Icônica - 01-30-2016

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Table Of Contents
"La cámara oscura", em busca de um olhar que transcende as aparências ...... 3
"Pixo" na Bienal .............................................. 5
170 anos de fotografia no Brasil. VIVA A FOTOGRAFIA BRASILEIRA! ............... 7
25 anos de A ILUSÃO ESPECULAR ......................................... 9
40 anos de Viagem pelo Fantástico – fotografias de Boris Kossoy .................... 11
A cidade como autorretrato [parte I]* ....................................... 13
A construção de uma geração ............................................. 15
A crueldade que reivindica o fantasma da fotografia* ............................ 18
A escola e a fábula da câmera total – Parte I ................................... 21
A estética dos bancos de imagem ........................................... 24
"La cámara oscura", em busca de um olhar que transcende as aparências ..... 26
"Pixo" na Bienal ............................................. 28
170 anos de fotografia no Brasil. VIVA A FOTOGRAFIA BRASILEIRA! .............. 30
25 anos de A ILUSÃO ESPECULAR ........................................ 32
40 anos de Viagem pelo Fantástico – fotografias de Boris Kossoy .................... 34
A cidade como autorretrato [parte I]* ....................................... 36
A construção de uma geração ............................................. 38
A crueldade que reivindica o fantasma da fotografia* ............................ 41
A escola e a fábula da câmera total – Parte I ................................... 44
A estética dos bancos de imagem ........................................... 47
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"La cámara oscura", em busca de um olhar que transcende as
aparências
by Ronaldo Entler - segunda-feira, fevereiro 21, 2011
http://iconica.com.br/site/la-camara-oscura-em-busca-de-um-olhar-que-transcende-as-aparencias/
Zapear a TV a cabo é como a rotina de andar no meio da multidão. Depois de um longo percurso,
nenhuma marca, nenhuma história pra contar. Até que um dia, quando a gente menos espera, a gente
dobra uma esquina e vê um rosto, uma expressão, um gesto, algo que nos surpreende e que é capaz de
produzir uma experiência. A TV e, claro, também a internet são as metrópoles dos flaneurs preguiçosos.
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Num desses dias de sorte, pulando de canal em canal, dei de cara com um filme chamado A câmera
escura. Opa! Bom motivo pra largar o controle remoto. Filme argentino recente (La camara oscura,
2008), escrito e dirigido pela desconhecida Maria Victoria Menis, traz uma produção simples, uma
história delicada e, como o título promete, uma presença forte da fotografia.
Uma família judia aporta na Argentina fugindo da perseguição dos pogroms na Rússia, no final do século
XIX. A mulher, que chegou grávida ao país, dá a luz ainda na rampa do navio a Gertrudis, uma menina
que dizem ser muito feia. A fotografia aparece em alguns momentos de sua vida mas, sabendo-se feia, ela
trata de sempre esconder o rosto.
http://www.youtube.com/watch?v=m6Y4W3GksYE
Mesmo crescendo solitária e introspectiva, ela se casa e tem filhos com um colono, que a escolhe como
esposa por uma razão inusitada (que não vou contar). Sua família ocupa bem o seu tempo, mas não
consegue livrá-la da solidão. Certo dia, um retratista francês aparece no vilarejo e é contratado para passar
alguns dias na fazenda, fotografando a família e o local. O fotógrafo, como ele mesmo explica, viveu
experiências trágicas mas aprendeu com o surrealismo a buscar uma dimensão mais profunda e sutil da
realidade. E é assim que ele é capaz de ver beleza em Gertrudis que, aos poucos, aprende a encarar a
câmera e também a si mesma. Até encontrá-la, o fotógrafo amarga o fato de que, em seu exílio de
retratista ambulante, ninguém está preparado para entender suas fotografias experimentais.
Não é um filme difícil, intelectualizado, mas é silencioso, contemplativo e alguns fatos são mais intuídos
do que vistos. Exige-se do nosso olhar a mesma capacidade imaginativa que o fotógrafo reivindica.
Em dois momentos, sem maiores explicações, a diretora pede licença para passear por imagens
completamente descoladas da narrativa. Primeiro, uma animação que traduz o universo introspectivo da
pequena Gertrudis. Depois, num devaneio do fotógrafo, uma série de imagens experimentais que
associam elementos do filme com o cinema e a fotografia das vanguardas.
http://www.youtube.com/watch?v=vtVVbemuu4E
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De quebra, o filme dá forma a situações que hoje só conseguimos imaginar a partir dos relatos históricos.
