Almas Mortas - Orelha de Livro

Transcrição

Almas Mortas - Orelha de Livro
Almas Mortas
Nicolai Gógol
Adaptação de Gian Danton
Índice
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 1
Pelos portões de uma estalagem da pequena cidade de N entrou uma
carruagem de molas, bastante vistosa daquelas em que costumam viajar homens
abastados. Nela viajava um cavalheiro nem bonito nem feio, que teria passado
despercebido em qualquer lugar.
Aliás, sua chegada passou totalmente despercebida, exceto por dois mujiques
num bar em frente, que aliás, repararam mais na roda da carruagem que no ocupante:
- E então o que acha daquela roda? Chegaria em Moscou? Ou não chegaria?
- Em Moscou chegaria, mas em Kazan, nem pensar.
- Não chegaria mesmo. – concordou o outro, e os dois se felicitaram por serem
tão bons conhecedores de carruagens.
Assim que a carruagem entrou no pátio, o viajante foi recebido por um criado de
cabelos compridos, que acompanhou o cavaleiro até seu quarto.
O alojamento era do tipo que todos vocês conhecem, de modo que eu não
perderia uma única linha descrevendo-o. Não mesmo. Todos sabem que nesses
alojamentos, em troca de dois rublos o viajante pode alugar um quarto com baratas do
tamanho de ameixas observando-o durante a noite. Um quarto com uma porta barrada
por um armário, dividindo-o do apartamento contíguo, onde se encontra um vizinho
pacato, mas muito curioso, que costuma espiar o viajante pelos vãos. Uma estalagem,
em fim, com longa fachada de dois pavimentos e andar debaixo sem reboco, deixando
à mostra tijolinhos vermelhos. O andar superior era pintado de amarelo e o andar
debaixo tinha várias lojinhas nas quais se vendia grande variedade de quinquilharias.
Como se vê, uma estalagem como qualquer outra, de modo que não vou perder meu
tempo ao descrevê-la para não aborrecer o leitor.
O homem examinava o seu quarto – enquanto as baratas examinavam a pessoa
com a qual iriam dividir o quarto – e suas coisas foram trazidas pelo cocheiro Selifan e
pelo criado Petruchka. Eram uma mala e um baú de mogno, um par de formas para
colocar botas e uma galinha assada embrulhada em papel azul.
Todas as coisas foram deixadas no quarto e os criados foram se ajeitar. O
cocheiro foi para as estrebarias e o criado Petruchka instalou-se num pequeno
vestíbulo para o qual trouxe seu capote e seu fedor.
Assim que se viu instalado, nosso herói pôs-se a passear pelo salão comum. Era
um salão comum tão comum como qualquer outro e, para avançar a narrativa, não
vamos descrevê-lo. O leitor não precisa saber que as paredes eram pintadas a tinta a
óleo, escurecidas em cima pela fumaça e ensebadas embaixo pelas costas dos
viajantes. Tinha o mesmo teto fuliginoso que todos conhecem e o mesmo lustre cheio
de penduricalhos de vidro, os mesmos quadros ocupando a parede inteira, pintados a
óleo. Em suma, um salão tão comum que não tenho a menor necessidade de descrever
o que quer que seja, e é bom que o leitor se acostume, pois não vou descrever o que
não for necessário e nem me perder em digressões. Não mesmo, caros senhores. Aqui
terão uma narrativa totalmente limpa de tudo que for desnecessário!
O cavaleiro tirou da cabeça o gorro e um xale de lã desses que as esposas
costumam tricotar para os maridos, acompanhados de conselhos muito proveitosos,
mas não posso descrever o xale nem dizer que conselhos são esses porque nunca fui
casado e, por Deus, nunca usei um xale desses!
Livrando-se do xale, o cavalheiro pediu o almoço. O garçom lhe trouxe os pratos
normalmente servidos nessas ocasiões, tais como sopa de repolho, pasteis folheados
guardados por semanas na despensa, miolos com ervilha, salsicha com chucrutes,
frango assado, pepino salgado e pastéis folheados doces, ainda mais antigos que os
salgados. Enquanto comia, o forasteiro ia fazendo perguntas ao garçom. Perguntava
quem tinha sido o dono da estalagem, quem era o dono atual, se o patrão atual era
malandro, ao que o garçom respondia com um sorriso:
- Ah, esse é um espertalhão que só quer se dar bem à custa dos empregados!
Em toda a Rússia é quase impossível encontrar pessoas que não se distraiam,
durante as refeições, conversando com os empregados, mas o nosso herói parecia ir
além da simples curiosidade. Perguntava quem era o governador da cidade, que era o
procurador, quem era o presidente da câmara, indagou sobre todos os funcionários
públicos, enfim. Perguntou ainda sobre os proprietários rurais. Se tinham muitas terras,
se eram donos de muitas almas, pois almas era como se chamavam os camponeses
na Rússia antiga. Indagou ainda se havia tido alguma epidemia e se morreram muitos
camponeses.
Para conseguir a simpatia do criado, e .portanto, mais informações, ele assoava
o nariz com grande efeito, o que provocou grande admiração por parte do garçom,
tanto que sempre que ouvia aquele som ele sacudia a cabeleira, inclinava-se muito
obediente e perguntava se o cavalheiro queria alguma coisa.
Depois do almoço o cavalheiro sentou-se no sofá e colocou atrás das costas uma
almofada que os proprietários de estalagem costuma forrar não com algodão, mas com
tijolos. Tomou uma xícara de café e então foi para seu quarto, onde descansou por um
tempo. Refeito, escreveu em um papel, a pedido do criado, seu nome e cargo, para ser
levado ao chefe de polícia.
Enquanto levava o papelucho, o criado, não podendo segurar sua curiosidade, leu:
“Conselheiro civil Pável Ivanovitch Tchitchicov, proprietário rural, viajando a negócios”.
Enquanto o criado lia o que não era da sua conta, o próprio Tchitchicov saiu para ver a
cidade, com a qual ficou muito satisfeito. Não ficava em nada a dever a outras casas
da província, com suas casinhas de alvenaria pintadas com um amarelo de doer os
olhos e as de madeira de um encardido cinzento.
Aqui e ali havia placas comerciais, muitas delas já apagadas pelo tempo. Uma delas
mostrava uma mesa de bilhar com cavalheiros desenhados como costumam aparecer
os convidados especiais nos teatros. Os jogadores eram representados com os tacos
apontados, os braços torcidos e os pés levantados. Debaixo de tudo isso, a
esclarecedora placa: “Eis aqui um estabelecimento”.
O viajante viu também o parque público, onde repousavam algumas árvores
esqueléticas. Os jornais costumavam se referir a essas árvores em termos elogiosos
tais como: “A cidade se enfeitou de maneira extraordinária graças ao senhor prefeito,
que mandou plantar nela árvores frondosas para refrescar os dias de verão. Quando
da sua inauguração, os cidadãos vertiam lágrimas por tamanha obra e davam graças
aos céus por terem tão competente e honrado prefeito”.
Encontrando um policial, Tchitchicov informou-se com ele sobre como chegar nas
principais repartições públicas. Pregado num poste encontrou um velho cartaz de
teatro, que ele arrancou e enrolou, levando-o para casa, para poder lê-lo melhor.
Enfim, olhou tudo como se quisesse memorizar todo o cenário no qual se
passará nossa história.
Depois voltou para a estalagem e pediu um chá. Tendo-se fartado, pediu uma
vela e ficou lendo o cartaz. Era uma peça qualquer, sem qualquer personagem ou nome
famoso, mas mesmo assim ele leu tudo, inclusive o preço dos ingressos e o nome da
tipografia que o imprimira. Depois virou o cartaz para ver se havia algo escrito do outro
lado, não encontrando nada, enrolou-o e guardou em seu baú.
O dia terminou com uma costela frita, uma sopa de repolho já meio azeda e um
ronco puxado, como se diz na nossa querida Rússia.
No dia seguinte, dedicou-se exclusivamente a visitar os principais funcionários
locais. Primeiro foi a governador. Era um homem nem gordo nem magro, não de todo
severo e até um pouco bonachão, tanto que chegava a bordar. Depois foi na casa do
vice-governador, do presidente da câmara, do chefe de polícia, do procurador. Não
houve uma única autoridade que não tenha sido visitada e em todos os locais.
Tchitchicov não só conseguia informações, como, principalmente, disparava elogios a
torto e a direito.
Ao governador disse, assim meio que sem querer que entrar na província era
como ingressar no paraíso, que as estradas eram veludos e que era uma honra para a
Rússia ter um governador como ele.
Ao chefe de polícia disse elogios a respeito dos uniformes dos guardas.
Ao vice-governador e ao presidente da câmara, tratou-os equivocadamente de
Vossa Excelência, um equívoco que muito os agradou.
Como conseqüência, o governador lhe fez o convite para um sarau em sua casa.
Os outros também lhe fizeram convites, um para um jogo de cartas, outro para um chá.
Embora falasse muito e sua boca estivesse sempre muito disposta a derramar
elogios, o forasteiro, na verdade, falava muito pouco de si. Dizia-se modesto e
argumentava que não compensava perder tempo com ele. Pressionado, apresentava
uma história padrão: era um funcionário público que tivera muitos inimigos pela maneira
ilibada com que cumpria suas obrigações, que chegaram a atentar contra sua vida, mas
que estava cansado dessa vida agitada e queria sossego e que, chegando naquela
cidadezinha agradável, sentia-se na obrigação de ir apresentar seus respeitos à
augusta autoridade presente (fosse ela o governador, o procurador ou qualquer outra).
Eis tudo que se ficou sabendo do recém-chegado, mas foi suficiente para deixar
todos curiosos para vê-lo no sarau.
O viajante arrumou-se para o sarau com um cuidado de toalete que nunca se viu igual.
Depois da sesta, mandou que lhe trouxessem um lavatório e ficou longo tempo
esfregando as bochechas com um sabonete fino. Depois, pegando uma toalha no
ombro do criado, enxugou-se com cuidado até mesmo atrás das orelhas. Em seguida
colocou o peitilho, cortou dois pêlos que se assanhavam para fora do nariz e envergou
um fraque cor de framboesa.
Em pouco tempo, lá estava ele, em traje de gala, percorrendo as ruas da cidade com
sua carruagem. As ruas eram escuras, em contraste com a casa do governador, tão
iluminada que chega doía nos olhos.
Tchitchicov mal teve tempo de entrar no salão quando foi pego pelo braço pelo próprio
governador, que o apresentou à governadora. O nosso herói não se atrapalhou e
disparou um galanteio qualquer, muito discreto e pertinente para um funcionário público.
Logo os casais se puseram a saracotear pelo salão e Tchitchicov encostou na parede,
as mãos às costas, olhando-os com muita atenção.
As damas estavam tão bem vestidas quanto é possível estar em uma cidade como
aquela e os homens eram de dois tipos.
Havia os fininhos, muito galantes, sempre andando em volta das damas, muito
refinados e agradáveis. Sentavam-se ao lado das damas e falavam francês com elas,
divertindo-as muito.
O outro tipo eram os gordos ou aqueles do tipo de Tchitchicov, ou seja, que não
se pode dizer se eram gordos ou magros. Estes, ao contrário dos primeiros,
afastavam-se das damas e só olhavam em volta para ver se os criados já tinham
arrumado as mesas para o jogo de cartas. Tinham rostos redondos e seus cabelos
eram cortados à maneira “que me leve o diabo!”, como dizem os franceses. Esse
segundo tipo eram os funcionários mais respeitáveis da cidade, pois os gordos sabem
se arranjar nesse mundo bem melhor do que os magrinhos. Os magros são usados em
serviços especiais e precisam se deslocar daqui para lá para conseguir alguma coisa.
Já os gordos sempre têm cargos permanentes e quando se instalam num emprego, o
fazem com força e solidez, de modo que fica mais fácil o cargo ceder ao peso deles do
que saírem do lugar.
O magrinho, ao final de um ano não tem uma única alma que não esteja empenhada,
mas o gordo, ah o gordo prospera no serviço público e em pouco tempo está
assentado em uma casa confortável e em pouco tempo se torna fazendeiro com
centenas de almas, só para que seus filhos magrinhos depois esbanjem tudo em farras
e mulheres.
Pensamentos desse tipo invadiam a mente de Tchitchicov enquanto ele observava
aquela reunião e, como conseqüência, aproximou-se, claro, dos gordos, onde
encontrou muitas caras conhecidas: o procurador, com sobrancelhas de taturana e olho
esquerdo que piscava sem parar como quem diz: “Ei, meu amigo, venha cá para o
quarto onde lhe direi uma coisa”; o chefe dos correios, baixinho, espirituoso e dado a
arroubos de filosofia; o presidente da câmara, sempre muito amável. Todos
cumprimentaram o recém-chegado e lhe apresentaram o proprietário rural Manilov, o
desajeitado Sobakevitch, que logo lhe pisou o pé e em seguida pediu desculpas.
Logo estavam em volta da mesa, envoltos no jogo. Já não conversavam, pois na Rússia
os homens sérios costumam silenciar quando se ocupam de atividades sérias, como o
jogo de cartas. O máximo que se ouvia eram exclamações próprias do jogo. O diretor
dos Correios, por exemplo, sempre que pegava uma dama, dava um soco na mesa e
gritava: “Avante, velha coroca!”. O presidente da Câmara preferia um “Arranco os
bigodes deste aqui!”. Outros exclamavam, enquanto batiam as cartas na mesa: “Já que
não tem outro, vai este mesmo!”.
O nosso herói também discutia, mas de modo muito agradável, para que todos
pudessem perceber o quanto ele era agradável. Nunca dizia, por exemplo: “O senhor
saiu?”, e sim “O senhor houve por bem sair?”. Para tornar a estada ainda mais
agradável, ele lhes oferecia de tempos em tempos sua tabaqueira de prata, de onde
tiravam cigarros perfumados por duas violetas colocadas no fundo.
Mas no fundo, Tchitchicov tinha atenção redobrada sobre os dois proprietários rurais.
Logo soube tudo sobre eles, chamando de lado o diretor dos Correios e o presidente
da Câmara. Fazia perguntas sobre a propriedade rural, o número de almas de cada um
de maneira muito meticulosa, de modo em que pouco tempo já estava plenamente
inteirado da situação dos dois. Além disso, fez questão de agradá-los. Manilov ficou tão
apaixonado por ele que o intimou a fazer uma visita a sua vila. O estrangeiro não só
aceitou, como disse que esse seria um dever sacrossanto para ele.
Sobaketich soltou um lacônico “Também o estou convidando”.
No dia seguinte, Tchitchicov almoçou na casa do chefe de polícia, que sempre
comia à farta às custas dos mercadores da cidade.
No outro dia, passou a noite na casa do presidente da Câmara. Mais tarde, foi a
uma recepção na casa do vice-governador e um pequeno almoço – que aliás valia por
um grande – na casa do procurador. Depois da missa ainda teve de ir na casa do
prefeito, para um pequeno lanche que servia por outro almoço. Em suma, ele não podia
ficar no alojamento, tantas eram suas obrigações sociais.
O recém chegado logo se mostrou uma visita agradável, capaz de conversar
sobre qualquer coisa de maneira muito agradável. Se falavam de cavalo, ele se
mostrava um expert em cavalos. Se falavam de cachorros, ele mostrava todos os seus
conhecimentos sobre o assunto. Nem mesmo quando o assunto era bilhar ele errava o
alvo. Mas o assunto sobre o qual ele melhor se expressava era a moral e a ética.
Falava sobre o assunto com lágrimas nos olhos, lamentando que seus contemporâneos
já não mostrassem noções elementares de ética. “Só a ética e a moral salvará a
Rússia!”, dizia. Se o assunto era a Alfândega, Tchitchicov falava como se fosse ele
mesmo um funcionário da Alfândega. .
E a cada frase ele sabia imprimir uma impressão especial, falando num tom apropriado
e muito agradável, tanto que todos tinham boa opinião sobre ele. O chefe dos correios
dizia que era um homem correto, o governador que era um homem honesto, o chefe de
polícia que era um homem respeitoso e amável, a mulher do chefe do correio que era
um homem muito gentil. Em suma, todos concordavam que ele era uma companhia
muito agradável.
Até mesmo Sobakevitch, que nunca falava bem de ninguém, sob qualquer hipótese, até
ele quando deitou naquela noite, disse para a esposa:
- Sabe, querida, conhecia hoje uma pessoa realmente agradável.
Ela deve ter ficado muito satisfeita com isso, pois lhe deu um tranco com o pé e voltou
a roncar.
Capítulo 2
Depois de uma semana na cidade, freqüentando saraus e pequenos almoços que
serviam por grandes almoços, Tchitchicov resolveu ir visitar os proprietários rurais.
O cocheiro Selifan recebeu ordens de atrelar os cavalos e preparar a carruagem e
Petruchka recebeu ordem de ficar e cuidar do quarto.
O leitor certamente não quer saber nada sobre essas duas figuras e, de fato, elas não
merecem nenhuma linha para descrevê-los e na verdade, eles terão pouca importância
na trama, mas como os cavalos estão sendo atrelados e não há nada para ser
contado, vamos nos ocupar dos dois.
Petruchka usava um sobretudo herdado do amo e gostava de ler. Na verdade, ele
pouco se importava com o que estava lendo. Poderia ser uma obra-prima ou um
romance barato. Se lhe colocassem diante do nariz um livro de química ele o leria. Na
verdade, ele se ocupava muito pouco do conteúdo. O que lhe encantava era o fato de,
no meio daquele monte de caracteres saírem palavras com algum significado –
significado aliás que ele na maioria das vezes não pescava. Além de gostar de ler, ele
tinha mais duas singularidades. Uma delas era dormir sempre vestido. A outra era
nunca tomar banho. A fedentina era tanto que ao entrar num lugar ele logo o deixava
infestado e o cheiro característico muitas vezes demorava dias para passar, mesmo
depois de uma visita de apenas alguns minutos.
Tchitchicov, que tinha costumes refinados, encontrando-o pela manhã, virava o
nariz e resmungava: “Você, hein, companheiro... já pensou em fazer uma visita aos
banhos públicos?”. Petruchka não retrucava, apenas ia fazer outra coisa, como escovar
o fraque do patrão, enquanto pensava: “Agora essa é boa! Esse aí não se cansa de
repetir a mesma coisa!”, mas estamos apenas deduzindo, pois é impossível descobrir o
que se passa na cabeça de um servo doméstico.
O cocheiro Selifan era pessoa totalmente diversa, pois... mas fico encabulado
de continuar a perder o tempo do leitor com alguém de categoria inferior. Já trago até
comigo o receio de que este romance não seja bem-recebido por seu herói ser apenas
um conselheiro civil e, além disso, a carroça já está arrumada para a viagem e
Tchitchicov já embarca nela, dando as últimas ordens para os dois servos.
A sege saiu pelos portões da hospedaria e foi recepcionada na rua por um grupo
de garotos com camisas sujas, que estendiam as mãos e pediam:
- Uma esmola para um pobre órfão, senhor...
O cocheiro reparou que um deles fazia menção de subir na carruagem e fez com
que ele desistisse da idéia com uma chicotada.
A carruagem foi sacolejando no calçamento, fazendo com que nosso
personagem batesse a cabeça no teto várias vezes e foi com alívio que ele viu a
estrada pavimentada ser substituída pelo caminho de terra.
De tempos em tempos aparecia uma casa, com seus camponeses com suas
peles de carneiros e camponesas de caras redondas e peitos apertados que olhavam
pela janela.
Mas a carruagem seguia e não encontravam a aldeia de Manilov, de modo que
foram obrigados a parar para perguntar:
- É aqui perto da aldeia de Zamanilovka?
Os camponeses balançaram a cabeça e levantaram os ombros, o que queria
dizer que não sabiam, mas um deles, mais esperto, disse:
- Não seria Manilovka ou invés de Zamanilovka?
- Sim, isso mesmo, Manilovka.
- Ande mais um pouco e vire à direita no primeiro ramal. Esse é o caminho para
Manilvka. Lá vão encontrar uma casa de pedra no alto de uma colina. É lá que mora o
senhor Manilov. Mas quanto a Zamanilovka, confesso que não conheço nenhuma e nem
nunca ouvi falar de uma. Se estiverem procurando Zamanilovka, não é por aqui...
- Não, é Manilovka mesmo. – respondeu o cocheiro.
- Ah, sim, por que Zamanilovka não existe nenhuma, não por aqui. Vocês já
ouviram falar de alguma Zamanilovka?
E os mujiques levantaram os ombros e balançaram a cabeça, querendo dizer
que não sabiam. O cocheiro não esperou para ouvir a opinião deles e já esporeava os
cavalos.
Ao contrário do que havia dito Manilov, a sua aldeia não era logo ao lado da
cidade, tanto que tiveram que andar mais alguns quilômetros antes de dar com tal casa
de pedra.
O local não era muito convidativo, pois a casa estava instalada no alto de um morro e
exposta a todo tipo de vento que quisesse soprar.
A paisagem era animada por duas camponesas, que, com a barra de suas saias
levantadas à altura da cintura, ocupavam-se de vadear o lago com uma rede no qual se
podia ver duas lagostas e um peixe. Aparentemente elas estavam brigadas e soltavam
insultos mútuos.
Até o tempo era melancólico, com um céu que não era nem azul nem claro, mas cinza e
não faltava nem mesmo o galo, anunciador dos dias instáveis.
A carruagem entrou no pátio e Tchitchicov viu o próprio dono parado na escada, de
sobretudo verde, a mão na testa, afiando os olhos para tentar descobrir quem chegava.
- Pavel Ivanovitch! Finalmente lembrou-se de nós! – festejou ele.
Os dois trocaram abraços e beijos fortes e Manilov levou seu hóspede para a sala.
Já que estão os dois a andar até a sala, podemos falar um pouco sobre a propriedade
e seu dono.
Manilov era aquele tipo de caráter que chamamos de “assim assim”. Nem na cidade de
Bogdan, nem na vila de Selifan, como diz o ditado. Ou seja, não tinha grandes
características que o definiriam. Era loiro de olhos azuis. No primeiro momento de
conversa com ele se pensava: “Ora vejam, que homem agradável...”, mas em menos
de cinco minutos se pensava “Caramba, isso não acaba nunca?” e o interlocutor
arranjava um jeito de se afastar dele o mais rápido possível.
Era esforço vão esperar dele uma palavra mais viva ou uma expressão mais irritada.
Todos os homens têm sua especialidade: um adora cachorros e só fala neles;
outro é amante de música, outro não consegue controlar a vontade marcar as cartas
com as quais joga. Ou seja, cada um tem sua singularidade, mas Manilov, nada. Em
casa ele falava pouco e aparentemente ficava longo tempo meditando, mas só Deus
poderia saber sobre o que ele meditava, pois ele jamais usou o resultado dessas
meditações em suas conversas. Não se poderia dizer que ele era vazio de assunto por
se preocupar muito com sua propriedade porque, na verdade, ele mal saia para ver o
que os mujiques estavam fazendo.
Quando um servo vinha com ele e dizia:
- Senhor, preciso sair para trabalhar, para pagar o imposto...
- Vá, pode ir. – respondia ele, e nem por um momento imaginava que na verdade
o malandro estava saindo, mas era para se embriagar na primeira taberna.
Às vezes, olhando o terreno do alto da estrada, ele comentava como seria bom
fazer uma passagem subterrânea ligando a casa a sabe-se lá onde, ou construir sobre
o ribeirão uma ponte de pedra bem larga na qual os vendedores poderiam se instalar
para vender aos mujiques tudo que eles precisavam e seus olhos adquiriam aquele
olhar doce, mas tão doce que enjoava, que lhe era característico.
No seu gabinete ele trazia um livro aberto sempre na página quatorze, que ele lia
há dois anos.
Em sua casa sempre faltava alguma coisa: se tinha pratos de porcelana,
faltavam talheres, se tinha talheres, faltavam pratos. Na sala de estar havia uma
mobília excelente, mas duas poltronas estavam sem forro e haviam sido cobertas por
simples esteiras.
Sua mulher... basta dizer que estavam plenamente satisfeitos um com o outro.
Mesmo já tendo se passado oito anos das bodas, eles sempre traziam um mimo um
para o outro, fosse um pedaço de maçã ou uma balinha uma avelã, e diziam:
- Abre a boca, benzinho, que vou te dar um bocadinho.
Evidente que nesses casos a boca sempre se abria e recebia o regalo.
No natal, um sempre preparava surpresinhas singelas um para o outro.
Acontecia até que, estando sentados no sofá, o marido largava o cachimbo e a
senhora largava o bordado para trocarem um beijo tão prolongado que se poderia
fumar uma cigarrilha inteira e ainda sobrava tempo.
Eram, em suma, um casal feliz.
