprimento para evitar a contaminação do lençol freático e a expansão para a superfície de gases e microorganismos que fazem a decomposição. No entanto, a prática é bem diferente. Segundo Carlos Pereira, coveiro há 24 anos do cemitério São Francisco Xavier, mais conhecido como Caju, a profundidade real das covas está entre três e quatro palmos. A mudança foi decorrente da redução dos espaços nos cemitérios que precisaram diminuir a profundidade para aumentar o calor, acelerar o processo de decomposição e encurtar o tempo necessário para a exumação dos corpos de cinco para três anos. Com a diminuição, espaços antigos se tornaram disponíveis em menos tempo. A redução da profundidade das covas foi adotada, sobretudo, nos 13 cemitérios públicos da cidade que estão, desde 1851, sob administração da Santa Casa de Misericórdia do RJ. O caráter público vem da regulação governamental sobre a prestação de serviços, preços dos caixões e fiscalização dos cemitérios. Como instituição sem fins lucrativos a Santa Casa repassa o valor cobrado pelos sepultamentos para a realização de enterros daqueles que não podem arcar com as despesas. Construídos há mais de um século, os cemitérios públicos e particulares precisam se adaptar à passagem do tempo e à impossibilidade de expandir o território. Com cerca de 250 sepultamentos por dia dentro do município, outras alternativas foram necessárias para atender a todas as famílias. Empresas privadas optam pela busca de novas áreas e construção de cemitérios verticais. Entre os cemitérios particulares o mais conhecido é o Jardim da Saudade, com unidades em Sulacap e mãe e na época procuramos o Cemitério de Inhaúma para fazer o enterro porque eu queria que ela ficasse no mesmo lugar que o meu pai estava. No entanto, quando liguei para pedir uma locação por três anos me informaram que lá não havia nenhuma disponível e que eu deveria procurar outro. Acabei escolhendo o cemitério do Caju”, disse Vicente. O mesmo aconteceu com um morador de Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, que não quis se identificar. “Meu tio morreu subitamente e quando fomos procurar pelo cemitério aqui mesmo da região não encontramos vaga. A princípio disseram que talvez tivesse, mas no final das contas tivemos que optar pelo Jardim da Saudade de Paciência”. Apesar disso, Dahas Zarur, administrador da Santa Casa, diz que “não há nada lotado em nenhum cemitério. As caixinhas que recebem os ossos, por exemplo, ocupam toda a parede do local e não há como acabar esse espaço”. Acontece que passados os três anos necessários para a exumação, vagas antigas são reabertas, como se dessem início a um novo ciclo. A superlotação está relacionada a não existência de locais novos, o que leva à dependência das exumações para que novos enterros possam ser feitos. A falta de espaço, nesses casos, não é definitiva. A ausência de locais para sepultaht mento em alguns cemitérios do Rio de Jatp :// im g. neiro afeta principalmente as pessoas de te rr a. co classe média e baixa que não têm condim .b r/i /2 ções de adquirir um jazigo perpétuo, que 00 8/ 07 /2 custa no mínimo vinte mil reais. Nesses 2/ 81 64 casos, há espaço suficiente para cai49 -6 15 1xão e ossos, não havendo risco ga .jp g de que ele se esgote um dia, segundo informou o administrador da Santa Casa. Paciência, zona oeste da cidade. O estilo parque foi trazido dos EUA e oferece apenas um tipo de sepultamento: caixa de concreto abaixo da grama com espaço duplo onde as pessoas são sepultadas. Embora a violência tenha crescido no Estado do Rio de Janeiro em 40% entre 1991 e 2000, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ela não é responsável pela superlotação. “A ausência de espaço está associada ao término da vida útil dos cemitérios, variável de acordo com o local e as dimensões. O que está acontecendo é que o Jardim da Saudade de Sulacap, o primeiro que o Brasil teve no estilo parque, está praticamente esgotado. Criado há 40 anos, pode esgotar em cinco. Estamos chegando ao período final das vendas de sepulturas. Tudo que poderia ser construído já foi. Já o de Paciência tem apenas 15 anos e ainda vai durar por bastante tempo. Esse é o ciclo normal de qualquer cemitério. É assim nos particulares e também nos públicos como já está acontecendo no São João Batista, um dos mais antigos do Rio de Janeiro”, disse Nacle Gibran Bezerra Filho, diretor do Jardim Saudade. O cemitério São João Batista, construído em 1851, e o de Inhaúma, datado de 1901, estão entre os que costumam sofrer mais reclamações por quem necessita fazer um sepultamento. Quem já passou por essa situação foi Vicente Ferreira, 51 anos, que perdeu a mãe em fevereiro de 2008 e não encontrou local disponível no cemitério de Inhaúma. “O espaço para sepultar existe, mas não em todos os cemitérios a qualquer momento. Perdi minha A construção de cemitérios verticais representou uma nova forma de extinguir os sete palmos para lidar com o espaço. Ao mesmo tempo contribuem para a preservação, sobretudo, do lençol freático, cuja contaminação pode levar à proliferação de doenças para a população do entorno. No Rio de Janeiro, o principal cemitério vertical é o Cemitério da Venerável e Arquiepiscopal Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, mais conhecido como Memorial do Carmo, primeiro cemitério vertical da cidade, construído no final dos anos 90, e localizado no bairro do Caju. Tendência nos Estados Unidos, Canadá e Europa, os sepultamentos são feitos em jazigos horizontais estanques de concreto armado. Outra solução para a falta de espaço em cemitérios é a utilização de crematórios. Além de mais higiênica e barata do que os demais sepultamentos, pode contribuir para evitar ou solucionar a superlotação dos cemitérios. No Rio, o índice crematório ainda é muito pequeno por uma questão de tradição e de religiões como o Judaísmo e Islamismo, em que a cremação é proibida. Segundo Dahas Zarur, para cada 180 enterros são feitas 3 cremações. A falta de espaço em cemitérios não é um problema que afeta apenas a cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Brasília, Rio Grande do Sul, Paraná e Niterói, no Estado do Rio, onde está localizado o cemitério do Maruí, também são afetados. Em Santa Catarina, a solução foi um pouco mais ousada. A lotação do cemitério São José, no centro de Blumenau, levou a estudos que fossem capazes de definir a melhor solução entre construir um cemitério vertical e um crematório. Optou-se por juntar dois em um com a criação do Memorial Ecumênico São Francisco de Assis, um lugar onde o resultado final é a cremação, mas no qual as famílias têm reservado o direito de manter suas tradições e crenças sepultando os corpos de seus entes através da utilização de columbários para armazenamento de cinzas. “Estamos no período final das vendas de sepulturas. Esse é o ciclo normal de qualquer cemitério” Novos tipos de sepultamentos acabaram com os antigos sete palmos de terra Miriam Paço NO 15 - 2009/1 Ganhando novas vidas, como o gato 5 Sobreviventes contam como atravessaram os momentos que pareciam ser o fim de tudo O gato é popularmente reconhecido por ser um animal ousado e arisco. Pikachu, não foge a regra. Com agilidade, flexibilidade e visão aguçada põe em prática seu instinto de sobrevivência. Sua incrível capacidade de se equilibrar sobre quatro patas o fez escapar da tentativa de homicídio quando jogado do terceiro andar do prédio onde mora na rua Barão de Itapagipe, após invadir a casa de uma vizinha que temia o coito entre o gato vira-lata e sua gatinha de pedigree. Pikachu só confirma o mito dos felinos possuírem mais de uma vida. Essa capacidade relacionada ao místico número 7 foi a combinação perfeita para a criação do dito popular “os gatos têm sete vidas”. A partir da história do ousado bichano, sobreviventes contam como atravessaram os momentos em que estiveram no limite entre a vida e a morte, totalizando sete vidas. Vida 2: afogamento No carnaval de 1998, após belos dias de sol, a quarta-feira de cinzas amanheceu nublada. O mar estava tranquilo com enorme faixa de banco de areia. Então, Águida Freire resolveu se banhar. Sozinha, ficou boiando, em profundo relaxamento. De repente, a ela sentiu uma forte cãibra e ao olhar ao seu redor não enxergou qualquer surfista que pudesse socorrê-la. Tentou manter a calma. Águida acenava para a família que estava sentada em volta da barraca de praia. “Pareceu uma eternidade. Estava tão cansada que procurei continuar boiando, pensei em muitas coisas, cheguei a não ter esperança de conseguir sair dali”, revela. Após beber um bocado d’água, Águida foi trazida pelo próprio mar de volta para o banco de areia, aonde foi socorrida por um grupo de banhistas. “Acredito que ele (Deus) tenha me dado uma forcinha. Seria muito ruim morrer daquela maneira, tão banal”, desabafou a sobrevivente. Após os primeiros socorros, ela foi levada para o Hospital Municipal da Mulher de Cabo Frio. A passagem de água para o pulmão levou à parada cardíaca. O rápido atendimento salvou a vida de Águida que recebeu alta na semana seguinte. Vida 3: dependência química Com 17 anos, Ricardo Tavares criou uma banda com mais três amigos começava a fazer shows e ganhar dinheiro com a música. Pouco, mas o suficiente para alimentar seus pequenos prazeres. O assédio de namoradas e novos amigos veio no mesmo instante em que conheceu as drogas. “Nesse ambiente é muito comum o acesso esse tipo de coisa. Em alguns meses fui da maconha para as drogas sintéticas, passan- do pela cocaína” confidenciou Ricardo. Numa tarde de julho de 2001, em casa, Ricardo consumia cocaína quando teve parada cardíaca. Ao ver seu filho jogado no chão, a mãe o levou à emergência do Hospital do Andaraí. “Nessa situação qualquer minuto faz toda a diferença.” Após se livrar do risco de morte, Ricardo foi transferido para o Hospital Pasteur, no Méier, por onde permaneceu mais 18 dias. Quando voltou para casa, seu pai decidiu pela internação em uma Clínica de tratamento para dependentes químicos. “Naquelas semanas vi o sofrimento da minha família, da minha avó. Levei o susto que precisava. Talvez não tivesse outra chance.” Sem qualquer tratamento Ricardo conseguiu largar o vício. Vida 4: anorexia Vinícius é o filho caçula de uma típica família italiana. O pai, seu Gennaro, é dono de padaria. A mãe, dona Eleonora, é a típica mama. Dona de casa, cozinha com talento inigualável. Não por acaso os Bestalucci enfrentam problemas com a balança. Ao chegar da escola, Vinícius se dividia entre sua casa e a padaria. Chegou aos 15 anos com 1,70m e 92 kg. Era motivo de gozações no colégio. “Não suportava aquela situação. É complicado admitir, mas eu mesmo não gostava de pessoas gordas”, declara o caçula. Então descobriu uma maneira rápida e para perder peso. “Passei a não comer. Não aceitava nada que me ofereciam, em casa dizia que ia comer no quarto e jogava a comida fora. Não sentia fome, o fator psicológico não permitia”, revela Vinícius. Em 18 meses o rapaz passou a pesar 48kg medindo 1,78m. “Nenhuma mãe merece ver um filho assim” conta dona Eleonora. Vinícius passou a sofrer com diversas doenças em razão da baixa imunidade. Uma infecção provocada por um corte no pé esquerdo o deixou 20 dias no hospital. Cogitou-se a possibilidade de amputar a perna, visto a velocidade que a bactéria se espalhava pelo organismo. Com tratamento psicológico e o apoio de amigos e familiares, Vinicius conseguiu reverter o quadro. Aos poucos vem recuperando sua forma e finalmente consegue se ver como realmente é. Vida 5 : Aids Em 1991, após um exame de sangue de rotina, Glauber Souza recebeu a notícia que mudaria sua vida. O exame atestou positivo para o então pouco conhecido HIV. “Não podia me desesperar, apesar de tudo ser desesperador. No início dos anos 1990 ainda estava se descobrindo o que era a Aids.” Sem familiares no Rio de Janeiro, Glauber cria sozinho o filho que adotou e enfrenta diariamente o preconceito, além das divergências com o plano de saúde para custear o caro tratamento. Porém, o momento mais difícil de sua vida foi em dezembro de 2003, quando sofreu uma pneumonia. “Estava em um período de muito trabalho com o fim do ano letivo nos três colégios que leciono, além de estar corrigindo provas de vestibular. Não me recuperei de uma gripe e acabei iniciando um quadro de pneumonia.” A situação de Glauber chegou ao ponto limite entre a vida e a morte. As complicações geradas a partir da inflamação nos pulmões são quase irreversíveis para um paciente soropositivo. Durante o período que esteve internado na Unidade de Tratamento Intensivo do Hospital da Beneficência Portuguesa aconteceu um fato curioso. “Ninguém sabe quem inventou essa história, mas em um dos colégios que trabalho chegaram a acreditar que eu havia morrido. Suspenderam o meu pagamento nos dois meses seguintes.” Muito querido pelos amigos e alunos, Glauber aguentou as seis semanas de internação. Com 1,68m, Glauber saiu do hospital com menos seis quilos, pesando 44 kg. “Fui mais forte, não poderia deixar meu filho sozinho.” Vidas 6: sequestro relâmpago Em dezembro de 2005, Nancy Castro mal havia chegado ao Rio de Janeiro, após um ano em Boston, e com sua mãe foi buscar a sobrinha Gabriela para passar o final de semana na casa da avó. As três seguiam de carro pelo Alto da Boa Vista no maior bate-papo, pondo em dia as novidades de quase um ano. De repente, um carro em alta velocidade fechou o veículo de dona Nylza. Um homem saiu já com uma arma apontada para Nancy, que guiava o veículo. “Ele mandou minha tia passar para o banco de trás e logo arrancou pela Estrada Velha da Tijuca”, relata Gabriela. “Ele dizia a todo o momento que iria nos matar ”, recorda. “Não sabíamos o que ele queria, foi me angustiando. Perdei minhas forças e desmaiei”, conta dona Nylza. Preocupadas com a o estado da senhora, Nancy e Gabriela imploraram para que o homem as liberasse. No entanto, o sequestrador continuava a aterrorizá-las. “Ele viu que a minha avó estava desacordada e continuava a nos apontar a arma, além de falar insistentemente que iria nos matar.” Até que o bandido foi surpreendido por uma blitz da Polícia Militar. Sem outra opção de fuga, ele freou bruscamente o veículo e saiu correndo em meio aos pedestres. Os policiais acionaram o corpo de bombeiros que rapidamente chegou e prestou os primeiros atendimentos à dona Nylza. Felizmente, havia sido apenas uma queda de pressão, rapidamente contornada. Vida 7: acidente vascular cerebral Dois meses após ser divulgada a sua aprovação no concurso público para fiscal da Receita Federal, Leonardo Monteiro teve seu sonho interrompido por uma fatalidade. Durante a noite, seu pai chegou foi ao seu quarto e o viu dormindo no chão, ao lado da cama. “Tentei acordá-lo para que fosse dormir na cama, pensei que estava bêbado”, recorda o pai, Wagner Monteiro. Ao soar do despertador, às 6h, Leonardo não levantou. Daí o pai desconfiou que algo acontecera. “Ele mal apresentava sinais vitais, entrei em pânico, com um tremendo sentimento de culpa.” No hospital foi diagnosticado o acidente vascular cerebral isquêmico. Falta de irrigação sanguínea no tecido cerebral em razão de arritmias cardíacas, um problema genético. Devido à demora ao atendimento, o quadro de Leonardo foi considerado irreversível. Passaram-se mais de 7 horas entre o derrame e o atendimento. “Um médico veio a minha esposa e disse que na melhor das hipóteses o nosso filho teria uma vida vegetal.” Após demorado procedimento cirúrgico, veio o alívio. O jovem não corria mais risco de morte. “Foi só o começo dessa longa caminhada. Nesses oito anos já fiz mais de