Camarim 41 - Cooperativa Paulista de Teatro
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Camarim 41 - Cooperativa Paulista de Teatro
camarim 41 capa.pmd 1 29/4/2008, 19:05 2008 marca a internacionalização da Cooperativa Paulista de Teatro, não apenas pela realização da III MOSTRA LATINO-AMERICANA DE TEATRO DE GRUPO, que além das apresentações de espetáculos convoca jornalistas, teóricos e gestores de sete países da atual versão a intensificar a ação teatral junto à população, mas também pela parceria já em andamento com a Corporação Colombinas de Teatro, a participação da sociedade no I Encontro Ibero-Americano de Festivais de Teatro, dentro do Festival Santiago a Mil no Chile e ainda a visita do presidente do cooperativa à Fundação Nacional das Artes do Ministério da Cultura de Portugal. Esta orientação não é apenas para a difusão da cooperativa no exterior, mas para planejar ações concretas de trocas de experiências como a circulação de grupos brasileiros em outros países, a realização de cursos e oficinas de estrangeiros no Brasil e a circulação da nossa pedagogia em outras terras. O trabalho fora do país está paralelo à mobilização interna. Durante este ano está em curso o mais intenso debate relativo a um projeto de lei para o fomento ao teatro brasileiro. A Cooperativa é subsidiária das estratégias para se chegar a uma política de Estado para a cena brasileira pautada pelo interesse público. Houve ampla manifestação em onze cidades brasileiras no Dia Mundial do Teatro. Em São Paulo o trabalho contou com total apoio da agremiação e o assunto chegou a editoriais de grandes jornais brasileiro. A Cooperativa foi ouvida oficialmente na Comissão de Educação e Cultura do Senado Federal em audiência pública e está associada ao Movimento Redemoinho, que em conjunto vem agendando políticos e dirigentes governamentais na direção de um passo inexorável para o teatro nacional. Outra frente que em 2008 está mobilizando os cooperados é a Roda do Fomento, organismo vivo e dinâmico que debate todos os passos do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, não permitindo que o governo local macule um projeto de origem e desenvolvimento da sociedade teatral paulistana. A Roda elaborou uma proposta de ampliação da Lei, trabalhou junto ao Legislativo e ao Executivo, passando pela Secretaria de Negócios Jurídicos. Atualmente a roda intercala suas assembléias nos espaços dos grupos teatrais e na sede da cooperativa, e se prepara agora para 2009, quando assumirá um novo governo na cidade. A união a outras organizações do Conselho de Entidades do Estado de São Paulo produziu uma emenda na Assembléia Legislativa de 14,5 milhões de reais, garantindo 18,5 milhões para os editais do Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura. Os editais do programa estão com lançamentos prometidos para o primeiro semestre desse ano. Merece nota as atividades que estão sendo desenvolvidas com os sócios da cooperativa. Diversas turmas ocupam a sede com aulas gratuitas de espanhol, voz e corpo e a diretoria projetou o Centro de Aperfeiçoamento Teatral para a Funarte, onde está em andamento o projeto Geografia da Palavra, com a participação de dezenas de cooperados. Em 2009 a Cooperativa completará 30 anos de vida e inquietação, Está aberta a temporadas de idéias para comemorarmos com orgulho esta trajetória ímpar na cultura brasileira. 2º SEMESTRE DE 2006 camarim 41.pmd 3 3 29/4/2008, 03:48 palavra da cooperativa A INTERNACIONALIZAÇÃO DA COOPERATIVA 1º SEMESTRE • 2008 • 3 Nossa Senhora das Nuvens, montagem brasileira de Hugo Vilavicenzio. UM ENCONTRO PASSIONAL NO PÓS-GUERRA CENTRO-AMERICANO 1 Arístides Vargas e o grupo Justo Rufino Garay, da Nicarágua Beatriz J. Rizk 1 Este artigo foi publicado em Karpa 1 (2008). http:// web.mac.com/karpa1 2 Entre os filmes que protagonizou encontram-se A tigra (1990) e Entre Marx e uma mulher nua (1995), ambos de Camilo Luzuriaga. O último, do qual foi também coroteirista, é baseado na novela homônima de Jorge Enrique Adoum. Não há dúvida de que Arístides Vargas se colocou firmemente na vanguarda teatral latino-americana durante as últimas décadas. Seu nome enriquece a lista de convidados de festivais nacionais e internacionais, encontros e conferências e, como as grandes estrelas, é solicitado por grupos tanto deste como do outro lado do Atlântico. “El Negro”, como o chamam afetuosamente seus amigos mais chegados, não dá conta; além disso, sua capacidade de produção dramatúrgica assombra até os mais impávidos, levando-se em conta que só começou a escrever em 1992. Vale a pena esclarecer que por esta data ele já tinha construído uma carreira como diretor, à frente do grupo Malayerba, que co-fundou em 1981 em Quito, e como ator, destacando-se tanto em obras teatrais como em filmes.2 Sua primeira obra teatral escrita foi uma versão do Woyzeck, de Georg 4 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 4 29/4/2008, 03:48 Büchner, à qual se seguiu Jardim de polvos, em 1993, A idade da ameixa e Pluma ou a tempestade, ambas de 1996. Estas peças por si mesmas já teriam bastado para deixar uma marca indelével entre seus contemporâneos. Homem do exílio – nasceu na Argentina e vive no Equador há já três décadas graças à ditadura militar de seu país natal na época – Vargas inicia através de sua dramaturgia uma viagem retrospectiva, aprofundando-se na memória coletiva dos povos, e na subjetiva do indivíduo, para resgatar acima de tudo o direito de sonhar com um destino melhor. Neste sentido, e de uma perspectiva histórica, Vargas se coloca numa época marcada pelos “pós” (pós-revolução, pós-guerra, pós-partidos militantes de esquerda, pósutopias salvacionistas etc.), mas não para deplorar as possíveis perdas, sobretudo a da inocência, e sim para engrandecer a saga dos que tiveram fé e já não estão aqui, para que seus sacrificios não tenham sido em vão e pelo menos sirvam de estímulo às futuras gerações. Em Pluma, possivelmente sua obra mais conhecida e viajada, o dramaturgo aprofunda-se na dualidade do ser humano, confrontado a levar sua carga arrastando-se pela terra ao mesmo tempo em que seus sonhos e anelos o levam constantemente a levitar, ainda que tenha que viver à beira do salto no vazio. Agora se, por outro lado, caracterizamos aqui Ariel, o ser alado da “comédia” de Shakespeare, então precisamos nos sustentar na terra, que é quem no fim das contas nos proporciona algum senso de pertencer a algo. Faz algum tempo escrevia eu que Pluma “era a metáfora do fim do caminho, do além do tempo utópico” ([2003] 2007:56), mas também, e creio ser mais importante, é uma parábola com que o mestre nos exorta a saber e poder “ver” ao fim do túnel, ainda que através da tempestade. De resto, a relação genealógica que estabelece com o bardo inglês o acompanhará também através de sua extensa produção teatral. A ambigüidade, com tremendas doses de humor, com que enfrenta toda instituição consagrada, unida a uma ironia que desarma todo modelo ou padrão unidimensional para mostrar suas contradições internas – já um selo inato de sua dramaturgia – encontramse numa de suas obras teatrais mais reconhecidas que se seguiram às três primeiras, Nossa Senhora das Nuvens (1998). Nela, o autor encara o “mito” do relato fundacional dos povos (não longe, por certo, daquele de Cem anos de solidão, de García Márquez), abrindo caminho a uma história oral que não apenas transforma-se numa alternativa ao relato histórico oficial, mas também põe ênfase no caráter transumano de todo emigrado, que para poder sobreviver tem que construir e inventar sua própria história que dê sentido a sua existência ambulante de nômade. Não é estranho que o poeta das ausências, da ambigüidade e da desorientação anímica, que advém de ser ele um indivíduo identificado culturalmente como um latino-americano exilado por razões políticas, tenha se interessado em trabalhar com grupos locais, mas bastante afastados, por certo, dos centros do poder. A partir daí nasce sua associação com grupos como La Trinchera, de Manta, Equador, fundado em 1982, sob a direção de Nixón García e Rocío Reyes, aos quais o une uma relação de trabalho iniciada quando recém-chegado ao exílio, com um crédito de pelo menos três obras escritas para eles: O saguão do aluminio, Três velhos mares e Ana, o mago e o aprendiz e outras tantas dirigidas por ele, e/ou por Charo Francés, sua companheira de vida e de estrada teatral. 3 No orig., Donde el viento hace buñuelos. Aparentemente um jogo com a expressão buñuelos de viento, espécie de bolinho muito leve. N.T. 4 No âmbito do teatro argentino, que surge em função da ditadura militar, a obra não deixa de nos trazer sutis reminiscências da já clássica O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig. São obras/poemas, escritas à sombra desse mar que parece envolver tudo e que o insta a viajar, aparentemente seu implacável destino, reunidas num mesmo volume com o sugestivo nome de Três peças do mar (2003). Com a notável diretora e pedagoga teatral Rosa Luisa Márquez, de Porto Rico, para quem, junto com Charo, escreveu Onde o vento faz suspiros3 (2000) em honra a uma amizade de duas décadas, tem trabalhado não apenas nesta ilha caribenha, mas também no recinto de seu próprio grupo Malayerba, em Quito, e onde tenham lugar seus esporádicos encontros. Por sua parte, Márquez montou para seu público O jardim das cerejeiras, A idade da ameixa e, recentemente, A razão blindada (2006). Escrita esta última como homenagem a seu irmão, Chicho Vargas, que passou vários anos na prisão na Patagônia argentina durante a ditadura, Vargas escreveu um hino à liberdade e à criatividade da mente humana. Utilizando a imorredoura imagem do Quixote cervantino e seu fiel escudeiro e cúmplice Sancho Pança, e reunindo os episódios narrados por seu irmão, o autor nos regala com algumas de suas melhores páginas, nas quais aflora a capacidade infinita do ser humano de criar e imaginar mundos melhores mesmo nas circunstâncias mais adversas.4 O encontro com o grupo Justo Rufino Garay se deu em função de uma turnê do grupo Malayerba com Nossa Senhora das Nuvens na Nicarágua. Segundo Lucero Millán que tem estado à frente do grupo desde seu início em 1979, a obra os “marcou”, provocando “boa empatia”, numa época de crise 1º SEMESTRE • 2008 • 5 camarim 41.pmd 5 29/4/2008, 03:48 5 Lucero Millán. Intervenção no Primeiro Congresso Ibero-americano de Teatro. Festival Internacional de Teatro de Manizales. 8 de outubro de 2007. 6 Justo Rufino Garay foi um combatente do movimento sandinista que pereceu durante uma das contendas contra a Guarda Nacional somozista. 7 A explosão teatral que teve lugar na Nicarágua, em função do triunfo da revolução sandinista, foi um fato sem precedentes no país. Surgiram grupos de teatro profissionais, amadores, comunitários, dentro dos sindicatos, nas escolas e universidades e até no exército. De fato, no ano de 1983, quando tive a oportunidade de visitar o país, havia mais de cinco grupos estabelecidos dentro das forças armadas, que faziam turnês por todo o território nacional, apresentando-se quando não estavam de serviço com obras encenadas e feitas por eles mesmos. Ver meu artigo “A revolução e o teatro na Nicarágua”, Diógenes IV (1988): 159-68. ideológica que ela qualifica sem acanhamento como de “orfandade mais absoluta”, devido à derrota sandinista nas urnas a partir de 1989; buscando um “tipo de teatro que lhes permitisse recuperar” o inevitável sentido da perda, pediram-lhe “atrevidamente que fossem trabalhar na Nicarágua”.5 Vargas aceita o desafio e daí surgirão duas obras: A casa de Rigoberta olha ao sul (2000) e Danzón Park ou a maravilhosa história do herói e o traidor (2003), que detalharemos em seguida, não sem antes dedicar algumas páginas à trajetória do grupo Justo Rufino Garay. Lucero Millán e seu companheiro na época, Enrique Polo, ambos de origem mexicana, chegam à Nicarágua, como tantos outros artistas e trabalhadores da cultura, para apoiar a revolução sandinista, e apenas dois meses depois do triunfo desta fundaram a então chamada Oficina de Atuação Justo Rufino Garay do Sistema Sandinista da Televisão.6 O teatro que surge do sandinismo, apoiado pelo Ministério de Cultura, instituído nem bem chegou ao poder a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) em 1979, dando as costas à burguesia da capital e sua maneira de fazer teatro, foi buscar sua inspiração sobretudo na cena rural, ao mesmo tempo em que intensificou seus esforços por resgatar formas de arte popular latentes entre seus habitantes. Assim afirmava o então Ministro de Cultura Ernesto Cardenal: “Nicarágua tinha cultura, naturalmente, mas agora tem uma cultura de signos distintos, popular. A que havia antes era burguesa, elitista” (1982:149) e assim fizeram numerosos grupos de teatro que surgiram, tais como o Nixtayolero, radicado em Matagalpa, fundado em fins de 1979 por instância do próprio Ministério de Cultura, e o Teyocoyani, de León, fundado em abril de 1980, como parte igualmente de um projeto ministerial, para mencionar apenas dois exemplos entre os mais conhecidos.7 Em função do II Encontro de Teatristas Latino-Americanos e do Caribe, em junho de 1983, vimos o trabalho não apenas dos dois grupos referidos em seus próprios locais, mas também uma vintena de outras obras por todo o país. Eram obras quase sempre de criação coletiva nas quais se refletia a ideologia do movimento popular, que consistia basicamente em projetar os ensinamentos legados pelo líder Augusto Sandino, especialmente seu patriotismo revolucionário, unido a uma notável força espiritual, de proveniência sobretudo cristã, ao mesmo tempo em que adotavam em suas análises da situação social um novo marxismo, mais prático que teórico, mais vivido que aprendido nos textos, desenvolvido no seio da FSLN. Neste sentido, Donald Hodges assinalou a aplicação deste sincretismo marxista-cristão que se denominou “sandinismo”, sobretudo, quando seus líderes propõem uma explicação dos acontecimentos históricos, valendo-se para isso dos instrumentos de análise do materialismo dialético, ao mesmo tempo em que se incitava o povo a atuar apelando a sentimentos patrióticos e religiosos (1986:196). 6 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 6 29/4/2008, 03:48 É importante assinalar que, de todos os temas tratados pelos grupos que tivemos a oportunidade de ver na Nicarágua durante a turnê, foi quiçá o da religiosidade popular o de maior reiteração. Em quase todas as obras que presenciamos a religião surgia a cada passo, fosse em favor do povo como guia espiritual, deixando de lado sua perene ideologia conformista para combater de frente a opressão, ou outras vezes, em franca oposição aos interesses dos segmentos empobrecidos, como eficaz arma contra-revolucionária. O que assombrava naquele momento então era que, tendo-se em conta esta atitude de uma parte do clero nicaragüense, não havia diminuído o fervor geral das pessoas, que também seguiam firmes em suas crenças mesmo diante da possível secularização do sistema. Não há dúvida de que a Nicarágua, neste sentido, representou uma nova experimentação no campo da expansão das idéias revolucionárias e da utopia progressista em razão de ter abraçado a religiosidade popular. Se o processo de conscientização em outros países latinoamericanos, até esse momento e de uma perspectiva teórica, tinha consistido em veicular os problemas sociais, raciais e ainda étnicos através da dialética marxista, na Nicarágua se utilizaram em igual medida os princípios da Teologia da Libertação, tal como os postularam teólogos como Gustavo Gutiérrez, do Peru, com sua ênfase na “opção preferencial pelo pobre” (Teologia da libertação – perspectivas 1971), por sua vez nutrindo-se dos ensinamentos do pedagogo brasileiro Paulo Freire (1921- Cenas do Teatro Justo Rufino Garay, da Nicarágua. 1997), e Camilo Torres (1929-1966), na Colômbia, cuja militância revolucionária se constituiu num exemplo heróico para o resto do continente. Entretanto, deve-se notar, como assinalamos antes e como adverte o teólogo Pablo Richard, que seguiu de perto o processo nicaragüense, que esta “religião do povo” podia ser uma arma de dois gumes, posto que ao mesmo tempo que “expressava o protesto” concentrando-se em “elementos libertadores e alienantes”, outras vezes passava a ser “ópio”, facilitando a manipulação das gentes por parte de uma clerezia reacionária (1981:171). A obra A virgem que sua, com que o Justo Rufino Garay iniciou seus trabalhos, enfrentou com energia esta dualidade apresentada pela religiosidade popular no contexto da revolução. A obra se baseia num fato da vida real que aconteceu em Manágua no começo da década. Um casal do bairro Las Mercedes, de origem popular, tomou uma imagem da virgem e a meteu num congelador; quando estava totalmente congelada colocou-a num altar e obviamente ao derreter-se a água a virgem começou a suar. O “milagre”, como era de se supor, obteve grande publicidade e atraiu milhares de pessoas. Segundo a dona da casa, a virgem, aparentemente, suava de angústia pela situação do país nas mãos dos sandinistas. Ao fim de um breve tempo, alguns jornalistas de El Nuevo Diario e o próprio grupo descobriram a verdade e a virgem já não suou mais. De acordo com Millán, o grupo escolheu o tema da religião por ser este um aspecto “bem estratégico do povo nicaragüense”, amante de suas crenças, tradições e rituais e, sobretudo, para esclarecer que a revolução não estava contra a religião mas sim contra os abusos que em seu nome se cometiam (Wedel 1983:4-5). Para tornar o assunto ainda mais paradoxal, como assinala a própria Millán, “A obra teve tal acolhida que a hierarquia católica protestou oficialmente ante as autoridades governamentais pela apresentação da mesma”, ao ponto de distribuir “panfletos nas igrejas advertindo os paroquianos para que não a vissem” (Millán 2007). O grupo continuou através da década de oitenta enfrentando problemas que afetavam a sociedade do momento. Na obra de criação coletiva A golpes de coração (1985), questiona como “os meios de produção determinam a relação conjugal”, pondo em pauta os próprios valores da revolução levados à intimidade do lar; um tema por demais complicado posto que, como bem sugere John Beverly, a revolução não encarou a abertura de liberdades e igualdade para as mulheres, apesar de sua ativa participação no movimento. Na realidade, se limitou em geral a ter uma atitude que o pesquisador qualifica como “paternalista” (1984-85). Em Cenas da minha cidade (1986), em que se levava ao tablado um dia na vida de Manágua, começa a se filtrar uma visão crítica dos pontos fracos que começavam a ser vislumbrados no manejo da revolução. Não há dúvida de que a “guerra de desgaste” a que estava submetido o povo, com a constante ameaça dos Contras, unida, como observou a mesma Millán, ao serviço militar obrigatório que deixou muitas das associações e grupos sem homens, contribuiu para que se começasse a questionar os excessos de uma burocracia que derivava de um poder de aparência cada vez mais absolutista (Manizales 2007). Este é pano de fundo da adaptação que o grupo faria de O inspetor, de Gogol, em 1987. No entanto, e apesar da fraca insatisfação que começava a se respirar, a derrota dos sandinistas nas urnas em 1989 deixou o grupo, assim como as demais agrupações teatrais que apoiavam o movimento, como foi dito, não apenas perplexos mas também desamparados. Praticamente, da noite para o dia a estrutura que o Ministério de Cultura tinha, com tanto esforço, mantido para incentivar a criação e manutenção de grupos através do país desapareceu, trazendo como conseqüência a dispersão não só dos grupos, mas da maioria das organizações dedicadas à cultura. A partir dos anos noventa, como em outras partes da América Central, como afirma Patricia Fumero, referindo-se à produção costa-riquenha, “novas problemáticas [como] a dignidade humana, as reivindicações e relações de gênero, a violência familiar, a liberdade e a justiça social, entre outras” (Fumero 2007:4), se fazem presentes na produção teatral, ainda que já não associadas a programas políticos partidários. Entre os grupos que existiam antes da derrota do sandinismo, o Justo Rufino Garay é um dos que sobrevive sem deixar de se aprofundar na realidade 1º SEMESTRE • 2008 • 7 camarim 41.pmd 7 29/4/2008, 03:48 do momento. Para trás tinham ficado as obras otimistas em torno de uma ideologia plantada, agora se tratava de dar coerência a seus anos de militância a partir do palco e de recuperar, de certo modo, a fé e a esperança de um mundo melhor através da reflexão crítica do devir histórico em obras como Tempo ao tempo (1993), do próprio grupo. Do mesmo modo, apela-se à dramaturgia de outros autores para sondar a própria realidade, como nas obras de Vargas que analisaremos adiante; ou se recorre a outros textos como Minha vida gira ao redor de quinhentos metros, de Inmaculada Alvear, e Casais, de Susana Lastrepo, para fazer uma versão livre em Sopa de bonecas (2007), na qual a violência doméstica e a situação opressiva da mulher passam ao primeiro plano, numa verdadeira exposição das técnicas de abuso em favor da preservação de um mundo patriarcal. A casa de Rigoberta olha ao sul, de Vargas, exemplifica como poucas obras, e de uma inegável maneira poética, a situação em que ficou o país e muitos de seus habitantes quando, uma vez abreviada a odisséia sandinista e já em cheio no neoliberalismo, que a partir dos anos noventa se entronizou no país como no resto da América Latina, trocaram “o antigo posto de combatente por um posto de governo”, ou a “carteira do partido por um cartão de crédito”.8 “No país dos hinos que murcham”, onde não se escutam “mais que os próprios gritos”, aos quais chamam “hinos”, acontece este recital a quatro vozes: da avó, de Rigoberta, a neta, do pai e da mãe, que encerrados nas quatro paredes de sua casa evocam e questionam os acontecimentos históricos que sacudiram o país centro-americano durante as últimas décadas. Microcosmo do país, é neste espaço habitacional que “aprenderam a dizer sim” e onde se confrontam para trazer à tona o malestar geral, particularizado nesse sentirse doentes “embora ninguém os tenha avisado”, no descontentamento, na desconfiança nos demais e sobretudo na falta de comunicação. Ao começar a obra, tanto a avó como Rigoberta já estão mortas, mas não terminam de ir embora. A avó representa a tradição, o passado indígena, os costumes e, sobretudo, a história. É através dela que voltamos a reviver a saga do general Sandino, pai da revolução popular entre 1885-1934, mandado fuzilar por supostas ordens de Anastasio Somoza, e em cujo nome surgiu a Revolução Sandinista. A filha desaparecida Rigoberta é uma metáfora lúcida da revolução frustrada, e sua morte em combate está associada com as palavras “montanha”, “helicópteros” e “fogo”. Se estivesse viva andaria pelos vinte e oito anos, nos informa a mãe, os mesmos que teria de gestação o movimento de libertação. Segundo a mesma, era como se ela lhe reclamasse algo, “é uma chaminha que o vento espalha, que não se apaga” e que regressa como que querendo buscar alguma coisa; para remexer na consciência de seus progenitores e para “cuspir-lhes na cara”, aparentemente, seu insensível conformismo. Rigoberta está em todas as partes para torturá-los com sua lembrança, mesmo que só 8 As citações da obra provêm da representação da mesma durante o Festival Internacional de Teatro Hispânico de Miami, em junho de 2003. 