Camarim 41 - Cooperativa Paulista de Teatro

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2008 marca a internacionalização da Cooperativa Paulista de Teatro,
não apenas pela realização da III MOSTRA LATINO-AMERICANA
DE TEATRO DE GRUPO, que além das apresentações de espetáculos
convoca jornalistas, teóricos e gestores de sete países da atual versão a
intensificar a ação teatral junto à população, mas também pela parceria
já em andamento com a Corporação Colombinas de Teatro, a
participação da sociedade no I Encontro Ibero-Americano de Festivais
de Teatro, dentro do Festival Santiago a Mil no Chile e ainda a visita do
presidente do cooperativa à Fundação Nacional das Artes do Ministério
da Cultura de Portugal.
Esta orientação não é apenas para a difusão da cooperativa no exterior,
mas para planejar ações concretas de trocas de experiências como a
circulação de grupos brasileiros em outros países, a realização de cursos
e oficinas de estrangeiros no Brasil e a circulação da nossa pedagogia
em outras terras.
O trabalho fora do país está paralelo à mobilização interna. Durante este
ano está em curso o mais intenso debate relativo a um projeto de lei para o
fomento ao teatro brasileiro. A Cooperativa é subsidiária das estratégias
para se chegar a uma política de Estado para a cena brasileira pautada pelo
interesse público. Houve ampla manifestação em onze cidades brasileiras
no Dia Mundial do Teatro. Em São Paulo o trabalho contou com total apoio
da agremiação e o assunto chegou a editoriais de grandes jornais brasileiro.
A Cooperativa foi ouvida oficialmente na Comissão de Educação e Cultura
do Senado Federal em audiência pública e está associada ao Movimento
Redemoinho, que em conjunto vem agendando políticos e dirigentes
governamentais na direção de um passo inexorável para o teatro nacional.
Outra frente que em 2008 está mobilizando os cooperados é a Roda do
Fomento, organismo vivo e dinâmico que debate todos os passos do
Programa Municipal de Fomento ao Teatro, não permitindo que o governo
local macule um projeto de origem e desenvolvimento da sociedade teatral
paulistana. A Roda elaborou uma proposta de ampliação da Lei, trabalhou
junto ao Legislativo e ao Executivo, passando pela Secretaria de Negócios
Jurídicos. Atualmente a roda intercala suas assembléias nos espaços dos
grupos teatrais e na sede da cooperativa, e se prepara agora para 2009,
quando assumirá um novo governo na cidade.
A união a outras organizações do Conselho de Entidades do Estado de São
Paulo produziu uma emenda na Assembléia Legislativa de 14,5 milhões de
reais, garantindo 18,5 milhões para os editais do Programa de Ação
Cultural da Secretaria de Estado da Cultura. Os editais do programa estão
com lançamentos prometidos para o primeiro semestre desse ano.
Merece nota as atividades que estão sendo desenvolvidas com os sócios da
cooperativa. Diversas turmas ocupam a sede com aulas gratuitas de
espanhol, voz e corpo e a diretoria projetou o Centro de Aperfeiçoamento
Teatral para a Funarte, onde está em andamento o projeto Geografia da
Palavra, com a participação de dezenas de cooperados.
Em 2009 a Cooperativa completará 30 anos de vida e inquietação, Está
aberta a temporadas de idéias para comemorarmos com orgulho esta
trajetória ímpar na cultura brasileira.
2º SEMESTRE DE 2006
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palavra da cooperativa
A INTERNACIONALIZAÇÃO
DA COOPERATIVA
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Nossa Senhora das Nuvens, montagem brasileira de Hugo Vilavicenzio.
UM ENCONTRO PASSIONAL NO PÓS-GUERRA CENTRO-AMERICANO 1
Arístides Vargas e o grupo Justo
Rufino Garay, da Nicarágua
Beatriz J. Rizk
1
Este artigo foi
publicado em Karpa 1
(2008). http://
web.mac.com/karpa1
2
Entre os filmes que
protagonizou
encontram-se A tigra
(1990) e Entre Marx e
uma mulher nua
(1995), ambos de
Camilo Luzuriaga. O
último, do qual foi
também coroteirista, é baseado
na novela homônima
de Jorge Enrique
Adoum.
Não há dúvida de que Arístides
Vargas se colocou firmemente na
vanguarda teatral latino-americana
durante as últimas décadas. Seu nome
enriquece a lista de convidados de
festivais nacionais e internacionais,
encontros e conferências e, como as
grandes estrelas, é solicitado por
grupos tanto deste como do outro lado
do Atlântico. “El Negro”, como o
chamam afetuosamente seus amigos
mais chegados, não dá conta; além
disso, sua capacidade de produção
dramatúrgica assombra até os mais
impávidos, levando-se em conta que só
começou a escrever em 1992. Vale a
pena esclarecer que por esta data ele já
tinha construído uma carreira como
diretor, à frente do grupo Malayerba,
que co-fundou em 1981 em Quito, e
como ator, destacando-se tanto em
obras teatrais como em filmes.2
Sua primeira obra teatral escrita foi
uma versão do Woyzeck, de Georg
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Büchner, à qual se seguiu Jardim de
polvos, em 1993, A idade da ameixa e
Pluma ou a tempestade, ambas de 1996.
Estas peças por si mesmas já teriam
bastado para deixar uma marca indelével
entre seus contemporâneos. Homem do
exílio – nasceu na Argentina e vive no
Equador há já três décadas graças à
ditadura militar de seu país natal na
época – Vargas inicia através de sua
dramaturgia uma viagem retrospectiva,
aprofundando-se na memória coletiva
dos povos, e na subjetiva do indivíduo,
para resgatar acima de tudo o direito de
sonhar com um destino melhor. Neste
sentido, e de uma perspectiva histórica,
Vargas se coloca numa época marcada
pelos “pós” (pós-revolução, pós-guerra,
pós-partidos militantes de esquerda, pósutopias salvacionistas etc.), mas não
para deplorar as possíveis perdas,
sobretudo a da inocência, e sim para
engrandecer a saga dos que tiveram fé e
já não estão aqui, para que seus
sacrificios não tenham sido em vão e
pelo menos sirvam de estímulo às
futuras gerações.
Em Pluma, possivelmente sua obra
mais conhecida e viajada, o dramaturgo
aprofunda-se na dualidade do ser
humano, confrontado a levar sua carga
arrastando-se pela terra ao mesmo
tempo em que seus sonhos e anelos o
levam constantemente a levitar, ainda
que tenha que viver à beira do salto no
vazio. Agora se, por outro lado,
caracterizamos aqui Ariel, o ser alado da
“comédia” de Shakespeare, então
precisamos nos sustentar na terra, que é
quem no fim das contas nos proporciona
algum senso de pertencer a algo. Faz
algum tempo escrevia eu que Pluma “era
a metáfora do fim do caminho, do além
do tempo utópico” ([2003] 2007:56),
mas também, e creio ser mais
importante, é uma parábola com que o
mestre nos exorta a saber e poder “ver”
ao fim do túnel, ainda que através da
tempestade. De resto, a relação
genealógica que estabelece com o bardo
inglês o acompanhará também através
de sua extensa produção teatral.
A ambigüidade, com tremendas
doses de humor, com que enfrenta toda
instituição consagrada, unida a uma
ironia que desarma todo modelo ou
padrão unidimensional para mostrar
suas contradições internas – já um selo
inato de sua dramaturgia – encontramse numa de suas obras teatrais mais
reconhecidas que se seguiram às três
primeiras, Nossa Senhora das Nuvens
(1998). Nela, o autor encara o “mito”
do relato fundacional dos povos (não
longe, por certo, daquele de Cem anos
de solidão, de García Márquez), abrindo
caminho a uma história oral que não
apenas transforma-se numa alternativa
ao relato histórico oficial, mas também
põe ênfase no caráter transumano de
todo emigrado, que para poder
sobreviver tem que construir e inventar
sua própria história que dê sentido a sua
existência ambulante de nômade. Não é
estranho que o poeta das ausências, da
ambigüidade e da desorientação
anímica, que advém de ser ele um
indivíduo identificado culturalmente
como um latino-americano exilado por
razões políticas, tenha se interessado
em trabalhar com grupos locais, mas
bastante afastados, por certo, dos
centros do poder.
A partir daí nasce sua associação
com grupos como La Trinchera, de
Manta, Equador, fundado em 1982, sob a
direção de Nixón García e Rocío Reyes,
aos quais o une uma relação de trabalho
iniciada quando recém-chegado ao exílio,
com um crédito de pelo menos três obras
escritas para eles: O saguão do aluminio,
Três velhos mares e Ana, o mago e o
aprendiz e outras tantas dirigidas por ele,
e/ou por Charo Francés, sua
companheira de vida e de estrada teatral.
3
No orig., Donde el
viento hace buñuelos.
Aparentemente um
jogo com a expressão
buñuelos de viento,
espécie de bolinho
muito leve. N.T.
4
No âmbito do
teatro argentino, que
surge em função da
ditadura militar, a
obra não deixa de
nos trazer sutis
reminiscências da já
clássica O beijo da
mulher aranha, de
Manuel Puig.
São obras/poemas, escritas à sombra
desse mar que parece envolver tudo e que
o insta a viajar, aparentemente seu
implacável destino, reunidas num mesmo
volume com o sugestivo nome de Três
peças do mar (2003). Com a notável
diretora e pedagoga teatral Rosa Luisa
Márquez, de Porto Rico, para quem,
junto com Charo, escreveu Onde o vento
faz suspiros3 (2000) em honra a uma
amizade de duas décadas, tem trabalhado
não apenas nesta ilha caribenha, mas
também no recinto de seu próprio grupo
Malayerba, em Quito, e onde tenham
lugar seus esporádicos encontros. Por sua
parte, Márquez montou para seu público
O jardim das cerejeiras, A idade da ameixa
e, recentemente, A razão blindada
(2006). Escrita esta última como
homenagem a seu irmão, Chicho Vargas,
que passou vários anos na prisão na
Patagônia argentina durante a ditadura,
Vargas escreveu um hino à liberdade e à
criatividade da mente humana. Utilizando
a imorredoura imagem do Quixote
cervantino e seu fiel escudeiro e cúmplice
Sancho Pança, e reunindo os episódios
narrados por seu irmão, o autor nos
regala com algumas de suas melhores
páginas, nas quais aflora a capacidade
infinita do ser humano de criar e imaginar
mundos melhores mesmo nas
circunstâncias mais adversas.4
O encontro com o grupo Justo
Rufino Garay se deu em função de uma
turnê do grupo Malayerba com Nossa
Senhora das Nuvens na Nicarágua.
Segundo Lucero Millán que tem estado
à frente do grupo desde seu início em
1979, a obra os “marcou”, provocando
“boa empatia”, numa época de crise
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Lucero Millán.
Intervenção no
Primeiro Congresso
Ibero-americano de
Teatro. Festival
Internacional de
Teatro de Manizales.
8 de outubro de
2007.
6
Justo Rufino Garay
foi um combatente
do movimento
sandinista que
pereceu durante uma
das contendas contra
a Guarda Nacional
somozista.
7
A explosão teatral
que teve lugar na
Nicarágua, em
função do triunfo da
revolução sandinista,
foi um fato sem
precedentes no país.
Surgiram grupos de
teatro profissionais,
amadores,
comunitários, dentro
dos sindicatos, nas
escolas e
universidades e até
no exército. De fato,
no ano de 1983,
quando tive a
oportunidade de
visitar o país, havia
mais de cinco grupos
estabelecidos dentro
das forças armadas,
que faziam turnês
por todo o território
nacional,
apresentando-se
quando não estavam
de serviço com obras
encenadas e feitas
por eles mesmos. Ver
meu artigo “A
revolução e o teatro
na Nicarágua”,
Diógenes IV (1988):
159-68.
ideológica que ela qualifica sem
acanhamento como de “orfandade mais
absoluta”, devido à derrota sandinista
nas urnas a partir de 1989; buscando um
“tipo de teatro que lhes permitisse
recuperar” o inevitável sentido da perda,
pediram-lhe “atrevidamente que fossem
trabalhar na Nicarágua”.5 Vargas aceita
o desafio e daí surgirão duas obras: A
casa de Rigoberta olha ao sul (2000) e
Danzón Park ou a maravilhosa história do
herói e o traidor (2003), que
detalharemos em seguida, não sem antes
dedicar algumas páginas à trajetória do
grupo Justo Rufino Garay.
Lucero Millán e seu companheiro
na época, Enrique Polo, ambos de
origem mexicana, chegam à Nicarágua,
como tantos outros artistas e
trabalhadores da cultura, para apoiar a
revolução sandinista, e apenas dois
meses depois do triunfo desta fundaram
a então chamada Oficina de Atuação
Justo Rufino Garay do Sistema
Sandinista da Televisão.6 O teatro que
surge do sandinismo, apoiado pelo
Ministério de Cultura, instituído nem
bem chegou ao poder a Frente
Sandinista de Libertação Nacional
(FSLN) em 1979, dando as costas à
burguesia da capital e sua maneira de
fazer teatro, foi buscar sua inspiração
sobretudo na cena rural, ao mesmo
tempo em que intensificou seus
esforços por resgatar formas de arte
popular latentes entre seus habitantes.
Assim afirmava o então Ministro de
Cultura Ernesto Cardenal: “Nicarágua
tinha cultura, naturalmente, mas agora
tem uma cultura de signos distintos,
popular. A que havia antes era
burguesa, elitista” (1982:149) e assim
fizeram numerosos grupos de teatro
que surgiram, tais como o Nixtayolero,
radicado em Matagalpa, fundado em
fins de 1979 por instância do próprio
Ministério de Cultura, e o Teyocoyani,
de León, fundado em abril de 1980,
como parte igualmente de um projeto
ministerial, para mencionar apenas dois
exemplos entre os mais conhecidos.7
Em função do II Encontro de
Teatristas Latino-Americanos e do
Caribe, em junho de 1983, vimos o
trabalho não apenas dos dois grupos
referidos em seus próprios locais, mas
também uma vintena de outras obras
por todo o país. Eram obras quase
sempre de criação coletiva nas quais se
refletia a ideologia do movimento
popular, que consistia basicamente em
projetar os ensinamentos legados pelo
líder Augusto Sandino, especialmente
seu patriotismo revolucionário, unido a
uma notável força espiritual, de
proveniência sobretudo cristã, ao
mesmo tempo em que adotavam em
suas análises da situação social um
novo marxismo, mais prático que
teórico, mais vivido que aprendido nos
textos, desenvolvido no seio da FSLN.
Neste sentido, Donald Hodges
assinalou a aplicação deste sincretismo
marxista-cristão que se denominou
“sandinismo”, sobretudo, quando seus
líderes propõem uma explicação dos
acontecimentos históricos, valendo-se
para isso dos instrumentos de análise
do materialismo dialético, ao mesmo
tempo em que se incitava o povo a
atuar apelando a sentimentos
patrióticos e religiosos (1986:196).
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É importante assinalar que, de todos
os temas tratados pelos grupos que
tivemos a oportunidade de ver na
Nicarágua durante a turnê, foi quiçá o
da religiosidade popular o de maior
reiteração. Em quase todas as obras que
presenciamos a religião surgia a cada
passo, fosse em favor do povo como guia
espiritual, deixando de lado sua perene
ideologia conformista para combater de
frente a opressão, ou outras vezes, em
franca oposição aos interesses dos
segmentos empobrecidos, como eficaz
arma contra-revolucionária. O que
assombrava naquele momento então era
que, tendo-se em conta esta atitude de
uma parte do clero nicaragüense, não
havia diminuído o fervor geral das
pessoas, que também seguiam firmes em
suas crenças mesmo diante da possível
secularização do sistema. Não há dúvida
de que a Nicarágua, neste sentido,
representou uma nova experimentação
no campo da expansão das idéias
revolucionárias e da utopia progressista
em razão de ter abraçado a religiosidade
popular. Se o processo de
conscientização em outros países latinoamericanos, até esse momento e de uma
perspectiva teórica, tinha consistido em
veicular os problemas sociais, raciais e
ainda étnicos através da dialética
marxista, na Nicarágua se utilizaram em
igual medida os princípios da Teologia da
Libertação, tal como os postularam
teólogos como Gustavo Gutiérrez, do
Peru, com sua ênfase na “opção
preferencial pelo pobre” (Teologia da
libertação – perspectivas 1971), por sua
vez nutrindo-se dos ensinamentos do
pedagogo brasileiro Paulo Freire (1921-
Cenas do Teatro Justo Rufino Garay, da Nicarágua.
1997), e Camilo Torres (1929-1966), na
Colômbia, cuja militância revolucionária
se constituiu num exemplo heróico para
o resto do continente.
Entretanto, deve-se notar, como
assinalamos antes e como adverte o
teólogo Pablo Richard, que seguiu de
perto o processo nicaragüense, que esta
“religião do povo” podia ser uma arma
de dois gumes, posto que ao mesmo
tempo que “expressava o protesto”
concentrando-se em “elementos
libertadores e alienantes”, outras vezes
passava a ser “ópio”, facilitando a
manipulação das gentes por parte de
uma clerezia reacionária (1981:171). A
obra A virgem que sua, com que o Justo
Rufino Garay iniciou seus trabalhos,
enfrentou com energia esta dualidade
apresentada pela religiosidade popular
no contexto da revolução. A obra se
baseia num fato da vida real que
aconteceu em Manágua no começo da
década. Um casal do bairro Las
Mercedes, de origem popular, tomou
uma imagem da virgem e a meteu num
congelador; quando estava totalmente
congelada colocou-a num altar e
obviamente ao derreter-se a água a
virgem começou a suar. O “milagre”,
como era de se supor, obteve grande
publicidade e atraiu milhares de
pessoas. Segundo a dona da casa, a
virgem, aparentemente, suava de
angústia pela situação do país nas mãos
dos sandinistas. Ao fim de um breve
tempo, alguns jornalistas de El Nuevo
Diario e o próprio grupo descobriram a
verdade e a virgem já não suou mais.
De acordo com Millán, o grupo
escolheu o tema da religião por ser este
um aspecto “bem estratégico do povo
nicaragüense”, amante de suas crenças,
tradições e rituais e, sobretudo, para
esclarecer que a revolução não estava
contra a religião mas sim contra os
abusos que em seu nome se cometiam
(Wedel 1983:4-5). Para tornar o
assunto ainda mais paradoxal, como
assinala a própria Millán, “A obra teve
tal acolhida que a hierarquia católica
protestou oficialmente ante as
autoridades governamentais pela
apresentação da mesma”, ao ponto de
distribuir “panfletos nas igrejas
advertindo os paroquianos para que não
a vissem” (Millán 2007).
O grupo continuou através da
década de oitenta enfrentando
problemas que afetavam a sociedade do
momento. Na obra de criação coletiva A
golpes de coração (1985), questiona como
“os meios de produção determinam a
relação conjugal”, pondo em pauta os
próprios valores da revolução levados à
intimidade do lar; um tema por demais
complicado posto que, como bem sugere
John Beverly, a revolução não encarou a
abertura de liberdades e igualdade para
as mulheres, apesar de sua ativa
participação no movimento. Na
realidade, se limitou em geral a ter uma
atitude que o pesquisador qualifica como
“paternalista” (1984-85). Em Cenas da
minha cidade (1986), em que se levava ao
tablado um dia na vida de Manágua,
começa a se filtrar uma visão crítica dos
pontos fracos que começavam a ser
vislumbrados no manejo da revolução.
Não há dúvida de que a “guerra de
desgaste” a que estava submetido o
povo, com a constante ameaça dos
Contras, unida, como observou a
mesma Millán, ao serviço militar
obrigatório que deixou muitas das
associações e grupos sem homens,
contribuiu para que se começasse a
questionar os excessos de uma
burocracia que derivava de um poder de
aparência cada vez mais absolutista
(Manizales 2007). Este é pano de fundo
da adaptação que o grupo faria de O
inspetor, de Gogol, em 1987. No entanto,
e apesar da fraca insatisfação que
começava a se respirar, a derrota dos
sandinistas nas urnas em 1989 deixou o
grupo, assim como as demais agrupações
teatrais que apoiavam o movimento,
como foi dito, não apenas perplexos mas
também desamparados. Praticamente,
da noite para o dia a estrutura que o
Ministério de Cultura tinha, com tanto
esforço, mantido para incentivar a
criação e manutenção de grupos através
do país desapareceu, trazendo como
conseqüência a dispersão não só dos
grupos, mas da maioria das organizações
dedicadas à cultura.
A partir dos anos noventa, como em
outras partes da América Central, como
afirma Patricia Fumero, referindo-se à
produção costa-riquenha, “novas
problemáticas [como] a dignidade
humana, as reivindicações e relações de
gênero, a violência familiar, a liberdade e
a justiça social, entre outras” (Fumero
2007:4), se fazem presentes na
produção teatral, ainda que já não
associadas a programas políticos
partidários. Entre os grupos que existiam
antes da derrota do sandinismo, o Justo
Rufino Garay é um dos que sobrevive
sem deixar de se aprofundar na realidade
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do momento. Para trás tinham ficado as
obras otimistas em torno de uma
ideologia plantada, agora se tratava de
dar coerência a seus anos de militância a
partir do palco e de recuperar, de certo
modo, a fé e a esperança de um mundo
melhor através da reflexão crítica do
devir histórico em obras como Tempo ao
tempo (1993), do próprio grupo. Do
mesmo modo, apela-se à dramaturgia de
outros autores para sondar a própria
realidade, como nas obras de Vargas que
analisaremos adiante; ou se recorre a
outros textos como Minha vida gira ao
redor de quinhentos metros, de
Inmaculada Alvear, e Casais, de Susana
Lastrepo, para fazer uma versão livre em
Sopa de bonecas (2007), na qual a
violência doméstica e a situação
opressiva da mulher passam ao primeiro
plano, numa verdadeira exposição das
técnicas de abuso em favor da
preservação de um mundo patriarcal.