O leitor poderia argumentar no entanto, que um casamento não ser resume a
beijinhos ou boquinhas e perguntar por que a cozinha funcionava tão mal, ou porque a
despensa estava sempre vazia, ou porque a despenseira é uma ladra, ou porque os
bêbados são bêbados ou porque toda a criadagem dorme desavergonhadamente até
tarde e passa o resto do tempo na vadiagem... mas a verdade é que o casal se
preocupava muito pouco com isso.
É bem verdade que a senhora Manilova é muito bem educada. Como se sabe, a
educação que se recebe nos pensionatos prepara a mulher para o casamento
ensinando-lhe francês, item indispensável para a harmonia do lar, o piano e, finalmente
a parte de economia doméstica propriamente dita: a arte de tricotar surpresas
agradáveis.
Mas vamos voltar a nosso heróis, pois os dois já estavam para entrar na sala e não o
faziam porque um queria dar passagem ao outro:
- Por gentileza, não se preocupe comigo, eu passarei depois. – dizia Tchitchicov.
- Não, de maneira nenhuma. – respondia Manilov, apontando a porta com a mão direita.
- Não se incomode. O senhor é dono da casa. Deve passar primeiro.
- Oh, não, eu nunca permitiria que um visitante tão respeitável, tão ilustrado passasse
por último.
- Mas por que ilustrado? Sou um pobre funcionário público. Passe antes!
- De maneira nenhuma. Na verdade seria uma grande desonra para mim se o senhor
não passasse primeiro.
- Não, por favor, passe antes!
E ficaram nisso por um bom tempo, até que decidiram passar juntos, de lado.
- Deixe-me apresentar-lhe minha esposa. – disse Manilov. Benzinho, este é Pavel
Ivanovitch.
Tchitchicov espantou-se ao descobrir que a mulher até que era jeitosa e foi com
verdadeiro prazer que se inclinou sobre ela para beijar-lhe a mão.
- Meu marido não passa um dia sem falar de você. – disse a senhora Manilova.
- É verdade. E ela tem me perguntado quando íamos ter o prazer de sua visita. E eu
dizia: paciência, benzinho, ele virá. É como se diz... um dia de maio... uma festa no
coração.
Tchitchicov, vendo que as coisas já estavam no ponto da festa do coração, fingiu estar
encabulado:
- O que é isso? Não sou merecedor... não sou portador de títulos ou de nada...
- O senhor é portador de tudo. – respondeu Manilov.
A mulher era só sorrisos:
- E então, qual a sua opinião sobre nossa cidade?
- É uma ótima cidade. Muito agradável. – respondeu Tchitchicov.
- O que achou de nosso governador? – indagou Manilova.
- Um homem muito competente e muito fino. Até faz bordados!
- Realmente, um homem digníssimo e muito gentil. – completou Manilov.
- E o vice-governador? Não acha que é um homem encantador?
- Sem dúvida, nunca vi homem tão encantador. Uma obra-prima.
- E o chefe de polícia? Qual a sua opinião sobre o chefe de polícia?
- Muito agradável e, além disso, inteligente e muito lido. Uma enciclopédia ambulante!
- O senhor conheceu a sua esposa?
- Oh, sim, uma senhora muito agradável, muito digna.
E da mesma forma eles passaram em revista todos os funcionários da cidade, que se
mostraram pessoas muito dignas e agradáveis.
- E o senhor, passa a maior parte do seu tempo no campo? – indagou por fim
Tchitchicov.
- Sim, mas às vezes vamos à cidade para encontrar com pessoas refinadas. O senhor
bem sabe, morando no campo, acabamos por ficar embrutecidos.
- É verdade, é verdade. – concordou Tchitchicov.
- Seria bom se tivéssemos uma boa vizinhança, alguém com quem pudéssemos
debater algo que permitisse uma elevação moral, algo... – mas nesse ponto ele parou,
percebendo que estava já atrapalhado e mudou o foco: evidentemente o campo nos
oferece muita coisa agradável... mas não nos resta ninguém com quem conversar... só
nos resta ler o jornal Filho da Pátria.
Tchitchicov concordou com isso e disse que nada podia ser melhor que o isolamento,
no qual se poderia ler um bom livro.
- Sim, sim... mas isso de nada vale sem um amigo...
- Sim, concordo. Totalmente justo. Como diz o ditado: De nada valem os tesouros se
não temos amigos...
- Devo confessar-lhe, amigo, que é um verdadeiro deleito espiritual poder ter uma
conversa amena com alguém como você... – disse Manilov com uma expressão doce
como um xarope que o médico dá para a criança que não quer tomar remédio.
- Como assim? Sou apenas um homem insignificante.
- Oh, Pável Ivanovitch! Eu daria metade dos meus bens só para ter todas as suas
qualidades morais e intelectuais...
- Pelo contrário, eu é que...
Nenhum escritor pode prever até onde chegaria aquela mútua rasgação de seda, não
fosse a chegada do criado anunciando o almoço.
- Por favor, nos desculpe se aqui não oferecemos um jantar tão refinado quanto o
servido nas capitais, mas espero que o senhor goste de nossa sopa de repolho.
Os dois ficaram ainda algum tempo discutindo sobre quem entraria primeiro na sala de
jantar, até que entraram os dois, de banda. Lá encontraram dois garotos, filhos de
Manilov. Tinham aquela idade em que já se colocam crianças na mesa de jantar, mas
em cadeiras altas. Ao lado deles estava o preceptor, que cumprimentou o recémchegado com uma vênia e um sorriso.
- Que crianças engraçadinhas! – exclamou Tchitchicov. Quantos anos?
- O mais velho já tem sete anos. O menor fez seis.
- Que formosura. – elogiou Tchitchicov.
- Femistóklius! – chamou Manilov, dirigindo-se ao mais velho.
Tchitchicov levou um susto com esse nome grego, mas tratou de recompor a
expressão.
- Femistóklius, diga-me: qual é a maior cidade da França?
Nesse ponto o preceptor concentrou toda a atenção sobre o garoto, como se fosse
pular no seu pescoço caso ele respondesse errado, mas tranqüilizou-se quando o
garoto soltou um:
- Paris.
Todos aplaudiram.
- E qual é a nossa capital? – indagou Manilov.
- Petesburgo. – respondeu o garoto.
- E a outra?
- Moscou.
- Que menino inteligente! Puxou ao pai! – festejou Tchitchicov. Já tão jovem e com
conhecimentos tão amplos. Sou obrigado a dizer-lhe que esse garoto promete grandes
feitos! Sim senhor!
- Oh, é um gênio, meu amigo. Um gênio. Vou fazer uma pergunta diplomática...
E nisso todos concentraram sua atenção, esperando a tal pergunta diplomática e sua
resposta genial.
- Femistóklius, você quer ser embaixador?
- Quero. - respondeu o garoto, tirando algo do nariz.
Todos aplaudiram essa resposta tão sábia, enquanto o criado assuava o nariz do
embaixador.
A refeição correu sob uma conversa amena sobre os prazeres da vida no campo. O
preceptor seguia atentamente a conversa e só interferiu quando Feministóklius mordeu
a orelha de Alkid, que se preparava para estourar numa choradeira sem fim, mas,
percebendo que isso lhe custaria a perda de pratos do almoço, contentou-se em roer
um osso de carneiro.
A esposa constantemente repreendia Tchitchicov por ele estar comendo pouco, ao que
ele retrucava que uma boa conversa é melhor que qualquer comida.
Satisfeitos, os dois já iam para a sala de estar quando Tchitchicov disse que pretendia
falar com Manilov um negócio muito importante.
- Nesse caso, vamos para meu escritório. – respondeu o dono da casa, conduzindo-o
por uma porta pela qual os dois tiveram que passar de banda.
- Que salinha agradável! – disse Tchitchicov.
- Fico muito agradecido com o elogio, e, por favor, tenha a bondade de sentar nesta
poltrona.
- Se o senhor não se incomodar, eu preferia sentar na cadeira.
- Com a sua licença, eu não lhe dou licença para sentar-se na cadeira. Por favor, esta
poltrona está reservada para o senhor.
Vendo que não tinha saída, nosso herói sentou-se.
- Por favor, fume um cachimbo. – disse o dono da casa, estendendo-lhe um.
- Oh não. Eu não fumo. Não adquiri esse hábito, que, dizem, faz mal à saúde.
- Puro preconceito. Posso garantir que quem fuma cachimbo tem mais saúde do que
quem não fuma. No nosso regimento havia um tenente que não tirava o cachimbo nem
para aquilo, com o perdão da palavra. Agora ele já está com quarenta anos e é mais
saudável que um cossaco...
- Sim, tais coisas acontecem e são sempre muito inexplicáveis. Mas permita que eu
mude de assunto. Diga, há quanto tempo o senhor entregou o seu relatório de
recenseamento?
- Há tanto tempo que, confesso, já nem me recordo.
- E houve mortes entre os seus camponeses... digo, desde o recenseamento?
- Não posso ter certeza. Precisaria me informar com meu intendente. – e gritou pelo
intendente.
O homem se apresentou. Estava claro que era um intendente como todos os outros:
começara com moleque doméstico alfabetizado, casara com uma Maria despenseira e
a seguir chegara ao atual cargo, através do qual ficara amigo dos mais ricos da aldeia,
ao mesmo tempo em que carregava nas taxas dos mais pobres e acordava às nove da
manhã.
- Quantos camponeses já morreram desde o recenseamento? – perguntou Manilov.
- Como assim? Muito morreram...
- Sim, foi isso mesmo que eu pensei. Muitos morreram. É o que eu ia dizer.
- Mas quantos mesmo, em números? – perguntou Tchitchicov.
- Como assim, em números? Ninguém contou os que morreram...
- Sim, ninguém contou. É isso mesmo... – concordou Manilov.
- Então, por favor, o senhor faça uma lista nominal dos que morreram.
- Isso mesmo. Faça uma lista nominal. – concordou manilov.
Quando o intendente saiu, o dono da casa virou-se para o visitante:
- Mas afinal, para o que o senhor precisa dessas informações?
Essa pergunta, aparentemente, abalou seu interlocutor, que exibiu uma expressão
muito tensa, e os ouvidos de Manilov escutaram uma explicação tão extraordinária que
nenhum ouvido já havia escutado:
- Eu gostaria de comprar os camponeses. – gaguejou Tchitchicov.
Manilov ficou sem entender:
- Permita que eu lhe pergunte: o senhor quer comprar as terras onde moravam esses
camponeses?
- Não, eu não quero as terras...
- Então o senhor quer os camponeses vivos...
- Não, na verdade eu gostaria de comprar aqueles que já morreram.
Houve um longo silêncio. O cachimbo de Manilov caiu, assim como seu queixo.
Depois de um longo tempo, Manilov olhou fixamente para o rosto do amigo para saber
se não havia nenhum sorriso que revelasse que, afinal de contas, tratava-se de uma
brincadeira. Mas os olhos de Tchitchicov não revelavam nem graça, nem loucura.
- Então o senhor quer...
- Eu gostaria de saber se o senhor poderia me vender os seus camponeses que
morreram. Claro que são almas vivas na forma legal...
Manilov não sabia o que responder ou o que fazer e só olhava para com cara de bobo
para seu interlocutor.
- Parece-me que o senhor encontra-se em dificuldade... – disse Tchitchicov
- Eu? Eu não... é que... não é todo dia que aparece alguém querendo comprar almas
mortas... penso que talvez eu tenha entendido mal e o senhor apenas esteja se
expressando assim por uma questão de elegância e estilo...
- Não, não é nada disso. Não há nenhum mal entendido. Quero comprar suas almas
mortas...
O dono da casa não conseguia responder ou mesmo dizer nada, apenas soltava
fumaça pelo nariz.
- Então podemos proceder o contrato de compra e venda.
- Um contrato para almas mortas?
- Não, isso não. Vamos escrever no contrato que elas estão vivas, como aliás,
oficialmente estão. Enquanto não houver um novo censo, perante a lei, esses
camponeses ainda estão vivos. E eu tenho hábito de jamais me afastar da lei...
- Mas esse negócio é legal? – indagou Manilov.
- Ele está absolutamente dentro das regras civis e devo dizer que governo até sairá
ganhando, pois serão recolhidos todos os impostos... então, o que o senhor acha?
- Bem, se é uma negociação legal...
- Ótimo! Agora só resta entrarmos num acordo quanto ao preço...
- Preço? O senhor acha que eu daria um preço a almas que, digamos assim, não estão
vivas... e ainda mais para um amigo? Não, de maneira nenhuma. Na verdade, deixe até
por minha conta as despesas com o contrato.
Tchitchicov exibiu um sorriso de satisfação e, abandonando o ar contido que sempre
demonstrava, levantou-se e foi apertar a mão do fazendeiro a ponto de deixá-lo sem
jeito:
- Senhor, não sabe como estou grato... que grande serviço o senhor me presta. E que
grande serviço presta à nação!
E Tchitchicov passou tanto tempo apertando a mão de seu benfeitor que este já não
sabia o que fazer. Finalmente, lembrou-se que era necessário lavrar o contrato e
combinou com o fazendeiro de encontrá-lo na cidade. Depois pegou seu chapéu e
começou a se despedir.
- Como assim, já vai embora?
- Negócios urgentes pedem a minha presença.
Nisso entrava a senhora Manilova.
- Benzinho, Pavel Ivanovitch vai nos deixar...
- Mas já? Por certo nós o aborrecemos...
- Minha senhora, nesta casa vivi alguns dos melhores momentos de minha vida. Estão
todos, todos, dentro do meu coração. – disse Tchitchicov, apontando o lado esquerdo
do peito.
Manilov gostou disso:
- Oh, senhor... que maravilha seria se pudéssemos viver todos sob o mesmo teto...
filosofando sobre coisas...
- Oh, seria o paraíso! O paraíso na terra... agora preciso ir... e, por favor, não se
esqueça daquele favor...
- Não se preocupe. Em dois dias estarei na cidade...
Tchitchicov foi saindo e deu com os meninos.
- Adeus meus petizes! Adeus! Sinto por não ter trazido nenhum presente. É que nem
sabia da existência de vocês. Mas da próxima vez que vier, trarei um sabre para você.
Quer um sabre?
- Quero. – respondeu Femistóklius.
- E para você um tambor. Quer um tambor?
- Tambor... – repetiu Alkid, abaixando a cabeça e voltando a brincar com um soldadinho
de chumbo.
- Que crianças maravilhosas! Que grandes prodígios! – e beijou a cabeça das crianças.
- Ivanovitch, reconsidere. Veja aquelas nuvens. Vai chover forte.
- Não, são apenas algumas nuvenzinhas. Meu coração dói, mas preciso ir. Fiquei de
passar hoje na casa de Sobakevitch...
- E o senhor conhece o caminho para a casa de Sobakevitch?
- Confesso que não.
- Deixe que vou explicar ao seu cocheiro.
Manilov, com a mesma solicitude que lhe era característica, explicou ao caminho ao
cocheiro e até o chamou de senhor uma ou duas vezes. Informou-o que era preciso
deixar passar duas curvas e entrar na terceira.
Assim, Tchitchicov partiu, despedindo-se do dono da casa, que agitava um lenço para
ele.
Manilov ficou ainda algum tempo fumando seu cachimbo nos degraus e depois entrou e
sentou-se numa poltrona, onde seus pensamentos voaram. Imaginou-se construindo a
ponte sobre o rio, ou a passagem subterrânea. Imaginou construindo uma imensa casa
onde moraria com Tchitchicov. Imaginou os dois chegando numa reunião social e todos
ficariam tão encantados com aquela sincera amizade que o Czar lhes concedia o
generalato. Sim, tais pensamentos eram muito agradáveis...
Capítulo 3
Tchitchicov ia muito satisfeito em sua carruagem. Tudo ia como tinha planejado. Se com
os outros proprietários rurais fosse tão fácil quanto havia sido com Manilov...
Ia tão contente que não prestava atenção aos gritos do cocheiro. Este era
particularmente implicante com um cavalo pedrês atrelado à direita dos outros dois.
Este cavalo era muito esperto e só fingia que puxava, deixando na verdade todo o
serviço para um cavalo baio para um alazão chamado Presidente.
- Eu já te ensino, seu vagabundo germânico! – dizia o cocheiro e estalava uma
chicotada no lombo do animal. O baio é que é um cavalo de verdade. Também o
Presidente é um bom cavalo, mas você... você é um tremendo gaiato, seu Bonaparte
nojento! Já te ensino! Não finja que não está ouvindo. Só vou lhe ensinar coisas boas! O
patrão que visitamos, esse tem gente boa a seu serviço! O tipo de gente que se pode
fazer amizade, e eu logo fico amigo de gente direita e é bom ser amigo de gente boa,
com quem se possa aprender alguma coisa. Aqui o nosso patrão, por exemplo, merece
o respeito de todos, pois já serviu no serviço público e é um conselheiro, entende?
Tchitchicov teria descoberto muitas coisas a respeito de si mesmo se estivesse
prestando atenção, mas ele estava absorto em seus próprios pensamentos, tanto que
não percebeu a chuva se aproximando. Só foi tirado de suas reflexões com o forte
ribombar de um trovão. Nisso a chuva começou a tamborilar no teto, forçando-a a
fechar a janela.
Selifan também estava tão entretido em falar com os animais que não havia contado
quantas curvas haviam passado. Sabia que eram muitas, então virou na primeira à
direita. A chuva ia forte e a estrada transformara-se em um lamaçal, do modo que os
cavalos tinham grande dificuldade para arrastar a carruagem. Tchitchicov estava
preocupado, pois, segundo seus cálculos, já deviam ter chegado á aldeia, assim, abriu
a janela e gritou para o cocheiro:
- Selifan, consegue ver a aldeia?
- Não consigo ver nada, patrão.
Dizendo isso, o cocheiro pôs-se a chicotear os cavalos, chamando-os de todos os
nomes usados para motivar cavalos.
Parece que a estratégia não deu certo, pois logo a sege estava balançando como
louca, sinal de que haviam saído da estrada.
- Seu pilantra! Olha para onde está indo!
- Mas patrão, a escuridão é tanta que mal dá para ver o chicote... – respondeu Selifan,
nitidamente embriagado.
Em seguida, ele forçou a carruagem de tal forma que ela ameaçou tombar.
- Seu idiota, vai virar a sege!
- Mas patrão, não seja injusto comigo... como pode dizer que vou tombar? Logo eu que
sou tão cuidadoso... que eu nunca tombei uma carruagem!
Como que para coroar esse discurso, a sege virou, derrubando seu ocupante no meio
da lama.
- Mas olha só... quem diria... tombou mesmo! – espantou-se Selifan.
Tchitchicov levantou-se, passando a mão suja de lama na roupa, numa tentativa vã de
se limpar.
- Seu bandido! Está bêbado como um sapateiro!
- Eu, patrão? Bêbado? Não seja injusto. Eu não tomei um só gole...
- Vou te mostrar! Vou tirar o seu couro e lhe dar uma surra que nunca se esquecerá!
- Como quiser, patrão... se quiser me bater, não tenho nada contra. É necessário uma
surra de vez em quando para colocar o criado nos eixos, não é mesmo? Por que não
me surrar, se mereço?
Diante de tais argumentos, Tchitchicov não teve o que responder e já ia perdendo as
esperanças quando ouviu latidos de cachorros.
- Toca para lá! – gritou.
Selifan tratou de levantar a carruagem e fustigou os cavalos, indo meio a cega e meio
orientado pelo barulho dos cães.
Por fim, deram com uma casa da qual Tchitchicov só via o telhado.
Selifan correu a bater na porta, mas sua presença já tinha sido anunciada pelos
cachorros.
Surgiu a voz de uma camponesa:
- Quem bate?
- Viajantes perdidos, titia. Por favor, nos deixe passar a noite aqui.
- Isso são horas de chegar? Aqui não é uma estalagem. Quem mora nesta casa é a
dona destas terras...
- O que podemos fazer, titia? Nós nos perdemos no caminho e fomos pegos pela
tempestade... por favor, não nos deixe ao relento numa noite como essa...- disse
Tchitchicov, aproximando-se.
- Quem é você?
- Sou um fidalgo, titia...
A palavra fidalgo pareceu exercer um efeito mágico. A velha pensou um pouquinho e
voltou-se para dentro:
- Vou falar com minha patroa...
Pouco tempo depois ela voltava com uma vela na mão e uma mulher menos velha, mas
muito parecida com ela, que levou o conselheiro até seu quarto. O quarto era forrado
de papel de parede listrado, já bem encardido e descascado nos cantos. Na parede
havia um quadro representando pássaros e um espelho entre as janelas. Não foi
possível notar muito mais coisas, pois os olhos de Tchitchicov já estavam cansados e
querendo se fechar. Nisso entrou a dona da casa, uma velha de touca na cabeça. Era
uma daquelas velhas matronas, que vivem apenas para lamentar as más colheitas e a
falta de sorte, mas que acumulam riquezas em saquinhos de pano.
- Desculpe, minha senhora, pelo incômodo. – disse Tchitchicov, curvando-se. É que nós
nos perdemos...
- Não é nada. É uma tempestade feia lá fora. Foi sorte de vocês encontrarem a minha
casa. Creio que esteja com fome, mas é impossível preparar o que quer que seja a
esta hora...
- Não se preocupe comigo, minha senhora. Não preciso de nada. Só gostaria de saber
se estou longe da fazenda de Sobakevitch...
- Nunca ouvi falar desse tal Sobakevitch...
- E Manilov, a senhora conhece?
- Também nunca ouvi falar desse proprietário rural.
- Há outros proprietários por aqui?
- Sim, muitos.
- Ricos? Com muitas almas?
- Nada, meu senhor. Só gente pobre. Um tem vinte almas, outro trinta, mas desses que
possuem centenas de almas... é uma pena que eu não possa servir alguma refeição. O
senhor deve estar faminto...
- Obrigado, mas não preciso de nada, minha senhora.
- Mas o que é isso? Sua roupa está toda suja de lama!
- Minha senhora, tenho sorte de ainda estar vivo. Minha carruagem tombou...
- Oh, que coisa horrível? O senhor quer que eu lhe faça uma massagem nas costas?
- Não, senhora. Basta que a senhora peça à sua criada que limpe minha roupa.
- Pois bem. Fetínia, limpe a roupa deste senhor e coloque para secar junto à lareira.
Quanto ao senhor, não quer mais alguma coisa? Não quer que eu lhe coce os
calcanhares? Meu marido não dormia se eu não coçasse os calcanhares dele...
- Não, minha senhora. Pode ter certeza de que não preciso de nada. Agradeço muito a
atenção.
- Que seja.
Assim a patroa retirou-se e Tchitchicov retirou toda a roupa, entregando pela vão da
porta para a empregada. Então foi deitar sobre o leito e descobriu que a criada lhe
preparara uma cama com tantos travesseiros que chegava quase até o teto. Subindo
numa cadeira ele galgou a cama e deitou, cedendo até quase o chão e fazendo voar
plumas por todos os lados.
Nosso herói acordou tarde no dia seguinte. O sol já estava alto e entrava pela janela,
acordando as moscas, que vinham pousar em seu rosto.
Um rosto espiava-o nu pelo canto aberto da porta, mas logo se escondeu. Tchitchicov
pôs-se a pensar quem era e logo chegou à conclusão de que se tratava da dona da
casa.
Sua roupa, seca e limpa, estava estendida ao seu lado. Olhando-se no espelhou deu
um enorme espirro, de modo que um peru que se aproximara da janela gorgolejou-lhe
um bom-dia, ao que Tchitchicov o chamou de bobo. A janela dava para um galinheiro e
era possível observar toda uma miríade de animais domésticos em grande quantidade.
Atrás, via-se as casas dos camponeses, todas em bom estado. As porteiras não
estavam tortas e havia até carroças de reserva e alguns casos até duas.
“Eh, essa velha chora miséria, mas tem uma boa aldeia...”, pensou Tchitchicov e
resolveu estreitar as relações com a patroa.
Esticando a cabeça pelo vão da porta, viu-a sentada na mesinha de chá e
aproximou-se dela com ar alegre.
- Bom dia, paizinho! Como foi sua noite? – disse a velha.
- Dormi bem. E a senhora, mãezinha?
- Mal, muito mal, paizinho.
- Mas mal por quê?
- Insônia, paizinho. A cintura dói, esse ossinho da perna dói, o braço dói... não
para de doer...
- Não se preocupe, mãezinha. Isso passa. É só não dar atenção.
- Deus te ouça. Eu bem que me untei com banha de porco. Deus queira que faça
efeito. Mas o que o senhor vai querer para o café? Aqui nesse frasco tem aguardente
de frutas...
- É, aguardente de frutas pode ser, mãezinha.
O leitor irá perceber que Tchitchicov já tratava a velha com menos
cerimônia do que usara com Manilov. É que na Rússia nós mudamos de acordo com o
cargo ou a importância da pessoa com a qual falamos. De vez em quando encontramos
alguém e dizemos: este não pode ser Ivan Petrovitch. Ele é muito mais baixo e não tem
esse ar arrogante quando está com seus superiores. Mas então chegamos perto e
constatamos: “É sim, Ivan Petrovitch. Que coisa!”.
