Versão em PDF - Periódico Alethes
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280 | A l e t h e s . Alethes 281 | A l e t h e s Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa Revisão: João Vítor Moreira, Alan Rossi Silva e Marcos Felipe. Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre o quadro Guerra e Paz (1952 e 1956), de Cândido Portinari. Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre Guerra e Paz. _____________________________________________ Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito Da UFJF. Vol. 04, N. 06. (Julho/Dezembro de 2014) Juiz de Fora: DABC, 2014. Semestral. 1. Direito – Periódicos ISSN 2177-4633 _____________________________________________ As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores Esta publicação conta com o apoio do Diretório Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. 282 | A l e t h e s É difícil dizer a verdade, pois, por mais que só haja uma, esta é viva e tem feições vividamente combinantes. Franz Kafka 283 | A l e t h e s 284 | A l e t h e s Conselho Editorial Editor Chefe Acadêmico Alan Rossi Silva (UFJF) Editores Adjuntos Acadêmico Arthur Barretto de Almeida Costa (UFMG) Acadêmico João Vítor de Freitas Moreira (UFJF) Acadêmico Marcos Felipe Lopes de Almeida (UFJF) Conselheiros Dr. Alexandre Travessoni Gomes (UFMG) Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães (PUC-SP) Mestrando Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes (UFJF) Drª. Cláudia Toledo (UFJF) Doutorando Daniel Giotti (UFJF) Dr. Denis Franco Silva (UFJF) Doutorando Geraldo Adriano Emery Pereira (UFV) Drª. Eliana Conceição Perini (UFJF) Doutoranda Éllen Rodrigues (UFJF) Drª. Fernanda Maria da Costa Vieira (UFJF) Dr. Marcos Vinício Chein Feres (UFJF) Drª. Mariah Brochado (UFMG) Doutoranda Nathane Fernandes da Silva (UFJF-GV) Dr. Noel Struchiner (PUC-RIO) Ms. Renato Chaves Ferreira (UFJF) Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (UFMG) 285 | A l e t h e s 286 | A l e t h e s 287 | A l e t h e s Sumário Conselho Editorial 285 Editorial Board Sumário 288 Summary Editorial 292 Editorial Ensaio Essay Superando as Crises do Ensino de Direito e da Pesquisa Jurídica a Partir da Indissociabilidade entre Ensino e Pesquisa 296 Surpassing the crises of Law Education and Research with the connection between Teaching and Researching. Arthur Barretto de Almeida Costa Artigos Articles Norma e Direito: Michel Foucault e o excesso normativo-jurídico 309 Norm and Law: Michel Foucault and the juridical-normative excess Lorena Martoni de Freitas A Contrariedade do Instituto da Reeleição à Democracia no Brasil 333 The Contrariety of Reelection for Democracy in Brazil Wellington Borges Throniecke Suporte Fático de Direitos Fundamentais:Auxílio Interpretativo em Direitos Sociais no Brasil e em Portugal 357 Factual Support of Fundamental Rights: Interpretative Support to Brazilian and Portuguese Social Rights Mírian Zampier de Rezende As Contradições na Lei de Biosseguração Quanto às Pesquisas com Células Tronco The Contradictions on Brazilian Biosafety Law Regarding Stem Cells Research Grycor Alves de Azevedo Terceirização à Luz dos Princípios Essenciais do Direito do Trabalho Outsourcing under the Light of the Essential Principles of Labour Law Leidiel Araújo de Oliveira 288 | A l e t h e s 377 A Inserção dos Autistas no Mercado de Trabalho 420 The Autistic Insert on Brazilian Market Work Ana Clara Lopes Salgado Empresa Júnior e o desenvolvimento de habilidades e competências na prática jurídica: O caso Colucci Consultoria Jurídica Jr. 439 Junior Enterprise and the development of skills on legal practice: The case of Colucci Consultoria Jurídica Jr. João Paulo Corradi Ferreira Thaís Victoretti Túlio Souza Zancanelo Uma Lei Mutilada, uma Nação Dividida: Sharia, federalismos e o (des)cumprimento dos Direitos Humanos na Nigéria 453 A Mutilated Law, a Divided Nation: Sharia, Federalisms and the (Non) Fulfillment of Human Rights in Nigeria Arthur Barretto de Almeida Costa Entrevista Interview Entrevista com a Profª Daniella de Freitas Marques 476 Interview With the Professor Daniella de Freitas Marques Daniella de Freitas Marques e Arthur Barretto de Almeida Costa Normas de Publicação 489 Publication Norms 289 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 4, n., 6 pp. 292-294, jul./dez., 2014. 290 | A l e t h e s SILVA, A. R. Editorial. 291 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 4, n., 6 pp. 292-294, jul./dez., 2014. Editorial Há quem defina que o instrumento de trabalho do operador do Direito é a palavra, há quem diga que são as leis, outros podem dizer que é uma questão de retórica e até mesmo de política. Há aqueles que apesar de não tornarem públicos seus sentimentos e reflexões, encaram também o Direito a sua própria maneira, como uma questão financeira vultosa, de estabilidade ou de status social. No entanto, independentemente desta ou daquela perspectiva, se o Direito é encarado como meio ou como fim, até mesmo se ele é visto como instrumento ou se ele passa a instrumentalizar as pessoas, a Alethes e sua equipe, nesta e nas outras edições deste periódico, defenderá uma perspectiva jurídica mais intensa e humana. Defenderemos uma visão do Direito que não leve em consideração denominações mecânicas do cotidiano jurídico, como “instrumento” ou “operador”. Faremos coro em prol de uma ciência jurídica inovadora e que leve em consideração os sentimentos e as vontades de todos os envolvidos em seu complexo funcionamento. Trabalharemos insistentemente para a construção, mesmo que paulatina, de uma concepção libertadora do Direito, em detrimento da atualmente posta produtividade desenfreada de todos os ramos profissionais desta seara. Lutaremos contra esse Direito que se vê enclausurado por grades de sua própria criação e atado pelas inúmeras correntes, que rasas, confundem nossos jovens do verdadeiro propósito da justiça. Reivindicaremos, assim, uma ciência jurídica acolhedora, inclusiva e que trate com amor e respeito seu maior motivo de existência e o verdadeiro motor da justiça: as pessoas. Esta edição, portanto, foi profunda e indelevelmente marcada por pessoas, que se aglutinaram a este ideal e se tornaram organicamente parte da Alethes. Isto é, juntamente com o crescimento de todos os desafios inerentes a pretendida expansão do periódico, tivemos a graça de ser contemplados com novos membros na equipe, que nos trouxeram mais do que engrandecimento técnico e intelectual, mas, principalmente, alimentaram a chama de entusiasmo e esperança que um dia irrompeu do anseio inovador dos criadores da Alethes e que hoje deve ser mantida acesa por seus sucessores. Por isso, utilizo este espaço que me foi concedido, primeiramente, para agradecer os companheiros de equipe que possibilitaram, perante as adversidades, que este magnífico trabalho fosse terminado. Aos companheiros Arthur Barretto e João Vitor, são incomensuráveis os sentimentos de gratidão, por estarem junto comigo nessa empreitada, desde a última 292 | A l e t h e s SILVA, A. R. Editorial. edição, quando tudo ainda era novidade, surpresa e, principalmente, aprendizado, que tive a honra de vivenciar e sorver conjuntamente com esses dois importantes vetores de crescimento individual e de nosso projeto científico. Além desses companheiros de longa data, tivemos o prazer de somar forças com os mais novos membros de nossa equipe, que apesar de iniciarem nesta edição suas atividades junto à Alethes, foram pilastras fundamentais para que pudéssemos desenvolver nossas atividades e pudéssemos pensar em nossa revista em longo prazo, com concretizações de nossos planos, aparentemente utópicos, porém latentes nesse coletivo que vem se formando. Sendo assim, é o caso de agradecer a todo o esforço imprimido e todo o comprometimento sedimentado dos novos companheiros Marcos Felipe, Elora Fernandes, Pedro Cuco e Eduardo Maia, que serão fundamentais para a persistência e para o sucesso desta empreitada. Também, concomitantemente à importância dos companheiros listados acima, está em destaque a essencialidade das pessoas que confiaram a nós suas produções criativas e colaboraram providencialmente com os anseios deste periódico, que graças a esta demonstração de confiança nos fizeram sair mais fortes desta edição e com fôlego renovado para encarar os próximos desafios que estão por vir. Esta edição, pois, foi marcada mais uma vez por um a forte veia inovadora e pela diversidade regional das produções acadêmicas. Tivemos o prazer de publicar 8 trabalhos, de faculdades públicas e particulares, que tiveram os mais variados temas que permearam pelo Direito do Trabalho, Educação Jurídica, Biossegurança, Filosofia, Política e Direitos Fundamentais. Além disso, com muito orgulho alcançamos mais uma vez uma satisfatória divulgação dos trabalhos realizados pela Alethes e conseguimos contribuições de diferentes partes do país, com forte presença ainda do estado de Minas Gerais, mas com a entusiasmada adesão do estado do Pará, que se viu muito bem representado por graduandos da UFPA. Uma alegria contagiante é responsável por inundar esta 6ª edição do Periódico Alethes, qual eu tenho a infindável honra de inaugurar com a ajuda de meus companheiros de equipe, que inspiram fé e esperança em todos aqueles que passam a conhecer os objetivos deste projeto, fazendo, portanto, justiça à etimologia da palavra “companheiro”, tão repetida ao longo deste breve editorial. Afinal, segundo a origem atribuída a esta expressão, companheiro é aquele com quem dividimos o pão, oriunda do latim “cum panis”, em simbologia àquele que confiamos o suficiente para sentar em nossa mesa e dividir nossas ideias, nossos desafios e nossas conquistas, pois assim como o pão é responsável pela alimentação do corpo, esses ímpetos compartilhados de coragem, 293 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF., v. 4, n., 6 pp. 292-294, jul./dez., 2014. desafiadores do status quo, são responsáveis pela alimentação do espírito, que deverá estar firmemente posto nos próximos tempos, tendo em vista toda a travessia de realizações previstas ao Periódico Alethes. Alan Rossi Editor Geral do Periódico Alethes 294 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Superando as crises... 295 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014. Superando as Crises do Ensino de Direito e da Pesquisa Jurídica a Partir da Indissociabilidade entre Ensino e Pesquisa Arthur Barretto de Almeida Costa1 Resumo Neste ensaio, buscamos descrever com brevidade a crise instalada no ensino de direito e na pesquisa, tanto em geral, como a jurídica, em particular. A primeira advém da mercantilização do conhecimento e da massificação desconectada da qualidade, ao passo que a segunda se liga à lógica de “publicar ou perecer”, que leva a uma produção industrial do conhecimento que aniquila a possibilidade de reflexão e, por consequência, a qualidade. Propusemos, então, que a integração entre ensino e pesquisa pode contribuir para a superação de ambas as crises, através do emprego de artigos e outros materiais de pesquisa na graduação, deixando de lado a “cultura manualesca”, ao mesmo tempo em que esse uso aumentaria a atratividade da publicação de qualidade, já que haveria maior possibilidade de impactar na realidade. Por fim, foram propostas algumas ações para professores e diretores de periódicos científicos que poderiam colocar em prática essas recomendações. Palavras-chave: Ensino de Direito; Pesquisa Jurídica; Produtivismo; Artigos Jurídicos. Abstract In this essay, we will briefly describe the general crises in teaching and researching, and the particular situation of both in jurisprudence. The first comes from the marketing of knowledge and quantity without quality, while the second is connected to “publish or perish” logic, which consequences are industrial production of science and no possibility of reflection. We propose so the integration between teaching and research as the condition of surpassing such situation, by using scientific articles in classroom, and not only the textbooks, as long as this same usage would increase the quality of publications, since it will be a higher possibility of those texts impact the reality. Finally, we proposed some measures for professors and journal’s editors that could make those observations reality. Key Words: Law Teaching; Law Research; Productivism; Jurisprudence Articles. 1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Membro do GruMEL-FALE/UFMG (Grupo Mineiro de Estudos do Léxico), do Conselho Editorial da Alethes: Periódico dos Graduandos em Direito da UFJF, e da Revista do CAAP (UFMG). 296 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Superando as crises... Introdução Nas discussões atuais acerca da Educação no Brasil, tem-se identificado uma crise em todos os níveis de ensino, com a percepção da perda do sentido de várias práticas tradicionais, vistas como deletérias e contraprodutivas, e a difícil busca de alternativas para a ressignificação do processo de aquisição do conhecimento. O ensino de Direito ocupa uma posição bastante proeminente nesse contexto, já que é uma das carreiras que mais atraem estudantes, e tem sua conformação marcada por uma conjuntura bastante peculiar: os concursos públicos. De outro lado, tornou-se quase que lugar-comum as críticas aos métodos de avaliação da produção acadêmica encetados pela CAPES e pelas outras agências de fomento, os quais induzem a um quantitativismo igualmente prejudicial. A necessidade de auferições do estado das revistas científicas, dos diferentes programas de pósgraduação e de todos os outros componentes do sistema de produção do conhecimento é constantemente reafirmada, mas os meios propostos mostram-se muitas vezes falhos e carentes de profundas revisões. Neste breve ensaio, buscaremos identificar possíveis conexões entre as duas problemáticas, mostrando como uma questão pode se refletir na outra, de modo que soluções pensadas em conjunto possam conduzir a uma melhora substancial e conjunta tanto da produção como na aquisição do conhecimento acadêmico do Direito. Ensino de graduação: quais profissionais buscamos? A realidade dos cursos jurídicos é influenciada por um grande marco, que modela currículos, interfere na mentalidade de professores e altera as escolhas dos estudantes: os concursos públicos. Um dos grandes atrativos dos cursos de Direito no presente são as oportunidades em carreiras na estrutura gerencial do Estado, como a Magistratura, o Ministério Público, a Defensoria, dentre diversas outras. Além disso, a advocacia e a maioria das outras carreiras tem seu ingresso condicionado pelo exame da Ordem dos Advogados, um processo em muito assemelhado aos concursos: conta com algumas provas de múltipla escolha, uma minoria de questões discursivas e, via de regra, pouco grau de interdiciplinariedade e de pensamento crítico e aprofundado. 297 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014. Dessa maneira, instaura-se uma racionalidade instrumental na definição do conteúdo ensinado nas salas de aula: boa parte dos elementos do currículo estão condicionados pelos ditames dos editais dos concursos. Aquilo que fugir desse objetivo é identificado como desperdício de esforços, devendo ser contornado face à exigência maior, que é a aprovação. A reboque, vem a centralidade dos manuais e da “cultura manualesca” nas aulas. As exposições dos professores, quando não simples leituras de códigos seguidas por comentários, se constituem, muitas vezes, na mera repetição do ensinado em um ou dois manuais consagrados na disciplina. Assim, o que deveria funcionar como mera base de introdução na temática a ser tratada passa a ser a fonte principal de saber, da graduação à prática profissional. Há uma aparênciade que tudo funciona bem: o professor tem pouco trabalho na elaboração de suas lições, o aluno tem a tranquilidade de saber que está apendendo apenas o que será cobrado naqueles concursos que pretende prestar, e as altas taxas de aprovação trarão a chancela do MEC, da OAB, da mídia e das outras instituições. Todos ganham. Ou quase todos, na verdade. Perde o Direito, cuja densidade em termos de reflexão passa a ter a profundidade de uma poça d’água, e perdem os jurisdicionados, cujas querelas são tratadas em debates pouco qualificados, operando sobre bases teóricas defasadas e que não acompanham (ou pensam acompanhar) o ritmo das mudanças sociais. Em suma, perde apenas a sociedade que se encontra além dos muros dos tribunais e da academia. O produto de tudo isso é o famoso “operador do Direito”: um profissional capaz de ler a lei, coletar um ou dois julgados, tendo um ou outro manual na estande, e preparado para atender às demandas da vida forense. No entando, como o próprio nome diz, o “operador” não possui a capacidade crítica necessária para acompanhar os debates nacionais e internacionais mais avançados, trabalhar com a interdiciplinariedade, enfim, qualificar seu discurso, pelo simples fato de que sua formação não foi orientada para tanto: ele foi treinado para apenas marcar o “x” na caixa (que a banca considera a mais) correta. Nenhuma liberdade de criação. Nenhuma contestação. Avaliação da pesquisa e crise na ciência Já há algumas décadas, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior) tem assumido a função de avaliar a qualidade da pós graduação no 298 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Superando as crises... Brasil, desenvolvendo as mais diferentes técnicas, índices e critérios para efetivar essa missão. Uma das formas consideradas mais relevantes para a definição da qualidade acadêmica de um curso de pós graduação ou de um pesquisador em particular é a sua produção científica, efetivada sobretudo sob a forma de artigos acadêmicos. Estes são escrutinados sob dois diferentes vieses: um quantitativo e um outro (aparentemente) qualitativo. Pelo primeiro, considera-se um bom pesquisador aquele que publica muitos artigos; pelo segundo, é de bom nível quem escreve para periódicos científicos de qualidade. Mas a que se atribui a qualificação de “revista de alto nível”? Para tanto, a CAPES lança mão do sistema QUALIS, o qual classifica as revistas em 8 diferentes categorias, da mais para a menos bem avaliada: A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C. São utilizados diversos requisitos mínimos para que uma publicação seja enquadrada no mínimo do sistema, o que a poria no nível B5: mínimo de 14 artigos disponibilizados por ano, processo de revisão duplo-cega por pares, conselho editorial composto por pesquisadores consagrados, dentre outros. A partir desse patamar, são definidos outros parâmetros os quais indicariam a qualidade da publicação; no caso do Direito, o principal é a exogenia, ou seja, o percentual de pesquisadores de unidades da federação diferentes daquela que publica o periódico sobre o total de conselheiros editoriais, de autores de artigos, etc. Cabe ainda ressaltar que são avaliados apenas aqueles periódicos em que alunos ou professores de programas de pós-graduação publicaram durante o período que está sendo avaliado; assim, periódicos focados na divulgação de trabalhos de alunos de graduação, como a Alethes, sequer são avaliados. O primeiro estranhamento parte do fato de não haver critérios diretamente qualitativos entre aqueles utilizados pela CAPES: há apenas a presunção, apenas parcialmente correta, de que uma revista que atraia colaboradores de diversas áreas geográficas deva ser necessariamente boa. Não há base, como em outras áreas, no fator de impacto, que é a média de citações recebidas pelos artigos publicados na revista, o qual, embora tenha diversos problemas, e não defina fielmente a qualidade de um artigo, pelo menos cumpre a função de mensurar o grau de difusão de um determinado trabalho. Como não há uma cultura de citações de artigos, nem bases de dados suficientemente grandes para apurar as citações de artigos juridicos brasileiros, essa métrica fica impossibilitada. Mas há ainda outra questão bastante importante: não é possível deduzir a qualidade de um artigo científico a partir da qualidade do periódico que o publica. De 299 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014. fato, muitos artigos de qualidade são rejeitados por periódicos bons, por diversas razões; uma delas, a qual revela uma distorção importante do sistema, é o fato de o trabalho ser muito diferente, inovador, ou pertencer a um nicho muito recente da ciência, já que o fato de menos pesquisadores trabalharem nessas áreas leva a que artigos fora dos camposclichê serem pouco atrativos. E no Brasil há o agravante de que, para se manter bem na escala do QUALIS, um bom artigo enviado por um pesquisador da mesma unidade da federação do periódico contribui menos do que um mau artigo de outro estado. Assim, editores em busca de uma boa qualificação para suas revistas tenderão a rejeitar bons artigos locais em busca de maus artigos externos, o que pode, na verdade, diminuir a qualidade de seus periódicos e diminuir sua atratividade para a leitura. Mas o mais grave em toda essa situação é que a lógica cruel do “publicar ou perecer” (publish or perish, o mantra internacional da pesquisa científica) leva a uma busca desenfreada por publicar cada vez mais nos melhores periódicos, independentemente da qualidade ou do real impacto das pesquisas na vida dos cidadãos comuns, ou mesmo no desenvolvimento teórico da disciplina. Assim, artigos mais facilmente publicáveis, e com maior potencial de citação serão produzidos em campos de pesquisa em que se encontre grandes quantidades de pesquisadores, já que há mais pessoas para citar e serem citadas; isso contribui para diminuir a já baixa atratividade de campos de pesquisa pouco explorados, com comunidades de pesquisa pequenas e bastante arriscados, mas com altíssimo grau de inovação e grandes chances de produção de impacto. Assim, fomenta-se o que se chama de “ciência incremental”, aquela que gera pequenos acréscimos e ajustes sobre o conhecimento prévio, mas que não efetua grandes descobertas, nem é capaz de revolucionar o entendimento sobre a realidade. Para além dessas possíveis consequências, há ainda práticas que flertam com a imoralidade ou que transpõem abertamente a barreira da ética. No primeiro caso, temos a chamada “salami science”, que é a prática de dividir os resultados de uma pesquisa única em vários artigos, de modo a inflar desnecessariamente o número de publicações; ou a combinação de se citar um outro pesquisador para que, em troca, ele o cite de volta. No segundo caso, temos a fraude pura e simples, a invenção de resultados, o plágio e outras práticas extremamente graves. No final das contas, muito se escreve e se produz, mas pouco se lê: especialmente na área do direito, uma olhada rápida nas listas de referências da maioria dos artigos apresentados em nossos periódicos mostra que a maioria das leituras dos nossos pesquisadores ainda é de livros. Ou seja, um esforço hercúleo em torno da produção de 300 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Superando as crises... artigos científicos conduz a uma produção de baixíssimo impcto dentro da própria academia, já que ela raramente reverbera nos trabalhos seguintes. O papel dos periódicos científicos nas crises do conhecimento Como já dito anteriormente, os problemas acima descritos já são profundamente conhecidos pela comunidade de pesquisadores. Mas cabe explorar um campo interessante: de um lado, temos um sistema de avaliação que, em muitos casos, produz trabalhos de beixa qualidade e pouco lidos, e, de outro, estudantes e professores com pouco interesse na leitura de artigos. Mas uma análise detida pode mostrar que a superação das dificuldades em cada uma das áreas, educação e ciência jurídicas, tem potencial gigante – talvez seja indispensável – para deixar para trás as dificuldades que emperram o desenvolvimento da outra. Nesse sentido, o uso de artigos científicos em sala de aula tem o potencial de levar ao início da formação do indivíduo os debates mais avançados que ocorrem no seu campo do conhecimento, estimulando a formação do espírito crítico e da busca de conhecimento. Além disso, é um poderoso estímulo na superação da assim chamada “cultura manualesca”: alunos que aprendem com manuais tendem a citá-los em suas peças forenses quando se tornam advogados, juízes e promotores, enquanto que, caso tenham tido contato estreito com a produção bibliográfica publicada em periódicos, tenderão a utilizá-la em sua prática profissional. Ao mesmo tempo, a criação de uma cultura de uso de artigos tende a gerar uma demanda tanto por mais como por melhores artigos, tendo um efeito positivo sobre a produção acadêmica. Isso decorre de uma característica fundamental da academia: existem dois incentivos fundamentais para a atuação do pesquisador. O primeiro são as avaliações institucionais, como aquelas efetuadas por instituições de fomento, como CNPq, CAPES, FAPEMIG e FINEP, para a concessão de recursos a projetos, ou as realizadas pelas instituições de ensino para o posicionamento dos profissionais ao longo da carreira; no final, está-se tocando na questão financeira. A segunda, e que é bastante pronunciada no ambiente científico, é a reputação. Cientistas em geral, e juristas em particular, tendem a buscar construir uma imagem positiva de si mesmos e de seus trabalhos perante os pares. Isso decorre de algumas características da vida acadêmica, como o papel fundamental desempenhado pela comunicação científica na produção do conhecimento, já que este, enquanto empreendimento coletivo, só se efetiva com a troca de informações; o grande 301 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014. prestígio desempenhado pela atividade científica no mundo atual; o papel desempenhado pelo fato de se dar palestras em congressos, coordenar enventos científicos e outras atividades que dependem essencialmente da aprovação dos pares; dentre diversas outras. Assim, com a difusão dos artigos acadêmicos no mundo prático, é maior a possibilidade de que essa produção tenha um impacto real na vida das pessoas, gerando uma reputação positiva para o seu autor e tornando-se, assim, um incentivo alternativo à produção para além das avaliações efetivadas pelos órgãos oficiais. Atualmente, pelo menos no âmbito do direito, esse papel é ocupado pelos manuais, de modo que as posições de prestígio no mundo jurídico são atingidas não por aqueles que publicam com frequência artigos de qualidade em periódicos qualificados, mas os que publicam manuais muito vendidos por editoras de prestígio. Com isso, fica claro que a incursão da produção acadêmica no mundo do ensino de direito tem um efeito positivo dos dois lados: qualifica o ensino de graduação ao mesmo tempo em que permite a elevação da qualidade dos artigos publicados; além disso, há um impacto real sobre a prática dos estudantes após o fim dos estudos formais, de modo que se efetiva uma das bases da universidade brasileira contemporânea: a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Mas ainda permanece uma questão: como então superar a crise atual e construir a ponte entre ensino e pesquisa, o motor do processo acima descrito? Trata-se de uma questão difícil, e que não pode ser respondida com certeza; contudo, tentaremos abaixo elencar algumas possibilidades. Um primeiro passo é fazer com que os artigos estejam presentes em outros artigos: por mais irônico que isso seja, os trabalhos publicados em periódicos citam muito poucos artigos - pelo menos no caso do Direito e das ciências humanas em geral - o que diminui em muito a importância desses trabalhos. Assim, um primeiro passo seria buscar esse maior intercâmbio acadêmico, fazendo com que as revistas sejam lidas pelos próprios pesquisadores, o que muitas vezes não acontece. Uma forma de conseguir isso seria fazer com que os pareceristas das revistas e os seus editores, quando dessem retorno aos autores acerca dos manuscritos submetidos, solicitassem a leitura e discussão de mais artigos, podendo, em alguns casos, indicar trabalhos específicos a ser considerados; o mesmo deveria ser exigido pelos orientadores dos seus alunos, quando estivessem elaborando teses, dissertações e outros trabalhos. Além disso, cumpre efetuar uma melhor divulgação das revistas. Muitas vezes, as chamadas de publicação ou o lançamento de novas edições são desconhecidas do público 302 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Superando as crises... acadêmico, sendo divulgadas por meio de um ou outro cartaz na faculdade, e uma chamada de pouca divulgação na internet. Seria interessante que se criassem sites ou páginas em redes sociais especializados em fazer essa divulgação, congregando um público direcionado e aumentando a circulação dessas notícias. A última chamada da Alethes foi divulgada em diversas cidades de 6 estados brasileiros e em Portugal, na maioria destes lugares tendo ocorrido divulgação física de cartaz especialmente elaborado. Isso torna a publicação conhecida e chama a atenção para a leitura de seus textos, ou pelo menos de seu sumário, o que já ajuda no seu conhecimento, sendo um primeiro passo para seu uso. O advento da internet também facilita a difusão dos artigos, já que existem bases de dados extremamente amplas contendo periódicos das mais variadas áreas do conhecimento disponibilizados sem custo algum, em alguns casos, assinados por agências governamentais, e, em outros, no modelo Open Access. Exemplos são o Portal de Periódicos da CAPES, com quase 40 mil revistas, o SciELO, principal bases latinoamericana, e o Google Acadêmico. Entretanto, essas ferramentas são pouco divulgadas entre os alunos de graduação; seria interessante que elas fossem apresentadas pro professores, especialmente os da disciplina de metodologia da pesquisa, nas instituições em que ela existir, ou por algum outro docente que venha a cobrar a redação de um artigo ao longo de sua disciplina. Ademais, as próprias bases poderiam efetuar campanhas de divulgação. Também é importante que os professores utilizem efetivamente os artigos em sala de aula, tratando-os como apoio ou fonte principal de informação em seus programas de graduação. Além disso, é interessante que seja solicitada a escrita de trabalhos sob a forma de artigo, o que potencializa a necessidade de o estudante buscar escritos dessa natureza para servirem de base para os seus próprios textos. No entanto, para que isso se efetive, é necessário uma profunda revisão dos próprios processos de avaliação de aprendizagem dos cursos de Direito, os quais normalmente estão focados apenas em provas – frequentemente, de multipla escolha -, seguindo o modelo dos tão desejados concursos públicos. Além disso, é necessário um efetivo diálogo da pesquisa com a graduação: os estudantes do primeiro nível devem ser ser estimulados a se inserir no universo da investigação, seja na forma dos programas de iniciação científica, cada vez mais comuns, seja de forma voluntária. Assim, a participação em grupos de pesquisa, a condução de projetos, a inscrição em congressos e outros eventos torna o aluno parte da pesquisa, e o 303 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014. estimula a querer transferir o instrumental que ele adquire na investigação para o processo de aprendizagem ocorrido em sala de aula. Ademais, é importante uma política de publicação por parte dos periódicos que aceite artigos oriundos de estudantes da graduação, já que isso possibilitar a inserção completa do processo de produção do conhecimento. No caso do Direito, muitas revistas ainda exigem o título de pós-graduação para se publicar, ou que pelo menos um dos autores seja doutor; no entanto, as revistas científicas estudantis vêm quebrando essa lógica. Dentre as várias que existem no Brasil, podemos citar a Revista do CAAP, na UFMG, a Revista dos Estudantes de Direito da UnB, e as revistas In Verbis e Fides da UFRN. A nossa Alethes, da UFJF, empunha também essa bandeira e radicaliza a proposta, aceitando apenas autores graduandos. Considerações Finais O ensino do Direito e a Ciência atravesam crises, mudanças de paradigma, perdas de sentido e ressignificações, gerando conflitos, tensões e disputas. Nossa época tem assistido à intensificação desse processo, e tem buscado discutir suas causas e possíveis saídas. Nesse trabalho, tratamos de recolocar os dois problemas sob uma pespectiva diferente: tratando-os com o mesmo olhar, ou seja, identificando a mudança no sentido do ensino de direito como vetor para a transformação da pesquisa jurídica, ao mesmo tempo que vemos a ressignificação desta como o catalizador da melhoria da qualidade das nossas salas de aula. Com isso, buscamos levar da forma mais séria e comprometida possível a ideia de indissociabilidade entre ensino e pesquisa, parte do tripé que fundamenta a compreensão da universidade brasileira moderna. Podemos ver, assim, que, mais do que meros conceitos retóricos vazios, alguns dos principais vetores do discurso universitário contemporâneo, como a ideia de autonomia universitária, o tripé ensino-pesquisa-extensão, ou, o que aqui se tratou de forma mais detida, a ligação entre ensino e pesquisa, são elementos profundamente transformadores da realidade, e que, se levados à suas últimas consequências, podem promover mudanças reais nas vidas das pessoas, solucionando problemas quotidianos que entravam o desenvolvimento do país. Este breve ensaio busca ser um primeiro passo nessas discussões, trazendo para o palco simbólico que é um periódico estudantil reflexões sobre o papel da universidade na sociedade, que devem ser levadas a cabo por todos, inclusive alunos de graduação. 304 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Superando as crises... Diversas dimensões do problema foram deixados de lado, como a estreita vinculação deles a algumas ideologias econômicas – o privilégio da mensuração, do quantitativismo e dos objetivos estreitos que é típico do neoliberalismo é muito claro em alguns critérios de avaliação da CAPES, bem como na mercantilização dos cursos de Direito. Contudo, como espaço de debate, antes de mais nada, a Alethes busca aqui provocar o leitor e apenas abrir caminho para reflexões ulteriores. Eperamos ter cumprido esse objetivo. 305 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir UFJF, v. 04, n. 06, pp 295-305, jul./dez., 2014. 306 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. 307 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito 308 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. Norma e Direito: Michel Foucault e o excesso normativo-jurídico Norm and Law: Michel Foucault and the juridical-normative excess Lorena Martoni de Freitas1 Resumo: A inflação legislativa é um fenômeno que expõe uma possível crise do direito, ou talvez, o seu inerente paradoxo. Revela uma prática jurídica que, no intuito de abarcar a realidade em todas as suas ocorrências, na pretensão de uma completude seguramente positivada, culmina em um ordenamento em constante modificação, que desvenda a incoerência intrínseca a seu excesso normativo. Comumente no âmbito jurídico o problema é explorado e propõe-se solúvel a partir de noções de técnica legislativa, no entanto o presente trabalho pretende dissecar a matéria sob um viés foucaultiano. Busca-se compreender portanto, a partir do método genealógico de Michel Foucault, a relação entre esta evidente inflação legislativa e as ocorrências de integração de um poder soberano e disciplinar, como vetor da atual realidade jurídiconormativa. Palavras-chave: Michel Foucault; norma; poder. Abstract: The legislative inflation is a phenomenon that exposes a possible crisis of Law, or perhaps its inherent paradox. Reveals a legal practice that, in order to embrace the reality in all its occurrences, with the pretension of a completeness surely written, culminates in a juridical system in constantly change, which reveals an inherent inconsistency in its normative excess. Commonly in the legal context the problem is explored and shows itself as soluble by the notions of legislative technique, however this study aims to dissect the matter under a Foucauldian bias. Therefore it seeks to understand, from the genealogical method of Michel Foucault, the relationship between this evident legislative inflation and the integrating occurrences of a sovereign and disciplinary power, as a vector of the current legal and normative reality. Keywords: Michel Foucault. Norm. Power. Recebido em: 28 de outubro de 2014 Aceito em: 28 de janeiro de 2014 1 Aluna de graduação do 10º período da Faculdade de Direito da UFMG, ligada ao Departamento de Introdução à Ciência do Direito, na linha de pesquisa “Estado, Razão e História”, área “Filosofia do poder e pensamento radical” com enfoque em biopolítica, sob a orientação do professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos. 309 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito Introdução Em um breve artigo publicado no jornal Le Monde, em sede de discussão sobre o livro de Philippe Boucher “Le ghettojudiciaire”, em consonância com este autor Foucault desenvolve a noção de uma “desordem” no direito, por ser este uma instância frágil, permeável e transparente, apesar das névoas em que estaria envolta (FOUCAULT, 1994, p. 696), reforçando a ideia da indiscernibilidade entre direito e os diversos outros discursos que o circundam. Na medida em que percebe o direito como instância aberta à penetração dos mais diversos elementos, principalmente àqueles relacionados a estruturas de dominação que utilizam do discurso jurídico para se legitimarem, o autor assume a ideia de que os “vícios” do direito fazem parte do seu próprio mecanismo de manutenção da ordem social. Essas desordens não são, de fato, nem acidente, nem obstáculos ou limitações do aparelho judiciário. Nem mesmo perturbações. Mas sim mecanismos de funcionamento. A Justiça se exerce por e através das incapacidades de um ministro, das exigências de um interesse, dos erros de ambição. [...] Da nossa justiça se espera, pelo menos desde o século XIX, não ter outra função senão aplicar a lei. É uma formatação muito limitada se você considerar todas as exceções que ela tolera, todas as contradições que ela inflige. Mas se você reparar em seu aparelho em funcionamento, em seus pormenores, você perceberá que a perturbação da lei obedece oprincípio da preservação da ordem. Diz Philippe Boucher: "A Justiça não está preocupada com o prejuízo, ela cuida dos transtornos." É devido à ordem que decidimos processar ou não processar. É devido à ordem que permitimos que a polícia faça o que quiser. É devido à ordem que expulsamos aqueles que não são perfeitamente "desejáveis". Este primado da ordem tem pelo menos duas consequências importantes: que a justiça se preocupa cada vez mais com o cumprimento da norma do que com o respeito à lei; e que ela tende cada vez menos punir crimes do que penalizar comportamentos. (FOUCAULT, 1994, pp. 696-697, tradução nossa) Esta percepção fornece uma chave de análise para o problema do excesso normativo jurídico (e suas inerentes contradições) alternativa à adotada no estudo jurídico dogmático. Ao invés de tomar uma idealização do ordenamento jurídico como ponto de partida para a crítica de suas imperfeições, como se estas fossem uma corrupção ou desdobramentos acidentais de um verdadeiro dever ser, e como tais passíveis de correção, uma abordagem foucaultiana desloca o foco crítico exatamente para este conceito idealizado, desvelando o caráter discursivo de uma relação de poder consolidada a partir construções sobre a verdade, e que assim se sustenta na reiteração de uma ideia de ordenamento jurídico hierarquicamente unificado e coerente, cujo conteúdo normativo encerraria orientações de caráter absoluto. 310 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. A partir desta desmistificação do direito, ainda fortemente atrelado à concepção iluminista de Estado Legislativo de Direito (FERRAJOLI, 2006), é possível encarar o confronto entre as normas jurídicas e a realidade social como uma ocorrência natural, e não falha, que como tal engloba uma mutabilidade necessária, ao invés de adotar contorcionismos hermenêuticos cada vez mais complexos que insistem em manter a concepção de um Direito como um sistema de verdades, estático e atemporal, desconsiderando seu caráter eminentemente decisório e artificial, “posto ou produzido pelos homens e por isso confiado à responsabilidade dos mesmos sendo como eles o pensam, o projetam, o produzem, o interpretam e o aplicam” (FERRAJOLI, 2006, p. 430). Assim, perceber o caráter cultural-construtivo do Direito implica portanto em assumir uma posição crítica em relação a ideia de legalidade estrita que o sustenta, bem como o monopólio de sua produção pelo Estado como autoridade formal legítima, levando-nos a pensar no que Foucault chama em alguns momentos de sua obra de um “direito novo”, no qual a norma não implicaria a lei, ou seja, um direito ao mesmo tempo antidisciplinar e liberto do princípio da soberania (Idem, 2005, p. 47), que serviria como ferramenta possibilitadora de práticas de resistências pautadas em uma atitude crítica contra o poder normalizador, sendo concebido como de adesão livre do indivíduo a um estilo de vida que deseja conferir à própria existência (FONSECA, M. A., 2012, p. 271). No entanto, para se pensar um direito novo como reflexo de práticas de libertação, é essencial identificar o caráter normalizador que o direito assume atualmente, pois somente a partir daí é possível negá-lo e construir subjetividades jurídicas relacionadas à arte ética da “indocilidade refletida” e ao “cuidado de si”. Por isso, como prelúdio essencial a um direito a se construir, no contexto do presente trabalho trataremos pontualmente da ligação entre a ideia de normalizaçãofoucaultiana e a desordem inerente ao Direito, da forma como este tem se apresentado no decorrer da história, questão a qual o autor dedicou maior atenção em sua análise crítica, e que será aqui traduzida no fenômeno do excesso normativo-jurídico. Neste viés será ponderado o fato de que a lei na atualidade aumenta de modo extraordinário, em quantidade e diversificação, durando muitas vezes reduzido tempo, impondo alterações ou substituições constantes no ordenamento jurídico (DOBROWOLSKI, 1999, p. 80) que se apresenta então necessariamente instável. 311 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito Assumida como fato social, esta conjuntura tem sido analisada no intuito de melhor compreender suas causas e efeitos nas esferas jurídica, política e social. Tratarse-ia de uma crise do Direito? Da ideia iluminista de direito - como criação de uma racionalidade universal - desmistificada em prol de um sistema jurídico mais sujeito à interpretação hermenêutica? De uma necessidade estatal de organizar integralmente a sociedade coordenando a atividade de todos os setores particulares no quadro de um projeto coletivo? A partir do pensamento desenvolvido por Michel Foucault analisaremos o conceito de norma para compreendermos porque e se o referido fenômeno deve ser compreendido como uma inflação do direito. Perceberemos o excesso normativojurídico a partir de um caminho inverso da produção normativa estatal, ou seja, normas não mais percebidas como projeções de poder do Estado na sociedade, mas sim como captura de focos de poder pelo aparelho estatal, demonstrando que o Estado opera com base em relações e redes de poder preexistentes, e não como núcleo único, centralizado e concentrado emanante de poder. 1. Contextualização 1.1) O fenômeno do excesso normativo-jurídico brasileiro Em outubro de 2013 o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação realizou um estudo estatístico referente à quantidade de normas no Brasil após 25 anos da Constituição de 1988, concluindo que: A legislação brasileira é um emaranhado de complexos assuntos. Foram editadas mais de 4,7 milhões de normas. Em média são editadas 784 normas por dia útil. Em matéria tributária, foram editadas 309.147 normas. São mais de 1,91 normas tributárias por hora (dia útil). Em 25 anos, houve 15 reformas tributárias. Foram criados inúmeros tributos, como CPMF, COFINS, CIDES, CIP, CSLL, PIS IMPORTAÇÃO, COFINS IMPORTAÇÃO, ISS IMPORTAÇÃO. Foram majorados praticamente todos os tributos. Em média cada norma tem 3 mil palavras. O termo “direito” aparece em 22% das normas editadas. Saúde, Educação, Segurança, Trabalho, Salário e Tributação são temas que aparecem em 45% de toda a legislação. [...] No âmbito federal, foram editadas 158.663 normas desde a promulgação da Constituição Federal, passando por 6 emendas constitucionais de revisão, 74 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 85 leis complementares, 5.125 leis ordinárias, 1.238 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 11.111 decretos federais e 135.530 normas complementares 312 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. (portarias, instruções normativas, ordens de serviço, atos declaratórios, pareceres normativos, etc.). Em média, foram editadas 17,38 normas federais por dia ou 26,01 normas federais por dia útil nestes 25 anos. [...] Os Estados editaram 1.219.569 normas, sendo 279.906 leis complementares e ordinárias, 405.884 decretos e 533.779 normas complementares. Em média foram editadas 133,58 normas por dia ou 199,93 normas por dia útil, em nível estadual. Neste período, em média, cada Estado editou 45.169 normas, o que dá 4,95 norma/dia ou 7,40 norma/dia útil. [...] Já os Municípios são responsáveis pela edição de 3.406.962 normas, divididas em 584.045 leis complementares e ordinárias, 647.231 decretos, e 2.175.685 normas complementares. Em média, os municípios brasileiros editaram 373,16 normas por dia ou 558,52 normas por dia útil. Assim, considerando que existem 5.567 municípios no Brasil, cada um deles editou, em média, 611,99 normas neste período. [...] Dividindo-se a quantidade de normas editadas pelo número de habitantes do país, verifica-se que nos três anos anteriores à promulgação da Constituição de 1988 foi editada 1 (uma) norma geral para cada grupo de 300 habitantes. No período de 1989 a 2013 foi editada 1 (uma) norma para cada grupo de 42 habitantes. (FERNANDES DO AMARAL; LUIZ DO AMARAL; OLENIKE (coord., grifo nosso), 2013, pp. 2-6) Percebe-se que o número de normas jurídicas está em constante aumento, em contrapartida, seu período de vigência tem se tornado cada vez mais curto. Em adição, tem-se a incerteza semântica e complexidade da linguagem que as expressa, “permeada pela imprecisão, obscuridade e ambiguidade, cujos significados podem ser estendidos indefinidamente em âmbito de aplicação” (FERRAJOLI, 2006, p. 440). Estes fatores dificultam o conhecimento da legislação pela população, e por vezes pelos próprios juristas, relativizam o direito gerando insegurança jurídica e hiper-regulam a vida privada, aumentando a litigiosidade e a judicialização. Do ponto de vista da Legística, este fenômeno está relacionado, dentre outras, à condicionantes jurídicas2, políticas3 e procedimentais4, ao fato de que os legisladores estão elaborando leis mais detalhadas, porque não confiam na legislação ou porque consideram que os tribunais precisam desse detalhamento. Isso resulta em um problema cíclico, uma vez que a instabilidade leva à perda de legitimidade, fazendo com que a lei não atinja o resultado esperado, sendo necessários novos atos normativos para cuidar do tema. (COSTA JÚNIOR, 2009, p. 80). Ou seja, nos estudos legísticos, a excessiva 2 Relacionada à nossa tradição jurídica federalista assentada no direito escrito. Exemplos de fatores como a globalização, o direito internacional, a prática do lobby. 4 Pouca restrição à iniciativa individual na apresentação de projetos e emendas, falta de rigor e técnica legislativa, alta tolerância com as demandas por legislação simbólica, para citar algumas. 3 313 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito produção normativa é resultado de uma irresponsabilidade e inabilidade técnico-teórica, uma “intemperança normativa”, que pode vir a ser solucionada por meio de melhora nas redações legislativas, estudos de impacto, análises contextuais, criação de mecanismos de acompanhamento e aplicação da norma, de instrumentos de acesso, etc. (SOARES, 2007). José Eduardo Faria por sua vez relaciona este excesso normativo às transformações tecnológicas e organizacionais da economia industrializada e da sociedade globalizada, como uma reação do Estado que se vê obrigado a desempenhar tarefas múltiplas, até mesmo contraditórias, e que substitui a tradicional concepção de um sistema jurídico fechado, hierárquico e axiomatizado por uma visão do direito como uma organização de regras sob a forma de rede, modelo que se destaca “pela multiplicidade de suas regras, pela variabilidade de suas fontes e pela provisoriedade de suas estruturas normativas, que são quase sempre parciais, mutáveis e contingenciais” (FARIA, 1994, p. 165). Esta desenfreada produção normativa, a que o autor trata por “inflação legislativa”5, também chamada por “anomia jurídica” e “explosão legal”, é comparada a inflação econômica por disseminar uma insegurança jurídica e inviabilizar um cálculo racional da vida sócio-política, reduzindo a pó direitos que o autor considera como “conquistados de modo legítimo”, além de restringir a recepção e compreensão por parte da sociedade do ordenamento jurídico inflacionado. Essa comparação entre a inflação econômica e a “inflação legislativa” está longe de ser gratuita ou forçada. Quando um sistema jurídico está inflacionado por “leis de circunstância” e por “regulamentos de necessidade” surgidos a partir de conjunturas políticas, sociais e econômicas muito específicas e transitórias, a velocidade e a intensidade da produção legislativa invariavelmente levam o Estado a perder a dimensão exata do valor jurídico tanto das normas que edita quanto dos atos e comportamentos que disciplina. Isto porque, nos períodos mais agudos da inflação legislativa, não é só a coerência e uniformidade das normas “primárias” – as que controlam e regulamentam os comportamentos – que são completamente erodidas. Também as próprias normas “secundárias” – isto é, as normas de “mudança”, as de “reconhecimento” e as de “decisão” – revelam-se progressivamente incapazes de exercer seu papel de eliminar incertezas e assegurar a identidade sistêmica do direito positivo, tais as dificuldades, nesses momentos, de identificação, avaliação e constatação da violação ou descumprimento das normas “primárias”. (FARIA, 1999, p. 130) Para o autor o problema dessa polissemia multipolar no ordenamento jurídico é a instrumentalização do direito de forma retórica-pragmática para enfrentar as ocorrências 5 “Termo utilizado por Rodolfo Pagano em “Inflazioneedinquinamento legislativo” para sintetizar e resumir todos os fenômenos degenerativos que podem ser observados na legislação italiana, similares às mazelas que afligem nosso ordenamento jurídico” (COSTA JÚNIOR, 2009, p. 79). 314 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. cotidianas, produzindo “leis de circunstância” e “regulamentos de necessidade”, gerando diferentes microssistemas normativos dotados de lógica própria e resultando em uma indeterminação do sistema normativo, já que possibilita diversas interpretações relacionadas a interesses específicos (FARIA, 1999, p. 133). Este sistema esvaziado torna-se pesado, ineficaz e impotente, agindo como simples instrumento de implementação de programas econômicos e execução de políticas públicas. Quanto mais se procura disciplinar e regular todos os espaços, dimensões e temporalidade do sistema econômico, convertendo numa intrincada teia regulatória e numa complexa rede de micro-sistemas normativos, esse ordenamento jurídico altamente "inflacionado" (em termos de quantidade de regras e da variabilidade de suas formas) e dotado de um formalismo meramente de "fachada" (graças ao crescente recurso do legislador aos conceitos jurídicos indeterminados, às normas programáticas e às cláusulas gerais), menos o Estado parece capaz de expandir seu raio de ação e de mobilizar os intrumentos de que formalmente dispõe para exigir respeito a suas ordens (FARIA, 1994, p. 167) O autor ainda faz referência à teoria de GuntherTeubner sobre os Estados intervencionistas e seus limites jurídico-estruturais, chamada de “trilema regulatório — um tríplice dilema formado (a) pela progressiva "indiferença" recíproca entre o direito e a sociedade, (b) pela tentativa de colonização da sociedade por parte das leis e (c) pela crescente desagregação do direito por parte da sociedade” (FARIA, 1994, pp. 167-168). Ou seja, para Faria essa juridificação é tratada como um processo disfuncional que pode levar à própria anulação do sistema, crise e morte do Direito, pois quanto mais complexos são os sistemas, menor seria a autoridade institucional do Estado. Diante desse quadro, o Estado brasileiro parece estar chegando ao limite ou esgotamento de seu processo de intervenção fiscalizadora e reguladora na sociedade, na medida em que sua atuação é pautada por diretrizes desordenadas e erráticas, que o impedem de corrigir as graves distorções sociais e setoriais, de assegurar um mínimo de organicidade e coerência lógico-formal em seu ordenamento jurídico e de formular um projeto político para a nação (FARIA, 1994, p. 173) Oliveira (2009) apresenta um posicionamento crítico frente à conclusão de Faria, uma vez que percebe não se tratar de uma crise do direito, mas sim uma permanente forma de adaptação deste ao dinamismo social e aos novos desafios cotidianos, sendo antes uma questão de percepção em relação ao sistema jurídico (em que não é a lógica da subsunção que se encontra ameaçada, mas sim a sistematicidade lógica e a organicidade do ordenamento), pensando a inflação normativa como impulsionadora do poder de força do Estado, e não alguma forma de ameaça a ele. 315 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito A inflação normativa, nesse contexto, já não mais seria vista como decadência do ordenamento ou excesso de acidentes dentro do sistema, mas apontaria para o fato de que, na indiscernibilidade entre sistema e acidente, o que vem à tona é um direito como decisão. Diante do irrepresentável que não se pode prever ou regular, a inflação normativa se demonstra como limiar entre direito e fato, um movimento irrefreado que acusa o excesso e o principio da exceção. (OLIVEIRA, 2009, p.18) Assim, quando o objetivo da ordenação absoluta é desafiado pela união impossível entre norma e realidade, a captura da caótica vida nua pelo ordenamento jurídico se dá com sua suspensão pela forma da exceção: um processo que aplica a norma jurídica desaplicando-a para assim incluir aquilo que antes se encontrava expulso, realizado por um poder soberano que, localizado no limiar entre ordem e caos, decide a validade, o fora e o dentro deste ordenamento jurídico (AGAMBEN, 2012, pp. 25-26). Sendo este o movimento contínuo percebido na configuração do fenômeno da inflação normativo-jurídica, os elementos nodais deste mecanismo serão explorados a partir do pensamento foucaultiano. 1.2) As bases do pensamento de Michel Foucault Michel Foucault foi um filósofo francês nascido em 1926 e morto em 1984, formado em Psicologia e Filosofia. Possui extenso e rico trabalho que perpassa a análise das diferenças, relações de poder e produções de saber na história, de forma segmentada em estudos sobre sexualidade, loucura, as noções de normal e anormal, sujeito e norma.6 Neste sentido, foi um grande crítico de instituições criadoras de figuras subjetivas como as clínicas psiquiátricas, prisões, escolas, a igreja, a polícia e o próprio sistema judiciário. Rejeitando generalizações e esquemas totalizantes/absolutos construtores de saber, Foucault discorre sobre a consequente condição do sujeito e, juntamente com Derrida e Lévi-Strauss, inclui-se no grupo de pensadores franceses pós-Sartre contrários ao existencialismo por este desenvolvido, que negam principalmente as ideias humanistas de ativismo e liberdade do sujeito como ser autônomo e precedente a qualquer poder ou essência. Para Foucault, o sujeito é uma construção da sociedade e dos saberes dominantes de determinada época que perpassam uma rede de poderes e discursos de verdade na qual o sujeito se encontra emaranhado. 