9 Sobre o tema da corrupção na Nicarágua, que chegou ao que parece a sua máxima expressão durante o governo de Arnoldo Alemán (1997-2002), ver Anderson e Dodd (2005). possam rememorar fragmentos de seu corpo; “é uma menina de pedaços que minha memória não consegue armar completamente”, queixa-se a mãe. A mágoa diante do que poderia ter sido e não foi é um sentimento que poderia ser compartilhado por muitos, pois segundo Rigoberta, “ninguém se atreve a atravessar o país dos hinos que murcham porque cairiam calcinados pela recordação”. Pareceria que na terra dos “movimentos telúricos”, dos hinos e dos poetas, já poucos “podem falar”. Mais ainda, como assinala a mãe, não se “pode esquecer que alguma vez falamos em nome da verdade, solidamente, sem dúvidas, como se a verdade fosse feita de cimento e de ferro”. Agora as palavras parecem “descabeçadas”, “as boas idéias caíram sem fazer ruído”, e a vida se encheu de gretas ao sumir-se na complacência de uma sociedade em que “cada dia há mais corruptos”.9 Há recriminações de parte a parte, e quem leva a batuta é a mulher, em cuja opinião o marido só se interessa é em ganhar dinheiro e até cheira mal, ela preferindo evocá-lo quando ele ainda “não tinha tanta gordura na alma”: Aprendemos a aceitar a pobreza que antes nos encolerizava como se o mundo fosse assim, e a vida fosse assim, e a nos familiarizarmos com as coisas mais terríveis como se fossem nossas, cotidianas, manejáveis. Que engraçado você parece, você que queria mudar o mundo; o mundo acabou mudando você. O homem, por seu lado, não fica atrás, ao acusá-la de “ter trocado o fuzil 8 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd Bicicleta Lerux, Malayerba, Equador. 8 29/4/2008, 03:48 por um carrinho de supermercado”, de ter “deixado de ser mulher para converter-se numa ONG” e, sobretudo, de ser “uma revolução na penumbra, que não resplandece” quando já “todos, ou quase todos estamos do mesmo lado”. Há um meio-termo que se busca e se encontra nestas discussões, que evidenciam a capacidade das gentes de conservar uma certa consciência crítica mesmo em meio a uma anestesiante mediocridade ideológica, como assinalam Janise Hurtig e Rosario Montoya (citando por sua vez Florence Babb): Babb mostra como a consciência crítica fomentada durante a era sandinista continua viva e fornece um ponto-chave de conexão entre a política econômica neoliberal e os movimentos sociais independentes que emergiram e cresceram em oposição tanto a políticas governamentais de direita quanto a práticas não-democráticas de esquerda. (2005: 191) O contexto angustiante da obra, em que não se sabe com toda certeza se as “amarguras são as mesmas ou se renovam”, está realçado pelos aspectos mecanicistas da montagem cênica, dirigida pelo próprio autor. Os adereços constam de duas cadeiras ocupadas pelos pais e um praticável que Rigoberta e a avó movem de um lado a outro do cenário, executando ações de maneira intermitente que acarretam bastante ruído. Seja a última dançando com um pau com o qual golpeia o praticável, ou a primeira tocando um tambor de lata enquanto passeia quase marcialmente pelo cenário durante longos momentos, o ruído, irritante por momentos, ensurdece o diálogo, como se a dificuldade na comunicação não dissesse respeito somente aos personagens, mas sim a todos os que de uma maneira ou de outra, direta ou indiretamente, estivemos envolvidos neste devir histórico particular.10 Neste sentido, nos diz Fernando Vinocour, “o olhar de Rigoberta atravessa tudo, como um olhar sem limites, sem nos deixar outra possibilidade além de interrogar-nos profundamente, ou realizar um ato de negação do que presenciamos” (2001:25). Não há dúvida de que A casa de Rigoberta apresenta bastante afinidade com o que está se produzindo no resto da América Latina, ao tratar de fazer um balanço social, político, ideológico e econômico a partir, e como resultado ainda que provisório, das reformas neoliberais das últimas décadas, as quais, de resto, no caso específico da Nicarágua, parecem apontar para o fracasso (ver Vanden 2002).11 Vargas, por outra parte, volta ao tema nicaragüense na obra Danzón Park ou a maravilhosa história do herói e o traidor (2003), que escreve novamente a pedido de Millán. O título da peça Danzón Park se refere a um salão de baile no subúrbio da cidade aonde o “herói” militar, Arcos, agora “retirado” ou, como ele mesmo diz, “de férias”, e sua esposa/noiva Leda iam dançar quando jovens, e aonde esta última regressa, duas décadas depois, não sabemos se em sonhos ou sonâmbula, como reclama a intrigante Tia Yoga, para reencontrar-se com o “jovem Arcos” que ela uma vez amou. Estes são os personagens da trama que se desenrola diante de nossos olhos, arrastando-nos a um clímax que pressentimos como fatídico, dado o ar de tragédia que desde o princípio paira sobre eles. Por outra parte, a partir do contexto em que a obra se inscreve, é quase inevitável a associação de Arcos com o líder da FSLN, Daniel Ortega,12 cuja situação não podia estar evocada de maneira mais acertada, para a época em que a peça estreou: 10 O tambor (1959), romance de Günter Grass, nos vem à mente involuntariamente como a metáfora que foi de uma voz de alerta em meio à aparente indiferença de um povo voltado de costas à sua realidade circundante. Oskar, o filho de um camponês alemão, recebe de presente quando faz três anos um tambor de lata. Enojado do mundo grande sucesso. Nos referimos, por exemplo, às obras que têm surgido na Argentina dentro do âmbito da “estética da multiplicidade” (ver Dubatti 2004), ou no México, que dão testemunho da crise do neoliberalismo, como Krisis (1995), de Sabina Berman e Os executivos (1996), de Víctor Rascón Banda, entre outras. 12 Depois de ter perdido três vezes as que o rodeia, a Alemanha dos anos 30 e 40 presa do fascismo paulatino que a vai envolvendo, decide não crescer mais e passa o dia tocando o tambor, como consciência irascível e enervante de um mundo que está se desviando de seu leito normal e caindo na ignomínia e na alienação. O romance foi levado ao cinema em 1979 pelo diretor Volver Schlöndorff, com Arcos: […] (Pausa) Eu sou um herói; agora que você está dormida posso lhe dizer a seco, sou um herói retirado, um herói aeroplano, um herói que não pode voar por razões técnicas. Um herói sem contundência; você também perdeu contundência. (2006:53) Mas é através da Tia Yoga, metade pitonisa, metade conselheira, que se complementa a “contextualização” de nosso “herói nativo13” Arcos: Tia: O que acontece é que você não gosta de mim porque eu me visto na moda, e no entanto, você nunca saiu do labirinto dos mercados populares, mesmo podendo ir a Miami, you don’t go, você vai aos mercados populares. Você ficou com o tique da época gloriosa, tem o paladar enferrujado, muita comida popular, querido, muita comida popular. Sua consciência perdeu contundência, não serve nem para envolver um ramo de flores … (Pausa) Me 11 eleições presidenciais, em 1989, 1996 e 2002 em favor de Violeta Chamorro, Arnoldo Alemán e Enrique Bolaños, a situação política de Ortega sofre uma mudança considerável quando entra em negociações com o partido político opositor (Partido Liberal Constitucionalista) de Alemán, a quem Bolaños, assim que se instalou no poder, submeteu a uma campanha anticorrupção que o levou, em dezembro de 2003, a ser condenado a vinte anos de prisão por manejos ilícitos de fundos oficiais, entre outras acusações. Como é o do conhecimento público, uma vez que o próprio Bolaños foi expulso do PLC, então ainda liderado por Alemán, as “negociações” entre os partidos PLC e FSLN entraram em curso, levando ao congresso, de maneira bemsucedida, uma lei que terminaria prematuramente com a condenação de Alemán. Para muitos, e cremos não sem razão, se estes “tratos”, por um lado, garantiram a liberdade de Alemán, por outro aplanaram a subida ao poder de Ortega nas eleições de 2006. Deste modo, a luta entre as utopias e a realidade, que ocupou a vida política do país durante a maior parte do século passado e o começo do presente, parecia chegar a seu fim quando o líder “de férias” de hoje, por certo de forma metafórica na obra, em quem se concentraria qualquer resíduo de esperança de um futuro melhor, tem que eliminar o jovem sonhador e revolucionário que foi para poder seguir vivendo, traindo si mesmo e a todos que acreditaram nele ao entrar em tratos e alianças com a oposição. 13 No orig., criollo, termo específico para os descendentes de espanhóis nascidos nas Américas. N.T. 1º SEMESTRE • 2008 • 9 camarim 41.pmd 9 29/4/2008, 03:48 Danzón Park, Justo Rufino Garay, Nicarágua. perdoa, querido, me perdoa, eu sei Leda: Não, como uma Leda: Pensei que você se que você não sabe como utilizar a revolução…católica. (62) esforçava para esquecer… (61) fúria, só quero que não se sinta sozinho. Pobre Arcos! Parece um menininho amarrado a um montão de fios invisíveis. (56-57) 14 A representação a que tive acesso fez parte do programa do Festival de Teatro de Manizales em outubro de 2007. 15 Este esquema de contrastes no desenho das luzes de suas obras parece ter se convertido num selo distintivo da arte de Vargas como diretor, ver ProañoGómez (2007). Quanto a este Vargas diretor, é de rigor anotar que além dos grupos mencionados ele tem trabalhado no Equador com El Callejón del Agua e Tragaluz; no México com o grupo El Sótano e na Costa Rica com a Compañía Nacional de Teatro. De modo que Arcos chega ao recinto do Danzón Park empurrado pela Tia Yoga, que junto com Iago (óbvia a similitude dos nomes), esse personagem imortal da tragédia Otelo de Shakespeare, desencadeia a tragédia com suas patranhas, ao fazê-lo corroborar a “infidelidade” de sua mulher e propiciar o desenlace. O jovem sonhador que, diga-se de passagem, olha e fala com as estrelas, nos recorda o poeta que cantava às noites estreladas (Pablo Neruda), que todos recitávamos no início destas lutas idealistas, quando a felicidade se parecia com a igualdade e se tinha fé em que, com empenho, era sim possível mudar o mundo. Mas a felicidade já não pode existir, como declara sucintamente Leda em suas conversações esquemáticas com Arcos, porque a inocência se perdeu faz muito tempo durante a época das revoluções cristãs: Leda: Você lembra ou não lembra? Ao final Arcos mata o jovem apunhalando-o até que “o sangue do herói se confunde com a água podre e contaminada do Grande Lago, por mais que o sangue do herói mana incessante, o lago podre não volta a ser o lago sagrado de outrora porque os deuses estão de férias, no mesmo hotel…[…]” (76). Se a obra se enlaça genealogicamente com a mencionada tragédia de Shakespeare, e com a própria origem do Édipo rei de Sófocles que, por certo, como já notaram os críticos, “procura seu traidor e resulta ser ele mesmo” (Ávalos 2007), também nos traz fortes conotações de Macbeth no tratamento dado a Leda, a esposa de Arcos, sem esquecer também o caráter sibilino da Tia Yoga. Igual a Lady Macbeth, em plena crise de consciência depois dos acontecimentos, e além disso sonâmbula, em Leda não há justificativa nem vestígio de inocência em seu comportamento anterior, como ela mesma sugere no seguinte diálogo, no qual, muito a propósito, vem à luz o motivo das mãos manchadas de sangue: Arcos: Sim, mas não quero. Arcos: Quando jovens… (Silêncio) Leda: Queria que você não falasse Leda: A felicidade… disso. Arcos: Sim? Arcos: Temíamos o sangue Leda: É como uma revolução. Leda: Por favor. Arcos: Sim? Arcos: Por isso mesmo nos Leda: Não existe mas acreditamos manchávamos as mãos nela. Leda: Arcos, não… Arcos: Como deus para os Arcos: Porque o sangue nos católicos. libertava 10 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 10 29/4/2008, 03:48 De maneira conseqüente, Leda contempla impávida, embora de uma certa altura, porém sem intervir, a cena do assassinato do jovem, tornando-se participante da “traição”. Segundo Jorge Ávalos, a obra se apresenta como “um jogo intertextual e interlúcido” em que “Vargas concebe, escreve e dirige uma encenação que constitui um ato ritual, uma experiência mágica, um encontro passional do espectador com uma forma particular de heroicidade traída que emerge com o pós-guerra” (2007). Nas palavras do próprio dramaturgo: “Este herói superlimitado contém o traidor, mais ainda, foi substituído por ele. Tal mudança se operou sutilmente porque a heroicidade se transformou num rótulo, num título, uma prestação paga à história, prestação que legitima tudo, inclusive a traição” (Arístides Vargas, Programa de Danzón Park, 2003). Quanto à montagem da obra, dirigida por Vargas e Charo Francés,14 é realçada por um jogo de claro-escuros, de contrastes, entre os dois casais que formam o elenco, auxiliada também pelo jogo de luzes que vão da escuridão (a penumbra acompanha a obra), à iluminação seletiva dos personagens.15 Deste modo, por um lado está a dupla que representa o herói sem contundência/o poeta sonhador; como em Pluma e outras obras de Vargas, o último tem a capacidade de alçar vôo, quando ainda se é inocente, enquanto o primeiro, a duras penas, se arrasta pelo Bibliografia solo, prejudicado pela carga que leva nas costas. Por outro lado está Leda, heroína trágica mesmo em meio à traição, apropriadamente vestida com um traje branco e longo, acentuado por um ramalhete de flores – sugerindo uma noiva inocente que na atuação experiente de Lucero Millán se converte às vezes em daguerreótipo estereotipificado – e a Tia Yoga, aspirante a pitonisa um tanto extravagante e vulgar em sua atitude prosaica, que usa um traje vermelho de franjas e lantejoulas. Estes personagens, ao mesmo tempo em que se contrastam, chegam também a se complementar, como os dois pólos opostos de um mesmo personagem, em diferentes etapas ou momentos da vida. Os espaços utilizados, do mesmo modo, sublinham a dicotomia apresentada pelos personagens, oscilando entre o dormitório “real” do casal e o salão de baile na estrada oeste; no primeiro se sonha e no segundo se realizam os sonhos, estabelecendo-se um balanço entre um e outro estado em cuja linha fronteiriça parece definir-se grande parte da dramaturgia do autor. Ambos lugares são evocados pelos diálogos dos personagens e se conectam por um corredor imaginário por onde transitam todos, passando do presente ao passado e vice-versa e fazendo-nos, de passagem, também “cúmplices” involuntários por omissão das mudanças ocorridas, que começam a parecer uma realidade não buscada, não desejada, pela qual, pelo menos nesta instância, parece que se lutou em vão em “épocas gloriosas” passadas. Anderson, Leslie E. e Lawrence C. Dodd. 2005. Learning Democracy: Citizen Engagement and Electoral Choice in Nicarágua 1990-2001. Chicago: Univ. of Chicago Press. Ávalos, Jorge. 2007. “Arístides Vargas en Nicaragua”, Avalovara, abril 17, http://avalovara.blogspot.com/2007/04/arstides-vargas-en-nicarágua.html. Babb. Florence. 2001. After Revolution: Mapping Gender and Cultural Politics in Neoliberal Nicaragua. Austin: Univ. of Texas Press. Beverly, John. 1984-85. “Writing from the Revolution: Ernesto Cardenal and Roque Dalton”, Metamorfosis 2..1: 52-58. 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El zaguán de aluminio, Tres viejos mares y Ana, el mago y el aprendiz. Tres piezas del mar. Quito: Editorial El Conejo. —. 2006. Nuestra señora de las nubes, Danzón Park o la maravillosa história del héroe y el traidor, La muchacha de los libros usados y La razón blindada. Teatro ausente: cuatro obras de Arístides Vargas. Buenos Aires: Instituto Nacional de Teatro. Vinocour, Fernando. 2001. “Una Mirada sin límites: La casa de Rigoberta mira al sur”, Conjunto 121: 24-26. Wedel, Rudolf. 1983. Entrevista con Lucero Millán, Ventana, 19 de marzo::4-5 • 1º SEMESTRE • 2008 • 11 camarim 41.pmd 11 29/4/2008, 03:48 A II MOSTRA LATINO-AMERICANA DE TEATRO DE GRUPO Por uma integração teatral latino-americana Mario A. Rojas A II Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo organizada pela Cooperativa Paulista de Teatro (CPT), do dia 30 de abril ao dia 6 de maio de 2007, fortaleceu o que estive sublinhando por muito tempo: que o teatro brasileiro é um dos mais vitais e criativos, e um dos mais sensíveis ao seu contexto social e histórico. Contudo, apesar de suas qualidades, é pouco conhecido no resto da América Latina. Escassamente se vê circular em temporadas de teatro ou em festivais que se realizam em outros países da região de fala hispânica. Uma das razões pode ser de ordem lingüística e/ou cultural. Isto pode explicar o fato de que o teatro brasileiro esteja sempre presente em festivais de teatro de Portugal. Ali pude desfrutar dos espetáculos de grupos como o Galpão de Belo Horizonte, a Companhia do Latão, o Galpão do Folias de São Paulo e o Teatro da Vertigem, sempre com teatro cheio e com elogios da recepção crítica. Ali pude ver também a influência de grupos brasileiros em outros de fala portuguesa, não só de Portugal, mas também de Moçambique, Angola e Cabo Verde. Mas a ausência do teatro brasileiro no resto da América Latina pode ser devido a outras razões, como o possível desinteresse dos “teatristas” brasileiros de levar seu teatro a outros países latino-americanos, o que seria muito justificável já que o Brasil é um país de proporções imensas que se basta e sobra na sua geografia. O estado de São Paulo é maior que alguns países da região e somente na área urbana de sua capital, em 2004, a CPT tinha 836 núcleos artísticos e 3.179 associados. O desconhecimento pode dever-se igualmente ao desinteresse dos outros países latinoamericanos de incorporar em seus festivais o teatro brasileiro, privando-se assim de tudo o que poderia ser oferecido. Seus organizadores parecem não ter descoberto quão frutífero e enriquecedor seria o intercâmbio e que a barreira lingüística importa pouco, pois no teatro brasileiro, como é a tendência do teatro contemporâneo em geral, a gestualidade corporal, a visualidade cênica e a sonoridade são tanto ou mais importantes que a palavra. Mas, o que é mais provável é que se deva aos três fatores ao mesmo tempo. Felizmente, as coisas estão mudando. Um claro indício desse giro é a II Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo que, de acordo com Ney Piacentini tem entre seus objetivos, “... aprofundar mais a relação com os grupos latinoamericanos e de outras localidades do Brasil”. O que é igualmente promissor é que, como assinala Piacentini, “já existe o interesse de reproduzir a Mostra nos estados brasileiros e, mesmo, em outros países latino-americanos” (Latino-Americano, 7 de maio, 2007). Os grupos teatrais participantes, dez selecionados e dois especialmente convidados, converteram o Centro Cultural São Paulo em um ambiente de festa, onde um público sempre cheio de expectativa fazia longas filas muito antes dos espetáculos. Esta recepção entusiasmada foi a mesma tanto para os 7 grupos brasileiros como para os 5 do resto da América Latina. Mas o contato do público com os artistas foi mais além do espetáculo em si, pois este tinha o privilégio de um encontro direto com diretores, atores, cenógrafos e técnicos, que a cada manhã, além de dar uma demonstração de seu trabalho, respondiam com atenção todas as perguntas que lhes dirigiam. A empatia entre público e artistas era total. Além dessas seções de encontros diários, aconteceram dois debates em que participaram críticos e reconhecidas figuras do ambiente teatral latino-americano para conversar sobre diferentes temas, entre os quais se destacou o da integração latino-americana, além de incluírem outros três assuntos relacionados à situação atual do teatro latino-americano, como os efeitos da globalização e as mudanças políticas que afetam a produção e recepção teatral. Nesses encontros participaram Vivian Tabares, diretora da revista Conjunto, Mario Rojas (que substituiu que George Woodyard de quem se lamentou muito sua ausência), Reinaldo Maia, intelectual e um dos diretores do Galpão do Folias de São Paulo, Sérgio de Carvalho, diretor da Companhia do Latão e professor de teatro, e Raquel Carrió e Flora Lautén do 12 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 12 29/4/2008, 03:48 Mario A. Rojas é professor da The Catholic University of America Tradução de Marília Carbonari A Gaivota (Alguns Rascunhos), Piollin, PB-BR. 1º SEMESTRE • 2008 • 13 camarim 41.pmd 13 29/4/2008, 03:48 Buendía, o grupo cubano de maior fama internacional. Todos os dias se distribuíam aos artistas e ao público, o jornal da II Mostra, o Latino-americano, que além de conter notícias relativas ao festival, oferecia uma crítica dos espetáculos da noite anterior, escritas por críticos brasileiros e estrangeiros, e também reflexões teóricas sobre o teatro latino-americano em geral. Desse modo, se cumpriu um dos objetivos da CPT que era “formar platéia. E isso é muito mais do que levar pessoas para as salas de teatro em São Paulo, passa também pelo oferecimento de instrumental para inserir o espectador nos debates das artes cênicas. A Mostra ofereceu oportunidade nos debates, nas demonstrações de trabalho e no próprio Latino-Americano” (Piacentinni, Latino-Americano, 7 de maio de 2007). Tudo isso realizado em um ambiente em que reinou a camaradagem e o apoio solidário de artistas, críticos e público. A relação entre grupo e críticos do Brasil e de outros países não foi somente artística, houve também um intercâmbio de publicações sobre aspectos teóricos e práticos de seus trabalhos. Entre elas, cabe mencionar a Camarim da Cooperativa Paulista de Teatro, o Caderno do Folias, do Galpão do Folias de São Paulo, a Vintém da Companhia do Latão, a Cavalo Louco do Teatro Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis e O Sarrafo, uma publicação produzida por vários grupos independentes. O Teatro como um instrumento