mil horas de exercícios de fisioterapia. Valeu a pena. Não posso reclamar de nada”, conta Leonardo. Sua promissora carreira não foi adiante. Ainda hoje sua vida se restringe de sua casa à academia, onde faz sessões de fisioterapia. Mesmo com as sequelas que afetaram basicamente o lado direito do seu corpo, hoje ele anda com auxílio de muletas e apesar da dificuldade, consegue falar. Thiago Etchatz 6 NO 15 - 2009/1 Sequestro de anões vira outra história Intervenções urbanas deixam Branca de Neve só e promovem guerra. De travesseiros Era uma vez sete anões que viviam felizes na floresta com a linda princesa Branca de Neve, até que um dia foram retirados de seu lar e obrigados a viver enclausurados em um jardim particular. Esta historinha lhe soa absurda? Pois saiba que nem todos a consideram pura fantasia. Surgida na França por volta de 1997 e com adeptos em diversos países, a Frente de Libertação dos Anões de Jardim (Front de Libération des Nains de Jardins FLNJ) é formada por gente que acredita ser defensora dessas criaturinhas. O objetivo dos integrantes do movimento é confrontar o establishment “libertando os anões do ridículo e da servidão” e supostamente devolvendoos aos bosques e florestas. Os integrantes da frente, que no Brasil se chama Organização para a Libertação dos Anões de Jardim (OLAJ) e possui mais de 4 mil membros filiados, se divertem confiscando os anões e dandolhes os mais variados destinos. Em uma de suas ações mais famosas na França, em junho de 2002, o grupo encheu um campo de futebol na cidade de Heming com 202 anões e deixou um bilhete explicando que aqueles seres deveriam formar a seleção de futebol nacional. Outra corrente do movimento, influenciada pelo filme O fabuloso destino de Amelie Poulain, opta por tirar o anão do jardim e encaminhá-lo para uma viagem ao redor do mundo de onde são enviadas correspondências ao seu antigo dono contendo fotos do mascote nas mais diversas paisagens. No Brasil, o movimento tem mais força em Curitiba, Vitória e São Paulo, onde jovens surrupiam os anões, registram o momento com suas câmeras e os devolvem à natureza. — Parem com a jardinagem opressora. Milhares de anões de jardim ainda são escravizados no mundo inteiro. Por tempo demais suportamos nossos vizinhos usurparem os direitos destas gentis criaturinhas da floresta – diz uma integrante da OLAJ que prefere não se identificar. Por sua atividade ser facilmente confundida com vandalismo, alguns dos participantes do movimento preferem manter o anonimato. As motivações dos integrantes são as mais diversas, da diversão simples e pura à convicção ideológica. — Roubar anões de jardim é um distúrbio do cotidiano e é divertidíssimo – diz Luís Felipe Mayorga, ex-integrante da OLAJ que deixou o movimento por acreditar em outras formas de intervenção que não envolvem “danos patrimoniais ou invasão de propriedade.” Luís Felipe se diz indignado com a seriedade do estilo de vida ocidental e por isso teria aderido à OLAJ: — Capturar anões de jardim é uma forma de uma intervenção urbana que tem o poder de despertar o cidadão classe média comum do estado de torpor em que a mídia o deixa. Além da OLAJ, existem no mundo e no Brasil diversos movimentos de intervenção urbana que usam a brincadeira e a piada para criar os chamados “distúrbios na percepção do cotidiano”. Outro exemplo são os flashmobs, na tradução literal “reunião em grupo relâmpago”, uma modalidade de intervenção urbana em que os participantes combinam, através da internet, de se reunir em um determinado local e horário para realizar alguma ação inusitada em público. O jornalista Bill Wasik, da revista americana Harper’s, afirma ser o criador do primeiro flashmob. Em 2003 teria mandado e-mails para cerca de 50 amigos os convidando para um encontro em frente à loja Claire’s Acessories em Manhattan sem propósito aparente. O plano não deu certo, pois a loja ficou sabendo das intenções do jornalista e chamou a polícia. Mas, dois meses depois, Bill organizou uma nova estratégia: distribuiu, pouco tempo antes da hora planejada, panfletos que indicavam quatro bares onde as pessoas deveriam ir para obter mais informações sobre o evento planejado. O flashmob aconteceu na loja de departamentos Marcy’s, onde mais de 100 pessoas juntaram-se no andar de venda de tapetes. Quando os vendedores os abordavam o grupo dizia que todos ali faziam suas decisões de compra juntos e que procuravam um “tapete do amor”. Em entrevista ao site Mother Jones em 2007, Bill contou que sua idéia era criar situações completamente absurdas de cerca de 10 minutos, sem nenhuma ideologia política. “Quando ouço falar em usar os flashmobs para fins políticos, meu primeiro pensamento é que a pessoa não sabe do que está falando. Os flashmobs são um espaço de absurdo em meio a um universo social tecnológico que pode ter o poder de ser revolucionário”, defende Bill. Esse tipo de mobilização já chegou ao Brasil, onde há vários tipos, alguns mais espontâneos e formulados democraticamente entre os participantes e outros que ocorrem ao mesmo tempo em todo o planeta, como o Zumbie Flashmob, em que todos se vestem de mortos-vivos e saem pelas ruas; o Follow Me, em que é formada de repente uma fila gigantesca em meio ao caos da cidade e o Pillow Fight, em que o grupo promove uma enorme guerra de travesseiros em meio aos espaços urbanos. Recentemente, no dia 4 de abril, foi a vez do Pillow Fight que teve adeptos em mais de 300 cidades em todo o mundo, dentre elas Amsterdã, Atlanta, Budapeste, Caracas, Moscou, Zurique, Atlanta, Nova York, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. A versão carioca concentrou cerca de 200 pessoas munidas de seus travesseiros no Largo do Machado. Nada comparado à guerra paulistana que contou com cerca de 1500 participantes reunidos em torno do Obelisco Ibirapuera. No Rio, até mesmo os meninos de rua participaram da bagunça. Um gari assistia a tudo dando muitas risadas apesar do chão repleto de plumas e espuma dos travesseiros que se desfaziam. Os flashmobs possuem regras rígidas e entre as do Pillow Fight Rio estava a limpeza do local ao final, além de outras como: não bater em quem não tiver um travesseiro, não manifestar opiniões políticas e a cínica regra número 10 que diz. “Se houver imprensa presente, a resposta oficial a qualquer pergunta é “Acabei de comprar almofadas. Passei aqui e de repente me jogaram no meio disto.” Embora o flashmob tenha sido originalmente concebido como apolítico, é inevitável que haja uma ideologia por trás de qualquer movimento. — Além de ser um ato divertido, é uma forma de resgatar os espaços urbanos. Vivemos numa sociedade “carrocrata”, os espaços públicos são desprezados e as ruas funcionam apenas como uma rápida passagem entre dois pontos. Esse resgate das praças e ambientes urbanos em geral, de uma forma lúdica é, portanto, uma forma de contestação à política majoritária em vigor – argumenta Arlindo Pereira Jr., organizador do flashmob Pillow Fight Rio e estudante de Sistemas de Informação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Além destes grandes movimentos organizados, se multiplicam nas metrópoles de todo o planeta os distúrbios de cotidiano de menor proporção e individuais, incorporados como parte do cotidiano dos indivíduos que os praticam. Para fazer este tipo de intervenção não é preciso de nenhum instrumento, mas apenas de iniciativa pessoal e criatividade. São realizados os mais diferentes tipos de “distúrbio”, um exemplo é a idéia de Daniel Marimbondo, estudante de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), que incomodado com o que chama de “condição de quase-não-lugar” dos ônibus da cidade, faz uma espécie de atuação em que desperta a atenção dos passageiros. Durante o trajeto, Daniel se levanta e começa a falar como se fosse um vendedor ambulante, mas ao invés de pedir ajuda financeira ele pede algo inesperado: um abraço ou aperto de mão. “Então, eu queria pedir pra quem puder tá ajudando com um abraço, ou até mesmo um aperto de mão, eu agradeço do fundo do coração. Mas quem não puder, eu agradeço da mesma maneira, sabe?” discursa ele. — Como a maioria das intervenções que faço são espontâneas, elas são sempre adaptadas ao momento. Intervenção urbana pra mim significa intervir para trazer à tona problemáticas urbanas ou que se engendraram a partir de modos de vida travados na cidade. Sejam essas problemáticas verbalizáveis, sejam elas uma questão de sensibilidade – diz Daniel que também costuma fazer intervenções em coquetéis e vernissages como parte do que ele e alguns amigos chamam de MOVOC, Movimento de Ocupação de Coquetéis. Sofia Moutinho Da floresta ao jardim O costume de adornar jardins com estátuas de anões surgiu na cidade alemã de Gräfenroda, localizada no Vale da Gera Selvagem, ao lado da Floresta Thüringer. Em 1874, o artesão Philipp Griebel fundou uma pequena fábrica onde criou as primeiras estátuas de cerâmica inspiradas na mitologia alemã, em que os anões eram considerados habitantes do interior da terra e guardiões de seus tesouros. Alguns anos antes, em 1812, os Irmãos Grimm publicaram a mais conhecida versão do conto infantil da Branca de Neve e os Sete Anões a partir de contos populares que circulavam na Europa à época. Na história os anões são mineradores, gênios da terra, e seriam sete pela correspondência aos metais conhecidos então: ouro, prata, mercúrio, cobre, ferro, estanho e chumbo. NO 15 - 2009/1 Agentes não tão secretos assim 7 Concursos públicos e cursos à distância espalhados pelo país formam os 007 tupiniquins Thales é detetive há 25 anos e atende em uma pequena sala na Rua Evaristo da Veiga, no Centro. Quem chega no endereço, atraído por um pequeno anúncio feito diariamente em um jornal carioca, se vê nas páginas de um livro policial: sala pequena, ventilador barulhento, plaquinha sobre a mesa com a inscrição “Detetive” e… uma lupa. Graduado em engenharia, Thales exibe na parede seu diploma de detetive, conseguido através do extinto Instituto de Investigações Científicas e Criminais. Agora precisa de diploma para ser detetive? Na verdade, o diploma é uma exigência informal, já que não há regulamentação oficial para a profissão. A boa notícia é que ela é aberta à todos, basta ser maior de idade e não ter antecedentes criminais. Hoje existem diversas agências e institutos que fornecem o material para estudo, que é todo feito a distância. O aluno paga, recebe as apostilas em casa, faz uma avaliação – também em casa – e quando aprovado, recebe seu certificado e uma credencial, e já está pronto para sair investigando por aí. O Conselho Nacional de Detetives, sediado em Juiz de Fora, é uma das instituições que oferecem o curso. A entidade informou que muitos que se inscrevem o fazem para adquirir conhecimento, ou até mesmo por curiosidade, e não para se iniciar na carreira. Sobre a possibilidade de abrir um curso presencial, Jorge Filtsoff, representante da entidade, disse que não pensam nessa hipótese, pois seria muito difícil conseguir reunir uma turma, já que eles atendem alunos de todo o país. Diferente do 007, os detetives tupiniquins não precisam de uma licença especial da realeza para exercer a profissão. Voltando ao detetive Thales, ele conta que já atendeu muitos figurões da TV, política e indústria, mas não revela os nomes por nada. “Discrição é fundamental para a profissão”, justifica. De acordo com ele, anos atrás os serviços de um detetive particular só podiam ser contratados por gente da alta sociedade, os únicos com cacife para bancar vários dias de investigação. Com o passar do tempo, o ofício se popularizou – para ele, graças à mídia – e hoje uma maior parcela da população pode ter acesso ao serviço. Mesmo assim, contratar um investigador particular não sai tão barato. Uma diária pode custar até 700 reais, em casos mais complicados. O serviço Agência abriu 190 vagas. Na época, a relação candidato/vaga para o concurso foi de 726,7 e 415,5 respectivamente. Foram milhares de brasileiros querendo bancar o detetive. Só 190, entretanto, chegaram até a etapa final. Será que o prêmio de consolação foi um filme de James Bond? Juliana Siqueira Agente do crime completo, que inclui cinco dias de investigação costuma ficar por volta dos 2 mil reais. “Hoje em dia já está mais acessível, mas mesmo assim não podemos reduzir tanto nossos preços, para não banalizar nosso trabalho.” Entretanto, ele avisa que quem quer fazer o curso achando que vai ficar rico se dá mal. “Vida de detetive não é nada fácil.” De pai para filho O gosto pela profissão muitas vezes está no sangue. Mesmo com os apelos do pai para que se formasse em Direito, o filho de Thales, Pablo Menezes, decidiu acompanhá-lo na empreitada. Aos 32 anos, concluiu há nove o curso do mesmo Instituto que formou Thales. Ele conta que até hoje o pai insiste que retome os estudos, mas Pablo garante que não quer outra vida. Juntos, os dois se tornaram sócios na agência que hoje conta com quatro funcionários, todos agentes de investigação que fazem o trabalho de campo junto com Thales. Entretanto, só pai e filho atendem os clientes: os agentes não têm nenhum contato com o contratante, e nem sabem quem são. Tudo para não comprometer a qualidade do serviço. Quando uma investigação é contratada, Thales delega o caso a um agente, que trabalha seis horas por dia na rua. Dependendo do caso, mais de um agente pode ser mobilizado para o serviço, que pode demorar de cinco dias a vários anos. Anos? “Estou trabalhando em um mesmo caso há quase seis anos”, revela Thales. Infelizmente, ele não pôde fornecer nenhuma informação. Os casos mais comuns, os de investigação conjugal, que atualmente são cerca de 50% dos casos recebidos pela agência, tem a duração média de cinco dias. Para Thales, quando uma pessoa tem um amante, dificilmente ficará mais de cinco dias sem o visitar. Falta de regulamentação: principal dificuldade Os detetives brasileiros são unânimes: a falta de uma regulamentação profissional é o maior percalço que o profissional pode enfrentar. Atualmente, o que a lei brasileira garante é o reconhecimento da profissão, porém não há nada que especifique quem pode exercer a função, nem nenhuma entidade oficial que represente os detetives. Para acabar com o problema, em 2007 o deputado José Genoíno criou um Projeto de Lei em que estabelece uma regulamentação para o profissional da investigação. A proposta estabelece que para o exercício do cargo será necessário uma autorização da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), funcionando como a carteira da OAB para os advogados. Seria um progresso e tanto para a dura profissão de detetive, se o projeto não estivesse parado na Câmara, esperando ser aprovado. Uma saída para os que temem a instabilidade da profissão é fazer um concurso público para trabalhar na Abin. Quem quiser se tornar um Agente ou Oficial de Inteligência, o que talvez não tenha o mesmo charme de um detetive particular, só precisa ser graduado em qualquer curso, de qualquer instituição reconhecida pelo MEC. Ao passar pelo concurso, o candidato terá que fazer o Curso de Formação em Inteligência. No último concurso, realizado em 2008, a Certa vez, um senhor foi à agência de Thales pedir uma investigação sobre sua mulher, que ele achava que estaria o traindo. O resultado apontou que as suspeitas do cliente estavam certas. Seria mais um caso normal de investigação conjugal, se o tal amante da esposa infiel não fosse um dos próprios agentes de Thales! “Foi uma situação embaraçosa, mas tive que contar para o cliente o resultado.” Quando o crime mora ao lado Em outro caso similar, Thales colocou um agente de campana, ou seja, de tocaia, perto da residência do objeto de investigação, para descobrir o suposto amante. Passado os cinco dias, o resultado foi que não se havia registrado nenhum movimento suspeito da esposa. Incorfomado, o marido pediu que a investigação continuasse. Aí que está o pulo do gato: desconfiado, o agente se infiltrou como funcionário no prédio onde a esposa do cliente residia e descobriu o porquê da ausência de movimentos suspeitos: a esposa não precisava sair do prédio para pular a cerca, já que a traição se dava dois andares abaixo do seu, com a vizinha do 8° andar. Ou seja, além da traição, descobriu-se que ela se dava no mesmo prédio e ainda com uma mulher! Foi o fim do casamento. Proposta indecente Também já aconteceu de o objeto de investigação – um homem, que estava sendo investigado a pedido da mulher – ir até a agência sem saber de nada para pedir também uma investigação, sobre a esposa. “Claro que tive que recusar. E ainda contei à minha cliente, sua esposa, sobre o pedido do marido.” 