6 ”Alguns chegam a mencionar a existência de três Foucaults: aquele que se preocupa sobretudo com os discursos (nos anos 60 do século passado), aquele que se ocupa prevalentemente do poder (nos anos 70) e, por fim, aquele que privilegia o foco na instância ética, ou seja, as formas de autoconstituição do sujeito (anos 80).” (FONSECA, R.M, 2004, p. 260) 316 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. Em seus estudos, Foucault esmiúça as relações sociais, compreendendo o poder em uma realidade relacional difusa, ou seja, não necessariamente como um “lugar”, em uma relação absoluta entre dominante e dominado no âmbito econômico, organizados em uma pirâmide estrutural na qual uma classe opressora detém o poder e subjuga os demais de cima para baixo, mas sim um modelo de ramificações em uma rede de poder, com alguns nós mais evidentes, outros menos. Consequentemente, o autor recusa a ideia de um poder inteiramente repressor, cujos embasamentos são a violência e a alienação, admitindo a positividade (no sentido de produtividade) em um poder que, apesar de normalizador, também induz prazer, constrói saber, realidade e os próprios indivíduos. O pensamento de Foucault parte de uma análise histórica, com clara influência da filosofia de Friedrich Nietzsche, desenvolvendo uma epistemologia cujos alicerces são os fenômenos dispersos na realidade. Seu trabalho sobre as diferenças, sua arqueologia do saber, a relatividade do poder, os estudos sobre a loucura (três grandes instâncias do seu trabalho: saber, poder e subjetividade) foram influenciados diretamente pelos trabalhos nietzscheanos de desconstrução de um pensamento baseado em verdades conceituais7, sendo a inversão dos valores platônicos o ponto de partida para a sua filosofia, que rejeita a crença na existência de verdades absolutas e universais. Nas palavras do filósofo alemão, “uma verdade decerto é trazida à plena luz, mas ela possui um valor limitado, digo, ela é antropomórfica de fio a pavio e não contém um único ponto sequer que fosse ‘verdadeiro em si’, efetivo e universalmente válido” (NIETZSCHE, 2007, p. 40). Rejeitando a metafísica por considerar ilógica a compreensão de mundo a partir de outro referencial que não o próprio mundo, Nietzsche foi um grande crítico da noção platônica de “ideal”, que coloca a verdade em um patamar metafísico a ser alcançado pelo homem através da razão. Para o filósofo, tal ideia de origem e exterioridade do conhecimento verdadeiro é absurda, uma vez que esta noção de verdade é uma invenção do homem, um resultado do constante embate de instintos interpretativos, e de forma alguma se encontra inscrita na natureza humana, como propõe o idealismo filosófico. O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu 7 O autor parte da premissa de que “todo conceito surge pela igualação do não-igual” (NIETZSCHE, 2007, p. 35) 317 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito troquel e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas. (NIETZSCHE, 2007, pp. 36-37) Para Nietzsche a verdade é a cristalização da interpretação do mundo e como tal, insuficiente, por ser incapaz de acompanhar seu movimento. Foucault se apropria dessa crítica ao idealismo aplicando-a em sua analítica do poder, estudo intrinsecamente envolvido com os discursos de saber e desejos de verdade. O filósofo francês identifica na ideia de “verdade” criticada por Nietzsche a formação de um objeto de desejo que, uma vez relacionado a um determinado saber discursivo, resulta em uma relação de poder entre aqueles que detêm um suposto saber verdadeiro, e aqueles que o desejam (FOUCAULT, 2002, pp. 7-27). Assim, a análise do discurso proposta pelo autor permite compreender os mecanismos de obtenção, acesso e descrição da verdade, que fazem emergir focos móveis de poder, tema que irá permear toda a obra do filósofo francês. Graças à filosofia genealógica de Nietzsche sobre a relatividade dos discursos, Foucault desenvolve um estudo do poder que, ao invés de ignorar as singularidades desconsideradas pela história, universalizando-as e suprimindo as diferenças, identificaas de forma arqueológica, trazendo-as à tona, demonstrando a rede de micropoderes que rege a sociedade em direção à “normalidade” pela supressão de “minorias desviantes”. Neste viés relativo aos discursos de verdade que implicam as noções de poder e seus desdobramentos em estruturas como o Estado e a norma, perceberemos também o direito e suas formas normativas, a partir do pensamento de “desconfiança”8 foucaultiano, como um discurso legitimador de poder e veiculador de mecanismos de normalização. Foucault “desconfia” dos saberes e das práticas da medicina e da psiquiatria devido ao caráter de normalização inerente à sua atuação sobre os processos da vida dos indivíduos. “Desconfia” da forma das instituições (como a prisão, o hospital, a fábrica) que se formam nas sociedades ocidentais a partir do século XVIII, por que em tais instituições os corpos são submetidos a um mecanismo de normalização disciplinar. “Desconfia” dos procedimentos das artes de governar (liberal e neoliberal), que se organizaram e se afirmaram no Ocidente entre os séculos XVIII e XX, porque nelas reconhece os mecanismos da normalização como biopoder. Do mesmo modo, “desconfia” da forma do direito nas sociedades modernas devido à colonização de suas manifestações concretas (a produção e o conteúdo das leis, a estrutura de suas instâncias de julgamento, a organização dos saberes que compõe seus domínios) pelos mecanismos de normalização, colonização que se dá no interior de um quadro institucional formal ligado ao princípio da soberania (princípio da legitimidade do poder e da obrigação legal da obediência). (FONSECA, M. A., 2012, p. 245) 8 Termo utilizado por Márcio Alves da Fonseca para descrever uma tendência de posicionamentos de Michel Foucault ao longo de sua obra. 318 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. Nesse sentido, a partir dessa percepção do direto enfrentaremos a temática do excesso normativo-jurídico também com “desconfiança”, ou seja, não apenas como uma mera falha da técnica legislativa, mas como consequência de uma lei que funciona cada vez mais como norma (no sentido de comprometida com mecanismos de normalização), não necessariamente na busca da realização da justiça, mas sim para garantir o primado da “ordem” social, ainda que resultante de uma “desordem” do ordenamento jurídico e seus princípios. 2. A norma O estudo do direito divide-se primordialmente entre duas grandes correntes que se diferenciam desde a delimitação do seu objeto: o positivismo jurídico e o jusnaturalismo. A primeira, formada a partir da “influência do Círculo de Viena de Carnap, Neurath e Schlick, identifica o Direito diretamente com a norma jurídica, e foi desenvolvida inicialmente por juspublicistas alemães como Edmund Bernatzik, Otto Mayer e Paul Laband que partiram dos trabalhos fundamentais de Carl Friedrich von Gerber e Georg Jellinek para tentar fundar uma visão científico-objetiva do Direito e do Estado (MATOS, 2011, p. 45). Teve como principal expoente o jurista austro-húngaro Hans Kelsen, autor da expressiva “Teoria Pura do Direito”. Já a segunda admite elementos externos ao próprio direito positivo como componentes do objeto de estudo do Direito, sejam eles o direito divino, direito natural, a sociologia, reproduzindo-se em diversas vertentes, como a Escola histórica de Savigny, a Escola Marxista, a Escola Sociológica, etc. Independente da corrente adotada, frente ao fenômeno discutido, há de se admitir o papel crucial da norma no estudo do Direito, gênero do qual a norma jurídica é espécie, sendo ela componente do objeto do Direito, ou o próprio objeto em si. Para tanto, necessário compreender seu significado, que assume elementos diferentes na tradicional teoria da norma estudada no Direito e na filosofia de Foucault. Importante ressaltar que Michel Foucault não dedicou seus estudos à filosofia do direito em si, mas desenvolveu grande parte do seu pensamento em torno das noções de “norma” e “lei” na mecânica social. Como afirma Márcio Alves da Fonseca, em seu livro “Michel Foucault e o Direito”, tais noções não surgem como conceitos bem delimitados, mas sim como imagens que afloram na obra do filósofo em diferentes contextos. A norma aparece como um princípio de exclusão ou integração, ao mesmo tempo em que revela a implicação de duas formas que assume 319 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito historicamente, ou seja, a forma de “norma de saber”, anunciando critérios de verdade cujo valor pode ser restritivo ou constitutivo, e a forma de “norma de poder”, fixando para o sujeito as condições de sua liberdade, segundo regra externas ou leis internas. (MACHEREY, 1988, apud FONSECA, M. A., 2012, p. 51) Sendo a “norma de poder” o tema pertinente em primeiro plano para o estudo jusfilosófico, Márcio Alves da Fonseca destaca que, em sua analítica do poder Foucault distingue dois modelos opostos de representação do poder, o jurídico e o normativodisciplinar, concebendo o direito inicialmente como “enunciado da lei, como legalidade, como conjunto das estruturas que compõem a legalidade” (FONSECA, M. A., 2012, p.95), e sendo a lei “uma regra de interdição, de proibição, regra que permite a separação rigorosa entre o permitido e o proibido, entre o lícito e o ilícito; como instância que impõe limites e que diz não” (FONSECA, M.A., 2012 p.127) e “que representa a vontade do soberano que fora lesada e que é o próprio objeto de toda disputa judiciária da qual o suplício será a conclusão” (FONSECA, M.A., 2012, p.139). Em contrapartida a norma é a regra portadora de uma pretensão de poder e advinda de um saber pré-constituído que busca a adequação ao “normal”, tido aqui como o oposto de patológico (FOUCAULT, 2002, p. 62). No entanto, feita essa separação conceitual inicial na obra foucaultiana (cujo intuito era desmistificar a noção de poder como uma posse exclusiva e legítima do soberano), o filósofo passa a demonstrar como o desenvolvimento do poder jurídico para um modelo de gestão pautado na biopolítica incorpora a norma em sua estrutura, convertendo-a em norma jurídica. Nesse momento, norma e lei não podem mais ser pensadas de forma independente, sendo o aspecto normativo inerente à forma da lei, não podendo esta ser reduzida a um simples comando (FONSECA, M. A., 2012, pp.144147). 2.1) A norma e a lei Na obra de Foucault, a norma nasce da bipolaridade, da separação de dois objetos contrastantes, reduzindo a complexidade do real e baseando-se eminentemente em um critério estatístico e um consenso tácito da coletividade, que busca amoldar os sujeitos e suas condutas por meio de instituições, de forma a garantir sua correta integração ao corpo social e proporcionar sua homogeneização. Em seu curso “Os 320 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. anormais”9, após citar o livro de Georges Canguillhem, “Le normal et lepathologique”, Foucault define a norma: Vocês também vão encontrar, sempre no texto a que me refiro, a ideia, que acho importante, de que a norma não se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios a que se aplica. Por conseguinte, a norma é portadora de uma pretensão de poder. A norma não é simplesmente um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício de poder se acha fundado e legitimado. Conceito polêmico – diz Canguilhem. Talvez pudéssemos dizer político. Em todo caso – e é a terceira ideia que acho importante – a norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo (FOUCAULT, 2002, p.62). François Ewald, em seu livro “Foucault: A norma e o Direito”, retoma a citada obra de Georges Canguilhem que influenciou os trabalhos do filósofo francês traçando a origem etimológica da palavra “norma”: Se soubermos que norma é a palavra latina que traduz esquadro e que normalis significa perpendicular, sabemos mais ou menos o que é preciso saber acerca do domínio original dos termos norma e normal. [...] Como metáfora, o termo será retomado para designar a regra de direito. [...] Ora, no princípio do século XIX irá dar-se uma singular alteração nas relações entre regra e norma. Norma já não será um outro nome para regra, antes vai designar ao mesmo tempo um certo tipo de regras, uma maneira de as produzir e, sobretudo, um princípio de valorização. É certo que a norma designa sempre uma medida que serve para apreciar o que é conforme à regra e o que dela se distingue, mas esta já não se encontra ligada à ideia de rectidão; a sua referência já não é o esquadro, mas a média; a norma toma agora o seu valor de jogo das oposições entre o normal e o anormal ou entre o normal e o patológico (EWALD, 2000, p.79) Nesse sentido, sob o manto foucaultiano Ewald explica a norma como elemento referencial de homogeneização social e de articulação da sociedade disciplinar, que estabelece comunicações entre instituições produtoras de saber e discursos de poder na construção dos indivíduos. Mas para isso, a norma age antes como medida que torna os indivíduos comparáveis, salientando os desvios relacionais, “aquilo que a norma torna visível são sempre desvios, diferenças, aquilo pelo qual nos distinguimos dos outros, ou até de nós mesmos” (EWALD, 2000, p. 111). Ou seja, antes de produtora de subjetividade na construção do indivíduo (tarefa realizada no processo disciplinar) a norma equaliza a partir de uma medida comum, uma média constatada estatisticamente por um determinado grupo sobre ele mesmo. A norma designa uma regra de juízo, uma maneira de produzir a regra de juízo. É uma maneira de ordenar multiplicidades, de as articular, de as 9 Curso ministrado pelo autor no Collége de France entre 1974 e 1975. 321 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito relacionar consigo mesmas segundo um princípio de pura referência a si. A norma produz objectividade. É um princípio de comunicação, uma maneira, particular, de resolver o problema da intersubjetividade. A norma igualiza, torna cada indivíduo comparável a cada outro; fornece medida (EWALD, 2000, p. 108-109) Esse processo de categorização, de compartimentalização, proporciona a produção de saber e de técnicas disciplinares, que para Foucault, passa a se desenvolver no âmbito institucional como um mecanismo de adestramento dos corpos, remetendo esse saber constituído por meio de dados e relatórios ao poder soberano para o exercício da governamentalidade10. A normalização é essencial para uma organização social coesa, para a padronização de seus mais diversos nichos: econômico, jurídico, social, proporcionando segurança através do controle social. Ewald ressalta, no entanto, que como expressão de medida que um grupo social se dá por auto-referência, seria absurdo atribuir à norma um caráter absoluto, como pretende a lei: Não porque uma norma não seja feita para durar – ver-se-á, pelo contrário, que as normas têm a maior das capacidades para durarem – mas porque a duração normativa inclui a possibilidade da sua própria transformação. É, em particular, esta capacidade de adaptação, de emparelhar com as condições permanentemente móveis de uma situação que, aos olhos industriais, dá valor à normalização e torna a norma superior à lei ou ao regulamento. A norma deve o seu valor ao facto de não estar fora do tempo. Tal como não pode pretender ao absoluto sem perder a sua natureza e as suas virtudes, a norma nunca é universal. Isso deduz-se do seu modo de formação. A sociologia, pelo menos desde Durkheim, mas também a etnologia cultural, não se cansam de repetir que a validade de uma norma não pode exceder o grupo que a institui como sua regra: “Um facto não pode ser qualificado como patológico a não ser em relação a uma espécie dada; não pode dizer-se normal a não ser em relação a uma fase, igualmente determinada, do seu desenvolvimento.” [...] Relatividade das normas donde se deduz o facto de que não teria qualquer sentido querer aplicar as normas de um aos outros (EWALD, 2000, pp. 113-114) Portanto as normas, como ponto de equilíbrio comportamental, respeitam certa inércia sociológica, mantendo-se vigentes na medida em que adequadas a um determinado grupo social da qual advêm, e flexíveis à mutabilidade de desempenho desse mesmo grupo. O que Ewald diz é que não há necessidade de “se impor uma lei ao ser vivo para que a sua conduta seja regulada” (EWALD, 2000, p. 120). O caráter jurídico conferido a normas de conduta por muitas vezes limita a alteração de comportamento necessário ao desenvolvimento de uma sociedade. Se a própria língua varia à medida que atravessa os sujeitos falantes, assumindo novos vocábulos e 10 Governamentalidade no sentido trazido por Foucault no curso “Segurança, território e população” de correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para conduzi-las a um fim adequado. 322 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. significados, de que modo uma norma escrita poderia permanecer constantemente adequada como direito positivado? A norma, naturalmente instável, é necessariamente variável, uma vez que sensível à história, abarcando suas transformações, e portanto deve ser jungida em flexibilidade. Frente a esses apontamentos, conclui-se então como uma afronta à evolução social, uma violência por assim dizer, a cristalização de certas normas pelo âmbito jurídico, tanto pela relatividade dos valores balizadores que as fundamentam, quanto por ser característico das normas a interligação aos diversos nichos sociais, cada um com sua dinâmica própria, mas que influenciam uns aos outros, perpassando inclusive a esfera jurídica. Não se reduz, portanto, o Direito apenas às suas próprias formas normativas, como leis, códigos e regulamentos, ou a um ordenamento hermético em sua completude. Impensável seria dissociar a relação de normas jurídicas e não jurídicas. Apesar de a formalização de medidas/regras sociais pelo Estado estagnar sua adaptação temporal, imputando às subsequentes gerações medidas referenciais de um grupo que não mais subsiste, essa prática mantém-se constante, pois como ressalta Foucault, relaciona-se intrinsecamente à manutenção de um discurso de poder que advém desde os Estados monárquicos. Nas palavras de Ewald: Numa passagem precedente de A vontade de saber, Foucault tinha procurado as razões pelas quais “se esquematiza o poder numa forma jurídica; e se definem os seus efeitos como obediência”. Dava duas razões. A primeira é geral: ‘É sob a condição de mascarar uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável’. O poder faz do direito o instrumento da sua apresentação de modo a reservar o segredo que lhe é essencial. A segunda é essencial: a monarquia reduziu a ‘multiplicidade dos poderes preexistentes’ à forma do Estado, fazendo-se princípio do direito – deveria dizer-se de um direito jurídico, caracterizado pela unidade, pela lei como modo de expressão, pela interdição e a sanção como mecanismos. Deste modo, o jurídico não foi, para o poder monárquico, apenas a forma da sua aceitabilidade, mas também a sua ‘linguagem’, o seu ‘modo de manifestação’, o seu ‘código’ (EWALD, 2000, p. 121) Ewald ressalta que a equalização dos homens através da norma é essencial para a efetivação da igualdade de direitos no âmbito jurídico. Nesse viés, foi também a ideia de norma que possibilitou ao direito instituir figuras como o criminoso, o estrangeiro, o incapaz, e legislar especificamente sobre elas, mais uma vez englobando as técnicas disciplinares nos códigos jurídicos. A apropriação da norma pelo discurso jurídico resulta em uma detenção do poder de enunciar verdades, de dizer o que é certo e o que é errado, o punível e o aceitável. 323 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito Em “Os anormais” Foucault discorre sobre essas produções históricas da figura do “anormal”, dos indivíduos desviantes e de sua concepção no imaginário social, provenientes de valores “médios” estritamente entrelaçados com os variados discursos de verdades (religioso, científico/biológico, psiquiátrico) predominantes no decorrer do tempo. Discursos que resultaram em figuras como o monstro, o leproso, o masturbador, o sodomita, a histérica, todos estes anormais patológicos tratados diferenciadamente pelo poder jurídico. O autor também demonstra como à medida que as “anomalias” passam a se tornar recorrentes, o discurso se altera e o desvio se incorpora à regra, provocando um reordenamento jurídico: O enfermo pode não ser conforme a natureza, mas é de certa forma previsto pelo direito. Em compensação, a monstruosidade é essa irregularidade natural que, quando aparece, o direito é questionado, o direito não consegue funcionar. O direito é obrigado a se questionar sobre seus próprios fundamentos, ou sob suas práticas, ou se calar, ou se renunciar, ou apelar para outro sistema de referência, ou a inventar uma casuística, No fundo, o monstro é a casuística necessária que a desordem da natureza chama no direito (FOUCAULT, 2002, p. 80) Nesse momento, Foucault percebe a presença da norma no direito como estratégia de poder disciplinar, quando a necessidade da internação, da segregação do “anormal” que insurge naturalmente no seio social, passa a ser regulamentada pelo poder soberano, poder jurídico conjugado com o saber médico. Encontram-se igualmente associados a essa figura do Direito, procedimentos de organização do espaço institucional representado pelo asilo psiquiátrico segundo um modelo que será, para Foucault, a matriz comum dos procedimentos de caráter médico e relação à loucura no Ocidente, a partir do início do século XIX (FONSECA, M. A., 2012, p.119). O direito deixa de ser associado então somente com o exercício punitivo/repressivo do poder soberano por meio da lei e do suplício que buscava extirpar o anormal da realidade dos homens, a partir do momento que passa a estar diretamente conectado às instituições onde saberes são produzidos e técnicas disciplinares atuam não mais na repressão, mas na prevenção por meio da normalização e do regulamento. Em “Vigiar e Punir”, Foucault percebe que a partir da produção do saber nas instituições ligadas ao poder soberano (sendo as penitenciárias seu maior exemplo), que revelavam tanto o normal (no sentido de média social já apresentado), quanto o anormal (as recorrentes e múltiplas dissonâncias), surge a noção de ilegalismo, ou irregularidade, como resultado, e também componente, da própria ideia de legalismo e regularidade. São nesses desvios, em suas particularidades, que o direito passa direcionar seu foco. 324 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. A diversificação das atividades que passam a ser consideradas ilícitas exigirá uma codificação de todas essas práticas. Codificação que será fundamental para o exercício de uma punição que não poderá mais ser geral e uniforme (como era o suplício), mas que terá de ser específica, proporcional à gravidade da falta a que estava ligada. [...] Na gestão dos ilegalismos, trata-se de impedir a ocorrência de algumas ilegalidades e de deixar que outras sejam realizadas. A penalidade será, então, calculada: o que e quanto se quer evitar e o que e quanto pode ocorrer. Toda a “pedagogia” da punição deve obedecer a este critério maior da gestão diferencial dos ilegalismos. (FONSECA, M. A., 2012, pp. 134-134) Nesse sentido, Foucault traz à tona a constante necessidade de um ordenamento jurídico buscar elementos externos a ele mesmo para manter sua coesão e legitimidade frente aos eminentes desvios sociais que busca regular, frente às constantes alterações da medida, da norma social na qual se baseia. Ewald volta a citar Canguilhem quanto à necessária articulação entre normas, inclusive as jurídicas e não jurídicas, para uma existência social. Ou seja, para a manutenção de um ordenamento normativo é necessária uma relação entre normas horizontal/modular, como em uma rede relacional e fluida de afinidades entre os diversos campos da realidade: Haveria, deste modo, que traçar o mapa das redes normativas: ver-se-ia sucessivamente como uma norma em um nível se articula com uma norma de outro nível, norma de segurança com norma de performance, norma de disciplina com norma de produção, norma de produção com norma de população. “As normas, volta a explicar G. Canguilhem, são relativas umas às outras num sistema, pelo menos potencialmente. A sua correlatividade num sistema social tem tendência a fazer desse sistema uma organização, ou seja, uma unidade em si, senão por si, e para si. Tal como não há norma que não seja social, não poderia existir norma isolada. Uma norma nunca se refere senão a uma outra norma da qual, por isso mesmo, depende. As normas comunicam entre si, de um nível ou de um espaço para o outro, de acordo com uma espécie de lógica modular. Uma norma encontra o seu sentido numa outra norma: só uma norma pode dar valor normativo à outra norma (EWALD, 2000, p.107) Por fim, Márcio Alves da Fonseca nos remete a uma entrevista de Mireille Delmas-Marty (1996, pp. 85-97) que aborda o tema da lei e sua relação com a norma a partir do pensamento Foucaultiano: Em um momento da entrevista, dirá que Foucault descreve, em Vigiar e Punir e em A vontade de saber, a passagem “da lei à norma” e que esta seria um dos “problemas maiores do direito atualmente”, pois o movimento da referida passagem não seria um deslizamento num único sentido. Não se estaria “passando” da lei à norma. Mas o que haveria entre ambas seria uma espécie de “engavetamento”. E a descrição desse “engavetamento” só poderia ser feita a partir da consideração de dois conceitos: a “normatividade” da lei e a “normalização”. Enquanto o primeiro, apesar dos “movimentos” que envolve, está sempre referido a limites e interdições, ou seja, ao plano de um “dever-ser”, o segundo reporta-se às noções de “média” ou “medida”, estando referido ao plano do “ser”. De um lado, a “normatividade” da lei responde aos critérios de “medida” dados pela norma. De outro lado, a norma 325 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito se reporta às formas da lei para atuar concretamente. (FONSECA, M. A., 2012, p. 149) Nesse ponto, compreendida a conexão entre lei e norma no pensamento foucaultiano como uma relação de implicação ambivalente entre o disciplinar e o jurídico, modelo que ao tentar abarcar e regular cada desvio, cada dissonância social, culmina necessariamente em uma inflação legislativa, analisemos a atual concepção da norma jurídica no tradicional estudo do direito. 4.2) A norma jurídica Diversos juristas discorreram teoricamente sobre a norma e o ordenamento jurídico no estudo do direito, no entanto, imperativo reconhecer a teoria de Hans Kelsen como cânone no estudo da norma jurídica desenvolvida por eles. O Direito, conforme o define Kelsen, é “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano” (KELSEN, 1999, p. 5). Por sua vez, o caráter jurídico da norma jurídica advém da sua inserção no próprio ordenamento jurídico, ou seja, elas não surgem de fontes e de instâncias estranhas ao sistema jurídico, mas se formam mediante um processo por ele regulado, sendo o Direito a sua própria fonte, regulando seu permanente processo de autoprodução (KELSEN, 2012, p. 377, apud, AFONSO, 2013, p.53). Inicialmente Kelsen explica que as normas em geral traduzem uma vontade coletiva no sentido de cumprimento de um ato, solidificado pela repetição durante um dado período de tempo por um determinado grupo social. Dessa forma, “a norma não necessita ser efetivamente posta, podendo estar pressuposta no pensamento” (KELSEN, 2012, p. 10). Nesse ponto, percebemos uma convergência com a noção originária de “norma” no pensamento foucaultiano, no qual, já vimos, aparece como uma regra de juízo, uma medida que ordena as multiplicidades, fornecendo uma medida que referencia a si mesma (EWALD, 2000, p. 108-109). Nesse sentido, assumindo a norma como resultante de uma vontade humana (proveniente ou não de uma competência qualificada) carregada de juízos de valor arbitrários, Kelsen explica a mudança abrupta em certas normas no decorrer do tempo, uma vez que são expressas por valores relativos, sem que isso afete sua legitimidade durante seu período de vigência. O autor também diferencia “norma vigente” de “norma eficaz”, sendo a primeira correlata à efetiva aplicação e observância da norma, enquanto a segunda à sua adequação fática às condutas humanas (KELSEN, 1999, pp. 11-13). 326 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. Esta diferenciação assume importância somente tratando-se de normas jurídicas, as quais são postas e avalizadas por um poder coercitivo (vigente) que busca garantir sua adoção pelos cidadãos a ela submetidos (eficácia), enquanto no campo psicossociológico, normas eficazes são normas vigentes e vice-versa, uma vez que uma norma existe em determinado campo social enquanto seus integrantes nela se enquadram. Em seu normativismo jurídico expresso na Teoria Pura do Direito, Kelsen percebe a norma jurídica como espécie do gênero norma, que assim se caracteriza por estar inserida em um ordenamento jurídico que lhe confere essa especialidade como esquema de interpretação da realidade (Ibid, p. 4). Ou seja, através da atribuição de um valor por um ato de vontade competente, que cria a norma, mas não se confunde com ela, confere-se um poder, uma competência de tradução de um “dever ser” para a conformação de determinada conduta humana que se encontra no âmbito do “ser”11: “Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade de que ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser (KELSEN, 1999, p.4). A partir desse raciocínio de norma como estrutura que define e protege certo valor expresso na matéria do “dever ser”, mas que não se confunde com o próprio “ser” - mundo da cultura onde se encontram esses valores - conclui-se que sua validade só pode se encontrar em outra norma, raciocínio esse chamado método normológico (MATOS, 2012, p. 255), e não em seu conteúdo valorativo, que como já vimos, devido ao seu caráter mutável e relativo, não pode constituir o objeto da ciência do Direito. Kelsen elabora então um modelo em cadeia piramidal de normas rigidamente hierarquizadas, na qual se encontra no topo uma norma emanante de validade de todo um ordenamento jurídico, à qual ele chamou de “norma fundamental”. A norma fundamental de Kelsen (Grundnorm) não se confunde com a Constituição do Estado, que como norma positiva ainda encontra-se submetida a ela. Trata-se de um pressuposto lógico-transcendental de fundamento de toda a ordem jurídica, uma “norma jurídica não-positiva, que não é posta por atos humanos de vontade, mas antes pressuposta pelo pensamento jurídico” (MATOS, 2011, p.50), ponto vazio de conteúdo apto a ser preenchido por qualquer contento valorativo, tangencial 11 Separação que o jurista extraiu da 1ª fase da filosofia kantiana, da “Crítica da Razão Pura”, que exerceu grande influência no desenvolvimento de seus trabalhos. 327 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito entre o mundo do ser e do dever-ser, em que a matéria se confunde com a forma. “Com efeito, a Grundnormse mostra primariamente enquanto norma definidora de competência, capaz de conectar a ideia de dever-ser, estrutura lógica especificamente jurídica, à noção de autoridade criadora do direito” (MATOS, 2011, p.60). Ou seja, ao garantir a validade de todo um ordenamento jurídico, bem como a legitimidade dos atos de vontade competentes a exarar as demais normas que o compõem, a norma fundamental é o ponto limítrofe do objeto de estudo da Ciência do Direito livre da metafísica e do sincretismo metodológico. Além dela encontram-se os elementos externos que atuam como fontes ou influências sobre o direito, como as ideologias políticas, a economia, as dinâmicas sociais, os estudos psicanalíticos, etc, elementos que Kelsen fez questão de excluir de sua Ciência do Direito, com o principal intuito de “purificar” o direito das potências que pretendem colonizá-lo e utilizá-lo para seus próprios interesses. Afirmando ser “impossível pensar um direito alheio a um contexto geral de força juridicamente qualificada” (MATOS, 2012, p.261) Matos, sob influência do pensamento de Walter Benjamin, apresenta uma interpretação da obra de Kelsen como reveladora do caráter originalmente violento do direito, “um ultrarrealismo crítico que desvenda não a relação entre direito e violência, mas, sim, a mútua convertibilidade entre ambas as instâncias” (MATOS, 2012, p. 255), a partir deste ponto tangencial que é a norma fundamental. Aproximando-se (sem se identificar) com a interpretação de Bobbio, de que a norma fundamental seria “um ato de poder fundador de dado ordenamento jurídico, de maneira que, ao se impor, o poder coercitivo funda a juridicidade” (MATOS, 2012, p.261), o autor rejeita a ideia de ato de poder, por ser esse pertinente ao âmbito do “ser”, e não do “dever ser”, optando em relacionar a norma fundamental com a experiência da violência - que é “o que garante a eficácia global do primeiro ordenamento jurídico enquanto condição para se pressupor a norma fundamental” (MATOS, 2012, p. 274) -, “tanto a que põe o ordenamento jurídico, tanto a atual que o mantém” (MATOS, 2012, p.275). Assim, “deixando de subordinar a validade a elementos fáticos, a norma fundamental reconhece e assegura o caráter puramente simbólico dos conceitos e relações jurídicas” (LINDAHL, 1996, p. 66, apud, MATOS, 2012, p. 275), que expressam simplesmente uma relação de poder a partir de um discurso pretensamente verdadeiro/correto devido ao seu caráter jurídico. Logo, pautado na característica meramente formal da norma, independente de um conteúdo valorativo, que atribui uma 328 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. competência a determinado operador do direito, “será direito aquilo que os órgãos de aplicação de determinado ordenamento disserem que é” (MATOS, 2012, p.269), não tendo a Lógica Jurídica qualquer compromisso com o princípio da não contradição de seus conteúdos (ibid. p.270), sendo apenas a expressão do poder estatal que se realiza através do Direito. Não há que se falar portanto em uma crise do direito devido à falibilidade e relativização de seus conteúdos, de inflação do ordenamento jurídico no sentido de desvalorização de seus elementos pela fugacidade de seus valores. Compreendendo o direito como discurso de poder e o ordenamento jurídico como violência organizada, cujas normas condicionam e normalizam comportamentos sociais tidos como referenciais em um determinado momento histórico, o excesso normativo-jurídico, com todas suas inerentes contradições, revela-se plenamente adequado a uma estrutura do direito como sistema de controle social, que na busca de apreender o real em suas mais diversas manifestações, revela-se um sistema disforme e maleável. Conclusão É possível afirmar que a aplicação do pensamento foucaultiano ao estudo do direito tende mais para uma análise crítica não positivista, uma vez que para este a relação entre norma e o discurso do poder é tão estreita que seria indissociável qualquer estudo normativo, partindo ele de um ordenamento jurídico ou não, de uma analítica histórica do poder. A partir deste raciocínio, conclui-se em primeiro lugar que um estudo do direito estritamente limitado às suas formas jurídicas em consonância com a intenção de Kelsen, ao contrário do que pretendia o jurista, mascara e fortalece um poder e um discurso político, pois dificulta as ações de resistência a um poder normalizador que naturalmente surge quando este é identificado. Percebendo a norma jurídica como produto de um poder soberano e práticas disciplinares no exercício da governamentalidade, direcionada ao controle e ordenação de uma população e um território, inconcebível propor sob a égide foucaultiana um estudo do direito, um estudo normativo, pautado na pureza da norma jurídica per si, sem analisar as relações de poder que o atravessa. Na gestão estatal, poder, normas e direito são estruturas interdependentes, relacionando-se por implicações ambivalentes, sendo por isso insuficiente um estudo isolado de cada uma delas. 329 | A l e t h e s FREITAS, L. M. Norma e Direito Percebendo o poder em seu aspecto microfísico, disseminado em diversos focos sociais onde atua diretamente nos indivíduos no âmbito do detalhe, é possível compreender a produção de saber resultante destas relações, e o concomitante surgimento de instituições, que se especializam e se segmentam cada vez mais. Multiplicam-se, portanto, os órgãos supranacionais que ditam diretrizes a serem adotadas pelo Estado, já descentralizado em seu modelo federalista, cujos órgãos da Administração Direta se desconcentram no ápice do modelo burocrático, e se descentralizam em uma concatenação de delegação de poderes e competências que despontam em um número incalculável de normas em forma de portarias, circulares, resoluções, instruções, regulamentos. Ademais, tem-se a ideia de norma jurídica como uma estrutura aberta e penetrável, conectada a uma realidade social inconstante que sobrepõe um determinado discurso sobre outro, ou seja, uma violência formalizada na determinação de comportamentos por uma autoridade competente, cujo poder originário advém primordialmente de uma desigualdade de forças. A penetrabilidade em seu conteúdo permite variadas interpretações, ou mesmo sua alteração radical, a depender do discurso subjetivo da autoridade competente, interligado aos mais diversos interesses políticos ou sociais. Reconhecido o inexorável caráter mutável da norma, não há que se surpreender quanto à inconstância jurisprudencial, nem mesmo afirmar uma inflação do ordenamento jurídico frente à preponderância de uma legislação simbólica. Compreendendo o ordenamento jurídico como uma estrutura porosa e disforme, que tanto emana quanto absorve discursos, em oposição à rígida estrutura piramidal normativa, conclui-se o excesso normativo-jurídico e suas inerentes contradições como uma ocorrência coerente com a percepção de um direito marcado pela força e exceção, e não como uma crise jurídica. Um ordenamento não pautado nas noções de segurança, completude e não-contradição, mas sim nos interesses de uma gestão marcada pela governamentalidade, em que a lei funciona cada vez mais como norma (no sentido foucaultiano de comprometida com mecanismos de normalização), e que não necessariamente busca a realização da justiça, mas sim a garantia do primado da “ordem” social, ainda que resultante de uma “desordem” do próprio ordenamento. No entanto, ainda que esta compreensão apresente-se eivada de pessimismo, é válido relembrar a lição foucaultiana de que o poder, não importa quão multidimensional, nunca é absoluto, pois exige sempre a cooperação submissa do subordinado e, portanto, produz necessariamente uma resistência. Perceber a norma 330 | A l e t h e s Alethes: Per. Grad. Est. Dir UFJF, n. 04, v. 06, pp. 309-335, jul./dez., 2014. como reflexo social, e vice-versa; visualizar o direito como elástico e transformável, não limitado por textos legais que não passam de força formalizada; conceber seu ordenamento jurídico como estrutura difusa, aberta e penetrável; são condições primárias para o combate à normalização juridicizada. No exercício de uma atitude crítica que abraça a pluralidade, que se inquieta frente a valores e discursos de pretensões universais, questionando o dever de submissão justificado pelo inócuo conceito da legalidade, caminha-se na direção de um Direito novo, aberto à multiplicidade e à produção cada vez mais profícua de subjetividades. Referências Bibliográficas AFONSO, Elza Maria Miranda. Passos da teoria de Kelsen rumo à construção da teoria do Direito. In: OLIVEIRA, J.A.; TRIVISSONO, A.T.G (Orgs.). Hans Kelsen: teoria jurídica e política. Rio de Janeiro: Forense, pp. 39-86, 2013. COSTA JÚNIOR, Eduardo Carone. 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Nesse sentido, um dos pontos de maior relevância ao debate que se aproxima se refere à possibilidade de reeleição aos cargos do poder executivo, temática frequentemente abordada durante todo o período de campanha das eleições de 2014. Sob tal viés, o objetivo do presente trabalho é a apresentação de argumentos favoráveis à extinção do instituto da reeleição aos mandatos do Poder Executivo do ordenamento jurídico pátrio, de modo a garantir a predominância e efetiva aplicação da alternância de poder e da igualdade material entre os candidatos. E, de modo adjeto, defender a realização de uma efetiva consulta à opinião pública, mediante plebiscito, para realização e aprovação da reforma política. Palavras-Chave: Democracia.Reeleição. Alternância de poder. Igualdade. Reforma política. Abstract Through the analysis of democratic principles inserts in our Constitution, and the contemporary political scene, this study addresses the issue of re-election as opposed to the experience of a truly democratic regime instrument. Given the current political crisis model becomes more evident every day the need to effect political reform in our country, in order to rescue the credibility of the current system in society. In this sense, one of the points of greatest relevance to the oncoming debate regarding the possibility of reelection to the positions of executive power, a theme frequently addressed throughout the campaign period of the election of 2014. Thus, the aim of this work is the presentationa favorable arguments about the extinction of the Institute of the mandates reelection of the Executive Branch of the Brazilian legal system, to ensure the effective application of alternation of power and the material equality among candidates. And, secondarily, defending the realization of an effective consultation to public opinion, by plebiscite, to implementation and approval of political reform. Keywords: Democracy. Reelection. Alternation of power. Equality. Political reform. Recebido em: 30 de outubro de 2014 Aceito em: 1º de Fevereiro de 2015 1 Graduando em Direito pela UFJF. 333 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto 1. Introdução Durante o longo período de campanha eleitoral no ano de 2014, fora questionado e abordado pelos os principais candidatos à presidência da República2, a necessidade de uma reforma política em nosso país, visando aperfeiçoar o modelo político republicano, de modo a aproximá-lo permanentemente aos princípios democráticos que regem nossa nação. Nesse sentido, diversos pontos colocaram-se sob o enfoque dos candidatos em inflamados discursos e pronunciamentos políticos veiculados nos mais diversos instrumentos midiáticos, destacando-se, entre estes, uma latente questão, que, ante a crise do modelo político atual e da democracia representativa, tornou-se elemento de grande importância para aqueles que assumirão seus mandatos eletivos no próximo ano: a necessidade de reforma política. Dentre os temas a serem tratados na clarividente e necessária reforma que se pretende que seja elaborada no próximo ano, a possibilidade de reeleição para os cargos do poder executivo está entre aqueles que tiveram maior visibilidade entre os eleitores, principalmente durante o período de campanha eleitoral, por afetar diretamente ao direito de escolha de seus representantes. Nesse sentido, através da confecção e apresentação de determinadas questões, este artigo tem o intuito de descontruir os argumentos favoráveis ao modelo político brasileiro que atualmente possibilita a recondução por uma vez dos mandatos do poder executivo. Ressalto que, diante de tais perguntas, a serem respondidas e debatidas no corpo do texto, não afirmo que o posicionamento a ser defendido no presente trabalho não possua imperfeições e que os argumentos a serem apresentados não possam ser alvos de críticas, mas apenas busco expor uma defesa construtiva das ideias que me incentivaram a abordar este tema, de modo a engrandecer o debate, que tem por finalidade principal a busca pelo melhor modelo político para o nosso país. Este artigo tem ainda a finalidade de tornar evidente o modo como o candidato ao cargo do poder executivo que busca a reeleição é favorecido pela utilização da máquina estatal, na medida em que este permanece no exercício do mandato durante todo o período de campanha eleitoral, tornando desigual a disputa entre este e seus concorrentes diretos, situação esta plenamente contrária ao exercício da democracia. 2 Neste ponto, me refiro aos candidatos Dilma Rousseff (PT), Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB) 334 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. Pretendo abster-me de apresentar argumentos que tratem de práticas cotidianas ímprobas, que infelizmente ocorrem em nosso país, como os atos políticos daqueles que ocupam o cargo de chefe do executivo, através da realização de obras públicas ou demais atividades administrativas com propósito eleitoreiro, e que buscam exclusivamente uma exposição positiva do futuro candidatoperante o seu eleitorado3. Desde já, desconsideremos a existência de práticas na administração pública com propósito exclusivo de promover o político para que este pleiteie um segundo mandato. Para isso, consideremos,ainda que de forma utópica, que todos os atos políticos de nossos governantes são voltados a melhorias das condições de vida em nossa sociedade, tendo sempre em mente o que é melhor para toda a população, sem que existam atitudes cuja finalidade seja o favorecimento individual de determinadas pessoas. Pretendo ainda neste trabalho, afastar-me de exemplos individualizados, buscando sempre tratar desta temática de forma mais generalizada, sem que exista intenção de prejudicar a imagem de determinada pessoa que já tenha exercido qualquer cargo no poder executivo ou que esteja se candidatando a estes, por não ser este o objetivo do presente trabalho. Primeiramente, de modo a embasar os argumentos a que me proponho, faz-se necessário definir o que é a democracia, delineando os princípios essenciais ao exercício desta, que foram adotados em nossa Constituição. E, ainda, explicar a diferença existente entre o modelo de democracia participativa e democracia representativa, abordando a crise social que enfrenta o modelo político atual. 2. Democracia Inicialmente, faz-se necessário definir o que significa a democracia, enquanto conceito técnico e em seu entendimento cotidiano, o que já fora realizado e sintetizado de forma muito eficaz em nossa Constituição Federal onde se prevê que “todo o poder emana do povo”4. Tal significado pode ser extraído dos termos que constituem a palavra 3 A finalidade na exclusão de tais exceções reside em se destacar que os argumentos que serão tratados neste estudo, não se pautam nas condutas ilícitas e na corrupção dentro da política, mas apenas nos atos de governo cotidianos, que se adequam à legalidade. 4 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 335 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto de origem grega: “demos” (que significa povo) e “kratos” (poder). De forma semelhante, é definida por Hans Kelsen (2000, p. 139) como “governo do povo”. Logo, não há maneira de conceituá-la de forma mais simples e mais completa do que entender a democracia como o exercício do poder pelo povo. Reside na ideia da prática de ações por cada indivíduo, que por meio da decisão adotada, tem a possibilidade de modificar os rumos da sociedade e influenciar no modo com que é exercido o poder estatal. Contudo, importa ressaltar que o exercício da democracia encontra-se essencialmente vinculado a três elementos, sem o qual nunca subsistirá qualquer regime que se construa com base nopoder popular: a soberania da vontade do povo, a liberdade (principalmente no aspecto político) e a igualdade entre os homens. Para que resista a democracia e a legitimidade de um governo que se intitule democrático faz-se necessário que aqueles que o exercem, como representantes do poder estatal, ajam sempre em conformidade com os anseios do povo, respeitando não somente a vontade da maioria, mas que atuem também na defesa dos interesses das minorias. Deve o governante ter em mente que as ações efetuadas em nome do Estado, e as decisões que interfiram na vida de toda a coletividade devem surgir a partir dos interesses dos governados, que em contrapartida têm o dever de expressá-los. Portanto, em um regime democrático, há de ser soberana a vontade do povo perante o Estado, desde que não vise esta a prejudicar a liberdade dos indivíduos e a igualdade entre estes. Como segundo elemento anunciado tem-se a liberdade de cada indivíduo na expressão de suas ideias, na escolha das decisões, na definição das ações a serem adotadas e na sua participação perante o grupo social. Não há que se falar em liberdade como algo ilimitado, em que cada ente age da forma como lhe convier, pois, de tal modo, esta não existiria em qualquer sentido, em vista da interferência que a vida de cada pessoa tem sobre a de seus próximos. Deve-se tratar a liberdade como o poder de decisão de cada indivíduo sobre as regras as quais o mesmo será submetido, de modo que esta não lhe seja plenamente imposta pela vontade alheia5. Porém, para que isto se torne possível, é necessário que o poder de decisão dos homens se caracterize pela igualdade, devendo 5 Nesse sentido, Montesquieu define que: “É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer.”. (MONTESQUIEU, O espírito das leis, livro XI, capítulo III. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 166). 336 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. ser conferindo igual valor à decisão de um homem em Oiapoque e à decisão de uma mulher em Chuí. Importa destacar que para que um regime de tal magnitude resista ao transcorrer do tempo e aos sentimentos e às ações humanas em sua individualidade, é necessária a harmonização e coligação de tais elementos, o que somente será possível mediante a vivência de apenas resquícios de cada um destes. Nunca a sociedade progredirá partindose do pressuposto de que a soberania da vontade do povo, a liberdade política e a igualdade dos homens devem ser exercitadas e praticadas individualmente e de forma plena, de modo a considerar inválidos ou ilegítimosaqueles atos que não correspondam a qualquer destes elementos de forma perfeita. Entretanto, não há como considerar legítimos os atos que suprimam significativamentequalquer destes elementos em sua essência, nunca podendo afirma-los como provenientes do poder do povo. Constituído o Brasil como um Estado Democrático de Direito, é possível extrair de nossa Magna Carta, diversos princípios e fundamentos que se pautam no ideal de construção de uma república democrática. Mas, embora seja possível enunciar vários destes, pretendo concentrar-me em dois aspectos essenciais à manutenção e ao fortalecimento da democracia em nosso país, vinculados em sua naturezaao período que atualmente vivenciamos e que atualmente se repete a cada dois anos: as eleições6. Nesse diapasão, dois aspectos se elevam ao plano da naturalidade ao se pensar no aspecto democrático do pleito que tem por finalidade definir os representantes do povo no exercício do poder legislativo e na gestão máxima das diversas esferas do poder executivo. O primeiro destes aspectos reside na necessidade de alternância de poder, de modo a permitir alteração no grupo que controla e exerce funções públicas, para que aqueles que o ocupem não tomem para si a posse de algo que pertence a toda a sociedade. O outro aspecto essencial diz respeito a estabelecer da melhor forma possível igualdade de condições àqueles que pleiteiam representar o povo, e que se candidatam a tal posto através das eleições. É inegável, no entanto, que jamais se conseguirá assegurar que se inicie a disputa do mesmo ponto de partida, de modo que a competição decorra ao longo de todo o procedimento para aferição da vontade popular de forma equânime entre todos. Porém, não é admissível, que a legislação permita ou até mesmo crie 6 Destaca-se que se encontra em trâmite no Congresso Nacional, a PEC 71/2012, que prevê a unificação das eleições no país, de modo que a partir de 2022, as eleições ocorreriam em todos os níveis de governo no mesmo período eleitoral a cada quatro anos. 337 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto desigualdades, que têm por consequencia, na mecânicaeleitoral, influência direta sobre a liberdade política de cada indivíduo. 3. Democracia Participativa e Democracia Representativa Realizando-se um apanhado histórico dos modelos aplicados da democracia, verifica-se que este se envolta em alterações e mudanças a cada novo período histórico da humanidade. Atualmente, ainda que provenientes de raízes semelhantes, a democracia no mundo contemporâneo é aplicada do modo claramente diferenciado nos mais diversos países. Em tal quesito, não é possível afirmar a existência de um modelo que seja mais democrático, ou mais condizente com a vontade do povo, visto que cada modelo é construído de acordo com a cultura de cada nação, na medida de seu desenvolvimento político. A primeira forma demonstrativa da existência do regime democráticona história da humanidade se pautaria no menos complexo modo de inclusão de cada indivíduo na tomada de decisões em sua comunidade, o que se daria através da participação direta. Nesse ponto, não existiam intermediários, capacitados a exercitar em nome de outrem o dever de deliberação das questões de ordem pública, visto que a opinião de cada cidadão seria expressa pessoalmente através de uma assembleia. O berço deste modo primário de manifestação da vontade popular é a Grécia Antiga. Historicamente, nomes como Aristóteles, Heródoto e Sólon, resistem nos dias atuais como percussores de tal modelo, que ao ser redesenhado em uma imagem física no período contemporâneo poderia ser representado pela reunião de todos aqueles que têm capacidade política (os eleitores) em uma praça pública (um edifício público acessível a todos), no qual por meio de uma assembleia, seria realizada a deliberação com a possibilidade de participação de todos nas matérias de interesse público concernentes àquela circunscrição territorial (pólis). Tal modelo pode ser denominado democracia participativa. Importante ressaltar que, ainda que destinado à obtenção de modo mais eficaz da vontade popular, não se conseguia na Grécia Antiga alcançar tal objetivo de modo perfeito, ainda que exercitada em um modelo de assembleia organizado como a ekklésia. Ao modelo democrático vivenciado neste momento histórico, resistem diversas críticas quanto à seleção daqueles que poderiam e deviam participar da vida política da pólis (homens, maiores de 30 anos, filho de pai e mãe atenienses) e quanto à ausência de 338 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. isonomia e igualdade material entre as decisões expressas por indivíduos de classes sociais diferentes. Vivenciava-se, portanto, uma democracia que, ainda que proveniente da vontade popular, era excludente e que não representava de forma isonômica a vontade real da maioria. A ekklésia era a Assembleia do Povo e nela o cidadão ateniense adulto de sexo masculino tinha direito a palavra e voto. Reunia-se com um mínimo de seis mil cidadãos, numa colina chamada Pnyx, nas proximidades da ágora. Dela estavam excluídos escravos, estrangeiros, mulheres, crianças e cidadãos privados de seus direitos políticos (atimoi). Caso algum representante desses segmentos fosse encontrado durante a realização de uma Assembleia, poderia ser condenado a sérias punições (MENEZES, 2010, p. 25). Entretanto, em determinadas circunstâncias seria possível visualizar o quão impraticável se tornaria o modelo participativo no mundo cotidiano, em razão do crescimento populacional, da concentração demográfica altíssima em cada centro urbano, da infinidade de matérias que têm correspondência ao interesse públicoe que são relevantes a toda a sociedade e, diversos outros fatores que impossibilitam a participação de cada indivíduo em todos os negócios que digam respeito à sociedade, nos mesmos moldes com que tais tarefas eram efetuadas neste período inicial da história da democracia. Para tanto, após longo período de afastamento aos princípios democráticos nos regimes políticos das sociedades ocidentais, em que, por diversos momentos o Estado e todas as suas instituições se confundiam com a figura do monarca, que a seu bel prazer, tinha legitimidade para utilizar de suas ferramentas da forma que lhe conviesse7, a solução encontrada para o retorno do poder às mãos do povo, se daria por meio de um modificado método de participação democrática. Neste novo modelo, não caberia mais ao monarca o governo da nação, mas àqueles que fossem escolhidos pelo povo para, em nome destes, governar. Além disso, não caberia ao povo tomar as decisões que regeriam a vida da comunidade de forma direta, visto que neste momento, o único dever destes para com a comunidade se resumiria ao poder de escolha. 