de ação social Iniciou a II Mostra o grupo teatral Filhos da Mãe…Terra, um dos convidados. Formado em 2003, no assentamento Carlos Lamarca, em Sarapuí, São Paulo, o Filhos da Mãe…Terra é parte do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) integrado por 40 grupos. Seu espetáculo Posseiros e Fazendeiros, inspirado em Horácios e Curiácios de Brecht e estreado em 2004, foi o resultado de pesquisas sobre a estrutura agrária brasileira e do estudo da teoria e práxis do teatro épico. O grupo também incorporou técnicas do Centro de Teatro do Oprimido de Augusto Boal e da Cia. do Latão. Apesar dos problemas econômicos dos assentamentos camponeses e da distância que os separa, este grupo integrado por onze Angu de Sangue, Coletivo Angu, PEBR. jovens atores camponeses, com uma cenografia simples, mas com grande vitalidade e mistura de seriedade e humor, com cantos e palavras de ordem, encenaram com entusiasmo sua luta por seus direitos cidadãos e por uma vida mais digna. O outro grupo convidado foi o carioca Teatro Pirei na Cenna, do Centro de Teatro do Oprimido, que representou no último dia da Mostra, É Melhor Prevenir que Remédio Dar. Os atores, entre eles alguns deficientes mentais, fizeram o público refletir sobre a discriminação contra as mulheres, contra aqueles que adoecem por problemas de incapacitação e, em geral, contra os preconceitos sociais e religiosos que polarizam constantemente o mundo contemporâneo. Concebida dentro da estética de Boal, a peça convidou os espectadores (entre eles os atores de outras companhias) a intervir no palco para oferecer alternativas de solução ao conflito dramático-social estabelecido, adotando assim o papel de protagonista. Foi um espetáculo didático no qual a realidade cênica representada, como sucede com o teatro de conscientização social, não era diferente da realidade da vida cotidiana. Por uma democratização do espaço artístico Em A saga de Canudos, uma adaptação da peça O Evangelho Segundo Zebedeu de César Vieira, o Teatro Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Travéis revisitou a história de um movimento popular, que no final do século XIX era liderado, no nordeste do país, pelo messiânico Antônio Conselheiro, protagonista também do romance-epopéia A guerra do fim do mundo de Mario Vargas Llosa. As idéias utópicas de Conselheiro, que cativaram uma grande massa de camponeses, sua história de enfrentamento com o exército oficial que culminou com o extermínio de seu movimento, atraíram o transeunte que não pôde resistir ao poder sedutor da música, canções, da figura monumental de Conselheiro, dos trajes e gestualidade, que despregavam a todo o momento a maestria de sua arte. Temática e ideologicamente este espetáculo esteve em perfeita consonância com Posseiros e Fazendeiros do Filhos da Mãe…Terra, com que compartilha os mesmos propósitos, 14 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 14 29/4/2008, 03:48 mas pelas razões explicadas, com uma estética mais depurada. Os atores do Teatro Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Travéis preferem denominar-se “atuadores”. Explicam que “um atuador é … a junção do artista com o ativista político, quer dizer, sua atuação não se reduz ao palco, à cena, mas é ampliada, na medida em que adota um posicionamento comprometendo-se com a realidade que o cerca” *. O outro espetáculo de rua, Uma canção de Guerreiro converteu a passarela que une o Centro Cultural de São Paulo com uma estação de metrô, em um espaço cênico que o grupo demarcou com giz. Desse modo, a Associação Teatral Joana Gajuru se apoderou, ainda que momentaneamente, de um espaço público que convivência e entretenimento, que, como bem assinalou o crítico Marcio Marciano estão quase desaparecidos das grandes cidades. Foi um espetáculo picaresco e carnavalesco que, construído a partir do jogo de palavras, do duplo sentido e da ambigüidade, de uma música desordenada e chamativos trajes e máscaras, prendeu a atenção de um numeroso grupo de espectadores que optaram por não tomar o metrô e se esqueceram das telenovelas que os esperavam a essa hora em seus televisores. Otra Vez Marcelo, Teatro de Los Andes, BOL. Uma recontextualização de clássicos do teatro de ontem e hoje O grupo Buendía, com a dramaturgia de Raquel Carrió e a direção de Flora Lautén trouxe Charenton, uma audaz adaptação de Marat/Sade de Peter Weiss, um dos textos clássicos do século XX. Foi um dos espetáculos estrangeiros mais esperados e não foi para menos. Trata-se de um espetáculo de grande impacto visual, construído mediante a inteligente composição de espaços, tonos e volumes de vozes e cores e de jogo de luzes que marcavam o desenvolvimento e intensidade da ação dramática e sua cadência rítmica. Conceitualmente foi igualmente profundo. Com uma linguagem cênica paródica e carnavalesca se reconstruiu a metateatralidade no abismo de seus intertextos: atores cubanos que representavam atores que representavam loucos que representavam por sua vez a morte do revolucionário francês Jean-Paul Marat, que na * Rafael Vecchio, Utopia em Ação. Porto Alegre: Terreira da Tribo Produções Artísticas, 2007, pág. 53. prisão de Charenton dirigiu o famoso e vilipendiado, mas sempre atrativo Marquês de Sade. Os intertextos originais serviram, sobretudo, para iluminar, com execráveis ecos, as impurezas do mundo contemporâneo, as fronteiras às vezes indiferenciadas entre a loucura e a política, o instinto e a razão, a inocência e a vilania, ou seja, de todas as tensões irresolutas do barroquismo que caracteriza o mundo contemporâneo, em constante dúvida de tudo e por tudo. Assim, a releitura do texto de Weiss foi também uma releitura do mundo atual em que a sensatez e a loucura parecem ter apagado seus limites. Pena que custa tantas vidas humanas. Também de fronteiras, foi a adaptação do Grupo de Teatro Piollin de A Gaivota de Tchecov, rebatizada como A Gaivota (Alguns Rascunhos). Nessa versão do Piollin, os treze atores da obra de Tchecov se reduzem a cinco. A oposição cidade/campo tão demarcada no texto original perde aqui seu sotaque e os elementos cênicos tão prolixos e detalhados se reduzem a uma mesa retangular e cinco cadeiras em que se instalam os atores, sempre à vista do público ainda que não atuem. A metateatralidade do hipotexto russo se mantém, mas nesta encenação conceitual e formalmente minimalista, se orienta a problemas existenciais, mais pontuais e profundos: as falsas dicotomias entre a arte e a vida, a masculinidade e feminilidade e a falsidade e a autenticidade. A dimensão existencialista, a nosso parecer, foi enfatizada com a imagem de um inseto projetado em um vídeo que me evocava a Metamorfose de Kafka. Foi o único espetáculo da II Mostra em que o espaço selecionado foi insuficiente. Sua acústica ruim e o persistente barulho do sistema de ar condicionado, tornaram inaudíveis a todo tempo as palavras tão importantes nessa proposta cênica de grande conteúdo filosófico. A adaptação de outro clássico foi trazida pelo grupo Escena de Caracas com Mackie, um espetáculo inspirado em outro texto canônico do século XX como é A ópera dos três vinténs do qual se extraíram breves fragmentos e se deu privilégio para as canções de Kurt Weil e Bertolt Brecht que foram usadas como motor central do espetáculo com que se propunha refletir sobre os temas 1º SEMESTRE • 2008 • 15 camarim 41.pmd 15 29/4/2008, 03:48 sociais que tanto preocuparam o dramaturgo alemão. A coreografia de bailes e movimentos muito contemporâneos foram muito atrativos mas ao mesmo tempo foram agentes de dispersão para a comunicação da mensagem social. Um dos acertos do espetáculo foi o uso de uma mala, com evidentes conotações metafóricas, que os bailarinos manipulam constantemente até chegar a converter-se em um atuante portador de múltiplos significados, como bem assinala Vivian Martínez em sua resenha do espetáculo, pode aludir à “migração, evasão (e à) tensão política” que se vive atualmente na Venezuela (Latino-Americano, 5 de maio, 2007). Uma versão muito original de Romeo e Julieta foi a que ofereceu o grupo argentino Teatro Sanitario de Operaciones com sua peça Mantua na qual retoma o famoso texto de Shakespeare para recrear o não-enunciado dele: um hipotético sonho de Julieta quando, sob efeito do sonífero, espera na cripta a chegada de Romeu. Foi uma encenação ao ar livre, especialmente dirigida à uma nova geração de espectadores, quer dizer, aos jovens acostumados aos efeitos sensoriais, visuais e sonoros de espetáculos monumentais que deixariam pasmados os espectadores elisabetanos. Recorro ao comentário do crítico Marcio Marciano que aprecia o esforço inovador do grupo, sua “experimentação com possibilidades inéditas de diálogo com a contemporaneidade” mas que por outro lado, é deficitário na criação de sentidos transcendentais que nos levam a refletir sobre um mundo que pretendemos modificar (Latino-Americano, 6 de maio, 2007). A influência do grupo catalão La Fura dels Baus foi notória, o qual não surpreende posto que o grupo o reconhece como uma referência importante na concepção e elaboração de seus espetáculos. Sancho Pança, um espetáculo que passeou com muito sucesso em festivais ibero-americanos e que Manuel Chapuseaux (Don Quixote) e sua esposa Nives Santana renovam constantemente, sempre com uma finura artística definida pela dedicação e profissionalismo. Os recursos cênicos são mínimos: alguns módulos de madeira, um guardachuva velho, um vestuário muito simples e um ou outro objeto reciclado com os quais recriam com verossimilhança a ficção cervantina. Os integrantes do Teatro Gayumba são um caso exemplar de muitos grupos latino-americanos que com mínimos recursos, mas com rigor e disciplina, criam espetáculos de grande qualidade artística. Basta-lhes seu talento e incondicional entrega a arte cênica. O segundo espetáculo derivado de um texto narrativo foi Angu de Sangue do Coletivo Angu de Teatro que adaptou, em forma de monólogos, alguns contos do escritor pernambucano Marcelino Freire. Para este propósito Angu de Sangue (que corresponde ao título do livro matriz de Freire) criou uma cenografia que incluía vídeos e elementos de cultura pop, mantendo-se sempre fiel aos textos do autor, que esteve presente na II Mostra. Os contos de Freire têm como referente os excluídos dentro do seio da grande cidade contemporânea, a realidade crua do submundo urbano em que impera a violência e proliferam seres endividados em um ambiente sem saída, atmosfera que o Coletivo Angu de Teatro recorre muito bem mantendo o estilo poético e a intencionalidade social do escritor. Uma proposta dramática de textos narrativos Dois espetáculos da II Mostra seguiram em uma tendência, muito popular hoje em dia, em que muitos diretores de teatro, preferem, em vez de textos dramáticos, a adaptação para cena de textos narrativos, o qual lhes dá uma maior liberdade ao seu gênio e talento pessoal. O Teatro Gayumba da República Dominicana trouxe Don Quixote e A Saga de Canudos, Ói Nóis Aqui Traveiz, RSBR. 16 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 16 29/4/2008, 03:48 A comunhão entre estética e ética: Ovo e Outra vez Marcelo Os dois espetáculos que chamaram a atenção por sua realização estética e por seu modo de aproximar-se do mundo de hoje, foram Ovo e Outra vez Marcelo. Já é um lugar comum dizer que todo texto dramático e sua realização final, a encenação, possuem uma intenção política, mesmo quando se trata de negá-la, posto que a negação ou a neutralidade em si constitui um ato político. O que é diferente é a maneira como se expressa essa carga política. Na II Mostra, como pudemos apreciar no exposto até aqui, predominaram os grupos que explicitaram claramente sua intenção política. Ovo do Circo Teatro Udi Grudi proveniente de Brasília e Outra vez Marcelo do Teatro de Los Andes da Bolívia, a partir de distintas propostas, foram, talvez, os que melhor alcançaram essa desejável relação harmônica entre estética e ética, entre a busca esforçada da perfeição artística e dos valores humanos que nos levam a um mundo melhor e que dignifique o homem. Com o “consumismo que nos consome”, as grandes cidades produzem cada vez mais lixo que, às vezes, paradoxalmente como expressava o Angu de Sangue na encenação de um dos contos de Marcelino Freire, os lixões chegam a ser um meio de sustento, mais ainda, de vida, de muitos seres marginais. Alguns objetos que chegam ao lixão se reciclam e retornam transformados às galerias comerciais ou supermercados. Os objetos sim, mas não os “catadores de lixo” que permanecem condenados nesse espaço sujo em que convivem com ratos. Três atores, exímios Ovo, Circo Teatro Udi Grudi, DF-BRA. músicos criam, a partir de objetos em desuso e descartáveis, instrumentos musicais com os quais interpretam com segurança e soltura e que, dominando a técnica do clown, representam três protótipos desses despossuídos sociais que na sua precária existência dão um sentido transcendente a suas vidas. Um espetáculo que convida a um estudo particular. Outra vez Marcelo requisitou somente um espaço íntimo, assim como íntima foi a dramatização da vida desse intelectual, um político que não trepidou em falar sempre com a verdade a flor dos lábios, que lhe valeu uma corja de inimigos, de políticos corruptos e ineptos. Como em muitos lugares de nossa América Latina repressiva, onde há centenas de Antígonas que buscam seus entes queridos desaparecidos para cumprir o ritual sagrado de sua sepultura, a esposa de Marcelo Quiroga Santa Cruz obstinadamente busca o corpo de seu marido assassinado. Conhecíamos um Teatro de los Andes com numerosos atores. Agora bastou com César Brie, o diretor, e sua esposa Mia Fabbri, para reconstruir esse pedaço inconcluso da história da Bolívia. É o que fazem a partir de dois focos que se complementam: a partir da memória pessoal de uma viúva da qual se vão alinhavando fragmentos da história e, a partir do testemunho da imprensa, da televisão e documentos objetivos. Tudo é feito com a sutileza de elementos cênicos mínimos e com a perfeição que se alcança com a dedicação e a exigência. • 1º SEMESTRE • 2008 • 17 camarim 41.pmd 17 29/4/2008, 03:48 Da renúncia fiscal ao Arte Contra a Barbárie NOTAS PARA UMA HISTÓRIA1 Teatro/Mercadoria, Kiwi, SP. Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho 1 Trechos de livro no prelo: A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: 5 anos da Lei de Fomento, por Dorberto Carvalho e Iná Camargo Costa. Já está na hora de deixar cair uma ficha sobre a qual há tempos Paulo Arantes vem insistindo: o capitalismo é crime organizado. Até Adorno, um filósofo desligado das questões da vida material na opinião de inúmeros de seus adeptos, há mais de meio século avisou que a política não é apenas um negócio, mas o negócio é a política inteira. E ao menos os leitores de Robert Kurz parecem já ter compreendido que a política há tempos foi degradada a uma esfera secundária da economia totalitária, que se empenha com o máximo zelo para que nada aconteça sob o sol que não sirva diretamente ao objetivo tautológico da maximização dos lucros. Isto hoje vale também para a cultura em qualquer uma de suas manifestações. A apologética agora dominante, até porque não admite réplica, tem horror à palavra capitalismo, assim como acontecia no final do século XIX. Em seu lugar fez prevalecer a palavra mercado. Sem maiores surpresas, mas contrariando o discurso anti-estatista de seus agentes no negócio das idéias, o mercado exige estado forte, atuante, parceiro, facilitador e regulador. Hoje é praticamente arrombar uma porta aberta dizer que a reivindicação de “estado mínimo” só vale para justificar a progressiva retirada do Estado de setores até recentemente sob a sua responsabilidade, como educação, saúde, cultura. Para estes 18 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 18 29/4/2008, 03:48 sim, o estado deve ser mínimo, senão ausente, quando muito regulador. Já o Estado forte tem uma função estratégica: legitimar no espaço nacional as exigências do capitalismo global, que agora precisa levar às últimas consequências a colonização integral das esferas da circulação, dos serviços e da reprodução por enormes massas de capital à procura da valorização que já não é mais possível nos domínios tradicionais da produção de mercadorias (nos Estados Unidos, em 2001 a queda dos lucros do setor industrial foi de 44,4% em relação ao pico de 1997, segundo Robert Brenner, que também informa ter havido redução de 1/5 na força de trabalho no mesmo período). Este problema, diagnosticado por Marx como “queda tendencial da taxa de lucro”, persiste e segundo os indicadores mais recentes está se agravando cada vez mais. No processo rápido e avassalador da transformação de direitos em serviços a serem explorados pelo capital, surgiu mais recentemente, entre outras marcas fantasia, a “parceria” entre o Estado e o capital, ou a livre iniciativa (outro nome fantasia que tem boa aceitação entre os produtores de apologética desde o século XVIII). O interessante desta modalidade é que a livre iniciativa, a privada, entra com a iniciativa e o poder público com os fundos. Como o nosso assunto aqui é um desdobramento do que Paulo e Otília Arantes já descreveram como o casamento legítimo do big business com a alta cultura, acrescentando ser este conluio um atestado de que, na opinião hoje hegemônica, só o capital civiliza, vale a pena ainda lembrar mais alguns de seus recados aos grupos de teatro a respeito deste sintoma: a estetização do poder, que depende da riqueza, tem a idade dos rituais de corte, cuja função era apagar os vestígios da fonte sanguinária da sofisticação nos costumes. Pois bem: a sociedade imperialista contemporânea se distingue daquela pela exibição espalhafatosa do comando incontrastável da economia, mas agora com o glamour da culturalização do dinheiro. Esta é a face atual da barbárie que come solta em nome dos elevados interesses da arte, ou o horror econômico praticado como uma modalidade das belas artes. E atenção: um dos traços definidores da nova barbárie consiste justamente na troca de direitos por cultura. O inchaço “cultural” que assimila imaginação e inteligência ao toma-lá-dá-cá de comércio e patrocínio é o outro lado do rentismo predominante. A assimilação atual da cultura à mera autopropaganda expõe o caráter bárbaro da cultura. Bárbaro precisamente por ser mera exibição de poder, rapina e lucro, como já dizia Veblen no início do século XX. Adeus às ilusões de autonomia da arte Thatcherismo na Inglaterra e reaganismo nos Estados Unidos, durante os anos 80, para além de projeto político e econômico, foram sinônimo de livre mercado, disciplina financeira, controle firme do gasto público, redução de Iná Camargo é professora aposentada da FFLCH-USP e pesquisadora teatral Dorberto Carvalho é pesquisador teatral 1º SEMESTRE • 2008 • 19 camarim 41.pmd 19 29/4/2008, 03:48 impostos, nacionalismo, auto-ajuda, privatização e um toque de populismo. Tudo isso acrescido de um fenômeno sem precedentes nos dois países: as grandes corporações multinacionais direcionaram os seus tentáculos para o negócio da arte, especialmente a “grande arte”. Aquela década viu o poder do dinheiro corporativo pautando a arena cultural em escala até então desconhecida. A arte passou a ser objeto de demanda não apenas como investimento financeiro, mas também como instrumento de propaganda institucional por um setor que até então era visto como inteiramente ignorante no assunto e indiferente a ele. Digamos que, como as demais manifestações culturais (literatura, cinema, música, teatro e entretenimento em geral) já estavam há mais de um século sob o firme controle do mercado, agora o capital resolveu completar o processo de mercantilização de todas as esferas culturais avançando sobre aqueles resíduos cuja sobrevivência ainda permitia cultivar a ilusão da autonomia, como era o caso da música erudita e experimental, das artes plásticas igualmente experimentais, museus, universidades, centros de pesquisa e assim por diante. Em 1979 Margaret Thatcher começou o seu governo ts tory reduzindo em 5 milhões de libras os gastos do Ar Arts Council Council. Sua política expressa consistia em submeter as artes ao mercado. Todas as instituições artísticas britânicas até então protegidas pelo Estado foram obrigadas a se submeter às forças do mercado e aos métodos empresariais de atuação e administração. Thatcher e Reagan revogaram a convicção socialdemocrata de que o acesso às artes, bem como a qualquer outro serviço público oferecido pelo Estado, é um direito fundamental do cidadão. Muito mais grave que isto foi a persistência desta paisagem cultural depois que estes dois símbolos políticos do neoliberalismo deixaram o poder: democratas nos EUA e trabalhistas na Inglaterra (a chamada centro-esquerda) adotaram a mesma política econômica que denunciavam quando estavam na oposição. Basta o exemplo americano: em 1996 o orçamento do Na tional Endowment ffor or the Ar ts foi cortado de 160,2 National Arts milhões de dólares para 99 milhões, quantia inferior ao preço de um avião militar. Além disso, entre outras restrições, o Congresso proibiu este órgão federal para o fomento às artes de apoiar projetos experimentais e a Suprema Corte, acolhendo uma consulta de Clinton, deliberou que estabelecer restrições de conteúdo e valorizar “padrões gerais de decência” para as artes a serem fomentadas pelo Estado são providências que não atentam contra a liberdade de expressão. As informações acima encontram-se no livro de Chin Tao Wu,, Privatização da cultura, publicado em 2006 pela editora Boitempo com apoio do SESC. Nesta obra há também relatos sobre os casos mais eloquentes da canibalização de instituições, como museus e galerias de arte, pelos prepostos do capital agora liberto de qualquer tipo de freio. Há inclusive foto documentando o uso das instalações daquele tipo de instituição para lançamento de produtos como automóveis destinados aos extratos superiores dos consumidores britânicos, ou classe A no jargão mercadológico. Para entender o tamanho do choque que este processo significou para os europeus (como disse Paulo Arantes, os americanos já estavam acostumados ao grosso traço ostentatório do mecenato exercido em escala industrial), vale a pena reproduzir algumas observações do alemão Robert Kurz sobre todo o processo. Ele lembra que, por meio da cultura do keynesianismo (o velho Welfare State), no período do pós-guerra que antecedeu a ascensão do neoliberalismo, uma parte da produção cultural dependeu apenas indiretamente da lógica do dinheiro, ficando sob a proteção do Estado. No tempo