A casa de Rigoberta olha ao sul, de
Vargas, exemplifica como poucas obras,
e de uma inegável maneira poética, a
situação em que ficou o país e muitos de
seus habitantes quando, uma vez
abreviada a odisséia sandinista e já em
cheio no neoliberalismo, que a partir dos
anos noventa se entronizou no país
como no resto da América Latina,
trocaram “o antigo posto de combatente
por um posto de governo”, ou a “carteira
do partido por um cartão de crédito”.8
“No país dos hinos que murcham”, onde
não se escutam “mais que os próprios
gritos”, aos quais chamam “hinos”,
acontece este recital a quatro vozes: da
avó, de Rigoberta, a neta, do pai e da
mãe, que encerrados nas quatro paredes
de sua casa evocam e questionam os
acontecimentos históricos que
sacudiram o país centro-americano
durante as últimas décadas. Microcosmo
do país, é neste espaço habitacional que
“aprenderam a dizer sim” e onde se
confrontam para trazer à tona o malestar geral, particularizado nesse sentirse doentes “embora ninguém os tenha
avisado”, no descontentamento, na
desconfiança nos demais e sobretudo na
falta de comunicação.
Ao começar a obra, tanto a avó
como Rigoberta já estão mortas, mas
não terminam de ir embora. A avó
representa a tradição, o passado
indígena, os costumes e, sobretudo, a
história. É através dela que voltamos a
reviver a saga do general Sandino, pai da
revolução popular entre 1885-1934,
mandado fuzilar por supostas ordens de
Anastasio Somoza, e em cujo nome
surgiu a Revolução Sandinista. A filha
desaparecida Rigoberta é uma metáfora
lúcida da revolução frustrada, e sua
morte em combate está associada com
as palavras “montanha”, “helicópteros” e
“fogo”. Se estivesse viva andaria pelos
vinte e oito anos, nos informa a mãe, os
mesmos que teria de gestação o
movimento de libertação. Segundo a
mesma, era como se ela lhe reclamasse
algo, “é uma chaminha que o vento
espalha, que não se apaga” e que
regressa como que querendo buscar
alguma coisa; para remexer na
consciência de seus progenitores e para
“cuspir-lhes na cara”, aparentemente,
seu insensível conformismo. Rigoberta
está em todas as partes para torturá-los
com sua lembrança, mesmo que só
8
As citações da obra
provêm da
representação da
mesma durante o
Festival Internacional
de Teatro Hispânico
de Miami, em junho
de 2003.
9
Sobre o tema da
corrupção na
Nicarágua, que
chegou ao que
parece a sua máxima
expressão durante o
governo de Arnoldo
Alemán (1997-2002),
ver Anderson e Dodd
(2005).
possam rememorar fragmentos de seu
corpo; “é uma menina de pedaços que
minha memória não consegue armar
completamente”, queixa-se a mãe. A
mágoa diante do que poderia ter sido e
não foi é um sentimento que poderia ser
compartilhado por muitos, pois segundo
Rigoberta, “ninguém se atreve a
atravessar o país dos hinos que murcham
porque cairiam calcinados pela
recordação”. Pareceria que na terra dos
“movimentos telúricos”, dos hinos e dos
poetas, já poucos “podem falar”. Mais
ainda, como assinala a mãe, não se
“pode esquecer que alguma vez falamos
em nome da verdade, solidamente, sem
dúvidas, como se a verdade fosse feita
de cimento e de ferro”. Agora as
palavras parecem “descabeçadas”, “as
boas idéias caíram sem fazer ruído”, e a
vida se encheu de gretas ao sumir-se na
complacência de uma sociedade em que
“cada dia há mais corruptos”.9 Há
recriminações de parte a parte, e quem
leva a batuta é a mulher, em cuja opinião
o marido só se interessa é em ganhar
dinheiro e até cheira mal, ela preferindo
evocá-lo quando ele ainda “não tinha
tanta gordura na alma”:
Aprendemos a aceitar a pobreza que
antes nos encolerizava como se o
mundo fosse assim, e a vida fosse
assim, e a nos familiarizarmos com as
coisas mais terríveis como se fossem
nossas, cotidianas, manejáveis. Que
engraçado você parece, você que
queria mudar o mundo; o mundo
acabou mudando você.
O homem, por seu lado, não fica
atrás, ao acusá-la de “ter trocado o fuzil
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Bicicleta Lerux, Malayerba, Equador.
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por um carrinho de supermercado”, de
ter “deixado de ser mulher para
converter-se numa ONG” e, sobretudo,
de ser “uma revolução na penumbra,
que não resplandece” quando já “todos,
ou quase todos estamos do mesmo
lado”. Há um meio-termo que se busca
e se encontra nestas discussões, que
evidenciam a capacidade das gentes de
conservar uma certa consciência crítica
mesmo em meio a uma anestesiante
mediocridade ideológica, como assinalam
Janise Hurtig e Rosario Montoya
(citando por sua vez Florence Babb):
Babb mostra como a consciência
crítica fomentada durante a era
sandinista continua viva e fornece
um ponto-chave de conexão entre
a política econômica neoliberal e os
movimentos sociais independentes
que emergiram e cresceram em
oposição tanto a políticas
governamentais de direita quanto a
práticas não-democráticas de
esquerda. (2005: 191)
O contexto angustiante da obra,
em que não se sabe com toda certeza
se as “amarguras são as mesmas ou se
renovam”, está realçado pelos aspectos
mecanicistas da montagem cênica,
dirigida pelo próprio autor. Os adereços
constam de duas cadeiras ocupadas
pelos pais e um praticável que Rigoberta
e a avó movem de um lado a outro do
cenário, executando ações de maneira
intermitente que acarretam bastante
ruído. Seja a última dançando com um
pau com o qual golpeia o praticável, ou
a primeira tocando um tambor de lata
enquanto passeia quase marcialmente
pelo cenário durante longos momentos,
o ruído, irritante por momentos,
ensurdece o diálogo, como se a
dificuldade na comunicação não
dissesse respeito somente aos
personagens, mas sim a todos os que de
uma maneira ou de outra, direta ou
indiretamente, estivemos envolvidos
neste devir histórico particular.10 Neste
sentido, nos diz Fernando Vinocour, “o
olhar de Rigoberta atravessa tudo,
como um olhar sem limites, sem nos
deixar outra possibilidade além de
interrogar-nos profundamente, ou
realizar um ato de negação do que
presenciamos” (2001:25).
Não há dúvida de que A casa de
Rigoberta apresenta bastante afinidade
com o que está se produzindo no resto
da América Latina, ao tratar de fazer
um balanço social, político, ideológico
e econômico a partir, e como resultado
ainda que provisório, das reformas
neoliberais das últimas décadas, as
quais, de resto, no caso específico da
Nicarágua, parecem apontar para o
fracasso (ver Vanden 2002).11 Vargas,
por outra parte, volta ao tema
nicaragüense na obra Danzón Park ou a
maravilhosa história do herói e o traidor
(2003), que escreve novamente a
pedido de Millán. O título da peça
Danzón Park se refere a um salão de
baile no subúrbio da cidade aonde o
“herói” militar, Arcos, agora “retirado”
ou, como ele mesmo diz, “de férias”, e
sua esposa/noiva Leda iam dançar
quando jovens, e aonde esta última
regressa, duas décadas depois, não
sabemos se em sonhos ou sonâmbula,
como reclama a intrigante Tia Yoga,
para reencontrar-se com o “jovem
Arcos” que ela uma vez amou. Estes
são os personagens da trama que se
desenrola diante de nossos olhos,
arrastando-nos a um clímax que
pressentimos como fatídico, dado o ar
de tragédia que desde o princípio paira
sobre eles. Por outra parte, a partir do
contexto em que a obra se inscreve, é
quase inevitável a associação de Arcos
com o líder da FSLN, Daniel Ortega,12
cuja situação não podia estar evocada
de maneira mais acertada, para a
época em que a peça estreou:
10
O tambor (1959),
romance de Günter
Grass, nos vem à
mente
involuntariamente
como a metáfora que
foi de uma voz de
alerta em meio à
aparente indiferença
de um povo voltado
de costas à sua
realidade
circundante. Oskar, o
filho de um
camponês alemão,
recebe de presente
quando faz três anos
um tambor de lata.
Enojado do mundo
grande sucesso.
Nos referimos, por
exemplo, às obras
que têm surgido na
Argentina dentro do
âmbito da “estética
da multiplicidade”
(ver Dubatti 2004),
ou no México, que
dão testemunho da
crise do
neoliberalismo, como
Krisis (1995), de
Sabina Berman e Os
executivos (1996), de
Víctor Rascón
Banda, entre outras.
12
Depois de ter
perdido três vezes as
que o rodeia, a
Alemanha dos anos
30 e 40 presa do
fascismo paulatino
que a vai envolvendo,
decide não crescer
mais e passa o dia
tocando o tambor,
como consciência
irascível e enervante
de um mundo que
está se desviando de
seu leito normal e
caindo na ignomínia e
na alienação. O
romance foi levado
ao cinema em 1979
pelo diretor Volver
Schlöndorff, com
Arcos: […] (Pausa) Eu sou um
herói; agora que você está
dormida posso lhe dizer a seco,
sou um herói retirado, um herói
aeroplano, um herói que não pode
voar por razões técnicas. Um herói
sem contundência; você também
perdeu contundência. (2006:53)
Mas é através da Tia Yoga, metade
pitonisa, metade conselheira, que se
complementa a “contextualização” de
nosso “herói nativo13” Arcos:
Tia: O que acontece é que você
não gosta de mim porque eu me
visto na moda, e no entanto, você
nunca saiu do labirinto dos
mercados populares, mesmo
podendo ir a Miami, you don’t go,
você vai aos mercados populares.
Você ficou com o tique da época
gloriosa, tem o paladar enferrujado,
muita comida popular, querido,
muita comida popular. Sua
consciência perdeu contundência,
não serve nem para envolver um
ramo de flores … (Pausa) Me
11
eleições
presidenciais, em
1989, 1996 e 2002
em favor de Violeta
Chamorro, Arnoldo
Alemán e Enrique
Bolaños, a situação
política de Ortega
sofre uma mudança
considerável quando
entra em
negociações com o
partido político
opositor (Partido
Liberal
Constitucionalista)
de Alemán, a quem
Bolaños, assim que
se instalou no poder,
submeteu a uma
campanha
anticorrupção que o
levou, em dezembro
de 2003, a ser
condenado a vinte
anos de prisão por
manejos ilícitos de
fundos oficiais, entre
outras acusações.
Como é o do
conhecimento
público, uma vez que
o próprio Bolaños foi
expulso do PLC,
então ainda liderado
por Alemán, as
“negociações” entre
os partidos PLC e
FSLN entraram em
curso, levando ao
congresso, de
maneira bemsucedida, uma lei que
terminaria
prematuramente com
a condenação de
Alemán. Para
muitos, e cremos não
sem razão, se estes
“tratos”, por um
lado, garantiram a
liberdade de Alemán,
por outro aplanaram
a subida ao poder de
Ortega nas eleições
de 2006. Deste
modo, a luta entre as
utopias e a realidade,
que ocupou a vida
política do país
durante a maior
parte do século
passado e o começo
do presente, parecia
chegar a seu fim
quando o líder “de
férias” de hoje, por
certo de forma
metafórica na obra,
em quem se
concentraria
qualquer resíduo de
esperança de um
futuro melhor, tem
que eliminar o jovem
sonhador e
revolucionário que foi
para poder seguir
vivendo, traindo si
mesmo e a todos que
acreditaram nele ao
entrar em tratos e
alianças com a
oposição.
13
No orig., criollo,
termo específico para
os descendentes de
espanhóis nascidos
nas Américas. N.T.
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Danzón Park, Justo Rufino Garay, Nicarágua.
perdoa, querido, me perdoa, eu sei
Leda: Não, como uma
Leda: Pensei que você se
que você não sabe como utilizar a
revolução…católica. (62)
esforçava para esquecer… (61)
fúria, só quero que não se sinta
sozinho. Pobre Arcos! Parece um
menininho amarrado a um montão
de fios invisíveis. (56-57)
14
A representação a
que tive acesso fez
parte do programa do
Festival de Teatro de
Manizales em
outubro de 2007.
15
Este esquema de
contrastes no
desenho das luzes de
suas obras parece ter
se convertido num
selo distintivo da arte
de Vargas como
diretor, ver ProañoGómez (2007).
Quanto a este Vargas
diretor, é de rigor
anotar que além dos
grupos mencionados
ele tem trabalhado
no Equador com El
Callejón del Agua e
Tragaluz; no México
com o grupo El
Sótano e na Costa
Rica com a
Compañía Nacional
de Teatro.
De modo que Arcos chega ao
recinto do Danzón Park empurrado pela
Tia Yoga, que junto com Iago (óbvia a
similitude dos nomes), esse personagem
imortal da tragédia Otelo de
Shakespeare, desencadeia a tragédia
com suas patranhas, ao fazê-lo
corroborar a “infidelidade” de sua
mulher e propiciar o desenlace. O jovem
sonhador que, diga-se de passagem,
olha e fala com as estrelas, nos recorda
o poeta que cantava às noites
estreladas (Pablo Neruda), que todos
recitávamos no início destas lutas
idealistas, quando a felicidade se parecia
com a igualdade e se tinha fé em que,
com empenho, era sim possível mudar o
mundo. Mas a felicidade já não pode
existir, como declara sucintamente
Leda em suas conversações
esquemáticas com Arcos, porque a
inocência se perdeu faz muito tempo
durante a época das revoluções cristãs:
Leda: Você lembra ou não lembra?
Ao final Arcos mata o jovem
apunhalando-o até que “o sangue do
herói se confunde com a água podre e
contaminada do Grande Lago, por mais
que o sangue do herói mana incessante,
o lago podre não volta a ser o lago
sagrado de outrora porque os deuses
estão de férias, no mesmo hotel…[…]”
(76). Se a obra se enlaça
genealogicamente com a mencionada
tragédia de Shakespeare, e com a
própria origem do Édipo rei de Sófocles
que, por certo, como já notaram os
críticos, “procura seu traidor e resulta
ser ele mesmo” (Ávalos 2007), também
nos traz fortes conotações de Macbeth
no tratamento dado a Leda, a esposa de
Arcos, sem esquecer também o caráter
sibilino da Tia Yoga. Igual a Lady
Macbeth, em plena crise de consciência
depois dos acontecimentos, e além
disso sonâmbula, em Leda não há
justificativa nem vestígio de inocência
em seu comportamento anterior, como
ela mesma sugere no seguinte diálogo,
no qual, muito a propósito, vem à luz o
motivo das mãos manchadas de
sangue:
Arcos: Sim, mas não quero.
Arcos: Quando jovens…
(Silêncio)
Leda: Queria que você não falasse
Leda: A felicidade…
disso.
Arcos: Sim?
Arcos: Temíamos o sangue
Leda: É como uma revolução.
Leda: Por favor.
Arcos: Sim?
Arcos: Por isso mesmo nos
Leda: Não existe mas acreditamos
manchávamos as mãos
nela.
Leda: Arcos, não…
Arcos: Como deus para os
Arcos: Porque o sangue nos
católicos.
libertava
10 • CAMARIM • Nº 41
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De maneira conseqüente, Leda
contempla impávida, embora de uma
certa altura, porém sem intervir, a cena
do assassinato do jovem, tornando-se
participante da “traição”. Segundo
Jorge Ávalos, a obra se apresenta como
“um jogo intertextual e interlúcido” em
que “Vargas concebe, escreve e dirige
uma encenação que constitui um ato
ritual, uma experiência mágica, um
encontro passional do espectador com
uma forma particular de heroicidade
traída que emerge com o pós-guerra”
(2007). Nas palavras do próprio
dramaturgo: “Este herói superlimitado
contém o traidor, mais ainda, foi
substituído por ele. Tal mudança se
operou sutilmente porque a heroicidade
se transformou num rótulo, num título,
uma prestação paga à história,
prestação que legitima tudo, inclusive a
traição” (Arístides Vargas, Programa de
Danzón Park, 2003).
Quanto à montagem da obra,
dirigida por Vargas e Charo Francés,14 é
realçada por um jogo de claro-escuros,
de contrastes, entre os dois casais que
formam o elenco, auxiliada também
pelo jogo de luzes que vão da escuridão
(a penumbra acompanha a obra), à
iluminação seletiva dos personagens.15
Deste modo, por um lado está a dupla
que representa o herói sem
contundência/o poeta sonhador; como
em Pluma e outras obras de Vargas, o
último tem a capacidade de alçar vôo,
quando ainda se é inocente, enquanto o
primeiro, a duras penas, se arrasta pelo
Bibliografia
solo, prejudicado pela carga que leva
nas costas. Por outro lado está Leda,
heroína trágica mesmo em meio à
traição, apropriadamente vestida com
um traje branco e longo, acentuado por
um ramalhete de flores – sugerindo
uma noiva inocente que na atuação
experiente de Lucero Millán se
converte às vezes em daguerreótipo
estereotipificado – e a Tia Yoga,
aspirante a pitonisa um tanto
extravagante e vulgar em sua atitude
prosaica, que usa um traje vermelho de
franjas e lantejoulas. Estes personagens,
ao mesmo tempo em que se
contrastam, chegam também a se
complementar, como os dois pólos
opostos de um mesmo personagem, em
diferentes etapas ou momentos da vida.
Os espaços utilizados, do mesmo
modo, sublinham a dicotomia
apresentada pelos personagens,
oscilando entre o dormitório “real” do
casal e o salão de baile na estrada oeste;
no primeiro se sonha e no segundo se
realizam os sonhos, estabelecendo-se
um balanço entre um e outro estado em
cuja linha fronteiriça parece definir-se
grande parte da dramaturgia do autor.
Ambos lugares são evocados pelos
diálogos dos personagens e se
conectam por um corredor imaginário
por onde transitam todos, passando do
presente ao passado e vice-versa e
fazendo-nos, de passagem, também
“cúmplices” involuntários por omissão
das mudanças ocorridas, que começam
a parecer uma realidade não buscada,
não desejada, pela qual, pelo menos
nesta instância, parece que se lutou em
vão em “épocas gloriosas” passadas.
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•
1º SEMESTRE • 2008 • 11
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A II MOSTRA LATINO-AMERICANA DE TEATRO DE GRUPO
Por uma integração
teatral latino-americana
Mario A. Rojas
A II Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo
organizada pela Cooperativa Paulista de Teatro (CPT),
do dia 30 de abril ao dia 6 de maio de 2007, fortaleceu
o que estive sublinhando por muito tempo: que o teatro
brasileiro é um dos mais vitais e criativos, e um dos mais
sensíveis ao seu contexto social e histórico. Contudo,
apesar de suas qualidades, é pouco conhecido no resto
da América Latina. Escassamente se vê circular em
temporadas de teatro ou em festivais que se realizam
em outros países da região de fala hispânica. Uma das
razões pode ser de ordem lingüística e/ou cultural. Isto
pode explicar o fato de que o teatro brasileiro esteja
sempre presente em festivais de teatro de Portugal. Ali
pude desfrutar dos espetáculos de grupos como o
Galpão de Belo Horizonte, a Companhia do Latão, o
Galpão do Folias de São Paulo e o Teatro da Vertigem,
sempre com teatro cheio e com elogios da recepção
crítica. Ali pude ver também a influência de grupos
brasileiros em outros de fala portuguesa, não só de
Portugal, mas também de Moçambique, Angola e Cabo
Verde. Mas a ausência do teatro brasileiro no resto da
América Latina pode ser devido a outras razões, como
o possível desinteresse dos “teatristas” brasileiros de
levar seu teatro a outros países latino-americanos, o que
seria muito justificável já que o Brasil é um país de
proporções imensas que se basta e sobra na sua
geografia. O estado de São Paulo é maior que alguns
países da região e somente na área urbana de sua
capital, em 2004, a CPT tinha 836 núcleos artísticos e
3.179 associados. O desconhecimento pode dever-se
igualmente ao desinteresse dos outros países latinoamericanos de incorporar em seus festivais o teatro
brasileiro, privando-se assim de tudo o que poderia ser
oferecido. Seus organizadores parecem não ter
descoberto quão frutífero e enriquecedor seria o
intercâmbio e que a barreira lingüística importa pouco,
pois no teatro brasileiro, como é a tendência do teatro
contemporâneo em geral, a gestualidade corporal, a
visualidade cênica e a sonoridade são tanto ou mais
importantes que a palavra. Mas, o que é mais provável é
que se deva aos três fatores ao mesmo tempo.
Felizmente, as coisas estão mudando. Um claro
indício desse giro é a II Mostra Latino-Americana de
Teatro de Grupo que, de acordo com Ney Piacentini tem
entre seus objetivos,
“... aprofundar mais a relação com os grupos latinoamericanos e de outras localidades do Brasil”. O que é
igualmente promissor é que, como assinala Piacentini, “já
existe o interesse de reproduzir a Mostra nos estados
brasileiros e, mesmo, em outros países latino-americanos”
(Latino-Americano, 7 de maio, 2007).
Os grupos teatrais participantes, dez selecionados e
dois especialmente convidados, converteram o Centro
Cultural São Paulo em um ambiente de festa, onde um
público sempre cheio de expectativa fazia longas filas
muito antes dos espetáculos. Esta recepção entusiasmada
foi a mesma tanto para os 7 grupos brasileiros como para
os 5 do resto da América Latina. Mas o contato do
público com os artistas foi mais além do espetáculo em si,
pois este tinha o privilégio de um encontro direto com
diretores, atores, cenógrafos e técnicos, que a cada
manhã, além de dar uma demonstração de seu trabalho,
respondiam com atenção todas as perguntas que lhes
dirigiam. A empatia entre público e artistas era total. Além
dessas seções de encontros diários, aconteceram dois
debates em que participaram críticos e reconhecidas
figuras do ambiente teatral latino-americano para
conversar sobre diferentes temas, entre os quais se
destacou o da integração latino-americana, além de
incluírem outros três assuntos relacionados à situação
atual do teatro latino-americano, como os efeitos da
globalização e as mudanças políticas que afetam a
produção e recepção teatral. Nesses encontros
participaram Vivian Tabares, diretora da revista Conjunto,
Mario Rojas (que substituiu que George Woodyard de
quem se lamentou muito sua ausência), Reinaldo Maia,
intelectual e um dos diretores do Galpão do Folias de São
Paulo, Sérgio de Carvalho, diretor da Companhia do Latão
e professor de teatro, e Raquel Carrió e Flora Lautén do
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Mario A. Rojas é
professor da The
Catholic University
of America
Tradução de Marília
Carbonari
A Gaivota (Alguns
Rascunhos),
Piollin, PB-BR.