7 Características existentes na Roma Antiga, nos feudos medievais, mas destacável, principalmente, nos Estados Absolutistas. 339 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto Surge assim a democracia representativa, no qual a vontade popular não será expressa de forma direta8 por meio da deliberação pessoal em questões públicas, mas através de representantes, escolhidos, por meio do voto, entre todos aqueles que surgem do povo, para participar e proteger, através de suas decisões, os interesses da coletividade, expressando a vontade de suas maiorias, e ainda, na defesa dos interesses das minorias. Dessa forma, a mais de trezentos anos, verificam-se nas sociedades ocidentais, modelos de democracia representativa em que tanto os membros do Poder Legislativo quanto membros do Executivo e do Judiciário (hipótese esta que não ocorre no Brasil, no qual os juízes são investidos no cargo por meio de concursos públicos ou por indicação) são eleitos por meio do voto para em nome de toda a sociedade exercer o governo. Destaca-se, no entanto, que não existe uniformidade na caracterização dos regimes representativos, que vieram a ser constituídos ao longo dos últimos séculos, dos mais diversos modos e nos mais diversos territórios do mundo, e que a experiência prática demonstra que a aplicação de um modelo democrático de governo, ainda que correspondente à legítima expressão da vontade da maioria, nem sempre conseguirá impedir o autoritarismo e a ocorrência de barbáries e atentados à dignidade humana. 4. A crise do sistema de representação política Torna-se evidente em nossa vida cotidiana, o quão pequena é a importância que se atribui ao debate político nos dias atuais. Nas ruas, nos bares e esquinas do nosso país o descrédito dos membros que ocupam os cargos políticos em nosso país chegou a um patamar elevadíssimo, sendo capaz de induzir milhões de pessoas a deixar de exercer o único poder-dever democrático que o sistema político os permite realizar, para que em um exercício de cidadania possam modificar os rumos da coletividade: o voto.9 Nesse sentido, diversos aspectos são capazes de justificar a apatia política vivenciada em nosso país, que culminam, consequentemente, na irresponsabilidade do eleitor na escolha de seus representantes, que muitas vezes são esquecidos poucos meses após a realização do pleito eleitoral e que, devido a um fenômeno crescente nas 8 Sobre o uso do vocábulo, é importante destacar que no regime político contemporâneo, a única participação direta da sociedade se dá na escolha dos membros dos Poderes Legislativo e Executivo. Com isso, pode-se dizer que todas as demais decisões políticas em nosso país são realizadas de forma indireta. 9 Nesse sentido, destaca-se o elevado nível de abstenção no 2º turno das eleições de 2014, que, segundo dados oficiais do TSE, chega a 21,10% de todo o eleitorado nacional, correspondente a 30.137.479 de eleitores. Disponível em: < http://divulga.tse.jus.br/oficial/index.html>. Acesso em: 28 out 2014. 340 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. campanhas eleitorais, têm suas opiniões a cada dia mais influenciadas por estratégias de marketing muito bem elaboradas. Não existe, e desconheço se em algum momento de nossa história política tenha existido, o costume de cada eleitor realizar uma pesquisa sobre a vida e o histórico do candidato em quem depositará seu voto de confiança, as propostas e projetos apresentadospor este e as estratégias e diretrizes de seu partido. Questiono-me se é possível algum dia sonhar com um modelo democrático mais participativo, em que a decisão de cada indivíduo, através de procedimentos que requisitem sua participação ativa, realmente seja capaz de modificar a vida em sociedade, quando nós, enquanto meros eleitores, temos preguiça de exercer o nosso dever de cidadão. Nesse sentido, seria possível apresentar como um dos motivos que conduzem a esta apatia, a incompetência de nossos representantes políticos em cumprir as promessas efetuadas durante a campanha eleitoral, que conduzem o eleitor ao prévio entendimento de que, embora proclamadas e repetidas por diversas vozes, boa parte destas jamais serão cumpridas. Importa ressaltar ainda que, um dos fatores que mais impulsionam o descrédito das instituições políticas e dos membros que pleiteiam os cargos eletivos é proveniente da corrupção. Não há como negar que existem muitos políticos corretos e honestos, que não se veem envolvidos em escândalos de desvio de dinheiro, que não participam do superfaturamento de obras públicas ou de esquemas de compra de votos. Possivelmente, a grande maioria dos nossos políticos possa seridentificada dessa forma, porém, a ineficiência em se separar o joio do trigo e de punir àqueles que cometem crimes no uso do mandato, provoca um sentimento negativo no seio da comunidade, que vai da indignação à profunda descrença, prejudicando severamente a imagem das instituições políticas perante a sociedade. Somam-se a isso, as condutas antiéticas constantemente exercidas pelos nossos políticos que, embora não revestidas de ilegalidade, acabam por demonstrar completo descaso para com a sociedade, a partir do momento em que fazem uso do erário publico com o intuito de beneficiarem a si mesmos, ao seu partido político ou determinados indivíduos que lhes sejam próximos ou a quem devam favores. Devido a todos estes fatores, já se vislumbra a necessidade na realização de uma reforma política, de modo a aprimorar o exercício democrático em nosso país e remodelar o sistema representativo, trazendo mais proximidade do eleitor ao seu representante. Necessário ainda se torna a reformulação do sistema de financiamento de campanha, no 341 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto que se refere às doações direcionadas aos partidos políticos e a responsabilidade do Estado no repasse de verbas às campanhas. Porém, vislumbro tais questões como técnicas, e que, embora sejam fundamentais ao aprimoramento de nosso sistema eleitoral, são meramente secundárias para a modificação efetiva de nosso regime político, na medida em que não têm o condão de, aplicadas de forma isolada, terminar com a desigualdade que permeia as disputas eleitorais em nosso sistema político. Nesse sentido, são duas as questões a que atribuo relevância neste momento: a modificação do método de distribuição dos recursos provenientes do Estado através dos fundos partidários e da exposição às candidaturas no horário eleitoral gratuito, que geram disparidades tão intensas, que no recente pleito eleitoral realizado, segundo dados divulgados pelo TSE10, a distribuição ocorreu de modo que 11 minutos e 24 segundosdos 25 minutos disponibilizados se referiam apenas a uma das candidaturas, enquanto as demais, em número de nove, dividiam o tempo de 13 minutos e 36 segundos, de modo que seis destas possuíam tempo inferior a 1 minuto. Destaca-se que tal distribuição não fora realizada com a finalidade ou sob a justificativa de favorecimento a determinada coligação, mas que decorre da legislação eleitoral11, que estabelece distribuição do tempo de maneira proporcional à bancada de cada coligação na câmara dos deputados. Outra questão que se apresenta, e da qual faço uso no presente trabalho e que fora destacada durante a campanha eleitoral deste ano, se refere à reeleição aos cargos de chefia do poder executivo. 5. A reeleição no regime político brasileiro A Constituição Federal de 1988, não previa tal instituto, que viria a ser aprovado apenas no ano de 1997, a partir da promulgação da emenda constitucional nº 16, sob o 10 Disponível em: <http://www.tse.jus.br/noticias-tse/2014/Agosto/horario-eleitoral-no-radio-e-tv-comecanesta-terca-feira-19>. Acesso em: 25 out 2014. 11 Art. 47 da Lei no 9.504/97: “As emissoras de rádio e de televisão e os canais de televisão por assinatura mencionados no art. 57 reservarão, nos quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera das eleições, horário destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratuita, na forma estabelecida neste artigo. § 2º Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do § 1o, serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que tenham candidato, observados os seguintes critérios: I - 2/3 (dois terços) distribuídos proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram; II - do restante, 1/3 (um terço) distribuído igualitariamente e 2/3 (dois terços) proporcionalmente ao número de representantes eleitos no pleito imediatamente anterior para a Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram.” 342 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. seguinte texto: “Art. 14, parágrafo 5º, CF: O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente.” Colocando-se de lado todo o debate acerca do modo com que tal emenda fora aprovada, existindo diversas denúncias acerca da corrupção de parlamentares, troca de favores e compra de votos, conjuntamente, à utilização de tal reforma de modo a favorecer o presidente em exercício, Fernando Henrique Cardoso, em sua busca a um segundo mandato consecutivo, verifica-se o curso do lapso temporal de 17 anos, e, considerando a presente corrida eleitoral, a realização de 9 ciclos eleitorais, entre eleições municipais, e federais e estaduais/distritais, que registram índices pouco superiores a 50% de reeleição dos chefes do poder executivo que buscaram a recondução do mandato no período subsequente. Para aqueles que defendem a reeleição para os cargos do poder executivo, tal índice poderia ser considerado baixo, inconsistente com a crescente manifestação daqueles que defendem o fim da reeleição, devido ao fato de que os números expressam claramente que a candidatura do chefe do poder executivo não acarreta seguramente em sua vitória nas urnas. No entanto, em sentido oposto estes demonstram a contrariedade do modelo político adotado em nosso país aos princípios democráticos mais basilares, como a necessidade de revezamento de poder e a igualdade de condições àqueles que pleiteiam a legitimidade de poder para conquista do mandato por meio do voto. 5. 1. Reeleição como método de avaliação da gestão anterior A primeira questão relevante que proponho a levantar se refere a um dos argumentos que mais constantemente ressoa das vozes daqueles que defendem a reeleição aos cargos do poder executivo, que enunciam a possibilidade de reeleição e a candidatura de um ente político como uma forma de os eleitores avaliarem a gestão anterior exercida por este, que poderia ser premiado com a reeleição, demonstrando querealizou uma boa gestão na chefia do poder executivo, ou ainda sofrer com a possibilidade de rejeição nas urnas, que demonstraria a ineficiência desta. Diante de tal argumento, me parece clara a relevância da seguinte questão: se o elemento que motiva o ente político a exercer o seu primeiro mandato com maestria e eficiência é a possibilidade de recondução e continuidade por meio de um segundo mandato, o que motivaria o candidato reeleito a exercer o seu segundo mandato com a mesma eficiência se este já não mais poderia ser 343 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto premiado, existindo a certeza absoluta de que ao término do novo mandato, independentemente da qualidade de sua gestão, o cargo teria que ser entregue a uma nova figura política? O exercício das funções públicas de chefia do poder executivo, assim como todas as provenientes de mandatos eletivos, devido ao modo com que são investidos os indivíduos que as ocupam, possui uma característica especial que a difere de todas as outras funçõesrelativas ao Poder Público, que é o dever de representatividade, inerente àquele que exerce o mandato político. Nesse sentido, cada decisão do representante deve expressar a vontade do representado, e ainda, cada ação por aquele praticada deve se realizar como se aqueles que o escolheram se colocassem a praticá-las. Assim, como definir a conduta do político que não toma atitudes com o intuito de beneficiar o país? Estaria este agindo em conformidade com a vontade daqueles que o elegeram? Neste ponto, pretendo definir que não deveria ser necessário estabelecer-se a possibilidade de reeleição para motivar o indivíduo que ocupa o cargo público a exercer um bom mandato. O político tem o dever de agir para a sociedade, visando atender ao interesse público, através de melhorias à vida da coletividade, de acordo com as competências que lhe são atribuídas pelo texto constitucional. O mandato político jamais poderia ser exercido para atender a interesses particulares, somenos quando direcionado ao interesse próprio. A partir do momento em que o sistema político autoriza a recondução por meio da candidatura a um novo mandato, se demonstra pelas experiências recentes que a campanha eleitoral passa a basear-se em uma oposição: o partido da situação e o candidato que o representa buscam demonstrar as benesses e os atos positivos de seu governo, enquanto o partido de oposição tenta demonstrar as fragilidades e as falhas da gestão anterior. Nesse momento, coloca-se sempre em evidência o candidato que busca a sua reeleição, seja por meio de sua propaganda partidária ou da oposição. Dessa forma, ainda que pelo modo com que a propaganda é veiculada, a exposição possa ser tanto positiva quanto negativa, haverá sempre desigualdade na exposição ao nome dos candidatos, sendo, portanto, contrária a democracia. A cada oito anos, ou por vezes a cada quatro, verifica-se que o debate político deixa de efetuar-se de forma positiva, por meio da apresentação de propostas e pela busca de soluções para o futuro, para realizar-se 344 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. com base na gestão passada em que um dos candidatos busca a construção de sua imagem, enquanto o seu adversário efetua a tentativa de desconstruí-la.12 Ressalta-se ainda que, existem outras formas de realizar a avaliação de um governo, que não custe aos eleitores a perda de um tempo precioso que poderia ser utilizado em um debate positivo, como as pesquisas de opinião realizadas por institutos especializados, que embora não consigam atingir a totalidade dos eleitores (o que não é possível nem mesmo com as próprias eleições, que no último pleito realizado no dia 26/10/2014, teve índice de abstenção de 21,10%)13 são capazes de expressar de modo aproximado o nível de satisfação da população brasileira quanto ao governo com a utilização de métodos científicos. 5. 2. Mandatos de quatro anos são curtos para a implantação de estratégias de longo prazo? A segunda questão que se apresenta diz respeito ao tempo de mandato para os cargos do poder executivo. Seriam estes demasiado curtos para a realização de mudanças de médio a longo prazo? Existem programas que demandam um período maior para serem implantados, e, por isso, pode-se afirmar que não seria possível aplica-los, em vista do reduzido mandato de quatro anos? Deveria assim o governo buscar apenas soluções imediatas cujos objetivos seriam alcançados apenas em curto prazo, e, preferencialmente até o fim do mandato? Os mandatos de quatro anos instituídos aos chefes do poder executivo não impedem a realização de projetos e a implantação de mudanças de médio e longo prazo, tampouco inviabilizam o governo a exercer a gestão de sua esfera política de maneira eficaz, visto que o modo com a qual se estabelece o sistema de gestão dos recursos públicos no Brasil se baseia no período de quatro anos. Nesse diapasão, a gestão do sistema financeiro nas esferas municipal, estadual e federal é pautada em três leis: o 12 Sob tal aspecto, é possível definir o debate que se pauta em ideias políticas e na apresentação de projetos como um debate positivo, em que se efetuam comparações entre os candidatos em razão das propostas por este apresentadas. Já odebate negativo corresponde àquele que se baseia na construção da própria imagem e desconstrução dos adversários políticos, pelo qual se deixa de lado, as questões inerentes ao governo do país para pautar-se na avaliação pela competência do governante. 13 Conforme dados oficiais do TSE. (Disponível em: < http://divulga.tse.jus.br/oficial/index.html>. Acesso em: 28 out 2014). 345 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto Plano Plurianual (PPA), a Lei das Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). O PPA é elaborado a cada quatro anos, durante o primeiro ano de mandato e tem por objetivo estabelecer as diretrizes, os objetivos e as metas de médio e longo prazo a serem alcançadas nos anos seguintes, tendo vigência a partir do início do segundo ano de mandato ao término do primeiro ano do mandato subsequente. Já a LDO tem por finalidade estabelecer as metas do período subsequente, dispondo ainda sobre modificações na legislação tributária e orientando a elaboração do orçamento anual a ser aplicado ao ano seguinte. Por fim, a LOA compreende a previsão orçamentária para o exercício financeiro seguinte, pelo qual se estabelece as despesas e as receitas a serem efetuadas.14 Logo, é possível verificar que o modo com a qual o sistema financeiro nacional se organiza se pauta no período de quatro anos, não existindo qualquer norma no ordenamento jurídico brasileiro que autoriza o estabelecimento de metas ou o planejamento na utilização das receitas públicas para o período de oito anos. Além disso, o revezamento no poder não impede a realização de uma boa política, visto que uma vez investido no cargo e, sendo esta condizente com a vontade do povo, caberá ao chefe do poder executivo dar continuidade aos projetos que apresentaram resultados positivos e aprimorar, ou até mesmo, encerrar aqueles que não mais correspondem ao interesse público. Nesse sentido, a mudança tem um aspecto positivo, na medida em que a partir da renovação da equipe de governo permite-se uma reavaliação das prioridades públicas. 5. 3. Reeleição como a soberania da vontade do povo Considero importante frisar anteriormente que este se apresenta como um dos argumentos mais fortes àqueles que defendem a possibilidade de reeleição, por tratar-se de um dos elementos essenciais à sobrevivência de um regime democrático, conforme já destacado neste texto. Sob tal ponto, coloca-se a seguinte questão: a eleição, por meio do voto, daquele que pleiteia a recondução para um novo mandato não poderia ser correspondente à vontade soberana do povo? A escolha deste não seria condizente com os interesses da coletividade, de modo que este possa exercer o cargo a que se candidatara como representante da sociedade? 14 Para uma explicação simplificada sobre o tema: <http://www12.senado.gov.br/orcamentofacil>. 346 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. Inicialmente, retorno com a seguinte pergunta: da mesma forma, não poderia considerar-se aceitável o governo exercido por um ditador ou por um tirano, quando o poder a ele conferido se reveste de aceitação popular? A resposta para todas estas perguntas deve ser positiva. Entretanto, para que qualquer destes entes tenha legitimidade no poder faz-se necessário que o regime político adotado no país, autorize que dessa forma aconteça, seja esta autorização proveniente da lei ou dos costumes. Sob tal aspecto, não há como negar a legalidade formal e material da norma que autoriza a reeleição no Brasil, na medida em que esta fora promulgada por meio de uma emenda constitucional, através dos procedimentos previstos em nossa constituição. Porém, seria cabível levantar questionamentos para averiguar se esta norma no momento de sua formação atendia aos anseios da sociedade. Quando, iniciado o movimento das Diretas Já, no início da década de 80, a sociedade brasileira clamava pelo retorno ao regime democrático, evidenciando-se como principal instrumento dessa mudança, a previsão de eleições diretas. O desejo de poder escolher quem seria o representante do povo no exercício do governo era tão forte, que o movimento foi capaz de influenciar, ainda que de forma moderada, na elaboração do texto constitucional de 1988. É possível localizar logo no primeiro artigo do referido diploma, a definição do Brasil como um Estado Democrático de Direito, sendo ainda identificável em todo o corpo textual a intenção do legislador em criar um regime político pautado em princípios democráticos. Em tal viés, o texto original previa a impossibilidade de recondução aos mandatos do poder executivo. Com isso, para que a norma que atualmente rege a possibilidade de reeleição se revista da legitimidade conferida pela soberania da vontade do povo, faz-se necessário que o povo decida sobre esta, expressando a sua opinião de forma direta sobre a manutenção ou alteração da norma que regulamenta a duração dos mandatos e a possibilidade de recondução. Para isso, por se tratar de matéria relevante para a nação faz-se necessária a realização de um plebiscito, que aborde entre outros temas concernentes à reforma política, sobre a reeleição. 5. 4. Conhecimento e experiência daquele que pleiteia a reeleição Outro ponto a ser exaltado reside na experiência que aquele que já exerce o mandato possui, visto que já o fizera nos quatro anos anteriores, e, por isso, já dispõe, em 347 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto tese, de todo o conhecimento necessário ao exercício desta função pública, podendo ser utilizada por analogia a ideia de que este já conhece a casa. Sob essa perspectiva, não seria possível afirmar que este possuiria certa vantagem no exercício da função, capaz de qualificá-lo como o mais competente a assumir o cargo? Aplicando-se outra analogia ao tema, realmente é possível afirmar que aquele que já foi pai ou mãe consegue lidar de uma maneira mais fácil com o nascimento de seu segundo filho, principalmente sob o aspecto psicológico, do que aquele que nunca o foi. Porém, neste momento estamos a tratar do exercício do governo e da chefia do poder executivo, sendo o conhecimento e a experiência requisitos importantes a qualquer pessoa que pleiteie assumir este cargo público tão relevante à vida da comunidade, de modo que independente de quem seja indicado pelo partido a candidatar-se, faz-se necessário verificar na pessoa do candidato atributos que o capacitem a exercer a função, destacando-se todavia que a avaliação caberá ao povo por meio do voto. Em contrapartida, embora teoricamente, em determinados casos, possa por meio da reeleição nas urnas ocorrer a vitória de um político com mais experiência, a continuidade no mandato gera uma estagnação da máquina estatal, indesejável a qualquer regime democrático. É preciso destacar que ao reeleger-se determinado candidato, não somente este permanecerá no cargo, mas muitas vezes conjuntamente, boa parte de sua equipe de governo. Poderia tal aspecto ser positivo, na medida em que se espera que aqueles que permanecerão nos cargos tenham, assim como o chefe do poder executivo eleito, mais experiência na condução das políticas públicas. Contudo, a continuidade no poder traz consigo outro aspecto prejudicial à democracia, devido à estagnação das instituições públicas. A experiência prática demonstra que a permanência de determinado grupo político no poder por um longo período de tempo gera um fenômeno contrário à democracia, na medida em que enfraquece de modo substancial a oposição ao governo, prejudicando a ocorrência do debate necessário à reflexão sobre as prioridades políticas a serem adotadas, e fornecendo ao grupo que se encontra no poder os meios de que precisa para exercer de forma unilateral as políticas de seu interesse. Destaca-se que por vezes, o sistema construído dessa forma pode favorecer a aprovação de boas políticas, que contrariadas por uma oposição forte jamais seriam aprovadas, porém, do mesmo modo, podem ser aprovadas más políticas, sem que estasrepresentem de modo inequívoco a vontade popular. 348 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. 5. 5. Elegibilidade: direito de recandidatar-se Tem-se ainda como importante nesta temática, o direito individual da pessoa que se coloca à disposição de uma nova candidatura, já tendo exercido o cargo no período anterior. O que diferencia o chefe do poder executivo daquela circunscrição territorial a qualquer outra pessoa que tenha por intuito a disputa pelo cargo? Por que este, enquanto cidadão correto, tendo sido um excelente gestor da máquina pública, não poderia pleitear a recondução do mandato se qualquer outra pessoa, atendidos os requisitos objetivos previstos na Constituição Federal poderia exercê-lo? Convém destacar que, de igual modo, a legislação brasileira já permitiu que o direito de determinada pessoa em se tornar elegível, fosse suprimido pela necessidade de se permitir a candidatura apenas a políticos que não tenham sido condenados por crimes relevantes ao exercício da função, ainda que a escolha deste através do voto decorresse efetivamente da vontade popular.15 Neste ponto, ressalta-se que à luz da legislação vigente nada o impede de fazê-lo, limitando-o apenas a candidatura a um único mandato subsequente. Todavia, a norma que concede ao candidato o direito de ser elegível ao mandato continuado, é contrária ao princípio democrático, em vista da desigualdade material que gera na disputa eleitoral, conforme será enfatizado posteriormente e ainda, em razão da necessidade de alternância de poder, essencial à existência e efetiva vivência de um regime democrático. 6. Alternância de poder Conforme destacado anteriormente neste estudo, a alternância de poder constitui elemento intrínseco à democracia, sendo este de importância fundamental à manutenção de um regime político em suas características democráticas, de modo a evitar o estabelecimento de determinado grupo político no poder por um período de tempo demasiado longo, a ponto de se verificar a criação de lugares cativos no Poder Público. Sob outro viés, a renovação política se faz essencial, para que se crie um ambiente favorável à eleição de novas prioridades políticas e de novos projetos, possibilitando o crescimento e o progresso não apenas dos mesmos setores em que se realizam 15 Nesse sentido, fora aprovada em 2010 a Lei da Ficha Limpa (Lei complementar nº 135/2010), que ampliou as hipóteses legais de inelegibilidade, sob a justificativa de conferir proteção à probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. 349 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto investimentos em nossa sociedade, mas para que os demais, alcancem o mesmo índice de crescimento de forma conjunta. É inegável que nem sempre a alternância política resultará em mudanças positivas para a coletividade, restando a possibilidade de que as metas definidas possam não ser alcançadas como se esperava ou até mesmo que as prioridades estabelecidas pelo governante eleito não sejam aquelas que tinham maior relevância naquele momento, verificando-se posteriormente, que outros setores da vida social, necessitavam de recursos que, por escolha do governante, não foram repassados da forma que seria necessária para solucionar o problema. Porém, é preciso ressaltar que todos os governantes, sejam estes eleitos em seu primeiro mandato ou reeleitos, estão sujeitos a este erro, independente do partido que integrem. Entretanto, a ocorrência de erros pode ser minimizada por dois aspectos: quando o governante deixa de realizar práticas de cunho eleitoreiro, que visem exclusivamente melhorar a imagem de sua gestão perante determinado grupo da sociedade e passa a pautar-se em um planejamento prévio, que não seja destinado à manutenção de determinado grupo político no poder, mas que tenha por objetivo a melhoria das condições de vida da coletividade, assegurando os direitos de cada indivíduo, e ainda, pelo fortalecimento do debate, na medida em que para que a eleição de prioridades ocorra de modo mais eficiente para o país, o estado ou o município, faz-se necessária a existência de uma oposição forte, que seja capaz de colocar-se de forma contrária ao posicionamento da base de governo, para que de modo construtivo e após reflexão profunda sobre o impacto das normas a serem estabelecidas se encontre conjuntamente a melhor maneira de gerir os recursos públicos. Além disso, concerne a oposição papel imediato na fiscalização dos atos do Poder Público. Neste ponto, somente uma oposição fortalecida é capacitada ao desempenho de tais funções de modo eficaz, e esta apenas resultará quando existir ambiente propício à alternância de poder. Ressalta-se ainda, que a vinculação da ideia de alternância de poder à democracia não é instituto moderno, já tendo sido defendida por diversos estudiosos políticos, conforme destaca Tarcísio Vieira de Carvalho Neto (2012, p. 173): Aristóteles (1998) já se referia à igualdade na “alternância do mando e da obediência” como o “primeiro atributo da liberdade que os democratas colocam como fundamento e como fim da democracia”. Entre as máximas democráticas (em número de doze) concebidas por seu poderoso intelecto, estavam, justamente, as de que: (i) a mesma magistratura não deve ser conferida mais de uma vez à mesma pessoa, ou pelo menos que isso aconteça 350 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. raramente e para pouquíssimos cargos; (ii) todos os cargos devem ser de curta duração, ou pelo menos aqueles em que essa breve duração for conveniente; (iii) todos devem passar pela judicatura, independentemente da classe a que pertençam, e ter poder para julgar sobre todos os casos em qualquer matéria, mesmo as causas da mais alta importância para o Estado; (iv) não se deve tolerar nenhuma magistratura perpétua. Para ele, o princípio no qual se baseiam é “o direito que retiram da igualdade numérica” e “quanto mais longe se levar essa igualdade, mais a democracia será pronunciada” (ARISTÓTELES, 1998, p. 177-179). Conforme se pode extrair do trecho transcrito da obra aristotélica, existem outros elementos importantes ao exercício da democracia, que merecem questionamentos em momento futuro, no que se refere ao acesso aos cargos eletivos, subsistindo a crítica ao modelo político excludente que vivenciamos nos dias atuais. Todavia, neste momento, faz-se necessária a abordagem de outra questão relevante ao tema da reeleição aos cargos do Poder Executivo, que corresponde de modo direto ao pensamento aristotélico sobre a democracia acima exposto. 7. Reeleição: desigualdade na corrida eleitoral Ainda que correspondente à soberania da vontade popular e proveniente da liberdade política atribuída ao povo, qualquer regime político jamais poderá denominarse democrático, enquanto predominar a desigualdade em dois aspectos: na valoração do voto, em que se confira valor diferenciado ao voto do rico e do pobre, do homem ou da mulher, ou que se faça qualquer outra forma de distinção; ou ainda, na competição pelo poder, proveniente da disputa eleitoral, de modo a estabelecer quaisquer normas que favoreçam determinado candidato perante os demais. Nesse sentido, a norma que possibilita a candidatura de uma pessoa que já se encontra no exercício do cargo que pleiteia, confere-lhe vantagens, que dificilmente serão equiparadas pelos adversários políticos. Sob tal aspecto, a desigualdade decorre de vários fatores, sendo o primeiro destes a permanência do chefe do poder executivo no cargo a qual fora eleito durante todo o período de campanha, conforme prevê a legislação vigente. Com isso, o candidato em meio à veiculação de propaganda eleitoral permanece realizando atos de governo, naturais ao exercício de sua função, que lhe conferem uma publicidade maior do que aos demais candidatos, na medida em que, pela relevância de tais atos perante toda a comunidade, a exposição midiática destes torna-se natural, de modo que esta não poderá de forma alguma ser igualada por qualquer dos demais candidatos. 351 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto Neste mesmo ponto, é preciso ressaltar que a permanência do candidato no exercício do mandato durante todo o período de campanha lhe permite a realização de outros atos políticos capazes de lhe trazer vantagens que também não poderão ser alcançadas pelos demais candidatos, como a criação ou sanção de leis com propósito eleitoreiro. Não há como se negar que destas funções pode ser efetuado o uso com propósito indireto de promover a imagem do candidato, visto que ainda que em atos corriqueiros, que não são designados propositalmente ao período de campanha eleitoral, verifica-se a possibilidade de favorecimento ao candidato, que é colocado em uma posição de evidência pelo mero exercício do mandato.Além disso, existe a potencialidade da atuação dos funcionários comissionados como cabos eleitorais para angariar votos aos candidatos que buscam a reeleição, visto que estes, de forma natural, são partes interessadas na vitória do atual gestor. Destaca-se, que este fator pode não ter grande relevância no âmbito federal ou estadual, no entanto é inquestionável a potencialidade que tal fator dispõe na esfera municipal. Por conseguinte, já tendo sido vislumbrado anteriormente a existência deste problema, encontra-se em trâmite no Senado, uma proposta de emenda à constituição, criada pela senadora Ana Amélia (PP-RS), que prevê o afastamento do chefe do poder executivo que decidisse disputar a reeleição. Originalmente, a PEC 48/2012, tornava obrigatório o afastamento do mandatário a pelo menos quatro meses antes da realização do pleito eleitoral, mas após emendafeita pelo senador Luiz Henrique (PMDB-SC), o afastamento somente teria que ocorrer de forma obrigatória, no primeiro dia útil posterior à homologação da candidatura. É importante frisar que tal norma constitui um avanço na reforma política, na medida em que reduz de forma considerável a desigualdade existente entre o candidato que pleiteia a reeleição e os demais postulantes ao mandato político, mas não soluciona o problema, subsistindo o desequilíbrio manifesto entre os candidatos. 8. Conclusão Em diversos momentos do presente estudo, apresentei posicionamento contrário à norma constitucional que autoriza a reeleição para os cargos de chefia do poder executivo, expressa no art. 19, parágrafo 5º, do referido diploma. No entanto, torna-se importante destacar que, embora a considere contrária ao princípio democrático, expresso em diversos momentos em nossa Carta Máxima, seria um erro técnico considera-la 352 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 333-355, jul./dez., 2014. inconstitucional, em vista do princípio da unidade, a ser aplicado na interpretação do texto constitucional. Destarte, ainda que inserida no referido diploma, tal norma não se caracteriza como intocável, visto que não se insere entre as normas as quais o constituinte originário revestiu de imutabilidade, designando-a entre as cláusulas pétreas, sendo possível a sua modificação mediante emenda à constituição, do mesmo modo com que fora exercida em 1997. Porém, devido a relevância da matéria em questão e da sua importância para a sociedade, propugno pela realização de uma consulta à opinião pública, através de um plebiscito. Nesse diapasão, a consulta por meio de plebiscito se mostra mais eficaz em razão das múltiplas matérias a serem tratadas pela reforma política que se aproxima, visto que esta não deve resumir-se apenas à questão sobre a continuidade da reeleição aos cargos do poder executivo, mas pautar-se também em outros quesitos, como o financiamento de campanha proveniente de empresas privadas e a unificação dos pleitos eleitorais municipais e estaduais/federais. E assim, a partir da decisão adotada pelos eleitores nas urnas, às questões de relevância pública que serão debatidas e votadas pelo povo, caberá ao congresso nacional, elaborar a legislação pertinente, nos moldes necessários a garantirlhe eficácia em nosso ordenamento jurídico. Dessa forma, caberá à população brasileira dar o primeiro passo na reformulação da norma, cabendo ao legislador o papel de assegurar a vontade declarada nas urnas, por meio do debate sobre os detalhes técnicos quanto à sua aplicação. De modo diverso, a utilização de um referendo anteciparia o debate, de modo que as discussões sobre todas as matérias relevantes à reforma política se dariam anteriormente no Congresso Nacional, ocorrendo, posteriormente, a formulação da legislação pertinente, cabendo ao eleitor o papel de aprova-la ou rejeitar a sua aplicação, de modo que este estará adstrito à matéria votada anteriormente pelo legislador e qualquer hipótese que por este for afastada, jamais chegará a ser apreciada pela população. Resta ainda destacar, que o legislador, enquanto membro do Estado, tem o seu mandato eletivo regulamento pelas normas de nosso sistema político, e, como integrantes ativos de partidos políticos, é, indubitavelmente, parte interessada no conteúdo material da reforma política, o que gera evidente conflito de interesses nas escolhas relativas a esta matéria para elaboração de tais reformas. Logo, torna-se inquestionável a inviabilidade de realizar uma reforma que não aprecie a opinião pública, através de um referendo ou um 353 | A l e t h e s THRONIECKE, W. B. A Contrariedade do Instituto plebiscito, sendo este último, conforme já abordado, o método mais eficaz à sua apuração. Portanto, diante de todos os argumentos apresentados, o posicionamento contrário à possibilidade de reeleição aos mandatos de chefia do poder executivo constitui a via mais eficaz ao exercício de um regime democrático, pautando-se concretamente na ideia de alternância de poder e de igualdade entre aqueles que pleiteiam o mandato eletivo. Sobre este ponto, outras mudanças normativas devem ainda ser vislumbradas em um momento futuro, de modo a reduzir as deficiências de nosso modelo político excludente e garantir a vivência de uma democracia verdadeira. Entretanto, como primeiro passo, tão essencial ao combate à crise que se alastra em nosso modelo representativo, a reforma política é inevitável, e esta não pode jamais realizar-se sem a participação do povo. Importa destacar que o regime democrático não deve utilizar-se da soberania da vontade popular apenas no momento de escolher os representares políticos que irão compor o parlamento, as assembleias legislativas e a chefia do executivo, visto que o papel social a ser exercido pelo povo é muito maior do que este. Nesse sentido, a vivência de um efetivo governo do povo, somente será possível quando o próprio povo puder decidir o modo como queira ser governado e os princípios a serem aplicados ao regime político forem provenientes da vontade destes, e não dos interesses de grupos seletos que ousarem tentar manipular os rumos políticos de nosso país. Sob tal viés, apresento e defendo um dos possíveis caminhos, mas com a ressalva de que enquanto vivermos em um Estado Democrático de Direito, somente haverá legitimidade na escolha, seja ela qual for, esteja bem ou mal fundamentada, se esta for exercida pela vontade soberana do povo. Referências Bibliográficas ARISTOTELES. A Constituição de Atenas. São Paulo: Editora Hucitec, 1995. ______. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 10. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. BRASIL. Constituição Federal (1998). Emenda constitucional nº 16, de 04 de junho de 1997. Dá nova redação ao § 5º do art. 14, ao caput do art. 28, ao inciso II do art. 29, ao caput do art. 77 e ao art. 82 da Constituição Federal. Disponível em: 354 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. 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Suporte Fático de Direitos Fundamentais: Auxílio interpretativo em direitos sociais no Brasil e em Portugal Factual Support of Fundamental Rights: Interpretative support to Brazilian and Portuguese social rights Mírian Zampier de Rezende1 Resumo O presente trabalho visa buscar o melhor caminho como solução ao problema da definição do conteúdo dos direitos sociais nos ordenamentos jurídicos português e brasileiro, que se reflete diretamente no plano da eficácia desses direitos e nas soluções em caso de violação de seus preceitos. Para tanto, buscou-se amparo teórico na Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy e no desenvolvimento de Virgílio Afonso da Silva em tema de suporte fático. Percebeu-se que, apesar das diferenças jurídicoconstitucionais de ambos os ordenamentos, é possível que se valham da noção de suporte fático visando que direitos da relevância dos direitos sociais não sejam destituídos de seu conteúdo e que não sejam os cidadãos privados dos bens e interesses constitucionalmente protegidos por essas normas. Palavras-Chave: Direitos sociais. Eficácia. Suporte fático. Abstract This work goal is to search the best solution to the problem of definition of social rights’s content in Brazilian and Portuguese law, what is directly connected to the effectiveness of these rights. The work is grounded on Robert Alexy Fundamental Rights Theory and on Virgílio Afonso da Silva work about factual support. In despite of Brazilian and Portuguese law differences, it is possible to both to use factual support. By using it, relevant rights as social rights will not be emptied of all it content and citizens will not be private of goods and interests that are protected by these rights. Key-Words: Social rights. Effectiveness. Factual Support. Recebido em: 27 de outubro de 2014 Aceito em: 2 de fevereiro de 2015 1 Graduanda em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 357 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos Introdução Analisando os ordenamentos jurídicos português e brasileiro, sobretudo em sede de direito constitucional, percebe-se a afinidade de ambos quanto à positivação dos valores mais caros ao homem, sobretudo a partir de normas de direitos fundamentais. No entanto, a aplicabilidade das normas de direitos sociais ainda enseja certas dúvidas, indo de encontro ao lugar de destaque que ocupam nas constituições dos respectivos países. Percebe-se que essa dificuldade é originada, principalmente, pela dificuldade que têm os juristas na definição do conteúdo das normas de direitos sociais. Nesse sentido, o objetivo do trabalho é desenvolver e disseminar a utilização da incipiente noção de suporte fático no âmbito do direito constitucional, de forma a colaborar no estabelecimento de padrões interpretativos que possibilitem maior concretização dos direitos fundamentais e, consequentemente, maior proteção da dignidade daqueles que necessitam da realização dos mandatos trazidos pelas normas de direitos sociais. Metodologicamente, fez-se revisão de literatura, de modo à obtenção de subsídios teóricos fundamentadores do estudo, a partir da análise de melhor doutrina e jurisprudência. Utilizam-se como marcos teóricos da investigação, sobretudo, a noção de Robert Alexy de direitos fundamentais enquanto normas prima facie e o desenvolvimento do conceito de suporte fático em direito constitucional levantado por Virgílio da Silva em sua tese defendida no concurso para o provimento do cargo de professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Partiu-se do método dedutivo, de modo que foram analisadas, inicialmente, questões abstratas, para que, somente depois, possa vir a ser possível a análise das questões abordadas de uma forma concreta. Ademais, classifica-se a pesquisa como qualitativa, advinda de busca em referências bibliográficas por argumentos embasadores do trabalho. Busca-se responder, então, aos seguintes questionamentos: quais as dificuldades comuns aos sistemas jurídicos brasileiro e português na aplicação dos direitos sociais? Como essas dificuldades podem ser sanadas? Qual o conceito e extensão da noção de suporte fático que devem ser utilizados no âmbito de direito constitucional? Como se pode adequar tal conceito à aplicação dos direitos sociais? 358 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. 1 Noções acerca da concretização dos direitos sociais: cotejamento dos sistemas constitucionais português e brasileiro Por diversos fatores2 é percebida, em determinada medida, certa aproximação entre os sistemas jurídicos brasileiro e português, de forma mesmo que certos autores consideram possível se falar que esses países fariam parte de um direito comum lusófono enquanto subgrupo da família romano-germânica3. Dentre esses pontos de aproximação, é possível elencar a abertura e afinidade de ambas as Constituições no que tange à positivação e incorporação de direitos econômicos, sociais e culturais4 dotados de caráter de fundamentalidade, compondo, juntamente aos direitos, liberdades e garantias5, catálogo extenso e profundo de direitos fundamentais. Ponto em que divergem sobremaneira os dois sistemas, no entanto, é nas consequências advindas da sistematização dos direitos fundamentais entre direitos sociais e direitos a liberdades. A Constituição Portuguesa consagra – à parte de haver princípios aplicáveis a todos os direitos fundamentais –, um regime material privilegiado aos direitos a liberdades, que, conforme entendimento majoritário, seria extensível apenas àqueles direitos sociais de natureza análoga (artigos 17.º e 18.º da Constituição Portuguesa). Dessa forma, há, nas palavras de Melo Alexandrino, um primado dos primeiros sobre os segundos, que, para além do regime jurídico qualificado, refere-se também, para o autor, a uma desigual importância e a um distinto estatuto jurídico desses conjuntos de direitos (ALEXANDRINO, 2011, p.69)6. No Brasil, por outro lado, longe de se ignorar que existam diferenças quanto à dimensão preponderante das normas consagradoras de direitos sociais, sabidamente positiva na maioria dos casos, equiparam-se juridicamente e em importância ambos os grupos de direitos7. 2 Dentre eles podemos notar a recepção e influência recíproca de institutos jurídicos e culturais, notadamente por nutrirem os países aproximação de caráter histórico e linguístico. Com auxílio da maior possibilidade de comunicação, é possível notar uma aproximação de fontes de estudo do direito e certo intercâmbio doutrinário, que fazem surgir quadro axiológico aproximado entre eles. 3 Autores como Dario Moura Vicente chegam a reconhecer um Direito Comum aos países de língua portuguesa, advindo das semelhanças das opções políticas e legislativas no tratamento dos mais relevantes institutos e na opção por determinados valores a reger os ordenamentos (VICENTE, 2014, p.87). 4 Direitos que, a partir de agora, serão tratados apenas como direitos sociais. 5 Direitos que, à semelhança do realizado na nota 3, serão tratados apenas como direitos a liberdades. 6 Fazendo justiça ao autor, deve-se ressaltar que o mesmo destaca não significar esse primado hierarquia material entre as normas de direitos fundamentais, mas diferenciação ao nível de estrutura político-constitucional, que permitem uma estratificação de partida entre os direitos, de modo a revelar uma preferência relativa dos direitos à defesa sobre os direitos sociais (ALEXANDRINO, 2011, p. 69) 7 Dessa forma, por exemplo, tanto os direitos sociais como os consagradores de liberdades são tratados como limites materiais de poder de revisão constitucional (art. 60, §4º, IV Constituição Brasileira), diferentemente do que ocorre 359 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos Em decorrência da diferenciação no que tange ao regime dos direitos fundamentais sociais e a liberdades, divergem os sistemas, igualmente, quanto à aplicabilidade dos direitos fundamentais. E isso se relaciona diretamente com a possibilidade de sua judiciabilidade e com a concepção dos papéis dos Poderes Judiciário e Legislativo em sua concretização. Nesse sentido, tratando acerca do ordenamento português, Melo Alexandrino leciona: [...] a realização do conteúdo principal dos direitos sociais constitui uma variável não só do processo econômico, mas também do processo político (Habermas); ao passo que a efetivação dos direitos, liberdades e garantias depende essencialmente do cumprimento das exigências requeridas pelo princípio do Estado de Direito, a realização dos direitos sociais mostra uma marcada dependência da realidade, nomeadamente ao nível de uma devida articulação com os demais sistemas sociais básicos (Bruno da Costa); ao passo que o conteúdo dos direitos sociais envolve mutabilidade (Roberto Bin), o conteúdo dos direitos de liberdade pressupõe a estabilidade (daí as idéias de determinação do conteúdo, delimitação do âmbito de proteção, etc.); ao passo que nos direitos sociais é significativo o grau de indeterminação da sua eventual violação, esse apuramento é relativamente fácil junto aos direitos de liberdade (Carlos Bernal Pulido). (ALEXANDRINO, 2011, p.46) Assim, enquanto na Constituição Portuguesa apenas os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (art. 18.º, 1), a Constituição Brasileira não faz quaisquer diferenciações, de modo que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, §1º). No Brasil, dessa forma, também os direitos sociais produzem efeitos jurídico-subjetivos, inclusive a prestações positivas. São, pois, normas vinculantes e podem ser exigidos frente ao Judiciário quando for ausente ou insuficiente a atuação dos demais poderes públicos. A interpretação da Constituição Portuguesa e a práxi do Tribunal Constitucional, por sua vez, revelam a persecução da separação dos poderes sob prisma clássico de autocontenção do Judiciário e de enaltecimento da atividade legislativa no que tange ao aspecto de aplicabilidade dos direitos sociais. Possuem, os representantes do povo, ampla margem de conformação desses preceitos, na qual não costuma o outro poder intervir. A decisão judicial tem apenas função de comunicação ao Legislativo da falha de seu dever e não há, por exemplo, sequer julgados suficientes que permitam afirmar na Constituição Portuguesa, que, na alínea d de seu art. 288.º faz menção expressa de que apenas os direitos, liberdades e garantias atuam enquanto limites de reforma. Os direitos sociais, portanto, não são considerados limites materiais à revisão constitucional, com exceção dos direitos dos trabalhadores, no que a Constituição Portuguesa é expressa na al. e do mesmo art. 288.º 360 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. qual a tendência do Tribunal no que tange à inconstitucionalidade por omissão89 do legislador na densificação desses direitos. Isso porque a Constituição Portuguesa não proporciona gama de normas suficientes que tornem possível a busca direta de tutela dos direitos fundamentais por seus titulares. Principalmente, não há instrumento de interpelação judicial pelo indivíduo da afirmação de direito social em seu caso concreto10. Considerando uma inação do poder público na densificação de um direito social, por exemplo, o cidadão somente pode peticionar ao Provedor de Justiça ou ao Presidente da República para que, estes sim, possam conduzir o problema à fiscalização do Tribunal Constitucional11. Isso se reflete na eficácia da norma, pois, não atuando o legislador, e não sendo a ela concedida aplicabilidade direta a partir do preceito constitucional, não se consegue definir seu conteúdo, e os cidadãos ficam privados das prestações que delas deveriam advir. A Constituição Brasileira de 1988, no entanto, exprime diferente modelo. Das mudanças trazidas com o contexto histórico do século XX e da concepção de que o Estado, mais que de direito, deve ser também social, extrai-se que o amparo legal não é suficiente à proteção última da dignidade humana. Ainda, pelos traumas vividos no regime ditatorial que antecedeu o constituinte de 1988, adveio o pensamento quase uníssono de que os direitos dos cidadãos, das maiorias e das minorias, devem ser protegidos frente às oscilações políticas e ideológicas governamentais. Assume, a Constituição, dessa forma, papel de diploma normativo máximo consagrador dos valores mais caros à sociedade, o que se dá, sobretudo, através dos direitos fundamentais. 8 A maior parte das decisões em sede de omissão em direitos sociais envolve não uma inação legislativa, mas ações que tendam a eliminar posições consagradas anteriormente, e que geram posicionamentos e fundamentos diversos nos diferentes julgados. 9 Em Portugal nota-se escasso o recurso à fiscalização de inconstitucionalidade por omissão – até o ano de 2011 foram treze processos e quatro decisões nesse sentido. Mais ainda, até esse mesmo ano, apenas por uma vez o Tribunal Constitucional declarou inação legislativa decorrente de inexequibilidade de direitos sociais. 10 Essa dificuldade na busca da tutela de direitos sociais não é imune a críticas, que se dão especialmente pelo paradoxo que revela frente à consagração do princípio da socialidade enquanto princípio constitucional e frente ao elenco avantajado e pormenorizado de direitos sociais trazidos pela Constituição Portuguesa. Aos direitos previstos na letra do diploma normativo máximo do ordenamento português, portanto, não está correlacionada uma Justiça Constitucional de magnitude semelhante. (NOVAIS, 2010, p.374) 11 A título de menção, percebendo o déficit do sistema português de tutela dos direitos fundamentais, tentou-se superar a deficiência de acesso direito ao Tribunal pela ação de intimação, introduzida em 2002 no Código de Processo dos Tribunais Administrativos. A ação possibilita a imposição de uma conduta à Administração quando for necessária atuação célere para a proteção de direitos fundamentais do indivíduo que estejam em perigo e que não seja suficiente o recurso a uma cautelar. Essa ação é o meio processual que mais se aproxima ao tipo de tutela judicial direta que ocorre no Brasil. Porém, mesmo ela, em Portugal, é sujeita a um filtro de acesso (NOVAIS, 2010, p. 351), que a restringe apenas à proteção de direitos, liberdades e garantias. 361 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos Certo é que a possibilidade fática de concretização dos direitos sociais está associada à realidade política e econômica do país, de forma que se torna de relevância ímpar a atuação do legislador democraticamente eleito na análise dos recursos disponíveis e das necessidades mais emergenciais da população. Ele deve, de fato, direcionar os gastos e a elaboração do orçamento à persecução dos bens, interesses e valores a cuja realização a Constituição o vincula, sempre segundo as peculiaridades da sociedade. A ele cabe, pois, analisar quais os interesses populacionais mais afetados, quais exigem maiores cuidados e quais as formas ótimas para que as políticas elaboradas atinjam a sociedade de maneira universal, e, ao mesmo tempo, materialmente igualitária. No entanto, a vinculatividade dessas normas, por sua relevância, não deve atingir apenas o legislador, mas a todos os órgãos públicos12. Dessa forma, também a separação de poderes deve ser compreendida no contexto do Estado Democrático de Direito Social e da relevância judicial para a resolução dos conflitos que envolvam direitos fundamentais. Nesse contexto se dá a elevação da função do poder judiciário – especialmente do Supremo Tribunal Federal –, cujo papel maior é a proteção da Constituição (logo, dos direitos fundamentais). Esse papel deve ser cumprido mesmo frente aos desejos de ocasionais maiorias opressoras legislativas, através da aplicação das regras constitucionais e ponderação dos princípios envolvidos, visando sempre à máxima concretização de seus preceitos básicos. Há, assim, maiores fundamentos normativos na Constituição Brasileira a legitimar um papel ativo do juiz que, por vezes, pode até impor, em sua decisão, o fornecimento de certa prestação. No entanto, o perigo, aqui, é inverso, qual seja, a possibilidade de o Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, a pretexto de proteção da Constituição, violar a igualdade entre os cidadãos, conferindo àqueles que a ele recorrem acesso a bens e serviços públicos que outros, em condições semelhantes às suas, não têm. Isso levaria igualmente a um esvaziamento do conteúdo e eficácia normativa dos direitos sociais, que poderiam ter sua efetivação restrita a um determinado segmento da população que tem acolhida sua pretensão judicial e ficariam, os indivíduos, sujeitos ao arbítrio de uma ditadura do Poder Judiciário. De qualquer forma, o que se nota tanto num quanto noutro sistema após a análise aqui empreendida, é que grande parte da dificuldade na concretização de direitos sociais 12 Essa ideia é mais facilmente defensável no contexto jurídico constitucional brasileiro, no qual é permitido que, na ausência de atuação legislativa, o judiciário intervenha para que os bens e interesses constitucionalmente protegidos dos cidadãos possam ser tutelados, garantindo maior força normativa aos preceitos constitucionais, notadamente aos direitos fundamentais. 