8 NO 15 - 2009/1 A oitava arte criada pela tecnologia Críticos, especialistas e espectadores apostam no cinema 3D como a nova referência para próximos anos O som da música, o movimento da dança, a cor da pintura, o volume da escultura, a representação do teatro e a narrativa da literatura. Essas eram as seis características que davam ao cinema o seu reconhecimento como sétima arte. Hoje, porém, com o advento das novas tecnologias e a implantação dos sistemas digitais, o cinema ganha uma nova característica: a magia das projeções tridimensionais. Desta forma, surge o cinema 3D. As instalação de salas de cinema em 3D são a grande novidade do novo cinema. No Brasil, essa realidade chega aos poucos. Segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), no início do ano somente 25 salas estavam equipadas com os projetores 3D e a previsão é que até o final do ano esse número ultrapasse os 100 cinemas. Diferentemente da moda dos filmes 3D, lançados com pouco sucesso em meados da década de 1950 e também usavam óculos coloridos, agora, com a migração da película para o sistema digital, os novos filmes tridimensionais possuem uma maior qualidade na imagem, diminuindo o cansaço visual e proporcionando mais realismo às cenas. Desta forma, promete se tornar mais atrativo para o público. A indústria cinematográfica aposta nisto. Os exibidores veem essa nova forma de projeção como um modo de fazer os espectadores voltarem às salas escuras. Aqui no Brasil, a maioria dos exibidores utilizam a tencologia Dolby 3D. Apesar de serem tecnicamente semelhantes à Real D – utilizada nos Estados Unidos -, pelo fato de o Dolby 3D possuir óculos reutilizáveis, ou seja, o espectador precisa devolvê-los após o final da sessão para que eles sejam higienizados, esse formato se torna mais caro que o outro (aqui no Brasil somente o Cinemark optou pelo Real D que possui óculos descartáveis bancados pelo distribuidor dos filmes e, por isso, é mais barato). Outra vantagem apontada por especialistas é o fato de essa nova tecnologia implantada nos filmes 3D ser uma arma potencial contra a pirataria, já que envolve uma série de tecnologias difíceis de copiar. Ademais, estima-se que o acesso doméstico da tecnologia 3D aconteça somente dentro de dez anos. No Rio de Janeiro, já é possível encontrar salas com esse tipo de projeção. Michael Jonathas, auxiliar de operações múltiplas do Kinoplex Shopping Tijuca, diz que desde a inauguração do cinema, as salas sempre ficam cheias. Para o funcionário, isso ocorre porque as pessoas gostam de novidade. Segundo ele, por exemplo, no dia do feriado de Tiradentes – dia 21 de abril – 4.200 pessoas passaram pela sala. Acrescenta ainda que, normalmente, as novidades ficam somente em uma sala, como forma de experimentação. Assim, não crê que haverá a transformação das demais salas. Especialista no assunto, André Brasil, professor de Teoria da Imagem na PUC de Minas, também acredita nisto. Para ele, somente algumas produções serão exibidas em salas de formato 3D. “Eu acho que o cinema vai estar lá. Eu não acredito numa substituição. Acho que são experiências diferentes mesmo. A experiência da sala escura te traz uma série de questões para a subjetividade, para a estética, para a poética, que está tão lá e que, em minha opinião, vão permanecer.” A interatividade proporcionada pelas salas 3D é o principal atrativo para o público. Rompendo com a bidimensionalidade da imagem, o filme traz a impressão de sair da tela. Desta forma, prende o público e levanta reações maiores às cenas do filme. Pedro M. V. Chaves, projecionista do Cinesystem do Shopping Iguatemi, em Florianópolis, percebe nas sessões as diferentes reações do público. “No início do filme Monstros Vs Alienígenas, tem a imagem de uma esfera que salta da tela em direção ao público. Em quase todas as sessões, nessa cena, o pessoal grita e aplaude, independente da idade. É até engraçado.” Para o projecionista, nesse tipo de filme, o atrativo não está somente no fato de ser novidade. O principal seria a qualidade da imagem. “Os comentários depois da sessão são muito bons com relação à qualidade da imagem. Por ser projeção digital, a qualidade das imagens é muito superior. No filme em película, a cada sessão, há um desgaste. Já no projetor digital, não tem esse problema.” Enfatiza ainda o fato de as projeções tridimensionais não serem exageradas e cansativas. “Uma coisa que percebi é que não é em todos os momentos que as imagens saem da tela. Na maior parte do filme, o efeito 3D é mais sutil, mas está sempre lá.” “Você não assiste, está lá. Se sente parte do filme. É uma experiência que mexe com vários sentidos” Imagem retirada do site: http://www.barco.com/projection_systems/images/pr_kinepolisOost01_l.jpg Salas escuras ganham novas projeções tridimensionais, embora continue a necessidade de óculos especiais Deborah Fernandes, comunicóloga e realizadora de curta-metragem, teve sua primeira experiência como espectadora do cinema 3D no Universal Studios, Los Angeles, em março deste ano. “Ao final da experiência, soube exatamente como foi o fascínio daquelas pessoas nos primórdios do cinema, quando tudo era impressionante e novo. Para nós, que nascemos em tempos de grandes produções e efeitos especiais, é maravilhoso poder acompanhar a última grande revolução da linguagem cinematográfica.” Afirma ainda que a interatividade é o diferencial neste tipo de cinema. “Definitivamente é um jeito fantástico de assistir o cinema de entretenimento. Até porque você não assiste, está lá. Se sente parte do filme. É uma experiência que mexe com vários sentidos.” A mudança proporcionada pelo avanço tecnológico desperta, não só o interesse do público em geral, mas também dos estudiosos da área multimídia. Ronaldo Entler, jornalista e professor credenciado do programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, percebe a importância das mudanças ocorridas no cenário cinematográfico. “As novas tecnologias propõem questões importantes para a arte cinematográfica, com relação às possibilidades de interatividade e sugestões de novos espaços para fruição dessas experiências cinematográficas como, por exemplo, a Internet.” É fato ser inevitável o desenvolvimento e a implantação de novos recursos tecnológicos em todas as áreas. Sempre haverá experimentações com intuito de facilitar e chamar atenção da sociedade. Quando se pensa em cinema, é possível perceber que muito já foi mudado e ainda está mudando. Entler chama atenção, porém, para os problemas que esse avanço pode ocasionar ao cinema como, por exemplo, a perda deste como arte. Para ele, a diferença narrativa de um filme em película e em digital não é resolvido somente através de “pirotecnias”. “Eu acho que isso faz parte de certo deslumbramento com relação à tecnologia. A tecnologia por ela mesma. Você vai ao cinema não necessariamente para ver uma obra, mas para ver uma espécie de estágio tecnológico que é encantador por si. Então, neste sentido, a gente tem uma espécie de espetáculo que contribui muito pouco para o crescimento do cinema como arte.” Pensa da mesma maneira o professor André Brasil. E, apesar de reconhecer esse tipo de manifestação como uma possibilidade de abrir um campo grande na produção de imagens, enfatiza que se sente incomodado com essas questões. “Eu gosto de pensar essa manifestação deslocando o máximo possível destas questões meramente tecnológicas. Pensar como elas já trazem em si mesma algo que já estava na história do cinema e como elas projetam essa história para outra coisa, mas nunca pensar a tecnologia como o centro disso.” Especialistas se preocupam com a perda da qualidade artística Júlia da Escóssia NO 15 - 2009/1 9 Bagunça das ruas continua nas telas Agitação dos jogos eletrônicos competem com brincadeiras tradicionais na infância dos novos “gamers” Marion Villas Boas, professora ras de Educação Física ensinam e incenaposentada, além de editora e escritora tivam brincadeiras populares. Segundo de literatura infantil, diz que a criança Ana Patrícia Mendonça, professora da isolada não estabelece regras de com- Sociedade Educacional da Taquara, portamento espontaneamente; precisa para os alunos do primário, que são mesempre do outro. “Assim, o jogo é a nores, as atividades concentram-se nos forma pela qual uma comunidade recria “piques”, jogos com corda, amarelinha, ou exercita suas regras, seus padrões de ou seja, brincadeiras mais antigas. A surconvivência. Na brincadeira com regras, presa é em relação aos estudantes do 6º a criança, ao mesmo tempo em que se ao 9º anos, pois a professora afirma que diverte, manipula as regras de sua reali- também dá essas atividades mais tradidade sociocultural.” cionais e os alunos adoram, chegam a Valéria sabe que, se não por limte brigar pela escolha da brincadeira. Pono tempo em que seus filhos brincam rém, nesse caso, aplica como forma de em videogames e computadores, eles aquecimento aos jogos esportivos. poderão tornar-se crianças sedentárias. “A escola mantém algumas traÉ por esse motivo, também, que os pais dições, é até uma função dela, resgatar matriculam as crianças em inúmeras ati- brincadeiras infantis, festa junina e ouvidades extras. O esporte, além de con- tras festas, como tentativa de interação sumir o tempo dos filhos como tentati- entre as crianças ou entre pais e filhos. va de suprir a ausência de alguns pais, O problema maior hoje é uma relação ainda é benéfico para as crianças em familiar”, diz Adriana Silva – pedagoga. termos físicos. Victor pratica judô, caPara José Ricardo da Silva Ramos, poeira, além de ter que autor do livro Dinâmicas, brincadeiras e cumprir com responsa- jogos educativos, o objetivo da escola é bilidades como a escola utilizar essas atividades e trabalhar no e o Kumon. aluno o reconhecimento do próprio “Os jogos eletrô- corpo, provocando a memória lúdica nicos têm profundos re- da comunidade escolar. O jogo é um flexos na saúde infantil, fato cultural e social, com ele é possível tanto no aspecto físico entrar, num dado momento, na histócomo no neuropsicoló- ria da existência humana, com seus vagico. A criança precisa lores simbólicos e pedagógicos. Além da atividade física, de disso, a criança apropria-se de tudo que movimentar e exercitar a cerca por meio de suas ações corpotanto os grandes como rais, podendo, dessa forma, conhecer a os pequenos múscu- si mesma e a sociedade com a qual se los. A posição sentada relaciona. em frente à TV ou ao Alguns pais, como a própria Vacomputador, se demo- léria, apontam a violência como prinrada, pode causar sérios cipal desculpa para a não deixar os fitranstornos posturais e lhos jogarem na rua e incentivarem as enfraquecimento mus- brincadeiras domiciliares. No entanto, cular”, afirma Marion. ao prender seus filhos em casa, podem Ramon Sampaio, 12 anos, prefere sair de casa No colégio, as professo- estar prejudicando mais que ajudanlá”, diz ele. Entre suas brincadeiras preferidas também está jogar videogame e freqüentar lan houses, mas sempre com Definido... Segundo o Dicionário das Origens das Frases Feitas de Orlando Neves (Lello & seus amigos. Irmão – Editores, Porto), a expressão “pintar o sete” tem significado semelhante ao da Já Victor, de 9 anos e Yasmin, de frase “pintar a manta”, ou seja, fazer grande alarido, diabruras, desordens. 7, filhos de Valéria Oliveira, preferem Acrescenta ainda, que esta é uma das mais controversas expressões quanto à sua jogos eletrônicos. A mãe afirma que origem. É possível relacioná-la a outras frases feitas e todas se interligam, umas mais, estimula esse tipo de brincadeira por outras menos, mas todas no mesmo sentido, na idéia de aprontar. medo da violência urbana. Por isso, Por exemplo, “Pintar a bexiga” que significa andar na pândega, na baderna, na seus filhos tendem a brincar sozinhos folia. Ligam-se entre si expressões como: pintar a macaca, pintar a manta, pintar o dentro de casa. “Se deixar, Victor fica o caneco, pintar o caramujo, pintar o diabo, pintar o diabo a quatro, pintar o sete, pintar dia inteiro jogando videogame, quer até o burro. comer dentro do quarto”, afirma. Há algum tempo as crianças “pintavam o sete”, brincavam de escondeesconde, corda, amarelinha, pique bandeirinha, queimado, passaraio, pique cola,... Talvez as brincadeiras tradicionais estejam tão em desuso quanto a expressão. Hoje elas já não pintam mais o sete, preferem jogos eletrônicos e se autodefinem como “gamers”. Ramon Sampaio, 12 anos, mora no Merck, área humilde da Taquara, Zona Norte do Rio de Janeiro, é uma exceção na sua idade, por ser um menino que adora brincar na rua, aprontando bastante. “Ramon é muito levado, assim que chega da escola já quer logo ir correndo para a rua brincar”, afirma a mãe Dalila Sampaio. Ramon adora jogar bola, brincar de queimado, andar de bicicleta e soltar pipa na rua com seus amigos. “Na rua que eu moro tem sempre criança. O que eu mais gosto de fazer é brincar do, pois não permitem que as crianças aprendam a lidar com o mundo. O mais curioso é que a mãe de Victor sabe que não está agindo de forma correta, mais admite que o medo da violência é mais forte. Já a mãe de Ramon, diz que também tem medo do perigo da rua, mas sabe com quem seu filho está brincando e, às vezes, quando tem uma pausa no trabalho vai procurá-lo para ver como ele está. “O importante é dar liberdade para a criança”, conta. Na opinião de algumas mães o desejo pelas novas tecnologias parte da própria criança influenciada pelos meios de comunicação. Dalila Sampaio disse que seu filho em um determinado natal havia pedido um videogame. “Ele quis porque estava em evidência. Na época, todo mundo tinha”. Porém, os jogos eletrônicos não fazem mal a criança, o que pode trazer malefícios à saúde infantil é o exagero do tempo em que utilizam esse brinquedo, é o que diz a especialista na área Marion Villas. Afirma, ainda, que privar uma criança do mundo das atividades eletrônicas é privá-la da realidade em que vive, na medida certa estes jogos estimulam o pensamento e a rapidez de ação. É uma ilusão acreditar que as crianças de hoje não gostam de jogos populares, a pedagoga Adriana Silva afirma “eles adoram computador, mas também adoram essas brincadeiras”. Ana Patrícia concorda – “eu nunca tive problemas com isso. Todas as crianças participam das brincadeiras”. Talvez, se dada à oportunidade, a criança de hoje ainda pintaria o sete, mas também brincaria com videogames e computadores. A professora de Educação Física chega a afirmar que as preferidas são pique bandeirinha e queimado, ambos jogos de alta intensidade