1º SEMESTRE • 2008 • 13
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Buendía, o grupo cubano de maior fama internacional.
Todos os dias se distribuíam aos artistas e ao público, o
jornal da II Mostra, o Latino-americano, que além de
conter notícias relativas ao festival, oferecia uma crítica
dos espetáculos da noite anterior, escritas por críticos
brasileiros e estrangeiros, e também reflexões teóricas
sobre o teatro latino-americano em geral. Desse modo, se
cumpriu um dos objetivos da CPT que era “formar platéia.
E isso é muito mais do que levar pessoas para as salas de
teatro em São Paulo, passa também pelo oferecimento de
instrumental para inserir o espectador nos debates das
artes cênicas. A Mostra ofereceu oportunidade nos
debates, nas demonstrações de trabalho e no próprio
Latino-Americano” (Piacentinni, Latino-Americano, 7 de
maio de 2007). Tudo isso realizado em um ambiente em
que reinou a camaradagem e o apoio solidário de artistas,
críticos e público. A relação entre grupo e críticos do
Brasil e de outros países não foi somente artística, houve
também um intercâmbio de publicações sobre aspectos
teóricos e práticos de seus trabalhos. Entre elas, cabe
mencionar a Camarim da Cooperativa Paulista de Teatro, o
Caderno do Folias, do Galpão do Folias de São Paulo, a
Vintém da Companhia do Latão, a Cavalo Louco do Teatro
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis e O Sarrafo, uma
publicação produzida por vários grupos independentes.
O Teatro como um instrumento de ação social
Iniciou a II Mostra o grupo teatral Filhos da
Mãe…Terra, um dos convidados. Formado em 2003, no
assentamento Carlos Lamarca, em Sarapuí, São Paulo, o
Filhos da Mãe…Terra é parte do Coletivo de Cultura do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) integrado
por 40 grupos. Seu espetáculo Posseiros e Fazendeiros,
inspirado em Horácios e Curiácios de Brecht e estreado em
2004, foi o resultado de pesquisas sobre a estrutura agrária
brasileira e do estudo da teoria e práxis do teatro épico. O
grupo também incorporou técnicas do Centro de Teatro do
Oprimido de Augusto Boal e da Cia. do Latão. Apesar dos
problemas econômicos dos assentamentos camponeses e da
distância que os separa, este grupo integrado por onze
Angu de Sangue,
Coletivo Angu, PEBR.
jovens atores camponeses, com uma cenografia simples,
mas com grande vitalidade e mistura de seriedade e humor,
com cantos e palavras de ordem, encenaram com
entusiasmo sua luta por seus direitos cidadãos e por uma
vida mais digna. O outro grupo convidado foi o carioca
Teatro Pirei na Cenna, do Centro de Teatro do
Oprimido, que representou no último dia da Mostra, É
Melhor Prevenir que Remédio Dar. Os atores, entre eles
alguns deficientes mentais, fizeram o público refletir sobre
a discriminação contra as mulheres, contra aqueles que
adoecem por problemas de incapacitação e, em geral,
contra os preconceitos sociais e religiosos que polarizam
constantemente o mundo contemporâneo. Concebida
dentro da estética de Boal, a peça convidou os
espectadores (entre eles os atores de outras companhias) a
intervir no palco para oferecer alternativas de solução ao
conflito dramático-social estabelecido, adotando assim o
papel de protagonista. Foi um espetáculo didático no qual
a realidade cênica representada, como sucede com o
teatro de conscientização social, não era diferente da
realidade da vida cotidiana.
Por uma democratização do espaço artístico
Em A saga de Canudos, uma adaptação da peça O
Evangelho Segundo Zebedeu de César Vieira, o Teatro Tribo
de Atuadores Ói Nóis Aqui Travéis revisitou a história de
um movimento popular, que no final do século XIX era
liderado, no nordeste do país, pelo messiânico Antônio
Conselheiro, protagonista também do romance-epopéia A
guerra do fim do mundo de Mario Vargas Llosa. As idéias
utópicas de Conselheiro, que cativaram uma grande massa
de camponeses, sua história de enfrentamento com o
exército oficial que culminou com o extermínio de seu
movimento, atraíram o transeunte que não pôde resistir ao
poder sedutor da música, canções, da figura monumental de
Conselheiro, dos trajes e gestualidade, que despregavam a
todo o momento a maestria de sua arte. Temática e
ideologicamente este espetáculo esteve em perfeita
consonância com Posseiros e Fazendeiros do Filhos da
Mãe…Terra, com que compartilha os mesmos propósitos,
14 • CAMARIM • Nº 41
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mas pelas razões explicadas, com uma estética mais
depurada. Os atores do Teatro Tribo de Atuadores Ói Nóis
Aqui Travéis preferem denominar-se “atuadores”. Explicam
que “um atuador é … a junção do artista com o ativista
político, quer dizer, sua atuação não se reduz ao palco, à
cena, mas é ampliada, na medida em que adota um
posicionamento comprometendo-se com a realidade que o
cerca” *. O outro espetáculo de rua, Uma canção de
Guerreiro converteu a passarela que une o Centro Cultural
de São Paulo com uma estação de metrô, em um espaço
cênico que o grupo demarcou com giz. Desse modo, a
Associação Teatral Joana Gajuru se apoderou, ainda que
momentaneamente, de um espaço público que convivência
e entretenimento, que, como bem assinalou o crítico Marcio
Marciano estão quase desaparecidos das grandes cidades.
Foi um espetáculo picaresco e carnavalesco que, construído
a partir do jogo de palavras, do duplo sentido e da
ambigüidade, de uma música desordenada e chamativos
trajes e máscaras, prendeu a atenção de um numeroso
grupo de espectadores que optaram por não tomar o metrô
e se esqueceram das telenovelas que os esperavam a essa
hora em seus televisores.
Otra Vez Marcelo,
Teatro de Los
Andes, BOL.
Uma recontextualização de clássicos
do teatro de ontem e hoje
O grupo Buendía, com a dramaturgia de Raquel Carrió
e a direção de Flora Lautén trouxe Charenton, uma audaz
adaptação de Marat/Sade de Peter Weiss, um dos textos
clássicos do século XX. Foi um dos espetáculos estrangeiros
mais esperados e não foi para menos. Trata-se de um
espetáculo de grande impacto visual, construído mediante a
inteligente composição de espaços, tonos e volumes de
vozes e cores e de jogo de luzes que marcavam o
desenvolvimento e intensidade da ação dramática e sua
cadência rítmica. Conceitualmente foi igualmente profundo.
Com uma linguagem cênica paródica e carnavalesca se
reconstruiu a metateatralidade no abismo de seus
intertextos: atores cubanos que representavam atores que
representavam loucos que representavam por sua vez a
morte do revolucionário francês Jean-Paul Marat, que na
* Rafael Vecchio,
Utopia em Ação.
Porto Alegre:
Terreira da Tribo
Produções Artísticas,
2007, pág. 53.
prisão de Charenton dirigiu o famoso e vilipendiado, mas
sempre atrativo Marquês de Sade. Os intertextos originais
serviram, sobretudo, para iluminar, com execráveis ecos, as
impurezas do mundo contemporâneo, as fronteiras às vezes
indiferenciadas entre a loucura e a política, o instinto e a
razão, a inocência e a vilania, ou seja, de todas as tensões
irresolutas do barroquismo que caracteriza o mundo
contemporâneo, em constante dúvida de tudo e por tudo.
Assim, a releitura do texto de Weiss foi também uma
releitura do mundo atual em que a sensatez e a loucura
parecem ter apagado seus limites. Pena que custa tantas
vidas humanas.
Também de fronteiras, foi a adaptação do Grupo de
Teatro Piollin de A Gaivota de Tchecov, rebatizada como
A Gaivota (Alguns Rascunhos). Nessa versão do Piollin, os
treze atores da obra de Tchecov se reduzem a cinco. A
oposição cidade/campo tão demarcada no texto original
perde aqui seu sotaque e os elementos cênicos tão prolixos
e detalhados se reduzem a uma mesa retangular e cinco
cadeiras em que se instalam os atores, sempre à vista do
público ainda que não atuem. A metateatralidade do
hipotexto russo se mantém, mas nesta encenação
conceitual e formalmente minimalista, se orienta a
problemas existenciais, mais pontuais e profundos: as
falsas dicotomias entre a arte e a vida, a masculinidade e
feminilidade e a falsidade e a autenticidade. A dimensão
existencialista, a nosso parecer, foi enfatizada com a
imagem de um inseto projetado em um vídeo que me
evocava a Metamorfose de Kafka. Foi o único espetáculo
da II Mostra em que o espaço selecionado foi insuficiente.
Sua acústica ruim e o persistente barulho do sistema de ar
condicionado, tornaram inaudíveis a todo tempo as
palavras tão importantes nessa proposta cênica de grande
conteúdo filosófico.
A adaptação de outro clássico foi trazida pelo grupo
Escena de Caracas com Mackie, um espetáculo inspirado
em outro texto canônico do século XX como é A ópera
dos três vinténs do qual se extraíram breves fragmentos e
se deu privilégio para as canções de Kurt Weil e Bertolt
Brecht que foram usadas como motor central do
espetáculo com que se propunha refletir sobre os temas
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sociais que tanto preocuparam o dramaturgo alemão. A
coreografia de bailes e movimentos muito contemporâneos
foram muito atrativos mas ao mesmo tempo foram agentes
de dispersão para a comunicação da mensagem social. Um
dos acertos do espetáculo foi o uso de uma mala, com
evidentes conotações metafóricas, que os bailarinos
manipulam constantemente até chegar a converter-se em
um atuante portador de múltiplos significados, como bem
assinala Vivian Martínez em sua resenha do espetáculo,
pode aludir à “migração, evasão (e à) tensão política” que
se vive atualmente na Venezuela (Latino-Americano, 5 de
maio, 2007).
Uma versão muito original de Romeo e Julieta foi a que
ofereceu o grupo argentino Teatro Sanitario de Operaciones
com sua peça Mantua na qual retoma o famoso texto de
Shakespeare para recrear o não-enunciado dele: um
hipotético sonho de Julieta quando, sob efeito do sonífero,
espera na cripta a chegada de Romeu. Foi uma encenação
ao ar livre, especialmente dirigida à uma nova geração de
espectadores, quer dizer, aos jovens acostumados aos
efeitos sensoriais, visuais e sonoros de espetáculos
monumentais que deixariam pasmados os espectadores
elisabetanos. Recorro ao comentário do crítico Marcio
Marciano que aprecia o esforço inovador do grupo, sua
“experimentação com possibilidades inéditas de diálogo com
a contemporaneidade” mas que por outro lado, é deficitário
na criação de sentidos transcendentais que nos levam a
refletir sobre um mundo que pretendemos modificar
(Latino-Americano, 6 de maio, 2007). A influência do grupo
catalão La Fura dels Baus foi notória, o qual não surpreende
posto que o grupo o reconhece como uma referência
importante na concepção e elaboração de seus espetáculos.
Sancho Pança, um espetáculo que passeou com muito
sucesso em festivais ibero-americanos e que Manuel
Chapuseaux (Don Quixote) e sua esposa Nives Santana
renovam constantemente, sempre com uma finura artística
definida pela dedicação e profissionalismo. Os recursos
cênicos são mínimos: alguns módulos de madeira, um guardachuva velho, um vestuário muito simples e um ou outro
objeto reciclado com os quais recriam com verossimilhança a
ficção cervantina. Os integrantes do Teatro Gayumba são um
caso exemplar de muitos grupos latino-americanos que com
mínimos recursos, mas com rigor e disciplina, criam
espetáculos de grande qualidade artística. Basta-lhes seu
talento e incondicional entrega a arte cênica.
O segundo espetáculo derivado de um texto narrativo
foi Angu de Sangue do Coletivo Angu de Teatro que
adaptou, em forma de monólogos, alguns contos do
escritor pernambucano Marcelino Freire. Para este
propósito Angu de Sangue (que corresponde ao título do
livro matriz de Freire) criou uma cenografia que incluía
vídeos e elementos de cultura pop, mantendo-se sempre
fiel aos textos do autor, que esteve presente na II Mostra.
Os contos de Freire têm como referente os excluídos
dentro do seio da grande cidade contemporânea, a
realidade crua do submundo urbano em que impera a
violência e proliferam seres endividados em um ambiente
sem saída, atmosfera que o Coletivo Angu de Teatro
recorre muito bem mantendo o estilo poético e a
intencionalidade social do escritor.
Uma proposta dramática de textos narrativos
Dois espetáculos da II Mostra seguiram em uma
tendência, muito popular hoje em dia, em que muitos
diretores de teatro, preferem, em vez de textos dramáticos, a
adaptação para cena de textos narrativos, o qual lhes dá uma
maior liberdade ao seu gênio e talento pessoal. O Teatro
Gayumba da República Dominicana trouxe Don Quixote e
A Saga de
Canudos, Ói Nóis
Aqui Traveiz, RSBR.
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A comunhão entre estética e ética: Ovo
e Outra vez Marcelo
Os dois espetáculos que chamaram a atenção por sua
realização estética e por seu modo de aproximar-se do
mundo de hoje, foram Ovo e Outra vez Marcelo. Já é um
lugar comum dizer que todo texto dramático e sua
realização final, a encenação, possuem uma intenção
política, mesmo quando se trata de negá-la, posto que a
negação ou a neutralidade em si constitui um ato político.
O que é diferente é a maneira como se expressa essa carga
política. Na II Mostra, como pudemos apreciar no exposto
até aqui, predominaram os grupos que explicitaram
claramente sua intenção política. Ovo do Circo Teatro Udi
Grudi proveniente de Brasília e Outra vez Marcelo do
Teatro de Los Andes da Bolívia, a partir de distintas
propostas, foram, talvez, os que melhor alcançaram essa
desejável relação harmônica entre estética e ética, entre a
busca esforçada da perfeição artística e dos valores
humanos que nos levam a um mundo melhor e que
dignifique o homem. Com o “consumismo que nos
consome”, as grandes cidades produzem cada vez mais
lixo que, às vezes, paradoxalmente como expressava o
Angu de Sangue na encenação de um dos contos de
Marcelino Freire, os lixões chegam a ser um meio de
sustento, mais ainda, de vida, de muitos seres marginais.
Alguns objetos que chegam ao lixão se reciclam e
retornam transformados às galerias comerciais ou
supermercados.
Os objetos sim,
mas não os
“catadores de
lixo” que
permanecem
condenados
nesse espaço
sujo em que
convivem com
ratos. Três
atores, exímios
Ovo, Circo Teatro Udi Grudi, DF-BRA.
músicos criam, a partir de objetos em desuso e
descartáveis, instrumentos musicais com os quais
interpretam com segurança e soltura e que, dominando a
técnica do clown, representam três protótipos desses
despossuídos sociais que na sua precária existência dão
um sentido transcendente a suas vidas. Um espetáculo
que convida a um estudo particular.
Outra vez Marcelo requisitou somente um espaço
íntimo, assim como íntima foi a dramatização da vida desse
intelectual, um político que não trepidou em falar sempre
com a verdade a flor dos lábios, que lhe valeu uma corja de
inimigos, de políticos corruptos e ineptos. Como em muitos
lugares de nossa América Latina repressiva, onde há
centenas de Antígonas que buscam seus entes queridos
desaparecidos para cumprir o ritual sagrado de sua
sepultura, a esposa de Marcelo Quiroga Santa Cruz
obstinadamente busca o corpo de seu marido assassinado.
Conhecíamos um Teatro de los Andes com numerosos
atores. Agora bastou com César Brie, o diretor, e sua
esposa Mia Fabbri, para reconstruir esse pedaço inconcluso
da história da Bolívia. É o que fazem a partir de dois focos
que se complementam: a partir da memória pessoal de uma
viúva da qual se vão alinhavando fragmentos da história e, a
partir do testemunho da imprensa, da televisão e
documentos objetivos. Tudo é feito com a sutileza de
elementos cênicos mínimos e com a perfeição que se
alcança com a dedicação e a exigência.
•
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Da renúncia fiscal ao
Arte Contra a Barbárie
NOTAS PARA UMA HISTÓRIA1
Teatro/Mercadoria, Kiwi, SP.
Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho
1
Trechos de livro no
prelo: A luta dos
grupos teatrais de São
Paulo por políticas
públicas para a
cultura: 5 anos da Lei
de Fomento, por
Dorberto Carvalho e
Iná Camargo Costa.
Já está na hora de deixar cair uma ficha sobre a qual
há tempos Paulo Arantes vem insistindo: o capitalismo é
crime organizado. Até Adorno, um filósofo desligado das
questões da vida material na opinião de inúmeros de seus
adeptos, há mais de meio século avisou que a política não
é apenas um negócio, mas o negócio é a política inteira. E
ao menos os leitores de Robert Kurz parecem já ter
compreendido que a política há tempos foi degradada a
uma esfera secundária da economia totalitária, que se
empenha com o máximo zelo para que nada aconteça sob
o sol que não sirva diretamente ao objetivo tautológico da
maximização dos lucros. Isto hoje vale também para a
cultura em qualquer uma de suas manifestações.
A apologética agora dominante, até porque não admite
réplica, tem horror à palavra capitalismo, assim como
acontecia no final do século XIX. Em seu lugar fez
prevalecer a palavra mercado. Sem maiores surpresas, mas
contrariando o discurso anti-estatista de seus agentes no
negócio das idéias, o mercado exige estado forte, atuante,
parceiro, facilitador e regulador. Hoje é praticamente
arrombar uma porta aberta dizer que a reivindicação de
“estado mínimo” só vale para justificar a progressiva retirada
do Estado de setores até recentemente sob a sua
responsabilidade, como educação, saúde, cultura. Para estes
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sim, o estado deve ser mínimo, senão ausente, quando
muito regulador. Já o Estado forte tem uma função
estratégica: legitimar no espaço nacional as exigências do
capitalismo global, que agora precisa levar às últimas
consequências a colonização integral das esferas da
circulação, dos serviços e da reprodução por enormes
massas de capital à procura da valorização que já não é mais
possível nos domínios tradicionais da produção de
mercadorias (nos Estados Unidos, em 2001 a queda dos
lucros do setor industrial foi de 44,4% em relação ao pico de
1997, segundo Robert Brenner, que também informa ter
havido redução de 1/5 na força de trabalho no mesmo
período). Este problema, diagnosticado por Marx como
“queda tendencial da taxa de lucro”, persiste e segundo os
indicadores mais recentes está se agravando cada vez mais.
No processo rápido e avassalador da transformação de
direitos em serviços a serem explorados pelo capital, surgiu
mais recentemente, entre outras marcas fantasia, a “parceria”
entre o Estado e o capital, ou a livre iniciativa (outro nome
fantasia que tem boa aceitação entre os produtores de
apologética desde o século XVIII). O interessante desta
modalidade é que a livre iniciativa, a privada, entra com a
iniciativa e o poder público com os fundos.
Como o nosso assunto aqui é um desdobramento do
que Paulo e Otília Arantes já descreveram como o
casamento legítimo do big business com a alta cultura,
acrescentando ser este conluio um atestado de que, na
opinião hoje hegemônica, só o capital civiliza, vale a pena
ainda lembrar mais alguns de seus recados aos grupos de
teatro a respeito deste sintoma: a estetização do poder, que
depende da riqueza, tem a idade dos rituais de corte, cuja
função era apagar os vestígios da fonte sanguinária da
sofisticação nos costumes. Pois bem: a sociedade
imperialista contemporânea se distingue daquela pela
exibição espalhafatosa do comando incontrastável da
economia, mas agora com o glamour da culturalização do
dinheiro. Esta é a face atual da barbárie que come solta em
nome dos elevados interesses da arte, ou o horror
econômico praticado como uma modalidade das belas artes.
E atenção: um dos traços definidores da nova barbárie
consiste justamente na troca de direitos por cultura. O
inchaço “cultural” que assimila imaginação e inteligência ao
toma-lá-dá-cá de comércio e patrocínio é o outro lado do
rentismo predominante. A assimilação atual da cultura à
mera autopropaganda expõe o caráter bárbaro da cultura.
Bárbaro precisamente por ser mera exibição de poder,
rapina e lucro, como já dizia Veblen no início do século XX.
Adeus às ilusões de autonomia da arte
Thatcherismo na Inglaterra e reaganismo nos Estados
Unidos, durante os anos 80, para além de projeto político e
econômico, foram sinônimo de livre mercado, disciplina
financeira, controle firme do gasto público, redução de
Iná Camargo é
professora
aposentada da
FFLCH-USP e
pesquisadora teatral
Dorberto Carvalho é
pesquisador teatral
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impostos, nacionalismo, auto-ajuda, privatização e um
toque de populismo. Tudo isso acrescido de um fenômeno
sem precedentes nos dois países: as grandes corporações
multinacionais direcionaram os seus tentáculos para o
negócio da arte, especialmente a “grande arte”. Aquela
década viu o poder do dinheiro corporativo pautando a
arena cultural em escala até então desconhecida. A arte
passou a ser objeto de demanda não apenas como
investimento financeiro, mas também como instrumento de
propaganda institucional por um setor que até então era
visto como inteiramente ignorante no assunto e indiferente
a ele. Digamos que, como as demais manifestações culturais
(literatura, cinema, música, teatro e entretenimento em
geral) já estavam há mais de um século sob o firme controle
do mercado, agora o capital resolveu completar o processo
de mercantilização de todas as esferas culturais avançando
sobre aqueles resíduos cuja sobrevivência ainda permitia
cultivar a ilusão da autonomia, como era o caso da música
erudita e experimental, das artes plásticas igualmente
experimentais, museus, universidades, centros de pesquisa e
assim por diante.
Em 1979 Margaret Thatcher começou o seu governo
ts
tory reduzindo em 5 milhões de libras os gastos do Ar
Arts
Council
Council. Sua política expressa consistia em submeter as
artes ao mercado. Todas as instituições artísticas britânicas
até então protegidas pelo Estado foram obrigadas a se
submeter às forças do mercado e aos métodos
empresariais de atuação e administração.
Thatcher e Reagan revogaram a convicção socialdemocrata de que o acesso às artes, bem como a qualquer
outro serviço público oferecido pelo Estado, é um direito
fundamental do cidadão. Muito mais grave que isto foi a
persistência desta paisagem cultural depois que estes dois
símbolos políticos do neoliberalismo deixaram o poder:
democratas nos EUA e trabalhistas na Inglaterra (a
chamada centro-esquerda) adotaram a mesma política
econômica que denunciavam quando estavam na oposição.