- A sua aldeia é até grande, mãezinha. Quantas almas tem?
- Tenho pouco menos de oitenta almas, mas os tempos estão tão ruins e as colheitas
são tão... que Deus me livre e guarde...
- Apesar disso, a vila parece em boas condições. Permita-me perguntar-lhe seu nome.
Estava distraído ontem à noite quando cheguei.
- Sou Nastácia Petrovna Korobotchka, secretária ministerial. E o senhor? Parece-me
que é um assessor.
- Não, mãezinha. Não sou assessor, mas viajo, digamos assim, a negócios
particulares...
- Ah, o senhor é um comprador! Pena que já vendi todo o meu mel e muito barato.
Poderia vender ao senhor...
- Bem, é que não estou interessado em mel.
- Não quer mel? Talvez cânhamo? Mas confesso que tenho pouco cânhamo...
- Não, minha senhora. Não quero mel nem cânhamo... diga-me: tem morrido muitos de
seus camponeses?
- Nem me fale! Nem me fale. Só este ano foram dezoito, todos homens, bons
trabalhadores. Uma desgraça! Verdade que nasceram outros, mas de que adianta?
Tudo crianças... e chega o fiscal e manda pagar os impostos... pouco importa se
estejam vivos ou mortos... paga-se o mesmo por um vivo ou por um morto.
- Não quer cedê-los a mim, mãezinha?
- Ceder quem, paizinho?
- Esses aí, que estão mortos?
- Os mortos, paizinho?
- Esses mesmo, mãezinha.
- Mas ceder como?
- A senhora pode me vender eles.
- Confesso que não estou entendendo. O senhor vai desenterrá-los? Não sei, talvez eu
esteja perdendo dinheiro deixando o senhor levar assim os meus mortos...
Tchitchicov inquietou-se. A velha não estava pescando nada. Ele teve que explicar que
compraria as almas apenas no papel e que os mortos ficaram em suas sepulturas,
sendo vendidos como se estivessem vivos.
- Mas para o que o senhor precisa desses mortos?
- Isso é assunto meu.
- Mas essas almas estão mortas, paizinho!
- Eu sei que estão mortas. Nunca disse que estavam vivas. Por estarem mortas é que
lhe dão prejuízo. A senhora paga imposto por elas, mesmo estando mortas. Eu compro
e a senhora fica sem preocupações e sem pagamentos. A senhora só ganha,
entendeu?
- Eu não sei. Talvez eu tenha prejuízo. Nunca vendi almas mortas...
- Mas... pense bem, seria um milagre se a senhora já tivesse vendido alguma. A
senhora por acaso acha que existe fila para comprar camponeses defuntos?
- Não, Deus me livre de achar tal coisa. O que me confunde é que eles estão mortos.
“Ai meu Deus”, pensou Tchitchicov. “Peguei uma boa...” .
- Escute, mãezinha, a senhora mesmo disse que está se arruinando por causa da taxa
paga pelos que já estão mortos...
- Nem me fale. Há três semanas paguei cento e cinqüenta rublos... e isso porque
engraxei a mão do fiscal!
- Pois veja só! A senhora está sendo arruinada, pagando por gente que não vale mais
nada. Eu venho aqui e me ofereço para livrá-la dessa dificuldade... eu vou comprar e eu
vou pagar os impostos, entendeu? E então, o que me diz?
A velha ficou pensativa. Sabia que o negócio era vantajoso, ou pelo menos assim
parecia, mas por outro lado, havia a chance de estar sendo ludibriada por um homem
que nunca vira...
- Não sei não. Já vendi almas vivas. Há três anos vendi duas raparigas ao Protopope e
ele, parece ficou muito satisfeito, pois elas bordam guardanapos com as próprias
mãos, moças prendadas... mas camponeses mortos... talvez... não sei. Tenho medo de
levar prejuízo. Talvez o senhor esteja tentando me enganar. Preciso ver quanto é que
custam no mercado as almas mortas.
Tchitchicov sentiu vontade de esganar a velha.
- Escute aqui, mãezinha... essas almas de nada valem. Um pedaço de pano pode ser
vendido para uma fábrica de papel, mas me diga: para quem a senhora irá conseguir
vender um camponês morto? Ele não é nada, só pó...
- Realmente, eles não valem nada, mas o que me incomoda é que eles estão mortos...
eu não sei os preços que se paga por um camponês morto...
“Diabo de velha cabeça-dura!”, pensou Tchitchicov e nessa hora já sentia vontade não
só de esganá-la, mas de afogá-la, queimá-la e submetê-la a todos os suplícios já
imaginados pelo homem. A situação era tão difícil que o suor já começava a brotar em
sua testa. Depois de enxugar o suor com um lenço, ele voltou à carga:
- Mãezinha. Escute. Estou lhe pagando quinze rublos por essas almas mortas. Ou a
senhora não me entendeu, ou está me fazendo de boba. Veja, eu lhe dou quinze rublos
por algo que não vale nada... por quanto a senhora vendeu o seu mel?
- Doze rublos.
- Não minta. Mentir é feio.
- Juro por deus. Doze rublos.
- Está certo. Doze rublos. Mas com o mel a senhora teve trabalho. Teve vários
cuidados com as abelhas, teve de colher o mel. Já com as almas mortas a senhora não
vai ter trabalho nenhum, pelo contrário, vai até ficar livre dos impostos...
Diante desse argumento tão cristalino, Tchitchicov jurava que a velha entregava os
pontos, mas ela voltou à carga:
- Veja bem... a minha situação de viúva é tão difícil. Não sei de nada. Talvez fosse
melhor eu esperar chegarem outros compradores, para eu poder comparar o seu preço
com o que eles se oferecem...
- Que vergonha, mãezinha! Veja o que está dizendo! Quem é que vai querer comprar
gente morta?
- Não sei, talvez sirvam para alguma coisa na economia rural...eu realmente não estou
plenamente a par do uso de defuntos numa fazenda...
Tchitchicov coçou a cabeça:
- Mãezinha... por favor, me diga para que a senhora vai usar esses defuntos... só se
for para espantar os pássaros da horta, como se fossem espantalhos...
- Deus me livre. - disse a mulher, benzendo-se com um pai nosso.
- E onde mais a senhora poderia aproveitá-los, mãezinha? E olhe, os mortos e suas
sepulturas e até seus ossos ficam aqui para a senhora aproveitá-los como quiser. A
senhora me vende eles apenas no papel. O que me diz?
A velha ficou novamente pensativa.
- Eu não sei. Talvez seja melhor vender-lhe o cânhamo mesmo.
- Mas mãezinha, já estou perdendo a paciência! O que eu vou querer com cânhamo!
Vamos diga, vende ou não vende?
- Eu não sei, é uma mercadoria que nunca vendi, não sei o preço...
Tchitchicov perdeu as estribeiras nesse ponto. Bateu a cadeira no chão e mandou a
velha para o diabo.
- Ai, não mencione esse nome, pelo amor de Deus! – exclamou a velha, fazendo o sinal
da cruz. Ainda ontem sonhei com o tinhoso. Confesso que fiquei com vontade de por
cartas para saber o futuro... e Deus deve ter me castigado.
- Pois me admira que a senhora não sonhe com centenas de diabos todas as noites.
Eu, aqui, querendo fazer uma caridade e a senhora me trata assim? Pois que vá para
os quintos do inferno a senhora, sua aldeia e todas as suas almas mortas!
- Ai, que palavras horríveis! Se eu soubesse que o senhor era assim tão irritável, não
começaria a contradizê-lo...
- Eu, irritável? Esse negócio não vale nem uma casca de ovo, por que eu haveria de
ficar irritado? Sinceramente!
- Está bem, está bem. Eu vendo minhas almas mortas, mas prometa que se tiver a
necessidade de comprar trigo, vai comprar um pouco de mim.
- Está bem, mãezinha. Então estamos combinados. Diga, a senhora tem alguém na
cidade que possa representá-la?
- Tenho, tenho sim. O filho do protopope. É funcionário da Câmara Municipal...
- Este serve. Por favor, mãezinha, escreva para ele uma procuração para ele
representá-la nessa venda. Melhor, deixe que eu mesmo redijo e a senhora só assina.
“Ah, talvez ele compre para o governo também minha farinha e meu gado. Deve ser um
vendedor importante. É preciso agradá-lo. Vou mandar fazer um pastelão. Não custa
nada”, pensou a velha, e saiu para cuidar disso. Quando voltou, a procuração já estava
pronta, só faltando assinar.
- Assine aqui, mãezinha. Além disso, quero uma relação dos seus camponeses mortos.
Nisso houve uma dificuldade. A velha não fazia anotação qualquer a respeito de seus
camponeses, mas felizmente sabia tudo de cabeça e só precisou ditar para que
Tchitchicov fizesse a lista. De vez em quando ele parava de escrever para apreciar o
nome de um ou outro camponês. Havia Piotr Savielhev Não-respeita-a-gamela, outro
tinha um Tijolo-de-vaca no sobrenome. Outro chamava-se simplesmente Roda-Ivan.
Quando terminava a lista, sentiu um cheiro gostoso de fritura.
- O senhor faça um favor de experimentar um bocadinho. – disse a velha, e mostrou a
mesa repleta de quitutes: cogumelos, pasteizinhos, queijadinhas, pãezinhos, rosquinhas,
torradinha, bolinhos, requeijão.
Tchitchicov comeu até o umbigo fazer bico, gabando a gostosura daquilo tudo.
- Ah, tudo aqui é muito gostoso. Talvez o senhor queira experimentar algumas
panquecas. – disse a proprietária.
Em resposta, Tchitchicov enrolou três panquecas, molhou-as na manteiga e colocou-as
na boca, devorando-as de uma só mordida.
- Mãezinhas, são deliciosas. Por favor, mande atrelar minha carruagem. E, por
favor, mais algumas panquequinhas...
A velha chamou a criada e deu-lhe as ordens com relação à sege. Nisso, o
nosso herói já atacava mais três panquecas.
- É, verdade, as panquecas são muito gostosas, mas seriam melhores se a
colheita de trigo... mas porque essa pressa toda, paizinho?
Ela se espantara porque Tchitchicov já se levantava, colocava o gorro e
depositava mais três panquecas na boca, para viagem, naturalmente.
- Comigo essas coisas são rápidas mesmo, mãezinha. A carruagem já deve
estar atrelada. Além disso, tenho outras coisas a fazer.
- Por favor, não se esqueça de mim se precisar de banha de porco.
- Nem penso em esquecer, mãezinha.
- Talvez o senhor precise de pena de aves...
- Vou precisar, mãezinha. Por favor, quero que me explique como se chega na
estrada principal.
- Mas como é que eu vou explicar? Tem tantas curvas. Só se eu mandar uma
rapariga.
- Uma rapariga está ótimo.
Nastácia olhou-o desconfiada:
- O senhor não está pensando em me roubar essa rapariga, está?
- Minha senhora, o que eu iria fazer com a sua rapariga? Prometo que assim que
chegarmos à estrada principal, eu a mando de volta.
A proprietária se tranqüilizou um pouco a ouvir essas palavras. Nisso já vinha
chegando a carruagem.
- Eh, Selifan! Por que demorou tanto? Ainda não se curou da bebedeira de
ontem? Quer que eu lhe cure com uma surra?
O cocheiro não respondeu a isso e simplesmente abaixou a cabeça,
envergonhado.
- E a menina, mãezinha?
- Pelagueia! Vai mostrar o caminho a esse senhor!
Apareceu uma menina vestida com pano rústico e com os pés tão sujos de lama
que pareciam botas.
Selifan seguiu muito calado, o que sempre fazia quando se sentia culpado. No
máximo, fazia alguma observação ao pedrez, estalando o chicote no lombo do
preguiçoso.
- Viro à direita? – perguntou ele finalmente à menina.
- Não, eu digo quando for a hora.
Algum tempo depois a menina apontou com o dedo.
- Mas que boba! Aqui é a direita! Não sabe o que é direita e esquerda?
Algum tempo depois a menina apontou uma construção escura e distante:
- Lá é a estrada principal.
- E o que é aquela casa?
- É a taverna.
- Daqui para a frente podemos ir sozinhos. – decidiu Selifan, e ajudou a menina a
descer da boleia.
Tchitchicov deu-lhe uma moeda de cobre e lá se foi ela, feliz da vida por ter andando de
carruagem e ainda lucrado com isso.
Capítulo 4
Tchitchicov mandou parar o carro na taverna por dois motivos: para dar comida aos
cavalos e para ele mesmo comer um pouco. O autor deve confessar que sente inveja
do apetite e do estômago desse tipo de gente. Para o autor de nada significam os ricos
senhores de Moscou e de São Petesburgo, com seus palácios e comida requintada.
Esses senhores nunca despertaram sua inveja. Mas os senhores de classe média, que
numa parada pedem presunto, na outra pedem leitão, depois, numa outra parada, uma
lingüiça e, quando parece que estão satisfeitos, nós os vemos sorvendo uma sopa de
esturjão com tanto gosto que desperta o apetite do espectador – esses sim gozam da
inveja do autor.
Nosso herói galgou as escadas da casa escura e deu com uma velha gorda, vestida de
chita colorida.
- Por aqui, por favor! – disse ela.
- Tem leitão? – perguntou o viajante.
- Sim, leitão, sem dúvida.
- Acompanhado de raiz forte e creme azedo?
- Sim, raiz forte e creme azedo.
- Mande um.
A velha trouxe um prato, um guardanapo tão engomado que se podia colocar em pé na
mesa e, ao contrário, um saleiro que ninguém conseguiria colocar de pé.
Tchitchicov entabulou conversa com a velha. Fez várias perguntas pessoais e depois
enveredou pelo que lhe interessava: se havia proprietários rurais naquela região. Soube
que havia vários.
Enquanto conversavam, chegou uma carruagem. Dela desceram dois homens. Um
deles era loiro, de porte alto. O outro era mais baixo e moreno.
O loiro subiu logo as escadas, mas o moreno se demorou acariciando algo dentro da
sege.
O loiro cumprimentou Tchitchicov, o que era bom sinal, início de uma boa conversa,
mas antes que pudessem entabulá-la, chegou o moreno, arrancou o boné da cabeça,
jogou-o sobre a mesa e afofou com gesto vaidoso a vasta cabeleira.
Tchitchicov logo reconheceu nele Nozdriov, que conhecera na casa do Procurador.
- Ora, mas vejam quem encontro aqui! Por onde estava? Nós viemos da feira! Perdi
tudo que tinha! Tive até que alugar uns cavalos, pois joguei os meus. Meu amigo,
precisava ver. Perdi até o meu relógio! E pensar que se tivesse apenas mais vinte
rublos no bolso, teria recuperado tudo...
- Foi isso que você me disse quando eu lhe emprestei cinqüenta rublos.
- Eu fiz uma jogada errada, mas dessa vez eu não ia mais errar. Mas, meu amigo
Tchitchicov, que farra fizemos nos primeiros dias! Vendi tudo que trouxe da minha
aldeia. Bebemos com um oficial do exército. Para ele os melhores vinhos eram só
bordozinho: “Traga aqui um bordozinho, mano!”. Você acreditaria que eu sozinho fui
capaz de esvaziar dezessete garrafas de champanhe durante o almoço?
- Qual nada, você não é capaz de beber nem dez garrafas!
- Consigo!
- Não consegue!
- Vamos apostar, então!
- Apostar o quê?
- A espingarda que você comprou...
- Eu não quero apostar nada!
- Ah, meu amigo Tchitchicov, como lamentei que você não estivesse lá! O que teria
custado ir até lá? Digo que você é um porqueira! Um sujeitinho sem valor! Vem, beijame, eu te quero tão bem! Meu amigo! Meu grande amigo! Olha, você não tem idéia de
como havia carruagens lá. Fomos a muitos bailes. Havia ali uma senhorita vestida de
babados e franzidos e eu pensei comigo: “Que diabo!”, mas o oficial sentou-se ao lado
dela e levou-a no papo. Aquele ali não deixa escapar nem uma camponesa! Chama a
isso de aproveitar os moranguinhos! Mas me diga, meu amigo, para onde você vai
agora?
- Vou visitar uma certa pessoa.
- Que diabos! Então vai deixar o seu amigo sozinho? Venha à minha casa!
- Impossível, tenho negócios a tratar.
- Você está mentindo!
- Juro que é verdade!
- Ah é? Então me diga: com quem você vai fazer negócios, meu grande negociante?
- Com Sobakevitch.
Nozdriov explodiu numa gargalhada.
- Sobakevitch! Há há há! Essa é boa! Pois eu lhe digo: vai se arrepender de ter ido lá
assim que chegar. Aquele é um avarento de marca maior! Aposto que vai se
arrepender! Vamos, venha comigo à minha casa. Prometo que temos o melhor esturjão
da região! Na feira tinha um comerciante e nós comíamos em sua barraca e ele dizia
que era o melhor esturjão da região e eu dizia na cara dele: você é um safado! Um
sujeitinho mentiroso! Pois se todos sabem que o melhor esturjão é o da minha fazenda!
Ah, já ia me esquecendo... vou mostrar, mas aviso desde já que não vendo por menos
de dez mil rublos. Eh, Porfírio! – gritou ele, para um criado que estava ao lado da
carruagem. Traz aqui o cachorrinho! Foi roubado. O dono não queria me vender. Tentei
até trocar pela minha égua alazã, lembra-se dela?
Tchitchicov não se lembrava de nenhuma égua alazã, mas não teve tempo de dizer
isso. A dona da taverna já se aproximava.
- O patrão vai querer comer alguma coisa?
- Comer? Não. Mas se tiver aí uma vodka...
- Sim, senhor...
Nisso chegava Porfírio com o filhotinho.
Nozdriov fez-lhe um carinho, de modo que ele se colocou de barriga para cima, para
receber melhor as cócegas.
- Porfírio! Você não vale o que come! Eu não lhe mandei catar as pulgas dele?
- Eu catei, meu senhor!
- Catou nada! E o que são essas pulgas na barriga dele? Acho mesmo que você
passou algumas de suas próprias pulgas para o cachorrinho! Vamos, Tchitchicov, pega
na orelha dele e veja como é um cachorro de raça.
Nosso herói levou a mão ao cachorro e acariciou-o muito a contra-gosto:
- Sim, é de ótima raça...
- Vamos, toca no focinho dele. Veja como é frio!
Para não melindrar o interlocutor, Tchitchicov tocou no focinho.
- Tem bom faro...
- Sim, vai dar um ótimo perdigueiro. Juro por Deus que há tempos estava atrás de um
perdigueiro... mas ouve, Tchitchicov, você tem que vir comigo à minha casa. Não vou
perdoá-lo se não vier.
Nosso herói pensou no assunto: “Talvez seja um bom negócio ir com ele. Parece que
perdeu tudo no jogo e vai querer me vender suas almas...”
- Está bem, eu vou!
- É assim que fala! E você também vem comigo, meu cunhado!
O loiro se esquivou:
- Não, eu tenho que voltar para casa...
- Nada disso, vou ficar muito magoado se me fizer essa desfeita!
- Minha mulher vai ficar uma fera!
- Nada disso! Esqueça sua mulher! Você vai para minha casa comigo!
O loiro era daquele tipo de gente que começa discordando. Mal o outro fala e ele já
está dizendo que não, mas mal ouve as primeiras palavras e já está dançado conforme
a música alheia. Era como aquele que começa mandando e termina borrando.
- Então vamos, meus amigos!
- Patrão, o senhor esqueceu-se de pagar a sua vodka!
- Oh, sim. Meu cunhado! Por favor, pague para mim...
- Quanto é a conta? – perguntou o cunhadinho.
- Quase nada, meu senhor. Só vinte copeques.
- Que roubo! Pague só metade. Dá e sobra...
O cunhado pagou e a senhora não só não fez cara feia como ainda correu para abrirlhes a porta. Na verdade ela tinha cobrado quatro vezes o valor da vodka.
Durante o caminho, as duas carruagens foram alinhadas, de modo que podiam
conversar.
Já que a conversa deles vai ter pouco interesse para a trama, vamos aproveitar para
falar um pouco de Nozdriov. É um tipo que todo mundo conhece. Não há quem não
tenha tido um colega de escola como ele: fazem amizade com facilidade e são grandes
companheirões, mas nem por isso deixam de ser espancados. Aliás, com a mesma
facilidade com que fazem amigos, brigam com eles. Mal conhecem alguém e já o
tratam com absurda intimidade. São gente tagarela, enxerida, boêmia, farrista. O
casamento não o modificou em nada, tanto que a mulher logo resolveu comprar uma
passagem para outro mundo, deixando-o com duas crianças que eram criadas por uma
ama de leite jeitosa.
Nozdriov não conseguia ficar em casa um dia sequer. Na verdade, uma única hora já
era um suplício para ele. Mal chegava e já estava farejando uma feira, um baile, um
encontro para carteado. Aliás, no jogo de cartas não costumava ser muito honesto, de
modo que a aventura geralmente terminava em uma surra ou, quando pouco, lhe
arrancavam as suíças, deixando uma menor que a outra. O mais engraçado é que
quando ele se encontrava com os que o haviam surrado, ele os tratava na maior
intimidade e nem parecia que ele já tinha conhecido a força dos socos daqueles
queridos amigos.
Convidá-lo para uma festa era ter a certeza de que ele seria carregado e jogado para
fora assim que passasse dos limites.
Às vezes contava tantas patotas que até ele mesmo depois, sóbrio, acabava se
envergonhando de suas mentiras e não acreditava que as havia contado. E mentia sem
necessidade nenhuma: contava que tinha um cavalo com asas, ou com pelo cor-derosa, do modo que os outros iam se afastando cautelosamente.
Aqueles que dele se aproximavam, logo sofriam com sua ação daninha: era um
casamento desfeito, um negócio que falia, uma intriga sem pé nem cabeça. E o pior é
que ele nem considerava as vitimas como seus inimigos. Se as encontrasse na rua, ia
logo abraçando e reclamando, com a maior cara-de-pau:
- Mas então, meu tratante? Você não ficou de me visitar?
Se ganhava no jogo, comprava milhares de coisas na feira, até ficar sem
nenhum, mas não chegava com essas coisas em casa: era logo depenado por um mais
esperto.
Tinha fraco por apostas e seria capaz de apostar até a mãe, se ela estivesse viva.
Assim que chegaram, Nozdriov se pôs a mostrar-lhes a fazenda, gabando tudo que
encontrava pela frente, mas quando afirmou que pagara dez mil rublos por um
potrozinho remelento, o cunhado não se conteve:
- Que o quê! Mas quando que você pagou dez mil rublos nesse pangaré!
- Eu juro que paguei!
- Não pagou!
- Vamos fazer uma aposta, então.
O cunhado não queria saber de apostas, de modo que ficou o dito pelo não dito. Então
o anfitrião se sentiu à vontade para mostrar os seus queridos cachorros. Fez com que
os dois amigos acariciassem os animais para sentir-lhes o pêlo macio e tocassem em
seus focinhos.
- Aqui nesse campo há tantos coelhos que dia desses peguei um com as mãos. –
afirmou Nozdriov.
- Ah meu Deus! Um coelho com as mãos! – suspirou o cunhado.
- Juro que peguei. Se duvida, mais tarde posso fazer de novo. Ou podemos fazer uma
aposta...
Depois levou-os para ver os limites:
- Estão vendo aquele bosque? Também é meu!
- Com o quê! – reclamou o cunhado. Se não era seu quando viajamos para feira!
- Que bobalhão! Deixei dinheiro com o administrador para comprar essas terras, está
claro.
- Só se foi o administrador... – resmungou o outro.
Depois mostrou sua coleção de cachimbos e um realejo que começava uma música e
terminava outra, além de ter adquirido vida própria, ficando tocando muito tempo depois
de ter terminado a corda.
Já era quase cinco horas quando se sentaram para comer. A comida, ou estava
queimada, ou crua. O cozinheiro parece que era cego, pois colocava na comida aquilo
que estivesse mais perto. Se desse com banana enquanto estava fazendo sopa, lá ia a
banana para a sopa... se descuidava da comida, o proprietário primava por um bom
vinho. E era vinho forte, batizado com vodka.
O repasto já terminara, os vinhos todos já haviam sido provados, mas os convivas
continuavam à mesa.
Tchitchicov não queria tocar no assunto perto do cunhado, que era pessoa estranha e
podia botar tudo a perder. Felizmente, o outro já estava mesmo doido para ir embora.
- Não, não vai embora. Já vou arrumar a mesinha de jogo. – disse Nozdriov.
- Deixe-me ir, cunhado. Preciso contar para minha mulher como foi a feira...
- Mande sua mulher para o diabo!
- Não fale isso. Ela é uma mulher tão boazinha, tão fiel. Presta-me tantos serviços...
fico até com lágrimas nos olhos. Não, por favor, não me segure mais aqui.