362 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. advém, certamente, da dificuldade de definição e de critérios de definição do seu conteúdo, e de compreensão de quais condutas representam violações a seus preceitos. Seja porque ainda não houve densificação pelo legislador infraconstitucional, ou porque a densificação não é suficiente à proteção do direito, seja por conta do recurso à ponderação do Judiciário para sua satisfação, nota-se a dificuldade nessas questões. Por não terem conteúdo facilmente definido, muitas vezes, recorre-se mesmo à baixa densidade13 normativa dos direitos sociais como fundamento legitimador ao seu grau de eficácia inferior. Isso acontece, sobretudo, quando há comparação à aplicação das normas consagradoras de direitos a liberdades, das quais se costuma dizer que mais facilmente extrai-se o conteúdo, e que, por isso, pouca discussão geram referente à vinculação direta dos órgãos públicos aos seus mandatos14. O problema da densidade normativa do direito social, pois, relaciona-se à dificuldade em estabelecer quais prestações são por ele protegidas, especialmente quando inerte o legislador. E essa dificuldade é sempre prejudicial. Primeiro, porque põe em causa a eficácia e a própria seriedade com que devem ser tratados esses direitos. E, segundo, porque pode servir ao arbítrio de representantes estatais ou grupos políticos que, para atingir interesses próprios egoísticos, utilizam-se de medidas que ora dão prevalência demasiadamente robusta aos direitos sociais, ignorando outros interesses e valores de igual relevância constitucional, e ora, restringe-os de maneira desarrazoada, condenando-os à destituição de todo e qualquer conteúdo. De um e de outro modo estão sendo feridas as bases do sistema de um país democrático, de direito e social, e sujeitando os indivíduos ao arbítrio estatal que há tanto se busca conter. Para tanto, e visando alternativas de preenchimento do conteúdo dos direitos sociais, vem-se, aqui, propor a utilização da noção de suporte fático para a interpretação das normas constitucionais, especialmente no que se refere aos direitos fundamentais. Vem, a proposta, auxiliar na adequação normativa ao contexto fático em que se insere e na possibilidade de destinação a ela da eficácia de que deve ser dotada, principalmente quando em causa hipótese de violação de seus preceitos. Que assim, em ambos os ordenamentos, no que se aproximam e no que se distanciam, dentro das respectivas 13 Uma norma é dita como dotada de densidade normativa quando há em nível constitucional, com certo grau de precisão, a definição do que compõe o seu conteúdo essencial de forma que, a partir da constituição, e sem recursos robustos interpretativos, possa-se extrair o mandamento normativo. (SARLET, 2009, p.269) 14 Essa ideia, no entanto, é falaciosa. Isso porque não são apenas os direitos sociais que se apresentam em formas constitucionais genéricas, o trabalho interpretativo de concretização também é patente em direitos a liberdades, especialmente quando compostos de conceitos abertos e indeterminados, tornando a autocontenção judiciária, por vezes, mais ideológica que baseada em fundamentos racionais e dedutíveis da realidade prática. 363 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos peculiaridades jurídico-constitucionais, não se destitua de conteúdo preceitos da relevância dos direitos sociais e, ao mesmo tempo, que sua aplicação não se dê ao custo do completo sacrifício de outros valores que devem ser igualmente protegidos. 2 Suporte Fático em sede de normas constitucionais Essencial ao estudo da aplicação do direito em uma sociedade, pois, é a análise das normas jurídicas que o compõem. Estruturalmente são tais normas formadas por enunciados abstratos os quais, havendo fatos correspondentes no mundo concreto, possibilitam a aplicação de uma consequência jurídica. Dessa estrutura, origina-se a noção de suporte fático, objeto de estudo neste trabalho. Em alguns ramos do direito, são encontrados conceitos equivalentes ao de suporte fático de forma mais arraigada. Em direito penal (tipo penal), direito tributário (hipótese de incidência ou fato gerador) e direito privado (também denominado suporte fático), por exemplo, dá-se maior relevância à sua utilização na compreensão normativa. Nessas áreas, no entanto, o que ocorre é a mera subsunção da abstração normativa à concretude dos fatos. Enquadrando-se o fato no preceito abstrato, diz-se preenchido o suporte fático da norma. Têm, essas normas, em sua maioria, verdadeira estrutura de regras jurídicas. Assim, praticando um indivíduo, por exemplo, a ação de matar alguém, matar outra pessoa, será sua conduta, em sede de tipicidade formal, correspondente ao art. 121 do Código Penal Brasileiro ou art. 131º do Código Penal Português, podendo estar sujeito à sanção penal cominada nos dispositivos. O suporte fático em direito constitucional, quando da análise dos direitos fundamentais, por sua vez, é peculiar. Isso se deve às características principais desses direitos: entende-se15, no presente estudo, que possuem caráter principiológico preponderante, e, dessa forma, são dotados de estrutura normativa diferenciada. 15 Entende-se, aqui, na esteira do pensamento de Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, que as normas consagradoras de direitos fundamentais são normas princípios. Os princípios podem ser caracterizados como normas prima facie, que têm seu conteúdo definido à luz do caso concreto. Isso porque são mandatos de otimização, devendo ser realizados da melhor maneira possível diante da colisão com outros princípios. A regra a ser aplicada ao caso concreto será, pois, extraída após exame de proporcionalidade entre as normas colidentes, de forma a buscar a máxima concretização de todas elas, mas sobressaindo as formas de concretização que primem pelas que têm maior peso no caso concreto. Assim, os princípios são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”. (ALEXY, 2008, p.90) 364 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. Assim, comparativamente à noção do suporte fático consagrada em outras áreas do direito, quando do estudo da aplicação de direitos fundamentais, a verificação do suporte fático é, na esteira de Virgílio Afonso da Silva, contraintuitiva (SILVA, 2010, p.70). Isso porque não basta a subsunção do preceito normativo para que sua consequência jurídica possa ser verificada. A conduta, ato, fato ou situação jurídica protegida, ou seja, o âmbito de proteção do direito fundamental, apesar de também possuir grande importância para a teoria do suporte fático, não é, por si, suficiente. Deve impreterivelmente vir acompanhado de outros elementos para que seja de fato possível a aplicação da consequência jurídica referente à norma. Conforme apresentado por Alexy (ALEXY, 2008, p. 306), é necessário, no preenchimento do suporte fático dos direitos fundamentais, para além de um fato que possa ser inserido no âmbito de proteção da norma, haver efetiva intervenção estatal no exercício do direito a ela correspondente. É exatamente por essa necessidade de intervenção estatal que o suporte fático dos direitos fundamentais é contra intuitivo. Andar livremente pelas ruas, desse modo, não se enquadra no suporte fático do direito à liberdade de locomoção enquanto não for impedido à pessoa que se ande livremente pelas ruas. Para esse autor, assim, a configuração do suporte fático dos direitos fundamentais seria dada pela existência de determinada intervenção estatal que atinja o âmbito de proteção da norma de direito fundamental. Em momento posterior e fora da análise do preenchimento do suporte fático, deve-se verificar a existência de fundamentação constitucional necessária para a intervenção, para que, somente nesse momento, possa haver de fato a aplicação da consequência jurídica da norma de direito fundamental, se houver fundamentação inadequada. Virgílio Afonso da Silva (SILVA, 2010, p. 74), por sua vez, amplia de forma pertinente o conceito do instituto aqui analisado. O autor considera a necessidade de que não haja fundamentação constitucional para a intervenção estatal como sendo elemento intrínseco ao próprio conceito de suporte fático, não mais como algo a ele exterior como visto em Alexy. Encontrando base na Constituição, a forma como atua o Estado não configura uma violação ao direito fundamental, mas uma restrição a esse direito, não conduzindo à ocorrência de sua consequência jurídica. 365 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos É preciso, então, na análise do suporte fático dos direitos fundamentais16, que alguns requisitos sejam atendidos. Inicialmente, a conduta que se quer proteger deve poder ser enquadrada no âmbito de proteção da norma. Este é o rol de todas as condutas que possam, num plano abstrato, ser reconhecidas como conexas ao que se está nela protegendo e, por isso, ser objeto de uma valoração apriorística a considerá-las dignas de proteção. Em segundo lugar, é preciso haver uma efetiva intervenção estatal na conduta aprioristicamente protegida. Atendidos tais requisitos, faz-se mister a análise da fundamentação constitucional da intervenção. Se adequadamente fundamentada, mantém-se a intervenção. Caso contrário, incide a consequência jurídica da norma, sendo inaplicável a intervenção do Estado e sendo exigido o retorno ao status quo ante. 2.1 Suporte fático restrito e suporte fático amplo: teorias acerca da extensão do suporte fático das normas de direitos fundamentais Tão ou mais importante que a definição do que consiste o suporte fático no âmbito dos direitos fundamentais é a opção que se faz acerca da extensão desse suporte fático, que gera reflexos diretamente: a) no fato de ser possível ou não haver restrições aos direitos fundamentais, e b) no grau de fundamentação das atuações estatais. Para aqueles que defendem um modelo restrito17, a análise do suporte fático está vinculada à delimitação de um âmbito de proteção aprioristicamente definível e restrito. Nesse caso, busca-se definir a priori e abstratamente quais condutas, atos, fatos e situações que possam vir a ocorrer no mundo dos fatos, estão, desde antes de sua ocorrência, protegidos ou não pela norma de direito fundamental. Não são aceitas restrições advindas de colisões no caso concreto entre os direitos fundamentais, porque todos os direitos possuiriam sua extensão e seus limites previamente delimitados, de forma a nunca colidirem seus objetos de proteção. Assim, os direitos fundamentais são nela tratados como direitos definitivos, que ensejam uma mesma consequência jurídica definitiva independentemente do caso concreto. Por outro lado, os teóricos que primam por um suporte fático amplo, como é o caso de Robert Alexy (ALEXY, 2008, p. 321), e Virgílio Afonso da Silva (SILVA, 2010, p. 94), apresentam as grandes dificuldades trazidas pela teoria restritiva. 16 Aqui se refere ao suporte fático de direitos fundamentais a liberdades. Posteriormente será feita análise mais aprofundada acerca da aplicação do conceito quanto aos direitos sociais. 17 Dentre os quais cumpre ressaltar os trazidos por Virgílio Afonso da Silva: Friedrich Müller (SILVA, 2010, p. 86) e John Rawls (SILVA, 2010, p. 89) 366 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. Inicialmente, seria difícil conciliar tal teoria com a opção pela teoria dos princípios de Alexy, a qual o trabalho se filia. Isso porque a opção restritiva dá aos direitos fundamentais o caráter de direito definitivo que, pela teoria dos princípios, é apenas conferido às regras. Além disso, a teoria do suporte fático amplo dá maior ênfase à necessidade de justificativa para as intervenções estatais que à possibilidade de uma delicada definição de âmbito de proteção abstrata e definitiva. Em realidade, a análise do âmbito de proteção feita por essa teoria é muito mais simples. Sendo amplo, nele enquadram-se abstratamente todas as condutas, atos, fatos e situações que se relacionem, de alguma forma, com o “âmbito temático” (SILVA, 2010, p. 109) trazido pela norma. O que realmente se enquadra no suporte fático, no entanto, só poderá ser definido concretamente após o sopesamento dos valores envolvidos, através do exame de proporcionalidade. Nesse sopesamento, deverá haver robusto ônus argumentativo para que a justificativa da intervenção seja constitucionalmente legítima, de forma que a restrição ao direito fundamental passe pelo crivo da adequação, necessidade e razoabilidade da medida. Os direitos fundamentais, seriam, aqui, verdadeiramente normas consagradoras de direitos prima facie. Não se pode negar que a opção pela teoria ampla de suporte fático potencializa as situações de colisões normativas e, por consequência, as intervenções levadas a cabo pelas autoridades estatais. Além disso, tal modelo poderia levar a uma supervalorização da função do Poder Judiciário na estrutura jurídica de um Estado. No entanto, isso não se faz problema quando se leva em conta que as intervenções não serão verdadeiras intervenções, mas restrições constitucionalmente legítimas aos direitos fundamentais, que deverão possuir alto grau de justificação constitucional. Assim, certo é que, por essa teoria, não é possível um direito fundamental que nunca sofra restrição, mas, igualmente, nunca essa restrição será inconstitucional ou fundada em exames de adequação meramente política. Somando-se a isso, ressalta-se que o Judiciário não estará exercendo ativismo judicial no sentido pejorativo que foi cunhado à expressão, mas, antes de qualquer coisa, estará exercendo a função de proteção da Constituição do país. A essa corrente o trabalho se alia. 367 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos 3 O suporte fático no âmbito dos direitos sociais Se a análise do suporte fático dos direitos fundamentais relativos a liberdades públicas já é contraintuitiva e pouco abordada no direito constitucional, tais características são ainda mais evidentes quando se trata dos direitos fundamentais a prestação estrito senso, quais sejam, os direitos sociais. No entanto, definir a noção de suporte fático nesses casos é imprescindível para a melhor compreensão da aplicação dos direitos sociais e do papel do Estado para sua concretização, especialmente frente às situações em que os órgãos públicos permanecem inertes ou atuam de modo insuficiente. As bases do conceito de suporte fático de direitos sociais, no entanto, sofrem algumas alterações em relação às adotadas no estudo dos direitos a liberdades públicas. Por isso, busca-se desenvolver o conceito com a devida atenção a essas diferenças. Para elaborar o correto conceito, então, parte-se de quatro perguntas formuladas por Virgílio Afonso da Silva (SILVA, 2010, p. 71) para a determinação do suporte fático das normas de direitos fundamentais, às quais seguem as conclusões a que se chegou, no presente trabalho, enquanto possíveis respostas. 1) O que é protegido pela norma de direito social? Os direitos sociais possuem, de fato, peculiaridades frente aos direitos a liberdades constitucionalmente previstos. Ao revés de, majoritariamente, em sua dimensão principal, buscarem proteção da esfera de autonomia e liberdade dos indivíduos frente à atuação do Estado, visam fornecer a esses mesmos indivíduos as condições materialmente necessárias para que possam exercer tais esferas de autonomia e liberdade. Isso se dá, no Brasil, especialmente pela prestação dos serviços básicos extraídos do rol elencado pelo art. 6º da Constituição Brasileira e, em Portugal, principalmente pelas normas elencadas no Título III da Constituição Portuguesa. Embora esses serviços muitas vezes sejam também encontrados no mercado, como a existência de escolas, creches e hospitais de iniciativa privada, o Estado é chamado a colocar em condições de igualdade material aqueles que, por algum motivo, não podem deles usufruir. Busca-se igualar as condições fáticas de todos no ponto de partida, visando à igualdade material dos cidadãos como ponto de chegada. 368 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. Daí extrai-se que o que é protegido pela norma de direito social é uma atuação positiva do Estado na forma de uma ação que repercuta faticamente na busca pela igualdade material dos indivíduos. São protegidas abstratamente pela norma de direito fundamental social todas as formas pelas quais o Estado pode atuar na promoção do direito social envolvido, independentemente da eficiência da medida adotada ou do grau de afetação que causará em outros direitos constitucionalmente protegidos. Há um mandado de atuação geral que deve de alguma forma ser cumprido. Esse é, pois, seu âmbito de proteção. Assim, por exemplo, tanto o desenvolvimento de programas sociais de fornecimento de casas a baixo preço e com fáceis condições de pagamento quanto à construção e distribuição de apartamentos de luxo para determinada parcela da população são, prima facie, formas de ação estatal para o fomento e efetividade do direito à moradia. 2) Contra o quê se exige proteção? Seguindo a mudança lógica de raciocínio, não cabe mais se falar aqui em intervenção estatal, como se fala no conceito de suporte fático dos direitos a liberdades, justamente porque o que se almeja através dos direitos sociais é uma atuação do Estado. Assim, o que deve ser repelido é a inércia do Estado ou a opção por uma ação que seja insuficiente à efetivação do direito dentre as possibilidades trazidas pelo âmbito de proteção amplo da norma, de modo a desrespeitar o mandado de atuação por ela trazido. 3) Qual consequência jurídica poderá ocorrer? No Brasil, frente à ineficiência da atuação estatal, surge a possibilidade de reivindicação judicial da tutela do direito social através da reivindicação de prestação no caso concreto e de inconstitucionalidade por omissão. Se o judiciário considerar necessária a prestação à concretização do direito social, pode vincular os órgãos públicos a determinada prestação específica enquadrada abstratamente no âmbito de proteção da norma. Se declarada inconstitucional a omissão ou a insuficiência, surge um direito definitivo à atuação do legislador. Em Portugal, como não há meios diretos de exigibilidade judicial da concretização de um direito social, deve-se peticionar aos entes 369 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos competentes por acionar a fiscalização pelo Tribunal Constitucional, que, se julgar existente a inconstitucionalidade por omissão, comunicará a quebra de dever ao legislador. 4) Finalmente, qual grau de justificação é necessário ocorrer para que a consequência jurídica possa ser aplicada? Apesar das diferenças estruturais, algumas delas já elencadas, assim como no caso dos direitos fundamentais a liberdades, para que incorra a consequência jurídica, é necessário que o suporte fático da norma seja totalmente preenchido. Para isso, além da omissão ou da insuficiência da atuação estatal em relação a alguma ação aprioristicamente abarcada no âmbito de proteção da norma de direito social, deve não haver fundamentação constitucional para essa omissão ou insuficiência. Assim, por exemplo, no caso brasileiro, a princípio todo tipo de cobrança de atuação do Estado pode ser judicializada objetivando o direito definitivo que se extrai da consequência jurídica decorrente do preenchimento do suporte fático da norma. Se o Estado é omisso, o Judiciário deve ficar encarregado de julgar sua omissão e, se necessário, ordenar o cumprimento da medida devida. No entanto, pode-se decidir por ser justificada a inação através do exame de proporcionalidade, que, quanto aos direitos sociais, adquire também o escopo de proibição da não-suficiência (LEIVAS, 2006, p. 76). Pondera-se, de um lado, o grau de afetação a outros direitos e valores constitucionais, formais ou materiais, e, de outro, o grau de concretização do direito social almejado. Quanto mais essencial à concretização da dignidade da pessoa humana for a medida estatal, maior o ônus argumentativo relativo à não atuação, cabendo ao Judiciário a análise do preenchimento do suporte fático ou não. Nesse aspecto, deve-se ter especial atenção ao fato de que, por mais bem intencionado que seja um diploma constitucional, o legislador originário não pode prever todas as limitações de cunho material que podem advir à situação fática de um país, especialmente quanto à sua economia. No Brasil, verifica-se que, muitas vezes, a Corte Máxima, partindo do poder que possui de conformação da atuação do Legislativo e do Executivo, esquece-se de que a atividade política é cercada por limitações maiores que meros impedimentos jurídicos. 370 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. O que se nota é que a “tendência natural é fugir do problema, negá-lo. Esse processo é bastante fácil nos meios judiciais. (...) Tomada individualmente, não há situação para a qual não haja recursos” (AMARAL, 2002, p.146). Claro, deve-se sempre filiar à ideia de que políticas públicas relativas à justiça distributiva devem buscar atender às necessidades mais primordiais da população através de medidas jurídicas ou materiais, principalmente quando se tem em conta um Estado Democrático de cunho social. Grande parte das pretensões fundadas em direitos fundamentais exige, no entanto, para sua concretização, a disponibilidade de meios materiais; recursos esses que são, em sua maioria, escassos (AMARAL, 2002, p.133). Essa situação, infelizmente, muitas vezes independe de qualquer vontade política. A escassez de recursos é advinda da variedade e ampla gama de necessidades inerentes à existência humana, de forma a exigir opções legislativas relativas à alocação dos recursos existentes. Desse modo, é praticamente impossível conceber políticas públicas que não exijam do Estado sujeição aos limites econômicos, seja enquanto limites orçamentários ou regulatórios. Assumi-lo não retira dos limites fáticos a condição de entraves à plena promoção social das políticas públicas e dos objetivos sociais originários constitucionais, mas é necessário se não quisermos uma Constituição que seja meramente simbólica. Assim, no exercício de ponderação a ser feito para análise do preenchimento do suporte fático, deve-se ter em conta a reserva do possível e os recursos econômicos disponíveis (CANOTILHO, 1993, p. 545)18. De toda sorte, porém, a “reserva do possível”, não pode nunca funcionar como uma válvula de escape a não efetivação dos direitos sociais pelos poderes públicos, de forma que só serviria para cultivar desigualdades materiais, sem nenhum tipo de benefício social em troca. Desse modo, pode ser deduzida a fórmula de ocorrência do suporte fático no âmbito dos direitos sociais, qual seja: DSx (IE. ¬FC) Ox19. 18 De forma que Canotilho considera as normas de direitos sociais como leges imperfectae, embora admita que apresentem “relevante significado jurídico como direitos subjectivos”. (CANOTILHO, 1993, p. 545) 19Fórmula pela qual x representa a atuação estatal que promove o Direito Social invocado (DSx); (IEx. ¬FC) representa a inércia estatal não fundamentada constitucionalmente e Ox a consequência jurídica, que é o dever de prestação estatal (SILVA, 2010, p. 78). 371 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos Deve-se recorrer a essa fórmula, pois, enquanto critério de preenchimento do conteúdo das normas de direitos sociais. Primeiro, de forma a evitar que argumentos como a baixa densidade normativa, a separação dos poderes e a reserva do possível sejam impeditivos da atribuição de eficácia às normas e impeditivos de proteção quando violadas pelo poder público. De outra forma, para que aspectos desses mesmos argumentos que devem ser levados em conta não sejam ignorados pelo Judiciário, e que esse não possa, invocando a tutela de direitos sociais, atuar de forma ilegítima e desconforme à realidade política e econômica da sociedade em que inserido, por vezes mesmo subvertendo a ótica de igualdade que permeia tais direitos. Assim, a densidade normativa e, por conseguinte, o conteúdo da norma, devem ser analisados, para além da dependência de conformação pelos órgãos públicos, na situação particular de violação da dignidade dos indivíduos, tendo em conta que os critérios de interpretação, aqui, são distintos daqueles que exigem mera subsunção da norma. Envolvem, na verdade, a ponderação de diversos interesses, bens e valores conflitantes, além da análise dos recursos existentes na sociedade, que também são imprescindíveis à concretização de diversos outros direitos igualmente exigíveis, inclusive outros direitos sociais, e que devem, devido a essa situação de conflito, ser também levados em conta na ponderação no caso concreto. Dessa forma, são extraídas três consequências imediatas da utilização do conceito de suporte fático pelos ordenamentos ora analisados. É possível que: a) o Judiciário possa se valer de critérios tangíveis para averiguação de violação das normas consagradoras de direitos sociais, podendo promover sua tutela no caso concreto; b) a falta de atuação do legislador não seja empecilho à atribuição de densidade normativa às normas de direitos sociais por via interpretativa; c) em última instância, possa conduzir, no ordenamento português, à busca de uma dogmática unitária de direitos fundamentais.20 20 Ou, ao menos, em uma mudança menos radical, que o conceito de suporte fático seja utilizado pelo direito português de forma a conferir maior possibilidade de aplicação do regime jurídico de direitos a liberdades em sede de direitos sociais pela via do conceito de direitos fundamentais de natureza análoga presente no art. 17º da Constituição Portuguesa. Os direitos fundamentais de natureza análoga, apesar de não estarem no rol dos direitos a liberdades expressos na constituição, estão sujeitos ao mesmo regime material privilegiado a que estão submetidos os direitos a liberdades, seja nas vertentes material (art. 18º a 23º Constituição Portuguesa), orgânica (art. 165º, nº 1, b, Constituição Portuguesa) ou de revisão constitucional (art. 288º, d, Constituição Portuguesa). Segundo o autor 372 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. Conclusão Da análise das normas de direito constitucional português e brasileiro, sobretudo de direitos fundamentais, percebe-se que, apesar das peculiaridades inerentes a cada sistema, em ambos há dificuldade de determinação do conteúdo dos direitos sociais, o que se reflete diretamente na concretização desses direitos, por vezes condenando-os a uma situação de baixa eficácia. Devido à concepção que aqui se tem das normas de direitos fundamentais, qual seja, de que são normas que consagram direitos prima facie, repreende-se qualquer tipo de subsunção desses preceitos ou ponderação desvinculada do caso concreto. Assim, é possível propor uma solução para a interpretação do que pode ser considerado conteúdo dos direitos sociais através do desenvolvimento da ideia de suporte fático para as normas em sede de direito constitucional. O suporte fático, nesses casos, deve ser o mais amplo possível, de forma que o conteúdo da norma só possa ser extraído no caso concreto. Apesar de, dessa forma, terse que admitir a possibilidade de restrições a direitos fundamentais, essas exigirão sempre a máxima fundamentação por parte do ente que promove a restrição, com base em preceitos constitucionais igualmente valiosos. Tenta-se sistematizar, então, o caminho interpretativo pelo qual deve passar o aplicador do direito para definir o conteúdo do direito social no caso concreto para que, se estiver havendo atuação ou inação inadequada do Estado, se possa aplicar a consequência jurídica da norma de direito social, visando proteger o seu conteúdo e sua eficácia. Inicialmente, devem-se analisar quais podem ser as atitudes do Estado na concretização do direito social. Aqui se pensa em todo o âmbito temático que, abstratamente, concretiza de alguma forma e em alguma medida o mandato português Melo Alexandrino, na determinação da natureza análoga devem ser considerados dois aspectos distintos: inicialmente deve-se identificar um direito dotado de fundamentalidade material, ou seja, ser um direito que busque uma “igual dignidade” entre os sujeitos; depois, deve-se aferir equivalência aos direitos, liberdades e garantias, sendo análogo o direito cujo conteúdo puder ser extraído das normas constitucionais a ele referentes (ALEXANDRINO, 2011, p.51-52). Nesse sentido, pois, valendo-se do conceito de suporte fático, pode-se dizer que os requisitos propostos pelo autor são atendidos, sendo considerados os direitos sociais, também no direito português, diretamente aplicáveis. 373 | A l e t h e s REZENDE, M. Z. Suporte fático de direitos constitucional. Não importa ainda avaliar se a proteção é insuficiente ou violadora de outras normas constitucionalmente protegidas. Num segundo momento, vê-se concretamente se o estado atuou, dentro das condutas que abstratamente pertencem ao âmbito temático da norma, de forma a proteger suficientemente o direito social em questão. Se a resposta for negativa, surge a possibilidade, no Brasil, de reivindicação judicial do direito social e, em Portugal, de peticionar aos órgãos competentes para que acionem a fiscalização da inconstitucionalidade da omissão pelo Tribunal Constitucional, que, se julgar ser o caso, comunicará a quebra de dever ao Legislador. Por último, analisa-se se a insuficiência na proteção do direito social tem justificação constitucional, e se é embasada em outras normas e valores que, no caso concreto, mereçam tanta ou mais proteção que o direito social insuficientemente protegido, em exame de proporcionalidade, passando pelas avaliações de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito da insuficiência. Desse modo, conclui-se pela fórmula “DSx (IE. ¬FC) Ox” , pela qual x representa a atuação estatal que promove o Direito Social invocado (DSx); (IEx. ¬FC) representa a inércia estatal não fundamentada constitucionalmente e Ox a consequência jurídica, que é o dever de prestação estatal (SILVA, 2010, p. 78), como indicada a ser utilizada pelo aplicador do direito para definição e preenchimento do conteúdo do direito social. Através desse recurso, é possível que: i) o Judiciário possa se valer de critérios tangíveis para averiguação de violação das normas consagradoras de direitos sociais, podendo promover sua tutela no caso concreto; ii) a falta de atuação do legislador não seja empecilho à atribuição de densidade normativa às normas de direitos sociais por via interpretativa; iii) em última instância, possa conduzir, no ordenamento português, à busca de uma dogmática unitária de direitos fundamentais. Referências Bibliográficas ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais – Introdução geral. Estoril: Principia, 2011. 374 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 357-375, jul./dez., 2014. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. 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UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 As Contradições na Lei de Biossegurança Quanto às Pesquisas com Células Tronco The Contradictions in Biosafety Law Regarding Stem Cells Researches Grycor Alves de Azevedo1 2 Resumo A Lei de Biossegurança usa critérios permissivos ao uso de células-tronco embrionárias, que geram questionamentos. Para entender a amplitude da discussão, fazse necessário conceituar o que são células-tronco embrionárias, quais suas potencialidades e diferenças com relação às adultas. Existem cientistas, os quais são a favor das pesquisas com material embriológico. No entanto, consoante resultados acadêmicos ditos por pesquisadores, pode-se notar a capacidade das células-tronco adultas em substituir as jovens. Tudo isso é ampliado pelas divergências científicas de quando a vida humana começa e esta ao desenvolver em estágios iniciais, a adversidade de tutela de direitos no Código Civil Brasileiro e da Lei de Biossegurança. O escopo deste estudo é propor uma revisão da Lei 11.105, acerca de ajustes punitivos mais severos àqueles que não cumprem as condicionantes para utilização de material embriológico, no intuito de respeitar à vida. Para tal, o método comparativo entre sanções legislativas da Espanha e Inglaterra, as quais versam sobre o mesmo tema foi conveniente; juntamente, ao uso procedimental de pesquisas aliadas ao conhecimento, além da metodologia qualitativa em que há uma valorização da complexidade de determinados problemas. A Lei de Biossegurança é obscura ao firmar a inviabilidade como um dos critérios a ser seguido para a autorização de uso das células, mas tal fato não descarta sua vitalidade; outra condicionante é quanto ao tempo de três anos de criogênia exigida na lei, porém existem pessoas nascidas depois de seis anos de congelamento. Esta lei precisa ser reavaliada na seara da engenharia genética, mais precisamente, nos estudos de células-tronco humanas. Palavras-chave: Lei de Biossegurança. Células-tronco. Direito à vida. Abstract The Biosafety Law uses the permissive use of embryonic stem cells, which generate questions criteria. To understand the breadth of the discussion, it is necessary to conceptualize what are stem cells embryonic, what their strengths and differences compared to adults. Some scientists are in favor of research with embryonic material. However, you consonant academic achievement by researchers said, may be noted the ability of adult stem cells to replace Young. All of this is magnified by scientific differences of when human life begins and to develop this in the early stages, adversity guardianship rights in the Brazilian Civil Code and the Law on Biosafety. The scope of this study is to propose a revision of Law 11,105, about more severe to those who do not meet the conditions for use of embryonic material, in order to respect the life punitive adjustments. To this end, the comparative method between sanctions laws of 1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Pará. Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected]. 2 Trabalho desenvolvido com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica- PIBIC/ (Universidade Federal do Pará-UFPA). 375 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança Spain and England, which deal with the same topic was con-priate; together, allied to the use of procedural knowledge surveys, and qualitative methodology in which there is an appreciation of the complexity of certain problems. The Biosafety Act is unclear as to establish the impracticability of the criteria to be followed for the authorization of use of the cells, but this fact does not rule out its vitality; is another constraint on the time of three years of cryogenics required by law, but there are people born after six years of freezing. This law needs to be reassessed in the harvest, more precisely in order, in studies of human stem cell genetic engineerin. Keywords: Biosafety Law. Stem cells. Right to life. Recebido em: 2 de novembro de 2014 Aceito em: 2 de Fevereiro de 2015 376 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 Far-se-á abordagem sobre as nuances problemáticas da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Lei de Biossegurança, que se reporta às pesquisas com células-tronco embrionárias, bem como à engenharia genética e à regulamentação do uso de organismos geneticamente modificados - OGM`S, tendo-se, no entanto, como foco principal os questionamentos acerca da utilização das referidas células para fins terapêuticos. A mencionada lei foi promulgada como resposta jurídica aos avanços científicos relacionados à biotecnologia e também por força de razões político-econômicas brasileiras. Além disso, discorrer-se-á sobre o que é célula, células tronco embrionárias e adultas e acerca das potencialidades de cada uma para serem matéria de pesquisa. Outro fator a ser discutido, de inexorável importância, é quanto ao início da vida embrionária humana, a partir de diversas perspectivas, para melhor compreensão do tema. Sob enfoque jurídico, será estabelecida a diferenciação e a identificação no tocante ao tratamento dado ao embrião para a tutela de seus direitos, de acordo com o Código Civil de 2002 e da Lei de Biossegurança. Além disso, proceder-se-á a estudo comparado, no intuito de verificar como os legisladores valoram punitivamente àqueles que desrespeitam as condicionantes para o uso de material embriológico, seja na destinação, como no direito penal espanhol, ou na armazenagem e uso, como previsto no direito penal inglês. Apesar das discórdias científicas a respeito da utilização de células-tronco, devese respeitar os interesses da humanidade de forma geral, pois, consoante critérios éticos consensuais, é almejado o bem de todos, inclusive, dos que ainda estão por vir, pois a humanidade deve também ser respeitada no que concerne ao seu patrimônio genético. Para que isso se resolva é necessário que a legislação acompanhe padrões mundiais de pesquisas, contudo, sempre atenta à ética consensual, à moral e à necessidade científica. Algo difícil de ser tratado, porém, possível para os que respeitam os seres humanos com personalidade civil e aqueles sob a forma de conceptos, cujos direitos são assegurados pela ciência jurídica. 1. Conceito de Células-Tronco e as Diferenças entre Células Tronco Embrionárias e Células-Tronco Adultas 377 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança O ser vivo eucarionte3 é formado por um conjunto de células que dão origem aos tecidos, que, por sua vez, originam órgãos e a aglomeração destes formam o organismo. É notório que as células são de extrema importância para constituição da vida; afinal, é a partir delas que se desencadeiam os demais processos que resultarão em um indivíduo. Para que este surja, é necessária uma diferenciação celular, ou seja, é imprescindível que a célula se torne especializada, a fim de conseguir realizar as funções para que foi programada. “O que faz com que cada célula seja diferente da outra é o fato de que alguns genes encontram-se ativos em umas células e inativos em outras. Essa atividade gênica diferencial explica a diversidade celular dos organismos”4 (AMABIS; MARTHO, 2001, p. 562). As células possuem propriedades e formas diferenciadas por servirem a uma função geneticamente definida. “Por exemplo, há estruturas celulares que absorvem alimentos, no intestino delgado - vilosidades intestinais; outras, responsáveis pela sensibilização do nervo ótico e uma consequente imagem, as quais são chamadas de cones e bastonetes”5 (AMABIS; MARTHO, 2004, p. 180). “Enfim, são inúmeras as funções celulares, mas todas elas decorrem da união do pró-núcleo feminino com o prónúcleo masculino, ou seja, formar-se-á uma célula ovo”6 (LOPES, 1999, p. 268). Nesta há informações genéticas que formarão a complexidade do ser vivo, pois é totipotente (o que será definido logo abaixo) e tem a capacidade de diferenciar-se em vários tecidos. Essa totipotência é característica de certas células-tronco, que não possuem diferenciação7, podendo dar origem aos diferentes tecidos, desde que estimuladas para tal, e também são capazes de se multiplicarem, sem se diferenciarem, como afirma (ZAGO, 2006), além de produzirem mais células-tronco, para futuras transformações biológicas. 3 Células eucarióticas, presentes nos seres vivos (algas, fungos, protozoários, plantas e animais). As células eucarióticas (do grego eu, verdadeiro, e Kayron, núcleo) têm o citoplasma repleto de canais, bolsas e outras estruturas membranosas, uma das quais é o núcleo. 4 Cada indivíduo de uma espécie é um organismo. Há desde organismos simples, constituídos por uma ou por poucas células, até organismos complexos como a espécie humana, nos quais muitos órgãos corporais trabalham em estreita sintonia. 5 A camada que reveste internamente a câmara ocular é a retina, que contém dois tipos de células estimuláveis pela luz (fotorreceptores): os bastonetes e os cones. Os bastonetes são fotorreceptores extremamente sensíveis à luz, mas incapazes de distinguir as cores [...] Os cones são menos sensíveis à luz que os bastonetes, mas, em conjunto, possuem capacidade de discriminar diferentes comprimentos de onda, permitindo a visão em cores. 6 Células ovo ou zigoto é a junção das células haploides, óvulo e espermatozoide. 7 A diferenciação celular é o processo em que as células de um organismo sofrem transformações em sua forma, função e composição, tornando-se tipos celulares especializados. 378 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 As células-tronco se diferenciam das outras por diversos motivos, dentre eles os seguintes: pela sua falta de diferenciação; pela capacidade de multiplicação por longo tempo, permanecendo indiferenciadas; pela capacidade de se diferenciarem em células especializadas de um tecido particular (ZAGO, 2006, p. 4). Outrossim, existem diferenças entre as células-tronco. As totipotentes são capazes de produzir células embrionárias e não embrionárias, por isso, produzem o indivíduo por inteiro, como retratado acima; assumem a forma de célula-ovo ou zigoto. As pluripotentes conseguem se diferenciar em todos os tecidos humanos. As multipotentes podem produzir células de vários perfis. As oligopotentes produzem um único perfil celular. Finalmente, as células onipotentes produzem um único tipo celular. As células-tronco embrionárias são pluripotentes, pois tem potencial de contribuição para a formação de todas as células e tecido do corpo humano. Ao lado disso, a legislação brasileira conceitua as células-tronco embrionárias como células de embrião que apresentam a capacidade de se transformarem em células de qualquer tecido de um organismo8. Não há dúvida acerca da extrema importância desse tipo de células. Contudo, existem diferenças entre células-tronco embrionárias e células-tronco adultas. “As primeiras existem no embrião e podem ser pluripotentes ou totipotentes. As pluripotentes são originárias do blastocisto”9 (AMABIS; MARTHO, 2001, p. 230) ou das “células germinais do espermatozoide e do óvulo; podem resultar na formação de um novo indivíduo, porém, são incapazes de formar outro embrião”10 (AMABIS; MARTHO, 2001, p. 180). Por outro lado, “as totipotentes conseguem materializar a formação de embrião, em função de possuírem estrutura para formar as células que dão origem ao trofoblasto”11 (ZAGO, 2006, p.4). Apesar dessas características, esses tipos de células fazem parte de inúmeras controversas científicas e éticas, como se verá adiante. 8 Conceito de células-tronco enunciado pela legislação. Lei de Biossegurança n0 1105 de 24 de março de 2005. Art. 30, inciso XI. 9 Quando o embrião já tem algumas centenas de células, começa a surgir em seu interior uma cavidade cheia de líquidos. Nesse estágio, o embrião é chamado blástula. A cavidade interna da blástula chama-se blastocela, e a camada de células que delimita, blastoderme. 10 Organismo multicelular em estágio inicial de desenvolvimento. Durante a vida embrionária formam-se todos os tecidos e órgão tipos da espécie. 11 Trofoblasto: que dará origem ao material placentário do embrião. 379 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança “Existem também as células tronco adultas ou somáticas”12 (CLARKE; BECKER, 2006, p. 41), que são indiferenciadas localizadas em tecidos especializados, como, por exemplo, células-tronco no dente de leite, medula óssea e cordão umbilical. Diferente das embrionárias, estas, não possuem a capacidade de formar todas as células humanas, mas de formar aquelas do mesmo tecido que lhes deu origem. Portanto, as diferenças entre as duas células tronco são enormes, assim como são os embates na definição de qual é a melhor para dar seguimento às pesquisas científicas. 2. Células-Tronco embrionárias e adultas. Argumentos pró e contra a pesquisa com tais materiais biológicos Tanto as pesquisas que envolvem células-tronco embrionárias, quanto as de células- tronco adultas ou somáticas, são dotadas de controvérsias. Tanto uma quanto outra esbarram em certezas e dúvidas científicas que, apesar de suas complexidades, necessitam ser resolvidas. Alguns cientistas consideram as pesquisas com células-tronco embrionárias o futuro da medicina; outros, não. Devido sua plasticidade, ou seja, conversão em qualquer célula e tecido, os que defendem o avanço dos estudos referentes às células-tronco embrionárias têm um bom argumento, pois, afinal, inúmeras doenças poderiam ser tratadas com tais células, por exemplo, Parkinson, reconstrução de tecido cardíaco nos pacientes que sofrem infarto, Alzheimer, além de esperanças em tratamento de diabéticos e na reconstrução dentária (PRANKE, 2004. p.17). Afirmam que as células-tronco embrionárias são retiradas do embrião antes mesmo da formação neural, ou seja, segundo essa corrente, antes da existência da vida. E mais, tal fato, seria vantajoso, pois essa retirada salvaria inúmeras vidas. Veja-se, nesse sentido, a opinião de Mayana Zatz (cientista do campo genético, ao se pronunciar, perante o Supremo Tribunal Federal – STF), em cujo âmbito tramitava a Ação Direta de Inconstitucionalidade-ADIN 3.510, esta, por sua vez, proposta contrária ao art. 50 da Lei de Biossegurança. “Estamos defendendo que, da mesma maneira que um indivíduo em morte cerebral doa órgãos, um embrião congelado pode doar suas células” (informativo verbal)13. Para a referida cientista, não existe vida embrionária 12 Termo mais correto para células-tronco adulta, já que as mesmas também são retiradas de crianças, de bebês ou fetos. 13 Pronunciamento da Dra Mayana Zatz ao Supremo Tribunal Federal, transcrição da audiência pública da ação de inconstitucionalidade (TAP-ADI) (3510-0, 2008ª:13), o qual se mostrou a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias, em 2008. 380 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 antes do 140 dia de desenvolvimento, portanto, as células do embrião poderiam ser usadas e não caracterizaria homicídio ou abortamento. Além dos pronunciamentos da cientista, o então Ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto, articulou suas palavras em favor das pesquisas. Defendeu-as, baseando em dispositivos constitucionais que dispõem sobre garantia à vida, à saúde e ao planejamento familiar, tal como o artigo 226, § 70, que assegura o direito de planejamento familiar ao casal e que, segundo ele, em momento algum a Constituição diz que é proibida uma filiação advinda de fertilização in vitro. E mais, mencionou alguns artigos constitucionais que discorrem sobre o direito à saúde. Afirmou que é dever do Estado garantir que sua população tenha tal acesso, tudo isso, para fundamentar seu voto a favor das pesquisas com células- tronco embrionárias. Contudo, houve vozes contrárias aos estudos desse tipo de células. Seus argumentos são inúmeros, dentre eles: A retirada embrionária mataria um ser vivo; há poucos casos concretos de aplicações terapêuticas de uso das células-tronco embrionárias, no Brasil e internacionalmente; algumas características atribuídas às células-tronco embrionárias poderiam ser suplantadas pelas células-tronco adultas (ACERO, 2004, p. 59). Apesar das discussões acaloradas, cheias de cientificidade ou inverdades, pois, afinal, ninguém é detentor da verdade, houve um profundo avanço e ratificação do Estado Democrático de Direito. Hoje, o Supremo Tribunal Federal convoca audiências públicas, para manifestações por parte dos cidadãos, de autoridades e de quem quiser participar, como fez em relação ao assunto em voga, tudo para que a legislação e as decisões judiciárias entrem em sintonia com os avanços das ciências e suas descobertas, com interferência mínima possível no campo da moral, ou seja, que os valores arraigados na sociedade com relação: a vida, a morte, a religião, não sofram mudanças conceituais abruptas com relação à ciência jurídica. Sim, que tais mudanças no judiciário acompanhem a dinamicidade valorativa da sociedade, desse modo, dirimir-seá conflitos entre o Poder Judiciário que conceitua, por exemplo, quando há vida em um embrião e a valoração dos cidadãos de quando ela começa a existir. Nesse modo, caminham juntos para resolução dos conflitos, os quais poderiam vingar caso a cumplicidade de ambos inexistisse. 381 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança 3. Os motivos que levaram às pesquisas com células tronco Antes de analisar as questões recorrentes acima, é primordial saber que a Ciência está longe de ser cristalina, transparente e um estudo atencioso como a que faz a epistemologia crítica14, que rompe com certos dogmas ditos inquestionáveis com relação à neutralidade e pureza científica, ratifica ainda mais que a ciência está longe da canonização, longe de ser o Jardim do Éden15, em face às tamanhas demandas da fragilidade humana. No entanto, é notório que “saber é poder”. Aliás, vale salientar que a crítica epistemológica “se interessa profundamente em compreender como é utilizado o poder em que o saber científico implica; e como é utilizado não só pelos próprios cientistas, mas também por aqueles que encomendam, manipulam e aplicam os resultados das ciências, inclusive o Estado”. Tudo isso é importante para que se possa entender que as pesquisas com célulastronco brasileiras se regulam pelo interesse estatal, científico, financeiro e também humano. Corroborando com essas ideias, há cientistas que dizem que o Brasil não pode ficar atrás de outros países que utilizam pesquisas com células-tronco, pois, com os avanços em pesquisas medicamentosas, em pouco tempo, existiriam as patentes que submeteriam os brasileiros à compra e submissão exterior16, e mais, também a compra de tecnologia extraterritorial acarretaria um descompasso econômico interno. A verdade é que o passo dado pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Lei de Biossegurança, é consequência natural do que vem se verificando no mundo, de sorte que se o País não evoluísse perderia terreno no campo tratado, sujeitando-se aos efeitos danosos dessa conduta, como, v.g., a dependência científica em relação a outros países, com sérios reflexos econômicos e prejuízos aos brasileiros ansiosos pela terapia com células tronco embrionárias. O motivo dessa explanação é confirmar que interesses diversos levam à formulação de conceitos e por diversas razões algum objeto de pesquisa é posto em 14 A epistemologia crítica surge da reflexão que os próprios cientistas estão fazendo sobre a ciência em si mesma, questionando seus pressupostos, resultados, aplicações, alcance e limites sócio-culturais. 15 O Jardim do Éden ou Paraíso tem sido considerado por muitos um mito. Por alguns um ideal. E ainda por outros uma figura de linguagem de uma vida de deleite[...]Mas, acima de tudo, ali houve a promessa de um Redentor que não apenas restauraria o caminho, mas seria o próprio caminho, a verdade que liberta e a vida tão almejada (Jo 14.6). 16 Ideia retirada da audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510. 382 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 análise. Por isso, por motivos político-econômicos, pela evolução da ciência e até humanitários, a pesquisa com células tronco embrionárias foi escolhida para dar sustentáculo às indagações humanas e seus objetivos. Junto a isso, algo extremamente polêmico que requer muito cuidado e cautela, que sustenta a pesquisa e confronta o ordenamento jurídico é quanto ao questionamento de quando começa a vida embrionária. 4. Bem jurídico e as divergências quanto ao início da vida embrionária No ordenamento jurídico brasileiro, para a concretização de um ato de infração penal, com o título de homicídio, logicamente é necessário que a vítima tivesse vida momentos anteriores ao cometimento da gravidade. Por isso, a definição de quando a vida começa, nas pesquisas com células tronco, é imprescindível, pois limita a aplicabilidade das sanções penais. Antes do breve apanhado histórico sobre Direito Penal, é necessário que se estabeleça o que é bem, bem jurídico e bem jurídico penal. Bem, segundo o conceito utilitarista, é tudo aquilo que possui valor para o ser humano, que venha a satisfazer a vontade humana. Bem jurídico é aquele que diante de todos bens que possuem valor humano, como acima relatado, o Direito seleciona os principais e os tutela juridicamente. Para (WELZEL, 1969) o bem jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, é juridicamente protegido. “Pode ele apresentar- se, de acordo com o substrato, de diferentes formas”. (PRADO, 1997. p. 18). O Direito Penal tutela juridicamente aqueles bens primordiais de uma sociedade como a vida e a propriedade, dentre outros, ou seja, aqueles bens almejados por muitos e que, por essa razão, merecem um Direito rigoroso que os ampare. “Apesar disso, a ideia de crime, sanção e desenvolvimento do Direito Penal foram mudando ao longo do tempo. Afinal, o direito deve ser compreendido em seu contexto histórico, cultural, social e econômico” (SILVA, 2003, p. 29). Antigamente se punia, por exemplo, um homicídio, para evitar castigos dos deuses, para que o pragmatismo da bonança, seja da fertilidade da terra seja da agregação do corpo social antigo, não fosse colocado à prova pelas entidades celestes. “No passado, o direito penal aparece em uma esfera predominantemente teológica ou privada”. (BITENCOURT, 1995. P. 20). 383 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança Com o passar do tempo, a razão foi se tornando meio para resolução de problemas, inclusive o penal. Não se aceitava, no iluminismo, que os conflitos ficassem à mercê da boa vontade divina, mas da própria capacidade humana na resolução de conflitos ético-morais. Montesquieu, Voltaire e Rousseau foram os expoentes que contribuíram muito para o desenvolvimento do estudo do direito penal. Para o primeiro, a sanção penal deveria prevenir o delito; o segundo, entendia que a pena deveria ser útil e proporcional, além de prezar pelo princípio da proporcionalidade; o último, foi defensor da ideia de que onde há crime existe uma quebra do contrato social, o que demonstra a ineficiência do Estado. Na contemporaneidade o Direito Penal rege-se pela união de algumas correntes doutrinárias que são: prevenção do crime, com Montesquieu; suavização da pena por ser muito ameaçadora à dignidade humana; trabalho de laborterapia, responsável pela ressocialização do infrator. Tudo isso com estudo criterioso, que tem como objeto o agente infrator. A pena deve ser a mínima possível e o esforço de recolocação social enorme. Após o apanhado histórico da importância e evolução do Direito Penal, fica mais fácil saber o porquê da relevância do ordenamento jurídico tutelar a vida; saber onde ela começa é um passo definidor dos limites das penalidades criminais. Afinal, quando começa a vida? É uma indagação difícil de ser uníssona, pois há inúmeros conceitos e linhas de pensamento que a define. A que mais possui adeptos é a de que existe vida desde a fecundação, ou seja, desde que o pró-núcleo masculino se funde ao pró-núcleo feminino, tese esta defendida com vigor pelas igrejas católica e protestante e também é seguida por alguns cientistas, como por exemplo, na fala de Brandão17 (2012). A ciência demonstra insofismavelmente – com os recursos mais modernos – que o ser humano, recém-fecundado, tem o seu próprio patrimônio genético e o seu próprio sistema imunológico, diferente da mãe. “É o mesmo ser humano – e não outro – que depois se converterá em bebê, criança, jovem, adulto e ancião” (FONTELES, 2005. p. 87). 