Basta o exemplo americano: em 1996 o orçamento do
Na
tional Endowment ffor
or the Ar
ts foi cortado de 160,2
National
Arts
milhões de dólares para 99 milhões, quantia inferior ao
preço de um avião militar. Além disso, entre outras
restrições, o Congresso proibiu este órgão federal para o
fomento às artes de apoiar projetos experimentais e a
Suprema Corte, acolhendo uma consulta de Clinton,
deliberou que estabelecer restrições de conteúdo e
valorizar “padrões gerais de decência” para as artes a
serem fomentadas pelo Estado são providências que não
atentam contra a liberdade de expressão.
As informações acima encontram-se no livro de Chin
Tao Wu,, Privatização da cultura, publicado em 2006 pela
editora Boitempo com apoio do SESC. Nesta obra há
também relatos sobre os casos mais eloquentes da
canibalização de instituições, como museus e galerias de
arte, pelos prepostos do capital agora liberto de qualquer
tipo de freio. Há inclusive foto documentando o uso das
instalações daquele tipo de instituição para lançamento de
produtos como automóveis destinados aos extratos
superiores dos consumidores britânicos, ou classe A no
jargão mercadológico.
Para entender o tamanho do choque que este processo
significou para os europeus (como disse Paulo Arantes, os
americanos já estavam acostumados ao grosso traço
ostentatório do mecenato exercido em escala industrial),
vale a pena reproduzir algumas observações do alemão
Robert Kurz sobre todo o processo. Ele lembra que, por
meio da cultura do keynesianismo (o velho Welfare State),
no período do pós-guerra que antecedeu a ascensão do
neoliberalismo, uma parte da produção cultural dependeu
apenas indiretamente da lógica do dinheiro, ficando sob a
proteção do Estado. No tempo em que emissoras de
televisão, universidades e galerias, projetos artísticos e
teóricos foram subsidiados ou dirigidos pelo Estado, não
houve a necessidade de submissão direta aos critérios
empresariais; havia um certo campo de ação para a
reflexão crítica, os experimentos e as artes improdutivas
minoritárias que, por isso mesmo, não sofriam ameaças de
sanções materiais. O fim do socialismo e do
keynesianismo, ou a vitória inconteste do capital sobre o
trabalho, abalou fortemente estas manifestações culturais
que se viram privadas dos seus meios e os investimentos
privados tomaram o lugar das verbas estatais. Claro que
com o privilégio de selecionar apenas uma pequena
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parcela, por assim dizer a mais eficiente. No lugar dos
direitos sociais e civis, passou a reinar o arbítrio dos
ganhadores do mercado. Produtores culturais ficaram
expostos aos humores pessoais dos rajás do capital e dos
mandarins da administração.
A partir de então, nos grandes veículos de distribuição
só alcança êxito aquilo que se presta a servir de lazer aos
escravos do mercado (conceito de Guy Debord). Com a
racionalização capitalista da mídia, são transpostos para a
esfera cultural os salários de fome, a externalização de
custos (sobretudo os de produção) e a escravidão
empresarial. Miseravelmente pagos, socialmente
degradados e difamados, os trabalhadores europeus da
cultura e da mídia passam a produzir, é óbvio, bens
igualmente miseráveis; isso vale para todos os campos da
cultura. Tudo o que pretenda ser mais que produto
descartável é sumariamente eliminado.
A estética da indústria cultural, a estética da
mercadoria, ou o design da abstração econômica, passa a
formatar toda e qualquer manifestação cultural. É
indiferente o que se produz, desde que seja vendável e
apto à encenação midiática. A arte deixa de ter existência
própria, passa a ser objeto imediatamente econômico e
desde a produção já se realiza do ponto de vista do
marketing. Por isso é destituída de critérios, por isso tanto
faz: sua estética é a da guerra civil e da barbárie,
universaliza-se a experiência americana.
Em Pindorama
Aqui neste fim de mundo nunca houve um verdadeiro
Welfare State. E desde os tempos coloniais o Estado, por
assim dizer, sempre “protegeu” algumas modalidades de
arte, a começar pelo teatro, como se pode verificar na
crônica especializada a partir da chegada de D. João VI que,
entre outras contribuições de maior alcance, como a criação
da censura às diversões públicas, inclusive ao teatro, sem
que ainda sequer houvesse no Rio de Janeiro um prédio
para apresentação de espetáculos, autorizou a destinação
de verbas da coroa ao cabeleireiro de sua consorte para o
estabelecimento de uma companhia teatral.
Em São Paulo, até a criação do Departamento
Municipal de Cultura em 1935, de inspiração democrática
(Constituição de 1934, artigo 148), o modelo joanino de
apoio às artes ainda prevalecia. Um exemplo é a criação,
construção e inauguração do nosso Theatro Municipal em
1911, destinado a hospedar espetáculos internacionais,
porém mantido com dinheiro público. Por outro lado, uma
cena do Macunaíma de Mário de Andrade mostra como
era generalizada a idéia de que bastava a qualquer um
fingir-se de artista (pianista ou pintor) para ir à Europa
com pensão do governo. A restauração do espírito joanino
em tempos neoliberais se confirma no “Programa Bolsa
Virtuose” regulamentado em 2000 pelo então ministro da
cultura. Mas voltando ao Departamento, Paulo Duarte
afirma sem meias palavras em seu livro de memórias que a
tentativa de criar uma programação um pouco mais
democrática para o Theatro Municipal foi prontamente
barrada pelos agentes locais do mercado mundial da
música erudita e seguramente estimulou os inimigos de
Mário de Andrade a promoverem a campanha de
difamação de que ele foi vítima.
Por incrível que possa parecer, foi a ditadura iniciada
em 1964 que pela primeira vez dotou o país de uma
política de cultura digna do nome e de inspiração mais
claramente keynesiana. Mas é bom não perder de vista o
processo: primeiro os militares trataram de eliminar da
cena, por meio de censura, prisões e exílios, a cultura
esquerdista, hegemônica até o AI-5. Feita a limpeza e
criada a infra-estrutura para a indústria cultural (a
Embratel é de 1965, o Ministério das Comunicações é de
1967) que se encarregou de colonizar para os valores do
capital os corações e as mentes da grande maioria, foi
possível, já em 1975 (governo da “distensão lenta, gradual
e segura”), criar um órgão como a Funarte para viabilizar
o Plano Nacional de Cultura, que vinha sendo ruminado
desde 1966.
Quando, em 1985, o governo da Nova República
desvinculou o Ministério da Cultura do Ministério da
Educação, pouca gente entendeu que este já era o primeiro
lance para a entrada do Brasil no jogo bruto da
administração da cultura pelo capital. Em parte porque a
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exposição de motivos tinha o seu quê de verdade: enquanto
setor do Ministério da Educação, a cultura nunca pôde se
sobrepor às prioridades óbvias da educação. Liberada de
seus entraves burocrático-educacionais, a área cultural
ficaria desde já disponível para cair nas garras dos
investidores e não demorou muito para se criar a primeira lei
de incentivo à cultura nos moldes anglo-americanos. Mas
esta é apenas a pré-história, pois houve um breve tropeço
no início dos anos 90, quando o Ministério da Cultura foi
extinto, transformado em Secretaria vinculada à Presidência
e o secretário que dá nome à nova lei de renúncia fiscal (Lei
Rouanet, nº 8.313/91) criou o “nosso” Programa Nacional
de Apoio à Cultura.
Diga-se de passagem que, assim como São Paulo saiu
na frente nos anos 30 com a criação do Departamento de
Cultura, o tropeço Collor foi aqui imediatamente
remendado com a lei Mendonça, versão municipal da Lei
Sarney, com o apoio da “classe” teatral. Os negócios da
cultura em São Paulo não podiam parar!
Depois das heróicas batalhas do impeachment, um
novo Ministério da Cultura é recriado, a agenda neoliberal
é assegurada e, também aqui, o Capital em pessoa passa a
ditar a política cultural (que, como aconteceu nos Estados
Unidos e na Inglaterra, não foi nem será revogada pelo
governo petista). Quem tiver alguma dúvida, deve ler o
programa do governo Lula assinado por Antonio Palocci
ou conferir a manifestação de 3 de fevereiro de 2008 do
ministro da cultura sobre o fomento à economia da cultura
como prioridade do MinC.
Só para lembrar algumas cenas de barbárie cultural
explícita, no governo de Fernando Henrique Cardoso, seu
ministro da cultura, também sociólogo, defendia sem meias
palavras o critério da cultura como marketing institucional.
Dentre seus grandes feitos mercadológicos internacionais,
merecem destaque a Feira de Hannover (2000) e as
exposições em Paris (2000) e Nova York (2001), nos
festejos dos 500 anos de invasão européia. Como estamos
tratando de intercâmbio com o alto patrocínio da renúncia
fiscal, em “contrapartida” hospedamos por nossa vez as
mega-exposições de Rodin na Pinacoteca e de Monet no
Masp, entre outras aventuras menos memoráveis.
Havíamos, finalmente, ingressado na era dos grandes
negócios culturais globalizados.
Foi tudo muito rápido: em 1995 foi aprovada uma
primeira regulamentação da Lei Rouanet autorizando a
ampliação dos resgates do imposto devido permitidos na
formulação anterior; em 1996 é criado o Sistema
Financeiro da Cultura para organizar a renúncia fiscal no
plano dos estados e municípios, além do federal. Isto é:
cada esfera da administração pública renuncia a seus
respectivos impostos, como IPTU e ISS (Lei Mendonça),
ICMS (leis estaduais) e IR (Rouanet). Finalmente, em
1997, nova regulamentação da Lei Rouanet completa o
processo, autorizando a dedução integral dos gastos. A
partir deste momento, acabou a farsa, ou melhor,
finalmente se consolidou a parceria tal como definida
Um dia de Ulysses, Teatro de Narradores, SP.
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acima: agora o Estado paga tudo e o capital exerce a sua
liberdade de escolha. Note-se que nem estamos tratando
da Lei do Audiovisual que permite, com dinheiro público, a
criação de acionistas de operações comerciais, como
explica muito bem um consultor de patrocínio empresarial.
Não precisamos nos deter na enumeração dos
resultados chocantes desta política, pois os mais
clamorosos já foram objeto de denúncia (ou de admiração
genuína) através da grande imprensa e mesmo de estudos
críticos em diversas publicações, especialmente no campo
do investimento no “patrimônio histórico” para favorecer
os negócios turísticos ou dos investimentos culturais para
fins de especulação imobiliária. O caso mais clamoroso em
São Paulo, ainda em andamento, é provavelmente o da
requalificação da região da Luz/Cracolândia. Mas há uma
informação que merece constar aqui: um dos espetáculos
que arrecadou a maior verba em patrocínio ou imposto
não pago, no ano de 2007, no Brasil foi Alegria. Este
produto faz parte do cardápio de uma empresa canadense,
com filial em Las Vegas, a Cirque du Soleil, cujo
faturamento é de 620 milhões de dólares por ano. E a
empresa mexicana que promoveu sua excursão pelo Brasil
foi autorizada pelo Ministério da Cultura a captar mais de
40 milhões de reais em cinco anos, segundo informação do
atual presidente da Funarte, Celso Frateschi.
Políticas públicas contra a renúncia fiscal
As manifestações extremas desta barbárie na cidade
de São Paulo – que vão da multiplicação ininterrupta da
população supérflua à submissão mais ostensiva e brutal
do Estado aos interesses do capital – levaram, no final dos
anos 90, alguns produtores teatrais com alguma
experiência a se dar conta do que estava em andamento.
As dificuldades de captação de patrocínio eram
crescentes, já começando a configurar impossibilidade
mesmo. Começam a se reunir periodicamente para discutir
os rumos gerais da cultura e logo percebem a necessidade
de entender criticamente os mecanismos políticos e
ideológicos que levaram à drástica redução dos
orçamentos do ministério e das secretarias de cultura.
Como relatam criadores do movimento Arte contra a
barbárie, o primeiro desafio foi estabelecer uma disputa do
pensamento sobre arte e cultura, assim como delinear um
horizonte de busca de espaços para a manifestação
cultural contra-hegemônica.
Já estávamos em 1998 e aproximava-se a campanha
eleitoral que acabaria levando o PT de volta à
administração municipal. A experiência da administração
Erundina (1989-1992) – cuja secretária de cultura,
Marilena Chauí, pautara as ações de política cultural pela
noção de cultura como direito dos cidadãos – há de ter
inspirado os artistas que naquele momento deram início às
discussões sobre os rumos da cultura em São Paulo.
Estamos nos referindo a Aimar Labaki, Beto Andretta,
Carlos Francisco Rodrigues, César Vieira, Eduardo
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naquele momento em que segundo a visão neoliberal, o
pensamento hegemônico, a cultura não teria a importância
que precisaria ter para a construção de uma cultura crítica
do entretenimento e do que o determinava.
Avanços, recuos
Tolentino, Fernando Peixoto, Gianni Ratto, Hugo Possolo,
Marco Antonio Rodrigues, Reinaldo Maia, Sérgio de
Carvalho, Tadeu de Souza e Umberto Magnani, os
signatários do Manifesto “Arte contra a barbárie”,
publicado a 7 de maio de 1999 pela grande imprensa e
apresentado no dia 10 a um público de mais de 300
pessoas no Teatro Aliança Francesa.
A maioria dos signatários integra grupos de teatro
formados entre os anos de 1980 (Tapa e Pia Fraus) e os anos
de 1990 (Latão, Folias, Parlapatões, e Monte Azul), além do
veteraníssimo União e Olho Vivo (de 1966). A experiência já
mostrara, inclusive para beneficiados pela renúncia fiscal, que
o tipo de teatro que faziam não interessava aos profissionais
de marketing responsáveis pela destinação das verbas
concedidas pelos governos, as quais passaram a engordar os
orçamentos de publicidade das empresas.
Antes de prosseguir, é importante registrar que, em
depoimento sobre o processo, um dos jovens participantes
daqueles encontros fez questão de destacar a lucidez de
Umberto Magnani e Fernando Peixoto, que tinham larga
experiência neste tipo de discussão, além da presença de
Gianni Ratto, que com sua experiência, sabedoria e
capacidade de análise, foi quem desafiou o grupo a se
perguntar sobre o valor do trabalho que faziam e a
estabelecer uma estratégia de intervenção. A estes
gigantes da história das lutas do teatro em São Paulo,
somava-se ainda a longa experiência de César Vieira que
com seu grupo, o União e Olho Vivo, sobreviveu à
ditadura e à concepção mercadológica de teatro sem
esmorecer na luta pelo direito de todos à cultura, exemplo
vivo de que é possível fazer teatro sem ceder o território
ao inimigo e muito menos o coração e as mentes.
Para além da discussão sobre a possível mudança de
governo, o grupo enfrentou temas como a distinção e a
relação entre público e privado e tratou de caracterizar seu
próprio trabalho, o que realmente estava sendo feito, que
tipo de valor ou relação estava sendo gerado na sociedade
e, mais importante, como a sociedade via, se é que via, os
seus trabalhos.
Em outras palavras, tratava-se de especular sobre a
importância ou desimportância do teatro que faziam
Os militantes do Arte Contra a Barbárie concluíam um
documento elaborado coletivamente ainda no ano de 2003
com as seguintes perguntas: qual a situação atual da arte e
do teatro entre nós? Qual o estágio efetivo das relações de
produção em que o teatro e as artes se inscrevem? Qual o
sentido atual da dimensão pública da arte hoje? Que
vínculos e alianças se estabelecem e qual seu resultado
efetivo? Que formas de produção possibilitam o salto, para
além do campo da resistência? Que imagem de nós mesmos
têm, hoje, poder de revelação sobre o que de fato somos e
queremos ser? É possível figurar o mundo hoje, sem que
isso signifique sua mera reposição ou afirmação, ou por
outra, uma capitulação?
Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, Paulo
Arantes apresentou sua reveladora e estimulante avaliação
sobre o que está em andamento: “Como, afinal, [os
grupos] foram à luta e arrancaram uma Lei de Fomento de
governantes embrutecidos pela lex mercatoria, pode-se
dizer que um limiar histórico foi transposto, por irrisório
que seja. Nos tempos que correm não é pouca coisa
converter consciência artística em protagonismo político.
Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o
O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, Cia. São Jorge de
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O menino que fugiu da peça, Ivo 60, SP.
caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco
do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer
que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de
montagem de eventos e espetáculos. Nele se encontram,
indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de
campo e intervenção na imaginação pública. Quando essas
três dimensões convergem para aglutinar uma platéia que
prescinda do guichê, o teatro de grupo acontece. Mesmo
quem honestamente acredita que está fazendo apenas
(boa) pesquisa de linguagem, de fato está acionando toda
essa dinâmica. O curioso nisso tudo, vistas as coisas do
ângulo de um observador vindo de uma faculdade de
outros tempos, é que o espírito da lei lembra muito o de
uma agência pública de amparo à pesquisa. Reativou-se,
inclusive, a idéia de residência. É bem verdade que os
gestores começaram a cair em si e os editais vão se
tornando cada vez mais restritivos.”
Também não é preciso lembrar dos riscos ainda maiores
que correm todas essas leis, do simples descumprimento, da
revogação ou, pior ainda, da sua transformação no seu
contrário. O mercado e nossos companheiros que ainda
acreditam nele são perfeitamente capazes de desviar essas
leis para seus próprios objetivos, mas o risco maior é o
aprofundamento da crise do capital, que pode em minutos
fazer evaporar o próprio fundo público que disputamos.
Por isso há tempos insistimos na necessidade, mais do
que constatada, de encarar o desafio da politização. Se não
formos capazes de descortinar um horizonte para além do
capitalismo, seremos todos engolfados pela barbárie. E não
estou glosando um conhecido Manifesto para fazer graça.
Dando, mais uma vez, a palavra a Robert Kurz, não
podemos nos esquecer de que a verdadeira crítica da
cultura bárbara não deve contentar-se em denunciar de
modo bárbaro a própria cultura. Ela deve determinar e
rejeitar a barbárie abertamente desprovida de cultura. Os
produtores culturais talvez devessem associar-se também
em sindicatos, guildas, clubes e ligas anti-mercado,
preocupados não em vender, mas em salvar os recursos
culturais da barbárie do mercado. Ligar-se aos humilhados
e ofendidos e dar expressão cultural aos sofrimentos
sociais, porque a própria arte só pode ser superada
positivamente quando conscientemente se tornar
momento de um novo movimento social (...) que ponha a
nu as raízes que têm produzido o sistema de cisões e
separações funcionais. A conclusão sobre este ponto se
impõe: nas presentes circunstâncias, a revolta é uma
obrigação e a insurreição um direito.
Mas as dificuldades para avançar nessa direção são
conhecidas e de todas as ordens. Em nome delas, a luta
para no mínimo assegurar as conquistas já facultadas pela
Lei de Fomento continua na ordem do dia. Um dos
argumentos a favor desta luta de resistência pode ser
encontrado em ninguém menos que Adorno: “Enquanto a
organização global da sociedade só garantir a igualdade
formal dos direitos, ela vai conservar os privilégios da
educação e outorgar a muito poucos as possibilidades de
experiência espiritual diferenciada e avançada. É um fato
que o avanço das coisas espirituais e, especialmente, da
arte abre o seu caminho à frente da maioria. Isto permite
que os inimigos mortais de qualquer progresso se apóiem
naqueles que, certamente sem ter culpa disso, estão
privados de uma expressão viva de suas próprias coisas.
Uma política cultural que não seja ingênua do ponto de vista
social tem que olhar profundamente para este conjunto
complexo de problemas sem temer a reação das maiorias.”
E sobre o apoio que a crítica deve dar a essa política,
Adorno cita Benjamim: o crítico tem que defender os
interesses do público contra o público; esta é uma das
necessidades impostas pela democracia formal. E é nesta
diferença que está a esperança.
•
1º SEMESTRE • 2008 • 25
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O negócio da cultura
Marco Antonio Rodrigues e Sérgio de Carvalho
O debate sobre a extinção da Lei Rouanet tem
mobilizado setores importantes da sociedade brasileira.
Parte da classe artística, aquela que dá autógrafos no
Senado, veio a campo exigir que ela não só permaneça, mas
se especialize, facilitando a vida dos produtores teatrais. Na
mesma direção, secretários de Estado e editorialistas de
jornal se pronunciaram na semana passada em favor do
seguinte ponto de vista: “reformar sim, acabar nunca!”
Afinal, lembram-nos todos, “a área cultural não receberia
hoje essa injeção de dinheiro sem os incentivos fiscais.”
De fato, a Lei Rouanet tem se mostrado uma força
miraculosa nesses seus 17 anos de vida. Basta dizer que
mudou a geografia da Avenida Paulista, ao fazer surgir
quase uma dezena de centros culturais e espaços
artísticos. Curiosamente, são instituições que carregam
nomes de bancos e elogiam o espírito abnegado da própria
instituição financeira.
A força miraculosa da chamada Lei Rouanet nasceu da
caneta do Presidente Fernando Collor de Mello, em 1991.
Tinha, então, um nobre objetivo pré-iluminista: incentivar o
mecenato. Só que os nobres do passado contratavam seus
decoradores e sua diversão com recursos do próprio bolso.
Nesse sentido, a lei trazia pouco do racionalismo do
intelectual que lhe dá o nome, Sérgio Paulo Rouanet. Estava
mais afinada com a cartilha liberal-conservadora da época,
que dizia: “O Estado dever intervir o mínimo, a sociedade
deve se autogerir, mas para isso é preciso uma ajudazinha”.
O poder miraculoso da Lei de Incentivo Rouanet nasce
da simplicidade de um mecanismo em que o Estado, no
intuito de fortalecer os agentes privados, estimula o
privatismo: é uma lei que autoriza a que as empresas
destinem valores de impostos às produções culturais. A
idéia parece boa, mas contém um movimento nefasto:
verbas públicas passam a ser comandadas pela vontade
privada, isto é, pelo desejo auto-referente das grandes
corporações, aquelas com lucro suficiente para se valer da
renúncia fiscal e investir na área. Dito de outro modo, os
diretores de marketing dos conglomerados econômicos
passam a ter mais poder de interferir na paisagem cultural
Marco Antonio
Rodrigues é diretor
teatral e integrante do
grupo Folias D’Arte.