- E o que é que você tem de tão importante para fazer com sua mulher, hein?
- Por favor, cunhado. Não me faça isso. Preciso ir. Não é bom magoar minha
esposinha... ela é tão boazinha, fico até com lágrimas nos olhos...
- Está bem, que vá para o diabo, molengão! Vai voando para ela, anda!
O outro pegou o gorro e foi embora, repetindo suas desculpas, mesmo depois de
sentado na carruagem.
- Molengão! – resmungou Nozdriov quando o outro partiu.
Quando entraram de novo na casa já ia escurecendo e Porfírio trouxe algumas velas.
Tchitchicov viu de repente aparecer nas mãos do anfitrião, não se sabe de onde, um
baralho de cartas.
- E então, meu amigo... vamos jogar um pouquinho só para abrir o apetite? Eu abro
com trezentos rublos.
- Está bem, mas antes quero lhe fazer um pedido.
- Que pedido?
- Um pedido simples. Primeiro promete que vai atendê-lo...
- Prometo.
- Jura?
- Juro.
- Então o pedido é o seguinte: você deve ter muitos camponeses mortos que ainda não
foram riscados da lista do governo...
- Certamente. O que quer?
- Quero que os passe para meu nome.
- Mas para que você precisa de tal coisa?
- Preciso porque preciso...
- Sei não, você deve estar tramando alguma coisa...
- Tramando alguma coisa? O que se pode tramar com almas mortas? Uma ninharia...
- Mas então por que não quer me dizer?
- É um capricho, só isso.
Nozdriov olhou, desconfiado.
- Capricho nada. Você está aprontando alguma... vamos, diga, ou nada feito.
- Está bem, está bem... é que estou apaixonado, mas os pais da noiva exigem que o
noivo tenha 300 almas, e não tenho nem 150. Essas almas mortas me ajudariam a
manter as aparências. Eis aí. Não disse isso nada a ninguém. Só você sabe...
- Companheiro, você está mentindo!
- Mas... por que cargas d´água eu iria mentir? É a verdade verdadeira. Nunca houve
outra verdade!
- Aposto a cabeça como é tudo mentira!
- Isso já está virando ofensa pessoal. Por que acha que não faço outra coisa, senão
mentir?
- Por que eu te conheço, mano. Sei que é um grande malandro. Se eu fosse o chefe de
polícia, mandava enforcá-lo na primeira árvore.
Tchitchicov sentiu-se ofendido. Ele não gostava de familiaridades, a não ser que o
interlocutor fosse de uma posição mais elevada.
- Isso já está passando dos limites! Essa é linguagem para usar com um amigo? Mas
vamos, se não quer me dar as almas de presente, por que razão não as vende?
- Vender? Mas estou certo de que você não pagará o preço justo...
- Mas essa é boa! Afinal, do que são feitas as suas almas? De ouro?
- Escuta, mano. Vou mostrar que sou um amigo de verdade: compra o meu potro e eu
te dou as almas de presente.
- Mas... o que eu vou fazer com um potro? Valha-me Deus!
- Mas é um negócio imperdível! Eu paguei dez mil rublos e vendo para você por apenas
quatro mil...
- Mas o que eu vou fazer com o seu potro? Eu não faço criação...
- Você não está entendendo. Você só me paga três mil rublos. O restante você me
paga depois...
- Já disse que não preciso de nenhum potro!
- Certo, certo... então você me compra a égua alazã.
- Não quero nada com sua égua alazã.
- Então me compra uns cães. Tenho ótimos cães, tão bons que me arrepia a pele só
de pensar...
- Para que eu vou querer um cão? Nem mesmo caço...
- Meu amigo, estou fazendo um favor. Eu gostaria muito que você tivesse um cachorro.
Uma vida sem um cachorro não é vida que se viva! Mas, vamos... então me compra o
realejo.
- Mas o que eu vou fazer com um realejo, que, além de tudo, está quebrado?
- Não diga isso! É uma obra-prima!
E aqui Nozdriov passou a mostrar o realejo para o amigo. Tchitchicov sacudia a
cabeça.
- Está bem, eu te dou o realejo e todas as almas mortas em troca da sua carruagem.
- Mas como eu vou me locomover depois?
- Eu te dou outra carruagem. Vem, eu te mostro...
E lá se foram para o pátio, onde se depararam com uma carruagem caindo aos
pedaços. As partes de madeira estavam tomadas de cupins e as de metal eram
morada de ferrugem.
- É só pintar que fica nova! – exclamou Nozdriov.
- De jeito nenhum!
- Então, façamos o seguinte. Vou fazer uma proposta de amigo... vamos jogar a
carruagem. Eu aposto o realejo e todas as almas mortas.
- Não.
- Mas não porque?
- Porque no jogo se arrisca a sorte. Eu só quero fazer um negócio...
- Você é mesmo um moleirão de pior marca! Por que não joga?
- Não gosto de jogo de cartas!
- Antes eu pensava que era um homem direito, mas agora vejo que é mesmo um
moleirão! Não temos mais nenhuma relação! Porfírio, vai dizer ao cavalariço que não dê
aveia aos cavalos desse moleirão!
Por essa Tchitchicov não espera. Apesar disso, os dois jantaram, embora não tenha
aparecido na mesa nenhum vinho de nome diferente.
Depois do jantar, Nozdriov acompanhou o visitante até seu quarto.
- Aqui está sua cama. Faça bom proveito. Não te desejo nem boa noite!
Tchitchicov mal dormiu aquela noite. Recriminava-se por ter perdido seu tempo vindo à
fazenda de Nozdriov. Além disso, milhões de insetos minúsculos o atacaram
incessantemente, de modo que ele passou a noite se coçando e mandando tudo ao
diabo.
Acordou bem cedo. Colocou um roupão e saiu para o pátio, para ordenar a Selifan que
atrelasse logo a carruagem. Voltando ao pátio, encontrou com Nozdriov, também de
roupão, pitando um cachimbo.
- Então, meu querido amigo, como passou a noite?
Tchitchicov resmungou alguma coisa.
- Pois eu dormi muito mal. Uns bichos me atormentaram a noite inteira. Além disso,
sonhei que me davam uma surra...
“Era bom mesmo que te curtissem o couro!”, pensou Tchitchicov.
- É verdade, não acredita? Até acordei todo dolorido. Pode ir se vestir, mano. Já me
encontro contigo para comermos alguma coisa.
Tchitchicov entrou no quarto e se vestiu e lavou-se. Quando saiu, a mesa estava
pronta. A sala ainda mostrava vestígios do almoço, do jantar e do café-da-manhã do
dia anterior. Ao que parecia, a vassoura era um instrumento totalmente desconhecido
naquela casa.
- Então, meu amigo, já pensou melhor? Não quer jogar umas cartas?
- Já disse que não, mano. Se quiser vender, eu compro, mas cartas não.
- Então vamos abandonar as cartas. Vamos jogar damas! Se você ganhar, as almas
são todas suas. Porfírio, traz aqui o tabuleiro de damas!
- Esqueça, não vou jogar!
- Mas, mano, assim você me ofende. Que custar jogar damas? Em damas não pode
haver azar ou trapaça. E eu ainda dou uma vantagem inicial.
“Pois bem”, pensou Tchitchicov. “Nesse jogo é difícil ele trapacear”.
- Está bem, aceito.
- Ótimo. As almas por 100 rublos.
- Por que tanto? Basta 50...
- Que seja, mas quanto é que você vai me dar adiantado? – disse Nozdriov.
- Nada. Para que isso?
- Então pelo menos me dá dois lances de vantagem...
- Já começou mal...
- Já estava sabendo que ia jogar mal. – afirmou Nozdriov, iniciando a partida.
- Realmente, faz um tempo que não jogo.
- Já se via logo que você joga mal. – disse Nozdriov, movendo uma pedra e, ao mesmo
tempo, puxando outra com o punho da manga.
- Ei, o que foi isso, mano? Põe de volta!
- Pôr de volta? O quê?
- A pedra que você moveu com a manga da camisa. Ei, e aquela ali se fazendo passar
por dama?
- Mas você não se lembra que eu acabei de fazer dama?
- Acabou de fazer dama o que! Mal começamos o jogo! Desisto! Não se pode jogar
com alguém que move três peças ao mesmo tempo!
- Por quem você me toma? Acha que eu uso de trapaça?
- Não te tomo por coisa nenhuma! Só sei que por mim o jogo acabou.
- Não se pode desistir de um jogo no meio!
- Pode-se desistir quando o outro não se contenta em jogar uma peça de cada vez...
- Eu não trapaceei e você vai ter que terminar essa partida.
- Não termino nada. – disse Tchitchicov, misturando as peças no tabuleiro.
- Vai terminar sim. Não adianta misturar as peças, que eu me lembro da ordem de
todas elas!
- Não mano. Acabou. Não vou jogar nada contigo.
- Então repete para mim.
- Eu não quero jogar. – disse Tchitchicov, afastando-se um passo e colocando as mãos
diante do rosto.
Foi uma precaução de grande utilidade, pois logo Nozdriov avançava com uma bolacha,
mas nosso herói segurou-lhe ambas as mãos.
- Porfírio! Pávluchka! - gritou Nozdriov, forçando para libertar-se.
Vendo a situação que se metera, Tchitchicov largou as mãos do proprietário, ao
mesmo tempo em que os dois criados entravam na sala. Pávluchka era um rapagão
reforçado, de modo que não havia nenhuma vantagem de entrar em atrito com ele.
- Vamos, responde-me: quer ou não quer terminar o jogo?
- Impossível continuar! Não posso jogar com um homem desonesto.
- Canalha, quando percebeu que estava perdendo, me saiu com essa. Vamos dar uma
surra nesse tratante!
E os três avançaram como se fossem tenentes atacando uma fortaleza inexpugnável.
Mas a fortaleza não tinha nada de inexpugnável. Pelo contrário, a fortaleza sentia tanto
pavor que o coração parecia ter ido parar nos calcanhares. Ele já se preparava para
receber uns cascudos quando o soar de uns guizos salvaram-no. Nisso um oficial entrou
no recinto.
- Queiram me informar se é a aqui que mora o senhor Nozdriov. – disse o homem,
olhando ao mesmo tempo para Nozdriov que brandia o cachimbo e para Tchitchicov,
cujas pernas tremiam como vara verde.
- Permita-me indagar primeiro: com quem tenho a honra de falar?
- Com o capitão da polícia distrital.
- E o que o senhor deseja?
- Vim para notificar o senhor Nozdriov a respeito de um processo de agressão contra o
proprietário Maximov...
Enquanto os dois entabulavam conversa, Tchitchicov aproveitou a oportunidade e
escafedeu-se pela porta. Ligeiro como uma lebre, meteu-se na carruagem e ordenou a
Selifan que saísse dali o mais rápido possível.
Capítulo 5
Nosso herói continuava apavorado. Embora a carruagem já estivesse bem distante da
aldeia de Nozdriov, ele olhava o tempo todo para trás, temendo estar sendo
perseguido. Ao colocar a mão no coração, descobriu que ele retumbava como um
tambor. “Podem pensar o que quiserem, mas se o Capitão não tivesse chegado
naquele momento, juro que não teria mais visto a luz do dia!”, e emitiu uma série de
palavras impublicáveis contra Nozdriov.
Selifan também soltava imprecações contra o proprietário:
- Que patrão ruim! Deixar os cavalos sem aveia! Não se pode fazer isso, pois a
aveia é a comida do cavalo. É como o mingau para nós. Bem merecia que lhe
cuspissem na cara!
Os cavalos, pelo jeito, também estavam pensando mal de Nozdriov. Não só o
baio, mas também o presidente e o pedrês estavam de mau humor. Se bem que esse
último sempre recebesse a pior parte, mas ainda assim era aveia e ele mastigava com
prazer, e não feno.
Mas todos os descontentes foram interrompidos em suas meditações por um
incidente. De repente viram-se abalroados por uma carruagem de seis cavalos e
ouviram os gritos de um cocheiro:
- Ei, você aí, patife! Não ouviu quando eu gritei: “À direita. Vira à direita!”. Está
surdo ou bêbado?
Selifan percebeu que bobeara, mas como bom russo, não quis dar o braço a
torcer:
- E você, seu tratante? Aonde vai com tamanha pressa?
Depois de muitos desaforos mútuos, os cocheiros decidiram que o melhor a
fazer era tentar desembaraçar os cavalos. Mas não era fácil, pois estava tudo
emaranhado. Enquanto isso, as duas senhoras dentro da sege olhavam tudo com
expressão de medo. Uma delas era a velha, mas a outra era uma mocinha muito
bonita, de uns dezesseis anos, de cabelos dourados e rosto oval e pele branquinha
como um ovinho. Com aquela expressão de medo era tão encantadora que o nosso
herói ficou a olhar para ela durante vários minutos, sem prestar atenção à confusão que
se formava em volta das duas carruagens.
O tumulto chamara atenção dos camponeses. Como nessas aldeias não
acontece nada, um fato desses é coisa para se contar para os netos. Assim, cada um
que se aproximava queria dar sua opinião, pois, como é comum ao caráter russo, logo
se tornaram especialistas em resolver situações como essa.
No decorrer de todas essas manobras, Tchitchicov olhava interessado para a
desconhecida. Tentou mesmo entabular conversa com ela, mas antes que conseguisse,
as duas carruagens já tinham se soltado e as duas mulheres já desapareciam no
horizonte.
“Jeitosinha”, pensou Tchitchicov, abrindo a tabaqueira. E o que havia de jeitoso
nela era justamente seu jeito jovem, natural, ainda não desvirtuado pela sociedade.
Dela se poderia moldar qualquer coisa, e ela poderia vir a ser uma maravilha, assim
como poderia ser uma porcaria. Aliás, provavelmente virá a ser uma porcaria. Em um
ano a encheriam de tanta futilidade que nem mesmo o pai será capaz de reconhecê-la.
“Mas seria curioso saber quem é ela e a que família pertence”, pensou nosso herói.
“Se ela tiver um dote de duzentos milheiros de rublos, poderia fazer a felicidade de
qualquer homem. Ah se poderia...”, e continuou com essas reflexões carinhosas
durante todo o caminho.
Mas logo a aldeia de Sobakevitch apareceu diante dele. Pareceu-lhe grande e
estranha. O arquiteto, ao que parecia, era pedante e queria simetria, mas o dono tinha
outras idéias e o resultado era um monstrengo que oscilava entre vários estilos. A
fachada frontal não ficara no centro do prédio, pois o dono mandara tirar uma das
colunas laterais, resultando em uma frente com três colunas em vez das quatro
evidentemente haviam sido previstas. O quintal era cercado por uma grade de madeira
forte e grossa. Tudo ali parecia refletir solidez. Até mesmo os isbás dos camponeses
não eram casebres comuns. Não ostentavam entalhes de madeira e outras fantasias,
mas tudo era reforçado e admiravelmente construído.
Ao entrar na casa, Tchitchicov foi recebido por um criado e depois o próprio
Sobakevitch veio ao seu encontro. Desta vez pareceu-lhe positivamente um urso. Para
aumentar ainda mais a semelhança, vinha com uma roupa de cor de urso. Pisava forte,
fazendo estalar a madeira do piso e de vez em quando pisando nos pés dos outros.
Conhecendo esse costume do o anfitrião, Tchitchicov mantinha-se à distância e deixava
sempre o outro ir na frente.
Foram para a sala de visitas, toda enfeitada por retratos de generais e outros
valentões. Todos esses heróis tinha coxas tão grossas e bigodes tão indescritíveis, que
até davam arrepios no corpo todo. Mal chegaram e adentrava a sala a dona da casa.
Era uma mulher bastante alta e andava majestosamente, empinada como uma
palmeira.
- Essa é a minha Feodúlia Ivanovna. – disse o anfitrião, apresentando-a.
Nosso herói se inclinou e beijou-lhe a mão.
- Queridinha, este é Pavel Ivanovitch Tchitchicov, que conheci na casa do
Governador. – disse o urso.
- Encantada. – exclamou a senhora e sentou-se, fazendo um movimento de
cabeça daqueles que fazem as atrizes quando representam papel de rainhas. Depois
disso não moveu uma única sobrancelha.
Durante quase cinco minutos todos se conservaram em silêncio.
- Falamos do senhor na casa do senhor Presidente da Câmara. – disse por fim
Tchitchicov, querendo puxar conversa. Passamos momentos agradáveis. Que homem
excelente!
- Quem? O Presidente?
- Isso.
- Bem, o senhor pode pensar o que quiser, mas para mim ele é um verdadeiro
imbecil.
Tchitchicov ficou abalado com aquela definição tão áspera, mas tratou logo de
corrigir-se:
- Claro, ninguém é perfeito... mas, em compensação, o governador...
- Aquele bandido?
- Bandido? Como assim? – gaguejou nosso herói, sem saber como o governador
fora parar na categoria dos bandidos.
- Tem também cara de bandido. É colocar uma faca na mão dele e deixá-lo na
estrada que ele esfaqueará o primeiro que encontrar.
“Errei o caminho. Com esses ele não tem boas relações”, pensou Tchitchicov.
“Vou tentar o chefe de polícia. Esse parece que é seu amigo”.
- Mas confesso que de todos, gosto mais do chefe de polícia. Parece um
caráter reto.
- É um trapaceiro! É capaz de trair uma pessoa e depois almoçar com ela
depois de tudo. Um gatuno, assim como os outros. Todos um Judas. Só existe na
cidade um homem decente.
- Ah é? – exclamou Tchitchicov, cheio de esperanças.
- Sim, o procurador.
- Que boa pessoa!
- Pena que seja um porcalhão!
Após tão elogiosas biografias, Tchitchicov convenceu-se de que não era boa estratégia
citar outros funcionários.
- Como é, queridinho? Vamos almoçar? – disse a esposa.
- Por favor. – respondeu o marido.
Chegando à mesa, hóspede e anfitrião tomaram um gole de vodka,
acompanhando-o com toda sorte de salgadinhos e petiscos. Depois começaram a
comer. E era muito comida.
- A sopa de repolho, queridinha, está boa hoje.- disse Sobkevitch. Comida como
a daqui o senhor não encontrará na cidade.
- Na casa do Governador se come bem...
- Mas se o senhor soubesse como é preparada a comida lá, não teria coragem
de comer nada.
- Confesso que não sou especialista, mas as almôndegas e o peixe cozido
estavam excelentes.
- É o que parece, mas se soubesse... O cozinheiro dali é um esperto, que vai ao
mercado, compra um gato e serve como lebre.
- Meu queridinho, que coisas desagradáveis está dizendo aí? – perguntou a
esposa.
- O que você quer que eu faça, minha querida? Não é culpa minha se todos eles
são assim. Tudo que minha cozinheira joga no lixo, eles colocam na sopa. Juro que é
assim.
- Sempre fala essas coisas à mesa. – reprovou a esposa.
- Minha queridinha, não tenho culpa se as coisas são assim. Só falo o que é
verdade. Veja uma perna de rã... podem empanar em açúcar que eu não coloco na
boca, pois sei que bicho que é... agora, prove esse lombo de carneiro com molho de
trigo! Isso sim é comida! Agora estão com essa história de progresso, de servir
delicadezas! Bando de germânicos! Aqui, quando servem porco, quero que tragam o
porco inteiro para a mesa. Quando servem carneiro, comemos o carneiro inteiro.
E o anfitrião confirmou suas palavras com atos, colocando metade do carneiro
no prato e devorando-o até o último ossinho.
Tchitchicov espantou-se: “Esse sim é um bom garfo!”.
- Aqui em casa não é assim. Não sou como Pliuchkin, não senhor. Esse homem
é dono de oitocentas almas, mas come pior que meus pastores. Além disso, trata seus
servos a pão e água.
Tchitchicov interessou-se:
- Quem é esse?
- É um gatuno avarento! Mata de fome seus empregados.
- Morrem muitos?
- Como moscas!
Tchitchicov sentiu uma alegria no coração:
- E mora longe?
- É nosso vizinho.
- Saindo daqui, é à direita ou à esquerda?
- Eu não o aconselharia a fazer negócios com ele... é um cão!
- Não, eu não perguntei por razões especiais. Só por perguntar.
Depois do carneiro, atacaram uma empada de queijo. Depois um peru recheado
de todo tipo de delícias. Quando se levantaram, Tchitchicov sentiu-se uns cinqüenta
quilos mais pesado.
Então foram para a sala de visitas, onde havia uma geléia esperando por eles.
Refastelaram-se na poltrona. Sobakevitch persignava-se e cobria o rosto com as mãos
o tempo todo.
- Gostaria de falar com o senhor a respeito de negócios. – disse Tchitchicov,
quando viu que estavam sozinhos.
- Sim, diga.
Nosso herói começou uma conversa enrolada, que começava falando da
grandeza do Império Russo. Disse que nem o Império Romano fora tão vasto e que os
estrangeiros até se espantavam. Disse também que, graças à regulamentação desse
Império tão grandioso, as almas mortas continuavam a ser computadas como vivas até
o próximo recenseamento, de modo a não sobrecarregar a máquina estatal, já por si
tão complicada...
Sobakevitch apenas escutava, de cabeça baixa.
- Mas veja. – continuou Tchitchicov. Esse medida, apesar de tão acertada, é
injusta para com os proprietários rurais, já tão onerados por uma vasta gama de
obrigações e que, mesmo assim, continuavam a ter que pagar impostos sobre seus
camponeses mortos, como se eles estivessem vivos. Assim, meu senhor, por meu
grande respeito ao senhor, estou disposto a tomar para mim esse pesado encargo.
O proprietário ouvia tudo calado, de cabeça baixa, sem expressar qualquer
sentimento. Parecia que não tinha uma alma, ou se tinha, ela ficava guardada em outro
lugar.
- Deixe-me ver se entendi. O senhor precisa de almas mortas...
- Inexistentes.
- Devo ter algumas, por que não?
- E caso tenha, imagino que o senhor queira se ver livre delas...
- Por um bom preço, certamente.
“Mas esse é dos bons. Mal abri a boca e ele já está vendendo!”, pensou
Tchitchicov.
- E por quanto o senhor... venderia?
- Como somos amigos... vejamos... cem rublos cada uma.
- Cem rublos? – exclamou Tchitchicov, sem acreditar em seus ouvidos.
- O senhor está achando caro? Qual seria o seu preço por acaso?
- Acho que estamos enganados, ou esquecemos o assunto de nossa conversa,
mas creio que oitenta copeques está de bom tamanho...
- Oitenta copeques? Eu não estou vendendo palha...
- Mas também não é gente viva.
- Mas são gente da melhor espécie! Bons trabalhadores! Duvido que o senhor vá
encontrar quem lhe venda almas recenseadas por um preço tão ínfimo.
- Mas não servem para nada. São almas mortas! Está bem. Um rublo e meio por
cada peça.
- O senhor está me ofendendo. Estou lhe oferecendo ótimos trabalhadores e o
senhor quer pagar uma pechincha? Vamos, melhore seu preço.
- O máximo que posso chegar é a dois rublos.
- Por favor, por favor. Outro homem, um gatuno, poderia lhe vender lixo. Eu não.
São todos homens reforçados. Entre eles há um construtor de carruagens que faz
carruagens de mola tão boas como as que se vê em Moscou. Dessas para durar a vida
inteira, e envernizadas!
Tchitchicov ia abrir a boca para dizer que o tal construtor estava agora debaixo
de sete palmos e que nunca mais iria construir uma carruagem no mundo dos vivos,
mas o outro pegara corda e desembestara a falar:
- E tenho também um carpinteiro... homem bem construído. Podia até servir na
guarda nacional e não ia fazer feio. E Miluchkin, o oleiro! Era capaz de colocar estufa
em qualquer tipo de casa! E o sapateiro. Em um piscar de olhos fazia um par de botas
de se tirar o chapéu! Pode ter certeza, meu senhor, eu vendo mercadoria de
qualidade...
- Mas, com licença, por que razão o senhor fica aí falando essas coisas de
gente que agora está morta? É tudo gente morta, não serve para nada.
- Sim, são gente morta, é verdade. Mas o que dizer daqueles que agora são
considerados vivos? São moscas comparados com esses que agora estão mortos.
- Mas pelo menos eles existem, enquanto esses gigantes de que o senhor fala
não passam de sombras.
- Sombras? Nunca houve homens como aqueles.
- Não, decididamente, mais do que dois rublos não posso pagar.
- Está bem, está bem, só para que o senhor não saia por ai dizendo que não
quis fazer nenhuma concessão... setenta e cinco rublos.
“Estou feito”, pensou Tchitchicov. “Esse aí me toma por otário!”.
- Acho que há algum engano. Talvez seja uma comédia. O senhor é inteligente,
certamente sabe que o artigo em questão não vale nada...
- Mas o senhor está querendo comprar! Logo, o senhor precisa...