17 Professor, especialista em ginecologia e membro emérito da Academia Fluminense de Medicina. 384 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 Outro pensamento, defende que o início da vida é quando acontece a nidação18, quando o útero materno está preparado para nutrir o embrião, por volta da segunda semana após a fecundação. A terceira corrente defende a ideia que existe vida, apenas depois da terceira semana de gestação, quando o embrião passa mais por clivagens19, quando existe uma fixação embriológica. A quarta e polêmica linha de pensamento é aquela que afirma a existência de vida humana na 24ª semana de gravidez, quando os pulmões se formam por completo e o feto já possui condições de viver em um ambiente extracorpóreo maternal. Contudo, é polêmico em função de permitir o aborto em níveis avançados de gestação. A última teoria advoga o início da vida a partir da 2a semana de gestação, quando o embrião evolui de mórula20, blástula21, gástrula22 e atinge a nêurula,23 fase em que o tubo neural é formado, afinal. Hoje em dia, aceita-se que o fim da vida é quando a atividade cerebral cessa. Então por lógica, inicia no momento que é formado o tubo neural. Houve tempos em que a defesa da vida humana se definia mediante o quão de respiração uma pessoa possuísse, ou seja, se não respirasse, não existia vida naquele corpo. Todavia, com o desenvolvimento das tecnologias, aparelhos foram programados para possibilitar o ato de respirar por quem não o conseguisse. Então, buscou-se a definição de morte encefálica, pois assim, uma pessoa poderia respirar com ajuda de aparelhos e, assim, poderia doar seus órgãos. Há consenso maior de quando a vida cessa se comparada quando ela começa. Por mais que sejam nebulosas as hipóteses, existe uma indagação a se fazer. Será que o conceito de quando existe a vida está desvinculado da vontade humana em definir quando começa? Para ser mais claro, será que a definição de que a vida começa na segunda semana de gestação não tem a ver com interesses de que ela comece neste 18 O termo nidação refere-se ao momento de implantação de um embrião de mamífero na parede uterina que ocorre durante a blástula. Como o processo de deslocamento do embrião das trompas uterinas (onde ocorreu a fertilização) até o útero pode demorar cerca de 4 a 15 dias, então a fixação do embrião ocorrerá nesse intervalo de tempo (4° ao 15° dia após a fertilização). 19 Cada divisão das células embrionárias, nesses primeiros estágios do desenvolvimento, é denominada clivagem ou segmentação. 20 Esfera maciça de células resultante das primeiras clivagens, no desenvolvimento do embrião. 21 Estágio do desenvolvimento embrionário que sucede o de mórula. A blástula é uma bola oca de células. 22 Estágio do desenvolvimento embrionário que sucede ao de blástula. Apresenta um intestino primitivo que de comunica com o exterior através do blastóporo. 23 Estágio do desenvolvimento do embrião dos animais cordados que sucede ao de gástrula. Caracterizase pela formação do tubo neural (ou nervoso), que dá origem ao sistema nervoso. 385 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança ponto, por possibilidades de retirada do material biológico, sem a justa penalização criminal? São perguntas que devem ser formuladas, para quem se debruça sobre esses estudos. Contudo, as respostas estão acima, nos escritos de crítica epistemológica. Não existe ciência sem interesses e tudo ao seu entorno é, sim, tendencioso. 5. Comparação entre a tutela do Novo Código Civil sobre embriões e a lei de biossegurança Foram de extrema importância a discussão acima, pois, a partir delas começa a discussão sobre os direitos que permeiam a vida, no novo código civil, e a lei de biossegurança que estabelece alguns critérios, nebulosos, para a legalidade das pesquisas. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 50, enuncia que o direito à vida é inviolável, ou seja, ninguém pode atentar contra ela. Daí a importância dada ao tópico anterior, que tratou a partir de quando se pode considerar vida embrionária. Devido a supremacia constitucional, todas as leis infraconstitucionais devem obediência à Carta Magna. Alguns estudiosos ressaltam que o art. 50 assegura direitos àquele que é dotado de personalidade, ou seja, a pessoa. Como se pode verificar, na Ação Direta de Inconstitucionalidade-ADIN 3510, em que o relator Ayres Britto diz que quando a Constituição se reporta a “direitos da pessoa humana” e aos “direitos e garantias individuais” como cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do indivíduo enquanto pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”24 Todavia, Lenise Garcia, na mesma ADIN, afirma que, na fecundação, estará definido se o indivíduo será homem ou mulher, se possui falhas genéticas ou doenças, se vai gostar de música ou poesia.25 Não há dúvida de que a carga genética já definiu a pessoa que vai se tornar, que personalidade irá desenvolver. Trate-se apenas de uma questão de tempo, eis que não se pode dizer que a Constituição protege, somente; o indivíduo pessoa, como no pronunciamento no ministro Ayres Britto acima relatado, mas sim toda potencialidade 24 Pronunciamento do então ministro Carlos Ayres Britto no STF (Supremo Tribunal Federal). 2008. Ação direta de inconstitucionalidade 3.510. 25 Ideias que a doutora Lenise Aparecida Martins Garcia, professora do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília pronunciou no STF, ADIN 3.510. 25 STF (Supremo Tribunal Federal). (2008). 386 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 de um ser (embrião) tornar-se humano na plenitude geral das características personalíssimas, diz-se, o resguardo das capacidades definidas geneticamente; gostar de futebol ou tênis, matemática ou história em se concretizarem no plano real e não serem extintas consoante interpretações, por vezes, parciais de alguns juristas com os atributos que lhe querem dotar. Nesse passo, traz-se a lume contradições entre a Lei de Biossegurança e o Código Civil Brasileiro, adotando-se como ilustração o “caso hipotético de constatação de gravidez, mediante o chamado teste de farmácia, que uma mulher poderá fazer, a partir do 10 dia de atraso menstrual, segundo os ensinamentos médicos” (PINHEIRO, 2009. p. 30). Com efeito, suponha-se que uma mulher tivera relações íntimas com seu marido, pouco antes de entrar no ciclo menstrual. Como esperado, a menstruação atrasou; por isso, resolveu fazer o teste de farmácia. O resultado dá positivo para gravidez. Pois bem, o art. 20 do vigente Código Civil prescreve: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.26 É notório que a lei protege o embrião desde o momento de sua concepção, ou seja, desde o momento da fecundação. No caso em voga, a legislação protege as demandas que a junção de gametas possa ensejar, portanto, ninguém poderá usurpar os direitos que, constitucionalmente, foram assegurados para o futuro bebê. Esses direitos abrangem, também, caso não haja vida, segundo alguns pesquisadores, a expectativa de se tornar vivo, ou seja, o nascituro teria condições amparadas legalmente de tornar-se um ser vivo. Nesse mirante, entretanto, impende anotar que as interpretações doutrinárias se afiguram, até então, esfumaçadas, imprecisas e convergentes para a realização, a qualquer custo, de uso de material biológico. Tudo isso ocorre anteriormente ao 14o dia de gestação, ou seja, antes mesmo da formação das terminações nervosas, o que se constitui em critério seguido por alguns cientistas para designar existência de vida, ou seja, a contar do referido dia. De outra monta, importa assinalar que a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Lei de Biossegurança, art. 5º, ao enunciar que o uso de pesquisas com células tronco embrionárias é permitido, desde que os embriões sejam inviáveis,27 é vaga em demasia. 26 27 Pesquisa feita ao código civil brasileiro de 2002. Art.20. Pesquisa feita à lei de Biossegurança 11.105. Art. 50. Caput e inciso I. 387 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança Segundo a professora Di Pietro (2006) não se pode comparar viabilidade com vitalidade: dizer que um embrião não pode prosseguir seu desenvolvimento não significa dizer ipso facto que ele não é mais vivo. Portanto, não se pode dizer que inexiste vida em embriões que não conseguem se desenvolver; aliás, pode sim, para aqueles que possuem interesses tremendos no uso indiscriminado desse tipo de material biológico vivo. Observe-se que, nos temos do Código Civil, desde o momento da concepção, existe a proteção legal aos direitos do nascituro, mas, consoante a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, os embriões fecundados “inviáveis” são legalmente considerados materiais de laboratório. Diante disso, imagine-se que aquela mãe mencionada anteriormente tenha feito planos para a chegada e desenvolvimento do embrião, passando a feto e criança, porém, o médico diagnosticou que, por motivos desconhecidos, a clivagem parou e, por conseguinte, perguntou: A senhora pode doar o embrião para fazer pesquisas? Seria, no mínimo, desumano demais e uma atitude fria e desrespeitosa desse médico. Por outro lado, se, no futuro, conseguir-se uma substância capaz de fazer com que zigotos estáticos voltem a se dividir e dar continuidade embriológica? Isso, não é impossível. Como ficariam os que já foram destruídos? Além disso, já existem pesquisas que retiram células- tronco, sem matar o embrião. É sabido que, desde agosto de 2006, várias revistas científicas têm publicado reportagens fazendo referência à extração das células-tronco, sem destruição do embrião, conforme os trabalhos científicos realizados pelo pesquisador norte-americano Robert Lanza e colegas da companhia Advanced Cell Technology. “Só que ainda não há como garantir que tal procedimento não ofereça risco de destruição, porque a técnica é bastante recente e encontra-se em fase de estudos” (PARISE, 2003, p. 25). Se quiser usar embriões “inviáveis”, pelo menos, que se retirem células sem cessar suas vidas; no entanto, não é o que ocorre. O problema é que, ao se extrair as células-tronco, os embriões são mortos (RÉGIS, 2001). Por fim, é salutar a análise da existência de uma contradição jurídica, que engloba o Código Civil e a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, Lei de Biossegurança. O mesmo ordenamento jurídico, conjunto de leis, que ampara os direitos do mesmo objeto em análise, a concepção embriológica, como está consubstanciado no Código Civil, de maneira plena, ao passo que, de acordo com o permissivo da referida 388 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 lei ordinária, é alvo de testes científicos. Eis dois pesos e duas medidas, ou melhor, um peso e duas medidas. Ademais, há outra nebulosidade na Lei de Biossegurança, sem que, desta vez, se faça comparação em relação ao Código Civil. Na referida lei, no art. 5o, inciso II, constam as seguintes condições para a utilização dos embriões em pesquisas com células-tronco embrionárias não utilizadas no procedimento de fertilização in vitro: sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. São condicionantes que permitem o uso de células tronco, para pesquisas ou terapias, como acentua o caput do art.50. A partir daí, duas indagações cabem em torno das polêmicas condicionantes de licitude do fato. A primeira indagação gira em torno de a Lei de Biossegurança ensejar condições alternativas, por meio dos incisos I e II do seu art. 50, em relação aos embriões e sua utilização nas pesquisas a que alude o mesmo dispositivo. Comparando esses dois incisos, verifica-se que acenam com a possibilidade de utilização de embriões inviáveis ou, por outro lado, de embriões congelados. É o que se depreende da conjunção coordenativa alternativa28 ou, constante da norma, dando azo a uma alternância de ideias. Vale dizer que, se antes os embriões precisavam ser inviáveis, na forma do inciso I, para serem objeto de pesquisa, agora, como dispõe o inciso, não necessitam mais ter essa condição. De outro modo de dizer, os viáveis entram no rol de amostras laboratoriais, o que permite deduzir que embriões capazes de desenvolverem o potencial mitótico de uma gestação serão mortos. A segunda indagação está relacionada ao art.50, inciso II, da Lei de Biossegurança, prevendo as condições alhures destacadas, a qual se desdobra nos seguintes quesitos: qual o motivo do tempo de três anos? Será que o embrião congelado a três anos perde sua potencialidade, sua viabilidade? A resposta é não. Segundo alguns cientistas que discutiram tal assunto na audiência pública proposta pelo STF, no dia 24 de abril de 2007, quando foram ouvidos 22 cientistas para dirimir as dúvidas dos 28 Expressam ideia de alternância de fatos ou escolha. Normalmente é usada a conjunção "ou". Além dela, empregam-se também os pares: ora... ora, já... já, quer... quer, seja... seja, etc. Introduzem as orações coordenadas sindéticas alternativas. 389 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança ministros, o período de três anos de criogenia29 não inviabilizaria um embrião. O bloco contra –Pesquisas com células -tronco embrionárias- PCTE tentou desmentir a posição de seus adversários, com respeito à diminuição da viabilidade dos embriões congelados para a reprodução humana, por meio de referências reiteradas a exemplos de crianças brasileiras, nascidas após 6 a 12 anos do congelamento do embrião (informativo verbal)30. (Alice Teixeira Ferreira, STF, TAP-ADI, 2008a:76; Rodolfo Acatauassú, STF, TAP-ADI, 2008a:134, entre outros). As condicionantes de licitude das pesquisas se contradizem com o Código Civil de 2002 e, mais, alguns critérios temporais criogênicos, como o exposto acima, são no mínimo arbitrários, porque não existe neutralidade por parte dos cientistas, haja vista que, como dito anteriormente, alguns interesses os fazem criar conceitos. Junto a eles corrobora a legislação, que também é um meio para atingir um fim. O resultado disto tudo são lacunas no texto legislativo e um choque principiológico, pois, em alguns momentos, tutela-se a vida embriológica ou sua expectativa; em outros não. Eis o firmamento de um paradoxo. 6. Código Penal Comparado A Lei de Biossegurança, no capítulo VIII, que trata dos crimes e das penas, define a seguinte figura típica, no art. 24: “Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5o desta Lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.” Daí, duas questões são levantadas. A primeira questão diz respeito ao art.5º, § 1º, da referida lei, que determina como condição para o uso de células-tronco obtidas de embriões produzidos mediante fertilização in vitro, em se tratando de sua destinação para pesquisa e terapia: “Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores”. Surge então a perquirição inelutável: Como ficaria a penalização do cientista que usar embriões considerados “inviáveis” ou estejam congelados há mais de três anos, embora seja esse critério 29 É uma ciência que estuda temperaturas muito baixas (próximas do zero absoluto), assim como as técnicas para as produzir e as propriedades específicas e elas associadas, como a diminuição da resistência elétrica. Por exemplo: A comida congelada pode manter-se durante anos e a congelação de óvulos, esperma e embriões é hoje prática corrente. 30 Linha de pensamento da professora; Dra. Alice Teixeira Ferreira- Professora Associada de Biofísica, da UNI FESP/EPM, na área de biologia celular proferida ao Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade em 2008. 390 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 duvidoso, em uma situação em que os genitores não tenham sido encontrados para exteriorizarem a autorização de manipulação laboratorial de seu material biológico? A segunda questão refere-se a uma espantosa observação. O Código Penal Brasileiro, art. 121, § 3º prevê: “Se o homicídio é culposo – Pena, reclusão de 1(um) a 3 (três) anos.” É de notória observação a similitude à pena cominada ao crime definindo no art. 24 da Lei de Biossegurança. Fazendo-se comparação entre as definições do crime de homicídio culposo e o de utilização de células embrionárias que não atendem às condicionantes que estão prescritas na mesma lei especial, no mínimo, estar-se-ia colocando em xeque o entendimento de que a vida só aconteceria a partir da fase de nêurula. Afinal, a penalidade que emerge da Lei de Biossegurança, cominada a um crime doloso, foi pareada ao crime de homicídio em sua forma culposa, ou seja, a consumada mediante imprudência, negligência ou imperícia, como resultado da inobservância de cuidados objetivos exigíveis de qualquer pessoa. Ademais, essa forma de homicídio só se configura quando há vida. Agora, encetando outra comparação ou analise, isto é, se um cirurgião, sabendo que o coração e imprescindível para a oxigenação das partes de um corpo, retira-o simplesmente com a intenção de cessar uma vida, pratica um crime de homicídio doloso, capitulado no art. 121 do Código Penal Brasileiro, pois, afinal de contas, sabia e queria matar o paciente. Pois bem, se um cientista sabe que se retirar a célula-tronco de um embrião, pode eliminá-lo, e ainda assim procede, sem observância das condicionantes enumeradas no art. 5º da Lei de Biossegurança, deverá responder pelo crime doloso tipificado no art. 24 da Lei de Biossegurança. Enquanto o Código Penal Brasileiro, para crimes pertinentes ao uso de pesquisas com células tronco, é pouco abrangente e pouco instigador de temor aos infringentes, o Código Penal Espanhol é rigoroso e categórico. Segundo o diploma espanhol, pune-se quem fecundar óvulos humanos sem a finalidade de procriação humana. “O legislador procurou proteger a fecundação de material humano, aplicando penas de 6 (seis) a 10 (dez) anos, acrescida da proibição especial para exercer emprego ou cargo público” (MALUF, 2002, p. 72). E mais, conforme os dizeres abaixo: Aquele que, por qualquer meio ou procedimento, causar em um feto uma lesão ou enfermidade que prejudique gravemente seu desenvolvimento normal, ou provoque no mesmo um grave defeito físico ou psíquico, será punido com pena de prisão de 1 a 4 anos e proibição especial para exercer qualquer profissão sanitária, ou prestar serviços de todo o gênero em clínicas, 391 | A l e t h e s AZEVEDO, G. A., As Contradições na Lei de Biossegurança estabelecimentos ou consultórios ginecológicos, públicos ou privados, pelo tempo de 2 a 8 anos (MALUF, 2002, p.72). A preocupação do legislador espanhol no que tange à manipulação genética é evidente. Ao contrário disso, no Brasil, é transparente a falta de rigor na lei que penaliza o uso indiscriminado de embriões, pois, além da punição privativa de liberdade ser tênue, depara-se com a inexistência de punições no âmbito trabalhista, não se seguindo o exemplo de estarem cominadas no regime espanhol. Ali, com base no ordenamento jurídico espanhol, pessoas também são punidas com a perda de exercerem, por algum tempo, certas funções profissionais. Outra esfera penal a que está relacionada a questão aqui tratada e que chama atenção é encontradiça no direito inglês. Em 1990 o Reino Unido aprovou a Lei de Fertilização Humana e Embriológica, que regulamenta pontos pertinentes à reprodução assistida e aos embriões humanos. O diploma estrangeiro contém ressalva acerca do armazenamento e uso de embriões, além de criar o Conselho de Fertilização Humana e Embriologia, atribuindo-lhe papel informacional, de assessoramento e permissivo, por meio de um Comitê de Licenças, que verifica o alcance da lei mediante uma análise criteriosa no catálogo de delitos, com penas de prisão de até 10 anos. Eis, por conseguinte, a dimensão grandiosa dada aos delitos que envolvem fertilizações, armazenagem e utilização de embriões. No Brasil, o máximo de pena, previsto na Lei de Biossegurança, é o de 3 anos de detenção, pena privativa da liberdade. 7. Considerações Finais Diante de questões que fogem ao controle científico, seja no âmbito da medicina seja no respaldo jurídico, a ética deve ser chamada para resolver tais indagações que, muitas vezes, nem mesmo cientistas do mais alto gabarito conseguem elucidar. Essa ética deve buscar o apaziguamento social e decidir sobre fatos da humanidade em geral; deve prezar pelo bom senso total, isto é, pelo que seria bom para todos, por isso difícil de ser posta em prática, pois, no mundo atual, as pessoas em geral, se preocupam consigo mesmas, em detrimento das demais. A ética do consenso projeta-se para a universalidade porque garante a sobrevivência da espécie, ou, mais que isso, permite a sua progressão cultural, e não o efeito contrário –aniquilamento- fazendo-se das diferenças 392 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v.6,pp. 375-396, jul./dez., 2014 intersubjetivas pontos favoráveis para o crescimento do que é comum a todos (BITTAR, 2013. p. 79). Dentre os diversos problemas que servem de matéria à ética está a utilização de embriões inseminados in vitro para pesquisas com células-tronco embrionárias. Em função dessas pesquisas serem problemáticas, pela discórdia de quando a vida embrionária começa, em debates religiosos e científicos, alguns estudiosos, apesar de confirmarem a potencialidade das células-tronco embrionárias em restaurações teciduais, não descartam a substituição delas por células-tronco adultas e até a regressão delas ao estágio de embrionárias, mediante o uso de técnicas aprimoradas e eficazes. Outro fator de extrema importância é a diferença dada ao tratamento de tutela de direitos garantidos ao concepto no Código Civil, que destoa daquele dado pela Lei de Biossegurança, pois, no primeiro, seus direitos são garantidos, porém, no outro, é alvo de pesquisas que destruirão suas vidas ou potencialidades delas. Ademais, a Lei 11.105, de 24 de março de 2005, lobriga condicionantes vagos e imprecisos à legalidade com pesquisas com células tronco embrionárias. Por fim, é de salientar que o Código Penal Brasileiro, se comparado ao inglês e ao espanhol, no tocante aos atos ilícitos, no campo da embriologia, comina penas aquém do esperado para uma nação protetora dos direitos pluralísticos. No entanto, apesar de todas as nuances tratadas, fica a dúvida do que fazer com embriões excedentários. Será providencial a formulação de leis que diminuam o estoque laboratorial de embriões congelados, chegando a um número mínimo, com a ajuda da alta tecnologia para tal? Por outra, tais materiais biológicos devem ser objeto de estudo médico? Eis, portanto, dúvidas pertinentes à evolução da biomedicina, engenharia genética, ao lado da moral e da legislação. Um desafio aos juristas e estudiosos do assunto! Referências Bibliográficas ACERO, Liliane. Ciência, políticas públicas e inclusão social: Debates sobre células tronco no Brasil e no Reino Unido. Scielo. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/dados/v53n4/a03v53n4.pdf>. Acesso em: jan. 2014. 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Para tanto, pontuamos alguns períodos da evolução do Direito do Trabalho, assim como da flexibilização das normas trabalhistas e a evolução do trabalho terceirizado. Esclarecendo a terceirização, mostrando sua evolução histórica, as formas de caracterização (lícita e ilícita) e seus efeitos jurídicos. Esta pesquisa foi desenvolvida com base na jurisprudência e doutrinas atuais, pontuando sobre o estudo da terceirização e suas relações com o direito, especialmente o direito do trabalho, a partir da investigação e aplicação dos princípios gerais de direito e dos princípios do direito do trabalho estabelecidos pela Constituição de 1988. Palavras-chave: Direito do Trabalho; Terceirização; Princípios do trabalho; Constituição Federal de 1988. Abstract The present article was developed under the perspective of the outsourcing by the light of the Essential Beginning of the Primacy of the Reality, as well as a reading her around the generalities of the outsourcing in the branch of the Right of the Work. Presenting the bases and the practical consequences of this labor beginning, we delimit the frontiers between activity-end and activity-way, just as the relation of such a beginning with the protection of the confidence and the constitutional precepts of the objective good-faith and of the equality. For so much, we punctuate some periods of the evolution of the Right of the Work, as well as of the flexibility of the labor standards and the evolution of outsourced work. Clarifying outsourcing, showing its historical evolution, forms of characterization (licit and illicit) and its legal effects. This research was developed on basis of the jurisprudence and current doctrines, punctuating on the study of the outsourcing and his relations with the right, specially the right of the work, from the investigation and application of the general beginnings of right and of the principles of the right of the work established by the Constitution of 1988. Keywords: Labor Law; Outsourcing; Principles of Labor; Constitution of 1988. Recebido em: 30 de outubro de 2014 Aceito em: 2 de fevereiro de 2015 1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém/PA. 397 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio I. Justificativa e Problematização A primazia da realidade dentro da lógica do ordenamento jurídico trabalhista mostra-se como solução constitucional frente a real e corriqueira desigualdade nas relações de emprego da atualidade, em que se observa o empregador (com domínio econômico maior), impondo sua vontade ao empregado (trabalhador hipossuficiente) nas mais diversas formas de trabalho, em especial a terceirização. Nesse sentido, os vários problemas que emergem no campo das relações do trabalho e do ordenamento jurídico provindos dessa relação configuram-se como novas necessidades e formas de organização e execução do trabalho, infringindo muitas vezes na própria lei, gerando as fraudes, a intermediação de mão-de-obra ilegal, a precarização do contrato de trabalho, a representação sindical, e o desemprego. Nessa lógica, tal princípio tem como finalidade a garantia da dignidade da pessoa humana, com promoção de igualdade no relacionamento terceirizado, assim como, a tutela da confiança na relação jurídica empregatícia e o bem comum baseado na boa-fé objetiva da norma. II. Objetivo Geral e Específico: – Objetivo Geral Estudo sucinto acerca dos principais princípios norteadores do direito do trabalho, em especial o princípio da primazia da realidade, analisando a evolução do Direito do Trabalho, assim como da flexibilização das normas trabalhistas e a evolução do trabalho terceirizado (terceirização). – Objetivo específico Analisar os aspectos jurídicos do princípio da “Primazia da Realidade” dentro do ramo do Direito do Trabalho, apresentando os fundamentos e as consequências desse princípio trabalhista junto à prática da Terceirização, bem como a pouca legislação existente sobre a mesma. III. Metodologia 398 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. No presente artigo adotar-se-á a pesquisa exploratória, mediante análise de material bibliográfico, documental e jurisprudencial. 1 Introdução De forma sucinta, o direito do trabalho surgiu mediante a necessidade econômica das relações laborais, em que as liberdades existentes de contratação entre as pessoas com poder e capacidades econômicas desiguais se fazia presente. Tais relações, historicamente, levaram o empregado a uma intensa e constante luta pela conquista de direitos que dessem resposta aos abusos praticados pelos empregadores. As contratações representavam, muitas vezes, uma explicita exploração abusiva de direitos. O intervencionismo estatal quando sensível as desigualdades sob o hipossuficiente, moldou a legislação trabalhista brasileira. O Direito do Trabalho constituiu-se assim como fonte de recurso material aos trabalhadores, uma vez que passou a regular as relações jurídicas de emprego, “sanando” as disparidades de poder entre as partes, com base fundamentalmente nos princípios da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o princípio da primazia da realidade, assim como os demais princípios do Direito do Trabalho, se baseia na hipossuficência do trabalhador para garantir a esse uma proteção contra eventuais abusos por parte dos empregadores no que concerne às divergências entre a prestação de serviços e o que está documentado, com vistas ao que entende o ordenamento jurídico atual da Constituição Federal de 1988 e Código Civil de 2002. Além disso, esse princípio ordena que os fatos devam prevalecer sobre os documentos. Logo, no Direito do Trabalho, os documentos acessórios ao contrato de trabalho não têm a natureza “Juris et de Jure”. Dessa maneira, objetiva-se a elucidação da importância do princípio da primazia da realidade para a incidência da boa-fé objetiva, tutela da confiança e igualdade substancial na relação de emprego. 1.1 Principais pontos acerca do Direito do Trabalho Percebemos que o processo construtivo do direito do trabalho deu-se mediante conflito de classes através dos séculos, e por ser um direito social, haveria a necessidade de um sistema jurídico capaz de proteger os trabalhadores dos abusos advindos dos empregadores. Nas palavras de Martinez (2012, p. 66): “o direito do trabalho foi o 399 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio primeiro dos direitos sociais a emergir e, sem dúvida, por conta de sua força expansiva, o estimulante da construção de tantos outros direitos sociais [...]”. Para tanto o direito do trabalho surge como um conjunto de princípios e regras normativas, capazes de regular a prestação do trabalho subordinado, e excepcionalmente do trabalho autônomo, no âmbito das relações laborais individuais ou coletivas, bem como as consequências jurídicas provenientes dessas relações. Nesse sentido, entendese que a Justiça do Trabalho passaria a dirimir conflitos à luz do direito do trabalho. Nessa atuação distintiva do direito, características fundamentais formariam o arcabouço desse instituto, tais como: o intervencionismo, o protecionismo, o reformismo social, o coletivismo, o expansionismo, o cosmopolitismo e o pluralismo de fontes. Através dos tempos, a relação de trabalho influenciada pelas transformações sociais, passou por várias mudanças ao longo da história, ao ponto da própria sociedade passar a cobrar do Estado regulamentação quanto às relações de trabalho. Porém, já no final do século XX surgem os fenômenos da globalização e do neoliberalismo, representando um novo e grande impacto ao Direito do Trabalho e nos Direitos Sociais protegidos pelo Estado. Sendo a função maior do direito o equilíbrio entre as relações sociais frente a uma realidade específica. O direito do trabalho, apesar de autônomo, procura agora estabelecer seus entendimentos com base nos princípios da Constituição Federal. Os quais, em conjunto aos princípios do trabalho, funcionam como verdadeiras normas jurídicas, que elucidam o significado e o sentido de sua existência no sistema jurista-trabalhista para a interpretação e aplicação ao caso concreto. 2 Princípios do direito Os princípios, de forma geral, fazem parte das regras morais e dos valores que orientam o comportamento coletivo das pessoas na sociedade, tais princípios evoluem e sofrem com o tempo valorações éticas e também políticas, constantes do ambiente moral de cada sociedade. Violar um princípio constitui falha mais grave que transgredir uma regra, pois sua desatenção implica ofensa a todo sistema de normas existentes. Logo, os princípios jurídicos são o fundamento sobre o qual se assenta o ordenamento jurídico, informando o seu nascimento, interpretação, integração e controlando o exercício dos direitos. 400 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. Nesse sentido, afirma Norberto Bobbio que: Um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema (...). Os princípios são verdadeiras normas, pois, em primeiro lugar, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também; em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso (BOBBIO, 1997, p. 115) Podemos definir “princípio como mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas” (MELLO, 2000, p. 138). Os princípios são verdadeiras normas jurídicas, visto que a disposição do artigo 4º da LICC, de aplicação a todo o direito, manda recorrer, na falta de normas, aos princípios gerais do direito. No mesmo sentido, a legislação trabalhista (CLT- decreto-lei n.º 5.452, de 1º/5/1943) traz em seu artigo 8º que, conforme a necessidade, as autoridades competentes poderão decidir também conforme os princípios gerais de direito. Isto é, na ausência de disposições legais ou contratuais, de normas heterônomas ou de normas autônomas, as autoridades administrativas e judiciárias podem, conforme o caso, da jurisprudência, da analogia, da equidade, bem como dos princípios e normas gerais de direito. Nesse sentido, segundo Miguel Reale (1996, p. 59), princípio possui duas acepções, “a primeira, de ordem moral, e a segunda, de ordem lógica. Naquela se enquadra o sentido ético, para significar as virtudes, a boa formação e as razões morais do homem; esta, por sua vez, deve partir da escorreita compreensão de juízo”. Os princípios gerais, ao lado das regras, são verdadeiras normas jurídicas, independentemente de estarem positivados ou não. Pode-se, com isso, concluir que cada ramo da ciência jurídica possui princípios próprios, evidenciando sua autonomia, de forma que esses podem ser utilizados para a melhor compreensão das normas expressas. Tais princípios possuem significação de direito, os quais devem ser utilizados pelo intérprete e aplicador da norma, em conjunto ou isoladamente, diante de um caso concreto, a fim de obter o melhor resultado. 2.1 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS AO DIREITO DO TRABALHO A Constituição de 1988 traz sob sua proteção alguns princípios gerais de direito, também aplicáveis ao direito do trabalho, isto é, princípios fundamentais constitucionais, norteadores do direito do trabalho, os quais são: o princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1º e no caput do artigo 170 da CF/88), 401 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, a igualdade entre homens e mulheres. Tais princípios possuem carga normativa extremamente vigorosa, a qual não pode ficar como mera promessa do legislador constituinte, mas, sim, deve ser expressa e concretizada em cada manifestação jurídica. Haja vista que o trabalho humano assentase no princípio da livre iniciativa, relativizado em função do valor preponderante da dignidade da pessoa humana. Realça-se dessa forma uma profunda identidade do direito do trabalho com a concepção do Estado Democrático de Direito. Tal como observamos no artigo 5º da CF/88. Vale ressaltar também que além dos princípios já citados, temos também os princípios constitucionais específicos do direito do trabalho, os quais são essenciais a proteção do trabalhador: a) proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa (artigo 7º, inciso I); b) irredutibilidade dos salários (artigo 7º, inciso VI); c) reconhecimento das convenções e acordos coletivos (artigo 7º, inciso XXVI); d) proteção em face da automação (artigo 7º, inciso XXVII); e) a liberdade sindical (artigo 8º); f) não interferência do Estado na organização sindical (artigo 8º, inciso I); g) direito de greve (artigo 9º); h) representação dos trabalhadores na empresa (artigo 11), todos da Constituição Federal de 1988. Estes princípios são essenciais e devem ser sempre inseridos nas relações jurídicas do trabalho, de forma a servirem como princípios fundamentais constitucionais para garantir e assegurar o direito individual do trabalhador. 2.1.1 Princípio da proteção O fundamento do princípio da proteção tem como objetivo o equilíbrio entre o capital e a força de trabalho. Este princípio divide-se em três outros princípios que visam fundamentalmente garantir as melhores condições de serviço aos trabalhadores, bem como, a aplicação da norma mais correta e favorável ao empregado. Sendo eles: “In dúbio pro operário”, “Aplicação da norma mais favorável” e “condição mais benéfica”. Para Francisco Rossal (1996, p. 77): “[...] o princípio da proteção do trabalhador é uma opção do direito do trabalho em favorecer a parte mais fraca da relação empregado-empregador, ou seja, através de uma série de normas compensatórias, inclina-se para proteger o empregado”. 402 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. O princípio do “In dúbio pro operário” volta-se a interpretação da norma e de sua aplicação de forma mais benéfica ao trabalhador. Pois havendo um dispositivo de lei ou de um contrato que enseje interpretação em sentido dúbio, a regra é que será adotada a interpretação mais benéfica ao trabalhador. O princípio da “Aplicação da norma mais favorável” será aplicado sempre que houver uma pluralidade de normas, devendo-se optar por aquela mais favorável ao trabalhador. Valendo ressaltar que diante da aplicação deste princípio não haverá hierarquia de normas, mas sim, a aplicação daquela que for mais benéfica ao trabalhador. Já o princípio da “condição mais benéfica”, consiste em manter os direitos e privilégios alcançados pelo trabalhador no decorrer do contrato de trabalho, a exemplo, o art. 10 da CLT em que: “Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados”. Bem como visto também no art. 468 da CLT. A função desse princípio é fundamental para a orientação do direito do trabalho uma vez que rompe com a premissa de que as partes da relação jurídica de trabalho são iguais. Deve-se tutelar os direitos da parte que possui evidente inferioridade, ou seja, o empregado. 2.1.2 Princípio da irrenunciabilidade O princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas ou princípio da indisponibilidade (art. 9 CLT), em regra, impede que o empregado renuncie a direitos decorrentes da relação de emprego que lhe foram conferidos pelo Estado. Isto é, protegendo o trabalhador contra a sua própria vontade. Por este motivo, em regra, o silêncio ou a concordância do empregado com a supressão de algum direito seu decorrente da relação de emprego não produzirão qualquer efeito, pois o Estado não lhe concede a faculdade de abdicar dos mesmos. Este princípio vem a garantir os direitos mínimos do trabalhador, não possibilitando ao empregado privar-se voluntariamente, em caráter amplo e por antecipação, dos direitos concedidos pela legislação trabalhista. A exceção a esse princípio ocorre quando a norma jurídica expressamente conceda ao empregado a faculdade de praticar o ato. A lei veda, por exemplo, que o trabalhador abra mão do seu décimo-terceiro, férias ou aviso prévio, tachando como nulo qualquer documento que expresse tal vontade do trabalhador. Admite, porém, a 403 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio convenção ou acordo coletivo de trabalho, quando se tratar de direitos disponíveis do trabalhador, artigo 7º, VI, da CF/88. 2.1.3 Princípios da boa-fé A boa-fé é um princípio jurídico fundamental. Volta-se a uma conduta legítima sem prejudicar terceiras pessoas, ou lealdade, no sentido de honestidade, que é o vigorante no Direito do Trabalho, em respeito a “dignidade da pessoa humana”. Tal princípio de boa-fé apresenta-se por duas facetas: subjetivo, que é a estima, e o jurídico, que é a sua conduta exteriorizada. Além disso, este princípio, de forma geral, deve existir entre ambas as partes no direito laboral em virtude do mútuo relacionamento entre empregado e empregador (valor ético do trabalho). A dignidade da pessoa humana tem valor substancial, tanto que para o doutrinador Alexandre Moraes (2007, p. 16): “[...] a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar”. O homem trabalhador deve ser visto como sujeito-fim e não o objeto-meio do desenvolvimento. Deve-se nessa tônica, garantir a eficácia fundamental em relação aos direitos do homem, seus direitos sociais. O contrato de trabalho é, portanto, oneroso e comutativo. Gera direitos e deveres para ambas as partes; ou seja, há prestação e contraprestação. Por isso, o empregado deve trabalhar bem e o empregador, em contrapartida, fornecer-lhe todas as condições humanas e materiais para o desenvolvimento de uma relação de trabalho digna e justa. 2.1.4 Princípio da razoabilidade A responsabilidade subsidiária, à luz do princípio da razoabilidade, pressupõe hipóteses de terceirização pessoal (de serviços). Uma vez que, os trabalhadores da empresa fornecedora de mão-de-obra sujeitam-se a obrigações de meio, com apropriação imediata da força de trabalho pela empresa cliente. Percebemos que o princípio da razoabilidade, mesmo não sendo especificamente trabalhista, é aplicado constantemente nas relações de trabalho atuais, sendo “[...] a 404 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. qualidade daquilo que esteja conforme a razão, entendida como a faculdade de que dispõe o ser humano de avaliar, julgar e ponderar idéias universais, concebidas na medida em que seja possível conhecer o real por oposição ao que é aparente” (MARTINEZ, 2012, p. 271). 2.1.5 Princípio da continuidade da relação de emprego Nos ensinamentos de Demétrius Vecchi, o Princípio da continuidade da relação de emprego fundamenta-se na norma constitucional de 1988: A Constituição Federal de 1988 traz, sob o título “Dos Princípios Fundamentais”, em seu artigo 3º, primeira parte, o trabalho como valor social e, em seu título “Da Ordem Econômica e Financeira”, como um dos princípios gerais da atividade econômica, no inciso VIII, do artigo 170, a busca pelo pleno emprego, evidenciando, dessa forma, que o contrato de trabalho deve ser visto como de interesse social e público (VECCHI, 2004, p. 144) O princípio da continuidade pode ser entendido como aquele que visa “atribuir à relação de emprego a mais ampla duração possível, sob todos os aspectos”, gerando, por isso, presunções sempre favoráveis aos trabalhadores. Nessa lógica, se um contrato por tempo determinado é violado em algum dos seus requisitos previstos em lei, há, por bem da continuidade, uma conversão do ajuste por tempo determinado em um contrato por tempo indeterminado. O entendimento cristalizado pelo TST, através da Súmula 212 do TST, descreve: “O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado” (Res. 14/1985, DJ, 19-91985). 3 Terceirização 3.1 Conceito A doutrina e a jurisprudência designam terceirização como uma: subcontratação, terciarização, filiação, recontratação, desverticalização, descentralização, desverticalização, exteriorização do emprego, focalização, parceria, etc. A expressão “terceirização” adivinha de um neologismo utilizado pela ciência da Administração, 405 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio significando uma forma de reestruturação administrativa, pela qual uma empresa transfere para outras determinadas atividades produtivas, em regra, não relacionadas diretamente a sua atividade produtiva principal. A terceirização para Renato Saraiva (2013, p. 111): “permite que uma empresa contrate empresas intermediárias para a execução de determinadas atividades sem que tal fato gere vínculo empregatício direto com os prestadores se serviços”. Levando a uma flexibilização das normas. A terceirização pode ser definida apenas como “[...] a transferência de atividades para fornecedores especializados, detentores de tecnologia própria e moderna, que tenham esta atividade terceirizada como sua atividade-fim, liberando a tomadora para concentrar seus esforços gerenciais em seu negócio principal” (SILVA, 2002, p. 65). Logo, percebemos com isso que a terceirização vem a constituir um repasse da atividade-meio, não sendo diretamente relacionado com o objetivo principal da empresa contratante, em relação à empresa contratada, que mantém com a mão-de-obra apenas um vínculo empregatício. A empresa terceirizada figura como intermediária na relação. Conforme nos ensina Maurício Delgado (2002, p. 417): “a Terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista”. Já segundo Gabriela Delgado pode-se compreender a terceirização como “[...] utilização de mão-de-obra terceirizada (“emprego terceirizado”), o que, do ponto de vista administrativo, é tido como instrumento facilitador para a viabilização da produção global, vinculada ao paradigma da eficiência nas empresas” (DELGADO, 2003, p. 142). Em acordo com Rubens Ferreira de Castro, terceirização é “[...] uma moderna técnica de administração de empresas que visa ao fomento da competitividade empresarial através da distribuição de atividades acessórias a empresas especializadas nessas atividades, a fim de que possam concentrar-se no planejamento, na organização, no controle, na coordenação e na direção da atividade principal” (CASTRO, 2000, p. 78). Diante o exposto dos autores, pode-se afirmar que a terceirização configura-se como uma técnica de organização do processo produtivo por meio da qual uma empresa, visando concentrar esforços em sua atividade-fim, contrata outra empresa, entendida como periférica, para lhe dar suporte em serviços meramente instrumentais, tais como limpeza, segurança, transporte e alimentação. 406 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. 3.2 Natureza jurídica da terceirização A natureza jurídica da terceirização é contratual, pois há a celebração de contrato entre duas pessoas, físicas ou jurídicas, baseado no acordo de vontades, em que a primeira (prestadora de serviços) prestará à segunda (tomadora de serviços) serviços especializados de forma continuada Para Sergio Martins ao se referir à natureza jurídica da Terceirização “[...] dependendo da hipótese em que a terceirização for utilizada, haverá elementos de vários contratos distintos” (MARTINS, 2003, p. 25). No entanto tal caráter da terceirização dependerá, tanto da forma contratual, quanto do acordo de vontades representado pela celebração de um contrato. 3.3 Breve histórico da terceirização A terceirização remonta os tempos da II Guerra Mundial, quando os EUA aliaram-se aos países europeus para combater as forças nazistas e os Japoneses. As indústrias de armamento da época não conseguiram abastecer o mercado, necessitando suprir o aumento excessivo da demanda e aprimorar o produto e as técnicas de produção. Segundo Sergio Martins (2003, p 16): “a idéia de terceirização surgiu no mundo durante a Segunda Guerra Mundial, pois foi nesse período que as grandes indústrias de armamento estavam sobrecarregadas e buscaram uma solução para atender a toda a demanda”. Essa necessidade demonstrou que a concentração industrial deveria voltar-se para a produção, e as atividades de suporte deveriam ser transferidas para terceiros. A partir deste marco histórico é que temos a terceirização interferindo na sociedade e na economia. No Brasil, a noção de terceirização foi trazida por multinacionais por volta de 1950, pelo interesse que tinham em se preocupar apenas com a essência do seu negócio. As empresas dessa época objetivavam o aumento do lucro, com mão de obra barata e com menores custos de produção, sem tantas preocupações com a legislação trabalhista desse contexto, apesar da mesma visar pela proteção do hipossuficiente da relação de trabalho. Segundo o entendimento ainda do autor Martins Sergio: No Brasil, a idéia de terceirização foi trazida por empresas multinacionais por volta de 1950. Encontram-se seus primeiros passos nos decretos-leis 1.212 e 407 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio 1.216, de 1966, que autorizavam aos bancos dispor de serviços de segurança bancária prestados por empresas particulares; no decreto-lei 63.756, de 1968, que regulamentou o funcionamento das agências de colocação ou intermediação de mão-de-obra, e no decreto-lei 1.034(10), de 1969, que tratou das medidas de segurança para as instituições financeiras (MARTINS, 2003, p. 16). O termo “terceirização”, no Brasil, foi adotado inicialmente no âmbito da administração de empresas. Posteriormente, os tribunais trabalhistas também passaram a utilizá-lo, podendo ser descrito como a contratação de terceiros visando à realização de atividades que não constituam o objeto principal da empresa. A partir do Decreto-Lei 200/67, as tarefas executivas passaram a ser executadas indiretamente, via contrato de intermediação de mão-de-obra. Já na década de 70 foi publicada a Lei 5.645, que previa que “as atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas” seriam objeto de execução mediante contrato, conforme determinado pelo Decreto-Lei 200/67. A globalização representou a outra face da moeda, que diante da economia mundial mostrou-se como um fruto do capitalismo, com uma nova concepção entre o capital e o trabalho, com grande expansão dos mercados na busca de acumulação de capital, uso de mão-de-obra barata dos países subdesenvolvidos e o baixo custo para a produção. Tal dinâmica dos mercados e dos bens e serviços, durante a expansão do capitalismo global, levaram a uma degradação do poder estatal, o qual acabou perdendo força frente à economia de mercado e deixando conquistas sociais serem alvo do crescente neoliberalismo, capaz de, através de uma política flexibilizadora das normas trabalhistas, e do processo globalizador, gerar postos de trabalho com diminuição dos encargos trabalhistas e das normas trabalhistas em prol de atender uma nova dinâmica do mercado, à exemplo, a redução do salário, art. 7º VII; a redução da jornada de 8 horas diárias, art. 7º XIII e a redução da jornada de 6 horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, etc. De acordo com Maurício Delgado, “a terceirização teve sopro de crescimento no país apenas a partir da década de 70. Em fins da década de 1960 e início dos anos 70 é que a ordem jurídica instituiu referência normativa mais destacada ao fenômeno da Terceirização” (DELGADO, 2002, p.418-19). Durante os anos foram criadas normas específicas de terceirização, como o trabalho temporário (Lei 6.019/74), serviços de vigilância bancária (Lei 7.102/83), serviços de telefonia (Lei 9.472/97) e nas concessionárias de serviço público, na forma definida na Lei 8.987/95. 408 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. Somado a esse contexto de flexibilização dos direitos do trabalho, o TST, através da súmula 331 regulou o instituto da terceirização, com o fim principal de reduzir custos e acelerar a economia (desverticalização). Com isso, temos um enfraquecimento dos direitos trabalhistas e sociais na definição bilateral típica da relação de emprego, com resultados que ferem as condições de trabalho no Brasil. Tal súmula 331 buscou esclarecer o contraponto entre terceirização lícita e ilícita e dispôs sobre os quatro casos, excepcionais, em que é possível terceirizar o serviço, quais sejam, o trabalho temporário para atender necessidade transitória de substituição de pessoal regular e permanente da empresa tomadora ou necessidade resultante de acréscimo extraordinário de serviços dessa empresa, ou seja, a terceirização na atividade-fim da empresa é ilegal, sendo excepcionalmente permitida no caso do trabalho temporário; serviços de vigilância; serviços de conservação e limpeza; e serviços especializados, ligados a atividade-meio do tomador do serviço. A Lei 8.863/94 ampliou a hipótese de terceirização para toda a área de vigilância patrimonial, pública ou privada, inclusive para as pessoas físicas. Assim, na esfera privada, apenas estes dois tipos de terceirização (trabalho temporário e vigilância patrimonial) eram permitidas pela lei. Já a lei 8.949/94 introduziu o parágrafo único do art. 442 da CLT, estimulando as terceirizações por meio de cooperativas, determinando que “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. O Ministério do Trabalho e Emprego, considerando a necessidade de se uniformizar o procedimento de fiscalização do trabalho, após o advento da súmula 331, editou Instrução Normativa n° 3 de agosto de 1997, dispondo sobre a fiscalização do trabalho nas empresas, a fim de evitar fraudes na terceirização. De acordo com a instrução, empresa terceirizante é a empresa de prestação de serviços a terceiros a pessoa jurídica de direito privado, de natureza comercial, legalmente constituída, que se destina a realizar determinado e específico serviço a outra empresa fora do âmbito das atividades-fim e normais para que se constitui essa última. Já a empresa tomadora é conceituada como “a pessoa física ou jurídica de direito público ou privado que celebrar contrato com empresas de prestação de serviços a terceiros, com a finalidade de contratar serviços”. Valendo dizer ainda que a tomadora e a contratada devem desenvolver atividades diferentes e ter finalidades distintas, bem como que os empregados da 409 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio empresa de prestação de serviços a terceiros não estão subordinadas ao poder diretivo, técnico e disciplinar da empresa contratante, nem podem prestar serviço diverso ao qual foi contratado. 3.4 Caracterização da Terceirização Terceirização basicamente entendida como uma contratação de serviços por meio de empresas, intermediária (interposta) entre o tomador de serviços e a mão-deobra, mediante contrato de prestação de serviços. A relação de emprego se faz entre o trabalhador e a empresa prestadora de serviços, e não diretamente com o contratante (tomador) destes. É um procedimento administrativo que possibilita estabelecer um processo gerenciado de transferência, a terceiros, da atividade-meio da empresa, permitindo a esta concentrar-se na sua atividade principal. Existem, no entanto, atividades que podem ser terceirizadas e outras não. Quanto as atividades que podem aderir a terceirização abarcam todas as áreas da empresa definida como atividade-meio. A CLT, no art. 581, § 2º dispõe que se entende por atividade-fim a que caracterizar a unidade do produto, operação ou objetivo final, para cuja obtenção todas as demais atividades convirjam exclusivamente em regime de conexão funcional. Por exemplo, serviços de alimentação, serviços de conservação patrimonial e de limpeza, serviço de segurança, serviços de manutenção geral predial e especializada, engenharias, manutenção de máquinas, equipamentos, etc. Já em relação as atividades que não podem ser terceirizadas, estão vinculadas a uma forma ilegal de serviço. A terceirização encontra-se ligada diretamente ao produto final. Isto é, A atividade-fim é a constante no contrato social da empresa, pela qual foi organizada. As demais funções que nada têm em comum com a atividade-fim são caracterizadas como acessórias, ou de suporte à atividade principal, as quais podem ser terceirizadas. Valendo ressaltar que isolando a atividade-fim, todas as demais podem ser legalmente terceirizadas. Temos as normas sobre terceirização contidas na legislação, disciplinadas pelo Enunciado TST na súmula nº 331. A terceirização representa uma forma atual e moderna de desenvolvimento comercial e industrial, uma maneira inteligente encontrada para enfrentar problemas de custos de produção e de comercialização de produtos. Uma técnica moderna de administração de empresas, sendo hoje adotada por um número elevado de empresas, 410 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. especialmente as grandes e médias, o que produz reflexos nas áreas social, econômica e jurídica. Na terceirização temos a figura do tomador de serviços, que contrata a empresa ou pessoa física, para intermediar a prestação laboral, estando os trabalhadores a ela vinculados. Já a relação de emprego em si, se estabelece com a empresa ou pessoa física, cuja atividade consiste em disponibilizar mão-de-obra para outrem (o cliente), havendo uma dissociação dos elementos que caracterizam a relação de emprego, nos moldes tradicionalmente previstos pela legislação trabalhista, valendo notar que o beneficiário final dos serviços não é o empregador dos trabalhadores envolvidos no processo produtivo. O modelo trilateral de relação jurídica oriundo da terceirização é efetivamente diverso daquele modelo bilateral clássico que se funda a relação celetista de emprego. Há, necessariamente, a presença de 3 (três) personagens: Empresa de trabalho temporário (intermediadora); Trabalhador temporário; e, Empresa tomadora dos serviços (clientes). Conclui-se, basicamente, que a empresa tomadora pode focar-se apenas na produção do objeto principal, aumentando a qualidade e a produtividade, aliada à redução dos custos de produção. Ou seja, enquanto no modelo tradicional o empregado presta serviços diretamente ao empregador, com o qual possui vínculo empregatício (art. 2º, caput, CLT), na terceirização a relação é trilateral, onde o empregado presta serviços ao tomador, embora não seja seu empregado efetivo. A relação de emprego é estabelecida com outro sujeito, a empresa interveniente ou fornecedora. As principais formas de aplicação da técnica de terceirização são: desverticalização, prestação de serviços, franquia, compra de serviços, nomeação de representantes, concessão, permissão, alocação de mão-de-obra. Já a desintegração, facção, corporação e descentralização integrada, são específicas de determinado ramo da economia ou ainda incipientes. É suma importância que se diga ainda que a adoção do Princípio da Proteção do Trabalhador pelo direito do trabalho brasileiro vem a proteger sempre o empregado, mesmo que contra a sua vontade. Tal princípio de proteção do trabalhador resulta das normas imperativas, que são de ordem pública e caracterizam a intervenção do Estado nas relações jurídicas de trabalho. 