em que emissoras de televisão, universidades e galerias, projetos artísticos e teóricos foram subsidiados ou dirigidos pelo Estado, não houve a necessidade de submissão direta aos critérios empresariais; havia um certo campo de ação para a reflexão crítica, os experimentos e as artes improdutivas minoritárias que, por isso mesmo, não sofriam ameaças de sanções materiais. O fim do socialismo e do keynesianismo, ou a vitória inconteste do capital sobre o trabalho, abalou fortemente estas manifestações culturais que se viram privadas dos seus meios e os investimentos privados tomaram o lugar das verbas estatais. Claro que com o privilégio de selecionar apenas uma pequena 20 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 20 29/4/2008, 03:48 parcela, por assim dizer a mais eficiente. No lugar dos direitos sociais e civis, passou a reinar o arbítrio dos ganhadores do mercado. Produtores culturais ficaram expostos aos humores pessoais dos rajás do capital e dos mandarins da administração. A partir de então, nos grandes veículos de distribuição só alcança êxito aquilo que se presta a servir de lazer aos escravos do mercado (conceito de Guy Debord). Com a racionalização capitalista da mídia, são transpostos para a esfera cultural os salários de fome, a externalização de custos (sobretudo os de produção) e a escravidão empresarial. Miseravelmente pagos, socialmente degradados e difamados, os trabalhadores europeus da cultura e da mídia passam a produzir, é óbvio, bens igualmente miseráveis; isso vale para todos os campos da cultura. Tudo o que pretenda ser mais que produto descartável é sumariamente eliminado. A estética da indústria cultural, a estética da mercadoria, ou o design da abstração econômica, passa a formatar toda e qualquer manifestação cultural. É indiferente o que se produz, desde que seja vendável e apto à encenação midiática. A arte deixa de ter existência própria, passa a ser objeto imediatamente econômico e desde a produção já se realiza do ponto de vista do marketing. Por isso é destituída de critérios, por isso tanto faz: sua estética é a da guerra civil e da barbárie, universaliza-se a experiência americana. Em Pindorama Aqui neste fim de mundo nunca houve um verdadeiro Welfare State. E desde os tempos coloniais o Estado, por assim dizer, sempre “protegeu” algumas modalidades de arte, a começar pelo teatro, como se pode verificar na crônica especializada a partir da chegada de D. João VI que, entre outras contribuições de maior alcance, como a criação da censura às diversões públicas, inclusive ao teatro, sem que ainda sequer houvesse no Rio de Janeiro um prédio para apresentação de espetáculos, autorizou a destinação de verbas da coroa ao cabeleireiro de sua consorte para o estabelecimento de uma companhia teatral. Em São Paulo, até a criação do Departamento Municipal de Cultura em 1935, de inspiração democrática (Constituição de 1934, artigo 148), o modelo joanino de apoio às artes ainda prevalecia. Um exemplo é a criação, construção e inauguração do nosso Theatro Municipal em 1911, destinado a hospedar espetáculos internacionais, porém mantido com dinheiro público. Por outro lado, uma cena do Macunaíma de Mário de Andrade mostra como era generalizada a idéia de que bastava a qualquer um fingir-se de artista (pianista ou pintor) para ir à Europa com pensão do governo. A restauração do espírito joanino em tempos neoliberais se confirma no “Programa Bolsa Virtuose” regulamentado em 2000 pelo então ministro da cultura. Mas voltando ao Departamento, Paulo Duarte afirma sem meias palavras em seu livro de memórias que a tentativa de criar uma programação um pouco mais democrática para o Theatro Municipal foi prontamente barrada pelos agentes locais do mercado mundial da música erudita e seguramente estimulou os inimigos de Mário de Andrade a promoverem a campanha de difamação de que ele foi vítima. Por incrível que possa parecer, foi a ditadura iniciada em 1964 que pela primeira vez dotou o país de uma política de cultura digna do nome e de inspiração mais claramente keynesiana. Mas é bom não perder de vista o processo: primeiro os militares trataram de eliminar da cena, por meio de censura, prisões e exílios, a cultura esquerdista, hegemônica até o AI-5. Feita a limpeza e criada a infra-estrutura para a indústria cultural (a Embratel é de 1965, o Ministério das Comunicações é de 1967) que se encarregou de colonizar para os valores do capital os corações e as mentes da grande maioria, foi possível, já em 1975 (governo da “distensão lenta, gradual e segura”), criar um órgão como a Funarte para viabilizar o Plano Nacional de Cultura, que vinha sendo ruminado desde 1966. Quando, em 1985, o governo da Nova República desvinculou o Ministério da Cultura do Ministério da Educação, pouca gente entendeu que este já era o primeiro lance para a entrada do Brasil no jogo bruto da administração da cultura pelo capital. Em parte porque a 1º SEMESTRE • 2008 • 21 camarim 41.pmd 21 29/4/2008, 03:48 exposição de motivos tinha o seu quê de verdade: enquanto setor do Ministério da Educação, a cultura nunca pôde se sobrepor às prioridades óbvias da educação. Liberada de seus entraves burocrático-educacionais, a área cultural ficaria desde já disponível para cair nas garras dos investidores e não demorou muito para se criar a primeira lei de incentivo à cultura nos moldes anglo-americanos. Mas esta é apenas a pré-história, pois houve um breve tropeço no início dos anos 90, quando o Ministério da Cultura foi extinto, transformado em Secretaria vinculada à Presidência e o secretário que dá nome à nova lei de renúncia fiscal (Lei Rouanet, nº 8.313/91) criou o “nosso” Programa Nacional de Apoio à Cultura. Diga-se de passagem que, assim como São Paulo saiu na frente nos anos 30 com a criação do Departamento de Cultura, o tropeço Collor foi aqui imediatamente remendado com a lei Mendonça, versão municipal da Lei Sarney, com o apoio da “classe” teatral. Os negócios da cultura em São Paulo não podiam parar! Depois das heróicas batalhas do impeachment, um novo Ministério da Cultura é recriado, a agenda neoliberal é assegurada e, também aqui, o Capital em pessoa passa a ditar a política cultural (que, como aconteceu nos Estados Unidos e na Inglaterra, não foi nem será revogada pelo governo petista). Quem tiver alguma dúvida, deve ler o programa do governo Lula assinado por Antonio Palocci ou conferir a manifestação de 3 de fevereiro de 2008 do ministro da cultura sobre o fomento à economia da cultura como prioridade do MinC. Só para lembrar algumas cenas de barbárie cultural explícita, no governo de Fernando Henrique Cardoso, seu ministro da cultura, também sociólogo, defendia sem meias palavras o critério da cultura como marketing institucional. Dentre seus grandes feitos mercadológicos internacionais, merecem destaque a Feira de Hannover (2000) e as exposições em Paris (2000) e Nova York (2001), nos festejos dos 500 anos de invasão européia. Como estamos tratando de intercâmbio com o alto patrocínio da renúncia fiscal, em “contrapartida” hospedamos por nossa vez as mega-exposições de Rodin na Pinacoteca e de Monet no Masp, entre outras aventuras menos memoráveis. Havíamos, finalmente, ingressado na era dos grandes negócios culturais globalizados. Foi tudo muito rápido: em 1995 foi aprovada uma primeira regulamentação da Lei Rouanet autorizando a ampliação dos resgates do imposto devido permitidos na formulação anterior; em 1996 é criado o Sistema Financeiro da Cultura para organizar a renúncia fiscal no plano dos estados e municípios, além do federal. Isto é: cada esfera da administração pública renuncia a seus respectivos impostos, como IPTU e ISS (Lei Mendonça), ICMS (leis estaduais) e IR (Rouanet). Finalmente, em 1997, nova regulamentação da Lei Rouanet completa o processo, autorizando a dedução integral dos gastos. A partir deste momento, acabou a farsa, ou melhor, finalmente se consolidou a parceria tal como definida Um dia de Ulysses, Teatro de Narradores, SP. 22 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 22 29/4/2008, 03:48 acima: agora o Estado paga tudo e o capital exerce a sua liberdade de escolha. Note-se que nem estamos tratando da Lei do Audiovisual que permite, com dinheiro público, a criação de acionistas de operações comerciais, como explica muito bem um consultor de patrocínio empresarial. Não precisamos nos deter na enumeração dos resultados chocantes desta política, pois os mais clamorosos já foram objeto de denúncia (ou de admiração genuína) através da grande imprensa e mesmo de estudos críticos em diversas publicações, especialmente no campo do investimento no “patrimônio histórico” para favorecer os negócios turísticos ou dos investimentos culturais para fins de especulação imobiliária. O caso mais clamoroso em São Paulo, ainda em andamento, é provavelmente o da requalificação da região da Luz/Cracolândia. Mas há uma informação que merece constar aqui: um dos espetáculos que arrecadou a maior verba em patrocínio ou imposto não pago, no ano de 2007, no Brasil foi Alegria. Este produto faz parte do cardápio de uma empresa canadense, com filial em Las Vegas, a Cirque du Soleil, cujo faturamento é de 620 milhões de dólares por ano. E a empresa mexicana que promoveu sua excursão pelo Brasil foi autorizada pelo Ministério da Cultura a captar mais de 40 milhões de reais em cinco anos, segundo informação do atual presidente da Funarte, Celso Frateschi. Políticas públicas contra a renúncia fiscal As manifestações extremas desta barbárie na cidade de São Paulo – que vão da multiplicação ininterrupta da população supérflua à submissão mais ostensiva e brutal do Estado aos interesses do capital – levaram, no final dos anos 90, alguns produtores teatrais com alguma experiência a se dar conta do que estava em andamento. As dificuldades de captação de patrocínio eram crescentes, já começando a configurar impossibilidade mesmo. Começam a se reunir periodicamente para discutir os rumos gerais da cultura e logo percebem a necessidade de entender criticamente os mecanismos políticos e ideológicos que levaram à drástica redução dos orçamentos do ministério e das secretarias de cultura. Como relatam criadores do movimento Arte contra a barbárie, o primeiro desafio foi estabelecer uma disputa do pensamento sobre arte e cultura, assim como delinear um horizonte de busca de espaços para a manifestação cultural contra-hegemônica. Já estávamos em 1998 e aproximava-se a campanha eleitoral que acabaria levando o PT de volta à administração municipal. A experiência da administração Erundina (1989-1992) – cuja secretária de cultura, Marilena Chauí, pautara as ações de política cultural pela noção de cultura como direito dos cidadãos – há de ter inspirado os artistas que naquele momento deram início às discussões sobre os rumos da cultura em São Paulo. Estamos nos referindo a Aimar Labaki, Beto Andretta, Carlos Francisco Rodrigues, César Vieira, Eduardo 1º SEMESTRE • 2008 • 23 camarim 41.pmd 23 29/4/2008, 03:48 naquele momento em que segundo a visão neoliberal, o pensamento hegemônico, a cultura não teria a importância que precisaria ter para a construção de uma cultura crítica do entretenimento e do que o determinava. Avanços, recuos Tolentino, Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Hugo Possolo, Marco Antonio Rodrigues, Reinaldo Maia, Sérgio de Carvalho, Tadeu de Souza e Umberto Magnani, os signatários do Manifesto “Arte contra a barbárie”, publicado a 7 de maio de 1999 pela grande imprensa e apresentado no dia 10 a um público de mais de 300 pessoas no Teatro Aliança Francesa. A maioria dos signatários integra grupos de teatro formados entre os anos de 1980 (Tapa e Pia Fraus) e os anos de 1990 (Latão, Folias, Parlapatões, e Monte Azul), além do veteraníssimo União e Olho Vivo (de 1966). A experiência já mostrara, inclusive para beneficiados pela renúncia fiscal, que o tipo de teatro que faziam não interessava aos profissionais de marketing responsáveis pela destinação das verbas concedidas pelos governos, as quais passaram a engordar os orçamentos de publicidade das empresas. Antes de prosseguir, é importante registrar que, em depoimento sobre o processo, um dos jovens participantes daqueles encontros fez questão de destacar a lucidez de Umberto Magnani e Fernando Peixoto, que tinham larga experiência neste tipo de discussão, além da presença de Gianni Ratto, que com sua experiência, sabedoria e capacidade de análise, foi quem desafiou o grupo a se perguntar sobre o valor do trabalho que faziam e a estabelecer uma estratégia de intervenção. A estes gigantes da história das lutas do teatro em São Paulo, somava-se ainda a longa experiência de César Vieira que com seu grupo, o União e Olho Vivo, sobreviveu à ditadura e à concepção mercadológica de teatro sem esmorecer na luta pelo direito de todos à cultura, exemplo vivo de que é possível fazer teatro sem ceder o território ao inimigo e muito menos o coração e as mentes. Para além da discussão sobre a possível mudança de governo, o grupo enfrentou temas como a distinção e a relação entre público e privado e tratou de caracterizar seu próprio trabalho, o que realmente estava sendo feito, que tipo de valor ou relação estava sendo gerado na sociedade e, mais importante, como a sociedade via, se é que via, os seus trabalhos. Em outras palavras, tratava-se de especular sobre a importância ou desimportância do teatro que faziam Os militantes do Arte Contra a Barbárie concluíam um documento elaborado coletivamente ainda no ano de 2003 com as seguintes perguntas: qual a situação atual da arte e do teatro entre nós? Qual o estágio efetivo das relações de produção em que o teatro e as artes se inscrevem? Qual o sentido atual da dimensão pública da arte hoje? Que vínculos e alianças se estabelecem e qual seu resultado efetivo? Que formas de produção possibilitam o salto, para além do campo da resistência? Que imagem de nós mesmos têm, hoje, poder de revelação sobre o que de fato somos e queremos ser? É possível figurar o mundo hoje, sem que isso signifique sua mera reposição ou afirmação, ou por outra, uma capitulação? Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, Paulo Arantes apresentou sua reveladora e estimulante avaliação sobre o que está em andamento: “Como, afinal, [os grupos] foram à luta e arrancaram uma Lei de Fomento de governantes embrutecidos pela lex mercatoria, pode-se dizer que um limiar histórico foi transposto, por irrisório que seja. Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciência artística em protagonismo político. Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, Cia. São Jorge de 24 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 24 29/4/2008, 03:48 O menino que fugiu da peça, Ivo 60, SP. caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetáculos. Nele se encontram, indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na imaginação pública. Quando essas três dimensões convergem para aglutinar uma platéia que prescinda do guichê, o teatro de grupo acontece. Mesmo quem honestamente acredita que está fazendo apenas (boa) pesquisa de linguagem, de fato está acionando toda essa dinâmica. O curioso nisso tudo, vistas as coisas do ângulo de um observador vindo de uma faculdade de outros tempos, é que o espírito da lei lembra muito o de uma agência pública de amparo à pesquisa. Reativou-se, inclusive, a idéia de residência. É bem verdade que os gestores começaram a cair em si e os editais vão se tornando cada vez mais restritivos.” Também não é preciso lembrar dos riscos ainda maiores que correm todas essas leis, do simples descumprimento, da revogação ou, pior ainda, da sua transformação no seu contrário. O mercado e nossos companheiros que ainda acreditam nele são perfeitamente capazes de desviar essas leis para seus próprios objetivos, mas o risco maior é o aprofundamento da crise do capital, que pode em minutos fazer evaporar o próprio fundo público que disputamos. Por isso há tempos insistimos na necessidade, mais do que constatada, de encarar o desafio da politização. Se não formos capazes de descortinar um horizonte para além do capitalismo, seremos todos engolfados pela barbárie. E não estou glosando um conhecido Manifesto para fazer graça. Dando, mais uma vez, a palavra a Robert Kurz, não podemos nos esquecer de que a verdadeira crítica da cultura bárbara não deve contentar-se em denunciar de modo bárbaro a própria cultura. Ela deve determinar e rejeitar a barbárie abertamente desprovida de cultura. Os produtores culturais talvez devessem associar-se também em sindicatos, guildas, clubes e ligas anti-mercado, preocupados não em vender, mas em salvar os recursos culturais da barbárie do mercado. Ligar-se aos humilhados e ofendidos e dar expressão cultural aos sofrimentos sociais, porque a própria arte só pode ser superada positivamente quando conscientemente se tornar momento de um novo movimento social (...) que ponha a nu as raízes que têm produzido o sistema de cisões e separações funcionais. A conclusão sobre este ponto se impõe: nas presentes circunstâncias, a revolta é uma obrigação e a insurreição um direito. Mas as dificuldades para avançar nessa direção são conhecidas e de todas as ordens. Em nome delas, a luta para no mínimo assegurar as conquistas já facultadas pela Lei de Fomento continua na ordem do dia. Um dos argumentos a favor desta luta de resistência pode ser encontrado em ninguém menos que Adorno: “Enquanto a organização global da sociedade só garantir a igualdade formal dos direitos, ela vai conservar os privilégios da educação e outorgar a muito poucos as possibilidades de experiência espiritual diferenciada e avançada. É um fato que o avanço das coisas espirituais e, especialmente, da arte abre o seu caminho à frente da maioria. Isto permite que os inimigos mortais de qualquer progresso se apóiem naqueles que, certamente sem ter culpa disso, estão privados de uma expressão viva de suas próprias coisas. Uma política cultural que não seja ingênua do ponto de vista social tem que olhar profundamente para este conjunto complexo de problemas sem temer a reação das maiorias.” E sobre o apoio que a crítica deve dar a essa política, Adorno cita Benjamim: o crítico tem que defender os interesses do público contra o público; esta é uma das necessidades impostas pela democracia formal. E é nesta diferença que está a esperança. • 1º SEMESTRE • 2008 • 25 camarim 41.pmd 25 29/4/2008, 03:48 O negócio da cultura Marco Antonio Rodrigues e Sérgio de Carvalho O debate sobre a extinção da Lei Rouanet tem mobilizado setores importantes da sociedade brasileira. Parte da classe artística, aquela que dá autógrafos no Senado, veio a campo exigir que ela não só permaneça, mas se especialize, facilitando a vida dos produtores teatrais. Na mesma direção, secretários de Estado e editorialistas de jornal se pronunciaram na semana passada em favor do seguinte ponto de vista: “reformar sim, acabar nunca!” Afinal, lembram-nos todos, “a área cultural não receberia hoje essa injeção de dinheiro sem os incentivos fiscais.” De fato, a Lei Rouanet tem se mostrado uma força miraculosa nesses seus 17 anos de vida. Basta dizer que mudou a geografia da Avenida Paulista, ao fazer surgir quase uma dezena de centros culturais e espaços artísticos. Curiosamente, são instituições que carregam nomes de bancos e elogiam o espírito abnegado da própria instituição financeira. A força miraculosa da chamada Lei Rouanet nasceu da caneta do Presidente Fernando Collor de Mello, em 1991. Tinha, então, um nobre objetivo pré-iluminista: incentivar o mecenato. Só que os nobres do passado contratavam seus decoradores e sua diversão com recursos do próprio bolso. Nesse sentido, a lei trazia pouco do racionalismo do intelectual que lhe dá o nome, Sérgio Paulo Rouanet. Estava mais afinada com a cartilha liberal-conservadora da época, que dizia: “O Estado dever intervir o mínimo, a sociedade deve se autogerir, mas para isso é preciso uma ajudazinha”. O poder miraculoso da Lei de Incentivo Rouanet nasce da simplicidade de um mecanismo em que o Estado, no intuito de fortalecer os agentes privados, estimula o privatismo: é uma lei que autoriza a que as empresas destinem valores de impostos às produções culturais. A idéia parece boa, mas contém um movimento nefasto: verbas públicas passam a ser comandadas pela vontade privada, isto é, pelo desejo auto-referente das grandes corporações, aquelas com lucro suficiente para se valer da renúncia fiscal e investir na área. Dito de outro modo, os diretores de marketing dos conglomerados econômicos passam a ter mais poder de interferir na paisagem cultural Marco Antonio Rodrigues é diretor teatral e integrante do grupo Folias D’Arte. Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão e professor de Dramaturgia e Crítica Teatral da Universidade de São Paulo. do que o Ministro da Cultura. E o exercem segundo os critérios do marketing empresarial. Diante da grandeza do fundo social mobilizado desde 1991 (da ordem de 1 bilhão apenas no ano de 2007) é possível compreender o volume da gritaria da semana passada. A defesa da Lei Rouanet tem por trás enormes interesses. Além das instituições patrocinadoras, que chegaram ao ponto de se transformar em gestores dos próprios projetos culturais, seus recursos alimentam produções artísticas de índole comercial (feitas para o agrado fácil), que passam a ganhar duas vezes – na produção e na circulação – na medida em que os ingressos continuam caríssimos. Os maiores lucros, contudo, ficam com os intermediários do sistema. Indiretamente, os maiores beneficiados são as empresas de comunicação, cujos anúncios pagos da área cultural constituem uma gigantesca fonte de renda. E diretamente, os integrantes da casta dos “captadores de recursos”, gente que embolsou de 10 a 20 por cento do bilhão captado no ano passado apenas por ter acesso ao cafezinho das diretorias das empresas. Como não há qualquer julgamento do mérito cultural ou da relevância pública na atribuição dos certificados que habilitam o produtor a obter patrocínio, a miraculosa Lei Rouanet abriu as portas do país às mega-produções internacionais, que ganham mais dinheiro aqui do que em seus países de origem. O caso emblemático do Cirque du Soleil que captou nove milhões de dinheiro público e vendia ingressos à razão de 200 reais está longe de ser uma exceção. Só em Las Vegas, base da companhia, isso soaria como aberração. Aqui é uma normalidade viabilizada por um sistema em que o Estado se exime de julgar qualidades em nome do ideal liberal de tratar os agentes desiguais como iguais e “conter o aparelhamento político da cultura”. O pressuposto filosófico do debate foi revelado em chave irônica pelo Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, João Sayad, banqueiro e intelectual. Declarou ele à imprensa: “Antigamente, numa era religiosa, o natural era coisa criada por Deus. Hoje, o natural é aquilo que dá lucro.” Ao tentar defender a manutenção da Lei, para que não predomine, na ausência de algum subsídio, o puro mercado excludente, o Secretário parece proclamar a 26 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 26 29/4/2008, 03:48 impotência do Estado e endossar a idéia da naturalidade (e, portanto, imutabilidade) do império do capital privado sobre qualquer coisa que no passado se chamou vida. “Não lutemos contra uma realidade inevitável” é uma fala dominante no mundo. Apareceu dias atrás no depoimento do dramaturgo David Mamet, que decidiu tomar partido do conservadorismo e parar de criticar o governo de seu país quando entendeu que a América não “era uma sala de aula ensinando valores, mas um mercado.” O cartão de crédito como substituto da carteira de identidade e os “traveller cheques” em lugar do passaporte já são coisas que existem em muitos lados, só causando escândalo quando os nossos estudantes de classe média são barrados nos aeroportos da Europa. Mas será lúcido ou triste o artista que se conforma a essa imposição totalitária? Qualquer reforma da Lei Rouanet incapaz de impedir o controle privado dos recursos públicos não faz sentido. Que o governo brasileiro continue a incentivar a generosidade humanista dos nossos empresários através da renúncia fiscal, isso parece aceitável como elemento de contradição do sistema. O enorme fundo público mobilizado deve, contudo, ser distribuído segundo regras claras e transparentes de concorrência pública, em que os projetos artísticos e culturais tenham relevância para algo mais do que a manutenção da lógica mercantil. O “aparelhamento político da cultura” ainda pode ser questionado e combatido em público. O desejo unilateral de um gerente de marketing não. Mesmo sonhando com o liberalismo absoluto em que as raposas e galinhas possam lutar à vontade numa rinha toda ela “natural”, os agentes do mercado brasileiro são completamente dependentes dos recursos públicos. O governo Lula sempre foi tolerante com essa situação e adquiriu o hábito de conciliar sempre, aumentando uma rede de co-dependência que pouco tem servido para proteger da queda os integrantes de seu governo. As poucas tentativas críticas mais radicais para a área cultural, como a de controlar com critérios públicos a destinação feita pelas Estatais (maiores fontes dos recursos destinados às artes) recuaram diante das ameaças da tropa de choque ligada à mídia eletrônica. É patético perceber que a velha tendência ao adocicamento do conflito, velha herança das Casas Grandes, mantida através das vestes modernas da nação globalizada e dos conluios entre interesses privatistas, ainda impede a invenção de um projeto efetivamente crítico, público e que imagine a cultura como um direito de todos. Mas qualquer mudança exige, no mínino, considerar a hipótese de que a realidade e o mercado não são uma coisa só. • Ato Redemoinho/São Paulo, com apoio de outros Movimentos e da Cooperativa, Dia Internacional do Teatro. 1º SEMESTRE • 2008 • 27 camarim 41.pmd 27 29/4/2008, 03:48 ALEXANDRE KRUG Antes de mais nada, facilitar o acesso da maioria Ato Redemoinho/São Paulo, Dia Internacional do Teatro. Kil Abreu A polêmica em torno da forma ideal de fomento ao teatro brasileiro é o instante em que os desiguais assumem, finalmente e por força das circunstâncias, a desigualdade. Ao que parece o debate chegou a este ponto por absoluta necessidade e pede posições que podem ser exemplares não só para o ambiente teatral, mas para a discussão das políticas culturais como um todo. Ainda que se corra o risco das simplificações, pode-se dizer que o processo que levou ao momento atual comporta, de um lado, os agentes de um teatro “de mercado”, que neste momento advogam a Lei Geral do Teatro. São artistas e produtores que nos últimos anos foram, bem ou mal, amparados mais generosamente pela política de incentivo via renúncia fiscal, e que sugerem agora a desburocratização do acesso aos benefícios da Lei e o comprometimento real, mínimo que seja, do empresário, até aqui o verdadeiro gestor dos recursos para a cultura. A questão é que a Lei Rouanet, inspirada no mecenato, nem de longe, e nem mesmo agora, coloca o empresário na condição que se anuncia. O mecenas, como sabemos, Kil Abreu é jornalista, crítico e pesquisador do teatro. Foi diretor do Departamento de Teatro da Prefeitura de São Paulo na gestão de Marta Suplicy. Artigo publicado no Caderno 2, de O Estado de S.Paulo, de 14/4/2008 acaba sendo o próprio Estado que, entretanto, não assume a função de fazer as mediações necessárias. Delegada a tarefa inteira ao mercado, às suas escolhas e às suas dinâmicas, nestes anos já aprendemos o bastante, e mansamente, que no Brasil o dinheiro público é correlato de cultura privada. E com isso naturaliza-se mais uma forma de exclusão. Cada vez que as contradições são expostas aponta-se com mais clareza a parcialidade e a injustiça operadas através da Lei. Entretanto, muitos grupos e companhias de todo o País, que foram escassamente subvencionados, se organizaram nos últimos anos e conseguiram pautar a discussão a partir de outros modelos de gestão, que incluem não só recursos definidos em Lei, mas parâmetros mais democráticos de escolha dos projetos e a previsão de retorno do investimento em favor da população. A experiência da Lei de Fomento ao Teatro, de São Paulo, inventa um paradigma que, a despeito de atender apenas a uma parte dos artistas aqueles dedicados ao trabalho continuado - é exemplar no capítulo que mais interessa: o do gerenciamento do dinheiro público em benefício da cidade. A proposta da Lei de Fomento ao teatro brasileiro, que agora também se discute, segue estes parâmetros, que parecem mais justos, com o ganho de alcançar outras demandas: a pesquisa artística, mas também a produção e a circulação. Quando essas duas posições se firmam, o primeiro problema que se coloca, então, é o de que não é possível tratar propósitos, meios e fins tão diferentes como se fossem iguais. É preciso tomar partido e criar alternativas mais avançadas. Há que se criar instrumentos que dêem conta de alcançar a vocação política que o teatro carrega por natureza. Para além do fato de atender a estes criadores e não aqueles o que, por si, já representa outro gritante descompasso - o incentivo via renúncia fiscal deveria ser questionado antes de tudo por não retornar publicamente o investimento público, e para o usufruto da cidade, não apenas de uma parte dos cidadãos. É preciso pensar a Lei como meio de fomento ao teatro, mas isso significa, antes mesmo do espetáculo e da discussão estética, facilitar o acesso da maioria. Do contrário pode-se maquiar o que já está posto desta ou daquela maneira. Será mais do mesmo. • 28 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 28 29/4/2008, 03:48 O Redemoinho e uma proposta de política pública para o teatro Conselho Nacional do Redemoinho Diante do debate dos últimos dias entre um grupo de produtores do eixo Rio-São Paulo e o Presidente da Funarte, Celso Frateschi, acerca de mecanismos de financiamento para o teatro através de incentivos fiscais concedidos às empresas privadas pela Lei Rouanet, e da nova proposta encaminhada com o nome de Lei Geral do Teatro, o Redemoinho vem a público manifestar-se, acreditando ser um importante interlocutor do segmento teatral no Brasil, já que agrega aproximadamente setenta grupos teatrais e entidades culturais provenientes de onze estados brasileiros. Entendemos o teatro como elaboração, na esfera do simbólico, do nosso depoimento crítico sobre a experiência de viver numa sociedade em que, infelizmente, a cultura tem se tornado mercadoria a serviço da dominação. Isso exige, por parte do Estado, o reconhecimento do direito à cultura como exercício crítico da cidadania, ou seja, a negação dos valores da concorrência, da acumulação ou concentração de renda, do preconceito e da exclusão. Portanto, acreditamos que este debate entre Funarte e produtores se desloca do cerne da questão a ser debatida no momento cultural pelo qual passamos, ou seja, diante da necessidade de o Estado Brasileiro assumir suas responsabilidades republicanas no desenvolvimento de políticas públicas contínuas para a cultura, políticas estas realmente comprometidas com a liberdade de expressão, com o exercício da cidadania, o que envolve, de uma maneira ampla e descentralizada, os criadores teatrais de todo o Brasil. O debate supracitado, no final das contas, está focado na possibilidade do aumento do poder concedido às empresas privadas, através da renúncia fiscal (Lei Rouanet e Lei Geral do Teatro), para decidir quais projetos teatrais devem ou não ser patrocinados. Obviamente estas decisões são tomadas em função da lógica do mercado e do marketing, que orientam as estratégias das empresas privadas e contrariam as bases de uma política pública de inclusão e cidadania culturais. A posição do Redemoinho frente à Lei Rouanet (e por conseguinte ao projeto de Lei Geral do Teatro) é clara: não a entendemos como política pública para a cultura e, especificamente para a linguagem teatral. Essa, ou essas Leis de Incentivo se mostram concentradoras das atividades teatrais nas grandes produções do eixo Rio/São Paulo e privilegiam projetos de maior visibilidade no mercado, portanto, representam apenas uma parte do teatro feito no Brasil. Enquanto Movimento Nacional, o Redemoinho não pode ignorar esses dados recorrentes nas estatísticas do Minc. Portanto, insistimos na importância de um mecanismo que favoreça o crescimento do teatro em todo o território nacional. Para marcar publicamente nossa posição, dia 18 de março passado, na audiência pública realizada no Senado, coordenada pela Comissão de Educação, Cultura e Esportes, o Redemoinho se fez presente para divulgar sua proposta de Lei e iniciar uma discussão maior acerca do fomento à atividade teatral no país. Na ocasião foi encaminhada, por intermédio do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), a Lei Programa de Fomento ao Teatro Brasileiro. Além desta ação, realizamos um ato público, de âmbito nacional, no dia 27 de março de 2008 – dia internacional do teatro – quando foi lançada a Carta de Porto Alegre. Esse documento foi lido em diferentes cidades do Brasil, durante todo um dia de celebração e manifestação política organizada pelo Redemoinho e outras importantes entidades representativas. Esta Lei – Programa de Fomento ao Teatro Brasileiro, antes de ser tornada pública, foi amplamente discutida, modificada e assumida pelos diversos grupos que compõem o Movimento, e apresenta um novo paradigma para o financiamento da cultura: investimento direto do poder público, através de editais nacionais, amplos e democráticos, que contemplem a circulação, a produção de espetáculos e a manutenção de espaços de compartilhamento e pesquisa teatrais. Certos de que podemos colaborar com a discussão sobre o fazer teatral no país e que a Lei Federal Programa de Fomento ao Teatro Brasileiro poderá ser uma forma mais republicana de estimular o fortalecimento do teatro feito em cada cidade brasileira, colocamo-nos como interlocutores e pedimos atenção as nossas propostas e idéias. O Movimento Brasileiro de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral teve sua origem num encontro realizado pelo Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte - MG, em dezembro de 2004. Ao final desse encontro, os grupos participantes criaram uma rede nacional voltada para a troca de experiências no âmbito artístico-cultural, em busca do fortalecimento mútuo e da criação de projetos comuns. Em 2005, o encontro permaneceu em Belo Horizonte e, em 2006, seguiu para Campinas - SP e dali para Porto Alegre - RS, em dezembro de 2007, onde foi realizado o quarto encontro nacional, na Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. Em 2008, o encontro acontecerá em Salvador - BA, no Teatro Vila Velha. O Conselho Nacional do Redemoinho Movimento Brasileiro de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral, eleito durante encontro ocorrido em dezembro de 2007 em Porto Alegre, é composto por Tânia Farias (Ói Nóis Aqui Traveiz/Porto Alegre), Marcelo Bones (Andante/ Belo Horizonte), José Fernando de Azevedo (Narradores/São Paulo), Fernando Yamamoto (Clowns de Shakespeare/ Natal), e seu atual secretário é Gordo Neto (Vila Velha/ Salvador). • 1º SEMESTRE • 2008 • 29 camarim 41.pmd 29 29/4/2008, 03:48 CONVERSA COM O FILÓSOFO PAULO ARANTES “A tradição crítica brasileira migrou e renasce na cena redesenhada por coletivos de pesquisa e intervenção teatral” 30 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 30 29/4/2008, 03:48 Beth Néspoli Filósofo graduado pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre, na França, Paulo Eduardo Arantes é um intelectual cujo pensamento ultrapassa as fronteiras do mundo acadêmico. Suas idéias provocam admiração, ou rejeição, em público bem mais amplo, seja por meio dos livros que publicou, como Ressentimento da Dialética (1996) e Zero à Esquerda (Conrad, 2004) ou o mais recente Extinção (Boitempo Editoral, 2007), seja por meio de artigos ou palestras. Professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP, onde lecionou de 1968 a 1998, é bastante conhecida sua faceta de crítico ferrenho do capitalismo, sobretudo em sua nova configuração pós-mundialização, ainda mais destrutiva em seus desdobramentos, como o desmanche dos vínculos trabalhistas ou as guerras do novo Imperialismo, temas dissecados em seu último livro. “Diante do fenômeno da explosão de violência, jamais vista no passado recente dos anos de crescimento econômico do pós-guerra, não se fala em coabitação paradoxal entre democracia e violência, mas da descoberta desconcertante de que algo como um capitalismo com lei e cidadania bem poderia ter sido não mais do que uma miragem de trinta anos”, escreve em Extinção. A entrevista que segue, no entanto, busca revelar uma outra faceta desse crítico: seu interesse pela cena teatral. Não se trata ‘apenas’ de ser um espectador assíduo na platéia do teatro de grupo - a vertente teatral que acompanha. Mais que isso, Paulo Arantes participa ativamente de debates, palestras e encontros da classe teatral. Ele foi, por exemplo, um dos palestrantes do seminário promovido pelo grupo Folias para preparar o espetáculo Orestéia. Levou seus alunos para a sede da Cia. do Feijão para debater o espetáculo Nonada. Em maio, o Estado acompanhou sua palestra “O Teatro e a Cidade”, na programação do evento Próximo Ato, no Itaú Cultural. Na entrevista que se segue, ele analisa o trabalho do teatro de grupo a partir de idéias desenvolvidas em seu livro, como a precarização do trabalho. “Se a fábrica era palco de conflitos em teatros como o Arena, na década de 60, também me parece claro que o novo chão de fábrica seja o próprio território conflagrado da cidade, daí a relação orgânica do teatro de grupo com o espaço urbano, vivido agora em regime de urgência.” E avalia ainda que a inquietação intelectual se deslocou da universidade para a ribalta dos grupos. Rigoroso, fez questão que as perguntas fossem formuladas e respondidas por escrito. Entrevista publica no Caderno 2, do Jornal O Estado de São Paulo, em 14 de Julho de 2007. 1º SEMESTRE • 2008 • 31 camarim 41.pmd 31 29/4/2008, 03:48 ACHILES LUCIANO Ato Redemoinho/ São Paulo, Dia Internacional do Teatro. Você vem acompanhando de pe vimento de perr to do mo movimento upos de São P aulo grupos Paulo aulo.. Quando e por que teatro de gr começo u esse inte começou interresse? Acho que a ficha começou a cair lá pelo fim dos anos 90. Não foi uma iluminação espontânea. O fato de ter muitos amigos envolvidos com teatro acabou induzindo a percepção de que um fenômeno cultural novo estava em marcha naquela proliferação inusitada de grupos teatrais. Além do mais, com uma forte presença de atores, diretores e dramaturgos saídos da universidade, intelectualizados e politizados a ponto de já não se sentirem mais à vontade no seu meio de origem, com o qual entretanto nem sempre rompem, muitos continuam estudando, ensinando, pois não dá para dispensar o salário, mesmo achatado, ou a bolsa ocasional de sobrevivência. Faz sentido a transição da atual miséria acadêmica para a penúria crônica do trabalho artístico independente, hoje agravada pela escalada do teatro empresarial alavancado por incentivo fiscal. Isso quanto à via de acesso. Nem de longe estou querendo atribuir a vitalidade do movimento a um improvável impulso criativo de raiz acadêmica, quase uma contradição em termos. O interesse então me parece óbvio. Ao lado da explosão do hip-hop, com o qual tem muito a ver malgrado as diferenças de escala e classe, não sou por certo o único a reconhecer no atual renascimento do teatro de grupo o fato cultural público mais significativo hoje em São Paulo. Falase em mais de 500 coletivos, por assim dizer, dando combate no front cultural que se abriu com a ofensiva privatizante. Não são só os números que impressionam, mas também a qualidades das encenações, cuja contundência surpreende, ainda mais quando associada a uma ocupação inédita de espaços os mais inesperados da cidade, gerando pelo menos o desenho de uma mistura social que ninguém planejou, simplesmente está acontecendo como efeito colateral das segregações e hierarquias que o novo estado do mundo vai multiplicando. Uma indústria cara como o cinema não tem esta capilaridade. Por mais motivador que seja um filme da atual retomada, sua projeção não aglutina como a inserção contínua de um grupo teatral numa comunidade. Que não precisa ser necessariamente periférica. Há uma outra margem no centro. A Praça Roosevelt, por exemplo, não seria o que é hoje se as suas salas fossem de cinema, sem falar que não corre o risco de ser gentrificada e ver seus moradores e freqüentadores enxotados, pois a nova classe teatral de que estamos falando é tudo, menos uma isca perfumada. Decididamente, o teatro de grupo não é uma “indústria criativa”, como são designados com ironia involuntária, no jargão gerencial dos agentes estatais ou corporativos, o sistema de eventos e equipamentos culturais cujo patrocínio gera uma espécie de renda da imagem, cujo fluxo, por sua vez, obviamente não reverte para os trabalhadores do setor. No dia em que os assalariados e estafados do show business reconhecerem os seus pares na cidade oculta dos grupos, não pouca coisa vai rolar. Na sua palestra O Teatro e a Cidade você def iniu o definiu upo como um mo vimento rrelevante elevante grupo movimento elevante,, estética e teatro de gr politicamente politicamente,, tendo inclusive ‘arrancado’ uma lei. Qual a impor tância, e os problemas omento? importância, problemas,, da polêmica Lei de F Fomento? Em 1990, o Estado saiu de cena, deixando atrás de si um cenário de ruínas. Ou melhor, “nós” é que saímos de cena. Não que o script anterior fosse brilhante, mas o Estado estava lá porque a livre iniciativa, como diziam os nossos avós, não era assim tão livre nem estava muito disposta a tomar qualquer iniciativa mais enérgica por conta própria. O jogo se inverteu: a razão de ser do Estado é a de intervir vigorosamente para que haja cada vez mais mercado, e não menos. Por isso, caiu a fantasia da reserva cultural, espaço recolonizado como uma outra fronteira de negócios por meio da alienação de parcelas do fundo público, como nos bons velhos tempos da acumulação primitiva. Contra essa regressão, literalmente bárbara, finalmente reagiram os grupos teatrais de São Paulo, tomando, enfim, consciência de que constituíam de fato um movimento. Como notou Mariângela Alves de Lima (crítica teatral do Estado), pela primeira vez as artes cênicas se articularam como um setor social. Nada a ver com a mera crispação defensiva de uma categoria profissional. Como, afinal, foram à luta e arrancaram uma Lei de Fomento de governantes embrutecidos pela lex mercatoria, pode-se dizer que um limiar histórico foi transposto, por irrisório que seja. 32 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 32 29/4/2008, 03:48 ACHILES LUCIANO Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciência artística em protagonismo político. Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetáculos. Nele se encontram, indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na imaginação pública. Quando essas três dimensões convergem para aglutinar uma platéia que prescinda do guichê, o teatro de grupo acontece. Mesmo quem honestamente acredita que está fazendo apenas (boa) pesquisa de linguagem, de fato está acionando toda essa dinâmica. O curioso nisso tudo, vistas as coisas do ângulo de um observador vindo de uma faculdade de outros tempos, é que o espírito da lei lembra muito o de uma agência pública de amparo à pesquisa. Reativou-se, inclusive, a idéia de residência. É bem verdade que os gestores começaram a cair em si e os editais vão se tornando cada vez mais restritivos. Corrijo-me: mais curioso, ainda, seria o caso de dizer: lembraria, caso os CNPqs da vida não transitassem na mão contrária, passando a enfatizar cada vez mais o produto e quase nada o processo de irradiação cultural próprio da pesquisa autônoma; política produtivista de eventos, em suma, é o que agora também se espera de um infeliz condenado a justificar assim sua mera existência intelectual: o ato docente se degrada e a corrosão do caráter é uma questão de tempo. Por isso, são tão animadores os sinais de vida emitidos pelos mais variados processos de pesquisa em curso nos grupos mais imbuídos desse imperativo, aliás, próprio de um gênero público como o teatro. É possível que minha visão esteja ainda contaminada pela lembrança do tempo em que a universidade pensava, mas é forte o sentimento de que a tradição crítica brasileira migrou e renasce, atualmente, na cena redesenhada por esses coletivos de pesquisa e intervenção. Um paralelo não me parece fortuito: não sei de outro lugar hoje onde se estude com tanto empenho, e por assim dizer em tempo real, Caio Prado, Celso Furtado, etc., como nas escolas do MST que, por sua vez, também aposta todas suas fichas na formação de “pesquisadores” dessa mesma realidade que recomeçou a andar para trás. Que, por seu turno, encorpasse com substância social nova, o movimento de teatro de grupo era questão de tempo e coerência, de um e outro, aliás. É cada vez mais com um a pr esença de prof essor es em comum presença professor essores vidos pelos gr upos ece promovidos grupos upos,, o que par parece ciclos de debates promo sinal de rreencontro eencontro entr entree a academia o teatro teatro,, como já ocorr eg alar em ocorree ra na década de 60. Mas você ch cheg egaa a ffalar desencontro entr or quê? entree a academia e o teatro teatro.. P Por Que professores sejam eventualmente convocados, no âmbito de suas respectivas especialidades, é ponto a favor do ânimo investigativo dos grupos. São, no entanto, presenças simpáticas, porém avulsas. É só reparar de quem parte a iniciativa (dos grupos). A evocação dos anos 60 é apenas isso, uma evocação para efeito de raciocínio. O desencontro de hoje não poderia ser maior. No momento em que os trabalhadores do teatro se mobilizam na forma de uma inquieta consciência coletiva em confronto com a banalização do fazer artístico, a condição intelectual na universidade beira a inconsciência: faz tempo que deixamos de ser uma categoria social com expressão política própria, e a universidade, uma instituição. Somos uma organização dotada de gerenciamento moderno, que requer, por isso mesmo, “autonomia”, que aliás, o governador violou por pura inépcia, pensando fazer caixa com a finança alheia, no caso, a alta burocracia de um sistema de fundações e linhas de financiamento personalizadas que, por inércia vocabular, ainda chamamos de universidade, mas que a grande massa estudantil encara com razão, na condição de usuários ansiosos, pois o primeiro emprego precário está no horizonte da maioria, como mera prestadora de serviços educacionais. Como esperar desse reino animal do espírito, incapaz sequer de entender as razões dos estudantes que lhe prestaram involuntariamente o serviço de tirar do fogo a castanha da autonomia da sua contamovimento, que tome consciência do despertar da nova vida teatral? Salvo as manifestações avulsas de que falei, me parecem dois mundos gravitando em órbitas incompatíveis. 