motriz, ou seja, exigem dos participantes: velocidade, agilidade, noções de espaço e tempo, capacidade aeróbica, força,... São inúmeros os benefícios que as brincadeiras populares e tradicionais podem trazer. “Acho que as crianças gostam e, se tivessem oportunidade, ainda brincariam de roda, pique atrás, esconde-esconde, passaraio e tantas outras brincadeiras que ajudam a viver e conviver nesse mundo turbulento que habitamos”, diz Marion. Aline Nastari 10 NO 15 - 2009/1 O craque da camisa número... Garrinha, Jairzinho, Tulio... marketing ganha espaço no futebol e jogadores perdem a marca em comum enquanto Figo, jogador português, tem esta camisa cativa na Inter de Milão. Na década de 90, em uma grande jogada de marketing, o Botafogo foi patrocinado pela Pepsi, que estampou na camisa alvi-negra o seu produto “Seven Up”, aumentando ainda mais o valor do número para a equipe. Essa não foi a única vez em que uma empresa criou uma estratégia de marketing para aplicar no futebol carioca. Também nos anos 90, Juninho Pernambucano, craque do Vasco, vestiu a camisa 31 em alusão ao possível patrocinador do time, que seria a Telemar, empresa de telefonia que tinha o 31 como seu número para ligações à distância. Já Roger, jogador do Fluminense, usou a 23 pelo mesmo motivo, sendo que o patrocinador no caso seria a Intelig. Recentemente, Adriano, em seu retorno ao Flamengo, foi apresentado com uma camisa que tinha uma interrogação no lugar do número. Especulou-se que seria mais um caso de marketing no futebol carioca, mas a estréia do craque chegou e ele jogou com o número 27, com o qual havia começado no futebol. Após algumas atuações ruins, o jogador passou a adotar a camisa 90 e o marketing do Mengão perdeu uma ótima oportunidade de faturar com a imagem do Imperador do Rio, como está sendo chamado o craque. As grandes empresas estão sempre atentas as oportunidades que surgem no mundo do futebol, não apenas para patrocinar clubes. A fornecedora de material esportivo, Nike, por exemplo, aproveitou a importância que a camisa 10 ganhou nos últimos anos e baseou uma campanha no sonho dos jovens em vesti-la, o “Joga10”. O slogan “A 10 você não veste, você conquista” representa exatamente o que este número tornouse para o mundo do futebol. Não é pra menos. Dos últimos 18 jogadores eleitos melhores do mundo pela FIFA, 10 deles vestiam a camisa 10 em suas equipes. Isso porque esse prêmio não existia na época de Pelé e Maradona. Até a década de 90, havia uma regra que obrigava as equipes a definir seus titulares com números de 1 a 11.Convencionalmente a camisa 7 pas- “Este ponta habilidoso está em extinção” Foto: globoesporte.com A relação do jogador de futebol com o número que ele usa vai além superstições. O uruguaio Acosta, por exemplo, viveu um dos melhores momentos de sua carreira vestindo a 25, no Náutico. Chegando ao Corinthians, o jogador recebeu a 9 e não conseguiu marcar nenhum gol, até voltar a usar a 25. Sorte? O que dizer do número 13? Sinônimo de azar para muitos, o número é considerado um amuleto por Zagallo, único a estar presente em todos os títulos da Seleção Brasileira de Futebol. Coincidência? Pela Seleção, enquanto jogador, Zagallo vestiu a camisa 7, que anos depois seria eternizada por Garrincha. Mané, como era chamado, teve grande importância para o Brasil em seus títulos mundiais, mas ficou ainda mais marcado no Botafogo, onde é considerado o maior ídolo da historia do clube. Jogando pelo alvinegro carioca, o gênio das pernas tortas deu início a uma mística que perdura até os dias de hoje, a mística da camisa 7. Além dele, Jairzinho, Mauricio, Túlio, Donizete, Jorge Henrique e outros craques tiveram o prazer de usar esta camisa. Todos com passagens marcantes pelo alvinegro carioca e com participação fundamental em títulos do clube. Para Marcelo Ferreira, assessor do Botafogo, “a camisa 7 está para o Glorioso como a 10 está para todos os outros no mundo. Quando a diretoria monta a equipe, pensa carinhosamente em quem irá vesti-la, pois não pode ser um jogador qualquer”. Mas o número 7 não tem importância apenas no Botafogo. O Manchester United cultua esta camisa, pois os principais craques do time a vestiram, como George Best, Eric Cantona, David Beckham e, o atual melhor jogador do mundo, Cristiano Ronaldo. Um dos maiores ídolos do Corinthians, Marcelinho Carioca, usou a 7 em todos os títulos do clube paulista no fim da década de 90. Já no Santos, o craque Robinho vestiu a 7 até ser transferido para o Real Madri. Pelo Milan, Shevchenko fez historia com este número, que agora é usado por Alexandre Pato. O maior ídolo da historia do Real Madri, Raul, veste a número 7, Adriano em sua reapresentação no Flamengo, promoveu a dúvida do número sou ser usada pelo ponta habilidoso, geralmente um driblador nato, que atormentava a zaga adversária. Para Rafael Oliveira, comentarista esportivo, “este ponta habilidoso está em extinção”. Segundo ele, “alguns jogadores deveriam assistir vídeos com lances do Garrincha. Quem sabe assim reaprendam a arte do futebol?”. Entretanto, desde que a FIFA retirou esta regra, alguns jogadores adotaram números diferenciados, principalmente na Europa, onde os atletas passaram a ter números fixos durante toda a temporada. Kaká, por exemplo, ao chegar no Milan, não pôde escolher a camisa 10 e optou pela 22, dia do seu aniversário, e agora, ao se transferir para o Real Madrid, deverá jogar com a 16, primeira camisa que utilizou no São Paulo, clube que o revelou. Ronaldo e Ronaldinho Gaucho, também no Milan, preferiram vestir a 99 e a 80, respectivamente. Thierry Henry, craque francês que foi algoz brasileiro na Copa de 2006, usa a 14 em todos os clubes por onde passa. A camisa 12 também é “aposentada” em alguns clubes, não em homenagem ao goleiro reserva, mas ao décimo segundo jogador de todos os times, à torcida, como forma de reconhecer a importância do torcedor para o time. Para Jorge Delou, produtor do Campeonato Italiano do Esporte Interativo, “a numeração fixa utilizada na Europa é ótima, pois facilita a vida dos comentaristas e da própria torcida, já que a identificação do atleta passa a ser feita somente pelo seu número”. Como podemos ver, no mundo do futebol, os números têm grande valor para todas as equipes. Diante deste fato e seguindo a tradição de esportes norteamericanos, alguns clubes passaram a aposentar um número como forma de homenagear um atleta que tenha uma identificação com o time. No Milan, da Itália, por exemplo, Maldini tem o número 4 guardado em sua homenagem. Apenas seu filho, que está treinando nas camadas de base, poderá vestir a mesma camisa. O brasileiro Aldair foi homenageado pela Roma, com a aposentadoria da camisa 6. Raul, quando abandonar o futebol, receberá a mesma glória com a 7 do Real. E o Vasco, recentemente, foi o primeiro clube brasileiro a aderir a moda aposentando a camisa 11 de Romário. A seleção Argentina aposentou a camisa 10 junto com o Maradona. Já Pelé e Garrincha não receberam a mesma homenagem nem na Seleção, nem nos clubes em que fizeram historia no Brasil. Na opinião de Vinicius Carvalhosa, botafoguense, “a camisa 7 do Botafogo, assim como a 10 do Santos, deveriam ser aposentadas, ou pelo menos protegidas para que apenas grandes jogadores a usassem”. Segundo ele, dessa forma, figuras como o argentino Zárate, com passagem apagada pelo Fogão, não vestiriam essas camisas. Thiago Brandão 11 NO 15 - 2009/1 Poder terapêutico da escala musical Aliando arte e psicologia, musicoterapia usa a harmonia dos sons até para esquizofrenia A música é capaz de comover, alegrar, irritar. E são vários os aspectos que podem despertar esta ou aquela emoção. Fatores como harmonia, andamento e ritmo interferem diretamente na impressão que temos de determinada música. Presentes na tonalidade, nos acordes e na melodia, as sete notas musicais não ficam para trás. Agindo em conjunto, podem sugerir as mais diversas sensações, às vezes até de provocar a imaginação. É partindo dessas qualidades que a musicoterapia usa a música para fins terapêuticos. “Há muitos casos para aplicação da musicoterapia”, afirma Martha Negreiros, que já tratou de adolescentes, idosos portadores de Alzheimer e crianças. Na Maternidade Escola da UFRJ, onde trabalha com o musicoterapeuta Albelino Carvalhaes, atua em sessões com gestantes e recém-nascidos prematuros. Além disso, trabalha com pacientes esquizofrênicos, cuja comunicação verbal é dificultada. Segundo Martha, a música é uma linguagem, um código específico com qualidades específicas. “Um conceito fundamental na musicoterapia é o de história sonora musical. Cada um de nós tem uma, formada desde a vida intra-uterina, e depois com todos os sons do meio em que vivemos”. Segundo ela, vão-se formando registros sonoros que, carregados de afeto, ficam impressos em cada pessoa de maneira diferente. “Por isso, para cada um a música dirá algo diferente, pois será da ordem do vivido”, afirma. “A partir daí, exclui-se a idéia do receituário musical: sem conhecer sua história, jamais saberei o que tal música pode significar para você. Não posso dizer: para isto, use tal música”. Por outro lado, não basta apenas saber sobre a vida do paciente. É preciso conhecer a música profundamente para saber o que ela pode produzir. “Você pode muito bem usar uma peça de Bach, mas terá que conhecer igualmente seu objetivo”. Ainda assim, afirma ser impossível criar uma teoria universal infalível sobre os efeitos da música, que são inúmeros. “A forma musical sugere uma gama de emoções, mas não determina”. Dá o exemplo do Requiem, música erudita para missas funerais. “Não necessariamente você pensará: morte. Em vez, pode pensar em céu aberto ou dia nublado. A música não terá significado a priori. Você atribui sentido à música no momento da execução.” Apesar disso, assegura que, sendo acústica, e, portanto, física, a música sem dúvida interfere, por exemplo, na frequência cardíaca do paciente. “Tensões na harmonia, que não se resolvem, deixam a pessoa tensa. Alguém escuta música Violão, chocalhos, pandeiros: instrumentos para o tratamento erudita contemporânea? Não, porque elas não se resolvem! Esse tipo de música é pouquíssimo veiculado nas rádios... ela é muito angustiante!”, diz Martha. “A música produz um impacto sensorial, e somos afetados pelos sons o tempo inteiro. Não temos pálpebras nos ouvidos. O silêncio é um princípio teórico.” musicoterápico é entrelaçamento do biológico, psíquico e social. “A pessoa, ouvindo música em casa, não pode se tratar sozinha. A terapia só existe na relação terapeuta-paciente. Auto-ajuda é outra coisa”, afirma. Há um leque de músicas para cada pessoa e cada situação. Se ela não fala, recorre-se às músicas de sua época. Pode ser marchinha de carnaval, samba, valsa. Assim, será estabelecida uma comunicação. No caso do portador de Alzheimer, procura-se ativar o que foi preservado em sua memória. “No HD cognitivo”, diz Martha, “a memória musical é a última a ser apagada”. “Nem todo músico é terapeuta, mas todo musicoterapeuta é músico”, explica Márcia Gavinho, formada em musicoterapia há 29 anos pela CBM, esclarecendo uma confusão acerca da faculdade. Multi- Ut-Re-Mi-Fa-Sol-La... Si O nome das notas musicais remonta à Idade Média, especificamente ao Hino a São João Batista, de Paolo Diacono, na época muito popular. Cantado por meninos, o hino pedia a intercessão de São João Batista para a proteção das cordas vocais, e, pela melodia, ajudava os cantores a identificarem os graus da escala. O monge beneditino Guido d’Arezzo, músico italiano do século XI, extraindo as duas primeiras letras dos versos, nomeou os 6 graus musicais de então, ou vozes. Os alunos de d’Arezzo, como outros, tinham dificuldades para decorar o som de cada grau, e esse foi o primero passo para resolver um grande problema, não só deles, mas da música ocidental: precisar a altura exata de cada nota. Ut queant laxis Resonare fibris Mira gestorum Famuli tuorum Solve polluti Labii reatam Inicialmente chamada ut, a nota dó receberia esse nome apenas em 1963, por intermédio de Giovanni Batista Doni, que, como outros músicos, achava a sílaba difícil para o solfejo. Entretanto, países como a França, ainda a chamam ut. A sétima nota Embora a nota si já existisse, seu nome só surgiria tempos depois, pela junção das iniciais de “Sancte Iohannes”, o “Para que teus servos possam próximo verso daquele Hino a cantar as maravilhas dos teus atos São João. Antes, geralmente não admiráveis, absolve as faltas dos era utilizado, pela impressão sonora que causava em certas seus lábios impuros”. situações. De acordo com ela, a cada som musical corresponde um universo de sentidos, que, embora amplo, não é irrestrito. Por isso é possível uma comunicação. “Isso é interessante sobretudo no caso do esquizofrênico: ele rompe com os códigos sociais compartilhados. ‘Mesa’ não é mesa necessariamente. ‘Cadeira’ não é cadeira. As muitas maneiras de tocar um instrumento, por sua vez, permitem uma comunicação com o esquizofrênico, porque estabelecem uma linguagem comum”. Para que possa ocorrer, os recursos musicais devem ser compatíveis com a situação mental do paciente. “Às vezes, uma música que se adora produzirá o efeito contrário. Não adianta, quando se está triste, ouvir sambinha para alegrar. Tudo o que pode emergir durante a música vem de um tecido musical que está por baixo. As reações não serão por acaso.” Ainda segundo Martha, o tratamento disciplinar, trata-se de um curso de 4 anos, com prova específica e uma entrevista. Nos primeiros anos, o aluno estuda neurologia, sociologia, psicologia, antropologia, anatomia. E, juntamente, música. Além disso, dispõe de aulas de folclore, expressão corporal, impostação de voz. O curso se divide em área musical e médica. “Ele precisa saber tocar um instrumento, porque ele será o elo com paciente; mas não significa que não haja gravações e objetos improvisados”. Ainda segundo ela, o nome é musicoterapia, mas as intervenções não serão sempre pela música estruturada, e sim pelos parâmetros dos sons em geral (timbre, intensidade, altura etc.), instrumentais ou não. “Se o paciente usa só alguns sons, é a partir deles que o tratamento irá começar. Uma música maravilhosa nem sempre servirá para pacientes em estado tão primitivo de comunicação”. Há relações diretas entre notas mu- sicais e as emoções, mas não com notas isoladas. “Costuma-se dizer que tons menores tendem a provocar introspecção, enquanto os maiores, alegria. Nem sempre é assim. Notas fazem melodias, que levam a recordações, então deve-se ter cuidado”. Por isso, explica, antes do tratamento faz-se uma ficha com as preferências musicais do paciente e da família. Isso ocorre também no sentido de encontrar músicas que estejam ao nível intelectual do paciente. “A harmonia está ligada à inteligência. Se a pessoa tem um deficit intelectual, não vai conseguir processar uma harmonia complexa”. Segundo ela, isso seria indesejável, já que “a musicoterapia atua sobretudo em casos em que há problemas de comunicação.” Professora de educação artística no Instituto de Educação desde 2000, Márcia também tem pacientes em consultório, entre elas uma criança cega com problemas de locomoção. “Adora o piano, fica mais de uma hora. No início, só batia no instrumento, agora está bem mais desenvolvida”. Trabalho de coordenação motora com os instrumentos musicais, adaptações de instrumentos... Conta que também há uma criança tetraplégica: nesse caso, usa instrumentos que estimulam os movimentos. “Se ela não consegue pegar a baqueta do tambor, é estimulada a segurar. Mais tarde, isso ajudará ao apanhar uma colher”. A