411 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio 4 Terceirização à luz do princípio essencial da primazia da realidade Já observamos que os princípios são considerados como estruturas jurídicas, que têm como finalidade viabilizar a aplicação das normas nos casos concretos. Os mesmos possuem grande relevância no ordenamento jurídico por serem considerados como norteadores do direito e possuírem características informadoras, interpretativas e normativas no direito. Na legislação do direito do trabalho, o artigo 8º da CLT traz uma função essencial aos princípios, dispondo que os mesmo deverão ser aplicados em caso de omissão legal ou contratual. Isto é, as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho. Tal como se entende também no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil diz que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Logo, caberia aos magistrados o desenvolvimento do direito no caso de haver lacuna na legislação, na tentativa de alcançar a decisão mais favorável ao caso concreto. Certo é dizer que diante da falta de legislação, a solução vem através da interpretação sistemática do ordenamento jurídico, principalmente nos princípios contidos em nossa Constituição e na CTL faz-se essencial e necessária o uso de outras fontes e interpretações. É correto afirmar também que tais princípios constitucionais e do trabalho estão acima do direito positivo, na medida em que servem como elemento inspirador, não podendo, porém, tornar-se independentes do sistema, visto que se influenciam mutuamente. 4.1 Princípio essencial da primazia da realidade O Princípio da primazia da realidade ou “primazia sobre a forma”, que prevê no caso de dissonância entre a realidade fática e os documentos (contratos existentes), a prevalência da realidade do caso concreto, com base na verdade real, pois a realidade dos fatos é insuscetível de adulteração pela vontade humana e os documentos podem exprimir sem exatidão a vontade das partes, além de poderem revestir-se de vícios de formação que prejudicam a sua validade. 412 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. Para tanto, podemos afirmar que os registros podem refletir a verdade em muitos casos, porém pode refletir também a ficção destinada a dissimular ou esconder a verdade com o objetivo de impedir o cumprimento de obrigações legais ou de obter um proveito ilícito. Tal princípio da primazia da realidade privilegia justamente o conteúdo real frente a forma ou configuração do contrato de emprego. No caso da terceirização, o efeito principal do contrato é a prestação da atividade, provinda da natureza humana; isto é, os fatos prevalecem sobre a forma contratual, uma vez que são os contratantes que determinam a existência ou não de um contrato de emprego, mas, sim, o modo pelo qual os serviços são desenvolvidos. Isso nos leva a concluir que o princípio da primazia da realidade decorre do Princípio da Proteção, pois o trabalhador sempre poderá ser beneficiado, tanto pela facilitação da prova de suas alegações, quanto pela ineficácia dos registros desconformes com a situação de fato mais favorável. Todavia, pode-se dizer que tal princípio tem como finalidade a pessoa humana em sua dignidade; a promoção de igualdade no relacionamento entre elas; o bem comum; a facilitação da boa-fé objetiva; e a tutela da confiança na relação jurídica empregatícia. In verbis, o art. 9º da CLT: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Em outros termos, o direito do trabalho sempre privilegiará o “contrato da realidade”; isto é, independente do contrato ou documentos, prevalecerá a realidade. Uma vez que a documentação pode refletir a verdade, porém pode refletir a ficção destinada a dissimular ou esconder a verdade com o objetivo de impedir o cumprimento de obrigações legais ou de obter um proveito ilícito. Segundo Carmen Camino (2003, p. 257), “os requisitos formais essenciais para a formação do contrato de emprego a serem considerados são típicos da relação de emprego, tais como a não-eventualidade dos serviços, subordinação hierárquica do empregado e pessoalidade da prestação da força de trabalho”. Na CLT observamos o princípio da primazia da realidade em seu artigo 442, in verbis, “Art. 442 – Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego. Parágrafo único – Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. Em outros termos, o Estatuto não vê de forma diversa o contrato celebrado tacitamente daquele outro documentado ou registrado. O princípio da primazia da realidade mostra-se então, 413 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio novamente, como princípio de proteção do trabalhador, em que considera a realidade em toda sua dimensão, em detrimento da forma, beneficiando o trabalhador frente a realidade que se demonstra através de qualquer meio idôneo. Essa proteção ao trabalhador, trazida pelo princípio da primazia da realidade se mostra pelo simples reconhecimento de vínculo empregatício do operário quando presta serviços à uma determinada empresa em condições nas quais se configurem os requisitos de uma relação de emprego, pouco importando a forma contratada. Ou então quando do reconhecimento de direitos trabalhistas, quando da prestação de serviço, documentada erroneamente ou não formalizada, sem a devida contraprestação, ainda que os documentos digam o contrário e que o vínculo empregatício já esteja reconhecido. Outra forma seria quando da inversão do ônus da prova e valorização da prova oral e testemunhal, ocorrendo quando os documentos, num primeiro momento não aparentam ser verdadeiros. 4.1.1 Aplicação da Primazia da Realidade Primeiramente vale dizer que tanto a pessoalidade do empregado como a subordinação do mesmo são elementos caracterizadores da relação de emprego ou do vínculo empregatício, previstos no artigo 3º da CLT. Significa dizer que mesmo que uma determinada empresa prestadora de serviços não esteja devidamente constituída, ainda assim existirá a presunção da relação de emprego com a empresa tomadora de serviços pela aplicação do princípio da primazia da realidade. A súmula n.º 331 do TST orienta que é possível a contratação de qualquer forma de terceirização na atividade-meio da empresa. No entanto, para que não haja vínculo de emprego com a empresa tomadora de serviços, só se admite a terceirização na sua prática de atividade-meio. Desde que para isso sejam serviços especializados e vinculem-se à atividade-meio; isto é, atividades diferenciadas, com características próprias, em relação ao produto final da empresa, em outras palavras, seria a prestação de trabalho das fornecedoras de serviços, dirigidas a um serviço particularizado, com especificações próprias, e não simplesmente a realização de todo e qualquer tipo de tarefa de interesse à tomadora. Tais atividades ou serviços seriam aquelas que não visassem aos objetivos finalísticos da empresa (atividades-fim, artigo 581, § 2º da CLT), logo, não se poderia ter a transferência de sua execução por terceiros. Assim teríamos que “as atividades que 414 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. integram o objeto social de uma empresa indicam sua atividade-fim, ao passo que as atividades que não integram o objeto social são consideradas atividade-meio” (CASTRO, 2000, p. 101). Entretanto, é de suma importância e essencial dizer que a proibição da subcontratação na atividade-fim, admitindo-a só na atividade-meio, não se considera aceitável, uma vez que, por vezes, torna-se difícil ou até mesmo impossível fazer essa distinção. A não ser que “a empresa se dedique mais à sua vocação, à sua missão, seus esforços tendem a se concentrar menos na execução e mais na gestão, exigindo qualidade, preço, prazo e inovações” (CASTRO, 2000, p. 103). No caso da terceirização, essa é a fraude de que trata o artigo 9º da CLT. Como dito anteriormente, atividade-fim e atividade-meio não são conceitos empresariais. Sendo, no entanto, quando ilegal a atividade (ex.: fraude à lei, inadimplemento e inidoneidade financeira das empresas), a necessária responsabilização subsidiária ou solidária do tomador de serviços. In verbis, “Art. 9º– Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Sendo muito importante dizer ainda, que a contratação de mão-de-obra na atividade-fim da empresa tomadora do serviço, quando eivada de ilegalidade frente à legislação trabalhista, causa prejuízo ao trabalhador (inadimplemento ou inidoneidade financeira empresarial), torna-se tanto uma fraude que fere o artigo 9º da CLT quanto ao princípio do pleno emprego, contido no artigo 170 da CF/88. In verbis, “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VIII - busca do pleno emprego; [...].” Segundo a súmula nº 331 do TST, a empresa tomadora de serviços quando do inadimplemento do empregador real, mesmo não existindo a caracterização de vínculo de emprego entre a empresa tomadora de serviços e o empregado da empresa prestadora de serviços, a súmula reserva o direito do empregado de receber da empresa tomadora de serviço os direitos que lhe são devidos. Ou seja, a Responsabilidade subsidiária encontra-se vinculada a terceirização. E é também o que entende Rubens Castro (2000, p. 150) quando diz que: “a responsabilização subsidiária garantirá a satisfação do crédito do trabalhador se a empresa prestadora de serviços não for encontrada, se esta não possuir patrimônio ou se este for insuficiente”. 415 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio Tal conclusão do autor é bastante lógica, pois se a tomadora do serviço é beneficiada pela prestação de serviços do trabalhador, ela deve responder subsidiariamente, conforme orientação do inciso IV da súmula 331 do TST. Uma vez que, o inadimplemento das obrigações decorrentes do contrato de trabalho por parte do empregador implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviço quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste também no título executivo judicial. 4.1.2 A licitude da Terceirização e a Primazia da Realidade O princípio em questão nos fornece a estrutura necessária para o reconhecimento da relação de emprego do trabalhador com o empregador, deixando transparecer o fato real sobre o conteúdo dos contratos a fim de se evitar fraudes nos contratos de emprego. A terceirização, seguindo a lógica da relação trilateral (empresa tomadora, empresa fornecedora e trabalhador), poderá ser lícita ou ilícita. Quando lícita temos todos os preceitos legais respeitados do trabalhador. Já quando ilícita, temos uma fraude relacionada aos direitos trabalhistas e com prejuízo direto ao trabalhador, caberá então para isso a aplicação do princípio da primazia da realidade, uma vez que este mostrará os essenciais fatos reais da relação estabelecida entre as partes, os quais determinam o vínculo de emprego, a fim de garantir os direitos essenciais constitucionais trabalhistas. O trabalho temporário está disposto na lei n.º 6.019/74 e no inciso I e III da súmula n.º 331 do TST, distinguindo a terceirização lícita da terceirização ilícita. Assim como normatizado pela lei n.º 7.102/83, e lei n.º 5.645/70 (serviços especializados). Rubens de Castro (2000, p. 95-6) comenta que “a licitude da terceirização está centrada na ausência de lei que a proíba, devendo, no entanto, ser observados os critérios de sua aplicação, a fim de que não se deixem de lado conceitos elementares do direito do trabalho, tais como contrato-realidade e presença somente do empregado e do empregador na relação de emprego”. A Constituição Federal, também prevê em seu artigo 7º a proteção do trabalhador, um princípio constitucional fundamental, em que a terceirização no direito laboral é lícita, o tomador de serviços é responsável em caráter secundário pelas obrigações trabalhistas, tendo limitada a sua responsabilidade, que não se fixa como principal ou solidária, mas apenas em caráter subsidiário. 416 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. Sabe-se, no entanto, que a terceirização, muitas vezes, baseia-se em um trabalho temporário, esse vínculo encontra-se definido no artigo 2º da lei n.º 6.019/74, e se caracteriza por uma prestação de pessoa física a uma empresa, para atender a necessidade de substituição temporária de um determinado serviço. Essa intermediação de mão-de-obra temporária vincula-se ao entendimento da alínea “a” do parágrafo 2º do artigo 443 da CLT, que dispõe que “o serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação de prazo”. O doutrinador Rubens de Castro (2000, p. 128) comenta que o “trabalho temporário é uma das espécies lícitas de interposição de empresas na contratação de trabalhadores, não se confundindo com a terceirização”. Para ele a distinção entre a terceirização e o trabalho temporário está centrada na “duração da contratação, na subordinação do trabalhador com a tomadora, na necessidade da contratação, nas atividades desenvolvidas pelos trabalhadores e na forma de contratação”. Ao diferenciar o trabalho temporário da terceirização, o mesmo autor entende que “na terceirização o trabalhador não está subordinado diretamente com o tomador dos serviços, pois a direção e a fiscalização direta formam o vínculo de emprego com este, pela aplicação do artigo 3º da CLT” (CASTRO, 2000, p. 128). Ainda para o autor “na terceirização a responsabilidade do tomador é subsidiária, arcando com os débitos trabalhistas deixados pela prestadora de serviços independentemente de falência [...]” (CASTRO, 2000, p. 130). No caso de falência, a empresa tomadora de serviço é solidariamente responsável pela remuneração e indenização previstas em lei durante o tempo em que o trabalhador esteve à sua disposição, conforme o artigo 16 da lei n.º 6.019/74. Já uma contratação de mão-de-obra por empresa interposta é, num primeiro momento, considerada ilegal. Exceto, segundo a súmula n.º 331 do TST, o trabalho temporário, os serviços de vigilância, a limpeza e aqueles serviços especializados ligados à atividade-meio da tomadora de serviços. Para tanto, teríamos apenas então apenas a responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços, do contrário, haveria nulidade na contratação, pois geraria vínculo empregatício junto a empresa tomadora do serviço; logo, caberia a responsabilização solidária da empresa prestadora de serviços, conforme se depreende no artigo 942 do Código Civil/92. Assim, nada mais justo, no caso de a empresa prestadora de serviços ser conivente com a ilicitude da relação contratual, ser solidariamente responsabilizada. 417 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio Nesse sentido, a legislação jurisprudencial e o direito do trabalhista primam pelo princípio da primazia da realidade. Onde os fatos podem indicar a existência de uma terceirização lícita ou ilícita de uma sociedade cooperativa autêntica ou não. Acreditamos que a interpretação do direito é essencialmente feita pela interpretação dos princípios, que conferem coerência e equilíbrio ao sistema jurídico. Nestes termos, o princípio da primazia da realidade constitui uma ferramenta de suma importância a pesquisa e a busca da verdade real nas situações de litígio nas relações trabalhistas direcionadas a terceirização. Tal princípio em essência busca garantir tanto a isonomia remuneratória entre os trabalhadores terceirizados e os empregados originais da empresa tomadora de serviços quanto a direta responsabilização da mesma pelos valores trabalhistas oriundos da prática da terceirização e de seu comportamento ilícito, observados no texto da lei (artigo 3º, parágrafo único, CLT) e previstos na Constituição Federal de 1988, em seus artigos 5º, caput, I; 7º, XXXII. No entanto, apesar da legislação existente abranger e normatizar certa parte da relação de trabalho terceirizado frente às empresas tomadora de serviços. Assim mesmo, achamos de fundamental urgência o debate de novas e especificas normas que abranjam a lógica do princípio da Primazia da Realidade junto à relação de trabalho trilateral, assegurando assim de forma mais completa as garantias fundamentais, de modo permanente, de cada trabalhador dentro da ordem constitucional. 5 Considerações finais A terceirização surgiu como uma alternativa especializada/administrativa de otimização dos serviços. Possibilitou as grandes empresas maior qualidade e redução de custos. Entretanto, a pouca regulamentação existente, deu brecha a ilicitude em relação ao pagamento de encargos sociais aos empregados, bem como seus direitos trabalhistas. Em outras palavras, a terceirização, atualmente, acaba por gerar tanto desemprego quanto precarização, pois são reféns da pouca legislação específica que priorize os direitos fundamentais do trabalhador. A terceirização também se caracteriza como um processo econômico e um poderoso instrumento de inclusão social, bem como formação de renda. No entanto, a pouca legislação existente que a regulariza, torna as relações de trabalho desiguais entre a prestadora de serviço, o trabalhador temporário, e a empresa tomadora dos serviços, 418 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 397-40, jul./dez.,2014. resultando na ilegalidade e na falta da boa-fé objetiva na relação de emprego. Entretanto, mesmo diante da inexistência de fraude, a empresa tomadora de serviços se obriga subsidiariamente a responder pelos prejuízos do empregado vinculado à empresa prestadora. Não devemos esquecer um dos poucos instrumentos de regulação da terceirização expressa-se na súmula 331 do TST, que considera a legalidade da terceirização de mão-de-obra, desde que esta não atinja a atividade-fim da empresa. Apesar da legislação ordinária atual regulamentar apenas os serviços de vigilância e o trabalho temporário, elas possuem interesse comum de evitar a precarização do trabalho, a dispersão dos trabalhadores em função da desconcentração produtiva, o enfraquecimento dos sindicatos, a informalização das relações trabalhistas e o desemprego. Em outras palavras, a terceirização é válida mediante forma lícita, isto é, apenas em atividade-meio das empresas, ou quando regulamentadas por lei (ex.: vigilantes). Tudo em prol da segurança dos princípios gerais do Direito do Trabalho, com proteção ao trabalhador. Em face disso, temos também o importante papel dos sindicatos das categorias, que junto ao Poder Legislativo regulamentam e equilibram a terceirização dos serviços, sem, contudo, limitar direitos fundamentais dos trabalhadores, coibindo abusos na ausência de regulamentação especifica para utilizar a terceirização na sua forma lícita. Nesse sentido, a primazia da realidade no Direito Trabalhista vem a aumentar a confiança entre os entes da relação de terceirização, uma vez que assegura de forma mais rígida e legal as obrigações e deveres a todos os envolvidos, assegurando a dignidade da pessoa humana, a partir da interpretação razoável dos fatos e documentos, seguindo basicamente, os entendimentos jurisprudenciais, bem como a súmula nº 331 do TST. Valendo ainda ressaltar, neste artigo, que não são todas as atividades-meio que podem ser terceirizadas, mas somente aquelas em que inexistirem a pessoalidade e a subordinação direta. Por fim, é de certo afirmar também que a existência de uma legislação específica que trate o tema da terceirização e que priorize os direitos fundamentais do trabalhador dando manutenção de nível de emprego, bem como delimitando as atividades-fim e atividades-meio, realizando a fixação de piso salarial por função, aumentando a representação sindical, assim como o controle das fraudes e a imposição de barreiras ao 419 | A l e t h e s OLIVEIRA, L. A., Terceirização à Luz do Princípio rebaixamento das condições de trabalho, poderia dinamizar o setor de serviços sem perda das garantias constitucionais trabalhistas. 6. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Francisco Rossal de. A boa-fé no contrato de emprego. São Paulo: LTr, 1996. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 9. ed. Tradução de Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. de Cláudio de Cicco; apres. de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. CASTRO, Rubens Ferreira de. 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Ademais, propõe abordar como a legislação protege o direito à inserção ao mercado de trabalho e, consequentemente, como os contratos abordam esses direitos previstos na lei 12.764/12. Utilizou-se como modelo a ser observado casos em que multinacionais empregam a mão de obra de pessoas com o transtorno do espectro autista, adequando-as diante de suas principais características. A metodologia atribuída ao presente trabalho valeu-se de fontes estatísticas das quais apresentam a realidade que se depara tais pessoas no universo laboral: poucos são aqueles emergidos no âmbito do trabalho. Nesta esteira, apurou-se que não existem dados quaisquer relativo aos autistas no mercado trabalhista. Sendo assim, o objetivo que o presente artigo científico vislumbra é conseguir uma discussão que fomente a necessidade de melhores condições para que o autista consiga ingressar no mercado de trabalho e, por meio deste, consiga melhores condições de vida. A Constituiçãoda República assegura, em seu artigo 5º, inciso XIII, o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão que, contudo, não se percebe aplicação plena de tal dispositivo, haja vista que o presente estudo se incumbiu em suscitar tal realidade de modo expositivo, crítico e elucidativo. Diante do exposto, este trabalho científico almeja constatar que os autistas podem desempenhar tarefas no mercado de trabalho, de acordo com suas condições e, consequentemente, sua capacidade civil. Palavras-chaves: Autista. Mercado de Trabalho. Contratos de deficientes mentais. Abstract: This article aims at an analysis of the conditions that people with autism spectrum disorder requite to have an effective integration into the Brazilian labor market. Its scope includes, primarily, understanding what a person is diagnosed with concerning the disorder, their characteristics and skills from childhood to adulthood. In addition to this, we discuss the designation of those that are considered capable people, relatively incapable, or absolutely incapable. Moreover, the legislation proposes to protect the right to integration into the labor market and, consequently, the contracts address these rights under the law 12.764/12. This law was used as a model where multinationals that employ people with autistic spectrum disorder, adjusting the front of its main features to be observed. The methodology assigned to this study drew on data sources, which have faced the reality that these people face in the working world: there are few that emerged in the work. On this track, it was found that there is not any data concerning autism in the labor market. Thus, the objective that the present research paper envisions is to get a discussion that fosters the need for better conditions for 1 Graduanda do curso de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 421 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas enabling people with autism to enter the labor market and, through this, get better living conditions. The Constitution provides, in Article 5, paragraph XIII, the free exercise of any work, occupation or profession which, however, do not realize full implementation of such a device, given that this study undertook to bring about such a reality of expository mode, critical and explanatory. Given the above, this scientific work aims to observe that people with autism can perform tasks in the job market, according to their conditions and, consequently, their civil capacity. Keywords: Autistic. Labour Market. Agreements for the mentally disabled. Recebido em: 28 de outubro de 2014 Aceito em: 2 de fevereiro de 2015 422 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. 1 – Introdução No presente artigo almeja-se desmistificar um estigma quanto ao Transtorno do Espectro Autista (TEA): se o autista é capaz de exercer uma profissão, tendo em vista sua notável limitação no desenvolvimento social, mental, dentre outras evidencias que variam de caso a caso. A pesquisa pretende debater se tal situação compromete plenamente o desempenho de todas suas funções laborais. Par tanto, necessitar-se-á atribuir ao presente estudo um viés interdisciplinar a fim de se compreender as implicações socioculturais a despeito do objeto em estudo. Por esta razão, se fará necessário o viés sociológico, assim como o filosófico, fomentando ao temário o embate dentre o que se nota da percepção dos interesses privados dos empreendedores, em face ao direito público, no que diz respeito aos ditames legais elucidados pela Carta Magna de 1988. Na tentativa de, juntamente, desenvolver um raciocínio indutivo almejando alcançar uma pesquisa multidisciplinar. A ideia vem de uma carência da expectativa de uma vida digna e independente para aqueles com o dito transtorno psicológico. Ausência advinda da pouca informação acerca das características dos autistas, o que impossibilitou oprogresso de práticas que desenvolvessem suas habilidadesmentais. E, consequentemente,dificulta que eles ingressem efetivamente no mercado de trabalho. Sendo assim, observa-se que o tema proposto abrange uma pluralidade de percepções, conflito de interesses, à luz do diploma legal, e especialmente, uma análise da compreensão humana, isto é, se de fato a condição de autista apresenta óbice ao exercício do trabalho ou se trata de mais uma classe na sociedade marginalizada e sem qualquer representatividade política. 2 - O que é autismo? Ao estudar o autismo nota-se que tal terminologia é de caráter geral, podendo-se classificar como um vocábulo polissêmico. Isto se dá em razão do fato de tal termo denominar uma série de transtornos do desenvolvimento do cérebro, relacionado principalmente às habilidades sociais e da comunicação, conhecido como Transtornos do Espectro Autista (TEA). 423 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas De acordo com a AMA, Associação de Amigos do Autista, que é também a primeira associação de autistas no Brasil, um histórico do que vem a ser a definição do autista, porém ainda incompleta, mas precisa no âmbito acadêmico e cientifico é: Embora inúmeras pesquisas ainda venham sendo desenvolvidas para definirmos o que seja o autismo, desde a primeira descrição feita por Kanner em 1943 existe um consenso em torno do entendimento de que o que caracteriza o autismo são aspectos observáveis que indicam déficits na comunicação e na interação social, além de comportamentos repetitivos e áreas restritas de interesse. Essas características estão presentes antes dos 3 anos de idade, e atingem 0,6% da população, sendo quatro vezes mais comuns em meninos do que em meninas. A noção de espectro do autismo foi descrita por LornaWing em 1988, e sugere que as características do autismo variam de acordo com o desenvolvimento cognitivo; assim, em um extremo temos os quadros de autismo associados à deficiência intelectual grave, sem o desenvolvimento da linguagem, com padrões repetitivos simples e bem marcados de comportamento e déficit importante na interação social, e no extremo oposto, quadros de autismo, chamados de Síndrome de Asperger, sem deficiência intelectual, sem atraso significativo na linguagem, com interação social peculiar e bizarra, e sem movimentos repetitivos tão evidentes. (ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DO AUTISTA, 2014). Além da explicação acima da AMA, pode-se mensurar, como leciona Vera Stumm (2014), que o autismo é uma síndrome e, como qualquer outra, não tem cura, apesar do quadro ser modificado a medida que a pessoa envelhece. O que facilita o lidar no dia a dia são os medicamentos e as terapias comportamentais que amenizam os sintomas. Ainda na tentativa de melhor descrever o autismo: Uma síndrome presente desde o nascimento ou que começa quase sempre durante os trinta primeiros meses. Caracterizando-se por respostas anormais a estímulos auditivos ou visuais, e por problemas graves quanto à compreensão da linguagem falada. A fala custa aparecer e, quando isto acontece, nota-se ecolalia, uso inadequado dos pronomes, estrutura gramatical, uma incapacidade na utilização social, tanto da linguagem verbal quanto corpórea (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1998). As características supracitadas podem variar diante do tipo de autismo apresentado. Entre os tipos se têm o autismo clássico (variando de leve ou de alto funcionamento a grave ou de baixo funcionamento), a síndrome de asperger, o transtorno invasivo do desenvolvimento sem outras especificações (PDD-NOS), o transtorno de rettrespostas às perguntas mais frequentes sobre o DSM-V e, por fim, o transtorno desintegrativo da infância. 424 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. Em linhas gerais, autismo clássico é caracterizado por movimentos repetitivos, problemas com a comunicação e a interação social. Quando variado, o autismo clássico de leve ou alto funcionamento tem o QI na sua faixa normal, podendo exibir nenhum do comportamento compulsivo ou autodestrutivo. Já o grave ou de baixo funcionamento, é um caso mais grave da síndrome, os sintomas são profundos e envolvem déficits graves em habilidades sociais e movimentos repetitivos estereotipados, além de geralmente serem associados com um QI abaixo da média. A síndrome de asperger tem algumas características distintas, como excepcionais habilidades verbais, problemas com habilidades sociais, obsessivo interesses especiais, diferentemente do autismo clássico, não implica em nenhuma dificuldade na linguagem. O transtorno invasivo do desenvolvimento sem outras especificações (PDD-NOS) é caracterizado por alguns sintomas do autismo clássico, pois podem lutar com a linguagem ou habilidades sociais ou comportamentos repetitivos, não em todas. O PDD-NOS é diferente da síndrome de asperger quando podem ter atrasos na linguagem. O transtorno de rettrespostas às perguntas mais frequentes sobre o DSM-5, também conhecido como transtorno de rett, não é representado pelas mesmas dificuldades que o autismo clássico enfrenta, as dificuldades podem variar entre a deterioração de habilidades motoras e problemas posturais. Por último, o transtorno desintegrativo da infância é caracterizado pela perda da comunicação e de habilidades sociais entre as idades de dois e quatro anos, este transtorno se assemelha com o autismo regressivo. Na adolescência e na fase adulta, o Dr. Drauzio Varella (2013), explica que: “as manifestações do autismo dependem de como as pessoas conseguiram aprender as regras sociais e desenvolver comportamentos que favoreceram sua adaptação e autosuficiência.” A partir da supracitada é perceptível o quão relativo são as capacidades de um autista na fase adulta. Se tratada apropriadamente desde a infância, um adulto pode sim ter uma vida independente e ser capaz de desenvolver atividades laborais. Dante de todas as características e reais possibilidades discorridas neste tópico, a pesquisa almeja desmistificar a ideia de que todo autista, por ser deficiente conforme o parágrafo segundo do artigo primeiro da lei 12.764, de dezembro de 2012, se encontra impossibilitado de ter uma vida autônoma e exercer uma profissão. 425 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas 2.1 – Capacidade civil do autista Importante observar qual é o entendimento da doutrina à luz da capacidade civil do autista. Isto porque tal identificação é fator determinante para responder se esse deficiente, diante do conceito legal, seria apto a desempenhar função laboral, se tem a capacidade civil mínima, a fim de responder aos seus atos, ou se entendem que ele seja um incapaz, estando inapto de plano para tal desempenho. Para iniciar esse debate é necessário esclarecer o que seria a capacidade civil. César Fiuza bem esclarece esse conceito quando narra: “Capacidade é a aptidão inerente a cada pessoa para que possa ser sujeito ativo e passivo de direitos e obrigações.” (2013, p.132) . Ademais, a capacidade gera outras classificações podendo ser tanto a de direito como a de fato. A primeira diz respeito àquela que ao nascermos com vida, respirarmos, adquirimos. Nesta esteira, segundo Fiuza (2013, p. 135), se todos possuem capacidade de direito, nem todos podem exercer, de fato, os atos da vida civil. Assim, acapacidade de fato é “o poder efetivo que nos capacita para a prática plena dos atos da vida civil” (FIUZA, 2013, p.133). Em regra, os autistas não teriam essa capacidade de fato por serem enquadrados como deficientes no âmbito legal, como rege o parágrafo segundo do artigo primeiro da lei 12.764, de dezembro de 2012. No entanto, há discussões sobre exceções neste âmbito devido aexistência de tipos diferentes do Transtorno do Espectro Autista, como explicado no tópico anterior. Antes de debater em qual seria a classificação que se adeque o autista, importante entender as ramificações que traz o conceito da capacidade de fato. Nos deparamos com as classificações de absolutamente incapazes, relativamente incapazes e capazes. O primeiro é denominado quando a pessoa é menor de 16 anos, ou também as que por alguma enfermidade ou deficiência mental não tiveram o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil, ou ainda aqueles que, mesmo transitoriamente, não podem exprimir sua vontade. Os relativamente incapazes são aqueles maiores de 16 anos, no entanto menores de 18 anos, além dos que tem o discernimento reduzido e os pródigos (aquelas que não têm controle financeiro). Por fim, os capazes são os maiores de 18 anos e os emancipados, ou seja, possuem a capacidade de direito e a de fato. A discussão neste tópico será a classificação que o autista se enquadra na sociedade civil.O autistaé considerado absolutamente incapaz pelo fato de no âmbito 426 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. legal ser deficiente, o que pode ser duvidoso em alguns casos. Alguns autistas tem discernimento, ainda que pouco, e conseguem levar uma vida autônoma. Em referência ao tópico anterior, por serclassificado como deficiente, na forma da lei, o autista não tem necessariamente sua capacidade civil violada. Como supracitado, existem vários tipos de autismo. Uma das síndromes consideradas mais leves, dentro do Transtorno do Espectro Autista, é a Síndrome de Asperger, em que muitas vezes, a pessoa se torna um adulto plenamente capaz de conduzir sua vida civil. Em casos como dessa síndrome não é necessário (na maioria das vezes) a interdição da pessoa ao completar seus 18 anos. Lembrando que a interdição é, nas palavras da defensora pública do Estado de São Paulo, Renata Tibyriçá: Um processo judicial que tem que ser proposto via um advogado ou defensor público, caso não tenha condições de pagar um advogado, e nesse processo vai ser verificada a capacidade dele em entender os atos da vida civil, ou seja, se ele tem condições de contratar, de cuidar da vida dele sozinho ou se ele depende de alguém, aí vai ser definido um curador para ele, que pode ser o pai ou a mãe, e a partir disso ele é considerado incapaz total ou parcialmente. (TIBYRIÇÁ, 2011). Assim, diferentemente da Síndrome de Asperger, existem quadros que, como bem definiu LomaWing (1988), variam de acordo com o desenvolvimento cognitivo. Em outro extremo, portanto, há casos de autismo associados à deficiência intelectual grave, sem o desenvolvimento da linguagem, com padrões repetitivos simples e déficit importante na interação social. Nesses casos énecessário a interdição, sendo o resultado do mesmo analisado entre a incapacidade relativa e a absoluta. Portanto, tendo em vista toda a relação acima levantada, não é possível classificar o autista em um tipo de capacidade civil só pelo fato deste ser considerado deficiente. Em cada caso é necessário levar em conta vários fatores para se estabelecer o nível de discernimento que está pessoa alcançou ao longo da vida. Esse nível de discernimento é variado por diversos aspectos. Entre esses aspectos há o tipo de deficiência, quando foi descoberta essa deficiência, quais foram os tratamentos que essa pessoa teve ao longo da vida para o desenvolvimento de suas capacidades. Enfim, a capacidade civil vai depender do prognóstico alcançado no seu desenvolvimento mental, variando de autista para autista. 427 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas 3 –O direito de trabalhar Em uma análise dos tópicos anteriores, pode-se presumir que o autista, quando se enquadra na possibilidade supracitada de ser capaz ou relativamente incapaz, pode exercer um trabalho, basta que ele seja apto para tal. A lei 12.764/12, artigo 3º, inciso IV, alínea “c”, rege sobre o direito do autista a ter acesso ao mercado de trabalho. Esse direito, apesar de estar explícito na lei, encontra dificuldades para ser concretizado quando dispusermos sobre os contratos e a relação efetiva que eles têm sob as necessidades do autista. 3.1 – Os contratos de trabalho No artigo 442 da Consolidação das Leis de Trabalho (BRASIL, 1943), está presente o conceito de contrato de trabalho que seria “o acordo tácito ou expresso correspondente à relação de emprego”. No entanto, esse conceito sofre fortes críticas pela doutrina, como bem explica Alice Monteiro de Barros (2011, p. 235), “sob o argumento de que o contrato não corresponde à relação de emprego, mas cria essa relação jurídica”, sendo esta o vínculo que impõe a subordinação do prestador de serviços ao empregador, detentor do poder diretivo. Para fins didáticos, Alice de Barros propõe um novo conceito, vislumbra o contrato de trabalho como: um acordo expresso (escrito ou verbal) ou tácito firmado entre uma pessoa física (empregado) e outra pessoa física, jurídica ou entidade (empregador), por meio do qual o primeiro se compromete a executar, pessoalmente, em favor do segundo um serviço de natureza não eventual, mediante, salário e subordinação jurídica.(BARROS, 2011, p. 236 - 237). Os contratos de trabalho são classificados com uma série de denominações, podendo ser quanto à forma de celebração, quanto ao consentimento, quanto à duração, quanto ao fim, entre outros. Além da classificação, os contratos também possuem características específicas. O enquadramento no campo do direito privado é uma dessas características, como também, o caráter sinalagmático empregado, por respeitar o princípio da autonomia da vontade, e a reciprocidade das partes. Além dessas, a prestação de serviço não é concretizada por um ato singular, sendo chamada de trato sucessivo. O acordo do 428 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. contrato pode dispensar formalidades, basta o consentimento para sua eficácia. Existe a característica de o contrato ser “intuitu personae” por ele ser personalíssimo, não podendo ser transferido para outra pessoa. Há, também, a onerosidade. No entanto, apesar de todos esses aspectos característicos do contrato de trabalho há um que se sobrepõe, a subordinação jurídica. Para um contrato de trabalho se efetivar ele precisa preencher alguns requisitos. Esses requisitos são a capacidade das partes, licitude do objeto e o consentimento. Para alguns contratos de trabalhos especiais, ainda é exigido o requisito da forma prescrita. 3.2 – Contrato de trabalho para deficientes Para suprir um direito fundamental de uma vida digna e justa a todos, com igualdade de direitos e oportunidades, o artigo 93, da lei nº 8.213/91, prevê a reserva de cargos (conhecida como cota) para trabalhadores com deficiência em empresas com mais de cem empregados. Maria Aparecida Gugel (2011), subprocuradora geral do Ministério Público do Trabalho, explica algumas peculiaridades que a lei aludida requer para a sua efetivação. A primeira menciona a quantidade de empregos que cada empresa deve oferecer tendo em vista o número de funcionários total, de todos os estabelecimentos, atendendo, assim, a oferta de cada localidade. Por conseguinte, de extrema relevância, o empregador deve requisitar que seu funcionário, com determinada deficiência,comprovesua qualificação profissional para que o cargo seja ocupado, a fim dedesempenhar sua função de modo produtivo. Isto porque, como cediço, o portador do espectro autista apresenta certas limitações, porém também o é possuidor de qualidades que o habilite a desempenhar funções àquele trabalho. Assim, otimizando seu potencial. Nesta esteira, insta salientar que “fere a ordem constitucional e legal as exigências de ‘aptidão plena’ para o exercício de cargos ou funções” (GUGEL, 2011). Por outro lado, no caso em que o funcionário se encontrar privado de atender a todas asexigências das atividades do cargo ou da função tendo por razão sua deficiência, na medida do possível, serão adaptadas, tendo por respaldo os elementos assistidos do Decreto nº 3.298/99: os procedimentos especiais que são horários flexíveis, ambiente de trabalho adaptado às suas especificidades, jornada variável, proporcionalidade de vencimentos ou salário, entre outros; e as ajudas técnicas que são elementos para 429 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas compensar as limitações mentais, motoras ou sensoriais para permitir que as barreiras limitadoras sejam superadas. Outrafeição a se analisar implica no fato da demissão só ocorrer se for contratado outro trabalhador para o mesmo cargo com deficiência semelhante, segundo a redação do art. 93, § 1º, da Lei n° 8.213/91. Paralelamente a isso, no que diz respeito ao ingresso do trabalhador com deficiências na inserção ao mercado de trabalho no regime especial, o primeiro aspectoé por meio da colocação seletiva, que depende da adoção de procedimentos especiais para sua concretização, sendo permitido às entidades beneficentes de assistência social o apoio especial na inserção da pessoa com deficiência; a segunda forma é a promoção do trabalho por conta própria. Somado a isto, a título de complementação, a “cooperativa social, nos termos da Lei nº 9.867, de 10/11/99, revela-se um meio eficaz de inserção laboral da pessoa com deficiência porque, assume a existência de pessoas em desvantagem econômica e social” (GUGEL, 2011). Ademais, as entidades beneficentes de assistência social podem fazer convênios com as empresas e com a administração pública, de modo que ampare os direitos do trabalhador comdeficiência, sendo que o número desses contratados pelas empresas não contarão como cota, conforme observa-se na Lei de nº 8.666/93, assim como no§§ 1º e 7º do Art. 35 do Decreto de nº 3.298/99. As entidades beneficentes de assistência social ainda podem de acordo com o Art. 2º da Lei nº 7.853/89, que estão regulamentadas no Decreto nº 3.298/99, Art. 35 §§4º e 5º, criar oficinas e, assim, transformá-los em aprendizes, com o intuito de desenvolver programas de habilitação profissional para adultos e adolescentes que tenham alguma deficiência. Desse modogarantindouma independência econômica e pessoal relativo aos ganhos fruto de seu trabalho.As oficinas, também, tem por finalidade a integração social por meio de atividades de adaptação e capacitação para essas pessoas que, tendo em vista o alto grau de deficiência, não encontram formas de desempenhar atividades laborais que o mercado exige. A lei sobredita, em seu Art. 428, §§ 5º e 6º, não exige a comprovação de escolaridade e não define idade máxima para o aprendiz. As empresas e seus estabelecimentos são obrigados a empregar cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, de aprendizes sobre o número existente em cada estabelecimento. Para tanto, são colocados algumas exigências de forma a garantir os direitos do aprendiz com deficiência: 430 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. O contrato de aprendizagem tem natureza especial e para ter validade deve obedecer aos seguintes requisitos: deve ser ajustado por escrito (Art. 428, caput, CLT); com prazo determinado, não superior a dois anos (Art. 428, § 3º, CLT); o aprendiz deve estar inscrito em programa de aprendizagem do Sistema Nacional de Aprendizagem; de escolas técnicas de educação; ou entidades sem fins lucrativos (Art. 428, caput, § 1º; 430, I e II, CLT); deve ser anotado na Carteira de Trabalho e Previdência Social (Art. 428, § 1º, CLT); o aprendiz deve comprovar a matrícula e frequência escola, do ensino fundamental e obrigatório (Art. 428, § 1º, CLT); alíquota de depósito de 2% ao FGTS (15, § 7º, Lei nº 8.036, de 11/5/90); deve ser ajustado o pagamento de salário mínimo hora, salvo condição mais favorável (Art. 428, § 2º, CLT); o tempo de jornada diária não poderá ser superior a seis horas, sendo expressamente vedada a prorrogação e a compensação de jornada (Art. 432, CLT); a jornada somente poderá ser de oito horas diárias, incluídas as atividades teóricas e práticas, se o aprendiz completou o ensino fundamental (Art. 432, § 1º, CLT); a conclusão do curso de aprendizagem, com comprovado aproveitamento, dá direito ao certificado de qualificação profissional; as férias devem ser concedidas ao aprendiz de uma só vez (Art. 134, § 2º, CLT), coincidentes com uma das férias escolares (Art. 136, §2º, CLT); é devido ao aprendiz o repouso semanal remunerado (Lei º 605/49), décimo terceiro salário, aviso prévio (Art. 487, CLT);”(GUGEL, 2011). Ademais, o amparo continua quando o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) disponibiliza em seu site (MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2014) respostas para as dúvidas mais frequentes sobre o contrato trabalhista para deficientes. Ao contrário do que muitos imaginam o contrato de trabalho para deficientes não é muito diferente do contrato padrão, tendo em vista que o seu maior objetivo é disponibilizar um mercado igualitário. O salário, por exemplo, deve ser pago no valor igual aos empregados que exercem a mesma função que o deficiente, como bem explica o artigo 7º, incisos XXX e XXXI, da Constituição Federal de 1988 e o artigo 461 da CLT. Já a jornada de trabalho, como regido pelo artigo 35, § 2º, do Decreto nº 3.298/99,pode ser mais flexível e reduzida, quando for necessário, em razão do seu grau de deficiência, o salário, portanto, pode ser proporcional a esse horário. Por outro lado, muitos empregadores encontram dificuldades quando precisam achar portadores de deficiência para preencher cargos nas empresas. No entanto, o Ministério do Trabalho e Emprego (2014), esclarece em seu site esse problema de modo a informar que os Postos do Sistema Nacional de Empregos (SINE) dispõem cadastros de candidatos com deficiências que almejam ingressar no mercado de trabalho, assim como as escolas e entidades representativas das pessoas com deficiência também contém cadastros de seus associados. Além disso, o SICORDE (Sistema de Informações da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência) contém relações com o nome de instituições que agem no amparo à pessoa portadora de deficiência. 431 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas Outra prática comum, no entanto discriminatória, é a empresa concentrar-se na contratação de um tipo específico de deficiente. A legislação, quando ampara na contratação de deficientes objetiva garantir o acesso ao mercado de trabalho por todos os tipos de deficientes, como é bem estruturado no artigo 7º, XXXI, da Constituição Federal assim como vista na redação do artigo 4º da Recomendação nº 168 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). É necessário, ainda, explanarsobre o que são terminantemente proibidos em contratos trabalhistas para deficientes.Segundo Maria Aparecida Gugel (2011), subprocuradora geral do Ministério Público do Trabalho,enaltece que: a questão da proporção de jornada de trabalho exaustiva, de acordo ao que rege o art. 432, CLT; a jornada de trabalho em horário noturno, nos termos do art. 404, da CLT; o exercício trabalhista em ambientes insalubres, perigosos e ofensivos à moral do adolescente ou que venham a prejudicar seu desenvolvimento psíquico e físico, tão pouco quanto às atividades árduas que exijam tarefas demasiadamente exaustivas, ambos à luz da Convenção 182/OIT e, por fim, diante de atividades em locais que são de difícil acesso, salvo se disponibilizado gratuitamente o transporte público em horários compatíveis com a jornada de trabalho. Portanto, apesar da resistência colocada pela sociedade ao portador do Espectro Autista ingressar no mercado de trabalho, este encontra amparo na legislação que possibilita sua efetivação. Diante disto, há uma confirmação da capacidade do cujo portador do transtorno psicológico. 3.3– O desenvolvimento histórico da desigualdade social Tão importante como a criação de políticas públicas que possibilitem uma igualdade no mercado de trabalho para deficientes, é saber como e quando elas foram criadas, assim como o que gerou essa necessidade. O direito ao trabalho está expressamente prevista na Constituição da República em seu artigo 6º. Nela é coibido qualquer tipo de discriminação de salários, escolha do profissional, entre outras. Portanto, a de se salientar que a carência de qualquer desses requisitos na contratação de um deficiente, seja ele físico ou mental, vai contra os preceitos da ordem maior vigente, a Constituição. Conforme os valores previstos na redação do artigo citado, nota-se que estes fundamentam o Estado Democráticode Direito (artigo 1º, III e IV da Constituição), 432 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. cumprindo, assim, o objetivo da Republica de promover a possibilidade de trabalho a todos, sem qualquer tipo de discriminação (artigo 3º, IV da Constituição). Pode-se dizer que o marco da origem de igualdade entre os indivíduos dar-se-á mediante a Declaração Universaldos Direitos do Homem (1948). Mas, o ápice desse direito, ocorreu mesmo nos anos 70 sob pressão dos movimentos sociais mundiais, tendo em vista a Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1959, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), um organismo que integra a ONU, editou uma convenção mostrando explicitamente para a sociedade mundial os preconceitos e as discriminações no mercado de trabalho. Sobre esta, se tem pela Convenção nº 111/OIT o que seria discriminação no âmbito do emprego e profissão: Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; Qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados (Artigo 1 - 1. a, b).(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO apud GUGEL, 2011). A Convenção mencionada objetivou que os Estados Membros se comprometessem a formular e aplicar políticas capazes de promover a igualdade no que se almeja em matéria de emprego e profissão. Alémda consequente substituição de formas legislativas e suas práticas abusivas em relação ao que prega a referida política. Além desta, há a convenção nº 159/OIT que exprime sobre a reabilitação profissional e emprego de pessoas deficientes. Nela, se objetiva que a pessoa portadora obtenha e conserve um emprego digno. Sendo assim, compromete os Estados Membros a estabelecer políticas para a reabilitação profissional. No entanto, a mais importante das convenções é a conhecida como a Convenção de Guatemala, que ocorreu em 1999, também chamada de Convenção Interamericana, cuja relevância foi em contribuir para a diminuição de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. Tal convenção indicou o termo discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência como: Toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, consequência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de 433 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.(CONVENÇÃO DA GUATEMALA, 1999). As ações propostas mundialmente foram atitudes que levaram a construir o princípio do direito à igualdade. Dessas, seguiram leis como a de nº 7.853/89 que disciplina sobre a inserção da pessoa com deficiência indicando a necessidade de adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado. Como também a que passa a prever a reserva de vagas para candidatos com deficiência em concursos públicos, com o número 8.112/90. E, por fim, a Lei nº 8.213/91 dispondo sobre a reserva de postos de trabalho para pessoa com deficiência em empresas com cem ou mais empregados, seguida do Decreto nº 3.298/99 que regulamenta a Lei nº 7.853/89. Desse modo, a desigualdade que permeava há um século atrás encontrou forma de ser reduzida e construir um espaço mais disciplinado a atender as reais necessidades do deficiente. 4 – Perspectiva atual do autista no mercado de trabalho A partir de 2012, quando o autista passou a ser denominado como deficiente, possibilitou a visualização de informações de sua inserção no mercado de trabalho. O que foi de suma importância para a identificação do comportamento social à luz da receptividade desta específica classe de deficientes no nicho laboral. Através de dados estatísticos possibilita-se a realização de estudos a fim da compreensão da dinâmica social a despeito do objeto em atenção. No caso da pessoa autista, nota-se que sua inserção no mercado de trabalho está muito aquém do que se poderia entender como satisfatório. Isto porque, segundo a Organização Mundial da Saúde (2011), as deficiências de tipo mental, onde se enquadra o autismo, são as que mais encontram dificuldade na inserção social, consequentemente, na inserção do meio de trabalho. Os números comprovam que, em 2011, mais de 325 mil deficientes estavam inseridos no mercado de trabalho do Brasil. Desse número, apenas 5,78% tinham algum tipo de deficiência mental ou intelectual, que é onde se insere o autismo. Diante desta realidade é notório que apesar de leis que amparem o deficiente, neste caso o autista, observa-se a ineficácia da norma, em razão de sua inaplicabilidade, quando se deseja de fato inseri-los no mercado de trabalho. Assim, há uma necessidade de ampará-los não somente através de inserção de leis, como também em apresentar 434 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. capacitação, a fim de melhor desenvolver suas habilidades, que existem, porém não são exercitadas e, desse modo, apresentadas. Isto porque o autista, na maioria dos seus tipos, ao ingressar na vida escolar encontra barreiras na absorção do conhecimento, o que acarreta seriíssimas sequelas à sua formação acadêmica. Tal situação se agrava em razão do despreparo do docente em não possuir a didática necessária para melhor atende-lo. Apesar dos dados muitas vezes demonstrarem que o número de autistas representantes da classe trabalhista é insignificante, há exemplos que demonstram que essa realidade para o autista pode estar mais presente do que pareça. A revista “Autismo – Informação gerando ação” (2013), trouxe uma reportagem com a norte-americana, TempleGrandin, que foi diagnosticada com autismo e conseguiu seguir uma carreira de trabalho.Grandin, é bacharel pela Franklin Pierce College, mestrado em Ciência Animal na Universidade Estadual do Arizona, Ph.D. em Ciência Animal pela Universidade de Illinois e tornou-se uma prova de que as características do autismo podem ser modificadas e controladas. Grandin, em sua entrevista para a revista, afirma que, todos os autistas, independente do nível e tipo do espectro, devem adquirir habilidades profissionais. Além disso, ela relata o quanto é importante se especializar em suas aptidões, sejam elas, fotografia, computador, culinária; oimportante é desenvolvê-las. No caso dela, por exemplo, a carreira científica acadêmica era difícil, mas a tendência dela autista na fixação em um assunto possibilitou que ela se mantivesse firme. Para finalizar a entrevista, Temple Grandin, exemplificou como pode ser trabalhada, em favor do empregador, uma pessoa com o autismo: Para contribuir com a inclusão, precisamos mostrar o que as pessoas com autismo são realmente boas em fazer. Uma habilidade é a memória incrível. Muitos indivíduos do espectro autista seriam bons em lojas do varejo ou em armazéns, porque eles podem se lembrar e ter informações de todos os produtos. Em uma cidade, um homem autista memorizou a posição de toda a tubulação sob as ruas. Ele poderia mostrar as equipes de construção o local correto para escavar para evitar quebrar os canos. (GRANDIN, 2013). Desta forma, percebe-se uma notória discrepância entre a legislação presente e sua efetividade na sociedade, sendo perceptivo que o problema vai muito além do jurídico, não sendo esta a solução. Há uma falta de oportunidades que impossibilita o autista de ampliar suas habilidades, limitando seu desenvolvimento pessoal e, 435 | A l e t h e s SALGADO, A. C. L. A Inserção de Autistas consequentemente, o profissional.Para tal situação necessitando-se, portanto, de elaboração e efetivação de políticas públicas em atenção a essa situação. 