1º SEMESTRE • 2008 • 33 camarim 41.pmd 33 29/4/2008, 03:48 ACHILES LUCIANO Ato Redemoinho/ São Paulo, Dia Internacional do Teatro: o Theatro Municipal embalado. Quais se riam essas órbitas? seriam À cegueira catatônica da universidade corresponde a consciência alerta e hiperativa das entidades, que se autonomearam representantes de uma invenção recente, a sociedade civil. Assim, um encontro de grupos teatrais independentes pode perfeitamente ser catalisado pelo departamento de responsabilidade cultural de um banco, por exemplo. Ninguém estranha mais essa anomalia, contabilizada como um fato da vida. O desencontro que está nos ocupando é parte desse conjunto de incongruências. Mas, por incrível que pareça, tanto a ossificação da inteligência universitária, outrora princípio ativo da cultura da cidade, quanto a proliferação dos novos coletivos teatrais são respostas simétricas, a primeira, mera adaptação passiva, a segunda, inconformada, à mesma mutação histórica: o Brasil, hoje, não é mais a sociedade nacional que nunca chegou a ser, mas uma sociedade pautada pela rasa e violenta integração sistêmica do mercado, mais o poder violador de normas que lhe cabe. Não há novidade nisso, já fomos assim no princípio: dispersos num território banalizado, assentamentos humanos governados pelo nexo exclusivo da exploração econômica e da dominação política. O novo ciclo do agronegócio que o diga. A reapresentação selvagem desse marco zero me parece, aliás, ser o tema de um filme como Baixio das Bestas, sadismo colonial incluído. Poderia enumerar um razoável número de encenações de alta voltagem artística, cujo foco é esse novo “impasse do inorgânico”. Mas voltemos ao nosso termo de comparação. Ainda nesse debate u um contraponto entr debate,, você traço traçou entree o ‘cenário’ de atuação dos gr upos da década de 60 (palco grupos (palco,, fábrica, unive upos contemporâneos (palco univerrsidade) e dos gr grupos e cidade). Ao ffim, im, disse que os no vos gr upos estariam novos grupos revelando os “componentes ativos do desmanch e”, o desmanche”, “protagonismo dos excluídos”. P ode ria rretomar etomar esse Pode oderia contraponto e diz riam esses protagonistas? dizee r quais se seriam A vitalidade teatral dos anos 60, à qual a Universidade respondeu à altura, era ascensional. Por paradoxal que possa parecer, a surpreendente vitalidade de agora se deve ao poder de revelação de um desastre nacional, ao qual a 34 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 34 29/4/2008, 03:48 universidade nesse meio tempo se ajustou, tornando o pensamento um apêndice dispensável. Numa sociedade nacional do trabalho, como a que ameaçou acontecer no Brasil meio século atrás, a política de classe lastreou um ciclo de instituições aparentadas, como as duas que estão nos interessando no momento e uma terceira que ainda não entrou em nosso enredo. Continuemos em São Paulo: a Faculdade de Filosofia e a instituição teatro moderno, se pudermos designar assim a função de atualização cultural necessária do TBC, têm a mesma idade ideológica, entre outras afinidades menos óbvias. Quando o viés antioligárquico original da faculdade se extremou, topou no seu caminho com uma dissidência análoga no Teatro de Arena, acrescida à ruptura estética, a virada explícita numa outra arena, a da luta de classes: pelo menos no plano da metáfora teatral, a Fábrica entrava em cena, uma outra instituição disciplinadora decisiva nessa mesma sociedade nacional de classes. Por um momento de real esclarecimento das forças em confronto - descontada uma boa dose de fantasia política indispensável -, gente de teatro, professores e estudantes, partidos operários e ebulição sindical formaram na mesma frente única de ruptura possível. O resto se sabe. Uma ditadura depois, seguida de uma Abertura decepcionante, um encaixe desconcertante entre direita repaginada e esquerda idem, deixaram a pista livre para um novo ethos capitalista reduzir a pó a moldura institucional do período anterior. A Fábrica, fracionada pelas cadeias produtivas globais, saiu de cena, e com ela a consciência de classe de uma multidão de indivíduos entregues ao deus-dará de uma exploração para a qual ainda não se tem nome. A engrenagem infernal dessa ciranda da viração me parece estar na origem de uma resposta coletiva como o teatro de grupo, bem como na raiz do silêncio político da universidade. Pensando na deambulação perene desses novos condenados da terra, também me parece claro que o novo chão de fábrica seja o próprio território conflagrado da cidade, daí a relação orgânica do teatro de grupo com o espaço urbano, vivido agora em regime de urgência. Por isso, uma outra cena de rua é novamente a célula geradora de um leque expressivo das poéticas que animam esse vasto front cultural, que vem a ser o teatro de grupo. Todo um ciclo de intervenções do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos transcorre justamente sob o signo dessa palavra de ordem: urgência nas ruas. Uma vitalidade de fim de linha, perto da qual a boa lembrança da anterior, se obviamente não empalidece, longe disso, se reveste daquele tom róseo com que os sociólogos amedrontados de hoje evocam a antiga luta de classes, como uma espécie de linha auxiliar do processo civilizador. E como os gr upos rrevelam evelam os no vos protagonistas? grupos novos Se fosse possível e desejável resumir numa única fórmula o destino e o caráter do teatro de grupo hoje, diria que é o teatro desse desmanche da sociedade nacional. Ou por outra, mais exatamente, ele é o teatro do desmanche que já ocorreu e está sendo administrado por um outro e inédito pacto de dominação. A certa altura da Orestéia, que está sendo recontada agora pelo pessoal do Folias, um corifeu-clown anuncia que sua geração não se julga mais predestinada a refazer o mundo, mas que sua tarefa maior consiste justamente em “impedir que o mundo se desfaça”. É isso aí. Numa sociedade que se reproduz segundo a lógica da desintegração, o horizonte de expectativas, que antes empurrava para frente o tempo social, se sobrepôs hoje ao campo da experiência presente, daí o caráter dramático de uma conjuntura que não passa. Daí também a Vertigem: o grupo teatral que leva esse nome já antecipou a cena com o seu simples enunciado. E por aí vamos, numa sociedade totalmente diferente da anterior. Pouco importa se o Brasil-identidade continua inconfundível, aliás uma marca de sucesso. Uma nação póstuma, como sugere a última montagem da Cia. do Feijão. Salvo na sua dimensão cronológica trivial, uma sociedade rigorosamente sem futuro, como todas as sociedade securitárias de risco, em que a urgência se tornou a principal unidade política de medida temporal. É só olhar para a conjuntura hiperdramática do aquecimento global, uma conjuntura emergencial de um século! Ou para algumas produções arrasa quarteirão da cinematografia brasileira recente, para perceber com que óbvia intensidade essa entronização estrutural do estado 1º SEMESTRE • 2008 • 35 camarim 41.pmd 35 29/4/2008, 03:48 de urgência se converte em espetáculo, no caso, o espetáculo da fratura-social-brasileira-clamando-porverdade-e-reconciliação, etc. Pois o trabalho artístico do teatro de grupo abre caminho exatamente na contramão desse regime do espetáculo, o qual é antes de tudo um tremendo recurso de poder: o espetáculo humanitário do social, o espetáculo securitário do traficante sem rosto, etc. Mas, também, a junção da viração do pobre com o espetáculo gratuito oferecido pela exposição na mídia: não por acaso este nó que nos corta o fôlego está em cena nas intervenções de vários grupos, espetáculo no DNA dos espoliados é a droga real. Há gr upos teatrais que acabam por contrib uir para grupos contribuir rigosas’ (para usar a sua expr essão perigosas’ expressão ‘amansar as classes pe no livro Extinção com rrelação elação ao go ve gove verr no Lula)? O que há de semelhanças e dif difee renças nessa ve verr tente tente,, teatro de gr upo grupo upo,, que você vem acompanhando? O mesmo desmanche pós-nacional que suscitou a resposta artística do teatro de grupo, ao lhe fornecer igualmente o lastro social de seus materiais, ameaça dissolver essa resposta no mar de uma indistinção fatal. Refiro-me à gestão das populações vulneráveis, cujo imenso cadastro é o inventário dos riscos que pairam sobre uma sociedade da qual ora se cuida pela válvula do famigerado social, ora se espreme pela mais crua coerção, na trilha da expansão incontrolável de um poder punitivo difuso. A escala inédita do teatro de grupo também se explica pela pressão do subsolo dessa nova sociedade a um tempo assistida e descartada. Nunca tanta gente foi devidamente estimulada a fazer algum tipo de “teatro” para não “dançar”, ou vice-versa. Estão aí os coreógrafos do terceiro setor. As oficinas disto e daquilo, os programas assim e assado, e agora a última onda do modelo Bogotá/ Medellin, etc. Sem falar na ambígua estilização hip-hop. Mas é essa a fronteira, o território do conflito anestesiado pela indistinção, mas onde só maluco riscaria um fósforo para, afinal, enxergar quem é quem. Como nossos amigos são antes de tudo artistas, esse nó cego vai para a sala de ensaio. Mas como o teatro ainda é um gênero público, quem sabe não ressuscita como arena política? Para isso precisa saber com quem se agrupar, identificar os protagonistas de uma emergência do contra, por assim dizer. Como assim o autoriza a natureza específica de sua linguagem, o teatro de grupo hip-hop, por exemplo, não se acanha de interpelar em cena aberta o seu público virtual. Redenção? Contenção? A crise do PT está dir etamente lig ada ao desmanch diretamente ligada desmanchee da classe trabalhadora, já que essa eera ra a base sobr sobree o qual ffoi oi fundado? Evo Morales e Hugo Chávez repr esentariam as fforças orças do desmanch e? epresentariam desmanche? O ciclo político durante o qual o PT foi hegemônico na esquerda brasileira foi contemporâneo do desmonte metódico do meio século desenvolvimentista do período anterior. Porém, esse partido realmente novo nunca chegou a se dar conta da desagregação econômica e social que se desenrolava às suas costas, enquanto tocava com sucesso eleitoral crescente seu projeto original, não de uma ruptura que a rigor nunca prometeu, mas de uma incorporação da grande massa espoliada brasileira ao mundo dos direitos e da cidadania ativa - se bem-sucedida, uma tremenda reviravolta nos padrões históricos de dominação neste país. Quando esse projeto verdadeiramente radical, porém não socialista estrito senso, deveria se consumar, verificou-se que nos deparávamos com uma outra sociedade, desmanchada em seus nexos essenciais, a começar pelo mais fundamental deles, o do trabalho, e que, no entanto, os quadros petistas já vinham administrando, mais ou menos por instinto político de sobrevivência, segundo os métodos gerenciais da governança corporativa. Sem o saber, já eram os agentes passivos do desmanche em curso, enquanto a direita tucana operava do mesmo modo, e ativamente, em nome do grande capital privatizante. Acabaram se juntando no mesmo condomínio. A velocidade do processo foi, no entanto, diferente no restante da América do Sul. Chávez, depois Morales, depois, etc. reagem no calor da hora e sem nenhuma retaguarda política, a um desastre sem precedentes, a começar pela derrocada criminosa de suas respectivas elites dirigentes: porém reagem com um nacionalismo fiscal de emergência e, como tal, em 36 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 36 29/4/2008, 03:48 ALEXANDRE KRUG Ato Redemoinho/ São Paulo, Dia Internacional do Teatro. compasso de espera tangido de crise em crise. Já a nossa veio para se perpetuar numa espécie de desgraça de baixa intensidade. furiosos, dizendo ‘queremos fazer teatro, não somos ONG, não queremos fazer trabalho social’. Mas não dá mais para dissociar. Claro, esse trabalho social está degradado, aviltado, virou Charity, estação filantrópica. É assim que funciona. Mas se não passar com esse canal não chega a lugar nenhum. Não dá para chegar, fincar a bandeira com a foice e o martelo e começar a politização, acabou, esse ciclo acabou. Para chegar ao Capão Redondo, tem que negociar com dez entidades, porque o público está lá. Que não são entidades mafiosas; claro, tem assistencialismo, clientelismo, de tudo quanto é jeito. Mas o teatro de grupo vai encontrar ali um público já organizado. E não dá para passar por cima disso. Não vai fazer teatro para o cara que está no crack, não dá para fazer Orestéia para eles. Teatro de qualidade já estão fazendo mesmo e aí? Para quem? Estão no limiar político, então tem de passar por aí, pelos movimentos sociais. Por isso falei do “protagonismo”, as aspas deveriam estar mais visíveis, desse desmanche. É um protagonismo tanto no sentido administrado quanto na possível intervenção política por esse canal - é por onde está indo a sociedade. As empresas e os partidos estão lá gerindo isso. Não dá para entrar com uma cunha lá dentro e encontrar o público lá na frente. E é óbvio que ninguém está fazendo Orestéia de graça, esse teatro precisa encontrar seu público. tigo “Bem-vindos ao No ar artigo eal”, publicado deserr to brasileiro do rreal”, dese no seu livro Extinção Extinção,, você diz que dá para desconf iar do propalado desconfiar “vazio político” justamente pela quantidade oou u qualidade das ‘lamentações’ pela ‘despolitização’ da sociedade sociedade.. E diz (pág (pág.. 276) que “estamos car ecidos mesmo é da carecidos pro vidência contrária, de uma crítica providência em rregra egra da política ee,, em função dela, rreorg eorg anizar nossa imaginação eorganizar imaginação,, extraviada ffaz az tempo no me rcado das mercado responsabilidades públicas”. Há saída, então? Dá para imaginar uma reorg anização da política? eorganização Acho que não depende do teatro, claro, mas é como se parcela significativa do movimento teatral estivesse se preparando para uma virada política. Sabendo ou não, planejando ou não planejando, é como se estivessem numa espécie de antevéspera do que vai acontecer, mesmo com a ducha fria que foi a decepção com o Lula, que já está metabolizada, é página virada. Eu sinto que o movimento teatral é como se fosse uma espécie de arquipélago de pequenos grupos com capacidade de intervenção pública, que esperam um momento para se aglutinar, se aparecer um movimento que tenha envergadura política para propor uma alternativa. Isso pode acontecer. Acho que está no limiar. Muitos ficam • 1º SEMESTRE • 2008 • 37 camarim 41.pmd 37 29/4/2008, 03:48 VALTER CAMPANATO MST: Teatro e Reforma Agrária Teatro Procissão durante a Marcha Nacional Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revolucionários devem transferir ao povo os meios de produção teatral, para que o próprio povo os utilize, à sua maneira e para os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la. Augusto Boal Quando escutamos que o projeto de Reforma Agrária defendido pelo MST é radical, há duas possibilidades de interpretação distintas para a afirmação. A interpretação corrente na grande imprensa adota a linha depreciativa, associando a palavra “radical” a extremismo político, de caráter inconseqüente e desordeiro. A outra perspectiva é a que se faz fiel ao sentido semântico da palavra “radical”, como um projeto de Reforma Agrária que se propõe ir à raiz do problema, questionando os pilares de estruturação do sistema agrário do país, de caráter monopolista e monocultor destinado à exportação, de forte traço autoritário e superexplorador no que concerne às relações de trabalho. O MST compreende que a luta pela Reforma Agrária não se resume à conquista da terra para que nela os camponeses possam plantar. Atualmente a Reforma Agrária se tornou mais complexa com a forte presença dos capitais estrangeiros, das transnacionais e grandes grupos econômicos que controlam a agricultura brasileira. A concepção clássica da Reforma Agrária como um meio de desenvolvimento do mercado interno através da democratização do acesso à terra não corresponde às formas atuais de acumulação capitalista. O centro da acumulação se transferiu para o mercado financeiro e o capital internacional. É a aliança entre o capital financeiro e a monocultura monopolista para exportação a lógica econômica e política da agricultura brasileira. Entendemos que não há perspectiva emancipatória com a manutenção do sistema regido pelas leis do capital. Ao assumirmos a radicalidade do projeto de Reforma Agrária, assumimos a perspectiva anti-sistêmica. Estamos falando de um projeto que priorize a descentralização da propriedade privada e viabilize um novo modelo de produção e sociedade. Um projeto de Reforma Agrária que reestruture a totalidade da produção da vida social, o que implica novos valores, novos significados e o enfrentamento à hegemonia do capital. Hegemonia esta que se configura pela propriedade dos meios de produção, pelo controle do Estado e pelo monopólio dos meios de comunicação. Contra o monopólio dos meios de representação da “realidade”, um projeto de transformação precisa se contrapor com técnicas e linguagens capazes de colocar em xeque as formas de dominação, gerar alternativas coletivas, apontar caminhos para outras formas de organização social. Para a efetivação de um projeto de Reforma Agrária de cunho socialista seria preciso assumir a batalha também no front da cultura, qualificando militantes técnica e 38 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 38 29/4/2008, 03:48 politicamente para iniciar um processo de construção coletiva de um imaginário descolonizado e livre dos valores mercantis. Conscientes de que a efetivação de um projeto de Reforma Agrária radical implica a socialização da terra e a construção de uma nova forma de sociedade, e que isso não se realizará sem a eliminação dos latifúndios da comunicação, da educação e da cultura, é que se constituiu o Coletivo de Cultura do MST e a Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré. Uma vez constituídos os primeiros grupos, a percepção efetiva de que a produção cultural pode assumir formas de intervenção política nos levou a orientar nossas produções para o sentido do confronto na luta de classes, e para isso passamos a priorizar as alianças políticas e artísticas que priorizem a socialização, o compartilhamento e o intercâmbio dos meios de produção da linguagem teatral. E aprendemos com o processo que o potencial político de nossa intervenção artístico-cultural depende da apropriação das formas críticas de representação da realidade. Após sete anos a Brigada Nacional Patativa do Assaré reuniu na publicação Teatro e transformação social (2007) dezenove peças produzidas pelo seu elenco nacional e por alguns dos mais de trinta coletivos teatrais do MST a ela ligados. O texto a seguir equivale a parte da apresentação desse material. Estas primeiras etapas da Brigada foram acompanhas de oficinas regionais, estaduais e de grandes regiões, em cursos, encontros e seminários. Vários grupos se formaram neste período: Ocuparte (ES), Mário Lago (SP), Velho Chico (SE), Utopia (MS), Águias da Fronteira (MS), Raízes Camponesas (MS), Mensageiros da Cultura (MS), Frutos da Terra (MS), Lamarca da Cultura (MS), Filhos da Cultura (MS), Zumbuzeiro (SE), Mandacaru (SE), Quixabeira (SE), Brigada Semeadores (DF), Grupo do assentamento Florestan Fernandes (DF), Filhos da Mãe... Terra (SP), Arte Camponesa (RO), Força da Terra (RJ) e Peça pro povo (RS). Na experiência dos trabalhos realizados com estes grupos nesta primeira fase da Brigada, caracterizada principalmente pelas técnicas do Teatro Fórum, nos defrontamos com dificuldades de abordagem de determinados temas e assuntos. Com o desenvolvimento do nosso processo de formação, e constatadas estas dificuldades iniciais, passamos a estudar outras formas teatrais. Em fevereiro de 2004, em pleno carnaval carioca, iniciamos nossos estudos de teatro épico, sobre formas e teoria dos gêneros com Iná Camargo Costa. Em junho de 2004, com o objetivo de conhecer e se apropriar dos procedimentos do teatro épico, foi realizada em Brasília uma oficina coordenada pelo grupo paulista Teatro de Narradores e organizada pelo grupo candango O avesso da Máscara, com participantes do MST do DF/Entorno e do Mato Grosso do Sul. Em outubro de 2004 foi realizada oficina complementar com os 7 grupos do MST/MS. Em fevereiro de 2005, após a quinta etapa de formação da Brigada Nacional do MST com o CTO, em que foram aprofundados os estudos de técnicas que já vinham sendo trabalhadas, como Teatro Jornal, Teatro Invisível e o Teatro Épico, a Brigada Patativa do Assaré organizou as oficinas de grande região para a preparação do Teatro Procissão. Na oficina da região sul foi formado o Coletivo SaciSul de Teatro, que contou com a colaboração do grupo Ói Nóiz Aqui Traveiz (RS). Logo depois, no Paraná, seria formado o coletivo estadual Gralha Azul. Na oficina da região sudeste a contribuição foi da Companhia do Latão (SP) e do Teatro de Narradores (SP). A região Histórico da Brigada Patativa do Assaré A Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré nasceu em junho de 2001, no Rio de Janeiro, durante a realização da segunda etapa nacional de formação de curingas com Augusto Boal e o Centro do Teatro do Oprimido - CTO. A parceria estabelecida entre o MST e o CTO previa o treinamento de uma turma de militantes de vários setores e estados nas técnicas do Teatro do Oprimido para que estes pudessem ministrar oficinas e formar grupos nos acampamentos, assentamentos e encontros do Movimento em todo o país. As três primeiras etapas de formação com o CTO aconteceram durante o ano de 2001, nos meses de fevereiro, junho e novembro e a quarta etapa ocorreu em novembro de 2002. 