Os fotógrafos europeus que tentavam a vida na América e perambulavam pelas pequenas cidades e
fazendas, famílias de origem humilde que buscam no retrato uma confirmação de sua recente
prosperidade, os “caixotes” que começam a conviver com as primeiras câmeras de pequeno formato,
laboratórios improvisados em celeiros. Também vemos ali, didaticamente, como se pode construir um
mundo com a fotomontágem, e como funciona uma camara obscura, que no filme se forma
acidentalmente, de um modo mais poético do que convincente.
http://www.youtube.com/watch?v=YBr-jofyY9g
Infelizmente, não é fácil encontrar o filme. Passou muito rápido pela programação de um canal pouco
interessante da TV a cabo, não me lembro de ter entrado em cartaz, e não está disponível em DVD nem
mesmo na Argentina.
Quem sabe, com um pouco de paciência, conseguimos garimpar e rencontrar em meio à multidão aquele
rosto que gostaríamos de olhar mais detidamente.
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"Pixo" na Bienal
by Ronaldo Entler - quinta-feira, abril 15, 2010
http://iconica.com.br/site/pixo-na-bienal/
(... entre um post e outro, um pensamento em voz alta, mesmo deslocado dos nossos temas...)
Mônica Bergamo noticiou na Folha Ilustrada de segunda-feira que o grupo de “pixadores” que fez um
protesto na 28a Bienal de São Paulo foi convidado a integrar a 29a edição do evento. Naquela ocasião, o
curador Ivo Mesquita criticou duramente a ação.
Deixo aqui algumas dúvidas.
O gesto de Moacir dos Anjos, atual curador, pode ser lido de modo ambíguo: pode representar a abertura
do evento a manifestações não institucionalizadas, ou pode ser uma demonstração do poder das
instituições sobre as manifestações que lhes são críticas.
Só pelas discussões que suscita, a iniciativa já é válida, como uma espécie de performance que visa
refletir sobre os limites da arte contemporânea. Mas, caso o grupo aceite, como será a intervenção? Ou
melhor, ainda será uma intervenção? Eles poderão decidir qual parede vão utilizar ou em quais obras vão
interferir? É improvável, mas quem sabe...?
Em entrevista à Folha, o curador disse:
"O que realmente queremos incluir na presente edição da Bienal é a pixação, ou simplesmente o
pixo, com ‘x’ mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em São
Paulo das pichações político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que
há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do quão ‘limpa’ ela queira
apresentar-se."
Existe aqui algo curioso. Para organizar um processo de abertura que começou lá pelos anos 60, construiuse a distinção entre o grafite e a pichação, em palavras da época, entre a arte de rua e o vandalismo. Neste
momento, abrir a Bienal para as ruas exige, novamente, dividir suas experiências: existe então a boa e a
má pichação. Soa um pouco maniqueísta.
Por enquanto, o curador pode estar dando um passo bastante razoável: se essa intervenção chegou até ali,
ali é um bom lugar para discuti-la. Mas ainda é preciso entender o que significaria a presença dos
pichadores na Bienal, para ambos os lados.
Para que o debate não se dilua precocemente, tendo a pensar que a coisa mais interessante neste momento
seria a Bienal fazer o convite e o grupo não aceitá-lo. Os pichadores continuariam sendo um fantasma que
assombra a curadoria, a curadoria seguiria tentando lidar com as forças desse além-da-arte. E agente
seguiria discutindo.
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170 anos de fotografia no Brasil. VIVA A FOTOGRAFIA
BRASILEIRA!
by Rubens Fernandes Junior - domingo, janeiro 17, 2010
http://iconica.com.br/site/170-anos-de-fotografia-no-brasil-viva-a-fotografia-brasileira/
No dia 17 de janeiro de 1840, seis meses após o anúncio oficial do advento da fotografia, uma experiência
de daguerreotipia foi realizada no Largo do Paço Imperial na cidade do Rio de Janeiro, pelo abade Louis
Compte. Sabemos pelos anúncios dos jornais da época que no navio-escola L’Orientale, viajava o Abade
Compte encarregado de propagar o advento da fotografia ao mundo. Suas experiências foram realizadas
em Salvador, em dezembro de 1839, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, mas apenas o daguerreótipo
de 17 de janeiro, tomado no Largo do Paço, sobreviveu aos nossos dias e pertence à família Imperial,
ramo Petrópolis.