intenção também é melhorar a auto-estima, fundamental para quem está numa cadeira de rodas. Por isso, fazem festa quando o paciente se supera, diz. Mas a musicoterapia não é restrita a pessoas cegas, autistas, tetraplégicos ou portadores de Alzheimer. Márcia conta que também há espaço para pessoas sem deficiências. Desejando se comunicar através da música, vão ao consultório de um musicoterapeuta. A profissão, que completa 31 anos no Brasil este ano, já existe formalmente, mas ainda não foi regulamentada. A medida foi recentemente vetada pelo Presidente da República, após chegar à última instância. Segundo Martha Negreiros, porque “a música não é propriedade de ninguém. Há muitos profissionais que usam música, sua utilização como terapia que é uma classificação específica”. Fez comparação com a Educação Física, que, apesar dos problemas, foi regulamentada, mas não os professores de capoeira. Infelizmente, nenhuma delas soube dizer por que a música é tão pouco valorizada em nosso país. Mas é certo que, segundo Márcia Gavinho, as músicas da Xuxa estão entre as mais pedidas. Rafael N. Godinho 12 Maravilhas listadas NO 15 - 2009/1 Rio coleciona cartões postais, mas só uma é pode ser chamada de maravilha Torre Eiffel? Estátua da Liberdade? Nada disso. O Cristo Redentor derrubou grandes monumentos e foi escolhido, em uma campanha mundial que deu continuidade à tradição, como uma das sete maravilhas do mundo moderno, em 2007. Além do monumento carioca, foram escolhidos: a Grande Muralha da China, na China, Petra, na Jordânia, Machu Picchu, no Peru, a Pirâmide em Chichén Itzá, no México, o Coliseu de Roma, na Itália e o Taj Mahal, na Índia. Pegando carona na iniciativa da ONG Suíça 7 New Wonders, a Infoglobo Comunicações promoveu uma eleição no Rio de Janeiro para escolher as sete maravilhas do estado. Porém, ao contrário da campanha original, a ideia fez pouca diferença para o turismo da cidade maravilhosa. Este tipo de eleição pode ser aumentar de forma significativa o turismo da cidade. O Cristo Redentor atrai turistas de todo o mundo e coloca o Rio na lista das maravilhas mundiais. O monumento é divulgado nas feiras de turismo internacional e se torna um ponto essencial nos pacotes turísticos, sendo uma porta de entrada para a visitação dos outros pontos. “Esses pacotes são feitos pelas operadoras a partir dos lugares que a cidade oferece como atração. Eles são vendidos, quase sempre, sem alteração pelas agências de viagem. Assim, as operadoras participam, junto com os órgãos governamentais, da legitimação dos pontos relevantes de uma cidade porque acabam decidindo o que é interessante ou não para o turista visitar”, explica a agente de turismo, Daniela Lopes. Não há dúvidas que o Corcovado é um ponto legitimado. Segundo Ana Cristina Fiedler, assessora chefe da assessoria de Co- Cristo Rendentor: eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno municação Social da Riotur, é possível ver um aumento na visitação do Cristo Redentor, mas, ainda assim, esses números não são exatos. Isto porque o acesso dos visitantes pode ocorrer de três formas: a pé, no próprio veículo ou através do trem do Corcovado, e apenas este último pode ser contabilizado, por conta da venda de ingressos. Ao contrário do que ocorre com as maravilhas do Rio: “É impossível contabilizar o efeito desta eleição porque ela partiu de uma iniciativa privada e não foi oficializada pelo Governo do Estado”, explicou. Para o estudante de Turismo da Unirio, Rafael Ávila, para uma eleição deste tipo dar um retorno turístico para a cidade, seria necessário uma forte campanha de marketing: “Tudo depende da divulgação que vai ser investida no monumento. As pessoas passam a saber da existência de um ponto turístico a partir da divulgação direcionada O mundo antigo também teve as suas A origem da lista das sete maravilhas do mundo é duvidosa. O documento mais conhecido é a obra De septem orbis miraculis, atribuída a Filon de Bizâncio (Philon of Byzantium, um engenheiro grego que listou no século III a.C., as maravilhas da Antiguidade escolhidas pelos gregos, todas construídas entre os anos de 2.500 a 200 a.C. Hoje, apenas as Pirâmides do Egito resistiram ao tempo. Também estavam na lista: O Farol em Alexandria, no Egito, os Jardins Suspensos da Babilônia, no Iraque, a Estátua de Zeus e o Colosso de Rodes, na Grécia, o Templo de Ártemis e o Mausoléu em Halicarnassus, na Turquia. a ele pelo governo”. No caso do Cristo, foi investido 1,5 milhão em ações de divulgação durante a candidatura. A Riotur reconhece o Cristo Redentor e acredita que a publicidade gerada depois da eleição foi positiva. O Aeroporto de Londres, por exemplo, estampa uma foto do Cristo em uma de suas paredes. “É uma publicidade gratuita para o Rio e que dá super certo porque está em um lugar por onde passam pessoas com poder aquisitivo, que podem viajar de férias para outro país”, analisa Ana Cristina. Falta de reconhecimento O órgão municipal é responsável pelo turismo no município do Rio de Janeiro, enquanto a Turisrio é responsável pelo turismo em todo o Estado, cuidando apenas de duas das sete maravilhas eleitas: Ilha Grande e Museu Imperial de Petrópolis. Enquanto isso, a Riotur é responsável pelas outras: Aterro do Flamengo, Praia de Copacabana, Teatro Municipal, Jardim Botânico e Pão de Açúcar. Porém, nenhum dos dois órgãos utiliza o título de maravilha na divulgação destes lugares porque a campanha não foi promovida pelo Estado. Para a turismóloga Rubia Simões, a falta de reconhecimento desta campanha não atrapalha no turismo na cidade, ainda que os turistas tenham pouco conhecimento sobre o que a cidade oferece. “Nenhuma empresa usa as sete maravilhas como marketing porque não faria diferença alguma. A campanha foi pouco divulgada, assim como os resultados. Normalmente os turistas vêm em busca das praias e sabem que querem ir ao Cristo e ao Pão de Açúcar. Claro que isso depende do perfil do visitante, mas eu estou falando da maioria. O fato das pessoas conhecerem pouco sobre o que vão encontrar na cidade é culpa do próprio estado, que divulga a ideia de que o Rio significa carnaval, samba e praia lá fora”. Roberto Oliveira é taxista há quinze anos e faz ponto em frente a um hotel de Copacabana. Ele conta que costuma levar os turistas aos mesmos lugares e que sugere alguns pontos da cidade, quando é possível: “Eu não sabia que tinham sete maravilhas no Rio. Sabia do Corcovado e, quando é possível, falo para os turistas irem visitá-lo. É um privilégio para os cariocas ter uma maravilha do mundo aqui do nosso lado! Temos que incentivar a visitação”. O problema não está na forma que a eleição foi realizada. Rafael acredita que a escolha tem credibilidade, ainda que não tenha o aval do governo, porque é resultado da opinião da maioria. Para ele, a lista seria arbitrária se as maravilhas fossem escolhidas por algum órgão. “A Riotur, por exemplo, as elege, de alguma forma. Quando eles escolhem alguns atrativos turísticos para divulgar, eles estão escolhendo as maravilhas do ponto de vista deles”, justifica. Louise Palma NO 15 - 2009/1 Levantando as cores do arco-íris 13 Em Ipanema, a bandeira colorida do movimento gay demarca um território livre de preconceitos Vivemos um momento em que o homossexual está livre para “sair do armário” o quanto quiser. Quem gostou da idéia foi Felipe Martins, comerciante da praia de Ipanema. Ele é um cara que literalmente “dá bandeira”, já que presenteia os donos de barracas da ala gay da praia com bandeiras do arco-íris. O território, considerado o paraíso homossexual, está consolidado há mais de 20 anos na altura da rua Farme de Amoedo. É o lugar mais livre de preconceitos, onde gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais podem se sentir à vontade, na garantia de que seus direitos serão respeitados. De acordo com Felipe Martins, as bandeiras fazem parte do cenário da praia gay há cerca de 12 anos. “Eu as confecciono e dou para os donos das barracas hastearem, para demarcar melhor nossa área. É um símbolo que tem como finalidade o reconhecimento”, explica. Para ele, o arco-íris representa alegria, liberdade e espontaneidade. “Acho que reflete bem nossa tendência”, observa. As bandeiras de Felipe são conhecidas internacionalmente. “Revistas de turismo do mundo todo dizem que é fácil identificar a ala gay de Ipanema através delas”, destaca. Os turistas que visitarem a praia ainda podem levar de lembrança da área gay a sunga com estampa de arco-íris, uma das mercadorias de Felipe. “Vejo a ala gay como o lugar onde as pessoas podem namorar, conversar, se encontrar, viverem como são, sem serem julgadas por isso”, avalia Felipe Martins. Segundo ele, a sociedade precisa de visão e tolerância em relação ao homossexual. “Temos leis contra o preconceito, mas deveria ser criada uma lei específica para homossexuais”, expõe o comerciante. Como funciona o Direito Sylvia Amaral, advogada e especialista em direitos dos homossexuais, explicou que não existe lei que criminalize a homofobia, nome dado ao preconceito contra homossexuais, transexuais ou travestis. Um projeto de lei sobre o assunto ainda tramita. “Para punir os homofóbicos, usa-se a Constituição Federal, que proíbe a discriminação de uma forma geral”, esclarece Sylvia. De acordo com Sylvia, os direitos conferidos aos homossexuais são quase todos provenientes do Poder Judiciário, que vem dando mais atenção ao segmento e reconhecendo o direito à igualdade. “Certamente o maior número de decisões favoráveis ao homossexual proferidas pelos julgadores vem de uma pressão de parte da sociedade”, aponta a advogada. Ela acredita que apenas a criação de leis poderia trazer igualdade. “Mesmo assim, enquanto algumas pessoas tiverem preconceito, a igualdade não será ampla como deveria”, afirma. Se um casal heterossexual pode manifestar afeto publicamente, respeitando limites impostos pela sociedade, os casais homossexuais também têm esse direito, dentro dos mesmos limites. “É um artigo previsto na lei, mas que, infelizmente, só tem alcance no Estado de São Paulo”, observa a advogada. Outro problema enfrentado por homossexuais é que a legislação brasileira não prevê o casamento, nem a união estável, entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, casais vêm formalizando o fato de viverem juntos através de uma escritura de união estável, feita em cartório. “O Poder Judiciário pode ou não aceitar a escritura como válida. Ela vem sendo feita há uns 5 anos. A escritura, aceita ou não, e o testamento, são os únicos documentos que protegem os casais homossexuais, por isso devem ser feitos”, informa Sylvia. Segundo a advogada, o Estatuto da Criança e do Adolescente não proíbe a adoção por casais homossexuais, porém, em comparação a casais heterossexuais, eles passam por dificuldades muito maiores para adotar um filho. Da mesma forma, a legislação brasileira não veta expressamente o registro de uma criança como filha de duas pessoas de mesmo sexo. Mas o registro civil direto de um filho só é concedido ao casal homossexual em determinadas situações e através de autorizações, obtidas judicialmente. Foto: Cília Monteiro Posto 9 da praia de Ipanema: o lugar onde homossexuais se sentem à vontade Essa é uma vitória de Michele Kamers e Carla Regina Cumiotto, professoras universitárias, que conseguiram o direito de registrar como filhos das duas o casal de gêmeos concebido por Carla, fruto de uma inseminação artificial. A decisão foi da Justiça de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Primeiro caso no Brasil Michele e Carla foram as primeiras no Brasil a conseguirem registrar filhos nascidos de inseminação artificial. “Nos já tínhamos uma história de 11 anos. Assim, não foi difícil demonstrar ao juiz que já éramos uma família”, relata Michele Kamers. A vontade de ter filhos veio primeiro de Carla. “A partir disso, comecei a sonhar também. Aí sim, tornou-se um desejo meu”, conta Kamers. Ao planejar Símbolo gay inspirado nas sete cores do arco-íris O arco-íris é um fenômeno óptico constituído por sete cores, que se formam devido à refração da luz solar. Sua beleza inspirou o artista plástico Gilbert Baker a criar a bandeira do arco-íris, em 1978, eleita como símbolo do movimento homossexual. Foi usada pela primeira vez no mesmo ano, numa parada gay em São Francisco. A pluralidade de cores representa a diversidade para os homossexuais. Na composição do símbolo, foram adotadas seis cores do arco-íris, que remetem a um significado espiritual. Estampadas na bandeira, elas aparecem na seguinte ordem: vermelho representa a vida, laranja, a cura; amarelo, a luz do sol; verde para calma e natureza, azul para harmonia e arte; e violeta, para o espírito. A sétima cor seria o índigo, excluído pela dificuldade de confecção. a família, Michele concluiu que não aceitaria apenas a adoção das crianças. “Só seria uma possibilidade se a Carla fosse infértil, mas não foi o caso”, diz ela. Carla e Michele não foram vítimas de preconceito. “Temos uma posição privilegiada. Somos psicanalistas, professoras universitárias e ocupamos um lugar de autoridade na cidade em que vivemos. Outra questão, é que temos muito bem resolvida nossa escolha”, afirma Kamers. No entanto, antes do caso passar por Porto Alegre, a justiça de Santa Catarina, estado em que vivem, alegou em uma consulta informal que o pedido ia contra as leis de deus e da biologia. “Mas como pode alguém do Direito julgar em nome de crenças pessoais?”, questiona Michele. “Quem vive a maternidade é a Carla, eu vivo a paternidade no processo. São lugares diferentes, por isso as nomenclaturas também são diferentes. Eu sou ‘pami’ e Carla é ‘mamãe’”, explica Kamers. O casal espera que o caso sirva de exemplo e resulte numa mudança social. “Já tivemos nazismo, fascismo e escravidão como provas de que a diferença, na medida em que suscita questionamentos, provoca rechaço. Por isso, é necessário inscrevê-la no social como uma possibilidade no campo da cultura, que não é regra nem exceção”, conclui Michele. Cília Monteiro 14 NO 15 - 2009/1 Muitos mares de histórias Navegantes que atravessam o mundo revelam a curiosa vida dos que passam anos longe da terra firme “Já está provado que quem é marítimo por muitos anos dificilmente consegue se adaptar a vida em terra”, garante Erik Azevedo, que tem 32 anos e há 11 é marinheiro mercante. Erik navegou por toda a costa brasileira, conheceu a Itália, Holanda, Espanha e Portugal dentre outros países em viagens que chegaram a durar meses. Diversas pessoas passam dias, meses e até anos navegando. O embarque pelos 7 mares revela um mundo desconhecido para àqueles que, desde muito cedo, buscam na marinha sua profissionalização. Contudo, o sonho de viajar pelo mundo, conhecer novas terras, mergulhar em novas aventuras e de alguma forma ser útil ao país, traz também consigo dificuldades: árduas rotinas a bordo, a solidão de quem vive em um confinamento e o surgimento de uma série de novidades até então inimagináveis. “Cada navio é uma marinha, é um velho ditado”, diz Erik. O marítimo conta que começou na profissão em um navio sísmico que fazia varreduras geológicas e mapeamento do leito do mar em busca de petróleo. Erik ainda acrescenta que, pelo fato de o navio ser de bandeira norueguesa, os tripulantes eram servidos de um ambiente bastante confortável a bordo, o que não acontece com alguns oficiais da marinha de guerra que são submetidos, muitas vezes, a acomodações inadequadas e desconfortáveis. Em navios de guerra, a rotina diária é estruturada de modo a realizar uma divisão das tarefas em grupos, chamadas “quartos de serviço”. Existe