Sérgio de Carvalho é
diretor da Companhia
do Latão e professor
de Dramaturgia e
Crítica Teatral da
Universidade de São
Paulo.
do que o Ministro da Cultura. E o exercem segundo os
critérios do marketing empresarial.
Diante da grandeza do fundo social mobilizado desde
1991 (da ordem de 1 bilhão apenas no ano de 2007) é possível
compreender o volume da gritaria da semana passada. A
defesa da Lei Rouanet tem por trás enormes interesses. Além
das instituições patrocinadoras, que chegaram ao ponto de se
transformar em gestores dos próprios projetos culturais, seus
recursos alimentam produções artísticas de índole comercial
(feitas para o agrado fácil), que passam a ganhar duas vezes –
na produção e na circulação – na medida em que os ingressos
continuam caríssimos.
Os maiores lucros, contudo, ficam com os
intermediários do sistema. Indiretamente, os maiores
beneficiados são as empresas de comunicação, cujos
anúncios pagos da área cultural constituem uma gigantesca
fonte de renda. E diretamente, os integrantes da casta dos
“captadores de recursos”, gente que embolsou de 10 a 20
por cento do bilhão captado no ano passado apenas por ter
acesso ao cafezinho das diretorias das empresas.
Como não há qualquer julgamento do mérito cultural
ou da relevância pública na atribuição dos certificados que
habilitam o produtor a obter patrocínio, a miraculosa Lei
Rouanet abriu as portas do país às mega-produções
internacionais, que ganham mais dinheiro aqui do que em
seus países de origem. O caso emblemático do Cirque du
Soleil que captou nove milhões de dinheiro público e vendia
ingressos à razão de 200 reais está longe de ser uma
exceção. Só em Las Vegas, base da companhia, isso soaria
como aberração. Aqui é uma normalidade viabilizada por
um sistema em que o Estado se exime de julgar qualidades
em nome do ideal liberal de tratar os agentes desiguais
como iguais e “conter o aparelhamento político da cultura”.
O pressuposto filosófico do debate foi revelado em
chave irônica pelo Secretário da Cultura do Estado de São
Paulo, João Sayad, banqueiro e intelectual. Declarou ele à
imprensa: “Antigamente, numa era religiosa, o natural era
coisa criada por Deus. Hoje, o natural é aquilo que dá
lucro.” Ao tentar defender a manutenção da Lei, para que
não predomine, na ausência de algum subsídio, o puro
mercado excludente, o Secretário parece proclamar a
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impotência do Estado e endossar a idéia da naturalidade (e,
portanto, imutabilidade) do império do capital privado sobre
qualquer coisa que no passado se chamou vida.
“Não lutemos contra uma realidade inevitável” é uma
fala dominante no mundo. Apareceu dias atrás no
depoimento do dramaturgo David Mamet, que decidiu
tomar partido do conservadorismo e parar de criticar o
governo de seu país quando entendeu que a América não
“era uma sala de aula ensinando valores, mas um mercado.”
O cartão de crédito como substituto da carteira de
identidade e os “traveller cheques” em lugar do passaporte
já são coisas que existem em muitos lados, só causando
escândalo quando os nossos estudantes de classe média são
barrados nos aeroportos da Europa. Mas será lúcido ou
triste o artista que se conforma a essa imposição totalitária?
Qualquer reforma da Lei Rouanet incapaz de impedir o
controle privado dos recursos públicos não faz sentido. Que
o governo brasileiro continue a incentivar a generosidade
humanista dos nossos empresários através da renúncia
fiscal, isso parece aceitável como elemento de contradição
do sistema. O enorme fundo público mobilizado deve,
contudo, ser distribuído segundo regras claras e
transparentes de concorrência pública, em que os projetos
artísticos e culturais tenham relevância para algo mais do
que a manutenção da lógica mercantil. O “aparelhamento
político da cultura” ainda pode ser questionado e combatido
em público. O desejo unilateral de um gerente de marketing
não. Mesmo sonhando com o liberalismo absoluto em que
as raposas e galinhas possam lutar à vontade numa rinha
toda ela “natural”, os agentes do mercado brasileiro são
completamente dependentes dos recursos públicos. O
governo Lula sempre foi tolerante com essa situação e
adquiriu o hábito de conciliar sempre, aumentando uma
rede de co-dependência que pouco tem servido para
proteger da queda os integrantes de seu governo.
As poucas tentativas críticas mais radicais para a área
cultural, como a de controlar com critérios públicos a
destinação feita pelas Estatais (maiores fontes dos recursos
destinados às artes) recuaram diante das ameaças da tropa
de choque ligada à mídia eletrônica. É patético perceber que
a velha tendência ao adocicamento do conflito, velha
herança das Casas Grandes, mantida através das vestes
modernas da nação globalizada e dos conluios entre
interesses privatistas, ainda impede a invenção de um
projeto efetivamente crítico, público e que imagine a cultura
como um direito de todos. Mas qualquer mudança exige, no
mínino, considerar a hipótese de que a realidade e o
mercado não são uma coisa só.
•
Ato Redemoinho/São Paulo, com apoio de outros Movimentos e da Cooperativa, Dia Internacional do Teatro.
1º SEMESTRE • 2008 • 27
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ALEXANDRE KRUG
Antes de mais
nada, facilitar o
acesso da maioria
Ato Redemoinho/São Paulo, Dia Internacional do Teatro.
Kil Abreu
A polêmica em torno da forma ideal de fomento ao
teatro brasileiro é o instante em que os desiguais assumem,
finalmente e por força das circunstâncias, a desigualdade.
Ao que parece o debate chegou a este ponto por absoluta
necessidade e pede posições que podem ser exemplares não
só para o ambiente teatral, mas para a discussão das
políticas culturais como um todo.
Ainda que se corra o risco das simplificações, pode-se
dizer que o processo que levou ao momento atual
comporta, de um lado, os agentes de um teatro “de
mercado”, que neste momento advogam a Lei Geral do
Teatro. São artistas e produtores que nos últimos anos
foram, bem ou mal, amparados mais generosamente pela
política de incentivo via renúncia fiscal, e que sugerem
agora a desburocratização do acesso aos benefícios da Lei e
o comprometimento real, mínimo que seja, do empresário,
até aqui o verdadeiro gestor dos recursos para a cultura.
A questão é que a Lei Rouanet, inspirada no mecenato,
nem de longe, e nem mesmo agora, coloca o empresário na
condição que se anuncia. O mecenas, como sabemos,
Kil Abreu é
jornalista, crítico e
pesquisador do
teatro. Foi diretor do
Departamento de
Teatro da Prefeitura
de São Paulo na
gestão de Marta
Suplicy.
Artigo publicado no
Caderno 2, de O
Estado de S.Paulo,
de 14/4/2008
acaba sendo o próprio Estado que, entretanto, não assume
a função de fazer as mediações necessárias. Delegada a
tarefa inteira ao mercado, às suas escolhas e às suas
dinâmicas, nestes anos já aprendemos o bastante, e
mansamente, que no Brasil o dinheiro público é correlato de
cultura privada. E com isso naturaliza-se mais uma forma
de exclusão. Cada vez que as contradições são expostas
aponta-se com mais clareza a parcialidade e a injustiça
operadas através da Lei.
Entretanto, muitos grupos e companhias de todo o País,
que foram escassamente subvencionados, se organizaram
nos últimos anos e conseguiram pautar a discussão a partir
de outros modelos de gestão, que incluem não só recursos
definidos em Lei, mas parâmetros mais democráticos de
escolha dos projetos e a previsão de retorno do
investimento em favor da população. A experiência da Lei
de Fomento ao Teatro, de São Paulo, inventa um paradigma
que, a despeito de atender apenas a uma parte dos artistas aqueles dedicados ao trabalho continuado - é exemplar no
capítulo que mais interessa: o do gerenciamento do dinheiro
público em benefício da cidade. A proposta da Lei de
Fomento ao teatro brasileiro, que agora também se discute,
segue estes parâmetros, que parecem mais justos, com o
ganho de alcançar outras demandas: a pesquisa artística,
mas também a produção e a circulação.
Quando essas duas posições se firmam, o primeiro
problema que se coloca, então, é o de que não é possível
tratar propósitos, meios e fins tão diferentes como se fossem
iguais. É preciso tomar partido e criar alternativas mais
avançadas. Há que se criar instrumentos que dêem conta de
alcançar a vocação política que o teatro carrega por natureza.
Para além do fato de atender a estes criadores e não aqueles o que, por si, já representa outro gritante descompasso - o
incentivo via renúncia fiscal deveria ser questionado antes de
tudo por não retornar publicamente o investimento público, e
para o usufruto da cidade, não apenas de uma parte dos
cidadãos. É preciso pensar a Lei como meio de fomento ao
teatro, mas isso significa, antes mesmo do espetáculo e da
discussão estética, facilitar o acesso da maioria. Do contrário
pode-se maquiar o que já está posto desta ou daquela
maneira. Será mais do mesmo.
•
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O Redemoinho e uma proposta de
política pública para o teatro
Conselho Nacional do Redemoinho
Diante do debate dos últimos dias entre um grupo de
produtores do eixo Rio-São Paulo e o Presidente da Funarte,
Celso Frateschi, acerca de mecanismos de financiamento
para o teatro através de incentivos fiscais concedidos às
empresas privadas pela Lei Rouanet, e da nova proposta
encaminhada com o nome de Lei Geral do Teatro, o
Redemoinho vem a público manifestar-se, acreditando ser um
importante interlocutor do segmento teatral no Brasil, já que
agrega aproximadamente setenta grupos teatrais e entidades
culturais provenientes de onze estados brasileiros.
Entendemos o teatro como elaboração, na esfera do
simbólico, do nosso depoimento crítico sobre a experiência
de viver numa sociedade em que, infelizmente, a cultura
tem se tornado mercadoria a serviço da dominação. Isso
exige, por parte do Estado, o reconhecimento do direito à
cultura como exercício crítico da cidadania, ou seja, a
negação dos valores da concorrência, da acumulação ou
concentração de renda, do preconceito e da exclusão.
Portanto, acreditamos que este debate entre Funarte e
produtores se desloca do cerne da questão a ser debatida no
momento cultural pelo qual passamos, ou seja, diante da
necessidade de o Estado Brasileiro assumir suas
responsabilidades republicanas no desenvolvimento de
políticas públicas contínuas para a cultura, políticas estas
realmente comprometidas com a liberdade de expressão,
com o exercício da cidadania, o que envolve, de uma
maneira ampla e descentralizada, os criadores teatrais de
todo o Brasil. O debate supracitado, no final das contas,
está focado na possibilidade do aumento do poder
concedido às empresas privadas, através da renúncia fiscal
(Lei Rouanet e Lei Geral do Teatro), para decidir quais
projetos teatrais devem ou não ser patrocinados.
Obviamente estas decisões são tomadas em função da
lógica do mercado e do marketing, que orientam as
estratégias das empresas privadas e contrariam as bases de
uma política pública de inclusão e cidadania culturais.
A posição do Redemoinho frente à Lei Rouanet (e por
conseguinte ao projeto de Lei Geral do Teatro) é clara: não
a entendemos como política pública para a cultura e,
especificamente para a linguagem teatral. Essa, ou essas
Leis de Incentivo se mostram concentradoras das
atividades teatrais nas grandes produções do eixo Rio/São
Paulo e privilegiam projetos de maior visibilidade no
mercado, portanto, representam apenas uma parte do
teatro feito no Brasil.
Enquanto Movimento Nacional, o Redemoinho não
pode ignorar esses dados recorrentes nas estatísticas do
Minc. Portanto,
insistimos na
importância de
um mecanismo
que favoreça o
crescimento do
teatro em todo o
território
nacional.
Para marcar
publicamente
nossa posição,
dia 18 de março
passado, na
audiência pública
realizada no
Senado,
coordenada pela
Comissão de
Educação,
Cultura e Esportes, o Redemoinho se fez presente para
divulgar sua proposta de Lei e iniciar uma discussão
maior acerca do fomento à atividade teatral no país. Na
ocasião foi encaminhada, por intermédio do senador
Eduardo Suplicy (PT-SP), a Lei Programa de Fomento ao
Teatro Brasileiro.
Além desta ação, realizamos um ato público, de âmbito
nacional, no dia 27 de março de 2008 – dia internacional do
teatro – quando foi lançada a Carta de Porto Alegre. Esse
documento foi lido em diferentes cidades do Brasil, durante
todo um dia de celebração e manifestação política
organizada pelo Redemoinho e outras importantes
entidades representativas.
Esta Lei – Programa de Fomento ao Teatro Brasileiro,
antes de ser tornada pública, foi amplamente discutida,
modificada e assumida pelos diversos grupos que
compõem o Movimento, e apresenta um novo paradigma
para o financiamento da cultura: investimento direto do
poder público, através de editais nacionais, amplos e
democráticos, que contemplem a circulação, a produção
de espetáculos e a manutenção de espaços de
compartilhamento e pesquisa teatrais.
Certos de que podemos colaborar com a discussão
sobre o fazer teatral no país e que a Lei Federal
Programa de Fomento ao Teatro Brasileiro poderá ser
uma forma mais republicana de estimular o
fortalecimento do teatro feito em cada cidade brasileira,
colocamo-nos como interlocutores e pedimos atenção as
nossas propostas e idéias.
O Movimento Brasileiro de Espaços de
Criação, Compartilhamento e Pesquisa
Teatral teve sua origem num encontro
realizado pelo Galpão Cine Horto, em Belo
Horizonte - MG, em dezembro de 2004. Ao
final desse encontro, os grupos
participantes criaram uma rede nacional
voltada para a troca de experiências no
âmbito artístico-cultural, em busca do
fortalecimento mútuo e da criação de
projetos comuns. Em 2005, o encontro
permaneceu em Belo Horizonte e, em 2006,
seguiu para Campinas - SP e dali para Porto
Alegre - RS, em dezembro de 2007, onde foi
realizado o quarto encontro nacional, na
Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui
Traveiz. Em 2008, o encontro acontecerá em
Salvador - BA, no Teatro Vila Velha.
O Conselho
Nacional do
Redemoinho Movimento Brasileiro
de Espaços de
Criação,
Compartilhamento e
Pesquisa Teatral,
eleito durante
encontro ocorrido em
dezembro de 2007
em Porto Alegre, é
composto por Tânia
Farias (Ói Nóis Aqui
Traveiz/Porto
Alegre), Marcelo
Bones (Andante/
Belo Horizonte),
José Fernando de
Azevedo
(Narradores/São
Paulo), Fernando
Yamamoto (Clowns
de Shakespeare/
Natal), e seu atual
secretário é Gordo
Neto (Vila Velha/
Salvador).
•
1º SEMESTRE • 2008 • 29
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CONVERSA COM O FILÓSOFO PAULO ARANTES
“A tradição crítica brasileira migrou e
renasce na cena redesenhada por coletivos
de pesquisa e intervenção teatral”
30 • CAMARIM • Nº 41
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Beth Néspoli
Filósofo graduado pela Universidade de São Paulo
(USP) e doutor em Filosofia pela Universidade de Nanterre,
na França, Paulo Eduardo Arantes é um intelectual cujo
pensamento ultrapassa as fronteiras do mundo acadêmico.
Suas idéias provocam admiração, ou rejeição, em público
bem mais amplo, seja por meio dos livros que publicou,
como Ressentimento da Dialética (1996) e Zero à Esquerda
(Conrad, 2004) ou o mais recente Extinção (Boitempo
Editoral, 2007), seja por meio de artigos ou palestras.
Professor aposentado do Departamento de Filosofia da
USP, onde lecionou de 1968 a 1998, é bastante conhecida sua
faceta de crítico ferrenho do capitalismo, sobretudo em sua
nova configuração pós-mundialização, ainda mais destrutiva
em seus desdobramentos, como o desmanche dos vínculos
trabalhistas ou as guerras do novo Imperialismo, temas
dissecados em seu último livro. “Diante do fenômeno da
explosão de violência, jamais vista no passado recente dos
anos de crescimento econômico do pós-guerra, não se fala
em coabitação paradoxal entre democracia e violência, mas
da descoberta desconcertante de que algo como um
capitalismo com lei e cidadania bem poderia ter sido não mais
do que uma miragem de trinta anos”, escreve em Extinção.
A entrevista que segue, no entanto, busca revelar uma
outra faceta desse crítico: seu interesse pela cena teatral.
Não se trata ‘apenas’ de ser um espectador assíduo na platéia
do teatro de grupo - a vertente teatral que acompanha. Mais
que isso, Paulo Arantes participa ativamente de debates,
palestras e encontros da classe teatral.
Ele foi, por exemplo, um dos palestrantes do seminário
promovido pelo grupo Folias para preparar o espetáculo
Orestéia. Levou seus alunos para a sede da Cia. do Feijão
para debater o espetáculo Nonada. Em maio, o Estado
acompanhou sua palestra “O Teatro e a Cidade”, na
programação do evento Próximo Ato, no Itaú Cultural.
Na entrevista que se segue, ele analisa o trabalho do
teatro de grupo a partir de idéias desenvolvidas em seu livro,
como a precarização do trabalho. “Se a fábrica era palco de
conflitos em teatros como o Arena, na década de 60,
também me parece claro que o novo chão de fábrica seja o
próprio território conflagrado da cidade, daí a relação
orgânica do teatro de grupo com o espaço urbano, vivido
agora em regime de urgência.” E avalia ainda que a
inquietação intelectual se deslocou da universidade para a
ribalta dos grupos. Rigoroso, fez questão que as perguntas
fossem formuladas e respondidas por escrito.
Entrevista publica no
Caderno 2, do Jornal
O Estado de São
Paulo, em 14 de Julho
de 2007.
1º SEMESTRE • 2008 • 31
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ACHILES LUCIANO
Ato Redemoinho/
São Paulo, Dia
Internacional do
Teatro.
Você vem acompanhando de pe
vimento de
perr to do mo
movimento
upos de São P
aulo
grupos
Paulo
aulo.. Quando e por que
teatro de gr
começo
u esse inte
começou
interresse?
Acho que a ficha começou a cair lá pelo fim dos anos
90. Não foi uma iluminação espontânea. O fato de ter
muitos amigos envolvidos com teatro acabou induzindo a
percepção de que um fenômeno cultural novo estava em
marcha naquela proliferação inusitada de grupos teatrais.
Além do mais, com uma forte presença de atores, diretores
e dramaturgos saídos da universidade, intelectualizados e
politizados a ponto de já não se sentirem mais à vontade no
seu meio de origem, com o qual entretanto nem sempre
rompem, muitos continuam estudando, ensinando, pois não
dá para dispensar o salário, mesmo achatado, ou a bolsa
ocasional de sobrevivência. Faz sentido a transição da atual
miséria acadêmica para a penúria crônica do trabalho
artístico independente, hoje agravada pela escalada do
teatro empresarial alavancado por incentivo fiscal. Isso
quanto à via de acesso. Nem de longe estou querendo
atribuir a vitalidade do movimento a um improvável impulso
criativo de raiz acadêmica, quase uma contradição em
termos. O interesse então me parece óbvio. Ao lado da
explosão do hip-hop, com o qual tem muito a ver malgrado
as diferenças de escala e classe, não sou por certo o único a
reconhecer no atual renascimento do teatro de grupo o fato
cultural público mais significativo hoje em São Paulo. Falase em mais de 500 coletivos, por assim dizer, dando combate
no front cultural que se abriu com a ofensiva privatizante.
Não são só os números que impressionam, mas também a
qualidades das encenações, cuja contundência surpreende,
ainda mais quando associada a uma ocupação inédita de
espaços os mais inesperados da cidade, gerando pelo menos o
desenho de uma mistura social que ninguém planejou,
simplesmente está acontecendo como efeito colateral das
segregações e hierarquias que o novo estado do mundo vai
multiplicando. Uma indústria cara como o cinema não tem
esta capilaridade. Por mais motivador que seja um filme da
atual retomada, sua projeção não aglutina como a inserção
contínua de um grupo teatral numa comunidade. Que não
precisa ser necessariamente periférica. Há uma outra
margem no centro.
A Praça Roosevelt, por exemplo, não seria o que é
hoje se as suas salas fossem de cinema, sem falar que não
corre o risco de ser gentrificada e ver seus moradores e
freqüentadores enxotados, pois a nova classe teatral de
que estamos falando é tudo, menos uma isca perfumada.
Decididamente, o teatro de grupo não é uma “indústria
criativa”, como são designados com ironia involuntária, no
jargão gerencial dos agentes estatais ou corporativos, o
sistema de eventos e equipamentos culturais cujo
patrocínio gera uma espécie de renda da imagem, cujo
fluxo, por sua vez, obviamente não reverte para os
trabalhadores do setor. No dia em que os assalariados e
estafados do show business reconhecerem os seus pares
na cidade oculta dos grupos, não pouca coisa vai rolar.
Na sua palestra O Teatro e a Cidade você def
iniu o
definiu
upo como um mo
vimento rrelevante
elevante
grupo
movimento
elevante,, estética e
teatro de gr
politicamente
politicamente,, tendo inclusive ‘arrancado’ uma lei. Qual a
impor
tância, e os problemas
omento?
importância,
problemas,, da polêmica Lei de F
Fomento?
Em 1990, o Estado saiu de cena, deixando atrás de si um
cenário de ruínas. Ou melhor, “nós” é que saímos de cena.
Não que o script anterior fosse brilhante, mas o Estado
estava lá porque a livre iniciativa, como diziam os nossos
avós, não era assim tão livre nem estava muito disposta a
tomar qualquer iniciativa mais enérgica por conta própria. O
jogo se inverteu: a razão de ser do Estado é a de intervir
vigorosamente para que haja cada vez mais mercado, e não
menos. Por isso, caiu a fantasia da reserva cultural, espaço
recolonizado como uma outra fronteira de negócios por meio
da alienação de parcelas do fundo público, como nos bons
velhos tempos da acumulação primitiva. Contra essa
regressão, literalmente bárbara, finalmente reagiram os
grupos teatrais de São Paulo, tomando, enfim, consciência de
que constituíam de fato um movimento. Como notou
Mariângela Alves de Lima (crítica teatral do Estado), pela
primeira vez as artes cênicas se articularam como um setor
social. Nada a ver com a mera crispação defensiva de uma
categoria profissional. Como, afinal, foram à luta e
arrancaram uma Lei de Fomento de governantes
embrutecidos pela lex mercatoria, pode-se dizer que um
limiar histórico foi transposto, por irrisório que seja.