O Jornal do Commercio registrou: “É preciso ter visto a cousa com os seus próprios olhos para se fazer
idéia da rapidez e do resultado da operação. Em menos de nove minutos o chafariz do Largo do Paço, a
praça do Peixe, o Mosteiro de São Bento, e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos
com tal fidelidade, precisão e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido feita pela própria mão
da natureza, e quase sem intervenção do artista.”
Se relativizarmos a questão do tempo e do espaço, seis meses na primeira metade do século XIX é um
período pequeno para a fotografia ser disseminada mundo afora. Nessa experiência realizada no Rio de
Janeiro, um jovem de 14 anos ficou, como todos os presentes, encantado e estupefato com o resultado.
Era D. Pedro II que encomendou um aparelho de daguerreotipia e tornou-se o primeiro fotógrafo amador
brasileiro. Esse impulso, somado a uma série de iniciativas pioneiras do Imperador, como a criação do
título “Photographo da Casa Imperial” a partir de 1851, atribuído a 23 profissionais (17 no Brasil e 6 no
exterior), coloca a produção fotográfica do século XIX como a mais importante da América Latina,
qualitativa e quantitativamente falando. E Marc Ferrez, que recebeu o título de “Photographo da Marinha
Imperial”, talvez seja o exemplo mais emblemático dessa produção, já que seu trabalho tem
hoje reconhecimento internacional frente à produção do século XIX.
A primeira grande sistematização da fotografia brasileira foi publicada no Rio de Janeiro, em 1946, pelo
historiador Gilberto Ferrez (1908-2000), neto e herdeiro do fotógrafo, na Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, Nº 10. O ensaio A Fotografia no Brasil e um de seus mais dedicados servidores:
Marc Ferrez (1843-1923) ocupava as páginas 169-304, já trazia boas fotografias da sua coleção e buscava
mapear o movimento da fotografia no período estudado. Trinta anos mais tarde, o historiador e professor
Boris Kossoy, mostrou ao mundo que o francês Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879),
isoladamente na cidade Vila da São Carlos, atual Campinas, descobre em 1832 os processos de registro
da imagem fotográfica. E mais, escreve a palavra photographia para denominar o processo. As pesquisas
do professor Kossoy, desenvolvidas a partir de 1973 e comprovadas nos laboratórios de Rochester, nos
Estados Unidos, ganharam as páginas das principais revistas de arte e fotografia do mundo, entre elas, a
Art Forum, de fevereiro de 1976 e a Popular Photography, de novembro de 1976. No mesmo ano foi
publicada a primeira edição do livro Hercules Florence 1833: a descoberta isolada da fotografia no
Brasil, agora na terceira edição ampliada pela EDUSP.
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A tese demonstrou que esse fato isolado provocou uma reviravolta e uma nova interpretação da história
da fotografia, que tem agora seu início não mais em Nièpce e Daguerre, mas é entendida como uma série
de iniciativas de pesquisa que foram desenvolvidas quase simultaneamente, gestando o advento da
fotografia. Uma nova história da fotografia relaciona os nomes dos pioneiros sem hierarquizá-los ou
priorizá-los do ponto de vista da descoberta.
É importante nos lembrarmos destas nossas iniciativas pioneiras, pois além de sistematizarem uma
história mínima, nos propiciaram a possibilidade de buscar e relacionar outras fontes e trazer à superfície
a história de muitos outros profissionais que desenvolveram incríveis trabalhos de documentação e
linguagem. O novo gesta-se no conhecido, uma idéia que dá importância ao conhecimento acumulado por
todos aqueles que têm preocupação de pesquisar e democratizar informações com o intuito de que outros
pesquisadores desenvolvam novas reflexões e indagações diversas a partir do que foi estabelecido.