1º SEMESTRE • 2008 • 39 camarim 41.pmd 39 29/4/2008, 03:48 centro-oeste contou com a contribuição de Tâmara, do grupo estadunidense Art and Revolucion. A construção de um sistema de produção teatral Norteados pela reflexão de Antonio Candido, que se refere à lógica da produção artística como um sistema ancorado nos vetores autor, obra e público, notamos que no decorrer desses sete anos de atuação da Brigada Patativa do Assaré começou-se a esboçar uma espécie de sistema interno no MST, em que grupos produzem peças que circulam no Movimento e também fora dele. Em encontros nacionais e regionais esses grupos apresentam-se e trocam experiências, e depois, nos acampamentos e assentamentos, outros grupos passam a montar as peças que viram e leram. Na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, ocorrida em maio de 2005, com mais de doze mil marchantes, a peça A Bundade do patrão foi apresentada pelo coletivo Peça pro Povo (RS), pela Brigada Estadual de Cultura Filhos da Terra (MS) e pela Brigada de agitprop Semeadores (DF). Também na marcha, a peça Exploração do Trabalho foi apresentada por cinco elencos, e outros dois elencos apresentaram uma adaptação da mesma peça intitulada Como fazendeiro sofre. A apropriação da tradição teatral também faz parte dos trabalhos realizados. O grupo Filhos da Mãe... Terra montou uma adaptação da peça de Bertolt Brecht Horácios e Curiácios, intitulada Posseiros e Fazendeiros, e a Brigada de agitprop Semeadores, trabalhando com a estrutura da fábula de O círculo de giz caucasiano, do mesmo dramaturgo, elaborou a peça Trapulha, após oficina ministrada pelo grupo Teatro de Narradores. A peça Paga Zé, do Coletivo Peça pro Povo é uma adaptação de Não tem imperialismo no Brasil, de Augusto Boal e Por estes santos latifúndios, do grupo Filhos da Mãe...Terra, é uma adaptação de Guillermo Maldonado Perez, dramaturgo colombiano premiado com esta peça pela Casa das Américas, de Cuba. Os locais de apresentação das peças são principalmente encontros, reuniões, seminários, marchas, plebiscitos, campanhas, além dos acampamentos e assentamentos. Durante a Marcha Nacional de 2005, fazíamos apresentações diárias e realizamos a apresentação do Teatro Procissão, com 270 militantes, contando a História da Luta pela Terra no Brasil. No V Congresso Nacional do MST, realizado em 2007, com 17 mil pessoas, também ocorreram apresentações diárias. As escolas e centros de formação são outros locais de freqüente apresentação dos grupos. As brigadas de agitação e propaganda fazem intervenções freqüentes em escolas, praças, ruas, pontos de ônibus, etc. Em espaços externos ao Movimento, elencos da Brigada Nacional Patativa do Assaré, ou grupos estaduais do MST a ela ligados, se apresentaram no II, III e V Fórum Social Mundial, no TEIA – Encontro Nacional dos Pontos de Cultura, realizado na Bienal de São Paulo, em 2006, e na II Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo de 2007. Hegemonia e luta política: a disputa por um novo projeto de sociedade Ao analisar o conceito gramsciano de hegemonia, Raymmond Williams sugere que este incorpora os conceitos de cultura, entendida como todo um processo social, e de ideologia, como um sistema de significado de valores que expressa ou projeta um determinado interesse de classe. Há um processo de construção de hegemonia, de construção de visão de mundo, de um projeto de civilização que ocorre no cotidiano antagônico da luta de classes. A luta pela transformação da sociedade exige também mecanismos de transformação ideológica. A organização da Brigada Patativa do Assaré, sua metodologia de produção coletiva, os processos de circulação e distribuição da produção com alcance nacional, acompanhados de sistemáticos e contínuos processos de formação, proporcionaram à Brigada um efetivo poder de enfrentamento no campo ideológico, dos projetos de sociedade em disputa na luta de classes. Essa prática tem seu potencial político ampliado ainda mais quando estabelece ações com o conjunto da organização e de outros movimentos sociais. Nesta coletânea de peças encontramos produções deste caráter. São peças como Alcapeta, que foram apresentadas 40 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 40 29/4/2008, 03:48 em dezenas de escolas nas campanhas contra os tratados da ALCA e de Livre Comércio. Estas apresentações e outras intervenções culturais dos mais de 300 militantes do setor de cultura do MS provocaram o desconforto dos poderosos, e algumas câmaras legislativas municipais tentaram formular leis impedindo a apresentação dos grupos do MST em escolas. Na preparação da Marcha Nacional, em 2005, uma Brigada de agitprop tinha em seu repertório a apresentação da peça A luta do camponês contra o agronegócio, realizada em escolas, igrejas e reuniões de bairros. O grupo Tampa de Panela (SC), fez uma adaptação de Mulher da Roça abordando as conseqüências da produção de fumo que algumas famílias assentadas vinham implantando na região. A peça Trapulha serviu de ponto de partida para discussão e resolução de problemas de concentração de poder no acampamento. Na campanha presidencial de 2006, brigadas de agitprop do MST e outros movimentos sociais fizeram constantes intervenções explicitando as diferenças entre os projetos da esquerda e da direita para o país. Além destas apresentações em campanhas e jornadas de lutas específicas, há um constante desenvolvimento de atividades teatrais em conjunto com os demais setores e cursos do Movimento. São realizadas avaliações em cursos com metodologias do Teatro do Oprimido, como o Teatro Imagem, além de apresentações de temas específicos e do programa estratégico das organizações sociais. Peças como Campo de guerra: a sala de aula, abordando discriminação e preconceito sofridos por estudantes sem terra, foram apresentadas na ciranda infantil da Marcha Nacional. Experiências com o conjunto das peças didáticas do dramaturgo alemão Bertolt Brecht vêm sendo realizadas em cursos de formação de militantes e nas escolas de formação. Filhos da Mãe... Terra - MST As formas da luta de classes: sedimentação social da forma As tradições críticas da produção cultural e artística, principalmente as de orientação materialista e dialética que configuram o marxismo, estabelecem as relações entre a forma e o conteúdo como históricas. Contraditoriamente, em cada período histórico, os projetos de classe em disputa constituíram um modo específico de representação artística e da forma de ver o mundo. Os jeitos de contar uma história, de imaginar o novo, de representar e selecionar os valores, os assuntos, todos os aspectos da produção estética, influenciam na forma final da intervenção que será socializada. A concepção mais radical destas interpretações formula que o conteúdo mesmo, o conteúdo social de uma obra, encontra-se na sua forma. No decorrer da formação da Brigada Patativa do Assaré percebemos isto na prática. Defrontamo-nos com a dificuldade de tratar temas históricos e de dimensões sociais amplas com formas inadequadas. A tradição formal que se estabeleceu nos meios de comunicação de massa, que configurou um padrão hegemônico de representação, é a chamada forma dramática, que se estrutura pelo conflito de vontades individuais, que se realiza no presente absoluto pelo chamado diálogo dramático. Esta forma, de larga influência nas maneiras de representar, coloca sérios problemas para o tratamento de temas como Reforma 1º SEMESTRE • 2008 • 41 camarim 41.pmd 41 29/4/2008, 03:48 Agrária, imperialismo, luta de classes, temas que não têm na figura individual de uma personalidade, no conflito dramático de um único sujeito sua mais objetiva forma de representação. Isto porque estes processos se referem a interesses de classe, a estruturas sócio-econômicas em constante e contraditória inter-relação. Se é a forma a real portadora do conteúdo de uma intervenção estética, uma vez socializados os meios de produção cultural, o potencial de enfrentamento político pode ser anulado se utilizarmos formas equivocadas, as formas hegemônicas, e corremos o risco de solidificarmos ainda mais os valores e significados que queremos combater. Os programas de formação da Brigada Patativa do Assaré abordaram este assunto de forma sistemática e continuada, tanto nos cursos da Brigada quanto nos outros cursos realizados pelo Coletivo de Cultura e pelo Setor de Comunicação do MST. Tendo estes pressupostos teóricos, produzidos em inseparável relação com a nossa prática, organizamos nossas peças em 3 grupos: Teatro Fórum, Teatro Épico e Agitação e Propaganda. Cada conjunto possui características específicas, embora estas mesmas características não estejam totalmente ausentes nos outros grupos. Mesmo existindo traços semelhantes, há especificidades que orientaram a produção de cada peça, tendo em vista principalmente o objetivo – político – que se propõem. Apresentamos abaixo, de maneira muito resumida, os principais traços de cada um dos três grupos. Tea tr oF órum eatr tro Fórum A principal característica desse formato é a quebra dos limites entre palco e platéia, entre atores e o público, por meio da possibilidade dos espectadores entrarem em cena no lugar dos personagens que eles julgam oprimidos. A estrutura de uma peça de Teatro Fórum constitui-se na configuração clara de uma situação de opressão. A apresentação serve para iniciar o debate com a platéia sobre a situação de opressão apresentada. Os próprios espectadores, dando sua opinião sobre a situação, entram em cena para interpretarem o personagem oprimido e agem sugerindo estratégias para a solução dos problemas de opressão enfrentados. Boal os chama de espect-atores. Esta técnica, desenvolvida por Augusto Boal durante os anos 1970, após participação intensa nas lutas sociais durante a década de 1960, é a mais extrema na socialização dos meios de produção teatral, pois rompe completamente a barreira entre palco e platéia. Foi esta metodologia centrada na socialização que proporcionou a formação de grande número de grupos no MST. Tea tr o Épico eatr tro Com a socialização dos meios de produção teatral, as dificuldades técnicas começaram a se impor. A solução estética de problemas políticos demandou o conhecimento de outros procedimentos da técnica teatral. Estas dificuldades apareceram ao tentar dar forma a processos amplos, como a análise comparativa entre os padrões dos modos de produção agrícola da elite em diferentes contextos históricos, das plantations ao agronegócio, passando pela Revolução Verde, entre outros ciclos de modernização conservadora do país. Ou seja, para além das determinações do indivíduo, os temas épicos exigem a compreensão e correspondente formalização estética da engrenagem que articula a infra-estrutura com a superestrutura, e o entendimento da dinâmica de tensão permanente de confronto da luta de classes. A crítica aos projetos de livre comércio, como a Alca, proposta pelos EUA para os demais países do continente americano, não tem como ser realizada nos termos das convenções dramáticas da linguagem teatral, já que o problema não se configura como um problema da ordem dos indivíduos, por meio do diálogo, numa sucessão de acontecimentos no tempo presente. Foi para suprir estas demandas que iniciamos nossos estudos nas teorias do teatro épico, orientados principalmente pela professora Iná Camargo Costa. A principal característica do teatro épico é que os intérpretes assumem a postura de narradores dos processos apresentados. Várias são as técnicas utilizadas para isso, como os coros, as canções, as narrativas, formas específicas de interpretação, etc. Estas técnicas têm como objetivo fazer com que o espectador não se deixe absolver pela história representada, como se ela fosse natural, mas, pelos Cenas de Grupos que compõem a Brigada. 42 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 42 29/4/2008, 03:48 procedimentos do chamado distanciamento, o espectador teria que estranhar os processos representados em cena, ou desnaturalizá-los. As relações entre diversos setores sociais, entre interesses econômicos, disputas políticas, devem ser organizadas e representadas de forma dialética, devem ser apresentadas em suas variadas inter-relações e contradições, visando uma compreensão mais abrangente dos processos sociais do desenvolvimento da luta de classes. Agitação e pr opaganda – Agitpr op propaganda Agitprop A agitação e propaganda é um conjunto de métodos e técnicas que podem ser utilizados como tática de agitação, denúncia e fomento à indignação das classes populares e politização de massas em processos sociais. A expressão foi criada pelos revolucionários russos para designar as diversas maneiras de fazer agitação de massas e ao mesmo tempo divulgar os projetos políticos da revolução. A agitação e propaganda tem uma larga tradição nas lutas sociais desenvolvidas desde a revolução soviética. As experiências desenvolvidas na Alemanha, na França, nos Estados Unidos e no Brasil na década de 1960, aqui realizadas principalmente pelos Centros de Populares de Cultura (CPC) e Movimento de Cultura Popular (MCP), constituem grande repertório de formas, como o teatro jornal, o teatro invisível, intervenções de música, artes plásticas, cinema, pichações, etc. Cada movimento e organização produziu seus métodos e formas, servindo-se de toda referência que tivessem, de acordo com as demandas apresentadas em cada contexto histórico. As intervenções de agitprop têm um grande poder de intervenção direta, de agitação dos trabalhadores para o confronto dos projetos de classe apresentados como hegemônicos e para a propaganda de um projeto popular. As experiências de teatro político organizadas pelo CPC e pelo MCP foram abruptamente interrompidas pela força das armas, com o golpe militar de 1964. Não duraram mais que cinco anos e, nesse curto período de vida, marcaram definitivamente a vida cultural e política do país, pois apontaram o caminho da possibilidade das classes populares construírem suas próprias formas de representação política e estética. O trauma da interrupção da experiência acumulada naqueles anos define os contornos da precariedade com que a retomada da produção teatral do MST se estabelece: a privação do legado dramatúrgico daqueles que lutaram antes de nós retarda o processo de recomeço, pois em alguns pontos não temos a trilha do aprendizado com os impasses anteriores, por isso temos que amadurecer aprendendo com nossos próprios erros, talvez menos correntes se o percurso da acumulação e continuidade histórica não tivesse sofrido o entrave de mais de duas décadas de ditadura militar. Contudo, podemos afirmar de modo sintético que o seguinte conjunto de fatores dá sustentação e pode propulsar as experiências das brigadas no momento contemporâneo: • a inserção orgânica da iniciativa como parte da estratégia de formação política e massificação de um movimento social de abrangência nacional; • a complexa estrutura organizativa do MST e do processo de formação, por meio da lógica setorial, permite que a linguagem teatral se desenvolva de forma plural, de acordo com as diversas funções que ela desempenha; • o crescente processo colaborativo com grupos de teatro político do meio urbano, como aqueles ligados à Redemoinho. O MST existe há vinte e quatro anos e a experiência sistemática com teatro político existe há oito anos. Se não formos surpreendidos pela violenta ação repressora da elite, tudo indica que o aumento qualitativo e quantitativo dos trabalhos é um passo sem volta, pois em pouco tempo as brigadas de teatro têm incorporado em seus coletivos o trabalho integrado com outras linguagens artísticas e com isso tem passado a funcionar como brigadas de cultura. Em paralelo, outras frentes de atuação da Cultura e Comunicação têm avançado muito em pouco tempo, como é o caso da recente e promissora formação da Brigada de Audiovisual da Via Campesina, e do processo de formação de brigadas de agitação e propaganda em capitais estaduais, com militantes de organizações do campo e da cidade. • 1º SEMESTRE • 2008 • 43 camarim 41.pmd 43 29/4/2008, 03:48 PEDAGOGIA TEATRAL Pesquisa e transmissão nas práticas de um coletivo teatral Západ, Balagan, SP. “A educação é o ponto que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele…” Hanna Arendt Maria Thais e Clara Cecchini O intuito deste artigo não é problematizar a educação teatral em seu âmbito geral, mas indagar a respeito dos processos pedagógicos que caracterizam a criação teatral, especialmente aquela dedicada à experimentação cênica. A princípio, devemos esclarecer o uso feito no presente texto de seu termo fundador – pedagogia –, e diferenciá-lo do termo educação que, em geral, é lido como seu sinônimo. Em primeiro lugar, o termo pedagogia é tomado aqui no seu sentido estrito: ligado às suas origens na Grécia antiga, em que o pedagogo era o escravo-condutor aquele que conduzia a criança para o local onde acontecia a relação ensinoaprendizagem, mas que era também o responsável pela melhoria da conduta geral do 44 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 44 29/4/2008, 03:48 Maria Thais é diretora da Cia Teatro Balagan e Professora, na área de Interpretação e Direção, do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP. Clara Cecchini é atriz da Cia Teatro Balagan e Coordenadora de Artes Cênicas do Instituto Mamulengo Social, parceiro para Arte e Cultura da Fundação CASA. 1 Larrosa, Jorge Buendía. “Do Espírito de Criança à Criança de Espírito”, in Pedagogia Profana: Danças, Piruetas e Mascaradas. Autêntica, Belo Horizonte, 2004. estudante, moral e intelectual. Portanto, a pedagogia, em sua origem, está intimamente ligada à noção de caminho, de processo. Interessa-nos a função do escravo-condutor, suas responsabilidades frente à formação do outro, e as eleições dos lugares apropriados para a experiência de transmissão. Da tradição teatral trazemos outra referência, também fundante do pensamento aqui presente: a idéia de pedagogia teatral surgida no teatro russo do final do século XIX e início do XX, no Teatro de Arte de Moscou (TAM). Fundado em 1898,o TAM inaugurou a formação de uma companhia teatral que se organizava a partir da afinidade na visão sobre a arte. A noção de filiação a um teatro se disseminou e esta é uma característica que distingue o teatro russo, inclusive a vanguarda histórica, do teatro europeu do período. No início do século XX, na Rússia, o papel formador foi transferido para o espaço da cena, do fazer teatral propriamente dito. Seus defensores lutavam contra a falta de princípios artísticos, contra o ecletismo, tão comum no teatro até então, e a filiação era o caminho de criação do novo teatro. A pedagogia teatral nasce, portanto, sem vínculo com o ensino institucional, emergindo do seio de uma prática teatral. Diferencia-se, assim, na sua origem, do que conhecemos como processo educativo. Este diz respeito a uma pratica social que se realiza em um espaço institucional - a escola - com o objetivo de desenvolver um resultado preciso, previsto antes mesmo de ser iniciado. As instituições de ensino medem sua eficiência pela quantidade de informação que um sujeito – o educando – consegue absorver durante o chamado processo educativo. Processo este que tem um ponto de partida muito definido – aquele que não sabe – e aspira um ponto de chegada – aquele que aprendeu. Ao final, compara-se a quantidade de habilidades que o aluno possui antes e depois de passar pela escola: se a quantidade é relativamente superior, pronto, estamos diante de um sujeito educado. Como medida do sucesso deste processo educativo são usados, em última instância, a capacidade de inserção no mercado de trabalho e o grau de produtividade. Nas práticas de criação de um coletivo teatral, ao contrário, a pedagogia está diretamente relacionada à noção de um processo formativo. Neste, o ponto de chegada é extremamente misterioso, é sempre uma surpresa porque “na formação, a questão não é aprender algo. A questão não é que a princípio não saibamos de algo e, no final, já o saibamos. Não se trata de uma relação exterior com aquilo que se aprende, na qual o aprender deixa o sujeito imodificado. (...) O processo de formação está pensado, melhor dizendo, como uma aventura”1. Porém, indagamo-nos: até que ponto nossas práticas artísticas estão contaminadas pelos processos educativos? Até que ponto se constituem como espaço para um processo formativo, e de indagação artística, pautado na formação de um pensamento sobre a própria práxis? Nos coletivos teatrais, há espaço para um processo de formação contínuo, em que o inaugural passa a ter mais importância que a evolução por si? Em que o processual passa a ter mais importância que a produção por si? E, indagamo-nos ainda, o que estaria então na base de uma pedagogia teatral contemporânea? 1º SEMESTRE • 2008 • 45 camarim 41.pmd 45 29/4/2008, 03:48 2 Larossa, Jorge. “Dar a palavra Notas para uma dialógica da transmissão” in Habitantes de Babel – Políticas e Poéticas da diferença. Belo Horizonte, 2001, Autêntica. 