5 – Conclusão Diante do que se pôde observar com o discorrer do presente artigo, há uma nítida discricionariedade entre leis existentes e a sua aplicação, principalmente quando o assunto é a inserção dos autistas no mercado de trabalho. Há um problema em que se baseia no porque essa barreira entre efetivar pessoas com deficiência mental, em especial com o Transtorno do Espectro Autista, no mercado de trabalho brasileiro, se há leis que almejam facilitar a entrada dos mesmos. Por um lado, pode-se dizer que as leis não são eficientes e por outro, que o Brasil não disponibiliza recursos que tornem o autista hábil para exercer uma profissão. Há a possibilidade sim de haver lacunas na lei que dificultem o engajamento dos mesmos, no entanto, o que é mais perceptível é que deficientes físicos, que se enquadrem igualmente nas leis mencionadas ao discorrer do trabalho, conseguem melhor se adaptar e exercer uma profissão. Portanto, é notório que no Brasil há um falta de incentivo ao desenvolvimento mental de habilidades que poderiam serampliadas a favor de um labor para aqueles que apresentam alguma deficiência de tipo mental, como é o caso do Transtorno do Espectro Autista. Para amenizar tal problema, deveria ser incentivada a formação de profissionais que estivessem aptos a diagnosticar o autismo o mais rápido possível, uma vez que os profissionais da saúde muitas vezes encontram dificuldades ao notar as características do autismo, e consequentemente a conceber um diagnóstico preciso. Quanto mais rápido sabido, mais cedo se inicia o tratamento na tentativa de desenvolver suas habilidades mentais e motoras. Além disso, é necessário que profissionais de escolas tivessem uma melhor capacitação na tentativa de lidar sabiamente com o transmitir do conhecimento, para que assimfossem capazes de desenvolver as habilidades dos ditos excepcionais o quanto antes. Com métodos como esses, portanto, fomenta-se o afastamento da marginalização daquele com o espectro autista a incensar no âmbito do trabalho e, por conseguinte, se integrar às relações sociais. 436 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 421-438, jul./dez, 2014. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Roberto. et al.. Direitos humanos: desafios humanitários contemporâneos. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=rTXGZ3iRPscC&pg=PA992&lpg=PA992&dq= capacidade+civil+cesar+fiuza&source=bl&ots=AXtYBcXfSS&sig=aUhjb9UU6dLPi0F _KIZsmm5LBR4&hl=ptBR&sa=X&ei=WoipU_q5BOeysQS5zIH4BQ&ved=0CC8Q6 AEwAQ#v=onepage&q=capacidade%20civil%20cesar%20fiuza&f=false>. Acesso em: 24 jun. 2014. AMA. Definição. 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Demonstraremos como a proposta interdisciplinar do MEJ, a estrutura e as áreas de atuação da Colucci Consultoria Jurídica Jr. proporcionam aos seus membros o desenvolvimento de habilidades e competências técnicas e não técnicas indispensáveis para a formação de um operador do Direito. Palavras-chave: Ensino Jurídico. Empresa Júnior. Inovação.Habilidades e Competências Profissionais. Abstract: In this paper, we aim to present the development of professional skills within a Junior Enterprise experience. First we will present the students dissatisfaction and criticism towards the traditional legal education model, than we will do a briefly explanation about the Junior Enterprise movement, its instances of representation and laws. Finally, we will demonstrate how the Junior Enterprise movement interdisciplinary proposal together with Colucci Consultoria Jurídica Jr. structure and legal services provide the development of professional skills needed to a law student. Keywords: Legal education. Junior Enterprise. Innovation. Professional Skills. Recebido em: 31 de outubro de 2014 Aceito em: 6 de fevereiro de 2015 1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora 3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora 2 439 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. 1- Introdução O ensino jurídico é alvo de muitas críticas na realidade atual. O curso, especialmente na graduação, por vezes dogmático e tecnicista, é constantemente alvo de críticas dos próprios alunos que se sentem insatisfeitos com a formação ofertada pelas bancas universitárias. Há uma preocupação com o futuro e um sentimento de não estar preparado para atuar. Isso se torna ainda mais latente na prática jurídica. Contudo, é preciso fazer uma digressão histórica para compreender o atual estado do ensino jurídico no Brasil. Antônio Alberto Machado1, em sua obra ´´Ensino jurídico e mudança social”, nos diz: As escolas de Direito, lembra Sérgio Adorno, foram realmente criadas para atender às necessidades da burocracia de um Estado Nacional em emergência. Por essa razão é que o ensino jurídico, no seu início, privilegiou a formação política, em lugar de uma formação exclusivamente jurídica [...] Até hoje, o ensino jurídico [...] desfrutando ainda daquela antiga dignidade de ensino com importante componente ético-político [...]que proporciona ao bacharel a perspectiva de carreiras atraentes e a possibilidade de assumir postos relevantes na burocracia estatal [...] trata-se de campo do saber e do ensino universitário que, em boa medida, ainda segue mantendo aquela velha antiga aura de autoridade e de vinculação ao poder que lhe conferia o culto ao Direito Romano e Canônico. (MACHADO, 2009, p. 85-86) Considerando a célebre frase de Machado de Assis, - Brasil, o país de bacharéis -, tem-se uma forte crítica ao modelo padrãode indivíduos com ensino superior na então época, podendo até ser de digna comparação aos dias atuais. O Direito era, sem dúvida, a porta de acesso à elite local. Assim, como se observa nos discursos e aconselhamentos de Bento Cubas, pai de Brás, nas intenções de Natividade, para um de seus filhos; e, em ´´Teoria do Medalhão``, nos dizeres e indicações de um pai a seu jovem filho bacharel: (...) a predestinação à vida pública e o Direito entrelaçam-se como etapa estratégica nessa inserção, já que o principal projeto da elite brasileira era a vida pública, carreira vinculada principalmente ao Direito, curso forjado para melhor preparar o futuro deputado ou senador . (ARAÚJO, 2008, p. 61) Do Brasil Império, passando pela República Velha, até os dias de hoje, as críticas ao ensino jurídico persistem. Atualmente há um grande número de Faculdades de Direito no Brasil. Esse crescimento se deu, principalmente, durante a década de 440 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014. 1990. Entre 1996 e 2014 o aumento foi de 700%. Se em 1996 havia 160 faculdades de direito, hoje há 1.2844. Com expansão de tamanha magnitude: [...] não há prova mais evidente da alta lucratividade desses cursos que atraíram os investimentos do setor privado da educação com uma voracidade nunca antes imaginada, o que tornou quase impossível o exercício de um controle efetivo sobre a qualidade dos cursos de direito. (MACHADO, 2009, p. 96-97) O diminuto índice de aprovação do XIV Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também serve como parâmetro para atestar a má-qualidade do ensino jurídico no Brasil. Dos 110.820 inscritos nesta edição, somados aos 17.185 candidatos inscritos para a repescagem, apenas 27.835 lograram aprovação nesta edição do exame, o que representa 25,11% do total de candidatos inscritos.5 Nas bancas universitárias, deve-se ressaltar ainda que a prática jurídica encontrada na maior parte das Faculdades de Direito do Brasil atua em poucas e restritas áreas. Mais grave, muitas das Faculdades nem possuem Laboratórios ou Núcleos de Prática, e as poucas e restritas áreas referidas, na maior parte das vezes, ocorrem na seara do Direito de Família e Sucessório, via ações de pensão alimentícia e usucapião. A prática fica inteiramente a cargo do aluno, que se aventura em estágios em escritórios de advocacia e órgãos públicos, onde encontra toda a gestão pronta e somente passa a elaborar as peças jurídicas requisitadas. Deve-se pontuar que as experiências proporcionadas por um Núcleo de Prática, um estágio em um escritório de advocacia ou em um órgão público são enriquecedoras e dignas de atenção por parte do aluno ao longo de sua graduação. Contudo, não proporcionam autonomia e não desenvolvem habilidades e competências outras, verbi gratia, conhecimentos de gestão e empreendedorismo, necessários a formação de um advogado completo. Este trabalho, portanto, justifica-se pela necessidade de busca de alternativas ao ensino tradicional, mais especificamente à prática jurídica, para o desenvolvimento de habilidades e competências ao aluno graduando em Direito. Nesse sentido, apresentamse as empresas juniores como soluções inovadoras à problemática levantada, uma vez que, nestas associações, os graduandos em Direito conseguem desenvolver habilidades e competências técnicas e não técnicas a partir do desenvolvimento de projetos. 4 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-out-23/cursos-direito-aumentam-700-18-qualidadecai-oab>. Acesso em 23 de outubro de 2014. 5 Disponível em: <http://blog.portalexamedeordem.com.br/blog/2014/10/xiv-exame-de-ordem-aprovou2511-dos-candidatos-inscritos/>. Acesso em 21 de outubro de 2014. 441 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. 2- Movimento Empresa Júnior (MEJ) A história do Movimento Empresa Júnior (MEJ) inicia-se em Paris (França), no ano de 1967, na Ecole Supérieure dês Sciences Economiques et Commerciales (ESSEC). Diante do quadro de insatisfação com o ensino, que ainda possuía um viés muito teórico, os estudantes da graduação propuseram um modelo no qual se associariam para prestar serviços ao mercado e, com isso, por em prática o conhecimento teórico adquirido na faculdade A proposta encontrou receptividade no meio acadêmico e, em 1986, já existiam mais de cem associações com tal característica na Europa. Em 1990 foi criada a Confederação Europeia de Empresas Juniores (JADE) (BRASIL JÙNIOR, 2012). Tal iniciativa chegou ao Brasil no final dos anos 1980. Por intermédio da Câmara de Comércio França-Brasil, foi colocado um anúncio no jornal convocando jovens estudantes brasileiros a fundarem empresas juniores. Assim, três cursos atenderam ao pedido: o curso de Administração da Fundação Getúlio Vargas, conhecida pelo nome Júnior GV, o da FAAP – Fundação Álvaro Armando Penteado e o da Escola Politécnica da USP, todas as três empresas concebidas no ano de 1988 (OLIVEIRA). Hoje são 14 federações representando 13 Estados brasileiros mais o Distrito Federal, mais de 200 empresas juniores e milhares de empresários juniores, condição que proporciona ao MEJ brasileiro o título de maior em âmbito mundial. Em Minas Gerais, a representação das empresas juniores é feita pela Federação Mineira de Empresas Juniores do Estado de Minas Gerais (FEJEMG). Fundada em 1995, é hoje conhecida como a maior federação do mundo, e possui atualmente 49 empresas juniores federadas em todo o estado. Nacionalmente, a representação das empresas juniores é feita pela Confederação Brasileira de Empresas Juniores. A Brasil Júnior, como é conhecida, foi fundada em 2003 durante o XI Encontro Nacional de Empresas Juniores (ENEJ), em Salvador, no Estado da Bahia. Sua criação intentou a garantia da correta gestão de todas as instâncias do MEJ (Brasil Júnior, Federações Estaduais e Empresas Juniores) e a geração de resultados que desenvolvem seus membros, empresas e instituições de ensino. Hoje é a maior confederação nacional de empresas juniores do mundo. Segundo a Brasil Júnior: Formalmente, Empresa Júnior é uma associação civil, ou seja, com um objetivo comum e bem definido. Estruturalmente, é um grupo formado e 442 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014. gerido única e exclusivamente por alunos de graduação. Esta associação, para que seja configurada numa EJ, tem que ser declaradamente sem fins econômicos. A receita oriunda dos projetos deve ser reinvestida na própria EJ e não pode ser distribuída entre seus membros [...] Informalmente, costumamos definir a EJ como um grande laboratório prático do conhecimento técnico e em gestão empresarial. Diferentemente dos estágios convencionais, aqui você tem um alto grau de liberdade de se pensar em todos os processos da EJ. É local onde as soluções mais criativas são implementadas com certa facilidade, não encontrando burocracias (BRASIL JÙNIOR, 2012). Podemos então dizer que uma empresa júnior é uma associação sem fins lucrativos e com fins educacionais composta exclusivamente por alunos graduandos do ensino superior, que objetiva proporcionar aos membros a vivência e aquisição de habilidades necessárias ao mundo corporativo. Destaca-se ainda o grande impacto social que tais empresas juniores exercem na comunidade onde estão inseridas. Seus clientes habituais são micro e pequenos empresários que, além de não possuírem conhecimento e pessoal para realização da maioria das atividades gerenciais, não conseguiriam pagar por um serviço sênior de consultoria e/ou assessoria. Pode-se então, concluir que as empresas juniores são uma excelente ferramenta para qualificação e profissionalização dos pequenos empresários, apresentando como iniciativa inovadora no mercado, por meio da atuação de graduandos que impactam diretamente no progresso nacional. 3- Normas Jurídicas pertinentes às Empresas Juniores No ordenamento jurídico brasileiro, as associações sem fins lucrativos acompanham o disposto nos artigos 53 a 61 do Código Civil de 2002. As disposições gerais dessa associação estão previstas nos artigos 40 a 52 do mesmo código supracitado. Importante se faz frisar a empresa júnior como possibilidade de otimização do artigo 207 da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe acerca de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Também é, enquanto inovação pedagógica, uma proposta para o desenvolvimento do ensino jurídico do país. A empresa júnior, dado o seu caráter pedagógico e de prestação de serviços a micro e pequenos empresários, como já destacado, se apresenta nesse sentido como uma atividade marcadamente extensionista. 443 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. O vínculo existente entre a empresa júnior e os seus membros é o de voluntariado. Este instituto legal está previsto na Lei Federal n. 9.608/98. Portanto, não há qualquer tipo de remuneração aos membros das empresas juniores ou relação empregatícia. A dedicação do tempo à empresa júnior não gera remuneração pecuniária, mas enriquece profissional e pessoalmente o graduando em Direito. Tal atividade já é vista como um dos principais diferenciais nos processos seletivos de grandes empresas, a exemplo das seleções de trainees voltadas exclusivamente para empresários juniores. Ainda nessa linha de raciocínio, válida se faz a análise de Leandro Vieira acerca da opção em massa dos estudantes por concursos públicos após a graduação. Segundo ele, “os gênios americanos criam empresas fantásticas que mudam os rumos da humanidade. Os gênios brasileiros passam em concursos públicos” (VIEIRA, 2011). Esta crítica gira em torno do descrédito que o graduado tem com relação ao setor privado, despendendo anos de sua vida à tentativa de aprovação em algum concurso do setor público. É fato incontroverso que a maioria dos graduandos em Direito iniciam a faculdade aspirando um cargo público. E muitas vezes, seja por desconhecimento ou por preconceito, não conhecem o vasto leque de atuação profissional que o direito pode proporcionar na iniciativa privada. O resultado disso é a desproporção na quantidade de vagas ofertadas para a quantidade de pessoas que prestam os concursos. Este desinteresse pelo setor privado deve-se à instabilidade econômica e escassez de empregos oferecida por este setor. Na visão do autor, o setor privado necessita de investimentos dos jovens graduados para que as habilidades e competências destes não se percam em maçantes tentativas de aprovação na seara pública. Visando dar maior base normativa e segurança jurídica às empresas juniores, a Confederação Brasileira de Empresas Juniores, propôs, por meio do Senador José Agripino Maia, o Projeto de Lei (PL) n. 437 de 2012. Tal projeto de lei busca disciplinar a criação e organização das associações denominadas empresas juniores. O projeto foi aprovado em 29 de outubro de 2014 por unanimidade na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e seguiu para a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. O PL n. 437 positiva em seu texto o conceito de empresa júnior citado aqui anteriormente, que é a diretriz feita pela Confederação Brasileira de Empresas Juniores, por isso a importância de um diploma legal específico que apresente formalmente as 444 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014. Empresas Juniores ao Ordenamento Jurídico Brasileiro e também para que os demais órgãos competentes possam se manifestar, verbi gratia, federações estaduais e órgãos de classe. 4- O caso Colucci Consultoria Jurídica Jr. (ColucciC.J.Jr.) Em face do que já foi apresentado e do problema do ensino do Direito, que hoje se encontra muito dogmatizado, surge a proposta inovadora da Colucci Consultoria Jurídica Jr., empresa júnior de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. A Colucci Consultoria Jurídica Jr. foi fundada por um grupo de alunos graduandos da Faculdade de Direito da UFJF em 6 de setembro de 2013 e carrega, orgulhosamente, o sobrenome do maior benemérito da história da Faculdade de Direito da UFJF, o Dr. Benjamin Colucci. Essa iniciativa dos graduandos surgiu da insatisfação com o ensino prático ofertado pela faculdade. Embora a Faculdade de Direito da UFJF goze de um grande prestígio na graduação em todo o cenário nacional, tendo em vista o ótimo desempenho nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil e o reconhecimento da qualidade de seus egressos, esses alunos vislumbravam uma possibilidade de ofertar aos demais graduandos uma experiência prática para além da que existia na faculdade. Essa experiência prática é embasada na consultoria e assessoria jurídica em direito empresarial, civil, trabalhista e tributário, previstos estatutariamente como objetos sociais da Colucci Consultoria Jurídica Jr. Seus clientes são outras empresas juniores, micro e pequenos empresários. É sabido que consultoria é uma atividade privativa do advogado, contudo excepciona-se aos graduandos que estejam nos dois últimos anos do curso. Assim, em respeito ao Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n.8.906/94), apenas os alunos do sétimo período em diante atuam na área de projetos da Colucci, sempre orientados por professores inscritos na OAB. É válido ressaltar que a Colucci é a primeira empresa júnior de Minas Gerais a ser reconhecida pela OAB-MG, tendo recebido a aprovação desta em 4 de fevereiro de 20146. 6 Disponível em: <http://www.juizdefora-oabmg.org.br/index.php/noticias/1737/OAB-Subseo-Juiz-deFora-apoia-empresa-jnior-da-Faculdade-de-Direito-da-UFJF>. Acesso em 29 de outubro de 2014. 445 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. Não é permitido às empresas juniores de Direito atuarem no contencioso, por isso os serviços de consultoria e assessoria jurídica são exercidos sob uma ótica preventiva. Dessa forma, são avaliados os riscos envolvidos em todos os serviços para a elaboração de um projeto que leve segurança jurídica ao cliente, minimizando as chances de litígios. As empresas juniores diferenciam-se ainda dos núcleos de prática jurídica, escritórios de advocacia e outras iniciativas discentes. O traço distintivo marcante, além da atuação restrita ao direito preventivo, é a autonomia. Toda a gestão, como já destacado, é feita pelos próprios membros. A Colucci Consultoria Jurídica Jr. organiza-se, conforme seu estatuto, em seis diretorias, na assembleia e no conselho consultivo. São as diretorias de presidência, administrativo-financeira, projetos, gestão de pessoas, relações públicas e qualidade. 4.1 – O desenvolvimento de habilidades técnicas No que tange ao desenvolvimento de habilidades técnicas, a Colucci as desenvolve em seus membros por meio da prospecção das searas empresarial, cível, trabalhista e tributária, todas ministradas no âmbito acadêmico, comunicando-se com a prestação dos serviços de seu portfólio. Neste está prevista a elaboração e revisão de estatutos e regimentos internos; elaboração, revisão e acompanhamento de contratos; palestras para esclarecimento de questões jurídicas quanto às melhores práticas de governança corporativa; identificação e monitoramento de riscos jurídicos na realização de projetos; elaboração e revisão de contratos sociais e demais normas internas; consultoria para criação de micro e pequenas empresas; e consultoria trabalhista. Dentre os serviços ofertados para empresas juniores destaca-se a elaboração, revisão e alteração de Estatutos e Regimentos. Para que toda empresa júnior se constitua legalmente é preciso que seja elaborado um estatuto e um regimento interno. O estatuto é o diploma normativo que rege sua constituição, seu funcionamento, suas obrigações. A lei estabelece uma série de requisitos sob pena de nulidade. Dessa forma, a Colucci atua na elaboração, revisão e alteração e também na orientação para registro dos atos societários do Estatuto e Regimento Interno. Nesse sentido o membro da Colucci exercita seus conhecimentos sobre pessoa jurídica, associações e técnica legislativa. 446 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014. Já na elaboração, revisão e acompanhamento de contratos busca-se mapear todos os riscos intrínsecos ao contrato em questão, proporcionando segurança jurídica e prevenindo litígios. Além disso, o aluno desenvolve habilidade em consultoria nos casos de quebra contratual e responsabilidade civil. Também são ofertadas palestras sobre as melhores práticas e esclarecimento de dúvidas quanto à governança corporativa, qual seja, um conjunto de boas práticas para o exercício de uma atividade empresarial segura. Realiza-se ainda identificação e monitoramento de riscos jurídicos para realização de projetos, nos quais o aluno emite pareceres orientando quanto às oportunidades e ameaças visando o melhoramento do desempenho da empresa. Para as micro e pequenas empresas, permanecem os dois últimos serviços supracitados – oferta de palestras e identificação e monitoramento de risco jurídicos para elaboração de projetos - além de consultoria no que condiz à sua criação e é ofertada a elaboração e revisão de contratos sociais e demais normas internas. O associado, dessa forma, desenvolve habilidades por meio da adequação do contrato às normas vigentes com vistas à proteção do patrimônio do cliente, no intuito de que este jamais se confunda ao da empresa. Por fim, é também realizada a consultoria trabalhista, na qual o aluno aperfeiçoa suas habilidades de direito do trabalho, quanto à admissão e dispensa de empregados – contrato trabalhista -, rotina trabalhista, terceirização, benefícios previdenciários, contribuições sindicais e cumprimento de convenções coletivas. O desenvolvimento de habilidades técnicas não se restringe a áreas jurídicas. Uma das características marcantes das empresas juniores é a interdisciplinaridade. Como exemplo pode-se citar a elaboração do Planejamento Estratégico da Colucci em parceria com uma empresa júnior da UFJF. O Planejamento Estratégico é uma ferramenta de gestão de muita relevância para traçar os objetivos e como a empresa irá cumpri-los. Durante seis meses, a equipe que compunha o projeto e os demais membros da Colucci discutiu intensamente, dentre outros assuntos, quais seriam as diretrizes estratégicas mais apropriadas a empresa júnior. Como resultado pode-se apresentar a Missão, Visão e Valores adotados pela Colucci. 447 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. A Missão é desenvolver juristas empreendedores capazes de prestar consultoria jurídica personalizada à micro e pequenas empresas a fim de evitar litígios e prevenir conflitos. Já a Visão é ser conhecida em Juiz de Fora pela excelência em consultoria jurídica personalizada até 2017. E os Valores são: Responsabilidade Social, Sinergia, Profissionalismo, Espírito Empreendedor, Paixão em ser Colucci e Probidade. Com Responsabilidade Social quer-se dizer que os projetos realizados pela Colucci visam à geração de valor e impacto na comunidade na qual ela se insere. Sinergia significa acreditar que a união de todas as forças gera mais resultados que somadas individualmente. Profissionalismo é prezar pelo conhecimento técnica e pela postura ética para a prestação de um serviço de excelência. Já o Espírito Empreendedor, para a Colucci, é dizer que a motivação define-se como a capacidade de identificar oportunidades e buscar soluções que gerem valor a todas as partes interessadas. Na Paixão em ser Colucci, os membros dizem que se orgulham de ser parte da instituição, demonstrando comprometimento com os objetivos e finalidade da Colucci. E com Probidade quer-se dizer que a empresa preza pela integridade e honestidade. 4.2 – O desenvolvimento de habilidades não técnicas (soft skills) Passando-se à análise do desenvolvimento de habilidades não técnicas, a Colucci propicia, através de práticas não inclusas na grade curricular da Faculdade de Direito, a capacidade de organização e método, trabalho em equipe, liderança, empreendedorismo, networking, gestão de pessoas e empresas, apresentação pessoal e oratória. Essas habilidades e competências não técnicas, também chamadas soft skills, são cruciais para o perfil de profissional desejado na atualidade. Não obstante ao uso de métodos e formas mais clássicos do curso de Direito, as habilidades acima expostas são de suma importância para o operador de direito. A capacidade de organização e método, também entendida como capacidade gerencial, diz respeito à capacidade do profissional saber se organizar e gerir as ferramentas adequadas a uma boa consecução da tarefa ou projeto que lhe é entregue. O trabalho em equipe, característica cada vez mais valorizada no perfil profissional, 448 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014. significa uma boa capacidade de relacionamento interpessoal e convergência de forças e interesses para a execução de algo. A liderança, fundamental para a motivação de uma equipe, destaca a importância do profissional saber conduzir uma equipe. O networking é a capacidade que o profissional tem de construir uma boa rede de contatos e interlocução profissional. Isso é importante não só para a consecução dos objetivos da empresa júnior, mas também pode desaguar em parcerias, sociedades e novos negócios que podem ser firmados entre os egressos, antigos empresários juniores. A gestão de pessoas apresenta-se como ferramenta indispensável a todos os departamentos de recursos humanos. Da seleção, passando pelo acompanhamento e motivação, até o desligamento do colaborador. Ressalte-se ainda que a apresentação pessoal, aliada a uma boa oratória, é um grande diferencial para o profissional contemporâneo. Para se expressar diante do outros, o graduando (e futuro operador do Direito) precisa dominar sua oratória, apresentando de forma clara suas ideias e sugestões. Assim sendo, o aluno também é capaz de explorar seu lado criativo, não sendo mero instrumento de propagação de ideias. Como exemplo pode-se citar as reuniões de diretoria, que simulam o meio corporativo, no qual o aluno, futuro profissional, será cobrado e deverá apresentar, diante de outros membros da companhia, o trabalho desenvolvido. Aplicando-se essas habilidades à realidade da Colucci, pode-se citar como mais um exemplo o atendimento ao cliente feito pelos membros da diretoria de projetos. Este atendimento possibilita a prática da oratória e apresentação pessoal, visto que se necessita de uma boa capacidade de apresentação e de comunicação para entender e propor uma solução ao problema apresentado pelo cliente. O membro irá lidar também com o gerenciamento de projetos, haja vista a necessidade de utilizar as ferramentas adequadas, como o cronograma, para um bom andamento do projeto. Neste caso o aluno tem a oportunidade de vivenciar o direito prático e aprender a lidar com o próximo, sendo capaz de perceber suas necessidades e atende-las da melhor forma possível. Para atender à necessidade do cliente é necessário todo um estudo sobre o assunto demandado. Por isso os membros do projeto fazem um trabalho de pesquisa acerca da legislação, doutrina e jurisprudência. Posteriormente, esse estudo é utilizado para embasar o verdadeiro trabalho requisitado. 449 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. Dada a necessidade de contínua melhoria e aperfeiçoamento dos membros da Colucci, as capacitações são uma constante na rotina da empresa júnior. Portanto, os próprios membros, pós-juniores – membros egressos da Colucci - e demais profissionais ministram palestras e treinamentos conforme as demandas apresentadas. Tal aperfeiçoamento contínuo é fundamental para o desenvolvimento profissional do membro da empresa júnior e proporciona a eles um contato constante com profissionais renomados e experientes. Deve-se destacar ainda, que a maior parte dos eventos de capacitações como palestras e minicursos são abertos a todos os alunos da Faculdade de Direito da UFJF, o que demonstra a preocupação da Colucci com os demais alunos não voluntários. Como já dito anteriormente, a interdisciplinaridade é outro fato marcante da empresa júnior. Ela resulta do contato da empresa júnior com outras instituições – dentre elas outras empresas juniores, órgãos de classe e terceiro setor -, que proporcionam aos membros da Colucci um maior conhecimento em diferentes áreas. Em virtude da maior parte das empresas juniores serem concentradas em somente um curso superior, e de isso não ser o suficiente para sua própria gestão e desenvolvimento das atividades, elas necessitam de buscar conhecimento por fontes externas, quais sejam as outras empresas juniores. Essa interação, chamada de benchmarking, é o que proporciona um crescimento constante da rede e fortalece a interdependência entre elas. 5- Conclusão Por todo o exposto, entende-se que é necessária uma reavaliação na maneira de ensinar e pensar a prática jurídica. O dogmatismo do ensino que ainda insiste em ser praticado é distante da realidade social, uma vez que não vai a campo, não sendo capaz de acompanhar a dinamicidade necessária à formação do advogado contemporâneo. O curso de Direito deve prover uma instrução humanista, capaz de proporcionar ao futuro profissional a compreensão das transformações céleres da sociedade moderna. Contudo, o parâmetro de um profissional técnico não deve ser abandonado, mas sim aprimorado, com o intuito de amplificar o senso crítico dos graduandos e formar especialistas gradativamente mais empenhados a modificar o meio em que se inserem. 450 | P a g e Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 4, n. 6, pp. 439-452, jul./dez., 2014. O bacharelismo compreendido como apenas como a formação de letrados para manter um dogma já concentrado deve ser removido do entendimento do ensino jurídico. Ainda nesse sentido, o direito positivado não deve ser encarado como uma ciência autoaplicável alheia a qualquer modificação, mas sim estar interconectado como um todo, com a finalidade de preencher as lacunas da sociedade, não obstando o acesso à justiça social. Por suposto, insere-se a importância da reformatação do ensino jurídico no Brasil, com a proposta de que o jovem operador do direito não seja apenas um reprodutor de normas e conceitos, mas um agente capaz de vivenciar, identificar, compreender e buscar soluções para os conflitos da realidade que o cerca. Como tentativa concreta e ousada de contribuir para a formação prática do graduando em Direito, surge a Colucci Consultoria Jurídica Jr. Ao trazer experiências que desenvolvem habilidades técnicas jurídicas e não técnicas, a Colucci mostra-se como uma alternativa viável para a construção de um profissional mais dinâmico e interdisciplinar, capaz de interagir e compreender os reflexos das mudanças sociais de seu tempo. Não obstante, reafirma o compromisso Constitucional da Extensão Universitária e, como inovação social, ao prestar consultoria e assessoria jurídica a micro e pequenos empresários, contribui para a qualificação da atividade empresarial o que é, em última instância, contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. É este perfil de profissional diferenciado o almejado para impactar, transformando as empresas e a sociedade. E é este o compromisso que a Colucci Consultoria Jurídica Jr. firma com todos os graduandos em Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora e que está presente em sua Missão: desenvolver juristas empreendedores capazes de prestar consultoria jurídica personalizada à micro e pequenas empresas a fim de evitar litígios e prevenir conflitos. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Laíse Helena Barbosa. O Medalhão do Século XIX: o bacharelismo em Machado de Assis. (Monografia, CESUPA, Belém-PA, 2008). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil,1988. 451 | P á g i n a FERREIRA, J. P. C.; VICTORETTI, T.; ZANCANELO, T. S. Empresa Júnior. _________. Lei n° 9.608, de 18 de fevereiro de 1998. _________. Planalto. Código Civil (2002). Lei 10.406, de 10 de janeiro 2002. _________. Projeto de Lei n° 437/2012. BRASIL JÚNIOR. Confederação Brasileira das Empresas Juniores. Disponível em: http: www.brasiljr.org.br. Acesso em 12 de outubro de 2014. Acesso em: 6 de fevereiro de 2015 __________. DNA Júnior. Disponível em: http: www.brasiljr.org.br. Acesso em 12 de outubro de 2014. BROWN, Louis M. Manual of Preventive Law. Prentice-Hall. New York, 1950. DIDIER JR., Fred; MARQUES, Alessandro. Empresa Júnior: Aspectos Jurídicos, Políticos e Sociais. Jus Podivm. Salvador, 2012. FEJEMG. Federação das Empresas Juniores de Minas Gerais. Disponível em: http: www.fejemg.org.br. Acesso em 15 de outubro de 2014. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. 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UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. Uma Lei Mutilada, uma Nação Dividida: Sharia, federalismos e o (des)cumprimento dos Direitos Humanos na Nigéria1 A Mutilated Law, A Divided Nation: Sharia, Federalisms and the (Non) Fulfillment of Human Rights in Nigeria Arthur Barretto de Almeida Costa2 Resumo No presente trabalho, procuramos mostrar um panorama geral da aplicação dos direitos humanos na Nigéria e relacioná-lo com as diferentes maneiras de se aplicar o direito muçulmano presentes na legislação nacional. Estas podem ser duas: o direito do estatuto pessoal, regulado desde a constituição de 1979; ou no código penal. Esta última não se conformaria com a Lei Maior, mas desde 1999 vêm sendo instituída em estados do norte, majoritariamente islâmico. Com esse processo, e a subsequente contestação do mesmo por parte do governo, emergiu um conflito acerca do que deveria significar o fato de a Nigéria ser uma federação: a garantia de uma autonomia relativa e da preservação das diferenças; ou uma licença para uma ampla autodeterminação independente dos governos locais. Nesse sentido, a religião, sobretudo islâmica, aparece como a legitimadora da autoridade do governo estadual face a um governo central ausente, adepto de concepções ocidentais. Palavras chave: Nigéria; Federalismo; Islamismo; Conflitos Religiosos; Direitos Humanos. Abstract In this article, we try to show an overview of human rights application in Nigeria, and relate it with the different ways of Muslim law application that take place in federal legislation. Those can be two: the personal statue law, regulated since 1979 constitution; or in the penal code. This last one could not be constitutional, but, since 1999, it has been adopted by several northern states, which are mostly Islamic. With this process, and the subsequent attack to it by the central government, a conflict has emerged on what should mean the fact that Nigeria is a federation: the guarantee of a relative autonomy and the preservation of differences; or a license for a huge self-determination by the local governments. In this situation, the religion, and mostly the Islamic one, has become the legitimating of states government’s authority over an absent central administration which adopts western standards. Keywords: Nigeria; Federalism; Islamism; Religious Conflicts; Human Rights. Recebido em: 26 de setembro de 2014 Aceito em: 6 de fevereiro de 2015 1 O presente artigo foi apresentado em uma primeira versão simplificada como requisito para a conclusão da disciplina de Antropologia Cultural do Estado, do curso de Ciências do Estado da UFMG, oferecida pelo professor Marcelo Maciel Ramos, no segundo semestre de 2013. Uma segunda versão, ainda incompleta, foi apresentada ao segundo concurso de artigos jurídicos do XXIX Encontro Mineiro de Estudantes de Direito, realizado em Viçosa, em 2014, no qual obteve o primeiro lugar. A versão atual é revisada e ampliada; agradeço aos amigos Ana Clara Abrantes Simões e João Vítor de Freitas Moreira pelas críticas e sugestões. 2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Grupo Mineiro de Estudos do Léxico – GruMEL. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-mail: [email protected]. 453 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo 1- Introdução A Nigéria é, atualmente, a nação com maior população da África, e também uma das economias mais pujantes do continente, muito em função do fato de apresentar a maior produção de petróleo da região. Entretanto, também atravessa diversos conflitos, devido à presença de uma gigantesca diversidade étnica no interior de suas fronteiras, contando com mais de 250 grupos diferentes, compondo um “caldeirão” potencialmente perigoso. A clivagem mais visível é entre o sul, predominantemente cristão e produtor de petróleo, e o norte, majoritariamente islâmico e tradicionalista. Há predomínio da população muçulmana, que corresponde a cerca de 50% do total, com os cristãos contando com 40% do contingente de pessoas (CIA, 2013). Além disso, devido à histórica influência dos líderes tribais do norte, cortes islâmicas locais foram sendo introduzidas em alguns estados desde a década de 60, passando a contar com apoio oficial a partir da constituição de 1979, estando presente, também, nas determinações da atual, de 1999. Contemporaneamente, a lei islâmica só é aplicada com respaldo da constituição em alguns estados, e apenas em determinadas situações, sobretudo de direito de família e de sucessões, no caso de, no mínimo, uma das partes ser muçulmana, e em alguns outros casos excepcionais. Essas cisões de origens étnicas, religiosas e linguísticas, suscitaram profundos debates na Nigéria, os quais revelaram o confronto entre diferentes concepções de federalismo. Disputas acirradas continuam ocorrendo sobre os limites da independência dos estados com relação à união, muito em função de uma série de competências serem partilhadas pela assembleia legislativa central e pelas casas de representantes estaduais. No presente artigo, buscaremos examinar a forma com a lei islâmica funciona na Nigéria atual, confrontando este estado de coisas com o respeito (ou a falta dele) aos Direitos Humanos, e tentando relacionar como o desvalor destes e a amplitude da aplicação da Sharia podem ser relacionados com a questão do federalismo e da independência dos entes federados. Devido às limitações de tempo e de recursos financeiros, pudemos nos valer apenas de fontes indiretas, não podendo, infelizmente, empreender uma viagem de campo à nação considerada. 454 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. 2- A lei mutilada: aspectos da aplicação da Sharia na Nigéria Primeiramente, cabe enfatizar algumas características genéricas do direito islâmico para, posteriormente, tratar mais propriamente da maneira como ele se efetiva no Estado nigeriano. O Direito Muçulmano apresenta três fontes principais: o Corão, a Suna, e o Idjmâ. O Primeiro é o livro sagrado propriamente dito, contendo as revelações feitas por Alá ao profeta Maomé ao longo da vida deste, e compiladas por seus discípulos. A Suna, por seu turno, é a descrição do conjunto de práticas e pensamentos do profeta, feitos por seus seguidores. Por fim, o Idjmâ é a opinião unânime da comunidade de fiéis, considerada, na doutrina muçulmana, como infalível. Na atualidade, a Suna e o Corão são apenas fontes históricas para o direito, uma vez que, ao longo dos últimos quatorze séculos, as interpretações aceitas e consolidadas para aqueles dois escritos foram todas feitas e registradas pelo idjmâ. Graças a essa última característica, pode-se afirmar que tal direito não é legislado, e sim uma construção intelectual dos juristas-teólogos3, fazendo com que o direito muçulmano possa ser classificado, tal qual o antigo direito romano, como “de juristas” (BADAR, 2011): é o discurso sobre o direito que, com base no Corão e na Suna, formando o idjmã, o constitui. Uma característica fundamental desse tipo de ordem jurídica é que, ao contrário mesmo do direito canônico das sociedades ocidentais, ele é todo religioso, advindo da revelação divina, de modo que não pode ser modificado, sob pena de se cair em heresia. Contudo, cabe ressaltar que a regulação de boa parte dos comportamentos é deixada a cargo dos costumes, de modo que não é incorreto se falar em flexibilidade associada à imutabilidade do direito islâmico (DAVI, 1982). Desse forma, têm tido lugar diversos movimentos de incorporação de instituições de matriz ocidental em países islâmicos, nas mais diversas áreas do direito. A possibilidade de recurso ao costume naquilo em que ele não entre em choque frontal com as determinações religiosas tem permitido uma progressiva flexibilização dos ditames da tradição. Entretanto, há um ramo do mundo jurídico que resiste mais a esse processo: 3 Já que, no islamismo, a vivência da fé é entendida como holística, devendo abranger todos os âmbitos da vida dos fiéis, de modo que algumas distinções ocidentais, como aquela entre público e privado, deixam de fazer tanto sentido. Do mesmo modo, a fé é inseparável da política e, por conseguinte, do Direito, de modo que toda lei deve ter um fundo teológico, ou não contradizer as determinações de Allah. Essa visão impediu durante muito tempo até mesmo a tentativa de promulgação de códigos que se pretendiam transcrições exatas da legislação tradicional para leis escritas na língua do estado que as aplicava. 455 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo É o direito das pessoas e das famílias que, com as regras de comportamento ritual e religioso, sempre foi considerado o mais importante na Sharia. (...) é a esse respeito que se encontram no corão o maior número de prescrições. (DAVI, 1982, p. 534) Isso fica muito visível no tratamento que a Nigéria dá à questão do direito muçulmano, o que detalharemos mais abaixo. Feitas as observações acima, passemos agora à análise das previsões constitucionais nigerianas acerca da aplicação do direito Muçulmano e sobre a justiça islâmica separada das cortes comuns. O primeiro tribunal especial para a aplicação da lei de Maomé foi criado ainda durante a colonização inglesa, no ano de 1956 (BOLAJI, 2013); tal previsão, no entanto, só foi constitucionalizada a partir de 1979, já que na primeira constituição, de 1960, os tribunais islâmicos não estavam presentes (NIGÉRIA, 1960). As disposições constitucionais acerca das cortes muçulmanas, tanto na carta de 1979, como na atual, de 1999, mostram-se tributárias da visão acima revelada, de que a aplicação do direito muçulmano deve se dar, sobretudo, relativamente às questões de estatuto pessoal do indivíduo. Ambas as leis, portanto, citam cinco situações em que se pode recorrer aos tribunais muçulmanos: em quaisquer questões acerca da validade ou dissolução de um casamento feito conforme as normas muçulmanas; nos casos de direito de família, quando há acordo entre as partes e ambas são muçulmanas; sobre a guarda de incapaz, quando este é muçulmano; sobre doação, herança e sucessão quando aquele cujos bens estão sendo transferidos é muçulmano; e, por fim, em qualquer caso, na hipótese de ambas as partes, sendo islâmicas, requererem a resolução da contenda via tribunal religioso (NIGÉRIA, 1979; NIGÉRIA, 1999). Em ambas as cartas, há cortes de apelação em direito muçulmano apenas nos estados; qualquer decisão relativa a recursos deve ser remetida à corte federal de apelação, na qual deve haver juízes com comprovado conhecimento em direito muçulmano para dirimir as controvérsias; e, em último caso, as demandas são enviadas à suprema conte, também secular. Além disso, cumpre acrescentar que as questões devem ser remetidas em primeira instância a tribunais comuns, não-islâmicos, e só em caso de recursos elas poderão ser remetidas a alguma das cortes de apelação (SALMAN, 2013). 456 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. Por fim, cabe ressaltar que, em ambas as constituições, as disposições relativas às cortes muçulmanas sempre precedem aquelas que remetem aos tribunais de direito costumeiro de mesmo nível. No que diz respeito às legislações infraconstitucionais, a grande diversidade étnica da Nigéria levou à formação, desde o período da colonização, de formações normativas híbridas. Os ingleses permitiam a manutenção das estruturas tradicionais de regulação, contanto que não ultrapassassem aquilo que os europeus consideravam razoável e equânime. Após a independência, a comunidade islâmica chegou a manifestar insatisfação por estar submetida a normas que não refletiam sua tradição comportamental; entretanto, após árduas discussões, chegou-se a um modelo legislativo misto, incorporando elementos de origem tanto muçulmana quanto cristã, sob a égide do sistema do common law (NMEHIELLE, 2004). No entanto, logo após a promulgação da constituição de 1999, iniciou-se um processo não previsto de extensão da Sharia aos códigos penais dos estados federados no norte de maioria islâmica. Começando com Zamfara, o processo estendeu-se, posteriormente, a um total de 12 unidades dentre as 36 que compõem a federação nigeriana (BOLAJI, 2013). Apoiados em brechas da constituição que permitiam a expansão do âmbito de aplicação da Sharia para além da lei pessoal, códigos criminais inteiramente islâmicos foram adotados, com diferentes graus de vinculação para as populações muçulmanas, conforme o ente federado sob análise. Tal estado de coisas gera uma série de problemas aos direitos humanos, dada a conhecida rigidez da lei muçulmana em matéria penal, com a prescrição de penas que incluem a amputação e o açoitamento. Essas disposições legais nos dão a impressão de que o direito islâmico é profundamente contrário, em essência, aos Direitos Humanos. Nada mais fora da realidade. O que se pode verificar é que a Sharia, para além daquelas disposições que a nós ocidentais parecem “bárbaras”, também é dotada de uma série de princípios que, especialmente levando-se em conta o momento histórico em que foram produzidos, são bastante avançados. Nesse sentido, a lei criminal original baseava-se no princípio da legalidade, desde o tempo em que, na cristandade, se passava a Idade Média, impedindo que pessoas fossem criminalizadas por lei retroativa; no da pressuposição da inocência do réu, no caso da inexistência de prova em contrário; o estabelecimento da necessidade da conjunção entre ação criminosa, intenção de cometer esta atitude e consciência da ilicitude da mesma para que se dê a condenação; dentre diversos outros (BADAR, 2011). Mas, no processo de 457 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo implementação da Sharia na Nigéria, várias dessas prerrogativas foram deixadas de lado, dando lugar a uma série de normas mutiladas e, por isso, tirânicas. Aspectos processuais da legislação islâmica tradicional também não costumam ser respeitados. A condenação pelo crime de adultério, por exemplo, exigiria o testemunho de quatro homens que tivessem testemunhado ao vivo o ato da penetração; tal circunstância, no entanto, é de muito difícil consecução. Dessa maneira, as condenações por relacionamentos extraconjugais têm, sistematicamente, prescindido dessa determinação, de modo a facilitar a penalização (NMEHIELLE, 2004). Além disso, o islamismo está calcado na defesa do princípio da igualdade. Ora, em diversos momentos membros dos altos escalões do governo nigeriano foram perdoados por seus crimes, ainda que fosse amplamente reconhecido o cometimento dos mesmos, devido ao fato de serem apoiados pelo governador do estado, em óbvio desacordo com o que a legislação muçulmana prescreveria (BADAR, 2011). Percebe-se, portanto, que a Sharia implementada na Nigéria é uma forma mutilada da mesma, que desconsidera vários dos avanços obtidos ao longo dos 14 séculos de desenvolvimento do direito islâmico. Diversos dos princípios básicos adotados pelo sistema, especialmente os de matéria processual, não são considerados, tornando a Sharia do norte nigeriano não mais do que uma pálida caricatura daquilo que ela deveria ser. Diversos dos dispositivos da lei islâmica são, dessa forma, claramente compatíveis com o direito internacional, permitindo o avanço dos direitos humanos, caso haja um efetivo esforço de compatibilização dos preceitos da Sharia com as garantias fundamentais. Ressaltar as máximas de igualdade entre os indivíduos; preferencial resolução pacífica das controvérsias; e imperativo da busca da justiça; é uma maneira de aproximar os países islâmicos em geral do cumprimento dos Direitos Humanos (POWELL, 2013). O Islã não é o empecilho, mas sim algumas deturpações e apropriações incompletas dele. 3- O tratamento dos Direitos Humanos na Nigéria A implementação da Sharia em toda a legislação dos estados de maioria islâmica do norte tem levado a um aprofundamento da intolerância religiosa, sobretudo contra cristãos. A despeito de diversos teóricos defenderem que a instauração da lei muçulmana seria uma forma de resistência das tradições nacionais contra a opressão internacionalista, a apropriação da divisão cristãos vs. muçulmanos como uma reedição do conflito entre, 458 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. respectivamente, colonizadores e colonizados, tem gerado graves embates entre estes dois grupos religiosos majoritários. Tal estado de coisas se revela quando se percebe, por exemplo, que em escolas muçulmanas todos são obrigados a portar vestes islâmicas, inclusive os cristãos. Nas escolas cristãs também se é obrigado a oferecer instrução muçulmana, sendo que não há contrapartida na forma de obrigatoriedade da oferta de ensino cristão em escolas islâmicas. Ademais, a proibição de consumo (e produção) do álcool e da exploração de jogos de azar prejudicou não-muçulmanos que exploravam essas atividades (BOLAJI, 2013). A diferença de estatuto entre as diversas religiões vai além: a Sharia criminaliza a apostasia, ou seja, a conversão de um muçulmano a qualquer outra denominação. Como consequência, a ação de missionários cristãos sobre os islâmicos torna-se uma falta legal. Contudo, a constituição nigeriana, em seu artigo 38, estabelece que: (1) Toda pessoa deve ter a titularidade do direito de pensamento, consciência e religião, incluindo-se a liberdade de mudar sua religião ou crença, e a liberdade (tanto sozinho como em comunidade, em público ou no privado) de manifestar e propagar sua crença na adoração, ensino, prática e observância. (NIGÉRIA, 1999, tradução nossa4). Mas não se observa apenas desigualdade religiosa, mas também de gênero e de classe. Enquanto que mãos de pobres são cortadas como punição a roubos, membros da elite que subtraíram milhões de dólares do erário não foram sancionados. Além disso, algumas exigências processuais da lei muçulmana causam tratamento diferenciado par homens e mulheres. Há o relato de um caso em que se acusou um casal de cometer adultério; a mulher foi condenada a sofrer 80 chibatadas, ao passo que o homem, por não contar com o número mínimo de quatro testemunhas masculinas que afirmassem tê-lo visto fazer sexo com a mulher, foi absolvido (ELAIGU e GALADIMA, 2003). Ademais, o grupo radical Boko Haram tem promovido uma série de atentados ao longo dos últimos anos, propondo-se a lutar contra uma suposta tentativa de ocidentalização da Nigéria, sendo talvez a mais visível face da violência inter-religiosa no país. Para evitar o decréscimo dos valores islâmicos no sistema de educação, chegouse promover, no segundo semestre de 2013, um massacre contra uma universidade nigeriana, vitimando fatalmente cerca de 50 estudantes, já que se considera que as 4 Texto original: “(1) Every person shall be entitled to freedom of thought, conscience and religion, including freedom to change his religion or belief, and freedom (either alone or in community with others, and in public or in private) to manifest and propagate his religion or belief in worship, teaching, practice and observance”. 