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ACHILES LUCIANO
Nos tempos que correm não é pouca coisa converter
consciência artística em protagonismo político. Foi uma
vitória conceitual também, pois além de expor o caráter
obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto
para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho
teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e
espetáculos. Nele se encontram, indissociados, invenção na
sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na
imaginação pública. Quando essas três dimensões
convergem para aglutinar uma platéia que prescinda do
guichê, o teatro de grupo acontece. Mesmo quem
honestamente acredita que está fazendo apenas (boa)
pesquisa de linguagem, de fato está acionando toda essa
dinâmica. O curioso nisso tudo, vistas as coisas do ângulo
de um observador vindo de uma faculdade de outros
tempos, é que o espírito da lei lembra muito o de uma
agência pública de amparo à pesquisa. Reativou-se,
inclusive, a idéia de residência. É bem verdade que os
gestores começaram a cair em si e os editais vão se
tornando cada vez mais restritivos. Corrijo-me: mais
curioso, ainda, seria o caso de dizer: lembraria, caso os
CNPqs da vida não transitassem na mão contrária,
passando a enfatizar cada vez mais o produto e quase nada
o processo de irradiação cultural próprio da pesquisa
autônoma; política produtivista de eventos, em suma, é o
que agora também se espera de um infeliz condenado a
justificar assim sua mera existência intelectual: o ato
docente se degrada e a corrosão do caráter é uma questão
de tempo. Por isso, são tão animadores os sinais de vida
emitidos pelos mais variados processos de pesquisa em
curso nos grupos mais imbuídos desse imperativo, aliás,
próprio de um gênero público como o teatro. É possível que
minha visão esteja ainda contaminada pela lembrança do
tempo em que a universidade pensava, mas é forte o
sentimento de que a tradição crítica brasileira migrou e
renasce, atualmente, na cena redesenhada por esses
coletivos de pesquisa e intervenção. Um paralelo não me
parece fortuito: não sei de outro lugar hoje onde se estude
com tanto empenho, e por assim dizer em tempo real, Caio
Prado, Celso Furtado, etc., como nas escolas do MST que,
por sua vez, também aposta todas suas fichas na formação
de “pesquisadores” dessa mesma realidade que recomeçou a
andar para trás. Que, por seu turno, encorpasse com
substância social nova, o movimento de teatro de grupo era
questão de tempo e coerência, de um e outro, aliás.
É cada vez mais com
um a pr
esença de prof
essor
es em
comum
presença
professor
essores
vidos pelos gr
upos
ece
promovidos
grupos
upos,, o que par
parece
ciclos de debates promo
sinal de rreencontro
eencontro entr
entree a academia o teatro
teatro,, como já
ocorr
eg
alar em
ocorree ra na década de 60. Mas você ch
cheg
egaa a ffalar
desencontro entr
or quê?
entree a academia e o teatro
teatro.. P
Por
Que professores sejam eventualmente convocados, no
âmbito de suas respectivas especialidades, é ponto a favor
do ânimo investigativo dos grupos. São, no entanto,
presenças simpáticas, porém avulsas. É só reparar de
quem parte a iniciativa (dos grupos). A evocação dos anos
60 é apenas isso, uma evocação para efeito de raciocínio.
O desencontro de hoje não poderia ser maior. No
momento em que os trabalhadores do teatro se mobilizam
na forma de uma inquieta consciência coletiva em
confronto com a banalização do fazer artístico, a condição
intelectual na universidade beira a inconsciência: faz
tempo que deixamos de ser uma categoria social com
expressão política própria, e a universidade, uma
instituição. Somos uma organização dotada de
gerenciamento moderno, que requer, por isso mesmo,
“autonomia”, que aliás, o governador violou por pura
inépcia, pensando fazer caixa com a finança alheia, no
caso, a alta burocracia de um sistema de fundações e
linhas de financiamento personalizadas que, por inércia
vocabular, ainda chamamos de universidade, mas que a
grande massa estudantil encara com razão, na condição de
usuários ansiosos, pois o primeiro emprego precário está
no horizonte da maioria, como mera prestadora de
serviços educacionais. Como esperar desse reino animal
do espírito, incapaz sequer de entender as razões dos
estudantes que lhe prestaram involuntariamente o serviço
de tirar do fogo a castanha da autonomia da sua contamovimento, que tome consciência do despertar da nova
vida teatral? Salvo as manifestações avulsas de que falei,
me parecem dois mundos gravitando em órbitas
incompatíveis.
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ACHILES LUCIANO
Ato Redemoinho/
São Paulo, Dia
Internacional do
Teatro: o Theatro
Municipal
embalado.
Quais se
riam essas órbitas?
seriam
À cegueira catatônica da universidade corresponde a
consciência alerta e hiperativa das entidades, que se
autonomearam representantes de uma invenção recente, a
sociedade civil. Assim, um encontro de grupos teatrais
independentes pode perfeitamente ser catalisado pelo
departamento de responsabilidade cultural de um banco,
por exemplo. Ninguém estranha mais essa anomalia,
contabilizada como um fato da vida. O desencontro que
está nos ocupando é parte desse conjunto de
incongruências. Mas, por incrível que pareça, tanto a
ossificação da inteligência universitária, outrora princípio
ativo da cultura da cidade, quanto a proliferação dos novos
coletivos teatrais são respostas simétricas, a primeira, mera
adaptação passiva, a segunda, inconformada, à mesma
mutação histórica: o Brasil, hoje, não é mais a sociedade
nacional que nunca chegou a ser, mas uma sociedade
pautada pela rasa e violenta integração sistêmica do
mercado, mais o poder violador de normas que lhe cabe.
Não há novidade nisso, já fomos assim no princípio:
dispersos num território banalizado, assentamentos
humanos governados pelo nexo exclusivo da exploração
econômica e da dominação política. O novo ciclo do
agronegócio que o diga. A reapresentação selvagem desse
marco zero me parece, aliás, ser o tema de um filme como
Baixio das Bestas, sadismo colonial incluído. Poderia
enumerar um razoável número de encenações de alta
voltagem artística, cujo foco é esse novo “impasse do
inorgânico”. Mas voltemos ao nosso termo de comparação.
Ainda nesse debate
u um contraponto entr
debate,, você traço
traçou
entree
o ‘cenário’ de atuação dos gr
upos da década de 60 (palco
grupos
(palco,,
fábrica, unive
upos contemporâneos (palco
univerrsidade) e dos gr
grupos
e cidade). Ao ffim,
im, disse que os no
vos gr
upos estariam
novos
grupos
revelando os “componentes ativos do desmanch
e”, o
desmanche”,
“protagonismo dos excluídos”. P
ode
ria rretomar
etomar esse
Pode
oderia
contraponto e diz
riam esses protagonistas?
dizee r quais se
seriam
A vitalidade teatral dos anos 60, à qual a Universidade
respondeu à altura, era ascensional. Por paradoxal que
possa parecer, a surpreendente vitalidade de agora se deve
ao poder de revelação de um desastre nacional, ao qual a
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universidade nesse meio tempo se ajustou, tornando o
pensamento um apêndice dispensável. Numa sociedade
nacional do trabalho, como a que ameaçou acontecer no
Brasil meio século atrás, a política de classe lastreou um
ciclo de instituições aparentadas, como as duas que estão
nos interessando no momento e uma terceira que ainda
não entrou em nosso enredo. Continuemos em São Paulo:
a Faculdade de Filosofia e a instituição teatro moderno, se
pudermos designar assim a função de atualização cultural
necessária do TBC, têm a mesma idade ideológica, entre
outras afinidades menos óbvias. Quando o viés
antioligárquico original da faculdade se extremou, topou
no seu caminho com uma dissidência análoga no Teatro de
Arena, acrescida à ruptura estética, a virada explícita
numa outra arena, a da luta de classes: pelo menos no
plano da metáfora teatral, a Fábrica entrava em cena, uma
outra instituição disciplinadora decisiva nessa mesma
sociedade nacional de classes. Por um momento de real
esclarecimento das forças em confronto - descontada uma
boa dose de fantasia política indispensável -, gente de
teatro, professores e estudantes, partidos operários e
ebulição sindical formaram na mesma frente única de
ruptura possível. O resto se sabe. Uma ditadura depois,
seguida de uma Abertura decepcionante, um encaixe
desconcertante entre direita repaginada e esquerda idem,
deixaram a pista livre para um novo ethos capitalista
reduzir a pó a moldura institucional do período anterior. A
Fábrica, fracionada pelas cadeias produtivas globais, saiu
de cena, e com ela a consciência de classe de uma
multidão de indivíduos entregues ao deus-dará de uma
exploração para a qual ainda não se tem nome. A
engrenagem infernal dessa ciranda da viração me parece
estar na origem de uma resposta coletiva como o teatro de
grupo, bem como na raiz do silêncio político da
universidade. Pensando na deambulação perene desses
novos condenados da terra, também me parece claro que
o novo chão de fábrica seja o próprio território conflagrado
da cidade, daí a relação orgânica do teatro de grupo com o
espaço urbano, vivido agora em regime de urgência. Por
isso, uma outra cena de rua é novamente a célula geradora
de um leque expressivo das poéticas que animam esse
vasto front cultural, que vem a ser o teatro de grupo.
Todo um ciclo de intervenções do Núcleo Bartolomeu
de Depoimentos transcorre justamente sob o signo dessa
palavra de ordem: urgência nas ruas. Uma vitalidade de
fim de linha, perto da qual a boa lembrança da anterior, se
obviamente não empalidece, longe disso, se reveste
daquele tom róseo com que os sociólogos amedrontados
de hoje evocam a antiga luta de classes, como uma espécie
de linha auxiliar do processo civilizador.
E como os gr
upos rrevelam
evelam os no
vos protagonistas?
grupos
novos
Se fosse possível e desejável resumir numa única
fórmula o destino e o caráter do teatro de grupo hoje, diria
que é o teatro desse desmanche da sociedade nacional. Ou
por outra, mais exatamente, ele é o teatro do desmanche
que já ocorreu e está sendo administrado por um outro e
inédito pacto de dominação. A certa altura da Orestéia,
que está sendo recontada agora pelo pessoal do Folias, um
corifeu-clown anuncia que sua geração não se julga mais
predestinada a refazer o mundo, mas que sua tarefa maior
consiste justamente em “impedir que o mundo se desfaça”.
É isso aí. Numa sociedade que se reproduz segundo a
lógica da desintegração, o horizonte de expectativas, que
antes empurrava para frente o tempo social, se sobrepôs
hoje ao campo da experiência presente, daí o caráter
dramático de uma conjuntura que não passa. Daí também a
Vertigem: o grupo teatral que leva esse nome já antecipou a
cena com o seu simples enunciado. E por aí vamos, numa
sociedade totalmente diferente da anterior. Pouco importa
se o Brasil-identidade continua inconfundível, aliás uma
marca de sucesso. Uma nação póstuma, como sugere a
última montagem da Cia. do Feijão.
Salvo na sua dimensão cronológica trivial, uma
sociedade rigorosamente sem futuro, como todas as
sociedade securitárias de risco, em que a urgência se
tornou a principal unidade política de medida temporal. É
só olhar para a conjuntura hiperdramática do aquecimento
global, uma conjuntura emergencial de um século! Ou
para algumas produções arrasa quarteirão da
cinematografia brasileira recente, para perceber com que
óbvia intensidade essa entronização estrutural do estado
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de urgência se converte em espetáculo, no caso, o
espetáculo da fratura-social-brasileira-clamando-porverdade-e-reconciliação, etc. Pois o trabalho artístico do
teatro de grupo abre caminho exatamente na contramão
desse regime do espetáculo, o qual é antes de tudo um
tremendo recurso de poder: o espetáculo humanitário do
social, o espetáculo securitário do traficante sem rosto,
etc. Mas, também, a junção da viração do pobre com o
espetáculo gratuito oferecido pela exposição na mídia: não
por acaso este nó que nos corta o fôlego está em cena nas
intervenções de vários grupos, espetáculo no DNA dos
espoliados é a droga real.
Há gr
upos teatrais que acabam por contrib
uir para
grupos
contribuir
rigosas’ (para usar a sua expr
essão
perigosas’
expressão
‘amansar as classes pe
no livro Extinção com rrelação
elação ao go
ve
gove
verr no Lula)? O que
há de semelhanças e dif
difee renças nessa ve
verr tente
tente,, teatro de
gr
upo
grupo
upo,, que você vem acompanhando?
O mesmo desmanche pós-nacional que suscitou a
resposta artística do teatro de grupo, ao lhe fornecer
igualmente o lastro social de seus materiais, ameaça
dissolver essa resposta no mar de uma indistinção fatal.
Refiro-me à gestão das populações vulneráveis, cujo
imenso cadastro é o inventário dos riscos que pairam sobre
uma sociedade da qual ora se cuida pela válvula do
famigerado social, ora se espreme pela mais crua coerção,
na trilha da expansão incontrolável de um poder punitivo
difuso. A escala inédita do teatro de grupo também se
explica pela pressão do subsolo dessa nova sociedade a um
tempo assistida e descartada. Nunca tanta gente foi
devidamente estimulada a fazer algum tipo de “teatro”
para não “dançar”, ou vice-versa. Estão aí os coreógrafos
do terceiro setor. As oficinas disto e daquilo, os programas
assim e assado, e agora a última onda do modelo Bogotá/
Medellin, etc. Sem falar na ambígua estilização hip-hop.
Mas é essa a fronteira, o território do conflito anestesiado
pela indistinção, mas onde só maluco riscaria um fósforo
para, afinal, enxergar quem é quem. Como nossos amigos
são antes de tudo artistas, esse nó cego vai para a sala de
ensaio. Mas como o teatro ainda é um gênero público,
quem sabe não ressuscita como arena política? Para isso
precisa saber com quem se agrupar, identificar os
protagonistas de uma emergência do contra, por assim
dizer. Como assim o autoriza a natureza específica de sua
linguagem, o teatro de grupo hip-hop, por exemplo, não se
acanha de interpelar em cena aberta o seu público virtual.
Redenção? Contenção?
A crise do PT está dir
etamente lig
ada ao desmanch
diretamente
ligada
desmanchee
da classe trabalhadora, já que essa eera
ra a base sobr
sobree o
qual ffoi
oi fundado? Evo Morales e Hugo Chávez
repr
esentariam as fforças
orças do desmanch
e?
epresentariam
desmanche?
O ciclo político durante o qual o PT foi hegemônico na
esquerda brasileira foi contemporâneo do desmonte
metódico do meio século desenvolvimentista do período
anterior. Porém, esse partido realmente novo nunca
chegou a se dar conta da desagregação econômica e social
que se desenrolava às suas costas, enquanto tocava com
sucesso eleitoral crescente seu projeto original, não de
uma ruptura que a rigor nunca prometeu, mas de uma
incorporação da grande massa espoliada brasileira ao
mundo dos direitos e da cidadania ativa - se bem-sucedida,
uma tremenda reviravolta nos padrões históricos de
dominação neste país. Quando esse projeto
verdadeiramente radical, porém não socialista estrito
senso, deveria se consumar, verificou-se que nos
deparávamos com uma outra sociedade, desmanchada em
seus nexos essenciais, a começar pelo mais fundamental
deles, o do trabalho, e que, no entanto, os quadros petistas
já vinham administrando, mais ou menos por instinto
político de sobrevivência, segundo os métodos gerenciais
da governança corporativa. Sem o saber, já eram os
agentes passivos do desmanche em curso, enquanto a
direita tucana operava do mesmo modo, e ativamente, em
nome do grande capital privatizante. Acabaram se
juntando no mesmo condomínio. A velocidade do processo
foi, no entanto, diferente no restante da América do Sul.
Chávez, depois Morales, depois, etc. reagem no calor da
hora e sem nenhuma retaguarda política, a um desastre
sem precedentes, a começar pela derrocada criminosa de
suas respectivas elites dirigentes: porém reagem com um
nacionalismo fiscal de emergência e, como tal, em
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ALEXANDRE KRUG
Ato Redemoinho/
São Paulo, Dia
Internacional do
Teatro.
compasso de espera tangido de crise
em crise. Já a nossa veio para se
perpetuar numa espécie de desgraça
de baixa intensidade.
furiosos, dizendo ‘queremos fazer
teatro, não somos ONG, não
queremos fazer trabalho social’. Mas
não dá mais para dissociar. Claro, esse
trabalho social está degradado,
aviltado, virou Charity, estação
filantrópica. É assim que funciona.
Mas se não passar com esse canal
não chega a lugar nenhum. Não dá
para chegar, fincar a bandeira com a
foice e o martelo e começar a
politização, acabou, esse ciclo
acabou. Para chegar ao Capão
Redondo, tem que negociar com dez
entidades, porque o público está lá.
Que não são entidades mafiosas;
claro, tem assistencialismo,
clientelismo, de tudo quanto é jeito.
Mas o teatro de grupo vai encontrar
ali um público já organizado. E não dá
para passar por cima disso. Não vai
fazer teatro para o cara que está no
crack, não dá para fazer Orestéia para
eles. Teatro de qualidade já estão
fazendo mesmo e aí? Para quem?
Estão no limiar político, então tem de
passar por aí, pelos movimentos
sociais. Por isso falei do
“protagonismo”, as aspas deveriam
estar mais visíveis, desse desmanche.
É um protagonismo tanto no sentido
administrado quanto na possível
intervenção política por esse canal - é
por onde está indo a sociedade. As
empresas e os partidos estão lá
gerindo isso. Não dá para entrar com
uma cunha lá dentro e encontrar o
público lá na frente. E é óbvio que
ninguém está fazendo Orestéia de
graça, esse teatro precisa encontrar
seu público.
tigo “Bem-vindos ao
No ar
artigo
eal”, publicado
deserr to brasileiro do rreal”,
dese
no seu livro Extinção
Extinção,, você diz que
dá para desconf
iar do propalado
desconfiar
“vazio político” justamente pela
quantidade oou
u qualidade das
‘lamentações’ pela ‘despolitização’ da
sociedade
sociedade.. E diz (pág
(pág.. 276) que
“estamos car
ecidos mesmo é da
carecidos
pro
vidência contrária, de uma crítica
providência
em rregra
egra da política ee,, em função
dela, rreorg
eorg
anizar nossa imaginação
eorganizar
imaginação,,
extraviada ffaz
az tempo no me
rcado das
mercado
responsabilidades públicas”. Há
saída, então? Dá para imaginar uma
reorg
anização da política?
eorganização
Acho que não depende do teatro,
claro, mas é como se parcela
significativa do movimento teatral
estivesse se preparando para uma
virada política. Sabendo ou não,
planejando ou não planejando, é como
se estivessem numa espécie de
antevéspera do que vai acontecer,
mesmo com a ducha fria que foi a
decepção com o Lula, que já está
metabolizada, é página virada. Eu
sinto que o movimento teatral é como
se fosse uma espécie de arquipélago
de pequenos grupos com capacidade
de intervenção pública, que esperam
um momento para se aglutinar, se
aparecer um movimento que tenha
envergadura política para propor uma
alternativa. Isso pode acontecer.
Acho que está no limiar. Muitos ficam
•
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VALTER CAMPANATO
MST: Teatro e Reforma Agrária
Teatro Procissão durante a Marcha Nacional
Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa
do Assaré
Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente
revolucionários devem transferir ao povo
os meios de produção teatral, para que o próprio povo os
utilize, à sua maneira e para os seus fins.
O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la.
Augusto Boal
Quando escutamos que o projeto de Reforma Agrária
defendido pelo MST é radical, há duas possibilidades de
interpretação distintas para a afirmação. A interpretação
corrente na grande imprensa adota a linha depreciativa,
associando a palavra “radical” a extremismo político, de
caráter inconseqüente e desordeiro. A outra perspectiva é a
que se faz fiel ao sentido semântico da palavra “radical”,
como um projeto de Reforma Agrária que se propõe ir à raiz
do problema, questionando os pilares de estruturação do
sistema agrário do país, de caráter monopolista e monocultor
destinado à exportação, de forte traço autoritário e
superexplorador no que concerne às relações de trabalho.
O MST compreende que a luta pela Reforma Agrária
não se resume à conquista da terra para que nela os
camponeses possam plantar. Atualmente a Reforma Agrária
se tornou mais complexa com a forte presença dos capitais
estrangeiros, das transnacionais e grandes grupos
econômicos que controlam a agricultura brasileira. A
concepção clássica da Reforma Agrária como um meio de
desenvolvimento do mercado interno através da
democratização do acesso à terra não corresponde às
formas atuais de acumulação capitalista. O centro da
acumulação se transferiu para o mercado financeiro e o
capital internacional. É a aliança entre o capital financeiro e
a monocultura monopolista para exportação a lógica
econômica e política da agricultura brasileira.
Entendemos que não há perspectiva emancipatória com
a manutenção do sistema regido pelas leis do capital. Ao
assumirmos a radicalidade do projeto de Reforma Agrária,
assumimos a perspectiva anti-sistêmica. Estamos falando de
um projeto que priorize a descentralização da propriedade
privada e viabilize um novo modelo de produção e
sociedade. Um projeto de Reforma Agrária que reestruture
a totalidade da produção da vida social, o que implica novos
valores, novos significados e o enfrentamento à hegemonia
do capital. Hegemonia esta que se configura pela
propriedade dos meios de produção, pelo controle do Estado
e pelo monopólio dos meios de comunicação.
Contra o monopólio dos meios de representação da
“realidade”, um projeto de transformação precisa se
contrapor com técnicas e linguagens capazes de colocar em
xeque as formas de dominação, gerar alternativas coletivas,
apontar caminhos para outras formas de organização social.
Para a efetivação de um projeto de Reforma Agrária de
cunho socialista seria preciso assumir a batalha também no
front da cultura, qualificando militantes técnica e
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politicamente para iniciar um processo de construção coletiva
de um imaginário descolonizado e livre dos valores mercantis.