3 Larrosa, Jorge Buendía. “O Enigma da Infância”, in Pedagogia Profana: Danças, Piruetas e Mascaradas. Autêntica, Belo Horizonte, 2004. Apresentamos, neste artigo, idéias que não pretendem responder esta pergunta, pois isso seria trair o que acreditamos estar na base da pedagogia. Seria, ainda, afirmar um valor do qual tentamos fugir a todo instante: o valor do acerto, a satisfação com a resposta correta. As noções de “conduzir o outro”, de “filiação”, de “inaugural” constituem um terreno fértil de investigação, e não alternativas de resposta. A pesquisa, como a entendemos na Cia Teatro Balagan, constitui-se como processo formativo quando consegue instaurar uma dinâmica em que os artistas envolvidos consigam estar engajados e estimulados na construção de algo fora deles mesmos. O caminho a ser percorrido junto ao pedagogo, nesta acepção, é aquele de cada sujeito em direção a seu próprio ser, num processo de reconhecimento e transformação. Desta maneira, acreditamos que o sujeito pode passar, finalmente, a ter maior clareza sobre as diferenças de constituição do que compõe o mundo exterior: chegando, finalmente, à noção de alteridade. É aí que está, para nós, a importância dos processos pedagógicos em teatro. Estes privilegiam a transmissão ao invés da aquisição, a aprendizagem ao invés do ensino, a produção ao invés da reprodução, a heteronímia ao invés da autonomia2. Os processos pedagógicos que buscamos materializam, em sua práxis, uma noção de coletivo formado por diferenças, em que a autoria individual se perde, tanto nas dinâmicas cotidianas de criação e manutenção do trabalho, quanto na obra artística propriamente dita. Ou seja, não há dissociação possível entre as práticas artística e pedagógica. Voltando à citação de Hanna Arendt que abre este artigo, não há possibilidade de não se assumir responsabilidade pelo mundo em que se vive. Para nós, a pedagogia teatral é o próprio eixo da criação artística, compreendido aqui como um espaço de problematização, de indagação, de produção de pensamento. Cada processo de criação tem uma demanda - técnica, poética e estética -, e a formação permanente dos artistas envolvidos não visa encontrar soluções aos novos problemas, mas sim encontrar novos problemas para as antigas soluções. Problemas estes que estão mais relacionados à idéia de composição de uma obra ou à assimilação de diferentes conceitos do que propriamente à execução de tarefas específicas. A manutenção deste “estado de pesquisa” depende, portanto, de uma atitude de todos os envolvidos, que não é um pacto de igualdade mas, antes, um acordo, fundado nas premissas que regem o trabalho. E a noção de inaugural se apresenta, para nós, como a premissa primeira, geradora de todas as dinâmicas e reflexões. Para que ela possa se instaurar, é necessário um exercício de silêncio e atenção, de aguçar a percepção ao que cotidianamente nos escapa. É o que Larrosa chama de “presença enigmática da infância”, ou seja, um exercício de radical alteridade diante de algo que, em essência, nos pertence. O encontro com o que é novo a todo instante, “o encontro de uma verdade que não aceita a medida do nosso saber, com uma demanda de iniciativa que não aceita a medida de nosso poder, e com uma exigência de hospitalidade que não aceita a medida de nossa casa.”3 Ou seja, uma experiência de alteridade que exige uma verdadeira transformação: um processo de formação em que se fuja da tentação de dar-se como modelo. Uma ação pedagógica. • 46 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 46 29/4/2008, 03:48 A teatralidade circense ERMINIA SILVA Em 2007 e 2008, na grande São Paulo, apresentaram-se pelo menos nove circos: Beto Carreiro, Nacional da China, Plume, Roda Brasil, Soleil, Spacial, Stankowich, Zanni, Vox, sendo seis nacionais e três estrangeiros. Por influência direta da estréia do Cirque du Soleil pela primeira vez no país, artistas, empresários e pesquisadores circenses brasileiros foram procurados exaustivamente pelos jornalistas, que produziram inúmeras reportagens sobre o tema. Tal foi o volume de registros informativos, que acabou caracterizando aqueles três meses como um período atípico da presença das atividades circenses na imprensa brasileira – escrita, falada e televisiva. (Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Veja, Carta Capital, Bravo, Rede Globo de Televisão, diversas estações de rádio, com programas de cobertura nacional; entre outros). Dentre as abordagens temáticas nas reportagens, além de alguns textos de intelectuais da cultura e críticos teatrais, uma esteve em todas: o circo estava [na] ou tinha virado moda moda. Tendo o Soleil como parâmetro, aquelas diversas produções escreveram o quanto o tema circo está presente, hoje, nas várias formas de expressões artísticas, em especial no teatro, na dança e na música. Os autores das reportagens e por conseqüência seus veículos de comunicação, “redescobriram” as atividades circenses brasileiras. Entretanto, as “descobertas” se pautaram a partir daquela companhia, para atribuir medida de valor de qualquer outro espetáculo circense (às vezes até teatral). Os termos de comparação que foram utilizados ficavam entre uma certa “pobreza” do circo nacional e a grandeza do internacional, que se dedica à criação, produção e apresentação de trabalhos artísticos que “apelam para a imaginação, provocam os sentidos e evocam as emoções das pessoas”. Ao mesmo tempo, ia se “descobrindo” como “novidade” a própria produção circense brasileira, nos últimos 20 anos. Porém, nada era comparado aos três espetáculos internacionais, descritos como “circos modernos”, cheios de histórias e “performances estonteantes”. Erminia Silva (doutora em história; autora do livro Circoteatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. Editora Altana, 2007). 1º SEMESTRE • 2008 • 47 camarim 41.pmd 47 29/4/2008, 03:48 O Soleil é visto como o “enunciador” de uma “nova” linguagem artística que “revolucionou” a técnica circense, uma empresa que entra na categoria de “circo novo, novo circo ou circo contemporâneo”. Além do fato de não usar animais, possui artistas de diversas nacionalidades (mais de quarenta), produz números que sofrem influência do teatro, do próprio mundo do circo, da ópera, do balé e do rock. Há contorcionismo, malabarismo, palhaços e trapezistas, fazendo uso de músico ao vivo, coreografia, cenografia, dança; porém, segundo aquelas reportagens, realizados de forma diferente do “tradicional e antigo” modo de se fazer circo, pois há um fio condutor, uma unidade no espetáculo e não “apenas” uma seqüência de números. Possui os mesmos ingredientes que um espetáculo teatral, com um diretor, um coreógrafo, um compositor, os figurinos criados para o espetáculo, um cenógrafo, um iluminador. Nessa série de reportagens, bem como em diversos trabalhos acadêmicos (nacionais e internacionais), chega-se a afirmar categoricamente que, a partir do início da década de 1980, com a constituição de grupos e companhias não oriundos do circo de lona, formados nas escolas de circo ou de modo autônomo, surge uma nova corrente “vanguardista” das artes circenses, por incorporarem “técnicas modernas e uma estética contemporânea”. E, assim, este movimento do “circo novo, novo circo ou contemporâneo” estaria conquistando seu título de nobreza ao lado de outras artes do palco, como o teatro ou a música. As escolas e os “novos artistas” seriam a ilustração da diversidade das novas tendências das artes circenses, num “rompimento” com o que se fazia “antigamente”. Afirmam ainda que conquistam um outro público que não só o infantil, pois produzem um espetáculo vivo completo e inventam novas formas. Este novo espetáculo começou a se libertar das limitações da pista, adotando algumas vezes o palco teatral (frontal) ou até reintegrando a rua, seu espaço primeiro da época dos acrobatas e equilibristas, à exemplo do artistas/fundadores do Soleil. O conjunto destas elaborações carrega consigo as noções de que só atualmente: o circo virou moda, pois está tendo uma intensa aproximação deste com o teatro, caracterizando uma “cirquização” do teatro ou uma teatralização do circo. As pesquisas sobre o circo dos séculos XVIII, XIX e parte do XX, que utilizam como fontes jornais, revistas, memorialistas, imagens, propagandas, entrevistas, folhetos musicais, que permitem entrar em contato com a produção das memórias de homens, mulheres e crianças circenses, põem em dúvida o conjunto daquelas elaborações. Vou fazer referência à minha pesquisa que resultou no livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. Em uma revista publicada no Rio de Janeiro, sobre o mundo do teatro, o jornalista, advogado e dramaturgo, responsável pela editoração da mesma, expressava uma confusão frente a alguns espetáculos circenses que estava assistindo. Denominava-os como “novo circo”, pois apresentavam: teatro falado, cantado e dançado; números de circo e música ao vivo. Nas entrelinhas revelava a idéia de que o espetáculo circense fazia parte de um novo circuito de produção e consumo de massa dos bens culturais, particularmente o cinema e disco, e se constituía em um espaço e tipo de espetáculo que incorporava inovações tecnológicas e profissionais de várias outras áreas artísticas. Entretanto, leitor, não se engane. A reportagem acima não se refere a um espetáculo do Soleil 48 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 48 29/4/2008, 03:48 Benjamim de Oliveira, 1911. e nem de grupos formados de 1980 para cá; mas de fato foi publicada na revista O Theatro, há 97 anos atrás, em junho de 1911, pelo jornalista Januário d’Assumpção Ozório, que expressou suas confusões e admirações pelas “descobertas” daquele “novo circo” que assistia. Através da descrição de um espetáculo assistido por este jornalista, sabemos que no mesmo havia: exímios acrobatas (solo e aéreo), de diversas nacionalidades - italianos, japoneses, espanhóis, brasileiros, franceses, argentinos, romenos; palhaços que realizavam mímicas, cantavam, tocavam instrumentos musicais e dançavam. Após estes números, os mesmos artistas acrobatas se juntavam a diversos artistas e técnicos da cidade do Rio de Janeiro – cenógrafos, coreógrafos, dançarinos, músicos e cantores que gravavam discos, maestros, dramaturgos e adaptadores de peças teatrais para o circo – para encenarem uma peça teatral na qual havia uma mistura de representação, música tocada, cantada e dançada, mais acrobacias. O nome da peça era A Viúva Alegre, opereta de Franz Léhar, em 03 atos e 04 quadros, adaptada para o palco/picadeiro do Circo Spinelli por Benjamim de Oliveira, apoiado na tradução de Henrique de Carvalho e na parceria com o maestro Paulino Sacramento. A adaptação pressupunha a representação em fala e canto pelos próprios artistas acrobatas e convidados,, sem o auxílio do ponto ponto. Mesclada à apresentação dos atores/acrobatas no palco/ picadeiro, seriam passadas projeções elétricas do filme homônimo, caracterizando um espetáculo “multimídia”. O papel principal masculino seria representado por Manoel Pedro dos Santos, mais conhecido como Baiano; no papel principal feminino, da viúva, estaria Lili Cardona. Cenário e figurinos por conta de Ângelo Lazary junto com Chrispim do Amaral. E, por fim, mise-em-scéne e adaptação de Benjamim de Oliveira. Esse acontecimento pode ser conhecido com maior detalhamento que outros do período, pois o grau de visibilidade dos espetáculos circenses nos jornais cariocas foi intenso, e todos com iguais adjetivos: é novo, é contemporâneo, distingue-se radicalmente do que era produzido nos circos de “antigamente”; seus artistas realizam com maestria acrobacias, canto, dança e representação teatral. Tudo isso acompanhado com uma excelente banda musical ao vivo. Para quem não sabe Baiano foi um dos principais cançonetistas da história da música nacional, o primeiro cantor brasileiro a aparecer nas gravações de cilindros e chapas feitas no Brasil. Além do grande repertório que viria a gravar, ficou conhecido por ter sido o intérprete da gravação do samba Pelo telefone. Lili Cardona era filha de pai espanhol e mãe inglesa, artistas circenses. Sua formação profissional circense permitia que ela fosse: acrobata, equilibrista, ginasta excêntrica, aramista, além de ter formação 1º SEMESTRE • 2008 • 49 camarim 41.pmd 49 29/4/2008, 03:48 teatral e de dança. Paulino Sacramento era compositor e músico de teatro e regente de banda. Ângelo Lazary junto com Chrispim do Amaral – dois nomes importantes da história da cenografia brasileira foram os pintores dos telões de inauguração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em outros jornais, alguns anos antes de Januário, espetáculos circenses já provocavam reações de surpresas e encantamentos. Um cronista que não se identificou no jornal Gazeta de Notícias (RJ), em junho de 1907, escreveu: “Tudo é moda. Os artistas de circo têm também a sua hora de moda e de aplausos esplêndidos”. Para esse articulista, os espetáculos circenses estavam adquirindo visibilidade porque “revolucionavam” o modo de fazer circo, na medida em que agregavam as diferentes formas de expressão cultural do período – música ao vivo, dança, teatro, acrobacia. Significavam um corte entre o antes e depois, era um circo “novo e contemporâneo”, que nada tinha a dever ao que era feito antigamente. Este tipo de espetáculo polissêmico e polifônico também incorporava invenções tecnológicas, como a energia elétrica, o cinematógrafo e o gramofone, por exemplo. Roger Avanzi e Verônica Tamaoki, no livro Circo Nerino, descrevem com maestria a presença dos aparelhos de cinema, disco e, até a produção de uma estação de rádio dentro do circo. As reflexões e análises que este espetáculo da década de 1910 provocou nos intelectuais letrados, não se restringiram ao espetáculo em si, mas ao lugar no qual o espetáculo era realizado. Os circenses não se limitavam a usar apenas o círculo da pista, mas ocupavam palcos teatrais italianos, music halls, cabarés, ruas, coliseus, teatros de arenas. Por isso coloco em dúvida as descrições sobre o “vanguardismo” da década de 1980. Se em 2006 e 2008, o fato do espetáculo circense ter se libertado das limitações da pista, indo para outros palcos ou rua, é apontado como definidor de “vanguarda”, vale a pena assinalar que o fazer circense no século XIX e parte do XX, por essa razão, deveria ser considerado “ultra-vanguardista”, sem deixar de gerar reações dicotômicas entre admiração e tensão. Em 1893, um circo estreava no principal teatro da cidade do Rio de Janeiro (quiçá do Brasil), e foi assim anunciado pelo jornal O Paiz:: “O teatro S. Pedro de Alcântara [atual João Caetano], transformar-se-á ...em circo”. A primeira menção à estréia foi de Arthur Azevedo, que, apesar de não tê-la assistido, escreveu na primeira página do jornal: “Espero que a companhia eqüestre do S. Pedro de Alcântara venha consolar definitivamente o Zé-povinho, que é doido por peloticas, e dá mais apreço a Rosita de La Plata que à própria Sarah Bernhardt” (O Paiz, 28.04.1894). Seu texto explicita a preferência do público pelo circo, em detrimento do que considerava um teatro sério. Arthur Azevedo passa uma informação e um problema importante para si e escreveu com muita indignação: como se permitiu que aquela imponente construção arquitetônica da Praça Tiradentes, referência teatral da capital federal, de “tão gloriosas tradições artísticas”, um “símbolo do teatro erudito” brasileiro, fosse transformado em circo? Além da invasão do palco teatral era também problema o tipo de espetáculo apresentado, pois os artistas circenses aliavam acrobacia com representação teatral, dança, música ao vivo, tecnológicas que mexiam com a cenografia, coreografia, figurinos, maquiagens e iluminação. Tudo isso era de um lado ousado e de outro equivocado para intelectuais, letrados e dramaturgos da época, pois o teatro sério deveria ser uma escola que civilizaria o público, leia-se povo ou nação, com temas que o levasse refletir sobre questões da moral e costumes. Espetáculos com dança, acrobacias, risos, música e teatro, alienavam as mentes. Os intelectuais brasileiros não foram originais nessas questões, nem ao estabelecerem resistências à presença e/ou influência circense na produção teatral e musical. Na Europa, em alguns textos do final do século XVIII e início do XIX, a 50 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 50 29/4/2008, 03:48 produção de um espetáculo híbrido misturando acrobacias, eqüestres ou não, com representação cênica, provocou protestos e contrariedades. A teatralidade circense possibilitava a produção e representação de peças no circo onde se falava como no teatro, o que era considerado um problema. Um panfleto da época afirmava que o palco era para o “teatro” e não podia ser “violado” por acrobatas. Apesar dos problemas, que essa mistura de artistas e gêneros provocava aos intelectuais, era sucesso total de público. Tanto os intelectuais e jornalistas europeus como os brasileiros, do período, diziam que artistas circenses e teatrais que se misturavam, estavam inventando moda, queriam criar uma nova forma de arte que acabava por denegrir o que era o “verdadeiro teatro” e o que era o “verdadeiro circo”. Veja que interessante, leitor, há uma inversão do que significava ser “novo, contemporâneo e revolucionário” no final do século XVIII, no transcorrer do XIX e início do XX, até chegarmos em 2008. O “antigamente” referido no início deste texto, para designar o passado, o velho, era tudo isso; mas, para os jornalistas, intelectuais e letrados daqueles séculos, voltados para o mal. O Soleil, Plume, da China, considerados como os novos circos, para os mesmos profissionais do final do século XX e neste início do XXI, são os que representam a modernidade. Não existe o novo? Nada foi inventado? Nada foi modificado ou transformado nas artes circenses? É claro que sim, mas não necessariamente naquilo que o discurso tenta colocá-los, ou seja, não na contemporaneidade da estética e da técnica, estas sempre estiveram e estão em sintonia com seu tempo. É no processo de ensino/aprendizagem e no modo de organização do trabalho que se passam as transformações. O circense, até as décadas de 1950/60, na sua maioria, nascia sob a lona ou a ela se juntava. A formação e aprendizagem tinham início desde o seu nascimento ou no momento em que a ela se incorporava. A criança representava aquele que portaria o saber, pois no ensinar e aprender estava a chave da continuidade do circo. Qualquer um poderia ser aceito pelos circenses, mas tinha que aprender a sua arte, não bastava apenas se agregar para ser figurante ou participar de uma grande aventura. A transmissão oral dos saberes pressupunha um método, não acontecia por acaso, mesmo que não seguisse nenhum tipo de cartilha. A dimensão tecnológica era indissociável da dimensão cultural e ética, e revelava um modo de organização do trabalho e um processo de socialização/formação/aprendizagem; bem como um diálogo tenso e constante com as múltiplas linguagens artísticas do seu tempo. Ou seja, uma das principais características definidoras da linguagem circense é ser contemporânea, nova e atenta às transformações ocorridas ao seu redor. Com as escolas de circo e o circo social – projetos sociais que se utilizam da linguagem circense como ferramenta pedagógico –, há novas formas de implicação e inserção dessa linguagem nas cidades. Os artistas formados e formadores destes espaços, moradores fixos desenvolvem novas formas de organização do trabalho. Estes desdobramentos têm criado novas necessidades para a produção do conhecimento sobre o circo, gerando novas demandas para a ampliação da pesquisa do tema circo, para dentro dos muros acadêmicos. Tudo isto é novo na história do circo. Entretanto, ter como característica a contemporaneidade – na sua expressão estética, artística e tecnológica, não é uma novidade, como vimos. Creio que um dos problemas centrais desses jornalistas e intelectuais, de ontem e de hoje, é o de não basearem suas descrições e análises à luz da multiplicidade das fontes e da pesquisa histórica, não interrogando o senso comum de uma maneira reflexiva. Ao contrário, quando qualificam um espetáculo como “novo” e “contemporâneo”, tomam estas palavras exatamente do senso comum, e com isso perdem a possibilidade de compreender a riqueza que representa a história do circo na produção artística, no passado e no presente, como patrimônio cultural brasileiro. • 1º SEMESTRE • 2008 • 51 camarim 41.pmd 51 29/4/2008, 03:48 Diretoria: Presidente Vice-presidente Secretário Segundo Secretário Tesoureiro Segunda Tesoureira Vogal Ney Piacentini ([email protected]) Cenne Gots ([email protected]) Roberto Rosa ([email protected]) Carlos Biaggioli ([email protected]) Aiman Hammoud ([email protected]) Theodora Ribeiro ([email protected]) Rubinho Louzada ([email protected]) Alessandra Cavagna RichardsParadizzi Selma Pavanelli [email protected] Alessandro Azevedo Pedro Cosmos Tércio Marinho Conselho Fiscal: Funcionários: Administrador Coordenador administrativo Assistente da Diretoria Supervisora Financeira Financeiro Rateio capa3 Recebimento Prestação de Contas Conciliação Fatura Fatura Supervisora Atendimento Atendimento Fiscal Gestão de Cooperados Gestão de Cooperados Banco de Dados e Cadastro Auxiliar Jurídico Webmaster Recepcionista Limpeza Biblioteca e Arquivo Assessoria de Imprensa Contabilidade Edson Keniti Matushita ([email protected]) Cícero Mendes Pereira ([email protected]) Amanda Lourenço Viaro ([email protected]) Luana Kavanji ([email protected]) Diego Geraldo Nunes, Karina de Oliveira Minetto, Caio Brito Barroso Paula Barros ([email protected]) Roberto Joaquim Junior ([email protected]) Wladimir dos Santos Baptista, José Davi Souza Rafael ([email protected]) Paulo Rodrigo Brante Vilches (recebimento [email protected]) Vânia Longuinho de Souza ([email protected]) Thiago Henrique Seixas Olimpio, Denise do Carmo Caetano ([email protected]) Felipe de Paula, Diego Costa Éderson Kishimoto ([email protected]) Rosana de Oliveira Maciel ([email protected]) Érika Vanessa da Silva Joyce Maria dos Santos ([email protected]) Janete Ap. Chessa ([email protected]) João Paulo Cavalcante do Nascimento ([email protected]) Danilo Euclides dos Santos ([email protected]) Daisyderia Garcia Dantas Alessandra Pereira Lopes ([email protected]) Mara Regina ([email protected]) Daniely Diniz ([email protected]) Eliana Albieri da Silva ([email protected]) Neanddra Silva Lopes ([email protected]) Carla Mestriner ([email protected]) Fabiano Moreira ([email protected]) Aline Ferreira dos Santos ([email protected]) Maria Lira de Jesus, Angela Maria Agostinho Janaina Alves de Abreu Goulart, Wellington Hoffman, Willian Roberto Alves Oliveira ([email protected]) Fábio Salem ([email protected]) Contabs Assessoria Empresarial ([email protected]) Gerisvaldo, Hitoshi Departamento Jurídico: Advogados Martha Macruz de Sá Álvaro Paez Junqueira ([email protected]) 52 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 52 29/4/2008, 03:48 1º SEMESTRE • 2008 • 53 camarim 41.pmd 53 29/4/2008, 03:48 54 • CAMARIM • Nº 41 camarim 41.pmd 54 29/4/2008, 03:48