459 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo universidades são o maior símbolo da educação ocidental (ESTADO DE SÃO PAULO, 2013). As estimativas sobre as mortes provocadas por aquele grupo atingem a marca de 3000 apenas entre 2010 e 2012 (BOLATITO, 2013), com as técnicas terroristas abrangendo desde a queima de igrejas até a utilização de homens bomba. Entretanto, a ação do Boko Haram tem um fundo político de oposição ao atual regime que é tão ou mais forte que sua faceta religiosa, sendo esta, também, uma forma de se legitimar perante determinados segmentos da população. Cumpre ainda acrescentar que a enorme dificuldade para a efetivação dos direitos fundamentais está estreitamente ligada à questão do aceso à justiça (OKOGBULE, 2005). Para além dos vários problemas decorrentes das precárias condições socioeconômicas da população nigeriana, somam-se outros, de ordem técnica, sobretudo processual. Por exemplo, alguns tribunais nigerianos cobram, quando da proposição da ação, uma taxa proporcional aos valores pedidos pelo requerente a título de indenização; assim, para as fragilizadas populações do Delta do Rio Níger, torna-se de extrema dificuldade a entrada com um processo que intente solicitar ressarcimento pelos danos ambientais provocados pela exploração de petróleo. Discussões tecnicistas sobre a forma mais correta para a entrada de ações que se proponham a efetivar Direitos Humanos, decorrentes de legislação ambígua, também contribuem para a constituição do preocupante quadro o qual podemos divisar. Advogados inescrupulosos, os quais cobram taxas abusivas, “criaram um método para cobrar não apenas seus honorários profissionais, mas também uma taxa de transporte cada vez que se apresentam ao tribunal” (OKOGBULE, 2005, p. 107), fato esse que, aliado à infindável duração dos processos, exclui ainda mais a população do poder judiciário. Tal quadro contribui para a geração de um distanciamento do Estado com relação aos indivíduos, impedindo que os cidadãos confiem na justiça e possam propor ações. Há quem aponte que essa evidência da ineficiência do sistema judiciário comum foi um dos fatores (embora talvez não o mais importante) que estimulou a população dos estados do norte a apoiar a adoção da lei islâmica também na esfera penal (NMEHIELLE, 2004). Ademais, é mister dizer que a construção dos direitos humanos, historicamente datada, não se adéqua completamente à realidade nigeriana: não há sentido em se falar em liberdade de expressão para uma população analfabeta. A isso se soma a forma pela qual a justiça nigeriana interpreta a incorporação de tratados internacionais no Ordenamento Jurídico nacional, ou seja, considerando que os mesmos têm apenas valor para orientar a elaboração das normas, contribuindo mais ainda para distanciar do que para aproximar os 460 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. direitos humanos da realidade da população, já que a carta magna local assegura apenas direitos civis e políticos. Isso fiou bastante evidente na integração da Carta Africana dos Direitos Humanos e das Pessoas: Ainda que se possa dizer que a Carta Africana, em geral, suplemente e não derrogue a Constituição, existem certos direitos que são obrigatórios pela carta africana, mas que são explicitamente identificáveis na Constituição como opcionais. Por exemplo, o artigo 17(1) da Carta Africana diz: “Todo indivíduo deve ter o direito à educação”. Esse direito não está contido na seção de direitos humanos fundamentais da Constituição. (EGEDE, 2007, p. 8. Tradução nossa)5. Portanto, não se pode prescindir de uma efetivação de direitos sociais, de modo que o discurso dos direitos humanos se adéque a estas especificidades da população nativa. Caso contrário, se tornarão mais distantes ainda da realidade da população, alijada da justiça não apenas por tribunais ineficientes, mas também por um direito que é mero transplante discursivo de práticas ocidentais com pretensão de universalidade, e não construção preocupada com a realidade fática da população que se propõe a regular. Cabe ressaltar ainda que certas determinações dos tratados internacionais de direitos humanos dificultam sobremaneira a sua implementação efetiva na Nigéria, por serem aplicados irrefletidamente pelos administradores da justiça nigeriana. Assim, a proibição absoluta de certos tipos de castigo físico a crianças, instituída pelos administradores do sistema nacional de educação, é uma afronta a um conjunto de concepções culturais nigerianas, as quais consideram que castigos físicos moderados são fundamentais para a formação de bons cidadãos (EGEDE, 2007). A preferência pela interpretação literal das determinações do tratado, sem a devida aclimatação ao contexto cultural nigeriano, impossibilita a efetivação dos instrumentos normativos internacionais daquele país, contribuindo apenas par a instauração de uma visão dos Direitos Humanos e dos tratados como meras imposições externas inaplicáveis. O mesmo se dá com proibição do casamento de meninas abaixo da idade de 18, sendo que a definição desta época se deu em uma discussão ocidental que levou em conta os padrões de desenvolvimento humano do oeste, criando uma obrigação arbitrária e meramente ficcional, a qual não será, nas condições atuais, jamais aplicável pelo ausente Estado nigeriano. Da forma como estão estruturados atualmente, os direitos humanos com os 5 Texto original: “While it may be said that the African Charter generally supplements and does not necessarily derogate from the constitution, there are certain rights under the African Charter which are enforceable but are expressly identified by the constitution as unenforceable. For instance, article 17(1) of the African Charter says, ‘every individual shall have the right to education’. This right is not contained in the fundamental human rights provision of the constitution”. 461 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo quais a Nigéria se defronta se aproximam mais de um presente idealizado do ocidente messiânico (SUPIOT, 2007) do que de uma produção autóctone e verdadeiramente aplicável ao contexto nacional. A nação dividida: federalismos na Nigéria Durante e logo após a colonização inglesa, a convivência entre Islamismo e Cristianismo na Nigéria foi relativamente pacífica, com acordos entre a colonização britânica garantindo autonomia religiosa e, em certo grau, política, aos emires do norte, em troca da possibilidade de introdução de missionários cristãos. Os conflitos que ocorreriam tinham, no máximo, um pano de fundo religioso, mas eram mais relacionados às disputas étnicas ou de caráter político partidário. O conflito entre cristãos e muçulmanos emergiu verdadeiramente só no fim da década de 70, quando da segunda assembleia constituinte, na qual muçulmanos tentaram a criação de uma corte federal para a aplicação da Sharia como direito pessoal para muçulmanos, nas questões de direito de família, das sucessões, e alguns outros casos pontuais. Tal fato decorre da já tratada função do direito pessoal na constituição da identidade islâmica, a qual esbarrou na defesa por parte da minoria cristã de um Estado neutro nas questões religiosas, convicção assentada desde o início do colonialismo, e calcada na máxima cristã de que o reino de Jesus Cristo “não é desse mundo”. Após uma série de acordos, o estatuto da Sharia foi conformado para uma situação praticamente idêntica à atual dentro do sistema judiciário. Diante destes conflitos, associada à grande diversidade étnica do país, que comporta mais de 400 línguas, que foi gestado o federalismo como forma de organização do Estado nigeriano (ELAIGU e GALADIMA, 2003); gerando uma certa tranquilidade, já que foi facultado a cada estado articular em seu interior um sistema para a aplicação do direito pessoal islâmico, tal qual previsto na constituição de 1999. Entretano, a partir de 1985, com entrada repentina da Nigéria na Organização da Conferência Islâmica (OIC), os conflitos se acirraram. Cristãos acreditavam que tal atitude configurava uma afronta aos seus direitos, enquanto que muçulmanos rebatiam afirmando que, como contrapartida, o país já mantinha uma embaixada no Vaticano adotava o calendário cristão, dentre outras concessões. Ademais, o Estado Muçulmano, além de meramente secular, tem como dever constitucional o de fomentar a diversidade 462 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. religiosa e o desenvolvimento autônomo dessas entidades, o que, no caso do Islamismo, exigiria a adesão nigeriana à OIC. Tais tensões permaneceram camufladas, uma vez que de 1983 a 1998, a nação atravessou um período de ditadura militar. Entretanto, com o fim do governo autoritário e a subsequente instalação de uma Assembleia Constituinte, os conflitos voltaram a aflorar. Já em 1999, como referido no início deste artigo, foi, pela primeira vez, estendido à esfera criminal o âmbito de aplicação da Sharia. Tal fato ensejaria o combate entre duas concepções de organização do estado: o que chamamos aqui de “federalismo conjuntivo” e um “federalismo disjuntivo”6. A declaração da constitucionalidade da adoção da lei muçulmana em outras esferas que não o direito pessoal foi a expressão da primeira concepção: a de uma forma de Estado que conferisse a cada unidade federada, a despeito da integração a uma comunidade política comum, a prerrogativa de estatuir de maneira independente leis islâmicas nas regiões de maioria muçulmana. Dessa maneira, a federação passa a ser entendida como uma forma de, preservando a segurança garantida pela unidade política, resguardar um distanciamento relativamente grande no que tange as regras de comportamento entre os diferentes estados federados, em todas as esferas. Dessa forma, torna-se compreensível o desdém com que os Direitos Humanos são tratados: eles só podem ser pensados na medida em que se estabelece que todos os seres humanos, a despeito de suas flagrantes diferenças físicas, partilham de uma natureza fundamental comum, o que lhes permite ter um determinado nível de garantias invioláveis. Um determinado grau de universalismo, indispensável à aplicação de garantias a todos os seres humanos, é negado pelo “federalismo disjuntivo”, portanto. Algo que gerou diversos conflitos não só judiciários com o governo federal, mas problemas, inclusive, de ordem técnica, uma vez que, por exemplo, a polícia é subordinadas à união, mas, pelo menos de acordo com as novas legislações, deveriam passar a cumprir um código penal estadual e desacordo com algumas determinações das esfera superiores (ELAIGU e GALADIMA, 2003; NMEHIELLE, 2004). 6 Enfatizamos que tal distinção não pretende ter valor teórico, em especial no âmbito das ciências política e jurídica; trata-se apenas de uma classificação de valor antropológico, indicando o que os grupos nigerianos entendiam (ou entendem) por federalismo, e não tem uma pretensa dimensão filosófica, sobre a definição mais correta do que seja o federalismo. Daí termos optado por não discutir mais aprofundadamente este conceito, o que nos levaria, inevitavelmente, a discussões de ordem jurídica e política que remeteriam a problemas ocidentais muitas vezes distantes das questões que na Nigéria se colocam. 463 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo Ora, se o federalismo torna-se instrumento para a instituição de uma lei diferenciadora, que é obrigatória para aqueles que se encontram no interior da jurisdição islâmica, mesmo que não partilhem das crenças de Maomé, além de se gerar um grupo essencialmente privilegiado, posto que em conformidade com as regras superiores, o princípio da igualdade é completamente obliterado. A criação de justiças especificamente islâmicas é uma mostra adicional dessa hipótese, uma vez que ela não constitui meramente uma instância aplicadora de um conjunto de regras diferentes; e sim a legitimadora de um conjunto de ordenamento superiores: se muçulmanos têm acesso às duas justiças, e cristãos somente a uma, mas a lei muçulmana obriga a ambos, torna-se claro que as regras de Maomé são vistas como, em um certo sentido, superiores, bem como aqueles que as seguem. Insurgindo-se contra tais práticas, os cristãos do sul chegaram a defender a instituição de uma confederação, a qual preservasse os seus interesses, o que geraria uma forma de organização política ainda mais distanciada da unidade. Percebendo o risco, e colocando-se como defensor da organização original do que aqui chamamos de “federalismo conjuntivo”, o governo central tentou acalmar os ânimos; entretanto, após a definição, por parte da suprema corte, da constitucionalidade da doção do direito muçulmano, a administração central deixou de oferecer resistência mais acirrada à implementação completa da Sharia. O “federalismo conjuntivo” seria a renúncia a uma maior independência dos estados em prol da garantia de regras comuns, instituídas pela união, possibilitando a construção mais efetiva de uma convivência harmônica. Cabe ressaltar, contudo, que tais fatos ocorreram durante o governo de um presidente cristão, mas que fora eleito, sobretudo, por sua ampla votação no norte muçulmano, e que, a despeito estas credenciais ecumênicas, foi acusado de deixar de lado aqueles que o haviam colocado no poder. Assim, a separação entre um governante cristão e uma população islâmica foi um dos possíveis gatilhos da expansão da Sharia (ELAIGU e GALADIMA, 2003). Tal processo colocou em causa a supremacia da constituição nigeriana, e, por consequência, a possibilidade da manutenção de um Estado Democrático de Direito capaz de se superpor aos interesses regionais. Contestou-se a adoção da Sharia com base sobretudo, no décimo artigo da carta magna, o qual reza que “o governo da Federação ou o de um estado não deve adotar nenhuma religião como religião estatal” (NIGÉRIA, 1999, p. 7), de modo que a implementação da lei islâmica no norte seria um rompimento da superioridade da constituição e dos princípios básicos do pacto federativo. Argumenta464 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. se que os estados adotaram uma religião como oficial, em flagrante contraste com aquilo determinado pela Constituição federal e com a própria orientação geral do governo. Esta situação evidencia-se por uma série de fatos, sendo o mais claro a adoção de um “Ministério de Assuntos Religiosos” em alguns dos estados nortistas (NMEHIELLE, 2004). Essa desvalorização da constituição pode ser equiparada à daquilo que ela representa, ou seja, a própria unidade, o poder da federação. Esta situação surge, em grande medida, em decorrência do grande distanciamento entre o poder Estatal, encarnado pela união, e a sociedade civil, a qual se vê mais refletida nos valores religiosos encampados pelos estados. Tal situação, a qual favorece o “federalismo disjuntivo”, encontra ecos não apenas na atuação material do governo, mas também em normas, ou seja, em abstrações que versam sobre os modos de funcionamento da administração pública, que estimulam a competição ente o poder central e as unidades da federação. Isso se expressa no fato de que algumas matérias são de competência legislativa compartilhada: tanto a casa dos representantes em Abudja quanto as dos estados podem tratar delas, como é o caso do direito penal, foco da controvérsia sobre a Sharia. Essa configuração da distribuição jurídica do poder fomenta (ou pelo menos abre ume brecha para que haja) uma competição entre os vários níveis de poder estatais, favorecendo a separação primeiro entre os diferentes estados, mas também de cada um deles com relação ao todo. Outra mostra da competição, em lugar de colaboração, existente entre os elementos da federação nigeriana é o tratamento do sistema de saúde. Naquele país africano, há a classificação dos problemas médicos em de nível primário, secundário e terciário, em ordem crescente de complexidade e de gravidade. Ao governo central, cabe, prioritária mas não exclusivamente, tratar das questões mais difíceis, sendo as secundárias mais diretamente relacionadas aos estados, e as mais simples, terciárias, de competência dos municípios (ASUZU, 2004). Contudo, como costuma render mais dividendos políticos tratar dos problemas terciários, cujos equipamentos são mais caros, os estados acabam investindo mais do que o que deveriam nesta área, relegando as questões de atenção básica ao segundo plano. E a maior prejudicada é a população em situação de fragilidade, já que seus problemas, teoricamente de resolução mais simples, são esquecidos. 465 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo Entre a liberdade religiosa e o respeito à pluralidade: Considerações Finais A Nigéria, uma nação que passou por um recente processo de colonização e que teve de enfrentar conflitos devido à enorme diversidade étnica presente no interior de suas fronteiras, viu crescer nos últimos anos os conflitos de ordem religiosa. A despeito de a constituição de 1999, surgida no processo de transição do regime militar findado em 1998, garantir o secularismo do poder público, alguns entes federados optaram por adotar a lei muçulmana como integrante do código penal. Estes fatos levaram a um acirramento dos confrontos entre o sul predominantemente cristão e o norte de maioria muçulmano, causando graves prejuízos para o cumprimento dos direitos humanos, somando-se à fragilidade econômica difundida na África e da qual a Nigéria, infelizmente, não escapa. Contudo, como pudemos perceber, a solução para tais impasses não se encontra externamente, mas pode ser atingida mediante o estímulo a mecanismos e forças internas à própria Nigéria. As garantias constitucionais, a adesão a tratados internacionais e alguns dos princípios da própria Sharia podem cumprir essa tarefa. O grande empecilho para a realização desse objetivo é o sectarismo, o qual impõe uma não-identificação entre os cidadãos7, a qual seria fundamental para a instituição de garantias aplicáveis à totalidade da população. Superar este obstáculo implica atacar os dois maiores problemas que levaram a situação nigeriana a chegar ao ponto em que se encontram: o “federalismo disjuntivo”, cujo corolário é a supressão na prática da supremacia da constituição; e a não identificação dos cidadãos com o estado. Estes problemas são profundos, e, em última instância, suas raízes históricas e sociais reverberam por toda a vida nigeriana. Abaixo, à guisa de conclusão, trataremos de esmiuçar mais profundamente estas duas questões e apontar algumas possíveis soluções. O “federalismo disjuntivo” esta umbilicalmente ligado ao distanciamento do estado na vida das pessoas: com os péssimos índices de saúde e de educação (o analfabetismo bate na casa dos 40% [CIA, 2013]), demonstrando a ineficiência do governo federal, torna-se compreensível que os nigerianos não confiem na administração central. Os grupos locais, por serem mais enraizados, sobretudo na tradição, adquirem mais força, e apoiam a ampliação da influência da religião. Esta tem mais espaço para se efetivar no âmbito dos governos estaduais, especialmente por que é entre estes que fica 7 E que se reflete na cisão entre os estados federados, bem como nos atentados perpetrados por grupos fundamentalistas. 466 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. mais patente a cisão entre muçulmanos e cristãos, já que a maioria dos entes federados possui quase sempre um grupo religioso com ampla hegemonia, de modo que as tensões, pelo menos no âmbito político-administrativo, são deslocadas para a esfera estadual. Juntando-se a gigantesca diversidade étnica da Nigéria ao quadro, fica mais clara a impossibilidade de que haja a supremacia da constituição, que é (ou deveria ser) a garantidora dos direitos humanos e ser uma ferramenta simbólica forte para a construção da unidade e de compromisso com a convivência pacífica. A reaproximação com os cidadãos passará, necessariamente, pelo incremento da qualidade dos serviços públicos, aumentando a confiança em um governo central8. Contudo, não se poderá gerar essa aproximação construindo-se um Estado divorciado da história cultural nigeriana. Ou seja, não se pode prescindir da contribuição da religião, sob pena de se impedir que os cidadãos se identifiquem com os princípios básicos norteadores da administração pública, o que apontamos como o segundo problema básico da implementação dos direitos humanos na Nigéria. Tentar trilhar o caminho do estreitamento da relação entre governo e sociedade civil significa, mais diretamente, uma aliança com o islamismo. Como já foi dito, o islã está alicerçado em uma indissociabilidade fundamental entre as esferas do público e do privado, o que implica que o muçulmanismo deve ter espaços (controlados, evidentemente) de expressão de sua fé no âmbito público. Assim, para a garantia da união entre governantes e governados, não se pode deixar de lado, por exemplo, a aplicação da Sharia no direito de família e no das sucessões para os muçulmanos, salvaguardo, claro, um tratamento diferenciado para os casos que envolvam praticantes de outras religiões. Nesse processo, a presença de uma justiça especial para a aplicação do direito muçulmano é de suma importância: ela permite enxergar, claramente, a presença de princípios obviamente nigerianos (dito de outra forma, de matriz islâmica) no funcionamento constitutivo do Estado. Uma cisão restrita no direito é uma concessão a qual permite que práticas específicas sejam preservadas, de modo a abrir espaço para que, com base na identificação com o Estado, os cidadãos reconheçam neste um agente legítimo de intervenção na coletividade. 8 Ou seja, a imprescindível ajuda internacional deve ter em mente que suas ações devem buscar, na máxima medida do possível, uma aliança com o Estado. Caso contrário, permanecerá imensa a desconfiança para com o governo. Essa conjunção de forças é mais fácil na Nigéria do que em outros países africanos por causa da ausência de uma ditadura; contudo, ainda há de se enfrentar diversos outros problemas, como a violência, a falta de recursos, a conhecida corrupção do governo, dentre outros, já exaustivamente tratados em outros trabalhos. 467 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo Além disso, faz-se necessário explorar as disposições do direito islâmico que promovem a convivência pacífica, as quais vêm sendo ignoradas na implementação da Sharia na Nigéria, como mostramos acima. Não é possível simplesmente transplantar os institutos do direito ocidental, e muito menos esperar que os nigerianos constituam uma forma nova de normatividade: esta já existe, e é a Sharia. Não é possível ignorar que ela se constitui como o terceiro maior sistema jurídico do mundo moderno, após o civil law e o common law (BADAR, 2011), sendo, portanto, depositário de uma tradição cultural e de uma série de reflexões que vem de longa data. Assim, a exploração dos princípios de igualdade, “reserva legal”, busca pela justiça, primazia da lei, e outros, pertencentes ao próprio sistema islâmico de direito, cuja aplicação está atrelada a mecanismos específicos, deve ser explorada. Nesse sentido, a presença de juízes versados em direito muçulmano em cortes pode ser um fator positivo, já que, pelo fato de estes deverem ser apontados pelo governo (NIGÉRIA, 1999), é possível prezar pela escolha daqueles com formação humanística mais sólida. Balanceando-se o quantidade de juízes islâmicos e comuns, pendendo-se mais para esses, pode ser uma ferramenta importante para garantir a aplicação de uma normatividade comum que incorpore as especificidades do islamismo, sem deixar de lado os outros grupos. Entretanto, propugnar pela legitimação do Estado perante os muçulmanos através da recorrência ao direito da tradição islâmica só fará sentido se o governo também for capaz de se legitimar perante os não-muçulmanos. E isso só é possível na medida em que seja construída uma esfera correspondente à da Sharia de prática ampla das outras religiões, o que, no caso do cristianismo, por exemplo, pode se dar com a liberdade de realização do proselitismo. Também devem ser garantidas as práticas das religiões tradicionais, assegurados os locais de culto e a realização de suas cerimônias; e também o direito de não se praticar religião alguma. É interessante a proposta de Lanre Bolatito (2013, p. 141), de criação de conselhos compostos por membros dos diferentes grupos religiosos, de modo a construir políticas comuns as quais, respeitando os direitos humanos, garantam a liberdade religiosa. Com o reconhecimento do Estado como um ator capaz, que incorpora as contribuições religiosas sem se engolfado por elas, será possível, então, a imposição de um espaço comum de convivência entre os diferentes grupos, permitindo, portanto, uma mitigação dos conflitos. É possível que se tenha percebido que a visão anteriormente apresentada se distancia, em certa medida, com a construção ocidental da separação entre direito e religião. Nós, ocidentais, reconhecemos que a religião pertence à esfera do privado, 468 | A l e t h e s Alethes: Per. Cien. Est. Dir. UFJF, n. 4, v. 6, pp. 453-471, jul./dez., 2014. devendo ser distanciada do público (POWELL, 2011; RAMOS, 2010); também em função de uma visão cristã que sempre procurou colocar uma clara linha demarcando o âmbito do secular e do religioso, ainda que esta fronteira se turvasse em determinadas épocas. Entretanto, em um país com a Nigéria, com uma história cultural bastante diferente da nossa, tal visão deve ser, no mínimo repensada. E, diante do que apresentamos neste trabalho, torna-se legítimo crer que o importância da religião como elemento na constituição da solidariedade coletiva dos nigerianos e, no caso dos muçulmanos, instrumento de legitimação normativa em determinados âmbitos do direito, faz dela um elemento que deve sim ser incorporado na construção do Estado nacional. Afinal, nem todos os povos necessitam adotar as mesmas opções culturais preferidas por nós ocidentais. Contudo, não estamos aqui advogando por uma completa união entre “igreja” e Estado na Nigéria. O que se está afirmando é que a convivência entre os diferentes grupos culturais implica aceitar seus pressupostos comportamentais na medida em que não impeçam a convivência. E, nesse sentido, é imprescindível que, fora de determinadas esferas mínimas, a religião possa ser mesclada àquilo que, no ocidente, é tarefa exclusivamente pública e temporal, como o caso do direito das sucessões. Com isso, se garantiria o direito à liberdade de crença religiosa, o qual implica não só a possibilidade de acreditar em uma certa metafísica, mas também de orientar a maior parte de suas práticas quotidianas por aquelas convicções. Não há, dessa forma, pretensão de que a tolerância signifique conivência com todas as práticas consideradas abusivas perpetradas por grupos fanáticos. O que é relevante é que haja uma reapropriação de pressupostos de uma razão universal, umbilicalmente ligados ao desenvolvimento do cristianismo e que depois, em certa medida, seriam reincorporados pelo islamismo (ALVES, 2007), os quais permitem a construção das bases para um debate. Este pode se dar (e é importante que se dê) tanto no âmbito secular como no religioso. Como exemplo dos primeiros, temos a implementação dos direitos humanos por vias estritamente constitucionais, e outras de caráter puramente normativo. Já na esfera de atuação do segundo, podemos falar na legitimação de certas práticas, como o direito das mulheres de dirigir, ou a proibição da poliginia, com base em interpretações do Corão. Isso permite a legitimação do discurso religioso como mais um considerável na constituição dos valores públicos, ao lado da ciência, da filosofia e das ideologias políticas, balizado, como todos os outros, pelo princípio da harmônica conivência mútua. 469 | A l e t h e s COSTA, A. B. A. Sharia, Federalismo Ou seja, a religião é contribuinte, mas não legitimadora, da ação pública. Assim será possibilitada a necessária identificação dos cidadãos com o Estado, mas estará salvaguardado o respeito às diferenças e às minorias. Essa perspectiva, inovadora tanto com relação à absoluta cisão entre direito e religião própria das sociedades ocidentais modernas, bem como da visão à ela anterior, de união entre os dois termos, seria capaz de unir o direito à diferença e o à identidade. Referências Bibliográficas ALVES, José Augusto Lindgren. O Papa, o Islã e o politicamente correto. Lua Nova, São Paulo, n. 70, v. 1, p. 13-38, 2007. ASUZU, M. The necessity of a health systems reform in Nigeria. Journal of community medicine and primary health care, v. 16, n. 1, p. 1-3, 2004. BADAR, Mohammed. Islamic Law (Shari'a) and the Jurisdiction of the International Criminal Court. Leiden Journal of International Law, Oxford, v. 24, n.1, p 411-433, Jun. 2011. BOLAJI, Mohammed. 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Sharia, Federalismo 472 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques 473 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques 474 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques Entrevista Daniela de Freitas Marques é graduada (1995), mestre (1998) e doutora (2005) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, trabalhando na área do Direito Penal. É juíza de direito da Justiça Militar de Minas Gerais, e professora da FDUFMG. Também já foi vice-presidente do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, além de direitora da Revista da Faculdade de Direito da UFMG. No dia 9 de novembro, Daniela recebeu gentilmente a Alethes, representada pelo nosso editor Arthur Barretto, para uma entrevista no prédio da justiça militar de Minas Gerais. Uma profunda conversa sobre temas como o papel da Polícia, Direito e Literatura, o papel do professor e outros, que agora publicamos, acreditando que ela pode acrescentar em muito ao público da nossa revista você virtudes. E o direito é um amálgama de trabalha muito com a área Direito e vida, é um conhecimento antes de tudo Literatura. a cultural. E o direito cuida de problemas literatura e outros tipos de arte podem humanos: da relação do homem com ele contribuir com o Direito? mesmo, do homem com o outro, do Alethes: Professora, Para você, como homem em sociedade. Há um conceito Daniela: A literatura sempre foi do Dante Alighieri sobre direito no livro uma grande paixão da minha vida. Na A Monarquia: ele fala que o direito é a verdade, desde que eu me entendo por proporção real e pessoal de homem para gente, os livros ocupam um papel homem que, conservada, conserva a fundamental minha formação: um sociedade, na amor à biblioteca e um O Direito é um amálgama de vida, é um conhecimento antes de tudo culural amor aos livros. corrompida, a corrompe. E quando ele fala de A literatura cuida dos grandes e uma proporção real e pessoal, isso, no fundo, grandes é um conhecimento literário: qualquer questões: das dores, dos sofrimentos, das obra de arte, qualquer obra literária, falhas humanas, das misérias, das qualquer texto (e não só o texto literário, problemas humanos, das 475 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques porque uma pintura também é um texto, vícios, todo o deboche, toda a perversão assim como uma escutura) revela as de uma cultura que, para o europeu, era paixões humanas. Se eu olhar, por decadente. Isso revela concepções de exemplo, uma escultura como a do mundo, entre o nosso direito que tem Moisés, do Michelangelo: tem toda a uma herança europeia, ocidentalizada; e força dos 10 mandamentos caindo por como ele é lido e relido nas Américas. terra, a raiva que o Moisés talvez teve Porque nós trabalhamos com quando viu o povo cultuando um outro vários níveis de literatura, e cada livro deus. Isso, no fundo, é uma questão de discute um mundo, e o direito cuida do interdito, de obediência. mundo. Na verdade, a literatura nos Quando se lê um grande livro permite ver o direito de uma forma como - hoje, por exemplo, eu falei com poética, repleta de paixão, repleta de os meus alunos de Processo e Literatura vida. A literatura tem um grande dom: o sobre – Jane Eyre. No fundo, essa é uma condão de nos tornar mais humildes e história de amor, de orgulho: é uma compassivos. Muitas vezes, nós vivemos história de uma mulher que não está vidas que jamais imaginaríamos que condenada ao casamento, pois ela tem a iríamos viver se não fosse pela literatura: força para resistir a uma situação eu consigo compreender a dor de uma ilegítima: ser amante de um homem mulher abandonada que talvez seja a casado, que queria contrair um novo motivadora de uma conduta criminosa casamento com ela sem ela saber da situação do bígamo. Mas é uma história de força, Na verdade, a Literatura nos permite ver o direito de uma forma poética, repleta de paixão, repleta de vida terrível, como o caso da Fera da Penha, um crime acontecido em 30 de julho de 1960, em que a mulher, de coragem; mas também é uma história de amante de um homem casado, resolve se preconceito, de comparação entre duas vingar dele matando a filha dele de 4 culturas: a europeia, que se viu como a anos de idade com um tiro na cabeça e fina flor da civilização, e a cultura das queimando parcialmente o corpo com Américas, representada pela primeira álcool, no matadouro da Penha, no Rio mulher do Mister Rochester, a Maison, de Janeiro. Ficou conhecida com a que era uma crioula (uma nativa da “Besta América). Ela representa talvez todos os “Frankenstein de Saias”. Esse drama Fera”, “Fera da Penha”, 476 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques humano, esse crime é quase que um Mito ter nessa vida o prazer de ler um Dom de Medeia traduzido. Quase que aquela Quixote”. visão da mulher que perdeu a O Dom Quixote talvez possa ser possibilidade de se salvar por um lido de várias formas; esse símbolo do casamento porque aquele homem em homem que sonha, que, na verdade, é quem ela confiava e acreditava a mais que um herói, porque uma pessoa abandonou: uma vingança feita pela que ousa viver uma vida verdadeira, mulher ao homem que ousou abandoná- quando la, mas não feita no corpo e na pele dele, hipócritas, quase que com uma cobertura mas no espírito, porque ele sempre se farisaica. Eu acho que o sonho é lembraria da morte dada à sua filha. Isso fundamental para o direito; o direito não é literatura! é compreendido sem esse componente nós somos muitas vezes onírico que, no fundo, é o componente da Al: O símbolo da nossa revista, imaginação. E na verdade, boa parte dos a Alethes, é o Dom Quixote. A gente o grandes casos de direito, das grandes escolheu por representar a ideia de histórias de direito tiveram um grão de utopia e de sonho. Para você, qual é o sonho e um grão de ousadia. O caso so papel do sentimento e do sonho na Sobral Pinto, que eu já contei, quando ele produção da ciência? defende o Harry Berger com a legislação de proteção aos animais; um outro caso Da: Eu acho fundamental. Eu do Sobral Pinto, quando eles impetram amo profundamente o Dom Quixote. Ele um Habeas Corpus, que era o antigo é um dos maiores livros já escritos. Uma Habeas Corpus de localização, apesar da vez, eu vi um documentário sobre grandes livros, e havia um professor, um intelectual bem velhinho Boa parte dos grandes casos de Direito tiveram um grão de sonho e um grão de ousadia que proibição da impretração de Habeas Corpus no caso de crimes contra a segurança perguntava para os jovens: vocês já nacional e atos de subverção, imposta leram Dom Quixote? E quando o jovem, pelo Ato Institucional n. 5. Esse tipo de a pessoa respondia para ele: “não, não li defesa só foi possível pelo grão de ainda não”: “Que bom! Vocês ainda vão imaginação e ousadia. Eu acho que é fundamental o sonho, até porque a vida é 477 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques sonho. O Calderón de La Barca fala isso: cada vez mais presente e os espetáculos a vida é sonho. Nós não podemos seguir tomam o lugar da essência das pessoas, uma vida real se não vivermos uma vida queremos tudo muito fácil. Com a lei do sonhada por alguém. menor esforço, com a menor dificuldade possível, com “pílulas de felicidade”, e pode essa não é a vida. A vida tem que ser transformar a sala de aula em um tomada até o seu âmago. A vida, no espaço mais atraente para o aluno? A fundo, é um sacrifício. Não adianta a literatura pode contribuir com isso? gente tentar afastar o cálice, nem do Al: Como a gente conhecimento nem do sofrimento da Da: Eu acho que a literatura vida. contribui, desde que ela seja uma paixão Se a literatura pode tornar mais compartilhada. O espaço de sala de aula atraente: eu acho que depende. A sala de precisa ser atraente em certa medida? Ele aula é tão heterogênea que, de repente precisa. Mas o saber, o conhecer, é algo um professor que dê uma aula baseada na árduo. Não é algo fácil. O conhecimento literatura vai ter alguns alunos que vão dói, as grandes vitórias da vida doem. seguí-lo Um grande amor é sacrificado, é doído; fantástico. as perdas da nossa vida, seja de pessoas terrível, porque ele não está dando o queridas, seja de frustrações de trabalho, direito propriamente dito, antes ele elas são doídas, elas são sacrificadas. O contasse os seus casos, trabalhasse com conhecimento, de jurisprudência, trabalhasse com a leitura conhecimento, a obtenção de cultura é da lei. Outros não querem nem saber da difícil, ela é sacrificada. Ela tem um vida, vai depender, na verdade, do seu componente muito grande de esforço, de sonho. Eu acho que o professor tem um trabalho. Então, na verdade, essa atração papel de despertar curiosidades, de tentar funciona como uma espécie de fuga da despertar o conhecimento, de indicar realidade dura do conhecer. Porque, talvez, como diz o Umberto Eco, as listas quando de conhecimento. eu a obtenção quero conhecer e que vão Outros achar vão achar aquilo algo profundamente, eu vou ter uma certa dose de sacrifício e de trabalho difícil. Al: Além de professora você é Nós, os ocidentais, em uma juíza. Como você faz para conciliar sociedade em que nos últimos anos os essas duas carreiras sem deixar a mitos se perderam, em que o consumo é 478 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques docência em segundo plano, como trabalho de sala de aula: ele tem que acaba acontecendo com muitos? estudar, que preparar as aulas, às vezes tem que descobrir um texto que casa com Da: Eu não sei (risos)! É difícil aquele tema de que ele fala, ele tem que na ter hoje alguma produção científica universidade, eu tenho a menor carga relevante, se é que se pode chamar assim: horária possível entre os professores da escrever artigos, pesquisar; e eu vejo que universidade. Pelo menos na federal ou às vezes a minha produtividade é um você é 20 horas, ou 40, ou Dedicação pouco aquém daquilo que eu gostaria que Exclusiva. Então eu seria uma professora ela fosse. Eu tento me empenhar, mas às nitidamente de sala de aula. vezes eu acho que o meu esforço não é conciliar. Eu sou 20 horas É a conciliação de paixões: suficiente. E a magistratura, bem ou mal, muitas vezes eu me divido entre a minha é a minha atividade principal. Então, eu profissão de juíza, que, para mim, é tento tratar a magistratura com o maior extremamente importante, eu amo o que cuidado possível, até porque em cada eu faço; a minha função de professora processo eu tenho a vida de uma pessoa também para decidir. E não é é extremamente importante, apesar das muitas crises que, às vezes, a Cada processo, na verdade, é um grande drama, e esse drama não pode ser tratado com descaso só a vida daquela pessoa: é a da família dela, é a da (possível) vítima. Cada processo, na gente tem, seja no magistério, seja na verdade, é um grande drama, e esse magistratura. Tem talvez aí a mesma drama não pode ser tratado com descaso. Então, de uma forma ou de outra, raíz. A conciliação para mim às vezes eu tento conciliar. É lógico que elas se é um pouco complicada, eu trabalho ajudam: às vezes, por exemplo, um caso muito, pelo menos na minha forma de aqui na justiça me ajuda em sala de aula ver. Começo a trabalhar 7:30 da manhã, num que é quando eu dou as aulas (e mesmo reflexão em sala de aula, uma pergunta qunado eu não dou as aulas, eu começo a de um aluno, alguma experiência de sala trabalhar a partir de 7:30 da manhã), e eu de aula é frutífera para aqui. E eu me encerro meu serviço 8, 9 horas da noite. sinto jovem às vezes, por lidar com a Porque o trabalho do professor não é ó o juventude, inclusive nos erros, como determinado exemplo; uma 479 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques hoje eu brinquei que vocês tinham que direito desempenhou no passado e que pensar com a própria cabeça (risos). pode vir a desempenhar no futuro. E que nunca uma decisão, nunca uma atuação Al: Qual é o papel do direito enquanto ciência e da academia na se esgota naquele momento, ela vai ter consequência para além. Então, ler, por exemplo, um livro prática forense? de um grande constitucionalista, um Da: Eu não penso muito no livro dos teóricos da justiça, um grande Direito como ciência não, a não ser que filósofo do direito como foi Kelsen, é a gente pense a ciência como algo que o fundamental para compreender não só o Menelick falava: como um saber que se momento sabe provisório. escreveram, mas também concepções de histórico em que eles Eu acho que o Direito é, antes de direito e concepções de mundo que tudo, história, cultura e política. Há no dialogam com outras que podem, direito muita política. O papel do direito, eventualmente, ser divergentes. Então do conhecimento acadêmico no campo saber, conhecer profundamente o direito profissional, seria isso? É fundamental. é fundamental. É lógico que esse A conhecimento universidade tem a obrigação de formar juristas, não de formar – expressão uma Eu não penso no Direito como ciência. Eu acho que o Direito é, antes de tudo, História, Cultura e Política aprofundado é difícil de se obter. A minha área, Direito Penal e Processo Penal, é terrível, no meu modo de ver – difícil. É difícil, por exemplo, pensar em “operadores do direito”. Essa é, na uma teoria do crime com fundamento no verdade, uma visão técnico-instrumental fato analítico: conduta típica, ilícita e da função do jurista. Nem tampouco culpável. Não, eu tenho que saber de leitores de leis, porque saber ler uma lei, onde veio o tipo, qual é a concepção de ler um código não é saber direito. O tipo, os elementos que o compõem, quem Direito tem que despertar a sensibilidade o elaborou pela primeira vez, tenho que daquilo que eu estudo para o seu tempo saber os doutrinadores: Beling, Nagler, atual, para a vida atual, para as pessoas. Metzer. Mas para ter despertada a sensibilidade, componentes da ilicitude: a ilicitude é eu tenho que saber todo o papel que o única no direito penal, ela é geral. Qual é Tenho que saber os 480 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques o papel, por exemplo, de Aldo Mouro no embrião da justiça militar da união; isso conhecimento da ilicitude. Porque esses foi em 1° de Abril de 1808. conhecimentos supostamente teóricos Porque um dos aspectos vão ter um impacto prático. E, de fundamentais da Justiça Militar é a repente, eu tenho um caso ali que se disciplina e a organização das tropas afigura difícil, e esse caso difícil me militares. Grande parte das forças ajuda a pensar ou a efetivar aquele armadas, cabedal de teoria que eu tenho dentro de civilizados, dos países desenvolvidos mim. Então eu acho que é fndamental: tem uma Justiça militar, porque no meio sem o conhecimento aprofundado do militar, a autoridade é o que guia, Direito não se tem o profissinal do baseada no princípio da hierarquia e no direito. da disciplina. No campo civil, não existe grande parte dos países essa subordinação à autoridade. Al: Qual é o papel da justiça Então, a justiça militar foi criada militar no contexto da democracia, no período de organização das tropas apóso o fim da ditadura militar de aqui no Brasil. Ela teve um papel 1964? importantíssimo; ela foi, por exemplo, a primeira a conceder liminar em habeas Da: Há um grande erro de se ligar corpus no Brasil, que depois houve uma a justiça militar ao regime militar. A decisão lá no Supremo Tribunal Federal, Justiça Militar é bem mais antiga, seja a se não me engano para assegurar a posse do Nilo Peçanha. da união, seja a dos estados. A da união foi o primeiro órgão judiciário criado no país, quando as topas do Dom João vieram para o Brasil fugindo Não sei se o conhecimento evita a repetição da história, porque, às vezes, novas roupagens escondem velhas ideias das Durante o Regime Militar, a atuação Justiça da Militar, pelos historiadores é controvertida. invasões napoleônicas, escoltados pelos Hoje os arquivos têm vindo à tona, e isso ingleses, que os truxeram até o Rio de é bom, porque nos permite ver a nossa Janeiro. Ele fundou o Conselho Supremo história. Curar as nossas feridas? Não sei Militar de Justiça de Guerra, que é o se é o papel da história. Mas pelo menos evitar que a história não se repita? Não 481 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques sei se o conhecimento evita a repetição uma justiça militar, mas se as justiças da história, porque, às vezes, novas militares ainda são necessárias ao Brasil, roupagens escondem velhas ideias. a minha opinião é que são. Não, porque Mas há controvérsias sobre o jamais foram, órgãos de exceção, mas papel da justiça militar: a verdade nunca porque a disciplina delas é diferente, são é única, a verdade é múltipla. Carlos contingentes armados, em que há ali Drummond de Andrade fala isso: a decisões sobre condutas que pertinem ao verdade está casada com uma meia- militar. Para ser clara, ele está sujeito a verdade, e juntas formaram outra meia- dois códigos: ele está sujeito ao Código verdade. E há historiadores que falam Penal comum, ele pode praticar qualquer que o papel da justiça militar da união, crime do Código Penal comum, mas ele no regime militar, foi trazer de forma está sujeito ao Código Penal Militar anômala uma espécie de discussão também, que é a chamada “lei penal de daqueles casos que não eram discutidos barretina”, na expressão do Napoleão durante o regime militar. Ela teve uma Bonaparte. ampliação de competência, vinda pelos possibilidade de dupla imputação. Isso atos institucionais; mas eu acho um não é uma exceção, nem um privilégio equívoco historiográfico vincular a concedido aos militares, no meu modo justiça militar da união ao regime militar. de ver. Então, ele tem uma Porque, se não, teria que vincular todas as justiças, inclusive o antigo Tribunal Regional Federal de Recursos. Estruturas autoritárias existem em todas Al: O que você achada questão da desmilitarização e da proposta de unificação das polícias? as instituições. Quanto à justiça militar dos Da: Eu sou contrária à estados, ela é uma criação já do século desmilitarização das polícias porque XX que cuida dos policiais militares e você só vai mudar o nome e manter, dos talvez, a mesma essência. bombeiros militares naqueles estados em que estes existem. Jamais a Eu acho que, na verdade, para justiça militar dos estados julgou civis. A quem conhece as polícias, elas hoje são justiça militar da união até hoje tem muito menos militares do que se competência para o julgamento de civis. imagina. Nós temos aí a polícia Eu penso, particularmente, que não mais comunitária, as atuações sociais, e se justifica o julgamento de civis por trabalhos importantíssimos como, por 482 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques exemplo, a ecoterapia na cavalaria. unificação, porque é um vocábulo tão Então eu não acho que seja a saída a amplo, que abrange tantas e tantas questão da desmilitarização. Eu acho que propostas, que não permite saber, na esse discurso vem recheado de divisões verdade, o que ele quer no fundo. Teria do regime militar, como uma forma de que haver a proposta em mesa para que tentar passar a limpo a história, como houvesse a discussão. uma forma de limpar a história. E a Na verdade, os dois temas são história não pode ser varrida para extremamente difíceis. Mas eu entendo debaixo do tapete. que há uma simplificação dos debates. E, A unificação das polícias é uma mais do que isso, eu acho que deveriam questão complicada, pois diz respeito ao ser ouvidas as pessoas que realmente ciclo das polícias: em quero ter uma estudam a história, que conhecem polícia com ciclo único, de prevenção e profundamente as instituições. Existem investigação, ou eu posso ter uma polícia aí historiadores das forças armadas, cindida, como atualmente acontece? historiadores das polícias militares. Qual que é o papel da unificação, é um Existem papel de diálogo? Eu vou ter um profundamente a profissão do policial inquérito um boletim de ocorrência, hojé já informatizado, é que militar, policial informatizado, que pessoas A história não pode ser varrida para debaixo do tapete civil, conhecem do do policial policial federal, no campo aí das unificações. Existem pessoas que pelo menos aqui em em Minas? O REDS vai conhecem profundamente a questão do necessáriamente à que que é o conceito militar, quais são as instauração de um inquérito? Eu não sei possibilidades militares. Então é um qual seria o papel da questão da discurso difícil, que não se exaure aí em unificação. me 5 ou 10 minutos de conversa. O que eu parecem quase que utópicas, outras me acho, na verdade, é que a questão tem parecem possíveis, no sentido de um que diálogo entre as polícias, de uma aprofundada e, inclusive, politicamente integração, como tem sido feito, ainda decidida: que tipo de país eu quero não de maneira ideal, e que ainda pode construir, quais são as demandas, o que ser melhorado. Realmente eu não sei que muito me posicionar sobre a questão da atualmente, dar Algumas margem propostas ser a menos segurança na panfletária, pública questão mais precisa da 483 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques desmilitarização. São questões confusas, violações, eventuais transgressões, complicadas, complexas. Mas fica aí a eventuais crimes. Mas elas não são a questão: eu acho que menos panfletagem instituição, elas não representam a e mais estudo, estudo com seriedade. instituição. As polícias militares são instituições seríssimas, que, muitas Al: Quais seriam possíveis vezes, têm um papel fundamental até medidas para aproximar mais a mesmo social: em pequenas cidades, às polícia da sociedade civil e evitar o tipo vezes, o que eu tenho como presença do de Estado é um destacamento ou um sub- violência policial que ainda destacamento policial. Às vezes, naquele acontece? destacament ou sub-destacamento, o Da: Tem o trabalho da chamada policial ali é a representação da polícia comunitária, Ela tem justamente autoridade. Ele lida, muitas vezes, com esse viés, esse enfoque de aproximação vários problemas. do policial com a população civil. Tem o Então, eu acho que isso parte de policiamento do bairro, a polícia tem um esforço da sociedade civil, em hoje – eu posso falar da Polícia Militar conjunto com as polícias militares, para daqui de Minas – ela tem viaturas de ter atendimento a casos de ocorrência de aproximação da polícia também é uma Maria da Penha, de violência doméstica aproximação difícil porque a polícia familiar, há reuniões com os conselhos militar atua com a função de prevenção e de comunidade para se decidir sobre a de ostentação. Se há o cometimento de questão do policiamento, da intervenção da polícia. Não se pode confundir uma questão individual, de violência, desmando, arbítrio de essa aproximação. Mas a um crime, eu vou ter Às vezes eu acho que o criminoso é o outro, geralmente, aquele em quem eu não vejo alguém igual a mim que ter a atuação da polícia, essa atuação pode não agradar aquelas pessoas que cometem Aquela algumas pessoas que se e crimes. velha encontrem nas instituições com a história do “você sabe com quem você tá instituição qualquer falando”: será que eu quero uma polícia instituição, sempre vai haver uma pessoa que atua contra todos que estão no ou outra que vai cometer eventuais momento de infração? Não sei se nós em si. Em 484 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques queremos; às vezes, por exemplo, eu não politicamente organizada, eu tenho que me vejo como um infrator: às vezes eu obedecer às regras do jogo. E, se eu tiver acho que eu posso dirigir embriagado, uma polícia realmente efetiva, ela vai ter que eu posso dirigir sem documentos, eu de atuar, pela própria propra função dela acho que eu posso cometer as mais de uso legítimo de força, contra aquelas variadas as pessoas que desrespeitaram as regras do administratiavas até as criminais, mas jogo. Eu fico pensando até que ponto que que, na verdade, o criminoso é o outro, nós, sociedade, queremos uma polícia geralmente aquele em quem eu não vejo assim também. Mas há, assim como eu alguém igual a mim. disse, trabalhos importantíssimos da infrações, desde Se eu tenho uma polícia que se aproxima da comunidade, e a polícia tende a fazer isso, como eu dei o exemplo da polícia comunitária, essa polícia, que mesmo não aproxime se polícia: há trabalhos sociais, o PROERD, Eu não gosto muito da ideia de “pacificação”, porque ela não significa cuidar efetivamente do problema; talvez simplesmente esconder ou espraiar a questão se eu não me engano, na Polícia Militar aqui de Minas, que faz palestras nas escolas, sobre o uso de drogas, há os policiamentos de bairro, há os policiamentos da da comunidade, se for uma polícia mais Maria da Penha. Pode melhorar? Acho justa e mais igual, ela não vai atuar que tudo é passível de melhora. A gente somente como uma força de contenção estava falando da universidade: a gente daquele indesejável, mas também como vê tantas iniciativas boas, mas tantas uma força de atuação efetiva contra iniciativas aquele que não se vê como criminoso por possibilidades de melhoria. Acho que nobreza isso é a verdade de toda instituição. de nascimento, codições que naufragam, tantas econômicas. Então eu acho que o discurso tem que ser retirado desse viés Al: Só mais uma questão: você de mantos de falsidade. A lei – é quase tem alguma opinião sobre a política de que um lugar-comum falar isso – existe UPPs lá do Rio de Janeiro? para todos, para o bem e para o mal. Se eu estou numa determinada sociedade 485 | A l e t h e s Entrevista com Daniela de Freitas Marques Da: Eu conheço muito pouco. Assim, eu não gosto muito da ideia de “pacificação”, porque a pacificação não significa cuidar efetivamente do problema; talvez simplesmente esconder ou espraiar a questão, então, eu não tenho conhecimento sobre as UPPs para poder te falar assim não. Teria que estudar mais, se não eu vou te dar uma informação que não é refletida. Mas eu não acho que é a saída ideal, mas eu não posso criticar o programa porque eu não conheço a fundo. Al: Então é isso. Muito obrigado professora. 486 | A l e t h e s Normas de Publicação 487 | A l e t h e s 488 | A l e t h e s Normas de Publicação Normas de Publicação 1. Regras Gerais 1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo restrições com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a temática jurídica. 1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho como primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3 (três) no total. 1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo, filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada diretamente no trabalho. 1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico: http://periodicoalethes.com.br/. 1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações substanciais. 2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos. 2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a dois pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da avaliação duplo-cega por pares. 2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a temática do artigo a ser avaliado. 2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações: Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final. 2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação. 2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas, elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela revista. 2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência. 489 | A l e t h e s 2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará ao fim da chamada de artigos, definido neste edital. 2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes. 2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso. 3. Estrutura e Formatação dos artigos. 3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm). 3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman, tamanho 12. 3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm. 3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto justificado. Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos. 3.5 Texto. 3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman, tamanho 14, destacado em negrito 3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita. 3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a Instituição e o curso do graduando 3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português – antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12. 3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto. 3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento justificado. 3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado. 3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman, tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. 3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser apresentadas, em ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da ABNT. 4. Disposições Finais 490 | A l e t h e s Normas de Publicação 4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores, de modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que publica. 4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de remuneração aos autores, especialmente financeira. 4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão concedendo do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES. 4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão imediato abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto divulgando e justificando o cancelamento da publicação. 491 | A l e t h e s