Aqui o nosso herói não teve o que responder. Começou a falar de certas
circunstâncias do clã, da família, mas o outro o interrompeu:
- Não me interessa nada disso. O que interessa é que tenho um produto e quero
vender, e o senhor quer comprar. Só falta combinar o preço.
- Está bem. Dois rublos...
- “Quando começa a falar a esmo, a gralha só faz repetir o mesmo”, diz o ditado
popular. O senhor se agarrou a esses dois rublos e não quer mais sair deles. Por favor,
faça o favor de fazer uma oferta de verdade...
- Senhor, eu lhe dou mais meio rublo e isso é o máximo a que posso chegar.
- Pois que seja, eu também lhe farei minha última oferta: cinqüenta rublos. Uma
pechincha pela mercadoria que estou lhe vendendo...
“Mas que peste!”, pensou Tchitchicov, contrariado.
- Como se isso fosse um negócio sério! Se eu quiser, em qualquer lugar me dão
almas de graça e ainda vão me dizer obrigado por eu lhes tirar das costas os
encargos...
- Mas talvez o senhor saiba que esses negócios não são totalmente lícitos. Se
eu ou qualquer outra pessoa revelar isso, a pessoa em questão perderá todo o
crédito...
“Ah, então é nisso que ele está pensando!”, refletiu Tchitchicov.
- Pois saiba que não tenho nenhum interesse nessas almas. São apenas um
pequeno capricho, para ajudá-lo, mas como vejo que o senhor não está interessado,
adeus.
- Está bem, fique, meu amigo. Trinta rublos e não se fala mais nisso.
- Vejo que o senhor não está interessado. Então, adeus.
Dizendo isso, Tchitchicov levantou-se, mas o outro segurou-o pela mão com
suas mãos poderosas, ao mesmo tempo que lhe pisava o pé:
- Oh, desculpe, senhor. Acho que acabei lhe causando incomodo... mas por
favor, sente-se: vamos negociar. Quanto o senhor me oferece?
- Dois rublos e meio.
- Nem mais um copeque?
- Nem mais um copeque.
- Está bem. Fecharei negócio com o senhor, mas só porque tenho um coração
de manteiga e gostei do senhor. Precisamos, claro, lavrar o contrato para que fique
tudo em ordem.
- Agora mesmo. – disse Tchitchicov. Mas preciso que o senhor faça uma lista de
seus camponeses.
O proprietário não perdeu tempo e ali mesmo, na escrivaninha, pôs-se a
elaborar uma lista de próprio punho, colocando não sós os nomes, mas também
qualidades de cada uma das almas. Por falta do que fazer, nosso herói ficou atrás
dele, admirando sua estrutura: “Sim, senhor, Deus foi generoso com esse aí. É o que
se costuma chamar de mal cortado, mas bem costurado!”.
- A lista está aqui. – anunciou Sobakevitch.
Tchitchicov pegou a lista e admirou a meticulosidade e precisão. Estavam
anotados os nomes, idade, estado civil e profissão de cada um, além de anotações
sobre características de seus comportamentos. Dava gosto de olhar.
- Agora, se o senhor não se incomodar, gostaria de uma adiantamento...
- Um adiantamento? Mas o senhor vai receber tudo na cidade.
- É um costume. Sem adiantamento não se faz negócio.
Tchitchicov levou a mão ao bolso.
- Está bem. Tome aqui dez rublos.
- Mas só isso?
- Não tenho mais. Vim sem dinheiro.
- O senhor tem sim.
Essa última afirmação foi tão categórica, que Tchitchicov se viu sem ação.
- Está bem. Aqui tem mais quinze rublos. O recibo, por favor...
- Mas para que o senhor quer um recibo?
- É sempre bom ter um recibo nessas situações.
- Está bem, mas me passe o dinheiro primeiro.
- Não, o senhor passe o recibo primeiro.
Assim, os dois trocaram recibo e dinheiro ao mesmo tempo. Quando o papel
passava para as mãos de um, as notas iam para as mãos de outro.
Estando acertado o negócio, Tchitchicov pediu ao amigo uma coisa, que ficasse
tudo entre eles.
- Isso se entende por si mesmo. O que se realiza entre amigos, fica entre
amigos. Adeus, foi muito bom fazer negócios com o senhor. Volte outro dia para
almoçar e quem sabemos podemos nos ajudar mutuamente...
“Ah, sim, pode esperar, seu unha de fome!”, pensou Tchitchicov, “Arrancou-me
dois rublos e meio por almas mortas!”.
Tchitchicov ficou mais aborrecido ainda ao ver que o outro se plantara no pátio,
observando para onde ele dirigia. Nosso herói queria visitar Pliuchkin, cujos
camponeses morriam como moscas, mas não queria que Sobakevitch soubesse.
Assim, ele deu ordem a Selifan que saísse de lá numa posição em que fosse difícil ver
para onde ia a carruagem.
Já na estrada, ele parou um camponês que carregava um tronco de árvore no
ombro:
- Ei, barbudo! Diga, onde fica a casa de Pliuchkin?
- Quem?
- Como é, não sabe?
O camponês deu de ombros, mas isso é modo de dizer, já que ele estava com
um tronco enorme de árvore sobre os mencionados ombros.
- Não é possível. Já está de cabelos brancos e não conhece o senhor que não
dá comida à sua gente.
O rosto do camponês se iluminou:
- Ah, o remendado! – e indicou o caminho com o beiço.
Capítulo 6
Tchitchicov pensava na alcunha que tinham dado ao proprietário rural e ria-se
dela, muito satisfeito. Remendado, essa era boa. Estava tão absorto nisso que nem
percebeu que já entrava em uma grande aldeia, com muitos isbás e ruas.
Nosso herói notou algo de estranhamente decrépito em todas as casas da
aldeia: muitos telhados estavam furados como peneiras. As janelas dos casebres não
tinham vidraças e algumas delas estavam tampadas com trapos e roupas velhas.
Aos poucos começou a aparecer a casa senhorial e logo ela emergiu inteira.
Parecia um velho decrépito. As janelas estavam todas fechadas, muitas trancadas com
tábuas e Tchitchicov perguntou-se se alguma vez a luz entrara naquela casa.
Finalmente chegaram à própria casa, que de perto parecia ainda mais taciturna.
Um mofo esverdeado recobria toda a madeira. O cenário fazia deduzir que ali existira
uma vida intensa outrora, mas agora tudo parecia sombrio e abandonado.
Ao lado de uma das construções, um vulto começou a discutir com um mujique
que acabava de chegar numa carreta. Tchitchicov cerrou os olhos, mas não conseguiu
distinguir se era um homem ou uma mulher. A roupa era muito parecida com um roupão
feminino e na cabeça trazia uma carapuça, dessas que são usadas pelas servas
doméstica, mas a voz parecia grossa demais. “É uma mulher, provavelmente a
despenseira”, pensou Tchitchicov. “Ih, não é!”. “Pensando bem, é sim, é uma mulher!”.
- Escuta aqui, titia, onde está o seu patrão?
- O que quer com ele?
- Quero fazer negócios.
- Entre na casa. – disse a despenseira.
Tchitchicov entrou e sentiu um bafo frio, como se estivesse entrando num porão.
Passando o vestíbulo, penetrou num aposento mal iluminado e ficou abismado com a
desordem que reinava lá dentro: a impressão é de que tinham acumulado ali toda a
mobília da casa. Sobre uma das mesas existia até uma cadeira quebrada, e ao lado
dela um relógio de parede igualmente quebrado. Pela parede ele viu um armário cheio
de prataria velha, frascos de cristal e porcelanas chinesas, tudo com dois quilos de pó.
Sobre uma mesa havia uma infinidade de coisas, que iam de papeluchos a um limão
seco, um cálice com líquido não identificado e duas penas sujas de tinta.
Enquanto nosso herói examinava o ambiente, abriu-se uma porta lateral e entrou
a despenseira. Então ele percebeu que não era uma despenseira, mas um
despenseiro.
- E então, o seu patrão? Está no quarto?
- Aqui está o patrão.
- Onde? Pode me indicar por favor onde está ele?
- O que há? Está cego ou o quê? O patrão sou eu mesmo...
Aqui Tchitchicov deu passo para trás, espantado. Já conhecera toda sorte de
proprietários rurais, mas como aquele, nunca. Parecia um mendigo, mas era um rico
proprietário rural, dono de mais de mil almas. Seus depósitos estavam cheios de trigo,
lãs, linhos, peles de carneiro, peixes secos e toda sorte de legumes e carnes
defumadas.
Nunca satisfeito com o que tinha, esse sovina andava pelas ruas de sua aldeia
recolhendo o que encontrasse, fosse uma sola velha de sapato, um trapo velho ou um
prego e o colocava no monte que Tchitchicov vira. De fato, depois de sua passagem
não era mais preciso varrer as ruas. Se por acaso um mujique o apanhava em
flagrante, ele não discutia e devolvia o objeto subtraído, mas se esse chegava a ir
parar em seu monte, adeus.
E, no entanto, ouve um tempo em que ele era apenas um patrão parcimonioso.
Era casado, tinha filhos e os vizinhos vinham visitá-lo para almoçar com ele e
aprender administração doméstica. A patroa, cordial e falante, era famosa pela
hospitalidade.
Mas a boa senhora faleceu e aí a coisa começou a desandar. Pliuchkin, como
todo viúvo, tornou-se desconfiado e avarento. Logo a filha mais velha, Aleksandra
Stepanovna, fugiu com um oficial da cavalaria e casou-se às pressas numa igreja da
aldeia. O pai, que odiava militares, pois os considerava jogadores e esbanjadores, não
se deu ao trabalho de persegui-la.
A avareza, que já mostrava sinais antes, tornou-se doentia. O preceptor francês
foi despedido porque chegara o tempo do serviço militar do filho. A governanta foi
demitida porque se descobriu sua culpa no caso da fuga da filha. O pai queria que o
filho servisse no setor público, mas o garoto decidiu entrar para o serviço militar e
escreveu ao pai pedindo dinheiro para o fardamento. Recebeu em troca disso uma
resposta que não podemos publicar. Por fim, morreu-lhe a filha mais jovem e ele ficou
só, único guardião de suas riquezas.
Tornou-se intratável com os compradores, que vinham adquirir seus produtos.
Por fim o abandonaram de todo, comentando entre si que aquele era um demônio em
forma de gente.
O resultado disso é que o trigo mofava e estragava nos depósitos. Nos porões,
a farinha virava pedra e ele já nem sabia mais quanto tinha, mas tinha perfeita
lembrança de uma garrafa de aguardente na qual fizera uma marca para que ninguém
bebesse, de onde se encontrava uma velha pena de escrever e um pedacinho de pano.
No entanto, os mujiques eram obrigados a trazer os mesmos tributos de antes e
tudo era acumulado nos depósitos onde apodrecia.
Aleksandra veio duas vezes como o filho pequeno, numa tentativa de conseguir
alguma coisa do pai, pois aparentemente o casamento não era assim tão vantajoso. O
velho perdoou-a e até deixou o menino brincar com um botão que estava sobre a mesa
– sob a condição de que fosse devolvido. Numa segunda tentativa, ela trouxe um bolo e
uma bata nova, pois a dele era só farrapos, e dois pequerruchos. O avô brincou com
os dois e até os colocou um sobre cada joelho, mas não soltou um único tostão, de
modo que ela desistiu e nunca mais o visitou.
Tchitchicov estava tão impressionado que não conseguia dizer palavra.
Finalmente, ia começar com a história de que impressionado com a fama de raras
virtudes e qualidades de caráter do proprietário, resolvera visitá-lo... mas chegou à
conclusão de que assim também já era demais. Então, olhando à volta, deduziu que as
palavras raras virtudes e qualidade de caráter poderiam ser convenientemente
substituídas por economia. Assim, disse que, impressionado com a fama de homem
econômico e extraordinário administrador de sua fazenda, sentiu que era seu dever
fazer-lhe uma visita e repassar, pessoalmente, os votos de estima e respeito.
A resposta de Pliuchkin foi um grunhido baixo por entre os lábios, sim, pois já
não tinha mais dentes. Seria impossível identificar de fato o que ele dissera, embora
parecesse muito algo como “Vá para o diabo com seus votos de estima e respeito!”,
mas o que ele acabou falando, mesmo, foi um:
- Sente-se, por favor.
Quando Tchitchicov estava instalando, o outro começou:
- Confesso que não recebo muitas visitas. Considero um hábito indecoroso esse
das pessoas se visitarem. E quem sofre com isso é a economia doméstica... e ainda
temos que dar comida aos cavalos. Devo dizer-lhe que já almocei e não posso servirlhe nada.
“Ainda bem que já comi na casa de Sobakevitch”, pensou Tchitchicov.
- Confesso ainda que não tenho um único punhado de feno em minha casa. –
continuou o proprietário. Sabe como é: a terra é fraca, os mujiques são preguiçosos...
só querem saber de ir beber no botequim. Se não me cuido, vou acabar pedindo
esmolas na rua. Depois de velho!
- Mas eu soube que o senhor possui mais de mil almas!
- Maldito seja quem lhe disse isso. Onde estão essas mil almas? No ano
passado uma peste exterminou um monte de meus camponeses.
- Sério? E foram muitos?
- Muitos, eu lhe digo. Muitos.
- O senhor teria a bondade de me dizer quantos foram, paizinho?
- Um oitenta!
- Não é possível!
- Pra que eu iria mentir, paizinho? Sou um homem arruinado!
- Diga mais uma coisa: todas essas almas o senhor está contando desde o
último recenseamento?
- Quem dera, quem dera. Se for contar daí, são cento e vinte.
Tchitchicov quase caiu da cadeira.
- Cento e vinte?!
- O senhor acha que estou mentindo paizinho?
Nosso herói percebeu que aquela exclamação de alegria não combinava com a
narrativa de uma desgraça alheia e soltou um suspiro de condolências.
- Olhe, moço, condolências não enchem o bolso. Por aqui mora um capitão,
sabe-se lá de onde ele saiu, e fica insistindo que é meu parente. Beija-me a mão, o
safado. Deve ter perdido tudo no jogo ou com mulheres! Vem me apresentar suas
condolências, mas sei que ele está e a fim do meu dinheiro. Para o diabo com as
condolências!
- Mas, meu senhor, minhas condolências são de espécie totalmente diferente e
para provar, eu me coloco à disposição para pagar os impostos dos camponeses
mortos em tão tristes circunstâncias...
Isso deixou Pliuchkin totalmente sem ação:
- Diga-me, paizinho, o senhor serviu no serviço militar?
Tchitchicov, que já tinha percebido o ódio do outro pelos militares, negou:
- Não, paizinho. Servi no serviço civil.
- No civil? Mas diga, paizinho, como vai fazer isso? Terá um bom prejuízo! –
disse o proprietário, mastigando os lábios.
- Meu interesse é apenas ajudar. Deixe por minha conta e eu arcarei com todos
os prejuízos.
O proprietário não podia se conter de tanta alegria:
- Ai, meu benfeitor! Que consolo o senhor trouxe para este pobre velho! Ah, que
alegria, meu Deus!
Mas essa alegria não durou muito. Logo ele assumiu a expressão enfezada e
preocupada de antes e até assoou o nariz num lenço:
- Mas me diga, como o senhor pretende pagar esse imposto? O senhor
pretende me pagar ou recolher direto aos cofres públicos?
- Vamos fazer o seguinte: iremos lavrar um contrato de compra e venda e
fazemos de conta de que o senhor me vendeu essas almas...
- Mas esses contratos representam certas despesas, um pouco altas para
alguém tão pobre quanto eu...
“Mas o homem é muito sovina!”, pensou Tchitchicov.
- Não se preocupe. Eu arcarei com todas as despesas.
Ouvindo que o outro pretendia arcar até com as despesas do contrato, o
proprietário raciocinou que se tratava de um completo idiota: “Deve ser militar e deve
perder dinheiro com atrizes e com o jogo!”, pensou. Mas mesmo assim, estava feliz
demais para se importar com isso.
- Prochka! – gritou o velho.
Logo um rapaz de uns treze anos apareceu na sala. Usava uma bota tão grande
que o pé parecia querer fugir dele a cada passo. A razão disso é que Pliuchkin tinha um
único par de botas para todos os seus mujiques, que andavam sempre descalços. Se
precisavam entrar na casa, calçavam o tal sapato.
- Eh, pequeno! Escuta aqui: prepara um chá para nosso visitante. E leva essa
chave e entrega para a cozinheira. Diga para ela que na despensa tem um bolo que
Aleksandra me trouxe quando esteve aqui e que ela transformou em torrada. Diz para
ela que é para servir com o chá.
O menino girou nos calcanhares e já ia saindo quando o patrão o chamou:
- Eh, onde vai, bobalhão? Pode ser que a torrada esteja meio estragada por
cima. Então ela deverá raspar por cima, mas com cuidado para não desperdiçar as
migalhas, essas é para ela recolher num prato e dar para as galinhas. Mas olha lá,
hein! Não me vai entrar na despensa. Se fizer isso, prometo que lhe dou uma surra!
Olha que vou ficar te espiando da janela!
E, voltando-se para Tchitchicov:
- Não se pode confiar neles para nada. É só virar as costas e eles inventam de roubar
a minha comida. Cambada de ladrões!
O menino despachou-se e Pliuchkin, enquanto o observava da janela, teve alguns
pensamentos sobre o visitante: “Essa história toda está muito estranha. Esse homem
me aparece aqui dizendo que vai pagar os impostos das almas mortas... quem sabe
não é tudo mentira e ele só veio aqui para filar um chá com torradas?”. Mas Tchitchicov
se predispôs a lavrar o contrato ali mesmo, pedindo apenas uma relação das almas, e
isso tranqüilizou o velho. Ficou tão comovido que resolveu conceder mais um regalo ao
visitante:
- Acho que tenho um licorzinho aqui em algum lugar. – disse ele, remexendo num
armário. Isso se já não beberam, esse bando de ladrões! É ainda do tempo da minha
finada esposa. Foi ela que fez. A despenseira o trancou sem tampar e ficou cheio de
insetos e sujeira, mas eu tirei o lixo todo com uma colher. Ah, aqui está!
E lá veio ele com uma garrafa tão suja de poeira que parecia um manto de lã.
- Não, obrigado, senhor. Eu já comi e já bebi. – esquivou-se Tchitchicov.
O rosto do proprietário iluminou-se de alegria.
- Mas que homem de fino trato! Que maravilha de pessoa! Comeu e bebeu antes de
me visitar! É assim que se reconhece um homem elegante! Não é como os gatunos que
só aparecem aqui para filar uma bóia. Mas o senhor queria uma relação dos meus
mujiques mortos! Parece que eu estava pressentindo, pois eu já os tinha anotado todos
num papel, para a época do recenseamento.
Remexendo na mesa, o proprietário levantou uma nuvem de poeira tão densa que fez o
outro espirrar, mas finalmente apareceu com um papel todo cheio de anotações em
letra pequena para economizar espaço. Tchitchicov olhou o papel e ficou espantado:
havia ali cento e vinte nomes! Ficou tão feliz que sorriu diante de tal fartura de mortos.
- Está ótimo, senhor. Mas vou precisar que o senhor me acompanhe à cidade para
lavrar o contrato.
- Preciso ir à cidade? Mas como assim? Se eu sair daqui, os camponeses me roubam
tudo que tenho.
- Mas o senhor não tem nenhum conhecido na cidade que possa representá-lo?
- Um conhecido? – disse Pliuchkin, tentando se lembrar. Não sei, todos os conhecidos
ou morreram ou ficaram desconhecidos. Espere. O presidente foi meu colega de
infância. Eu poderia escrever um recado para ele.
- Perfeito!
- Mas agora preciso de um papel em branco para escrever a carta. Tinha certeza de
ter deixado um aqui sobre a mesa, mas devem ter me roubado. Mavra, oh Mavra!
Aparece aqui.
Logo surgiu uma mulher com um pratinho no qual se via uma coisa verde de bolor, a já
conhecida torrada.
- Mavra, onde foi que você colocou aquele papelzinho que eu deixei aqui?
- Que papel, meu senhor?
- Não se faça de tonta! Sei que você roubou o papel!
- Mas para que eu iria roubar um papel, se não sei nem ler nem escrever?
- Gatuna! Você deve ter roubado para dar ao sacristão. Ele vive sempre rabiscando
alguma coisa! Ah, você vai ver no dia do juízo final! Os demônios vão te espetar por
toda a eternidade por ter roubado o teu patrão!
- Mas por que eles iriam me espetar, se eu não roubei nada?!
- Roubou sim, espera só pelo castigo divino!
- Eu não roubei nada. Olha ali, ali está o papel que o senhor está procurando. O senhor
vive me acusando de coisas que eu não fiz.
De fato, o papelucho estava ali, bem debaixo do nariz do sovina.
- Eh, mas não se pode dizer nada e você já me responde com quatro pedras na mão.
Olha traz fogo para eu lacrar essa carta. Mas não traz vela não, que vela se consome
e é uma gastança só. Traz aqui um graveto que faz o mesmo efeito e é mais barato.
Enquanto Mavra se retirava, o velho se sentou e começou a escrever a carta. Mas
antes disso, ficou um tempo pensando se dava para cortar o papel em dois. Finalmente
chegou à conclusão de que isso seria impossível e começou a escrever.
- O senhor por acaso não conhece alguém que teria necessidade de almas fugidas?
- O senhor tem também almas fugidas?
- Pois é, tenho algumas...
- Mas seriam muitas?
- Umas setenta...
- Não!
- Sim. Não passa um único mês que não fuja alguém. É que são uns comilões. Por falta
do que fazer, ficam por aí, comendo, quando eu mesmo não tenho nada para comer!
Cada alma vale uns quatrocentos rublos. Se ele me comprar todas a recuperar uma
centena, já sai no lucro.
“Ah, mas o velho já está pensando no lucro!”, pensou Tchitchicov.
- Ah, mas isso dá muito trabalho. Seria necessário recorrer aos tribunais e dos
tribunais o melhor é ficar longe. Eu até estaria disposto a ajudá-lo, mas não passo
pagar quase nada, só uma insignificância...
- E quanto é que o senhor me pagaria por elas?
- Vejamos, acho que uns vinte e cinco copeques por alma...
- Mas não seria possível, assim, uns quarenta copeques?
- Ah, mas isso estaria ótimo! Eu lhe daria tranqüilamente quinhentos rublos por
cada almas, pois sinto que o senhor é um velho de caráter que sofre por causa de sua
bondade...
- Ah, isso mesmo... tudo culpa da minha bondade...
- Então, isso mesmo. Logo percebi o seu caráter e estaria disposto a pagar
quinhentos rublos, mas a verdade é que não tenho recursos para tanto.
- Ah, entendo, paizinho. Mas o senhor não poderia acrescentar ao menos cinco
copeques em cada alma?
- Está bem. Dois copeques e mais nada. Mas me diga: quantas almas seriam
mesmo? O senhor falou em setenta...
- Na verdade são setenta e oito...
Tchitchicov sorriu tanto que parecia que os cantos dos lábios iam se juntar às
orelhas.
- Vejamos. Setenta e oito,a trinta copeques, dá... deixa ver... vinte e quatro
rublos e noventa e seis copeques. – calculou nosso herói, que era forte em aritmética.
Aqui está. Um recibo por favor...
O outro fez cara triste ao perceber que iria gastar mais uma folha de papel, mas
consolou-se e acabou achando um velho papel, já bem amassado e sujo, onde
escreveu o recibo. O sovina guardou o dinheiro numa gaveta protegida por chave.
- Então o senhor está preparando para ir embora?
Nisso Tchitchicov percebeu que nada mais o prendia ali e se levantou.
- O senhor não vai tomar o chá?
- Não, obrigado.
- Nem vai comer a torrada?
- Não, estou sem fome.
- É uma pena. Mandei fazer o chá, um desperdício. Eu não gosto de chá. O
preço do açúcar está pela hora da morte... Oh, Mavra! Guarda o chá para quando vier
outra visita e recolhe essa torrada que ainda serve!
Dizendo isso, ele foi enxotando Tchitchicov. Na verdade, acompanhou-o até o
portão, que depois mandou fechar. Então foi para a cozinha a pretexto de saber se os
empregados estavam bem alimentados e destratou a todos, sem exceção, chamandoos de larápios e ladrões.
Voltando para seu aposento, pensou numa maneira de recompensar seu
benfeitor: “É um bom homem. Merece um presente. Já sei! Vou presenteá-lo com meu
relógio de bolso. Está certo de que está quebrado, mas sempre se pode consertar. Ele
vai precisar de um relógio para impressionar a noiva. Ou talvez não. Talvez seja melhor
deixar o relógio para ele em testamento, para que se lembre de mim depois da morte”.
Já nosso herói não estava nem um pouco preocupado com a herança que
receberia. Estava feliz de verdade e ria à solta. Não eram só as almas mortas, mas
também as fugidas! Mais de duzentas! Um verdadeiro presente! A felicidade era tanta
que ele até arriscava uns assovios.