Conscientes de que a efetivação de um projeto de
Reforma Agrária radical implica a socialização da terra e a
construção de uma nova forma de sociedade, e que isso não
se realizará sem a eliminação dos latifúndios da
comunicação, da educação e da cultura, é que se constituiu
o Coletivo de Cultura do MST e a Brigada Nacional de
Teatro do MST Patativa do Assaré.
Uma vez constituídos os primeiros grupos, a percepção
efetiva de que a produção cultural pode assumir formas de
intervenção política nos levou a orientar nossas produções
para o sentido do confronto na luta de classes, e para isso
passamos a priorizar as alianças políticas e artísticas que
priorizem a socialização, o compartilhamento e o
intercâmbio dos meios de produção da linguagem teatral. E
aprendemos com o processo que o potencial político de
nossa intervenção artístico-cultural depende da apropriação
das formas críticas de representação da realidade.
Após sete anos a Brigada Nacional Patativa do Assaré
reuniu na publicação Teatro e transformação social (2007)
dezenove peças produzidas pelo seu elenco nacional e por
alguns dos mais de trinta coletivos teatrais do MST a ela
ligados. O texto a seguir equivale a parte da apresentação
desse material.
Estas primeiras etapas da Brigada foram acompanhas
de oficinas regionais, estaduais e de grandes regiões, em
cursos, encontros e seminários. Vários grupos se formaram
neste período: Ocuparte (ES), Mário Lago (SP), Velho
Chico (SE), Utopia (MS), Águias da Fronteira (MS),
Raízes Camponesas (MS), Mensageiros da Cultura (MS),
Frutos da Terra (MS), Lamarca da Cultura (MS), Filhos da
Cultura (MS), Zumbuzeiro (SE), Mandacaru (SE),
Quixabeira (SE), Brigada Semeadores (DF), Grupo do
assentamento Florestan Fernandes (DF), Filhos da Mãe...
Terra (SP), Arte Camponesa (RO), Força da Terra (RJ) e
Peça pro povo (RS).
Na experiência dos trabalhos realizados com estes
grupos nesta primeira fase da Brigada, caracterizada
principalmente pelas técnicas do Teatro Fórum, nos
defrontamos com dificuldades de abordagem de
determinados temas e assuntos. Com o desenvolvimento do
nosso processo de formação, e constatadas estas
dificuldades iniciais, passamos a estudar outras formas
teatrais. Em fevereiro de 2004, em pleno carnaval carioca,
iniciamos nossos estudos de teatro épico, sobre formas e
teoria dos gêneros com Iná Camargo Costa. Em junho de
2004, com o objetivo de conhecer e se apropriar dos
procedimentos do teatro épico, foi realizada em Brasília uma
oficina coordenada pelo grupo paulista Teatro de
Narradores e organizada pelo grupo candango O avesso da
Máscara, com participantes do MST do DF/Entorno e do
Mato Grosso do Sul. Em outubro de 2004 foi realizada
oficina complementar com os 7 grupos do MST/MS.
Em fevereiro de 2005, após a quinta etapa de
formação da Brigada Nacional do MST com o CTO, em
que foram aprofundados os estudos de técnicas que já
vinham sendo trabalhadas, como Teatro Jornal, Teatro
Invisível e o Teatro Épico, a Brigada Patativa do Assaré
organizou as oficinas de grande região para a preparação
do Teatro Procissão. Na oficina da região sul foi formado o
Coletivo SaciSul de Teatro, que contou com a colaboração
do grupo Ói Nóiz Aqui Traveiz (RS). Logo depois, no
Paraná, seria formado o coletivo estadual Gralha Azul. Na
oficina da região sudeste a contribuição foi da Companhia
do Latão (SP) e do Teatro de Narradores (SP). A região
Histórico da Brigada Patativa do Assaré
A Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré
nasceu em junho de 2001, no Rio de Janeiro, durante a
realização da segunda etapa nacional de formação de
curingas com Augusto Boal e o Centro do Teatro do
Oprimido - CTO. A parceria estabelecida entre o MST e o
CTO previa o treinamento de uma turma de militantes de
vários setores e estados nas técnicas do Teatro do Oprimido
para que estes pudessem ministrar oficinas e formar grupos
nos acampamentos, assentamentos e encontros do
Movimento em todo o país. As três primeiras etapas de
formação com o CTO aconteceram durante o ano de 2001,
nos meses de fevereiro, junho e novembro e a quarta etapa
ocorreu em novembro de 2002.
1º SEMESTRE • 2008 • 39
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centro-oeste contou com a contribuição de Tâmara, do
grupo estadunidense Art and Revolucion.
A construção de um sistema de
produção teatral
Norteados pela reflexão de Antonio Candido, que se
refere à lógica da produção artística como um sistema
ancorado nos vetores autor, obra e público, notamos que no
decorrer desses sete anos de atuação da Brigada Patativa do
Assaré começou-se a esboçar uma espécie de sistema
interno no MST, em que grupos produzem peças que
circulam no Movimento e também fora dele. Em encontros
nacionais e regionais esses grupos apresentam-se e trocam
experiências, e depois, nos acampamentos e assentamentos,
outros grupos passam a montar as peças que viram e leram.
Na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, ocorrida em
maio de 2005, com mais de doze mil marchantes, a peça A
Bundade do patrão foi apresentada pelo coletivo Peça pro
Povo (RS), pela Brigada Estadual de Cultura Filhos da Terra
(MS) e pela Brigada de agitprop Semeadores (DF). Também
na marcha, a peça Exploração do Trabalho foi apresentada
por cinco elencos, e outros dois elencos apresentaram uma
adaptação da mesma peça intitulada Como fazendeiro sofre.
A apropriação da tradição teatral também faz parte dos
trabalhos realizados. O grupo Filhos da Mãe... Terra montou
uma adaptação da peça de Bertolt Brecht Horácios e
Curiácios, intitulada Posseiros e Fazendeiros, e a Brigada de
agitprop Semeadores, trabalhando com a estrutura da fábula
de O círculo de giz caucasiano, do mesmo dramaturgo,
elaborou a peça Trapulha, após oficina ministrada pelo grupo
Teatro de Narradores. A peça Paga Zé, do Coletivo Peça pro
Povo é uma adaptação de Não tem imperialismo no Brasil, de
Augusto Boal e Por estes santos latifúndios, do grupo Filhos
da Mãe...Terra, é uma adaptação de Guillermo Maldonado
Perez, dramaturgo colombiano premiado com esta peça pela
Casa das Américas, de Cuba.
Os locais de apresentação das peças são
principalmente encontros, reuniões, seminários, marchas,
plebiscitos, campanhas, além dos acampamentos e
assentamentos. Durante a Marcha Nacional de 2005,
fazíamos apresentações diárias e realizamos a
apresentação do Teatro Procissão, com 270 militantes,
contando a História da Luta pela Terra no Brasil. No V
Congresso Nacional do MST, realizado em 2007, com 17
mil pessoas, também ocorreram apresentações diárias. As
escolas e centros de formação são outros locais de
freqüente apresentação dos grupos. As brigadas de
agitação e propaganda fazem intervenções freqüentes em
escolas, praças, ruas, pontos de ônibus, etc.
Em espaços externos ao Movimento, elencos da Brigada
Nacional Patativa do Assaré, ou grupos estaduais do MST a
ela ligados, se apresentaram no II, III e V Fórum Social
Mundial, no TEIA – Encontro Nacional dos Pontos de
Cultura, realizado na Bienal de São Paulo, em 2006, e na II
Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo de 2007.
Hegemonia e luta política: a disputa
por um novo projeto de sociedade
Ao analisar o conceito gramsciano de hegemonia,
Raymmond Williams sugere que este incorpora os conceitos
de cultura, entendida como todo um processo social, e de
ideologia, como um sistema de significado de valores que
expressa ou projeta um determinado interesse de classe. Há
um processo de construção de hegemonia, de construção
de visão de mundo, de um projeto de civilização que ocorre
no cotidiano antagônico da luta de classes. A luta pela
transformação da sociedade exige também mecanismos de
transformação ideológica.
A organização da Brigada Patativa do Assaré, sua
metodologia de produção coletiva, os processos de
circulação e distribuição da produção com alcance nacional,
acompanhados de sistemáticos e contínuos processos de
formação, proporcionaram à Brigada um efetivo poder de
enfrentamento no campo ideológico, dos projetos de
sociedade em disputa na luta de classes. Essa prática tem
seu potencial político ampliado ainda mais quando
estabelece ações com o conjunto da organização e de
outros movimentos sociais.
Nesta coletânea de peças encontramos produções deste
caráter. São peças como Alcapeta, que foram apresentadas
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em dezenas de escolas nas campanhas contra os tratados da
ALCA e de Livre Comércio. Estas apresentações e outras
intervenções culturais dos mais de 300 militantes do setor
de cultura do MS provocaram o desconforto dos poderosos,
e algumas câmaras legislativas municipais tentaram formular
leis impedindo a apresentação dos grupos do MST em
escolas. Na preparação da Marcha Nacional, em 2005, uma
Brigada de agitprop tinha em seu repertório a apresentação
da peça A luta do camponês contra o agronegócio, realizada
em escolas, igrejas e reuniões de bairros. O grupo Tampa de
Panela (SC), fez uma adaptação de Mulher da Roça
abordando as conseqüências da produção de fumo que
algumas famílias assentadas vinham implantando na região.
A peça Trapulha serviu de ponto de partida para discussão e
resolução de problemas de concentração de poder no
acampamento. Na campanha presidencial de 2006, brigadas
de agitprop do MST e outros movimentos sociais fizeram
constantes intervenções explicitando as diferenças entre os
projetos da esquerda e da direita para o país.
Além destas apresentações em campanhas e jornadas
de lutas específicas, há um constante desenvolvimento de
atividades teatrais em conjunto com os demais setores e
cursos do Movimento. São realizadas avaliações em cursos
com metodologias do Teatro do Oprimido, como o Teatro
Imagem, além de apresentações de temas específicos e do
programa estratégico das organizações sociais. Peças como
Campo de guerra: a sala de aula, abordando discriminação e
preconceito sofridos por estudantes sem terra, foram
apresentadas na ciranda infantil da Marcha Nacional.
Experiências com o conjunto das peças didáticas do
dramaturgo alemão Bertolt Brecht vêm sendo realizadas em
cursos de formação de militantes e nas escolas de formação.
Filhos da Mãe...
Terra - MST
As formas da luta de classes:
sedimentação social da forma
As tradições críticas da produção cultural e artística,
principalmente as de orientação materialista e dialética que
configuram o marxismo, estabelecem as relações entre a
forma e o conteúdo como históricas. Contraditoriamente,
em cada período histórico, os projetos de classe em disputa
constituíram um modo específico de representação artística
e da forma de ver o mundo. Os jeitos de contar uma
história, de imaginar o novo, de representar e selecionar os
valores, os assuntos, todos os aspectos da produção
estética, influenciam na forma final da intervenção que será
socializada. A concepção mais radical destas interpretações
formula que o conteúdo mesmo, o conteúdo social de uma
obra, encontra-se na sua forma.
No decorrer da formação da Brigada Patativa do Assaré
percebemos isto na prática. Defrontamo-nos com a
dificuldade de tratar temas históricos e de dimensões sociais
amplas com formas inadequadas. A tradição formal que se
estabeleceu nos meios de comunicação de massa, que
configurou um padrão hegemônico de representação, é a
chamada forma dramática, que se estrutura pelo conflito de
vontades individuais, que se realiza no presente absoluto
pelo chamado diálogo dramático. Esta forma, de larga
influência nas maneiras de representar, coloca sérios
problemas para o tratamento de temas como Reforma
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Agrária, imperialismo, luta de classes, temas que não têm na
figura individual de uma personalidade, no conflito
dramático de um único sujeito sua mais objetiva forma de
representação. Isto porque estes processos se referem a
interesses de classe, a estruturas sócio-econômicas em
constante e contraditória inter-relação.
Se é a forma a real portadora do conteúdo de uma
intervenção estética, uma vez socializados os meios de
produção cultural, o potencial de enfrentamento político
pode ser anulado se utilizarmos formas equivocadas, as
formas hegemônicas, e corremos o risco de solidificarmos
ainda mais os valores e significados que queremos combater.
Os programas de formação da Brigada Patativa do
Assaré abordaram este assunto de forma sistemática e
continuada, tanto nos cursos da Brigada quanto nos outros
cursos realizados pelo Coletivo de Cultura e pelo Setor de
Comunicação do MST.
Tendo estes pressupostos teóricos, produzidos em
inseparável relação com a nossa prática, organizamos
nossas peças em 3 grupos: Teatro Fórum, Teatro Épico e
Agitação e Propaganda. Cada conjunto possui
características específicas, embora estas mesmas
características não estejam totalmente ausentes nos outros
grupos. Mesmo existindo traços semelhantes, há
especificidades que orientaram a produção de cada peça,
tendo em vista principalmente o objetivo – político – que se
propõem. Apresentamos abaixo, de maneira muito
resumida, os principais traços de cada um dos três grupos.
Tea
tr
oF
órum
eatr
tro
Fórum
A principal característica desse formato é a quebra dos
limites entre palco e platéia, entre atores e o público, por meio
da possibilidade dos espectadores entrarem em cena no lugar
dos personagens que eles julgam oprimidos. A estrutura de
uma peça de Teatro Fórum constitui-se na configuração clara
de uma situação de opressão. A apresentação serve para
iniciar o debate com a platéia sobre a situação de opressão
apresentada. Os próprios espectadores, dando sua opinião
sobre a situação, entram em cena para interpretarem o
personagem oprimido e agem sugerindo estratégias para a
solução dos problemas de opressão enfrentados. Boal os
chama de espect-atores. Esta técnica, desenvolvida por
Augusto Boal durante os anos 1970, após participação
intensa nas lutas sociais durante a década de 1960, é a mais
extrema na socialização dos meios de produção teatral, pois
rompe completamente a barreira entre palco e platéia. Foi
esta metodologia centrada na socialização que proporcionou
a formação de grande número de grupos no MST.
Tea
tr
o Épico
eatr
tro
Com a socialização dos meios de produção teatral, as
dificuldades técnicas começaram a se impor. A solução
estética de problemas políticos demandou o conhecimento
de outros procedimentos da técnica teatral. Estas
dificuldades apareceram ao tentar dar forma a processos
amplos, como a análise comparativa entre os padrões dos
modos de produção agrícola da elite em diferentes
contextos históricos, das plantations ao agronegócio,
passando pela Revolução Verde, entre outros ciclos de
modernização conservadora do país. Ou seja, para além das
determinações do indivíduo, os temas épicos exigem a
compreensão e correspondente formalização estética da
engrenagem que articula a infra-estrutura com a
superestrutura, e o entendimento da dinâmica de tensão
permanente de confronto da luta de classes.
A crítica aos projetos de livre comércio, como a Alca,
proposta pelos EUA para os demais países do continente
americano, não tem como ser realizada nos termos das
convenções dramáticas da linguagem teatral, já que o
problema não se configura como um problema da ordem
dos indivíduos, por meio do diálogo, numa sucessão de
acontecimentos no tempo presente.
Foi para suprir estas demandas que iniciamos nossos
estudos nas teorias do teatro épico, orientados
principalmente pela professora Iná Camargo Costa. A
principal característica do teatro épico é que os intérpretes
assumem a postura de narradores dos processos
apresentados. Várias são as técnicas utilizadas para isso,
como os coros, as canções, as narrativas, formas específicas
de interpretação, etc. Estas técnicas têm como objetivo
fazer com que o espectador não se deixe absolver pela
história representada, como se ela fosse natural, mas, pelos
Cenas de Grupos que compõem a Brigada.
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procedimentos do chamado distanciamento, o espectador
teria que estranhar os processos representados em cena, ou
desnaturalizá-los. As relações entre diversos setores sociais,
entre interesses econômicos, disputas políticas, devem ser
organizadas e representadas de forma dialética, devem ser
apresentadas em suas variadas inter-relações e
contradições, visando uma compreensão mais abrangente
dos processos sociais do desenvolvimento da luta de classes.
Agitação e pr
opaganda – Agitpr
op
propaganda
Agitprop
A agitação e propaganda é um conjunto de métodos e
técnicas que podem ser utilizados como tática de agitação,
denúncia e fomento à indignação das classes populares e
politização de massas em processos sociais. A expressão foi
criada pelos revolucionários russos para designar as diversas
maneiras de fazer agitação de massas e ao mesmo tempo
divulgar os projetos políticos da revolução.
A agitação e propaganda tem uma larga tradição nas
lutas sociais desenvolvidas desde a revolução soviética. As
experiências desenvolvidas na Alemanha, na França, nos
Estados Unidos e no Brasil na década de 1960, aqui
realizadas principalmente pelos Centros de Populares de
Cultura (CPC) e Movimento de Cultura Popular (MCP),
constituem grande repertório de formas, como o teatro
jornal, o teatro invisível, intervenções de música, artes
plásticas, cinema, pichações, etc. Cada movimento e
organização produziu seus métodos e formas, servindo-se
de toda referência que tivessem, de acordo com as
demandas apresentadas em cada contexto histórico. As
intervenções de agitprop têm um grande poder de
intervenção direta, de agitação dos trabalhadores para o
confronto dos projetos de classe apresentados como
hegemônicos e para a propaganda de um projeto popular.
As experiências de teatro político organizadas pelo
CPC e pelo MCP foram abruptamente interrompidas pela
força das armas, com o golpe militar de 1964. Não
duraram mais que cinco anos e, nesse curto período de
vida, marcaram definitivamente a vida cultural e política
do país, pois apontaram o caminho da possibilidade das
classes populares construírem suas próprias formas de
representação política e estética.
O trauma da interrupção da experiência acumulada
naqueles anos define os contornos da precariedade com que
a retomada da produção teatral do MST se estabelece: a
privação do legado dramatúrgico daqueles que lutaram
antes de nós retarda o processo de recomeço, pois em
alguns pontos não temos a trilha do aprendizado com os
impasses anteriores, por isso temos que amadurecer
aprendendo com nossos próprios erros, talvez menos
correntes se o percurso da acumulação e continuidade
histórica não tivesse sofrido o entrave de mais de duas
décadas de ditadura militar.
Contudo, podemos afirmar de modo sintético que o
seguinte conjunto de fatores dá sustentação e pode
propulsar as experiências das brigadas no momento
contemporâneo:
• a inserção orgânica da iniciativa como parte da
estratégia de formação política e massificação de um
movimento social de abrangência nacional;
• a complexa estrutura organizativa do MST e do
processo de formação, por meio da lógica setorial, permite
que a linguagem teatral se desenvolva de forma plural, de
acordo com as diversas funções que ela desempenha;
• o crescente processo colaborativo com grupos de
teatro político do meio urbano, como aqueles ligados à
Redemoinho.
O MST existe há vinte e quatro anos e a experiência
sistemática com teatro político existe há oito anos. Se não
formos surpreendidos pela violenta ação repressora da
elite, tudo indica que o aumento qualitativo e quantitativo
dos trabalhos é um passo sem volta, pois em pouco tempo
as brigadas de teatro têm incorporado em seus coletivos o
trabalho integrado com outras linguagens artísticas e com
isso tem passado a funcionar como brigadas de cultura.
Em paralelo, outras frentes de atuação da Cultura e
Comunicação têm avançado muito em pouco tempo,
como é o caso da recente e promissora formação da
Brigada de Audiovisual da Via Campesina, e do processo
de formação de brigadas de agitação e propaganda em
capitais estaduais, com militantes de organizações do
campo e da cidade.
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PEDAGOGIA TEATRAL
Pesquisa e transmissão nas
práticas de um coletivo teatral
Západ, Balagan, SP.
“A educação é o ponto que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade
por ele…” Hanna Arendt
Maria Thais e Clara Cecchini
O intuito deste artigo não é problematizar a educação teatral em seu âmbito geral,
mas indagar a respeito dos processos pedagógicos que caracterizam a criação teatral,
especialmente aquela dedicada à experimentação cênica.
A princípio, devemos esclarecer o uso feito no presente texto de seu termo fundador
– pedagogia –, e diferenciá-lo do termo educação que, em geral, é lido como seu
sinônimo. Em primeiro lugar, o termo pedagogia é tomado aqui no seu sentido estrito:
ligado às suas origens na Grécia antiga, em que o pedagogo era o escravo-condutor aquele que conduzia a criança para o local onde acontecia a relação ensinoaprendizagem, mas que era também o responsável pela melhoria da conduta geral do
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Maria Thais é
diretora da Cia
Teatro Balagan e
Professora, na área
de Interpretação e
Direção, do
Departamento de
Artes Cênicas da
ECA/USP.
Clara Cecchini é
atriz da Cia Teatro
Balagan e
Coordenadora de
Artes Cênicas do
Instituto Mamulengo
Social, parceiro para
Arte e Cultura da
Fundação CASA.
1
Larrosa, Jorge
Buendía. “Do
Espírito de Criança à
Criança de Espírito”,
in Pedagogia Profana:
Danças, Piruetas e
Mascaradas.
Autêntica, Belo
Horizonte, 2004.
estudante, moral e intelectual. Portanto, a pedagogia, em sua origem, está intimamente
ligada à noção de caminho, de processo. Interessa-nos a função do escravo-condutor,
suas responsabilidades frente à formação do outro, e as eleições dos lugares
apropriados para a experiência de transmissão.
Da tradição teatral trazemos outra referência, também fundante do pensamento aqui
presente: a idéia de pedagogia teatral surgida no teatro russo do final do século XIX e
início do XX, no Teatro de Arte de Moscou (TAM). Fundado em 1898,o TAM inaugurou a
formação de uma companhia teatral que se organizava a partir da afinidade na visão
sobre a arte. A noção de filiação a um teatro se disseminou e esta é uma característica
que distingue o teatro russo, inclusive a vanguarda histórica, do teatro europeu do
período. No início do século XX, na Rússia, o papel formador foi transferido para o
espaço da cena, do fazer teatral propriamente dito. Seus defensores lutavam contra a
falta de princípios artísticos, contra o ecletismo, tão comum no teatro até então, e a
filiação era o caminho de criação do novo teatro. A pedagogia teatral nasce, portanto,
sem vínculo com o ensino institucional, emergindo do seio de uma prática teatral.
Diferencia-se, assim, na sua origem, do que conhecemos como processo educativo.