sempre um quarto efetivamente de serviço, um que estará de folga e outro que será o “retém”, ou seja, fornecerá reforço para cobrir faltas eventuais. As tarefas a bordo são realizadas dividindo-se as 24 horas do dia em períodos de quatro e três horas. Dessa forma, o dia de trabalho do marinheiro é contado diferentemente do dia do homem de terra. Fora disso, o tempo é livre para se fazer o que quiser, desde que não tenha nenhum exercício estabelecido pelo comandando durante as viagens. O baralho, os livros, as conversas e até as festas são freqüentes nas embarcações para que o tempo possa passar mais rápido. Com as divisões, o navio está pronto para fazer frente aos trabalhos que envolvem toda a gente de bordo, ou parte dela, para um fim específico. Nas fainas, os marinheiros cumprem tarefas que envolvem o preparo para suspender, fundear, montar ou desmontar toldos, inspecionar materiais entre outras diversas atividades. Francisco Tomaz é marinheiro de guerra há 30 anos e conta que teve dificuldades para se acostumar com a vida no mar. “Períodos de confinamento, com pouco espaço a bordo, guarnição estressada pelos dias de mar (quando mais de 10 dias consecutivos), uma vontade grande de falar com a família todos os dias e não tinha como”. A ausência de TV e de internet em algumas embarcações, que realizam longas viagens, é um grande empecilho a esses profissionais, que se vêem privados das informações que acontecem no mundo. A comunicação com familiares, muitas vezes, é restrita ou inexistente pois não há sinal de celular em alto mar. Algumas embarcações e plataformas tem um sistema de comunicação com terra via satélite. Porém, isso só acontece em embarcações bem sofisticadas e em plataformas de petróleo, pois o custo desse sistema é bem elevado. Erik encontrava-se embarcado quando sua prima faleceu e não ficou sabendo. “Eu perdi uma prima quando estava no mar. Naquele tempo, eu ficava 50 dias em um rebocador de suprimentos. Ninguém me avisou nada mas também não adiantaria. Eu só soube que ela tinha falecido quando cheguei em casa”. Francisco, assim como Erik, também já realizou grandes viagens pela marinha de guerra. Esteve na Costa do José Maria, em 2004, como sub-chefe da polícia marítima Marfim, na Nova Guiné, na Nigéria, enfim, em todos os países da costa africana. Na Europa, viajou por Portugal e Espanha. Apesar de ter passado por algumas dificuldades, chegando até ser preso a bordo por não comparecer ao serviço em dia determinado, não se arrepende de ter escolhido a marinha como profissão. “Todo o esforço foi compensador”. Por e-mail, Francisco conta que uma das viagens mais marcantes da carreira foi a sua primeira viagem de Recife à Fortaleza como grumete. “Marcou porque estávamos com nossa turma juntos, mais de 250 amigos que se reuniam em internato desde seis meses atrás. Fortaleza foi uma festa, íamos à cidade para namorar com as gatinhas filhas da terra, éramos jovens e descobríamos o mundo. Nunca tivemos limites na imaginação, sabíamos das dificuldades que a Marinha nos impunha, mas sonhávamos em conquistar o mundo e transformá-lo. Era o nosso sonho ser marinheiro e para isso lutávamos. Depois de 30 anos, muitos morreram, outros chegaram à atingir o oficialato e outros, não obstante a todas as passagens, continuam sonhando, mas agora como homens, não mais como adolescentes”. Reza a lenda que marinheiro que é marinheiro deixa um amor em cada porto. Há quem diga que, antigamente, a ocorrência desses romances era muito mais comum do que hoje em dia. Em Recife, por exemplo, lavadeiras ficavam dispostas no porto e, ao encontrarem com os marujos, acabavam se apaixonando ou mesmo ofereciam suas filhas com a esperança de um casamento bem sucedido. Os tempos mudaram mas a lenda permanece. Erik diz que esses romances repentinos acontecem sim, e com mais freqüência nas dragagens, embarcações que ficam próximas a costa e que desempenham funções de manutenção da profundidade dos cursos d’água. Quem trabalha nas dragas, costuma ficar no porto durante meses podendo até descer todos os dias. “O cara em terra todo dia, só gasta, se não tiver juízo, torra tudo na farra e não vai pra frente nunca. Já ouvi muitas estórias de marinheiros que largam família e tudo mais pra montar casa para as primas”, diz Erik. Francisco também confirma a tendência de romances nos portos, “mulheres no porto, quase sempre o marujo se apaixona (e a mulher também), mas depois esquece”. E José Maria ainda acrescenta, “Quem não tem romances naquela idade E eu nunca tive vocação para santo. Um deles resultou num casamento mal sucedido”. José Maria tem 71 anos é português e sub-chefe da polícia marítima. Quando ingressou na marinha, tinha apenas 14 anos e começou como telegrafista até chegar a agente da polícia marítima em trabalhos que envolviam missões sigilosas. Hoje, aposentado, José Maria se recorda dos romances em cada porto, do balanço do mar, das rotinas diárias, da comida de bordo enfim tudo deixa um resquício de saudades. “São muitas lembranças, às vezes alegres outras nem tanto, mas nada que eu pudesse dizer que não compensou, ou melhor, digo que tudo valeu muito a pena. E como valeu...” Bianca Mina 15 NO 15 - 2009/1 Vestibular: bicho que perde cabeças Enem, como forma de ingresso no ensino superior, ganha força e alivia pressão sobre os estudantes Conta a Mitologia Grega que caloura de Comunicação Social na Hidra de Lerna era um monstro com Universidade Federal do Rio de Janeiro sete cabeças que, ao serem cortadas, (UFRJ), discorda que o vestibular seja renasciam. Matar esse ser foi um dos um bicho de sete cabeças: “Acho que doze trabalhos do semi-deus Hércules. se você se preparou bem, cumprindo Na acepção contemporânea, o bicho um plano de estudos, você consegue se de sete cabeças passou a simbolizar sair bem. É mais a cabeça da pessoa algo de grande complexidade e com que cria isso”. exagerada dificuldade. Os traumas Mesmo não sendo A origem do mito causados pela proum trabalho para os O bicho de sete cabeças tem origem na va não são pequedeuses, o vestibular é Mitologia Grega. Segundo o mito, Hidra nos em alguns dos encarado por grande de Lerna era uma espécie de serpente “sobreviventes”: parte de nossa juven- que habitava obscuras e fantásticas par- “Eu não quero pastude como um bicho agens e cujas sete cabeças renasciam ao sar nunca mais por de sete cabeças. “Não serem cortadas. Matar esse animal foi isso. Não gosto de exatamente um bicho um dos famosos Doze Trabalhos do vestibular”, declara semi-deus Hércules. Na acepção conde sete cabeças, mas temporânea, um bicho de sete cabeças Thales Pereira, é uma das fases mais passou a simbolizar algo de grande com- 20 anos, também importantes na vida plexidade e com exagerada dificuldade. calouro de comude um estudante por nicação da Fedcausa da pressão de eral. Já sua colega ter o futuro nas mãos. É claro que po- de turma, Lívia da Costa, de 17 nos, demos sempre tentar no ano seguinte, afirma que depois de aprovada mudou mas fica aquela sensação de ter um totalmente sua visão sobre o exame: ano perdido”, conta Antônio Lucas de “Quando você faz vestibular, pensa Lima, 17 anos, aluno da escola estadual que é muito complicado, que é coisa Brigadeiro Schorcht. para gênio. Depois que você é aprovaO vestibular, que atormenta a do, vê que não é tão complicado assim, vida de muitos jovens, já pode ser passa a olhar sob outra perspectiva”. eliminado dos critérios seletivos para Indagados sobre o porquê da 2010, mas muitas universidades ainda existência do mito em torno do prodiscutem a adoção do novo sistema cesso de admissão das universidades, que aproveita as notas de avaliação do os “vestibulandos” e os calouros de Exame Nacional do Ensino Médio, ex- Comunicação Social da UFRJ - que ecutado em etapas, para definir os ap- acabaram de passar pelo “turbilhão” tos a cursar o ensino superior. – enumeraram alguns motivos: por ser O momento único propiciado uma prova com um grau de dificuldade pelo vestibular costuma tirar o sono considerável, o nervosismo do aluno, a de grande parte da juventude brasile- pressão dos colégios e a concorrência ira que almeja cursar o ensino supe- são alguns dos mais freqüentes. Thalrior num país onde o índice de estu- es Pereira, contudo, salientou que muidantes de 18 a 24 tas vezes o aluno anos com acesso vem despreparado à Universidade é do ensino médio, de apenas 13%. principalmente os E, quando se fala de rede pública, e em ensino público, completa: “como esse índice cai para o vestibular é uma 3%. Carlos Eduaravaliação do que do Lopes, também eles aprenderam e, daescola estadual Brigadeiro Schorcht, como o ensino não está bom, eles talvez acredita no mito por trás do vestibular fiquem com mais medo por isso”. Se o e afirma que sua existência se deve ao vestibular é um bicho de cabeças para fato do processo ser muito concorrido grande parte da juventude, imaginem e difícil. Já Natália Menezes, 17 anos, para aqueles que não podem pagar por “Quando você faz vestibular, pensa que é muito complicado, que é coisa para gênio” um ensino de qualidade em sua formação? Em entrevista recente à imprensa, o reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira, discorreu contra os métodos de acesso à universidade existentes no país e afirmou que, apesar de parecer um “mal necessário”, o vestibular é, na verdade, um mecanismo perverso de exclusão e promoção da desigualdade. O reitor declarou ainda que o método atual de inserção no ensino superior brasileiro incentiva o que ele chama de “indústria do vestibular”, em cujo centro estão os famosos cursinhos prévestibulares. Através da voz do reitor de uma das maiores universidades do país é possível perceber que os problemas que envolvem o vestibular ultrapassam a esfera do pessoal e perpassam pela questão social do país, que influi diretamente nos cinco milhões de jovens que se preparam para uma etapa crucial na vida de um estudante. Esse ano os alunos brasileiros esperam por grandes novidades no vestibular: o Ministério da Educação (MEC) lançou a maior mudança feita no concurso desde 1911. Trata-se do “Novo Enem” que, baseado no SAT, sistema estadunidense de vestibular, pretende transformar o exame numa prova unificada em todo o Brasil, o que aumentaria as chances dos alunos pleitearem vagas em outros estados, diminuiria a pesada carga horária de provas, entre outros benefícios enumerados pelo MEC. Segundo o Ministério, a consolidação de um sistema nacional de admissão atende às novas necessidades do ensino superior no país, que cresce a cada ano. A revista Veja, em matéria especial sobre o Novo Enem, noticiou que as quatro maiores redes de cursos pré-vestibulares do país já afirmaram fazer adaptações nas aulas e no mate- rial didático de modo a treinar os alunos para o novo exame. Questionados se estão estudando de maneira específica por causa dessas mudanças, cerca de 90% dos alunos entrevistados do 3º ano do colégio estadual Brigadeiro Schorcht afirmaram que não. A aluna Camila Silveira, por exemplo, disse que está estudando “normalmente” e que pretende fazer um cursinho prévestibular ano que vem, opinião compartilhada por muitos colegas. O Reitor Aloísio Teixeira, otimista quanto à nova prova, também afirmou à imprensa que a idéia lançada pelo MEC de um Exame Nacional do Ensino Médio como subsídio para o acesso às universidades federais pode ser o ponto de partida para a revogação do mecanismo do vestibular, para a democratização do acesso e ainda para a consolidação do caráter público dessas instituições. A maior parte dos entrevistados, contudo, não concorda com o reitor. “Não acredito que o vestibular se torne mais democrático, já que o problema real não será resolvido. Só quando os candidatos da rede pública tiverem acesso ao mesmo ensino dado nos colégios particulares, os candidatos menos favorecidos poderão disputar de igual para igual com os outros concorrentes”, afirma Cintia Silva, de 22 anos, aluna de um curso pré-vestibular. O estudante Adair Pacheco, do colégio estadual Brigadeiro Schorcht, é taxativo: “Antes de pensar no terceiro grau, deveríamos nos preocupar com o ensino médio, que hoje é um lixo. Raquel Gonzalez 16 NO 15 - 2009/1 Sem hora para o grito de independência Cresce o número de jovens que prefere o conforto da casa dos pais em vez da busca da autonomia Aos 23 anos, D.Pedro I deu o grito de independência de um país inteiro. Mariana Moraes, de 47 anos, deu o seu aos 24. Gabriela Leite, de 25 anos, tornou-se independente há 2 meses. Gustavo Areal, de 26, diz que está planejando como fará isso e Sandra Pereira, de 45 anos, se considera independente mesmo morando com os pais. Para alguns, a independência é conquistada após um longo processo de amadurecimento. Para outros, ela acontece repentinamente. Este último foi o caso de Mariana. Ela saiu de casa após brigar com os pais por eles não aceitarem seu namoro com um homem casado. “Meus pais, totalmente tradicionais e conservadores, não aceitaram o fato de eu namorar um homem casado e com filhos. Então eles me falaram: ou você termina com ele ou sai de casa. E eu escolhi sair de casa. Desde esse dia, meus pais me diziam que eu não existia mais.” – conta ela, que atualmente fala com os pais normalmente. Casada com o homem que a tirou de casa e com dois filhos, ela confessa que sair não foi muito difícil por ter o apoio de seu irmão mais velho, que além de ajudá-la financeiramente, cedeu um apartamento para ela morar temporariamente: “Eu já trabalhava, mas o dinheiro não era suficiente para meu sustento. Depois que meu namorado se separou da mulher, fomos morar juntos e não precisei mais pedir dinheiro para o meu irmão, que me ajudou muito enquanto isso não aconteceu.” – disse Mariana. Ela diz que só se sentiu independente depois que não recebeu mais ajuda do irmão: “Independência é quando o dinheiro que se ganha mensalmente consegue pagar os custos obrigatórios como água, luz e telefone, e também os extras, como lazer. A partir do momento em que eu não precisei da ajuda de ninguém para viver, me senti independente” – explica. Mariana acha que a saída da casa dos pais faz parte da lei natural da vida e diz que não vai tentar evitar a saída de seus filhos de casa: “Se eles souberem o que estão fazendo, se tiverem como se sustentar e forem responsáveis e maduros o suficiente para enfrentarem dificuldades, não tenho como ser contra. É algo natural.” Para Gabriela Leite, que mora sozinha há apenas 2 meses, a independência foi algo mais racional: “Eu sempre quis morar sozinha, mas essa decisão só foi tomada após eu ter condições de arcar financeiramente com ela.” Ela conta que sua maior dificuldade é ter que resolver algum problema doméstico durante o horário comercial por causa do trabalho e que, apesar de não ter com quem dividir suas dificuldades, as vantagens em morar sozinha são inúmeras: “Posso fazer o que quero, do meu jeito, na hora que me convém.” Além de todas essas vantagens, Gabriela conta que o relacionamento com a sua família melhorou bastante: “Tenho o cuidado de não me afastar; nossos encontros são sempre muito agradáveis. Além disso, os desentendimentos naturais da convivência foram extintos.” Ela aconselha os jovens que desejam sair da casa dos pais muito estudo: “Não dá para achar que o emprego maravilhoso vai cair do céu e você vai ganhar rios de dinheiro com ele. E se acontecer, só vai dar para mantêlo se tiver conhecimento para isso. Portanto, estude!” Entretanto, a juventude atual está menos inclinada a se tornar independente. Isabella Zappa, pedagoga, explica que além do dinheiro, a baixa auto-estima influencia no