“Mas hora, vejam, o patrão está alegre!”, pensou Selifan, sentindo-se aliviado
por ele já ter esquecido o que acontecera com a carruagem.
Já era início da noite quando chegaram na cidade. Petruchka esperava-o na
porta da hospedaria e, prestimoso, ajudou-o a descer. Outro que apareceu por ali foi o
criado, com uma vela numa mão e uma guardanapo na outra.
- O patrão fez um longo passeio... – disse o criado.
- É verdade. – respondeu Tchitchicov. E por aqui, alguma novidade?
- Nada de novo. Só um tenente militar que apareceu por aqui.
- Interessante. – comentou nosso herói, fazendo uma anotação mental.
Tchitchicov pediu um jantar leve, composto de leitão e foi deitar. Dormiu
profundamente, como só o fazem os felizardos que não conhecem as hemorróidas, as
pulgas ou os dotes intelectuais excessivos.
Capítulo 7
Tchitchicov acordou, espreguiçou-se e percebeu que estava descansado depois
da maratona dos dias anteriores. De repente lembrou-se de que era dono de quase
quatrocentas almas e pulou da cama, de alegria. Estava tão entretido com a idéia que
nem mesmo olhou no espelho – e Tchitchicov adorava olhar no espelho, especialmente
para admirar o próprio queixo. Mas naquele momento ele não estava nem um pouco
interessado no queixo. A felicidade era tanta que ele deu um pulinho no ar, batendo os
calcanhares.
Sem demora, foi cuidar da papelada. Resolveu ele mesmo escrever os
contratos, para não ter que pagar aos escrivães. Em pouco tempo estava tudo pronto.
Depois olhou para os papeis e para os nome dos mujiques, que antes bebiam, comiam,
trabalhavam, enganavam seus senhores, ou talvez fossem apenas bons mujiques. Era
estranho pensar que todos eles estavam mortos. Depois olhou para a lista de
camponeses fugidos de Plichkin. Onde estariam eles? Estariam ainda vivos? Estariam
presos na cadeia, ou simplesmente haviam aderido a novos senhores?
Tchitchicov ficou longo tempo admirando as lista e devaneando sobre aqueles
camponeses, mortos e fugidos, mas enfim olhou ao relógio: “Nossa, já é meiio-dia!”.
Dizendo essas palavras, ele vestiu um terno, borrifou o rosto com água-decolônia, apanhou um gorro e, levando os papéis debaixo do braço, foi ao cartório. Ia
depressa não porque tivesse medo de chegar atrasado. É que queria se livrar logo
disso, dessa tarefa incômoda e burocrática e se instalar comodamente na condição de
proprietário rural, dono de quase quatrocentas almas.
No meio do caminho encontrou Manilov. Os dois se abraçaram e se beijaram
com tanta força que ficaram o resto do dia com os dentes doloridos. Manilov segurou a
mão do amigo por um quarto de hora, até que esquentassem e começassem a arder e
derramou elogios que, por questão de economia, nem se pode descrever aqui.
Finalmente, retirou do sobretudo um canudo amarrado e entregou a Tchitchicov.
- O que é isso?
- Os mujiques!
- Nossa, como está bem feita essa lista. Que letra!
- Foi a minha mulherzinha. – esclareceu o outro.
- Assim o senhor me deixa encabulado. Não queria lhe dar tanto trabalho...
- Nada é trabalho quando se trata de um amigo... Para onde está indo?
- Para o cartório...
- Então vamos juntos!
E lá se foram os dois, com Manilov sustentando Tchitchicov a cada buraco no
caminho, quase levantando-o do chão.
- Eu não me perdoaria se meu amigo se machucasse. – explicou.
Finalmente chegaram ao cartório, um grande prédio pintado de branco,
certamente para simbolizar a pureza de todos os funcionários que lá trabalhavam.
Os dois subiram as escadas em desabalada carreira. Tchitchicov corria porque
procurava fugir do apoio de Manilov e Manilov corria para não deixar desamparado o
amigo. O local era bem sujo. Parecia que se caía um papelzinho no chão, ninguém se
lembrava de apanhá-lo, se fosse um pedaço de comida ou um fio de tecido muito
menos e a vassoura provavelmente nunca fora usada.
Seria correto descrever as repartições pelas quais passaram, mas o autor
lamenta não ser possível em decorrência de um certo temor de repartições públicas. É
que mesmo quando passava pelas melhores e mais elegantes, fazia-o com passo
apertado e os olhos fixos no chão, de modo que nem saberia explicar como eram
essas repartições.
Os dois amigos dirigiram-se a uma das mesas, onde havia dois funcionários e
perguntaram:
- Os senhores poderiam nos informar onde fica a seção de contratos?
- O senhor poderia nos informar o assunto? – perguntaram, por pura
curiosidade, já que essa informação não faria diferença nenhuma para eles.
- Pretendo entrar com uma petição.
- O senhor, por gentileza, comprou o que?
- Eu gostaria, por favor, de saber se é nessa mesa que registro os contratos.
- Sinto muito. O senhor deve nos informar o que comprou e quanto pagou. Sem
isso, nada feito.
- Escutem aqui, eu sei muito bem como funcionam esses assuntos de compra e
venda e sei que tudo se resolve em um só lugar, de modo que, por favor, me indiquem
onde posso registrar esses contratos.
Os dois ficaram em silêncio, mas um deles fez um sinal para o canto da sala,
onde um homem velho remexia em um monte de papéis.
- Por favor. – disse Tchitchicov. Eu gostaria de registrar uns contratos.
Sem tirar os olhos dos papéis, o velho respondeu:
- Aqui não é possível.
- O senhor poderia me dizer por quê?
- Por que os contratos se registram na seção de Expedição de Contratos.
- E onde fica essa seção?
- Com Ivan Antonovitch. – disse o velho apontando para o outro canto da sala.
Ivan Antonovitch, que acompanhara o diálogo, mergulhou no papel assim que
percebeu que os outros vinham em sua direção.
- Com licença. – disse nosso herói. É aqui que se trata de contratos?
O outro não respondeu. Pelo contrário, mergulhou mais ainda na papelada, de
modo que Tchitchicov teve que repetir a pergunta.
- É aqui sim. – disse por fim o funcionário público, olhando-os de soslaio e
voltando a escrever.
- Por favor. Eu comprei alguns camponeses de proprietários dessa região e
gostaria de registrar os contratos.
O outro fez que estava trabalhando e levou longo tempo para responder.
- Diga, senhor... os vendedores estão presentes?
- Alguns estão. Outros me deram procuração.
- O senhor trouxe o requerimento?
- Sim, eu trouxe o requerimento. Ouça, estou com um pouco de pressa e
gostaria de resolver isso o mais rápido possível. Quem sabe hoje mesmo?
- Impossível. Os trâmites burocráticos são complicados... é necessário indagar,
investigar para saber se não há nenhum impedimento...
- Quanto ao aceleramento do processo, o presidente é muito meu amigo...
- Mas o presidente não é o único.
- Não se preocupe que os outros não serão esquecidos...
- Então vá falar com Ivan Griegorievitch. Ele que dê as ordens necessárias. Da
nossa parte, não há razão para se preocupar. – disse o funcionário, percebendo que
também teria o seu quinhão na propina.
Tchitchicov colocou distraidamente uma nota sobre a mesa e o outro cobriu-a
com um livro. Nosso herói fez menção de mostrá-la, mas o outro deixou claro que não
que não era preciso mostrar nada.
- Este funcionário vai acompanhá-los à sala de audiência. – disse ele, chamando
um dos oficiais.
A figura levou-os até a sala do presidente, mas parecia sentir tanta veneração
por esse recinto que nem colocou os pés lá dentro, dando meia volta assim que se
deparou com a porta, mostrando as costas da roupa surrada.
O Presidente não estava só: diante dele estava Sobakevitch. Os dois se
levantaram e o Presidente recebeu Tchitchicov com os braços abertos. Os dois se
informaram sobre a saúde um do outro e ficou revelado que ambos sentiam dores na
cintura, o que foi atribuído a seu estado sedentário. O Presidente já fora informado da
compra feita por nosso herói e felicitou-o.
- E senhor, como vai de saúde? – perguntou Tchitchicov a Sobakevitch.
- Não tenho do que me queixar.
- Este senhor sempre foi famoso pela saúde, assim como o pai. – disse o
presidente.
- O meu pai era muito forte e saudável. Poderia enfrentar um urso com as mãos.
- O Senhor também poderia derrotar um urso. – afirmou o presidente.
- Não. O meu pai derrubaria um urso. Eu não. Já não existem mais homem como
os de antigamente... veja o meu caso... vivo uma vida... assim, assim...
- Mas do que o senhor se queixa? O que tem a sua vida? – perguntou o
presidente.
- Nada de bom. Julgue o senhor mesmo. Já passei dos quarenta anos e nunca
tive nem mesmo um resfriado. Nada! É possível viver assim?
Por incrível coincidência, o Presidente e Tchitchicov pensaram a mesma coisa:
“Mas vejam só do que esse homem está se queixando...!”.
Tchitchicov percebeu que era hora de mudar de assunto.
- Tenho aqui uma carta para o senhor.
- De quem? – indagou o Presidente. Ah, de Pliuchkin! Coitado! Era um homem
tão inteligente, tão rico... Agora vive por aí como um mendigo, arrastando-se pela
vida...
- É um cachorro! Matou de fome toda a gente dele! – afirmou Sobakevitch.
O presidente já estava lendo a carta enquanto eram feitas tão generosas
considerações.
- Pois não. Eu sirvo como procurador. Quando gostaria de registrar os
contratos?
- Hoje, se possível, pois pretendo deixar a cidade amanhã mesmo.
- Ah, não pense que vamos deixá-lo partir assim tão depressa. Prometo registrar
esses contratos ainda hoje, mas o senhor promete passar mais alguns dias em nossa
companhia.
O Presidente abriu a porta e todos os funcionários que antes estavam só
enrolando começaram uma atividade febril.
- Ivan Antonovitch está aí?
- Está. – responderam.
- Venha aqui!
Logo Ivan apareceu, inclinando-se respeitosamente.
- Ivan Antonovitch, faça o favor de pegar esses contratos e...
- Não se esqueça de que vamos precisar de testemunhas. – atalhou
Sobakevitch. Mande chamar aqui o Procurador. Ele é um desocupado, que não faz
nada e deve estar em casa a esta hora. Mande chamar também o Inspetor Médico. É
outro vagabundo. Mande chamar todos os outros desocupados!
- Bem lembrado. – disse o Presidente, e na mesma hora mandou chamá-los
todos.
- Ah, também gostaria de pedir que mandem chamar o filho do padre, que é
procurador em uma das compras que fiz. – lembrou Tchitchicov.
- Pois que seja. Vamos chamar todos. – decidiu o Presidente, e virando-se para
o funcionário: O senhor Tchitchicov é meu amigo e não precisará pagar nada.
O funcionário pareceu contrariado, mas saiu assim mesmo para cumprir a
ordem.
- Então o senhor fez mesmo a compra... – disse o Presidente, analisando os
contratos.
- Fiz a compra.
- Fez um bom negócio.
- Sem dúvida. Digam o que disserem, mas o homem não é um homem enquanto
não dá um passo firme em direção ao seu futuro. – e aqui seu rosto fez uma
expressão, como se dissesse: “Meu amigo, mas você mente que é uma beleza”.
Tchitchicov alarmou-se com isso, mas logo percebeu que os outros não tinham
percebido a traição de seu rosto. Sobakevitch nem se mexeu e Manilov balançava a
cabeça, encantado com a frase.
- Ah, mas por que o senhor não conta que espécie de aquisição fez? – sugeriu
Sobakevitch, e Tchitchicov sentiu um calafrio. Mas o outro continuou: Uma gente tão
boa a que vendi. Verdadeiro ouro puro! Vendi até o construtor de carruagens Mikheiev.
- Vendeu o Mikheiev? Mas ele não tinha morrido?
- Morreu? Não, foi o irmão dele que morreu. Ele ainda está vivo e forte,
construindo carruagens como não se vê nem mesmo em Moscou...
- É, realmente ele é um grande artesão. Até me espanta que o senhor o tenha
vendido.
- Não só ele, não só ele, vendi também outros ótimos homens.
- Mas, afinal, por que o senhor os vendeu?
Sobakevitch fez um gesto de desânimo:
- Ah, foi à toa. Deu vontade de vender e vendi. Agora não posso mais me
arrepender... já tenho cabelos brancos e ainda não criei juízo...
O Presidente voltou-se, então para Tchitchicov:
- Mas, se permite a indiscrição, como o senhor compra camponeses sem terra?
- É para colonização...
- Eu bem imaginei... mas para onde o senhor pretende levá-los?
- Para o distrito de Kherson.
- Dizem que as terras lá são excelentes. Mas o senhor tem terras em quantidade
suficiente para tantas almas?
- Suficientes. Com rio e lagoa.
- É um prodígio. – respondeu o Presidente. Mas Sobakevitch olhou de soslaio,
como quem diz: “Esse aí mente e nem fica vermelho!”.
Pouco a pouco foram chegando testemunhas e procuradores.
Tudo foi feito com muita presteza. Até a publicação no Relatório foi uma ninharia,
pois metade do valor foi lançada, sabe Deus como, na conta de outro solicitante.
- Agora, é comemorar! – decidiu o Presidente.
- Estou pronto. Seria até pecado não fazer saltar uma ou duas garrafas de
espumantes depois de tão bom negócio.
- Não, o senhor não entendeu. – disse o Presidente. Nós é que lhe oferecemos
uma recepção. É nossa obrigação e nosso dever. Vamos fazer o seguinte: vamos em
bloco à casa do chefe de polícia. Aquele homem tem um dom mágico. Basta que
pisque e sua mesa se enche de gostosuras!
Um convite desses, não há quem recuse. Comer na casa do chefe de polícia era
certeza de banquete, tanto que isso deu grande fome não só no comprador e nos
vendedores, como também nas testemunhas e saíram todos em direção à casa da
famosa autoridade.
No meio do caminho, Ivan Antonovitch abordou nosso herói:
- O senhor comprou mil rublos de camponeses e só meu deu uma notinha...
- Mas também, que espécie de camponeses! Um bando de vagabundos. Não
valem nem a metade do preço. – afirmou Tchitchicov, deixando claro que não liberaria
nem mais um centavo.
Nisso aproximou-se Sobakevitch:
- Quanto o senhor pagou a Pliuchkin por alma?
- E o senhor, por que incluiu na lista o pardal?
- Pardal?
- A camponesa, com o final do nome disfarçado em o...
Sobakevitch afastou-se e foi conversar com outros.
Assim chegaram em grupo à casa do chefe de polícia. Este realmente era um
mágico. Assim que ouviu o motivo da comemoração, chamou um ordenança e
sussurrou-lhe no ouvido algumas palavras. Foi o que bastou. Em pouco tempo o
ordenança estava de volta com vasta quantidade de comidas refinadas: esturjões,
salmões, caviar, arenques, filés de esturjão defumado, queijos diversos...
Esse chefe de polícia era uma espécie de benfeitor da cidade. Nas vendas,
sentia-se como se estivesse na despensa de sua casa. Ia lá e pegava o que queria.
Era até difícil dizer se ele fora feito para o cargo ou se o cargo é que fora feito para
ele. Cumpria tão bem os seus deveres que conseguia o dobro do lucro dos seus
antecessores e ainda assim conseguia a amizade de todos.
Os negociantes, então, queriam-lhe muito bem, pois não era arrogante. Aceitava
ser padrinho de seus filhos e, quando ia tomar alguma coisa de alguém, fazia-o de
modo muito fino e educado.
Conversava com os negociantes, tomava chá com eles, batia-lhes nos ombros e
levava embora metade das mercadorias. Se sabia que o rebento estava doente,
receitava um remédio. Em suma, um amigão!
Era bem quisto por todos e até se dizia na cidade que ele “leva seu quinhão,
mas não te deixa na mão”.
Percebendo que a comida já estava servida, o chefe de polícia chamou os
convidados.
Tomaram todos vodka e caíram sobre a comida, cada um de acordo com suas
preferências: um atacava o salmão, outro o caviar...
Sobakevitch, sem prestar atenção a essas sutilizas, estacionou ao lado de um
enorme esturjão de modo que, quinze minutos depois, quando o chefe de polícia
perguntou:
- O que acham, senhores, dessa maravilha da natureza?
Da maravilha da natureza tinha restado só o rabo. E Sobakevitch já estava em
outro canto, cutucando com um garfo uns peixinhos secos.
Na casa do chefe de polícia, aparentemente, não se economizava vinho e ele foi
o primeiro a fazer um brinde à saúde do novo proprietário rural. Depois outro à
prosperidade da nova fazenda. Outro à beleza da futura esposa, o que tirou um sorriso
dos lábios do herói.
Nisso todos insistiram que ele deveria passar mais tempo ali e até, quem sabe,
arranjar uma esposa na cidade.
O presidente, que era homem muito cordial quando bebia, abraçava Tchitchicov
dizendo:
- Minha alma querida, meu coraçãozinho!
Tchitchicov já se imaginava um proprietário e falava das colheitas triplas, das
melhorias, da boa saúde das almas. Até recitou um poema para Sobakevitch, ao que o
outro só piscava os olhos pesados por conta do esturjão.
Nisso, nosso herói percebeu que já estava se soltando demais. Pediu uma
carruagem e o procurador lhe emprestou uma. Chegando na hospedaria, ainda ficou
por um bom tempo murmurando toda sorte de bobagens: uma noiva loira de covinhas,
uma aldeia em Kherson... até chegou a falar com Selifan, ordenando que ele reunisse
todos os camponeses comprados, pois seria feita uma chamada nominal.
Capítulo 8
Na cidade, só o que se comentava era a compra de Tchitchicov. De repente,
todos, do maior ao menor nível hierárquico, tornaram-se especialistas em
transferências de almas para colonização.
- Todos sabem que as terras do sul são férteis, mas como os camponeses vão
se virar sem água? – dizia um. Todos sabem que naquela região não existe um rio
sequer...
- Água não é o problema. O problema é a transferência. O mujique é apegado à
terra. Se o mudarem, ele foge. Não vai sobrar um único para contar história...
- Não, não concordo. – objetava outro. Não é verdade que os camponeses vão
fugir. O homem russo se adapta a tudo!
- Mas você está falando de bons camponeses. Esses devem ser de qualidade
inferior, ou não seriam vendidos! Devem ser todos ladrões e beberrões da pior espécie.
- Sim, concordo que os camponeses comprados por Tchitchicov são beberrões
e ladrões da pior espécie, mas é justamente aí que está a moral. Quando se mudarem
para novas terras, podem se transformar em ótimos súditos!
Alguns começaram a se preocupar com a possibilidade de um motim entre os
camponeses durante a transferência, mas o capitão de Polícia Distrital assegurou que
para evitar isso bastava o poder do Capitão de Polícia e que nem precisaria o Capitão
estar lá. Bastava que ele mandasse um botão de seu uniforme e todos os camponeses
morreriam de medo e correriam até o local de sua nova residência.
Muitos deram sua opinião sobre como extirpar o espírito de rebelião que tomara
conta dos camponeses de Tchitchicov. Uns diziam que ele deveria manter uma
severidade militar, outros que deveria ser um pai para seus camponeses e que poderia
até introduzir entre eles o ensino.
Assim discutia a cidade e alguns chegaram até a oferecer a Tchitchicov uma
escolta para comboiar aos camponeses, ao que nosso herói respondeu que não havia a
menor necessidade, que ele sabia que os camponeses eram muito calmos e que não
havia a menor chance de rebelião.
Mas tudo isso teve seu lado bom. Logo Tchitchicov soube que corria o boato de
que ele era milionário e mulheres que antes nem reparavam nele começaram a
observá-lo. Em muitos salões dizia-se que, embora ele não fosse um homem tão
bonito, era bem simpático, só faltando se tornar um pouquinho mais gordo.
Os trajes femininos enriqueceram-se de toda sorte de adornos. Os comerciantes
da cidade descobriram felizes que alguns vestidos que tinham trazido da feira e que não
se tinham vendido por serem muito caros, de repente encontraram saída.
Na hora da missa, uma das senhoras veio com uma roda tão ampla debaixo do
vestido que um oficial de polícia teve que dar ordem para que o povo se afastasse para
não amarrotar o tecido fino.
Um dia, voltando para seu quarto, encontrou sobre a escrivaninha uma carta sem
remetente. Ninguém sabia ao certo como tinha chegado ali.
A carta começava com “Não, tenho necessidade de escrever!” e seguia dizendo
que havia uma comunhão secreta entre determinadas almas e continuava falando belas
frase de grande filosofia, terminando com a informação de que a missivista estaria no
baile, onde ele poderia conhecê-la.
A imaginação de Tchitchicov voou. O anonimato tornava a coisa ainda mais
estimulante e interessante e ele pensou consigo: “Seria muito curioso descobrir quem
escreveu isso!”.
Tchitchicov aconchegou a carta junto ao peito e depois guardou-a no bauzinho,
ao lado de um convite de casamento e um cartaz de teatro.
Dali a pouco apareceu um criado trazendo-lhe um convite para o baile na casa
do governador.
A partir daí nosso herói esqueceu tudo e concentrou-se totalmente em prepararse para o referido baile. Dedicou uma hora inteira a examinar o rosto no espelho. Fez
um monte de caretas, testando para ver se elas o tornavam mais bonito. O que um
homem não faz quando sabe que está sozinho... fez até um carinho no próprio queixo,
dizendo para si: “Eh queixo bonito! Sim senhor!”.
Depois vestiu a roupa com muito cuidado e zelo.
Quando chegou ao baile, foi uma comoção geral:
- Olhem, é Pavel Ivanovitch!
- Meu amigo, Pavel Ivanovitch!
- Dê aqui um abraço, Pavel Ivanovitch!
- Licença, por favor, preciso beijar meu amigo Pavel Ivanovitch!
Todos sorriam como sorriem os funcionários públicos quando recebem a visita
de um inspetor e percebem que ele não levou tudo a mal e até se permitiu um gracejo,
e esse sorriso vai se espalhando até mesmo para aqueles que não ouviram a pilhéria e
até o guarda lá na frente, que minutos antes ameaçava os passantes com o punho
cerrado, até ele sorri, embora esse sorriso se pareça mais com a careta que fazemos
quando cheiramos um pouco de rapé e estamos prontos para espirrar.
Nosso herói respondia a toda essa atenção com muitos cumprimentos e as
senhoras logo o cercaram de atenções.
Tchitchicov olhava-as e pensava consigo: quem será a autora da carta? Estava
nisso quando os casais começaram a dançar, atropelando nosso herói.
“Lá vai ela... a Rússia está dançando!”, pensou nosso herói. E quando as damas
voltavam a sentar, ele voltou a procurar entre elas a autora da carta. Mas como
decifrar-lhes os rostos, os olhares, que pareciam todos esconder algo? Todas
pareciam exalar doces esperanças, de modo que Tchitchicov acabou desistindo:
“Impossível adivinhar”.
Mas nem por isso ele deixou de lançar cortesias para todas as damas. Ia entre
uma e outra com passinhos curtos, saltitantes. As mulheres gostaram dessa atenção e
até começaram a ver nele uma espécie de beleza marcial. Houve até um briga discreta
entre elas: ao perceberem que Tchitchicov costumava ficar próximo da porta, elas
disputavam esse lugar como um general que disputa uma trincheira com o inimigo.
Assim que conseguiam um lugar ao lado dele, elas o enchiam de insinuações e
alegorias muito finas, que deixavam nosso herói desconcertado.
Então aconteceu algo que revoltou todas as senhoras. Tchitchicov estava
envolvido pelas damas quando ouviu uma voz atrás de si:
- Mas então, senhor Pavel Ivanovitch! O senhor se esquece dos amigos e nos
despreza completamente.
Tchitchicov virou-se, pronto a disparar mais uma daquelas planejadas
amabilidades quando seus olhos se depararam com uma jovenzinha de dezesseis anos,
aquela mesma que ele vira quando do acidente com as duas carruagens.
Nosso herói ficou totalmente desconcertado e balbuciou algumas palavras que
não convém descrever aqui, pois não correspondem ao que se espera de um herói
romântico.
- O senhor ainda não conhece minha filha?
Tchitchicov respondeu que já tivera oportunidade de conhecê-la por obra do
acaso, mas não conseguiu dizer mais nada. Só balbuciou alguma coisa sem sentido.
A governadora acabou afastando-se com a filha para outro lado do salão, para
apresentá-la aos convidados. Apesar das diversas mulheres à sua volta, lançando-lhe
perfumes e insinuações, nosso herói estava perdido em seus pensamentos e parecia
um homem que se espanta: “Devo ter esquecido meu lenço!”, mas o lenço está no
bolso.