Este diz respeito a uma pratica social que se realiza em um espaço institucional - a escola
- com o objetivo de desenvolver um resultado preciso, previsto antes mesmo de ser
iniciado. As instituições de ensino medem sua eficiência pela quantidade de informação
que um sujeito – o educando – consegue absorver durante o chamado processo
educativo. Processo este que tem um ponto de partida muito definido – aquele que não
sabe – e aspira um ponto de chegada – aquele que aprendeu. Ao final, compara-se a
quantidade de habilidades que o aluno possui antes e depois de passar pela escola: se a
quantidade é relativamente superior, pronto, estamos diante de um sujeito educado. Como
medida do sucesso deste processo educativo são usados, em última instância, a
capacidade de inserção no mercado de trabalho e o grau de produtividade.
Nas práticas de criação de um coletivo teatral, ao contrário, a pedagogia está
diretamente relacionada à noção de um processo formativo. Neste, o ponto de chegada
é extremamente misterioso, é sempre uma surpresa porque “na formação, a questão
não é aprender algo. A questão não é que a princípio não saibamos de algo e, no final,
já o saibamos. Não se trata de uma relação exterior com aquilo que se aprende, na qual
o aprender deixa o sujeito imodificado. (...) O processo de formação está pensado,
melhor dizendo, como uma aventura”1.
Porém, indagamo-nos: até que ponto nossas práticas artísticas estão contaminadas
pelos processos educativos? Até que ponto se constituem como espaço para um
processo formativo, e de indagação artística, pautado na formação de um pensamento
sobre a própria práxis? Nos coletivos teatrais, há espaço para um processo de formação
contínuo, em que o inaugural passa a ter mais importância que a evolução por si? Em
que o processual passa a ter mais importância que a produção por si?
E, indagamo-nos ainda, o que estaria então na base de uma pedagogia teatral
contemporânea?
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2
Larossa, Jorge.
“Dar a palavra Notas para uma
dialógica da
transmissão” in
Habitantes de Babel
– Políticas e Poéticas
da diferença. Belo
Horizonte, 2001,
Autêntica.
3
Larrosa, Jorge
Buendía. “O Enigma
da Infância”, in
Pedagogia Profana:
Danças, Piruetas e
Mascaradas.
Autêntica, Belo
Horizonte, 2004.
Apresentamos, neste artigo, idéias que não pretendem responder esta pergunta,
pois isso seria trair o que acreditamos estar na base da pedagogia. Seria, ainda, afirmar
um valor do qual tentamos fugir a todo instante: o valor do acerto, a satisfação com a
resposta correta. As noções de “conduzir o outro”, de “filiação”, de “inaugural”
constituem um terreno fértil de investigação, e não alternativas de resposta.
A pesquisa, como a entendemos na Cia Teatro Balagan, constitui-se como
processo formativo quando consegue instaurar uma dinâmica em que os artistas
envolvidos consigam estar engajados e estimulados na construção de algo fora deles
mesmos. O caminho a ser percorrido junto ao pedagogo, nesta acepção, é aquele de
cada sujeito em direção a seu próprio ser, num processo de reconhecimento e
transformação. Desta maneira, acreditamos que o sujeito pode passar, finalmente, a
ter maior clareza sobre as diferenças de constituição do que compõe o mundo
exterior: chegando, finalmente, à noção de alteridade. É aí que está, para nós, a
importância dos processos pedagógicos em teatro.
Estes privilegiam a transmissão ao invés da aquisição, a aprendizagem ao invés do
ensino, a produção ao invés da reprodução, a heteronímia ao invés da autonomia2. Os
processos pedagógicos que buscamos materializam, em sua práxis, uma noção de
coletivo formado por diferenças, em que a autoria individual se perde, tanto nas
dinâmicas cotidianas de criação e manutenção do trabalho, quanto na obra artística
propriamente dita. Ou seja, não há dissociação possível entre as práticas artística e
pedagógica. Voltando à citação de Hanna Arendt que abre este artigo, não há
possibilidade de não se assumir responsabilidade pelo mundo em que se vive.
Para nós, a pedagogia teatral é o próprio eixo da criação artística, compreendido aqui
como um espaço de problematização, de indagação, de produção de pensamento.
Cada processo de criação tem uma demanda - técnica, poética e estética -, e a
formação permanente dos artistas envolvidos não visa encontrar soluções aos novos
problemas, mas sim encontrar novos problemas para as antigas soluções. Problemas
estes que estão mais relacionados à idéia de composição de uma obra ou à
assimilação de diferentes conceitos do que propriamente à execução de tarefas
específicas. A manutenção deste “estado de pesquisa” depende, portanto, de uma
atitude de todos os envolvidos, que não é um pacto de igualdade mas, antes, um
acordo, fundado nas premissas que regem o trabalho.
E a noção de inaugural se apresenta, para nós, como a premissa primeira,
geradora de todas as dinâmicas e reflexões. Para que ela possa se instaurar, é
necessário um exercício de silêncio e atenção, de aguçar a percepção ao que
cotidianamente nos escapa. É o que Larrosa chama de “presença enigmática da
infância”, ou seja, um exercício de radical alteridade diante de algo que, em essência,
nos pertence. O encontro com o que é novo a todo instante, “o encontro de uma
verdade que não aceita a medida do nosso saber, com uma demanda de iniciativa
que não aceita a medida de nosso poder, e com uma exigência de hospitalidade que
não aceita a medida de nossa casa.”3
Ou seja, uma experiência de alteridade que exige uma verdadeira transformação: um
processo de formação em que se fuja da tentação de dar-se como modelo. Uma ação
pedagógica.
•
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A teatralidade circense
ERMINIA SILVA
Em 2007 e 2008, na grande São Paulo, apresentaram-se pelo menos nove circos:
Beto Carreiro, Nacional da China, Plume, Roda Brasil, Soleil, Spacial,
Stankowich, Zanni, Vox, sendo seis nacionais e três estrangeiros.
Por influência direta da estréia do Cirque du Soleil pela primeira
vez no país, artistas, empresários e pesquisadores circenses brasileiros foram
procurados exaustivamente pelos jornalistas, que produziram inúmeras
reportagens sobre o tema. Tal foi o volume de registros informativos, que acabou
caracterizando aqueles três meses como um período atípico da presença
das atividades circenses na imprensa brasileira – escrita, falada e televisiva.
(Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Veja, Carta Capital, Bravo, Rede Globo de
Televisão, diversas estações de rádio, com programas de cobertura nacional; entre outros).
Dentre as abordagens temáticas nas reportagens, além de
alguns textos de intelectuais da cultura e críticos teatrais, uma esteve em
todas: o circo estava [na] ou tinha virado moda
moda. Tendo o Soleil como parâmetro, aquelas
diversas produções escreveram o quanto o tema circo está presente, hoje,
nas várias formas de expressões artísticas, em especial no teatro, na dança e na música.
Os autores das reportagens e por conseqüência seus veículos de comunicação,
“redescobriram” as atividades circenses brasileiras. Entretanto, as
“descobertas” se pautaram a partir daquela companhia, para atribuir medida de
valor de qualquer outro espetáculo circense (às vezes até teatral). Os termos de comparação
que foram utilizados ficavam entre uma certa “pobreza” do circo nacional
e a grandeza do internacional, que se dedica à criação, produção
e apresentação de trabalhos artísticos que “apelam para a imaginação, provocam
os sentidos e evocam as emoções das pessoas”. Ao mesmo
tempo, ia se “descobrindo” como “novidade” a própria produção circense
brasileira, nos últimos 20 anos. Porém, nada era comparado aos três espetáculos
internacionais, descritos como “circos modernos”, cheios de histórias e “performances estonteantes”.
Erminia Silva
(doutora em história;
autora do livro Circoteatro: Benjamim de
Oliveira e a
teatralidade circense
no Brasil. Editora
Altana, 2007).
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O Soleil é visto como o
“enunciador” de uma “nova”
linguagem artística que
“revolucionou” a técnica
circense, uma empresa que entra
na categoria de “circo novo, novo
circo ou circo contemporâneo”.
Além do fato de não usar
animais, possui artistas de
diversas nacionalidades (mais de
quarenta), produz números que
sofrem influência do teatro, do
próprio mundo do circo, da
ópera, do balé e do rock. Há
contorcionismo, malabarismo,
palhaços e trapezistas, fazendo
uso de músico ao vivo,
coreografia, cenografia, dança;
porém, segundo aquelas
reportagens, realizados de forma
diferente do “tradicional e
antigo” modo de se fazer circo,
pois há um fio condutor, uma
unidade no espetáculo e não
“apenas” uma seqüência de
números. Possui os mesmos
ingredientes que um espetáculo
teatral, com um diretor, um
coreógrafo, um compositor, os
figurinos criados para o
espetáculo, um cenógrafo, um
iluminador.
Nessa série de reportagens,
bem como em diversos trabalhos
acadêmicos (nacionais e
internacionais), chega-se a
afirmar categoricamente que, a
partir do início da década de
1980, com a constituição de
grupos e companhias não
oriundos do circo de lona,
formados nas escolas de circo ou
de modo autônomo, surge uma
nova corrente “vanguardista”
das artes circenses, por
incorporarem “técnicas
modernas e uma estética
contemporânea”.
E, assim, este movimento do
“circo novo, novo circo ou
contemporâneo” estaria
conquistando seu título de
nobreza ao lado de outras artes
do palco, como o teatro ou a
música. As escolas e os “novos
artistas” seriam a ilustração da
diversidade das novas tendências
das artes circenses, num
“rompimento” com o que se fazia
“antigamente”.
Afirmam ainda que
conquistam um outro público
que não só o infantil, pois
produzem um espetáculo vivo
completo e inventam novas
formas. Este novo espetáculo
começou a se libertar das
limitações da pista, adotando
algumas vezes o palco teatral
(frontal) ou até reintegrando a
rua, seu espaço primeiro da
época dos acrobatas e
equilibristas, à exemplo do
artistas/fundadores do Soleil.
O conjunto destas elaborações
carrega consigo as noções de que
só atualmente: o circo virou
moda, pois está tendo uma
intensa aproximação deste com o
teatro, caracterizando uma
“cirquização” do teatro ou uma
teatralização do circo.
As pesquisas sobre o circo dos
séculos XVIII, XIX e parte do
XX, que utilizam como fontes
jornais, revistas, memorialistas,
imagens, propagandas,
entrevistas, folhetos musicais,
que permitem entrar em contato
com a produção das memórias de
homens, mulheres e crianças
circenses, põem em dúvida o
conjunto daquelas elaborações.
Vou fazer referência à minha
pesquisa que resultou no livro
Circo-teatro: Benjamim de
Oliveira e a teatralidade
circense no Brasil.
Em uma revista publicada no
Rio de Janeiro, sobre o mundo
do teatro, o jornalista, advogado
e dramaturgo, responsável pela
editoração da mesma, expressava
uma confusão frente a alguns
espetáculos circenses que estava
assistindo. Denominava-os como
“novo circo”, pois apresentavam:
teatro falado, cantado e dançado;
números de circo e música ao
vivo. Nas entrelinhas revelava a
idéia de que o espetáculo
circense fazia parte de um novo
circuito de produção e consumo
de massa dos bens culturais,
particularmente o cinema e
disco, e se constituía em um
espaço e tipo de espetáculo que
incorporava inovações
tecnológicas e profissionais de
várias outras áreas artísticas.
Entretanto, leitor, não se
engane. A reportagem acima não
se refere a um espetáculo do Soleil
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Benjamim de
Oliveira, 1911.
e nem de grupos formados de
1980 para cá; mas de fato foi
publicada na revista O Theatro,
há 97 anos atrás, em junho de
1911, pelo jornalista Januário
d’Assumpção Ozório, que
expressou suas confusões e
admirações pelas “descobertas”
daquele “novo circo” que assistia.
Através da descrição de um
espetáculo assistido por este
jornalista, sabemos que no
mesmo havia: exímios acrobatas
(solo e aéreo), de diversas
nacionalidades - italianos,
japoneses, espanhóis, brasileiros,
franceses, argentinos, romenos;
palhaços que realizavam
mímicas, cantavam, tocavam
instrumentos musicais e
dançavam. Após estes números,
os mesmos artistas acrobatas se
juntavam a diversos artistas e
técnicos da cidade do Rio de
Janeiro – cenógrafos,
coreógrafos, dançarinos, músicos
e cantores que gravavam discos,
maestros, dramaturgos e
adaptadores de peças teatrais
para o circo – para encenarem
uma peça teatral na qual havia
uma mistura de representação,
música tocada, cantada e
dançada, mais acrobacias.
O nome da peça era A Viúva
Alegre, opereta de Franz Léhar,
em 03 atos e 04 quadros,
adaptada para o palco/picadeiro
do Circo Spinelli por Benjamim
de Oliveira, apoiado na tradução
de Henrique de Carvalho e na
parceria com o maestro Paulino
Sacramento. A adaptação
pressupunha a representação em
fala e canto pelos próprios
artistas acrobatas e convidados,,
sem o auxílio do ponto
ponto.
Mesclada à apresentação dos
atores/acrobatas no palco/
picadeiro, seriam passadas
projeções elétricas do filme
homônimo, caracterizando um
espetáculo “multimídia”. O papel
principal masculino seria
representado por Manoel Pedro
dos Santos, mais conhecido como
Baiano; no papel principal
feminino, da viúva, estaria Lili
Cardona. Cenário e figurinos por
conta de Ângelo Lazary junto
com Chrispim do Amaral. E, por
fim, mise-em-scéne e adaptação
de Benjamim de Oliveira.
Esse acontecimento pode ser
conhecido com maior
detalhamento que outros do
período, pois o grau de
visibilidade dos espetáculos
circenses nos jornais cariocas foi
intenso, e todos com iguais
adjetivos: é novo, é
contemporâneo, distingue-se
radicalmente do que era
produzido nos circos de
“antigamente”; seus artistas
realizam com maestria
acrobacias, canto, dança e
representação teatral. Tudo isso
acompanhado com uma excelente
banda musical ao vivo.
Para quem não sabe Baiano
foi um dos principais
cançonetistas da história da
música nacional, o primeiro
cantor brasileiro a aparecer nas
gravações de cilindros e chapas
feitas no Brasil. Além do grande
repertório que viria a gravar,
ficou conhecido por ter sido o
intérprete da gravação do samba
Pelo telefone. Lili Cardona era
filha de pai espanhol e mãe
inglesa, artistas circenses. Sua
formação profissional circense
permitia que ela fosse: acrobata,
equilibrista, ginasta excêntrica,
aramista, além de ter formação
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teatral e de dança. Paulino Sacramento era compositor e músico de teatro e regente de
banda. Ângelo Lazary junto com Chrispim do Amaral – dois nomes importantes da
história da cenografia brasileira foram os pintores dos telões de inauguração do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro.
Em outros jornais, alguns anos antes de Januário, espetáculos circenses já
provocavam reações de surpresas e encantamentos. Um cronista que não se identificou
no jornal Gazeta de Notícias (RJ), em junho de 1907, escreveu: “Tudo é moda. Os
artistas de circo têm também a sua hora de moda e de aplausos esplêndidos”.
Para esse articulista, os espetáculos circenses estavam adquirindo visibilidade
porque “revolucionavam” o modo de fazer circo, na medida em que agregavam as
diferentes formas de expressão cultural do período – música ao vivo, dança, teatro,
acrobacia. Significavam um corte entre o antes e depois, era um circo “novo e
contemporâneo”, que nada tinha a dever ao que era feito antigamente.
Este tipo de espetáculo polissêmico e polifônico também incorporava invenções
tecnológicas, como a energia elétrica, o cinematógrafo e o gramofone, por exemplo. Roger
Avanzi e Verônica Tamaoki, no livro Circo Nerino, descrevem com maestria a presença
dos aparelhos de cinema, disco e, até a produção de uma estação de rádio dentro do circo.
As reflexões e análises que este espetáculo da década de 1910 provocou nos
intelectuais letrados, não se restringiram ao espetáculo em si, mas ao lugar no qual o
espetáculo era realizado. Os circenses não se limitavam a usar apenas o círculo da
pista, mas ocupavam palcos teatrais italianos, music halls, cabarés, ruas, coliseus,
teatros de arenas. Por isso coloco em dúvida as descrições sobre o “vanguardismo” da
década de 1980.
Se em 2006 e 2008, o fato do espetáculo circense ter se libertado das limitações da
pista, indo para outros palcos ou rua, é apontado como definidor de “vanguarda”, vale
a pena assinalar que o fazer circense no século XIX e parte do XX, por essa razão,
deveria ser considerado “ultra-vanguardista”, sem deixar de gerar reações dicotômicas
entre admiração e tensão. Em 1893, um circo estreava no principal teatro da cidade do
Rio de Janeiro (quiçá do Brasil), e foi assim anunciado pelo jornal O Paiz:: “O teatro S.
Pedro de Alcântara [atual João Caetano], transformar-se-á ...em circo”.
A primeira menção à estréia foi de Arthur Azevedo, que, apesar de não tê-la assistido,
escreveu na primeira página do jornal: “Espero que a companhia eqüestre do S. Pedro de
Alcântara venha consolar definitivamente o Zé-povinho, que é doido por peloticas, e dá
mais apreço a Rosita de La Plata que à própria Sarah Bernhardt” (O Paiz, 28.04.1894).
Seu texto explicita a preferência do público pelo circo, em detrimento do que
considerava um teatro sério. Arthur Azevedo passa uma informação e um problema
importante para si e escreveu com muita indignação: como se permitiu que aquela
imponente construção arquitetônica da Praça Tiradentes, referência teatral da capital
federal, de “tão gloriosas tradições artísticas”, um “símbolo do teatro erudito”
brasileiro, fosse transformado em circo?
Além da invasão do palco teatral era também problema o tipo de espetáculo
apresentado, pois os artistas circenses aliavam acrobacia com representação teatral,
dança, música ao vivo, tecnológicas que mexiam com a cenografia, coreografia,
figurinos, maquiagens e iluminação. Tudo isso era de um lado ousado e de outro
equivocado para intelectuais, letrados e dramaturgos da época, pois o teatro sério
deveria ser uma escola que civilizaria o público, leia-se povo ou nação, com temas que o
levasse refletir sobre questões da moral e costumes. Espetáculos com dança, acrobacias,
risos, música e teatro, alienavam as mentes.
Os intelectuais brasileiros não foram originais nessas questões, nem ao
estabelecerem resistências à presença e/ou influência circense na produção teatral e
musical. Na Europa, em alguns textos do final do século XVIII e início do XIX, a
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produção de um espetáculo híbrido misturando acrobacias, eqüestres ou não, com
representação cênica, provocou protestos e contrariedades. A teatralidade circense
possibilitava a produção e representação de peças no circo onde se falava como no
teatro, o que era considerado um problema. Um panfleto da época afirmava que o palco
era para o “teatro” e não podia ser “violado” por acrobatas.
Apesar dos problemas, que essa mistura de artistas e gêneros provocava aos
intelectuais, era sucesso total de público. Tanto os intelectuais e jornalistas europeus
como os brasileiros, do período, diziam que artistas circenses e teatrais que se
misturavam, estavam inventando moda, queriam criar uma nova forma de arte que
acabava por denegrir o que era o “verdadeiro teatro” e o que era o “verdadeiro circo”.
Veja que interessante, leitor, há uma inversão do que significava ser “novo,
contemporâneo e revolucionário” no final do século XVIII, no transcorrer do XIX e
início do XX, até chegarmos em 2008. O “antigamente” referido no início deste texto,
para designar o passado, o velho, era tudo isso; mas, para os jornalistas, intelectuais e
letrados daqueles séculos, voltados para o mal. O Soleil, Plume, da China, considerados
como os novos circos, para os mesmos profissionais do final do século XX e neste início
do XXI, são os que representam a modernidade.
Não existe o novo? Nada foi inventado? Nada foi modificado ou transformado nas
artes circenses? É claro que sim, mas não necessariamente naquilo que o discurso tenta
colocá-los, ou seja, não na contemporaneidade da estética e da técnica, estas sempre
estiveram e estão em sintonia com seu tempo. É no processo de ensino/aprendizagem e
no modo de organização do trabalho que se passam as transformações.
O circense, até as décadas de 1950/60, na sua maioria, nascia sob a lona ou a ela se
juntava. A formação e aprendizagem tinham início desde o seu nascimento ou no
momento em que a ela se incorporava. A criança representava aquele que portaria o
saber, pois no ensinar e aprender estava a chave da continuidade do circo. Qualquer
um poderia ser aceito pelos circenses, mas tinha que aprender a sua arte, não bastava
apenas se agregar para ser figurante ou participar de uma grande aventura. A
transmissão oral dos saberes pressupunha um método, não acontecia por acaso, mesmo
que não seguisse nenhum tipo de cartilha. A dimensão tecnológica era indissociável da
dimensão cultural e ética, e revelava um modo de organização do trabalho e um
processo de socialização/formação/aprendizagem; bem como um diálogo tenso e
constante com as múltiplas linguagens artísticas do seu tempo. Ou seja, uma das
principais características definidoras da linguagem circense é ser contemporânea, nova
e atenta às transformações ocorridas ao seu redor.
Com as escolas de circo e o circo social – projetos sociais que se utilizam da
linguagem circense como ferramenta pedagógico –, há novas formas de implicação e
inserção dessa linguagem nas cidades. Os artistas formados e formadores destes
espaços, moradores fixos desenvolvem novas formas de organização do trabalho. Estes
desdobramentos têm criado novas necessidades para a produção do conhecimento sobre
o circo, gerando novas demandas para a ampliação da pesquisa do tema circo, para
dentro dos muros acadêmicos. Tudo isto é novo na história do circo. Entretanto, ter
como característica a contemporaneidade – na sua expressão estética, artística e
tecnológica, não é uma novidade, como vimos.
Creio que um dos problemas centrais desses jornalistas e intelectuais, de ontem e de
hoje, é o de não basearem suas descrições e análises à luz da multiplicidade das fontes e
da pesquisa histórica, não interrogando o senso comum de uma maneira reflexiva.
Ao contrário, quando qualificam um espetáculo como “novo” e “contemporâneo”,
tomam estas palavras exatamente do senso comum, e com isso perdem a possibilidade de
compreender a riqueza que representa a história do circo na produção artística, no
passado e no presente, como patrimônio cultural brasileiro.
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