retardamento do processo individual de Gustavo Areal, 26, o mimado independência, pois o jovem não se sente capaz de viver por conta própria. Porém, ela ressalta que a peçachave no atraso da independência é o superprotecionismo: “Quanto mais superprotegido e mimado foi o jovem quando criança, mais difícil será sua saída da casa dos pais. Ele se sente tão conectado àquilo que tem medo da solidão ou de não se sentir tão bom quanto os pais.” – explica Isabella. Mimado assumido, Gustavo Areal, 26 anos é Procurador Geral do Estado e ainda mora com os pais. Entretanto, ele afirma que pensa em morar sozinho desde os 16 anos. “Para morar sozinho, você depende da independência financeira, que só Independência aos olhos da justiça A representação jurídica mais próxima da independência é a emancipação de menores. Esse mecanismo permite que um menor de idade adquira alguns direitos civis idênticos aos dos adultos. O pensamento que baseia este conceito é a idéia de que adolescentes amadurecem em idades diferentes, não apenas biológica, mas mental, emocional e socialmente. No Brasil, a emancipação pode ser adquirida acima dos 16 anos por vontade dos pais, por vontade própria, por auto-suficiência econômica e devido ao casamento – abaixo dos 16 anos, a emancipação é permitida em casos de gravidez ou para evitar o cumprimento de pena criminal. Entretanto, algumas proibições continuam vigorando para os emancipados, como por exemplo, atividades pornográficas ou de prostituição, que só são permitidas após os 18 anos. consegui em 2007. Eu já posso sair de casa se for alugar um imóvel, mas eu quero comprar e ainda não tenho dinheiro para pagar à vista ou dar uma boa entrada. Por isso estou esperando juntar mais dinheiro.” – justificou. Gustavo também contou que está economizando para poder sair de casa o mais rápido possível: “Decidi transferir meu trabalho para o interior do Estado porque se ganha mais. Eles me dão um extra para ajuda de custo, então consigo economizar mais dinheiro por mês.” – explicou. Apesar desse esforço para sair de casa, ele sabe que enfrentará muitas dificuldades quando isso acontecer: “Eu sempre tive empregada, então, vou sentir muita dificuldade em ter que gerir uma casa, mas isso é um motivo a mais pelo qual eu quero morar sozinho. Eu tenho que criar essa responsabilidade de administrar as contas de água, luz, gás, telefone... Toda pessoa precisa passar por isso, porque é um crescimento pessoal.” Mesmo com um bom salário e emprego estável, Gustavo não se sente completamente independente. Ele afirma que a independência é um processo lento e gradual, e que passar no concurso foi mais uma etapa: “Considero essa minha conquista na procuradoria como mais uma etapa. Não me senti independente em um dia específico. Com certeza a fase final deste processo de independência vai acontecer quando eu for morar sozinho e gerir a minha própria casa. É só o que falta.” Já a professora de História Sandra Pereira, de 45 anos, ainda mora com os pais, mas diz que é independente. “Sair de casa não significa nada. Tem muita gente que mora sozinha, mas ainda é extremamente dependente dos pais, tanto emocionalmente quanto financeiramente.” Ela conta que já morou sozinha duas vezes, para trabalhar e estudar, mas não gostou da experiência: “Adoro chegar em casa e ver tudo pronto e organizado. Além disso, adoro meus pais. Eles sempre me deram muita liberdade. Vou sair para quê?” Barbara Gazal 17 NO 15 - 2009/1 O mito da crise com data marcada Dificuldades em relacionamentos ignoram o ‘prazo de validade’ do casamento no imaginário popular Em seu apartamento, em Botafo- das, pois a mulher era a parte que tigo, confortavelmente deitada na cama nha que “abrir mão”, dentro da relação. de seu filho mais velho, a professora de Enquanto isso, a maioria dos homens português Lúcia Soares conta que seus continua esperando a imagem da mudois primeiros casamentos (ela passou lher que foi construída ancestralmente. por três) “foram relações completa- “Ele espera da mulher mais do que ela mente diferentes, mas deram exata- ta dando hoje em dia e do que ela ta mente no mesmo”. No primeiro, ela ti- disposta a ‘suportar’ porque a posição nha 18 anos e teve um filho. O segundo de quase vassalagem da mulher em refoi sem filhos e com uma pessoa mais lação ao homem acabou” jovem que ela. Nos dois, Lúcia descoIsso pode ser confirmado pelas briu, aos sete anos de casada, que esta- estatísticas de Marcelo Pinheiro. O psiva sendo traída e terminou a relação. cólogo diz que, geralmente, a proposta O psicólogo Marcelo Pinheiro de separação vem da mulher, pois os não conhece estatísticas relacionadas a homens se acomodam mais. Para Maruma crise dos sete anos de casamento. celo, o mito dos sete anos pode ter relaApesar disso, confessa que ele e sua es- ção com a fase em o casal se encontra. posa viveram alguma dificuldade, nessa Na maioria dos casos, nessa época, o época: “A gente conversou: ‘pô, a crise casal está tendo o segundo filho, a atendos 7 anos...’, mas não sei se essa crise ção para as crianças vai aumentando e, foi diferente aos 4, 5...”. Marcelo ex- para o parceiro, diminuindo. “O surplica que há, sim, uma diminuição na gimento dos filhos é uma grande protendência à separação com o passar do va para os casais porque os filhos são tempo. “Casais que estão juntos há dez importantes para os dois (em pessoas anos têm uma probabilidade de separar normais)”. Quando duas pessoas intemuito menor do que recém-casados”. ragem, a relação se torna mais difícil, se As duas relações de Lúcia que há uma terceira que exige um consenduraram sete anos terminaram por ini- so. Não dá para os dois lados mostraciativa dela. A professora conta que os rem pontos de vista opostos para uma criança. Quando dois maridos afirmao casal passa por vam que não queriam esse desafio e chea separação, pois gosga a um acordo, tavam dela. Lúcia deiele cria uma cultuxa a questão: “Gostara própria daquela vam como, se estavam família. Se a voncom outra?” Para ela, tade de um dos quando acontece a lados prevalece e traição, é porque o Marcelo Pinheiro a outra pessoa fica casamento já não está acuada, isso pode bem. Denise, muito bem casada há sete gerar uma crise. Todas as questões preanos, concorda com Lúcia sobre a di- cisam ser discutidas. Como as tarefas ficuldade de um casamento: a convi- serão divididas? “Tem que trocar fralvência, naturalmente. Aliás, parece ser da!”, lembra o psicólogo. Às vezes, o a única coisa em comum entre as duas. homem tem a expectativa de que a muDenise acha que crise pode acontecer lher faça essas coisas e ela não pretende a qualquer momento e diz já ter passa- fazer. No caso de Lúcia, os filhos não do por algumas, que foram superadas, segundo ela, com o amor. Para Denise, interferiram tanto nas separações. este é o elemento que ajuda o casal a Num dos casamentos que acabou aos sete anos, teve filho, no outro não. No lidar com as diferenças do outro. Para Lúcia, suas separações são terceiro, ela cedeu à maternidade mais características do perfil de mulher atu- por uma vontade do marido, com quem al. Ela acredita que, se tivesse outra ficou durante 17 anos, do que por um concepção de casamento, como a de desejo próprio. Denise ainda não tem mulheres de gerações anteriores, essas filhos, mas o primeiro está planejado duas relações não teriam sido rompi- para este ano. Ela acredita que, quando “O surgimento dos filhos é uma grande prova para os casais” o bebê é planejado e “feito com amor”, não causa problemas. No último casamento de Lúcia, a crise dos sete anos não passou nem perto. Era a época em que Maria Lúcia, a filha mais nova, era pequena e as marido tinha horror a discutir relação. Quem vive com uma mulher tem que saber discutir relação”. Lúcia acha que, se eles tivessem feito terapia de casal, a relação poderia não ter acabado. “As mudanças que acontecem Lúcia: “Casar de novo, só se morar separado” Para Denise, tudo se resolve com amor preocupações estavam voltadas para ela, não houve nenhum tipo de tensão por conta das experiências anteriores. A crise dessa última relação aconteceu, aí sim, nos últimos sete anos. O último rompimento não foi tão tempestuoso quanto os outros, muito por causa da maturidade. “A gente vai aprendendo, né? Três casamentos, a gente tem que aprender alguma coisa...”. O relacionamento de Denise não foi sempre tão tranquilo. Foi preciso a interferência da terapia para controlar o ciúme do marido, que, na época, até colaborou para que ela se afastasse do emprego. “Ele viveu num mundo de neuroses com a ex. Quando nos conhecemos, ele era controlador, ciumento demais. Em resumo, fazia comigo tudo o que ele não suportava que ela fizesse com ele. Daí, falei da terapia, ou então nem me casaria com ele”. Hoje, Denise diz que seu marido “é um homem maravilhoso”, com o ciúme controlado. Lúcia fazia terapia há 11 anos, quando se separou pela última vez, e acredita que isso pode ter interferido no fim do casamento. “O autoconhecimento fez com que eu, como esposa, me desligasse um pouco do relacionamento”. Ela chegou a propor ao marido que eles fizessem terapia de casal, mas ele se recusou. “Meu terceiro com a terapia são mudanças diante da vida. Sua forma de lidar com o mundo é modificada com a terapia em várias áreas, inclusive na área afetiva”, explica Marcelo Pinheiro. “Se uma pessoa buscou um conhecimento pessoal e outra não, isso pode acirrar um descompasso entre os dois”. Marcelo conta que, na terapia de casal, um chega pensando que o terapeuta vai mostrar ao outro como ele está errado. “Se meu marido/ minha esposa mudasse, nossa relação seria perfeita...” Mas não é isso que é feito. Se o terapeuta opta por um dos lados, estará reproduzindo a dificuldade que levou o casal à terapia. O objetivo é facilitar que cada um enxergue sua responsabilidade dentro do problema. “É muito difícil mudar o outro. É mais fácil mudar a si mesmo”. Se cada um colabora, os dois conseguem encontrar soluções. Mas Marcelo avisa: “Terapia de casal não é cola pra colar as pessoas, quem sou eu para saber que o melhor para aquelas pessoas é estar junto e não separado? Ninguém pode saber isso...” Lúcia só casará de novo, se for para morar separado. E Denise afirma para quem quiser ouvir que, caso se separe, não se casará nunca mais. Carolina Berger 18 NO 15 - 2009/1 Chaves que protegem do medo Como não podem acabar com a violência, cariocas se trancam das mais variadas formas em busca de segurança No século XIII, em Portugal, baús com quatro fechaduras eram a maneira mais segura que a nobreza conhecia para guardar seus objetos de valor. As quatro chaves capazes de abrir tais baús eram distribuídas cada uma para um alto funcionário do reino português, garantindo a segurança dos artigos guardados. Com o tempo, o procedimento foi caindo em desuso, e a mística do número sete, originária de religiões primitivas babilônicas e egípcias, acabou gerando a expressão dos dias de hoje, quando algo é guardado a sete chaves, ao invés de quatro. Claft, claft, claft, claft. Curiosamente, não eram sete as chaves de João Neves, 66, mas quatro, exatamente como há oito séculos atrás. A incrível coincidência parecia confirmar que se tratava de um “maníaco por segurança”. João mora com a esposa numa casa de classe média no bairro da zona norte do Rio, próximo ao sempre “movimentado” morro dos Macacos. Sem condições de se mudar para um lugar melhor tamanha a desvalorização que o imóvel teve desde que foi comprado por ele, nos anos 80, Seu João tem que conviver com os constantes tiroteios e arrastões na região. Numa noite de 2001, seu neto, à época com apenas dois anos de idade, quase foi atingido por uma bala perdida que chegou a entrar no quarto do menino. “Esses problemas começaram por aqui quando a polícia começou a prender os bicheiros da região. Com a diminuição do poder do jogo do bicho, os traficantes tomaram conta da região”, acredita João. Amedrontado depois do assalto em algumas casas próximas à sua, o professor de português aposentado mandou instalar mais duas trancas na porta de sua residência, para tentar dificultar um pouco a vida dos assaltantes. “Graças a Deus eu nunca precisei delas”, diz. Além das fechaduras extras na porta, João tomou outros cuidados mais “tradicionais” para afastar os criminosos. Um cachorro e uma cerca elétrica protegem a pequena varanda da residência. “Antigamente, o muro tinha apenas cacos de vidro para impedir a entrada dos bandidos, mas resolvi investir e comprar uma cerca elétrica. O cão eu sempre tive, mas também considero uma espécie de “segurança permanente” para a minha casa” conta. As precauções para proteger sua casa não foram as únicas tomadas pelo aposentado. Apesar de ter direito a andar de ônibus de graça, João raramente utiliza o transporte coletivo. Os casos de violência contados pelos vizinhos fizeram com que Seu João mudasse seus hábitos para se sentir seguro. “Tive começar a sair menos de casa. Mesmo nos tempos em que eu pagava a passagem no ônibus, ela saía muito mais barata do que uma corrida de táxi. Mas não me arrependo”, afirma. Indignado, João conta que um de seus amigos chegou a ter um revólver apontado para sua cabeça durante um assalto a um ônibus. Diferentemente de João, Luiz Antônio, 53, nunca chegou a passar por uma situação de risco relacionada à violência. Mesmo assim, morador de um prédio no Catete, se protege como pode dos criminosos. Luiz chegou a tentar convencer seus vizinhos de que medidas mais extremas de segurança – câmeras de vigilância, presença de porteiros 24 horas por dia etc eram necessárias ao edifício. Não conseguiu, e não foi por falta de insistência, garante. “Eu falava dos casos de violência que a TV mostra todo dia, mas os moradores me ignoravam. Passei algum tempo brigando por isso, mas não adiantou”, lamenta o advogado. Apesar de nunca ter presenciado um assalto, Luiz evita riscos quando sai de casa, e se protege em seu apartamento, seu porto seguro. Com medo de que ladrões entrassem em sua casa pela janela que dá pra rua, o advogado instalou uma grade alumínio, praticamente abdicando da vista. Mesmo morando no terceiro andar, Luiz decidiu tomar essa medida depois de se assustar com alguns casos na televisão. “Cansei de ver, na TV, histórias de casas invadidas por bandidos. Prefiro parecer maluco a me expor a esse tipo de risco”, diz, reclamando da forma como é tratado pelos amigos. Apesar de não ter dúvidas da qualidade de suas amizades, Luiz não gosta do jeito como alguns de seus amigos e até sua esposa se referem a ele em alguns momentos. “Sempre fui o mais precavido do nosso grupo, mas eles gostam de me chamar de maluco, paranóico etc”. O modo como é tratado não é à toa. São as manias do advogado que irritam os companheiros. Uma delas é curiosa e inconveniente: Luiz não gosta de pedir nada por telefone para não ter de abrir a porta para estranhos, mesmo quando identificados. A psicóloga Cassilda Soares confirma o que muitos percebem no dia-dia: os casos de violência frequentemente apresentados pela mídia acabam aumentando a sensação de insegurança, e a necessidade por mais proteção. “Esses fatos acabam entrando para o imaginário da sociedade, que fica impressionada com os tiroteios, assaltos, assassinatos. Vem daí também essa busca por câmeras de vigilância, carros blindados etc”. Cassilda explica também que o medo dos criminosos tem a ver com a necessidade da sociedade de se afirmar através da negação do diferente, do outro, no caso, os bandidos, os facínoras, sanguinários etc. O traficante é, portanto, o bárbaro carioca do século XXI. “Sem identificar o outro, o diferente, eu também