Ele estava era doido para afastar-se para o outro lado da sala, para o rastro da
jovem senhorita, mas as senhoras estavam dispostas a pregá-lo ali e usavam de todas
as armas. É necessário saber que algumas damas, não todas, mas algumas, quando
percebem que têm uma parte do corpo bonita, a usam para chamar atenção. E logo
todos começarão a falar: “Que belo nariz grego ela tem!” ou “Que lindos ombros tem
aquela mulher!”.
Assim, cada senhora fazia questão de mostrar o que tinha de melhor, mas
Tchitchicov nem percebia os esforços. Sua atenção estava toda do outro lado da sala
e, quando viu oportunidade, avançou a toda, derrubando tudo e tropeçando em todos.
O chefe dos Correios, ao ser abalroado lançou-lhe um olhar de fina ironia, mas
Tchitchicov nem reparou a fina ironia. Seus olhos eram todos para a loirinha, que a
essa hora colocava uma longa luva. Os pares já estava atracando a mazurca e
Tchitchicov passou raspando pela mazurca e foi postar-se ao lado da filha do
Governador. Mas aproximou-se muito sem jeito, e, ao contrário de antes, mal sabia
onde colocar as mãos.
Não se sabe ao certo que tipo de sentimento assaltava nosso herói e é até
possível que ele, não sendo nem gordo nem magro, sentisse até mesmo amor. O fato
é que algo estava se passando dentro dele.
Em toda a multidão, ele só conseguia ver a linda loirinha: seu rostinho oval, seu
talhe delicado, seu vestidinho branco, singelo, que a envolvia com beleza e graça.
Como se vê, até um Tchitchicov pode se tornar um poeta por alguns minutos.
Estando ao lado da moça, ele finalmente tomou coragem e começou a falar.
Mas é preciso dizer que certas pessoas são muito boas em conversar com
conselheiros de Estado e agradam a todos com suas observações sobre a
grandiosidade do Estado Russo, mas não conseguem esse mesmo efeito positivo nas
donzelas, de modo que logo a loirinha estava bocejando.
O comportamento de nosso herói, se não causou entusiasmo na moçoila, por
outro lado desagradou profundamente as senhoras da cidade. Todas elas fizeram o
possível para chamar sua atenção, sem resultados... e Tchitchicov viria a se
arrepender penosamente disso.
Mas uma surpresa desagradável estava à espera de nosso herói. Enquanto ele
fazia a moça bocejar, entrou pela porta Nozdriov. Surgiu alegre, de braços dados com
o procurador e parecia que ele já vinha carregando o homem assim há um bom tempo,
pois o procurador olhava para todos os lados, como que procurando uma forma de se
livrar de tão incômodo passeio.
Quando viu Nozdriov, nosso herói tratou de fugir para um canto escondido, mas
nisso foi interceptado pelo Governador, que pedia que ele fosse juiz em uma discussão
sobre a durabilidade ou não do amor feminino.
Nozdriov o viu e foi em sua direção a passos largos:
- Ah, aí está o grande proprietário rural de Kherson! E então, comprou muitos
defuntos?
E, para o Governador:
- O senhor não sabe excelência, mas a verdade é que este homem faz negócios
com almas mortas! Almas mortas!
E essa última parte foi dita com um grito que chamou atenção de todo o salão,
de modo que Tchitchicov encolheu-se, meio que procurando um buraco para se
enterrar.
- Pavel Ivanovitch, você é um porcaria! Proprietário de almas mortas! Almas
mortas! Juro que se pudesse eu o enforcaria na primeira árvore. Pilantra! Cachorro!
Senhor Governador, o senhor pode acreditar que eu ri muito quando ele disse que ele
queria comprar minhas almas mortas! Então chego na cidade e descubro que ele
comprou três milhões de rublos em camponeses para transferência para colonização.
Que colonização o quê! São todas almas mortas! Tchitchicov, você é um pilantra de
marca maior. Se eu tivesse uma corda, juro que te enforcava! Pilantra! Comprador de
almas mortas. Ah, meu amigo, não fuja, deixe que eu te dê um abraço e um beijo. Meu
amigo do peito, meu querido amigo! Não fuja, deixe que eu lhe dê um selinho! Meu
grande amigo!
Nosso herói deu um empurrão tão grande em Nozdriov que ele foi se estatelar
no chão e ficou lá balbuciando palavras sobre o quanto amava Tchitchicov, mas
ninguém mais lhe dava atenção. Tinham todos voltado a conversar ou dançar, mas sua
palavras tinham ecoado na mente de todos e muitos começaram a se perguntar se não
havia algo de verdade na fala do bêbado.
Esse incidente deixou nosso herói profundamente perturbado e ele logo arranjou
uma desculpa para voltar para a hospedaria, mas não dormiu durante a noite toda.
Ficou acordado pensando nas palavras de Nozdriov e na repercussão que ela teria na
cidade.
Mas, enquanto Tchitchicov estava em seu quarto, remoendo o acontecido, uma
carruagem velha chegava à cidade.
Dentro dele vinha a proprietária rural e secretária ministerial Korobotchka. A
velhinha ficara tão preocupada com a possibilidade de ter sido enganada por
Tchitchicov quanto ao preço das almas mortas que resolvera ir pessoalmente à cidade
para verificar qual era o preço corrente desse tipo de mercadoria.
A chegada dessa proprietária teve como conseqüência uma conversa secreta
entre duas senhoras respeitáveis na cidade... mas é melhor deixar essa conversa para
o próximo capítulo, pois este já está ficando grande...
Capítulo 9
Logo cedo, antes do horário normalmente convencionado para visitas, surgiu por
uma porta pintada de laranja uma senhora esvoaçante e elegantíssima.
A senhora trazia uma grande novidade, que queria compartilhar com amiga e por
isso não poderia esperar o horário apropriado para visitas.
Sinto-me em séria dificuldade para descrever essas duas senhoras que agora
conversavam. Inventar um nome é difícil, pois nosso país é muito grande e em algum
canto se encontrará alguém com esse nome, que logo fará disso um caso de vida ou
morte e esbravejará dizendo que o autor foi espioná-lo, descobrir o que veste e o que
come. Colocar no nome verdadeiro é pior ainda. Entre nós os portadores de títulos
estão tão cheios de si que qualquer coisa que apareça em letra impressa lhes parece
ofensa digna de um processo. Basta que eu diga que na cidade tal existe um homem
tolo e já me aparecem complicações. Alguém se levanta e diz: “Acontece que eu
também sou homem, e, portanto, o autor deve estar dizendo que também sou tolo!”.
Assim, para evitar dores de cabeça desse tipo, chamaremos a senhora que
recebia a visitante simplesmente como uma senhora agradável em todos os sentidos.
Um título, aliás, muito merecido, pois era realmente muito agradável, mas por trás
dessa amabilidade havia muita malícia e cada uma de suas palavras amigáveis
escondia um veneno que faria estrebuchar uma cobra.
A outra senhora, não sendo tão agradável em tantos sentidos, será chamada
por nós simplesmente de agradável e o leitor pode se contentar com isso.
Assim que a senhora agradável em todos os sentidos soube da chegada da
senhora agradável, correu ao seu encontro. As duas pegaram-se pelas mãos,
beijaram-se os rostos, deram alguns gritinhos.
- Fiquei muito curiosa em saber quem me visitava a essa hora e quando a
Paracha disse: “É a vice-governadora!”, eu pensei: mas que cacete, lá vou eu ter que
agüentar aquela jararaca, mas felizmente é você... mas, oh! Que algodãozinho tão
alegre!
- Oh, o meu vestido? Ficou lindo, não ficou? No entanto, Prascóvia Fiodorovna
disse que era melhor se o xadrez fosse mais miúdo e as pintinhas azuis ao invés de
marrons. Mas mandaram uma fazenda para a irmã dela, e você nem imagina, amiga.
Ela fez um vestido lindo com muito babados.
- Mas, amiga, o que é isso, babados?
- Por que, amiga?
- Não se usam mais babados, queridas. Agora se usam festões. Festõezinhos...
- Que coisa feia. Não fica bem, Sofia Ivanovna, usar festões...
- Mas agora é só o que se usa!
- Que absurdo! Eu jamais usaria algo assim. Uma vergonha! – declarou a
senhora simplesmente agradável.
- Eu digo o mesmo. Uma vergonha. Pedi um molde à minha irmã, só para rir um
pouco...
- Mas como, você tem um molde? Me empresta?
- Mas eu já prometi a um amiga...
A outra fez-se de emburrada:
- Então não sou sua amiga, não é? Você consegue um molde e dá prioridade às
outras!
Nisso a senhora agradável em todos os sentidos viu-se apertada e saiu-se com
uma pergunta:
- Mas, afinal, amiga, como vai o nosso cativante encantador?
A outra bateu na testa:
- Mas olhe só que abobalhada! Já ia me esquecendo! A senhora sabe, Ana
Grigorievna, por que vim aqui?
Nesse ponto a outra, para mostrar-lhe amizade, interrompeu-a:
- Por mim, podem elogiá-lo como quiserem. Para mim ele não vale nada...
- Mas, por favor, ouça...
- Disseram por aí que ele é bonito, mas quando o vi pessoalmente, que nariz...
- Mas, por favor, deixe-me contar. Precisa saber a história que está circulando
respeito desse galanteador...
- Que história? Vamos, conta, amiga...
- Pois bem, hoje cedo veio à minha casa a mulher do padre contar uma história.
A senhora agradável em todos os sentidos soltou um “Oh” de espanto:
- Não acredito, ele fez a corte à mulher do padre?
- Se fosse isso, seria pouco. Ouça, a mulher do padre recebeu a visita de uma
proprietária rural, a senhora Korobotchka e ela contou um verdadeiro romance de
terror. Disse que no meio de uma noite de tempestade, na escuridão, estava dormindo,
e ouvi-se um barulho terrível no portão. Havia também gritos de apavorar: “Abram,
abram ou arrombamos tudo!”. Que me diz disso?
- Mas por que Korobotchka? Ela é jovem e bela por acaso?
- Não, é uma velhota muito feia.
- Ah, entendi... então ele se abalou da cidade para ir conquistar o coração dessa
velhota! Boa essa... definitivamente as senhoras desta cidade acharam alguém para se
apaixonar!
- Não, não é nada disso. Deixe-me continuar. Ele surgiu na sua frente, armado
até os dentes, fazendo mil ameaças e exigindo que ele lhe vendesse todas as suas
almas mortas...
- Almas mortas?
- Sim, a proprietária responde que não pode vender porque tais almas estão
mortas, mas ele não se importa e continua gritando e fazendo ameaças. Houve um
escândalo tão grande que os mujiques vieram ver o que estava acontecendo e as
crianças começaram a chorar. Eu fiquei pálida só de ouvir, mas nem tive tempo de
olhar no espelho, vim correndo contar-lhe tudo.
- Mas isso tudo é muito estranho. Para que ele iria querer almas mortas? –
indagou a senhora agradável em todos os sentidos. Por mim, não me parece que ele
esteja mesmo interessado em almas mortas... o que faria com elas? Deve ter
inventado essa história só para nos distrair a atenção. Seu objetivo deve ser outro...
- Sim, também pensei nisso, mas qual seria o objetivo verdadeiro?
Pois eu já sei!
- Sabe?
- Sei!
- Então diga!
- As almas mortas...
- Diga!
- As almas mortas são só para nos desviar a atenção. Na verdade, ele quer
seqüestrar a filha do governador!
- Como?
- É claro como a água: ele quer seqüestrar a filha do governador!
A senhora simplesmente agradável não podia conter uma exclamação de
espanto:
- Mas será possível? Uma jovem tão inocente, tão bem educada!
- Inocente o quê? Não seja ingênua... essas moças que vão estudar fora... ouço
coisas que é melhor nem falar...
- Mas será possível? Meu bom Deus, confesso que é de partir o coração o que
se vê hoje em dia. A que ponto chegou a imoralidade!
- Minha filha, os homens ficam doidos por ela... mas por mim, não vejo nada
demais. É magrela demais e sem sal... além de ser muito afetada... – descreveu a
senhora agradável em todos os sentidos.
- Sim, já percebi. É pálida como uma estátua.
- Não, ela usa um quilo de maquiagem...
- Eu lhe digo, eu sentei ao lado dela... é pálida mesmo...
- Não seja ingênua...
E assim ficaram as duas senhoras discutindo se a filha do governador era
realmente pálida ou se era tudo pó de maquiagem, até que uma delas se lembrasse do
caso do rapto:
- Mas será que ele pretende fazer isso sozinho?
- Um rapto, sozinho? Claro que não. É óbvio que ele tem um comparsa...
- E quem seria?
- Nozdriov, é claro!
A senhora simplesmente agradável deu um gritinho de surpresa:
- Oh, eu nunca tinha pensado nisso. Mas é claro. O cúmplice só poderia ser
Nozdriov! Que estranha carreira fez esse senhor Tchitchicov! Chegou em nossa cidade
como um senhor respeitável, fez-se passar por proprietário rural e vai sair como ladrão
de mocinhas...
Nisso, o que antes era apenas uma hipótese virou verdade absoluta. Verdade
que foi informada ao procurador assim que ele entrou na sala, piscando seus olhos.
Dessa forma, a conversa das duas se alastraria pela cidade como um rastro de
pólvora.
A cidade entrou em polvorosa. Ninguém entendia coisa nenhuma e surgiram
diversas outras hipóteses. Os funcionários públicos, especialmente, sentiram-se como
aquele estudante que dorme durante a aula e os outros lhe enfiam um canudo de rapé
no nariz. Ele acorda, atordoado, com incrível vontade de espirrar, olha para o lado, vê
os outros alunos rindo dele, não compreende nada e só depois percebe que está com
um canudo de rapé enfiado no nariz.
A filha do governador, as almas mortas e Tchitchicov misturavam-se em suas
cabeças, provocando a maior confusão. Mas passada o instante de atordoamento,
começaram a pensar no que realmente estava acontecendo. O que mais os
incomodava eram as almas mortas. Quem iria querer comprar almas mortas? Que
espécie de charada era essa?
Para tentar explicar tais fatos tão inexplicáveis, formaram-se dois partidos: o
masculino e o feminino. O masculino preocupava-se mais com as almas mortas. O
partido feminino dava mais atenção à filha do Governador.
As mulheres logo fizeram valer seu caráter feminino e organizado. Assim, logo
estabeleceram que Tchitchicov já devia estar apaixonado pela filha do governador há
muito tempo e que até se encontravam e trocavam juras de amor nos jardins, e o
Governador estava até disposto a lhe entregar a mão da filha, pois o homem era rico
como um judeu, mas havia um inconveniente: Tchitchicov já era casado e a esposa
abandonada escrevera uma carta ao pai da moça, de modo que só restaura ao
galanteador a possibilidade de raptar a jovem.
Em outras casas dizia-se que Tchitchicov, apaixonado pela menina, resolvera
começar pela mãe, com quem mantivera uma escandalosa relação amorosa.
A cada pessoa que era repassada a história, eram acrescentados novos e
picantes detalhes desse escândalo amoroso.
O partido dos homens, ao contrário do das mulheres, era tosco e
desorganizado. Para eles, a história do rapto havia sido criada apenas para desviar a
atenção.
Acontece que um novo Governador-geral fora designado para aquela província.
Quando ele chegasse, todos esperavam os mais severos dissabores. Assim, eles
imaginaram se o tal Tchitchicov não era um espião mandado pela nova autoridade para
fazer uma investigação.
O inspetor de Serviços médicos, ao ouvir isso, empalideceu: talvez as tais almas
mortas fossem uma referência à grande quantidade de mortos durante uma epidemia
maligna contra a qual não haviam sido tomadas as medidas necessárias.
Logo cada uma achou em si uma razão para temer a vinda de um espião do
novo Governador-geral. Talvez até a expressão almas mortas fosse uma referência a
dois cadáveres enterrados recentemente.
O primeiro acontecimento se dera quando uns mercadores deram uma festa
durante uma feira e a festa terminou em briga entre dois partidos. Os vencedores
reconheceram sua culpa, mas a aliviaram pagando, cada um, cem rublos. Assim, a
investigação tomara um rumo estranho a ponto de revelar que os perdedores haviam
morrido de asfixia por fumaça e foram enterrados assim mesmo, como asfixiados.
O outro acontecimento envolvia os camponeses da aldeola de Soberba-Piolhenta
aliados aos seus iguais da aldeia de Provoca-leitão. Revoltados, eles teriam varrido do
mapa um assessor da polícia rural de nome Drobiajkin. Este dera para visitar as
aldeias com muita assiduidade, o que era pior que a febre. Para complicar mais as
coisas, tinha fraqueza pelo sexo feminino e vivia assediando as mulheres e raparigas
das aldeias. Já mais de uma vez eles o haviam expulsado, nu em pêlo, de um dos isbás
nos quais se introduzira. Até que perderam a paciência e o deixaram morto na estrada.
Houve um inquérito, mas como se mostrara impossível demonstrar quem era de fato o
culpado, optou-se por considerar que o policial fora responsável pela sua própria morte
e que morrera de um ataque de apoplexia.
Pouco tempo depois chegou um ofício dando conta de que havia na província um
falsificador de notas bancárias, que se ocultava sob diversos nomes, e pedia a
instalação de um inquérito rigoroso.
Esse ofício deixou todos atordoados, de modo que eles decidiram fazer aquilo
que deveria ser feito desde o início dessa confusão: resolveram conversar com as
pessoas que haviam vendido as almas para Tchitchicov.
Foram procurar primeiro a senhora Korobotchka, mas ela só contou que o
homem pagara quinze rublos pelo lote e que também prometera comprar penas e
sebos, e que por isso mesmo deveria ser um canalha, pois um outro comprador adquira
sebo e penas e era um malandro enganador, que passara todo mundo para trás, que...
Os funcionários chegaram à conclusão de que se tratava apenas de uma velha
coroca e que nada se aproveitava do que ela dizia.
Então foram procurar Manilov.
Este disse que punha a mão no fogo por Tchitchicov. Afirmou que daria toda a
sua fortuna para ter uma quarta parte das virtudes de Pavel Ivanovitch. Declarou
também alguns pensamentos muito profundos a respeito da amizade, com os olhos em
lágrimas.
Sobakevitch disse que pelo que sabia, Tchitchicov era um homem correto e que
lhe vendera alguns de seus melhores camponeses, vivos em todos os sentidos, mas
que não podia responsabilizar-se por eles dali por diante e se eles morressem todos na
estrada, durante a transferência, não seria culpa dele, mas a vontade de Deus e que
nesse mundo havia muitas pestes que podiam exterminar uma aldeia inteira.
Os funcionários, desconcertados com esses depoimentos, usaram de um
método pouco usual: foram interrogar os criados de Tchitchicov, mas só descobriram
que eles sabiam quase nada de seu chefe.
No final da investigação, a coisa parecia ainda mais confusa e enigmática.
Decidiram, então, convocar uma reunião com todos na casa do chefe de polícia
para tentar decifrar esse enigma.
Capítulo 10
Quando se reuniram na casa do chefe de polícia, os funcionários perceberam
que tinham até emagrecido depois de tantas preocupações e inquietações. O chefe dos
Correios era o único que parecia despreocupado:
- Senhores, já vi passarem por aqui muitos governadores-gerais. Eles vêm e
vão, mas eu continuo aqui, em meu cargo.
Mas os outros argumentaram:
- Para você é fácil falar. Se eu trabalhasse nos Correios, também não estaria
preocupado. O máximo que se pode fazer é fechar uma hora mais cedo, ou cobrar uma
comissão por uma carta urgente chegada depois da hora, mas e nós? E nós que
somos tentados o tempo todo? Nós, que todos procuram, oferecendo dinheiro... ai,
meu Deus, nós temos motivo para nos preocuparmos.
Havia de tudo naquela reunião, menos bom senso. Um dizia que Tchitchicov era
um falsificador, para logo depois acrescentar: “Mas pode ser que não seja...”. Outro
afirmava que ele era um espião do governador, para logo depois acrescentar: “Mas
também pode ser que não seja...”.
A única opinião que encontrou repulsa geral foi a de Tchitchicov era um bandido.
Um homem de tão boas maneiras, tão inteligente e gentil, um bandido? Nunca...
De repente o chefe dos correios levantou-se, entusiasmado:
- Já sei! Já sei quem é ele!
- Quem é? Quem é? Diga logo!
- Mas é óbvio! Não percebem? É o capitão Kopeikin!
- Capitão Kopeikin?
- Mas como? Não sabem que é o famoso capitão Kopeikin?
A expressão no rosto de todos deixou claro que ninguém ali conhecia
personagem tão famoso.
O chefe dos correios abriu com cuidado a tabaqueira, tirou de lá um pouco de
rapé, que inalou antes de continuar:
- Na campanha de 1812, um certo capitão Kopeikin foi recambiado com uma
leva de feridos. Ele havia perdido um braço e uma perna. Na época ainda não havia um
fundo para inválidos de guerra, entendem? De modo que o capitão teve que trabalhar
para conseguir o sustento. Mas como trabalhar sem uma perna e um braço? Assim, o
capitão resolveu deslocar-se para São Petesburgo para tentar conseguir ajuda do
imperador ou de alguma outra autoridade. Pegando trens de carga e até carroças ele
finalmente conseguiu chegar à cidade. O nosso herói foi procurar lugar onde dormir,
mas era tudo muito caro, de modo que ele teve que se contentar com um alojamento
de um rublo diário que servia um almoço de sopa de repolho com um pedaço de carne
de segunda. Assim instalado, pôs-se a indagar onde poderia conseguir ajuda.
Disseram-lhe que o soberano não estava na capital, mas que deveria procurar um certo
oficial, que poderia ajudá-lo. Nosso capitão levantou-se cedo, barbeou-se como pôde,
já que só tinha uma mão e o barbeiro representa de certa forma uma despesa, e pegou
o rumo do tal oficial. Chegou numa casa tão refinada que as maçanetas... eu lhes digo,
um homem, ao vê-las, corria para a venda e comprava sabão para lavar as mãos por
duas horas antes de se atrever a pegar nelas, de tão polidas que eram. Um luxo sem
tamanho!
- Kopeikin arrastou-se como pôde escada acima, com sua perna de pau, até a
sala de audiências e ficou lá encolhido. Ficou lá por quatro horas, até que apareceu um
ajudante de ordens e anunciou: “O general vai aparecer em breve!”. Nosso personagem
ficou todo empolgado, mas também apavorado. Era uma figura assim... sabem como
é... um alto dignitário. Todos os que estão na sala perfila-se, respeitosos e o fidalgo vai
andando de um em um: “Você, o que quer?”, “E você?”. Enfim chegou a vez de
Kopeikin e este ganha coragem: “Assim assado, lutei por nosso império, perdi, por
assim dizer, pernas e braços, derramei meu sangue, não posso trabalhar e peço a
caridade de uma ajuda do monarca...”. O alto dignitário olhou o homem com a perna de
pau, a manga do uniforme militar vazia, presa ao peito, e diz: “Está bem, volte dentro
de alguns dias”.
- O nosso personagem saiu de lá tão esperançoso e empolgado que entrou
numa taberna para um trago de vodka. Encomendou almôndegas e um frango assado e
até tomou uma taça de vinho. Em suma, fez uma farra. Passados dois dias, voltou ao
tal oficial. Este reconheceu-o imediatamente: “Ah, sim, lembro do seu caso, mas o
soberano ainda não voltou e só depois de sua volta serão tomadas as providências a
respeito dos feridos. Volte daqui a alguns dias”. Ele passou o dia em desespero e
decidiu voltar ao dignitário e dizer-lhe que estava para morrer de fome, mas o porteiro
nem mesmo o olhava. Depois de muito insistir, o capitão ouviu: “O oficial está viajando.
Volte outro dia”. Então, até o último pedaço de pão acabou e ele decidiu tomar uma
atitude extrema. Ficou aguardando diante da porta e quando entrou outro solicitante,
esgueirou-se com sua perna de pau. O ministrou mostrou-se contrariado ao vê-lo: “Mas
eu já não lhe disse que deve aguardar alguns dias? Antes do soberano chegar, não há
nada que eu possa fazer!”.
- “Mas excelência, estou passando fome!”, disse Kopeikin. “Não há o que eu
possa fazer! O senhor trate de encontrar recursos próprios”, afirmou o diginitário.
“Mas, excelência, como vou arranjar recursos próprios... sem uma perna e um braço?”.
“O que quer que eu faça? Não posso sustentá-lo do meu próprio bolso. Temos muitos
feridos, todos com direitos iguais. Arme-se de paciência. Dou-lhe minha palavra de que
quando o soberano chegar, o senhor não ficará desamparado!”.”Mas, excelência, até lá
eu já terei morrido de fome. não vou sair daqui sem uma solução!”. O general foi
ficando envergonhado. Havia outros generais e coronéis por ali, todos vendo a cena, e
até que foi muito compassivo. Poderia ter passado uma descompostura no capitão a
ponto de deixá-lo na cama, por três dias, mas resolveu outra coisa: “Está bem, se acha
que é muito caro ficar na capital esperando por uma solução, vou arranjar uma carroça
para levá-lo de volta para sua terra!”. E lá se foi o coitado, de volta para casa, mas no
meio do caminho pensou: “O general mandou que eu arranjasse meus próprios
recursos e é o que vou fazer...”. Assim, tornou-se chefe de um bando de perigosos
assaltantes que infestam as florestas de Riazan.
- Mas, senhor Ivan Andreievitch. – interrompeu o chefe de polícia. O que isso
tem a ver com o caso das almas mortas?
- Não percebem? Tchitchicov é o próprio capitão Kopeikin!
- Mas se o capitão não tem um braço e uma perna e Tchitchicov tem todos os
membros!
O chefe dos correios deu um tapa na testa. Como poderia ter lhe escapado
esse detalhe? Mas achou uma solução conciliadora:
- Ele pode estar usando próteses. As próteses hoje podem ser de ótima
qualidade!
Mas essa explicação não convenceu ninguém, de modo que todos voltaram a
tentar descobrir quem era o tal Tchitchicov.
O chefe de polícia estivera na batalha de 1812 e vira pessoalmente Napoleão,
jurou que Tchitchicov era a cara do Imperador. Quem sabe Napoleão não estava em
pessoa ali?
Por fim, decidiram falar com Nozdriov. Este estava muito ocupado, tentando
marcar um baralho no qual pudesse confiar totalmente, mas aceitou o convite. O chefe
de polícia perguntou-lhe sobre as almas mortas e ele disse que de fato tinha vendido
almas mortas a Tchitchicov e que não vira razão para não vendê-las. Perguntado se
Tchitchicov poderia ser um espião, Nozdriov respondeu que sim, com certeza ele era
um espião, tanto que na escola era chamado de fiscal e por isso eles haviam lhe dado
tantas surras que ele fora obrigado a colocar na testa nada menos que duzentas, não,
quatrocentas sanguessugas.
- O senhor acha que Tchitchicov é um falsificador?
- Oh, certamente. Certa vez as autoridades souberam que ele tinha falsificado
dois milhões de rublos e selaram sua casa, colocando um guarda em frente, mas
Tchitchicov é tão esperto que, durante a noite, entrou lá e trocou todas as notas por
cédulas verdadeiras e acabou se livrando da acusação...
- O senhor acha que Tchitchicov tem a intenção de seqüestrar a filha do
governador?
- Mas é claro! Eu mesmo o ajudei. Se não fosse por mim, a coisa toda não teria
dado certo. – nisso caiu em si e percebeu que estava mentindo por nada e ainda se
complicando, mas nisso já estava tão envolvido com a história e já tinha tantos detalhes
na cabeça, que era impossível parar. Disse que Tchitchicov pretendia levar a moça
para certa aldeia e casar-se com ela. Chegou ao detalhe de dizer até o nome do padre
e dos cocheiros que deveriam levá-lo.
Os funcionários ainda pensaram em fazer-lhe perguntas sobre Napoleão, mas
desistiram, vendo que da boca de Nozdriov só saiam mentiras descaradas sem a
menor lógica ou sentido. E ficaram pior do que antes, ainda mais desnorteados.
Tchitchicov estava alheio a tudo isso. Pegara uma gripe forte e ficara três dias
trancado em seu quarto. Para se entreter, refez as listas dos camponeses comprados
e até leu um pouco de um livro, mas era tudo muito tedioso. Ele não conseguia
compreender porque nenhum dos funcionários lhe fizera uma visita.
Finalmente, sentiu-se restabelecido e decidiu dar uma volta. Foi direto para a
casa do governador. Tinha a loirinha na cabeça e seus pensamentos eram tão
confortáveis que até sorriu, caçoando de si mesmo. Mas não foi recebido na casa do
governador.
- Tenho ordens para não deixá-lo entrar! – informou o porteiro.
- Mas por quê? Qual a razão?
- Não sei, meu senhor. Só recebo ordens e as ordens são bem claras: o senhor
não pode entrar.
Depois foi na casa de outros funcionários, mas estes ou não o receberam, ou o
receberam, mas se mostraram tão atrapalhados, tão sem assunto, que Tchitchicov
chegou a pensar se era ele que enlouquecera ou se eram os funcionários que tinham
perdido o juízo.
No final da tarde, voltou para a estalagem com um estado de espírito totalmente
diverso e pediu chá. Estava em seu quarto quando apareceu Nozdriov:
- Meu amigo, estava passando por aqui e vi a luz acesa e pensei comigo: “Uma
visita não iria acordá-lo!”. Vamos, enche aqui o meu cachimbo!
- Eu não fumo cachimbo!
- Como não? Eu bem sei... eu te conheço, meu amigo, e sei que é um fumador
inveterado. Sempre digo para todos: “Tchitchicov fuma como uma chaminé!”.Mas me
diga uma coisa, por que desapareceu por tanto tempo? Sei que deve estar ocupado
com suas leituras científicas – de onde Nozdriov tirara que Tchitchicov gostava de fazer
leituras científicas, esse é um mistério que ninguém poderá solucionar. Ah, meu amigo,
na cidade estão todos contra você. Me chamaram para perguntar se você fabrica notas
falsas, mas eu o defendi com unhas e dentes. Até disse que o conhecia da escola e
que fomos amigos de infância.
- Eu? Fabricando notas falsas? – Tchitchicov deu um pulo da cadeira.
- Me diga, meu amigo... por que apavorá-los daquela maneira? O procurador até
morreu de preocupação. O enterro vai ser amanhã. Mas o governador-geral, por que
tinha que agir assim? Tudo bem, o novo governador pode se trancar em seu gabinete e
não oferecer nenhum baile, mas o que irá ganhar com isso. Mas diga, amigo, por que
razão se meteu nesse negócio arriscado?
- Que negócio arriscado?
- Esse, de seqüestrar a filha do governador!
Tchitchicov esbugalhou os olhos e deu um pulo de susto:
- Eu, seqüestrar a filha do governador?
- Você nunca me enganou... e estou até disposto a ajudá-lo. Posso até ser o
padrinho, se você me emprestar três mil rublos. É pouco, para quem está apaixonado,
e eu estou precisando urgentemente.
Durante a tagarelice de Nozdriov, Tchitchicov esfregava os olhos, como que para
convencer-se de que não estava sonhando. “Se as coisas chegaram a esse ponto, não
há um minuto a perder. Preciso partir imediatamente!”, pensou.
Assim, tratou de livrar-se o mais rápido possível de Nozdriov e chamou Selifan:
- Arrume a carruagem e sele os cavalos. Vamos partir hoje de madrugada.
O cocheiro ficou parado à porta, como se não estivesse compreendendo a
ordem, mas finalmente saiu. Tchitchicov abriu a mala e guardou as coisas de qualquer
jeito. Não havia um único minuto a perder.
Capítulo 11
As coisas infelizmente não saíram como previstas. Para começar, Tchitchicov
acordou mais tarde do que havia imaginado. Mandou chamar Selifan:
- A carruagem está pronta?
- Não, meu senhor. – disse o cocheiro, acabrunhado.
- Mas como não?
- É preciso atrelar os cavalos.
- Por que não fez isso ainda, seu asno?
- E as rodas, senhor, é preciso trocar os aros. É capaz de não agüentar até a
próxima estação... e também a frente está desconjuntada, depois daquele tombo. Além
disso, precisamos trocar um dos cavalos, o pedrês, que não serve de nada...
- Mas seu asno! – e avançou ameaçando um tapa, de modo que o outro se
encolheu todo para escapar ao mimo. Seu imbecil! Passamos aqui três semanas e só
agora você descobre essas coisas? Quando já deveria estar tudo pronto, só para subir
na carruagem e partir, então nesse momento é que você vem me falar dessas coisas!
Selifan pensou que o outro tinha razão, que ele bem que podia ter falado sobre
isso antes: “Gozado como isso aconteceu. Eu realmente sabia e não falei nada”.
O patrão deu um grito que tirou-o dessas reflexões filosóficas:
- Anda, seu asno! Corre e vai buscar o ferreiro! Quero tudo pronto em duas
horas, senão...
Selifan saiu e voltou com os ferreiros. Esses, percebendo que o outro tinha
pressa, cobraram os olhos da cara. Tchitchicov chamou-os de malandros, patifes,
ladrões, mas não conseguiu nada. Os ferreiros não só não arredaram pé do preço,
como ainda decidiram entre si gastar não duas horas no serviço, mas cinco, e durante
esse tempo nosso herói passou momentos desagradáveis desses que se passa
quando já se arrumou todas as malas no quarto do hotel e não há nada a fazer.
Mas finalmente chegou o momento da partida.
“Graças a Deus!”, pensou Tchitchicov, e Selifan fez estalar o chicote, ao mesmo
tempo em que Petruchka pendurava-se no estribo.
Tchitchicov olhava com um certo saudosismo, vendo afastar-se ruas e casas às
quais já estava acostumado. Então a carruagem teve de parar para deixar passar um
longo e interminável cortejo fúnebre. Nosso herói mandou o cocheiro perguntar do que
se tratava e descobriu que era o enterro do procurador. Tchitchicov tremeu de medo de
ser reconhecido, e cobriu-se com uma manta de couro e fechou as cortinas. Mas os
outros estavam muito ocupados com seus próprios pensamentos: pensavam em como
seria o novo governador-geral, quais seriam suas manias e de que modo implicaria com
eles.
Por fim o cortejo passou e a carruagem pôde continuar o seu caminho.
Nosso herói olhava para trás, como que para certificar-se de que estava mesmo
saindo da cidade e que não vinham atrás dele, mas depois relaxou e acabou dormindo,
o que é bom, pois nos dá a oportunidade de falarmos um pouco dele.
Antes de mais nada, devo admitir que é muito difícil que o herói por nós
escolhido seja do agrado dos nossos leitores. As senhoras certamente esperariam um
herói romântico, perfeito em todos os sentidos, muito bonito, elegante e de caráter
irrepreensível.
Infelizmente, o autor não pode escolher para herói um homem virtuoso. É que
todos falam apenas de homens perfeitos, virtuosos e a mim só restou falar de um
patife. Fiquemos então com patife.
Deve-se dizer que a origem do nosso herói é obscura e humilde. Seu nascimento
não foi anunciado por nenhum prodígio e ele não era nem um pouco parecido com
ninguém de sua família. Como se diz, “ele não saiu nem ao pai, nem ao avô, mas ao
moço que passou”.
Um dia o pai levou-o à escola. Foram num coche puxado por um cavalinho baio e
guiado por um cocheiro miúdo e corcunda, fundador e pai da única família de servos
pertencentes aos Tchitchicov. Foram dar em uma casinha de madeira, com uma única
janelinha estreita e opaca. Lá morava uma parenta da família, uma velhinha caquética,
que fez um carinho na bochecha do rapazinho e admirou-lhe a gordura. O pai apenas
pernoitou e partiu no dia seguinte, não sem antes aconselhá-lo:
- Olha aqui, meu filho... nada de travessuras e vagabundagem. Estuda, mas
acima de tudo agrada aos professores e superiores. Sabendo agradar aos superiores,
mesmo que não seja um bom aluno, ainda assim sempre se sairá bem. Não se envolva
com os companheiros da escola, mas se for se envolver, só arranje amizade com os
mais ricos. Acima de tudo, trate de guardar suas próprias economias. Nunca dê
presentes, mas esteja sempre disposto a receber presentes. Não confie num amigo. O
colega de escola sempre estará disposto a trair, mas um copeque nunca traiu ninguém.
Tudo no mundo se resolve com copeques.
O pai, ao que parece, não deu ouvido aos próprios conselhos, pois morreu na
miséria, mas as palavras calaram fundo na cabeça do menino, que as tomou com lema
e lei. Tinha recebido um rublo e meio do pai e não gastou nenhum. Ao contrário, só fez
aumentar o seu capital, fazendo com que os companheiros lhes dessem coisas e às
vezes até lhes revendendo as coisas que eles lhes davam. Comprava doces na feira e
os comia na escola, ao lado dos amigos, até que eles ficassem com água na boca e
então lhes revendia pelo dobro do preço.
Com relação aos superiores, fez exatamente o que lhe aconselhara o pai. Logo
descobriu que os professores gostavam sobretudo do silêncio e não suportavam
meninos inteligentes e espertos. Bastava que um deles demonstrar dons de inteligência
e perspicácia para que o mestre lhe castigasse: “Já curo essa sua impertinência! De
joelhos no milho!”. Aos colegas, o professor costumava ensinar: “Talentosos? Bem
dotados? Inteligentes? Ridículo! Para mim, só o que vale é o comportamento. Dou
notas mais altas ao aluno que não saiba uma vírgula, mas seja comportado!”. Assim,
Tchitchicov aprendeu a ficar totalmente em silencio e imóvel na cadeira. Não movia uma
sobrancelha, não piscava um olho. Terminada a aula, corria para oferecer ao professor
o gorro e, dava um jeito de encontrá-lo no corredor, para cumprimentá-lo. Como
resultado, só tirava as melhores notas em todas as matérias e até recebeu um livro
com letras douradas em honra à sua dedicação e comportamento irrepreensível.
Assim que deixou a escola, morreu-lhe o pai, que não lhe deixou quase nada.
Tchitchicov vendeu tudo que recebera de herança e começou a escalada no serviço
público.
Nesse período ficou doente o tal professor e passou a morar numa casinha sem
aquecimento e sem pão. Os ex-alunos se apiedaram da situação do mestre e fizeram
uma vaquinha para garantir-lhe alguns recursos. Só quem não colaborou foi Tchitchicov.
Entretanto, como não tinha proteção, tudo que nosso herói conseguiu foi um
empreguinho mísero e um ordenado de quarenta rublos por ano. No entanto, estava
decidido a subir a qualquer custo. Fazia hora extra. Dormia sobre a papelada, mas
principalmente puxava o saco do chefe, a tarefa mais difícil. Este senhor tinha
aparência de insensibilidade e severidade extremas. Não ria e nem se divertia, nem na
repartição, nem em casa. Um homem de comportamento totalmente severo.
Muitos diriam que nenhum humano seria capaz de se aproximar dele e
conquistar sua confiança, mas Tchitchicov agia como uma formiguinha, inabalável.
Apontava as penas do chefe e colocava sempre perto dele, limpava e varria a mesa do
chefe, descobriu onde ele guardava o chapéu e sempre o colocava em suas mãos um
minuto antes do final do expediente.
Como tivesse pouco resultado, resolveu atacar pelo lado familiar.
Descobriu que o homem tinha uma filha de rosto feio, no qual aparentemente
nasciam ervilhas durante a noite. Descobriu qual era a igreja que ela freqüentava e
sempre se colocava à frente dela, muito prestimoso e atencioso. O chefe finalmente
cedeu e convidou-o a tomar chá em sua casa. No momento seguinte convidou-o para
morar consigo. Logo Tchitchicov tornou-se seu braço direito, o homem de confiança.
Dizia noivo da filha e beijava as mãos do chefe, chamando-o de paizinho.
O chefe, antes tão insensível, chegou até mesmo a recomendar Tchitchicov para
um cargo numa repartição superior. E nosso herói mudou totalmente de atitude. Assim
que se instalou no novo posto, despachou secretamente o baú para uma nova casa.
Nunca mais chamou o outro de paizinho, nem beijava-lhe as mãos e quanto ao
casamento, nunca mais tocou no assunto. “Enganou-me, o filho do diabo!”, pensou o
chefe.
De todas as escadas que Tchitchicov precisou escalar, essa foi a mais difícil.
Puxando o saco dos outros chefes, foi conseguindo aos poucos seu lugar ao sol. É
necessário notar que nessa época teve lugar uma rigorosa perseguição a todo tipo de
propinas, perseguição que não o assustou de maneira alguma. Ao contrário, usou-a a
seu favor.
Assim que chegava um solicitante e tirava do bolso um envelope discreto,
Tchitchicov afastava o envelope com um sorriso:
- Não, por favor, senhor. Nem pense nisso. Isso é apenas minha obrigação e
não aceito nada mais que sua satisfação. Fique tranqüilo. Amanhã mesmo estará tudo
resolvido. Deixe-me aqui seu endereço. Mandarei entregar diretamente em sua casa.
O solicitante voltava para casa encantado, dizendo consigo: “Ah, se todos os
funcionários públicos fossem assim!”.
Mas no dia seguinte, nada. O solicitante voltava à repartição.
- Sinto muito, meu senhor. Tenho aqui tanta coisa acumulada que nem pude
iniciar seu processo. Estou até encabulado. Volte amanhã, amanhã sem falta...
Mas amanhã, nem depois de amanhã a coisa se resolve.
O solicitante começa a indagar sobre o assunto e descobre que o processo só
irá adiante se soltar uma notinhas.
- Mas claro! Eu já tinha separado meio rublo para cada funcionário.
- Meio rublo não serve. São vinte rublos para cada funcionário e o dobro para o
chefe, o Tchitchicov. A propina aumentou muito depois que começou a perseguição às
propinas.
E o solicitante mandava ao diabo a perseguição às propinas e os modos
delicados dos funcionários. Pelo menos antes sabia-se o que fazer e o valor
desembolsado era bem menor.
Mas a grande oportunidade surgiu quando Tchitchicov foi nomeado para uma
comissão responsável pela construção de um belo prédio público. Claro que o prédio
nunca saiu do papel, mas cada membro construiu para si um belo palácio e até mesmo
nosso herói, antes tão econômico, não economizou em mármores e requintes. Muito
comedido até então, permitiu-se alguns supérfluos: contratou um cozinheiro muito bom
e começou a usar camisas holandesas. Até começou a comprar, a um preço nada
baixo, um sabonete para amaciar a pele do rosto.
Mas nada é eterno. Para o lugar do antigo chefe foi nomeado um casca-grossa,
que já chegou botando medo em todos, exigindo relatórios, registrou todas as
irregularidades e observou as casas de arquitetura moderna. Os envolvidos tiveram
triste fim. A maioria dos funcionários foi demitida e perdeu as casas, colocadas à
disposição do Estado para caridade. Tchitchicov foi um dos maiores alvos. O chefe
tomou ódio por ele desde o primeiro momento. Mas acontece que esse chefe era
militar e não conhecia os meandros do funcionalismo civil e logo quedou vítima de
subalternos ainda mais espertos e desonestos, que, conhecedores do caráter do chefe,
tornaram-se perseguidores ferrenhos da iniqüidade e a perseguiam com tanta
obstinação que logo cada um deles se viu com alguns milhares de rublos de capital.
Tchitchicov agarrou-se a um desses honestíssimos funcionários e soltou-lhe
algumas notinhas, mas não conseguiu o perdão. O máximo que o funcionário conseguiu
foi a anulação da folha do corrida, isso mesmo porque comoveu-o com a triste história
da família de Tchitchicov, que este, felizmente, não tinha.
Assim, nosso herói teve que mudar de cidade e recomeçar do zero. Armou-se
de muita paciência, suportou tudo e conseguiu, finalmente, passar para o serviço
portuário. Deve-se dizer que esse era seu sonho de consumo. Ele via os funcionários
da alfândega e observava que eles só usavam roupas estrangeiras.
Nosso herói atracou-se a esse serviço com todas as suas forças. Parecia ter
nascido para aquilo. Em duas semanas já sabia absolutamente tudo necessário para o
serviço. Era de uma eficiência e de um sangue frio jamais visto. Dizia com uma
gentileza que chegava ao absurdo: “A senhora poderia abrir esta mala, por favor?” ou
“O senhor se importa se eu abrir seu capote com essa faquinha, apenas para ver o que
tem aí dentro?”... e tirava de lá os mais variados contrabandos.
Mesmo os chefes espantavam-se com sua eficiência e diziam que ele não era
um homem, mas um demônio, que sempre conseguia farejar quando alguém trazia
contrabando. Tirava coisas de aros de rodas, de orelhas de cavalos, de modo que as
vítimas suavam frio ao depara-se com ele.
Em pouco tempo ele ficou conhecido por todos os contrabandistas. Parecia
honesto e incorruptível a um nível jamais visto. Os contrabandistas chegaram a mandar
emissários, que eram imediatamente repelidos. Tal dedicação chegou aos ouvidos da
alta direção, e vinha uma promoção atrás da outra, até que ele ficou responsável por
um destacamento que pretendia acabar com todo o contrabando na fronteira. Quando
chegou nisso, mandou um aviso aos contrabandistas: “Agora é hora!”.
Antes ele não entrara em acordo com os contrabandistas porque era só um
peão, mas agora? Agora a coisa era diferente e ele podia impor as condições que
quisesse. Para tornar a máquina ainda mais lubrificada, trouxe para seu lado um outro
funcionário, também muito honesto.
Depois de duas ou três viagens de contrabando, Tchitchicov e seu amigo já
estavam ricos. E teriam ficado milionários se a celeuma não se instalasse entre eles.
Certa vez em que os dois tivessem bebido muito, Tchitchicov chamou o outro de
filho do padre. Este, embora fosse de fato filho de padre, por alguma razão ficou
ofendido e soltou: “Filho de padre é você! Isso mesmo!”.
E não ficou só nisso. Ao contrário, tomado pelo ódio, fez uma denúncia anônima
contra Tchitchicov. Como resultado, as relações secretas com os contrabandistas
tornaram-se públicas. Tchitchicov não deixou por menos e levou o outro consigo, de
modo que os dois logo caíram em desgraça. O amigo enveredou pela bebedeira, mas
nosso herói agüentou firme. Conseguiu guardar um pouco do dinheiro, que usou para
subornar alguns funcionários e conseguir escapar de um processo criminal. Só o que
lhe sobrou foram dez mil rublos, guardados para tempos mais negros, umas camisas
holandesas e alguns pedacinhos de sabonete, além da carruagem e dos dois criados
que já conhecemos.
Mas devemos fazer justiça à força de caráter de nosso herói. Depois de tantos
reveses, que fariam senão matar, mas ao menos fazer sossegar para sempre qualquer
outro homem, Tchitchicov não desistiu. Ele estava amargurado, murmurava contra a
injustiça do mundo, mas continua tentando.
Muito preocupado com sua descendência, ele aceitou o único emprego que lhe
arranjaram, de despachante-procurador, o que acabou sendo uma sorte.
Certo dia ele recebeu a ordem de penhorar algumas centenas de almas de uma
propriedade que estava totalmente arruinada. Fora arruinada pela mortalidade do gado,
pelos roubos dos administradores, pela morte dos melhores mujiques e principalmente
pela gastança do dono, que montara uma casa em Moscou e gastara tudo que tinha, a
ponto de só lhe sobrarem as almas. No meio do processo, Tchitchicov descobriu que
metade das almas estavam mortas e informou isso ao secretário.
- Mas essas almas estão incluídas nas listas de recenseamento? – indagou o
secretário.
- Estão sim.
- Então por que razão está me importunando com esse assunto? Morre um,
outro nasce e tudo se resolve.
Foi quando surgiu a idéia luminosa na mente de Tchitchicov. Se comprasse
almas mortas por uma mixaria, poderia vendê-las ao Conselho de Tutela por duzentos
rublos cada e ninguém jamais iria fazer qualquer pergunta. Um negócio totalmente
honesto. Pensou ainda que era um momento favorável, pois uma epidemia dizimara a
população de diversas vilas e não seria nada difícil encontrar as tais almas mortas.
Sempre haveria proprietários rurais dispostos a se livrarem daquelas almas que não
traziam nenhum lucro e pelas quais ainda tinham de pagar impostos.
“O melhor de tudo é que o plano é tão inverossímil que ninguém vai acreditar que
estou comprando almas mortas!!”, pensou Tchitchicov. “É verdade que não tenho
terras, mas posso inventar que estou comprando para colonização e tudo se resolve!”.
E foi assim que surgiu a trama pela qual o autor é muito grato, pois se não
tivesse ocorrido essa idéia a Tchitchicov, este poema jamais teria sido escrito.
Assim, lá foi ele para o interior, procurar proprietários rurais que pudessem lhe
vender almas mortas.
O leitor talvez esteja indignado com o fato do autor não apresentar personagens
e situações que estejam ao gosto do leitor, mas o culpado disso tudo é Tchitchicov. É
ele que manda e aonde ele inventa de ir, somos obrigados a segui-lo.
O leitor certamente deve estar censurando o autor por ter como herói um
homem patife, mas o que é isso? Quem hoje em dia é patife? E mesmo o leitor, logo
estará colocando as manguinhas de fora e dizendo de alguém que passa na rua:
- Olhem, lá vai um Tchitchicov!
Ao qual um amigo irá concordar:
- É mesmo! Um verdadeiro Tchitchicov!
Não julgamos o caráter de nosso herói, só narramos o que aconteceu e
acompanhamos nosso herói. Aliás, agora devo parar, pois lá vai ele, dando ordens para
que Selifan esporeie os cavalos, fazendo a carruagem correr como gostam de correr
os russos. E é necessário segui-lo.