não consigo me identificar, não existo. O “errado” é essencial para que se conheça o “certo”. Este é o princípio da alteridade”, diz a psicóloga. Cassilda não põe a culpa da paranóia por proteção nos tempos de hoje nos veículos de co- municação, mas reconhece que ela exerce importante papel. “É algo até certo ponto natural. A influência da mídia na construção dessa sensação de insegurança é inegável, mesmo que não seja de forma proposital. Embora os meios de comunicação escolham o que deve ou não ser noticiado, eles não criam fatos violentos, apenas os divulgam”. Para ela, pessoas como o advogado Luiz Antônio são os principais afetados por essa sensação de constante insegurança vivida no Rio de Janeiro. Isolado de um contexto social, o medo da violência dificilmente atingiria uma pessoa que nunca enfrentou situações de real risco. Já na realidade, o caso de Luiz parece apenas mais um entre muitos cariocas assustados com o que vêem na TV, escutam no rádio ou lêem no jornal. Enquanto isso, a psicóloga não vê muita influência da mídia no medo de João Neves, que mora numa região reconhecidamente perigosa da cidade. “No caso dele, a sensação de que vive no meio de uma guerra é real, não é psicológico. As pessoas que moram nesses locais de risco precisam de proteção, e vão atrás dela até onde sua condição financeira permitir”. Como não têm como fugir, pessoas como João aprenderam a evitar os perigos. Já com a entrevista terminada, com o relógio marcando quase 22h, o ex-professor deu um conselho sobre a viagem de volta do repórter para casa, em Laranjeiras. “Vai de táxi, os ônibus por aqui não são seguros” alertou Seu João. Talvez em busca de alguma adrenalina, a reportagem decidiu “pegar” um 432. Rodrigo Paradella 19 NO 15 - 2009/1 Espelho quebrado, sorte em pedaços A história por trás das crendices e simpatias que afetam o dia-a-dia da população brasileira. Da superstição à tradição religiosa, a mitologia sobre os espelhos é associada ao azar ou a morte. A origem dessa crença remonta aos gregos e seu costume de ler o futuro a partir da imagem de uma pessoa refletida sobre uma tigela com água, se o pote quebrasse era sinal de azar. Os romanos herdaram o hábito e acrescentaram que a má sorte se estenderia por sete anos, contudo para os judeus os espelhos significam a vaidade. Durante o luto, todas as superfícies polidas e espelhos da casa são cobertos a fim de evitar que os vivos se distraiam com figuras de beleza e do mundo físico, além disso, a lei judaica proíbe orar diante de espelhos. Assim como o espelho, todos os comportamentos supersticiosos têm uma história, seja ela de cunho pessoal ou cultural. A estudante de jornalismo Lorena Simões, 20, por exemplo, conta sobre a sua superstição com o número sete. “São muitas as coincidências que me levam a crer que o número me traz sorte: Passei pra UFRJ no 17º lugar com 40,17 pontos, nasci no mês sete, meu namorado faz aniversário no dia 27, meus dois últimos relacionamentos começaram no dia 17, comecei a trabalhar com 17 anos”, explica a estudante. Ninguém precisa acreditar 100% numa simpatia para executá-la nem ser um legítimo esotérico para ter um cristal em cima da mesa. Basta acreditar um pouquinho que já está valendo. O comerciante Severino Ramos, 50, não acredita em superstições, mas admite que não abre mão de algumas simpatias, rituais e objetos para pro- teger o seu estabelecimento da inveja alheia. “No bar tenho as imagens de Nossa Senhora de Fátima e São Jorge, além de olhode-boi, arruda, espada de São Jorge e comigo ninguém pode”, conta. As superstições são tão antigas quanto a humanidade e todos nós cedemos a elas em alguns momentos de nossas vidas. “Elas podem ser saudavéis na medida em que ajudam o individuo a encarar os desafios e a crer que no final tudo vai acabar bem”, explica a psicóloga Marta de Oliveira, 56 anos. Porém a crença exagerada nestes recursos pode gerar danos à autoconfiança do indivíduo. Quebrou um espelho? A superstição prega que serão sete Por exemplo, quando trans- anos de má sorte. ferimos a responsabilidade por nossas ações para algum fator externo que, supostaportanto nunca deixo de fazê-las no mente, nos atrai o azar ou quando reveillon para que toda a prosperidadeixamos de realizar alguma atividade de do ano anterior se repita no novo por medo de que aquele “sinal” seja ano”. um aviso de que algo pode dar erraA interpretação subjetiva altera do. o valor das crenças. Até hoje não há É inegável que as superstições nada que comprove a má fama do núexercem determinado poder na vida mero treze, mas muita gente prefere das pessoas que as praticam. A dona evitá-lo, inclusive algumas construções de casa Rosa Maria Alves, 56, é um no Brasil, Japão e Estados Unidos não exemplo disto. Ela não dispensa a possuem o 13º andar. Contudo, para oportunidade de fazer uma simpa- o ex-coordenador técnico da seleção tia. “Acredito piamente que as sim- brasileira Mário Jorge Lobo Zagallo, o patias que realizo atraem para mim e treze sempre foi sinal de sorte. Após para minha família energias positivas, uma operação no estômago em 2005, Superstições mais comuns e suas origens Escada: Esta crendice está relacionada com o medo ao cadafalso, local onde se aplicava a forca aos condenados. Antigamente, devido à grande altura que este costumava ter, era necessária uma escada para colocar a corda do enforcamento na posição correta, bem como para retirar depois o cadáver do condenado. Qualquer um que passasse por baixo da escada corria o perigo de dar de frente com o morto. Gato preto: Na idade média, acreditava-se que os gatos pretos eram bruxas transformadas em animais. Por isso a tradição diz que cruzar com gato preto é azar na certa. Número 13: Sua provável origem está nos mitos nórdicos, como o de Loki, espírito maligno que apareceu sem ser convidado em um banquete celestial onde havia 12 convidados. A má fama do número ganhou força com o relato bíblico da Última Ceia, em que 13 pessoas se reuniram à mesa na véspera da crucificação de Jesus e que Judas, o traidor, era o 13º convidado. Bater na Madeira: Essa superstição está associada à crença de que as árvores eram a morada dos deuses. Sempre que se sentiam culpados de algo, os povos primitivos pagãos, batiam no tronco para invocar as divindades e pedir perdão. Os celtas, também tinham um costume parecido. Seus sacerdotes, os druidas, batiam na madeira para afugentar os maus espíritos, pois acreditavam que as árvores consumiam os demônios. ele foi treze vezes à Igreja de Santo Antônio, santo de sua devoção, cujo dia é comemorado em 13 de junho. Várias coisas tornam a superstição altamente sedutora. A principal, sem sombra de dúvidas, é a curiosidade. Tendo consciência disso, os meios de comunicação exploram o assunto como podem. A maioria dos grandes jornais impressos possui uma seção dedicada, pelo menos, ao horóscopo. Na rádio Globo, durante o programa “Show do Antônio Carlos”, a radialista Aldenora Santos, mais conhecida como Pudica, ensina aos ouvintes rituais para conseguir um trabalho, atrair a pessoa amada, afastar doenças etc. Na Internet a quantidade de sites que oferecem serviços desta qualidade é imensa. Religião e superstição É difícil não apontar características supersticiosas dentro de praticamente todas as religiões. Um exemplo clássico na igreja católica é Santo Antônio. Conhecido como santo casamenteiro, as mulheres impõem a sua imagem diversas provações, por exemplo, colocando o de cabeça para baixo dentro de um copo d’água e só o retiram quando encontram um namorado pretendente a marido. Diferentemente da religião, a superstição tem fins específicos. Apelamos para ela quando precisamos de uma ajuda a mais, venha ela de onde vier. È um equivoco confundir as duas coisas, como explica o padre Jairo Bittencourt, da paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, em Niterói: “Religião não é magia. Enquanto uma prática supersticiosa, como uma simpatia ou um talismã traz um benefício imediato, a religião busca a paz divina, envolvendo normas éticas e códigos de conduta”. De fato, a maioria das pessoas tem consciência de que nada lhes acontecerá se contrariarem uma superstição. No entanto estas crenças ainda exercem influência e dão ênfase ao velho ditado espanhol: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay” - Não creio em bruxas, mas que elas existem, existem. Juliana Xavier de Araújo 20 NO 15 - 2009/1 O momento decisivo da bola final Da sinuca para a vida, a pressão da última tacada define sucessos e fracassos de pessoas e negócios O médico retornou à sala com os resultados na mão. José Manuel Lopes Landeira suava frio. Apesar de esperançoso, ele sabia que o diagnóstico não seria agradável. Afinal, desde a adolescência, nunca mais recebera notícias positivas em suas consultas médicas. O resultado anunciado pelo doutor constatou o óbvio: o vício do cigarro havia destruído seu sistema respiratório. A partir daquele momento, o empresário de origem espanhola teria que decidir entre mudar totalmente a sua rotina e largar o fumo, ou manter um estilo de vida com fim já datado. O caso dele é um entre muitos em que uma resolução de grande importância tem que ser feita, senão o desfecho é desagradável. É matar ou morrer. É quando se está pela bola sete. A expressão popular vem da sinuca. No famoso jogo de bilhar, a decisão de uma partida empatada até o final se dá na disputa pela última bola, no caso a sete (preta). Errar a tacada pode significar uma simples derrota ou a perda de todo o dinheiro que se apostava. O lance, de tão emocionante, caiu nas graças do povo e virou um jargão bastante conhecido. No caso de José Manuel, que tem 54 anos e é dono de dois estacionamentos na Tijuca, a solução não veio numa fração de segundos, mas sim com uma mudança drástica de comportamento, reforçada a cada dia. Ele parou de fumar a dois anos, desde a última visita ao médico, em junho de 2007. José comentou como foi estar na jogada que vale a última bola. “Meu médico deu a sentença: os pulmões estavam totalmente acabados. Ou eu parava de fumar assim que saísse do consultório, ou só iria reencontrá-lo no céu. Precisei de muita força de vontade, afinal, fumava desde os 14 anos. No começo, ninguém acreditou em mim, acho que nem eu mesmo levava muita fé. Porém, consegui largar o vício e hoje estou aqui para mostrar como estive realmente pela bola sete”. Assíduo freqüentador da Sinuca da Lapa, um dos berços da boemia carioca, Ricardo César de Oliveira, estudante de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também entende muito bem o que é estar pela última bola. Nos fins de semana, além de “brincar no tapete verde”, Ricardo é árbitro de futebol amador. Nessa profissão, a ameaça da catástrofe é algo rotineiro. “Todo mundo sabe que apitar jogo de futebol não é fácil, ainda mais em várzea. Nessas ligas pequenas, não há proteção. Em um campeonato em março, fui obrigado a marcar um pênalti a favor do time da casa. A torcida estava toda à beira do campo, me ameaçando constantemente. Pra se ter idéia, quatro torcedores cercavam o meu carro, me esperando caso a equipe deles perdesse. Tive que tomar uma decisão rápida. Foi a correta? Não. Mas tive que fazê-la”, relata. Mas o que pode levar uma pessoa a ter tal infortúnio? Incompetência, preguiça, falta de atenção e azar são algumas das causas apontadas por Ricardo. “O indivíduo geralmente se encontra na iminência de algo ruim porque provocou isso em um momento anterior. Contas não pagas e revisão do carro são exemplos que eu citaria. Mas, no meu caso, como foi visto, a falta de sorte também influencia. E muito!”, destaca. Existem também contextos ou lugares específicos que aumentam esses fatores. Juliana Alves do Nascimento, gerenciadora de investimentos de 29 Por dentro das caçapas A sinuca é um jogo de mesa, com taco e bolas, variante do snooker, inventado em 1875 na Grã-Bretanha. Neste jogo dois adversários tentam colocar num dos seis buracos da mesa as bolas coloridas (não brancas) na seqüência definida pelas regras. Numa mesa de 2,84 m X 1,42 m (medida brasileira), são colocadas oito bolas, com pontuação de 1 (vermelha) a 7 (preta) mais a bola branca. A bola branca é utilizada para impulsionar as outras. Denomina-se bola da vez a bola colorida de menor pontuação presente na mesa. Ela é livre, isto é, o jogador não perde pontos caso erre quando tenta encaçapar essa bola. Feito isso, ela não retorna à mesa e dá direito ao jogador de jogar livremente qualquer outra bola. Esta segunda, se encaçapada, retorna à mesa e o jogador deve a seguir jogar a nova bola da vez. Com exceção da tacada inicial, é permitido jogar uma outra bola no lugar da bola da vez, porém com castigo, isto é, com perda de 7 pontos em caso de erro.. Ficar pela bola preta, a última da sinuca, se transforma no lance que determina a vitória. anos, aponta o sistema financeiro como um deles. “O mercado de ações não é tão estável assim, previsível. Com isso, já passei por vários momentos em que estive na iminência de me dar mal, de perder muito dinheiro”. Ainda segundo suas palavras, esse tipo de tacada são mais freqüentes em tempos difíceis na economia. “Em um dia do final de outubro do ano passado, com a crise a pleno vapor, eu estava com um título em decadência na mão. Sorte que decidi e consegui vendê-lo rapidamente. Uma possível demora representaria a desvalorização do papel na minha mão. E isso, ninguém quer.” afirma. Para Juliana, nesses momentos conturbados, o importante é estar preparado para dar a tacada certa: “Estou sempre estudando, porque facilita na hora de avaliar as possibilidades, ver qual é a menos suscetível ao fracasso.” Porém, ela faz uma ressalva interessante: “É verdade que muito depende de cálculos e variáveis, mas não é só isso. Ter a sorte ao lado também é requisito para o sucesso”. O cotidiano da cidade também proporciona outros cenários em que o indivíduo está pela última bola. Para Antônio Carlos Honorato, de 38 anos, a derrota pode significar a perda de uma vida. O sargento do Destacamento Bombeiro Militar do bairro do Catete já participou de diversos salvamentos ao longo dos seus 18 anos de profissão. “Já houve situações em que a vida da pessoa dependia da minha decisão. Uma vez, num acidente de trem, ou se amputava a pessoa rapidamente ou tentávamos retirá-la, sob o risco de morte. A decisão foi feliz, porque a vítima sobreviveu ao acidente, implantou próteses e agora vive bem”, conta Honorato. Mesmo praticando esse tipo de jogada no dia-a-dia do quartel, o bombeiro já deu tacadas que não mataram a última bola. “Cinco anos atrás, precisava comprar um carro, e acabei pedindo um empréstimo de quantia razoável a um amigo. Quando chegou a data do pagamento, não tinha dinheiro na mão suficiente para quitar a dívida. Naquela ocasião, estava realmente pela bola sete. Fui acreditar na sorte e apostei o pouco que tinha para tentar conseguir mais. Não deu certo, foi tudo pelo ralo. Infelizmente, pago essa dívida até hoje”, revela. A vida é recheada de decisões. Desde que roupa vestir até que carreira seguir, o indivíduo é constantemente obrigado a fazer escolhas. Mas são aquelas nas quais corremos perigo que marcam a vida do indivíduo. Na maioria das vezes, a iminência do desastre nos impulsiona a direcionar o taco e arriscar sem pensar muito. Nessas situações, conseguir acertar a tacada quando se está pela bola preta depende de destreza, mas essencialmente de sorte. Sorte essa que pode “encaçapar” o problema e garantir a vitória, ou que pode se transformar em azar e levar à derrota tanto nas partidas na sinuca como no jogo da vida. Rodrigo Nunes Lois