Nesses últimos anos, diversos livros foram publicados sobre a produção fotográfica brasileira produzida
no século XIX e primeira metade do século XX, enriquecendo a iconografia conhecida e agregando
alguns dados novos sobre a biografia dos fotógrafos e suas trajetórias profissionais. Além disso, o
interesse despertado em jovens pesquisadores, em todo o Brasil, evidencia a urgência de sistematizar
informações, divulgar acervos e coleções e estabelecer parâmetros de análise e crítica sobre a produção e
preservação fotográfica. Dezenas de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado foram apresentadas
nos últimos anos, algumas delas já publicadas, demonstrando que precisamos encorpar, relacionar e
preservar nossa fotografia, bem como discutir a produção contemporânea com o intuito de produzir um
corpus mínimo capaz de facilitar nossa compreensão sobre a fotografia enquanto fato cultural da maior
importância para a identidade e memória de um povo.
Infelizmente nenhum Museu ou Instituição Cultural programou alguma atividade para celebrar os 170
anos da fotografia no Brasil, mas com este texto queremos reforçar a máxima popular que diz “um país
sem memória é um país sem história”. Particularmente, estamos programando um Seminário, ainda este
semestre, cujo objetivo será comemorar esta data, com discussão, reflexão e crítica sobre a fotografia
brasileira. O momento é olhar um pouco para trás para fortalecer o presente e criar bases sólidas para
refletir sobre o novo cenário da imagem técnica, particularmente a fotografia.
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25 anos de A ILUSÃO ESPECULAR
by Rubens Fernandes Junior - terça-feira, outubro 27, 2009
http://iconica.com.br/site/25-anos-de-a-ilusao-especular/
O Brasil não gosta de efemérides. Muito menos de discutir mecanismos de preservação e conservação de
informações que pertencem à nossa história. Ou até mesmo as reedições são raras em nossa história do
livro, particularmente do livro de fotografia. Acreditamos até o último momento que alguma editora
pudesse fazer uma nova edição deste clássico da fotografia brasileira.
O livro A Ilusão Especular – Introdução à Fotografia, de Arlindo Machado, foi publicado em 1984,
graças a uma ação conjunta entre a Editora Brasiliense e o Instituto Nacional da Fotografia/Funarte, e ao
esforço de Pedro Vasquez, na época Diretor do INFOTO. Por iniciativa própria e por acreditar que
também temos que contemplar a produção dos pesquisadores, historiadores e críticos que pensam a
fotografia como uma manifestação visual particular e com características próprias, Pedro Vasquez criou a
Coleção “Luz e Reflexão”, iniciada em 1983, com a publicação de Universos e Arrabaldes, de Luis
Humberto. Pedro Vasquez justificou a importância da coleção que se propunha, entre outras metas,
“garantir em espaço fixo para o debate das questões fotográficas”.
No início da década de 1980 várias editoras arriscaram a publicação em língua portuguesa de livros que
contemplavam a fotografia: em 1981, tivemos Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, e A Câmara
Clara de Roland Barthes; e, em 1985 Vilém Flusser com o antológico Filosofia da Caixa Preta – ensaios
para uma futura filosofia da fotografia.
Isso nos permitiu antever um espaço de democratização da produção científica, crítica e histórica da
fotografia, ao mesmo tempo em que se abria uma nova possibilidade de articulação entre os diferentes
autores que potencializaram o campo da reflexão fotográfica.
Por razões diversas a coleção idealizada não progrediu, mas A Ilusão Especular tornou-se referência
obrigatória para fotógrafos e pesquisadores. Uma rápida pesquisa nos sites de vendas de livros é possível,
de tempos em tempos, se deparar com algum exemplar “em bom estado” de A Ilusão Especular, por um
preço assustador: R$ 300,00. Como vimos isto ser praticado nos últimos anos, já se justifica uma nova
edição.
Queremos lembrar Arlindo Machado que na Introdução assinala: “ O que nós chamamos aqui ‘ilusão
especular’ não é senão um conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram
florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um
poder revelatório. A fotografia, em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida
como ‘espelho do mundo’, só que um espelho dotado de memória”.
Parece que os nossos editores se pretendem efêmeros, não dotados de memória. Mesmo assim, vale o
registro dos 25 anos de existência de um dos textos mais citados em teses acadêmicas no país que versam
sobre fotografia.
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40 anos de Viagem pelo Fantástico – fotografias de Boris Kossoy
by Rubens Fernandes Junior - segunda-feira, outubro 03, 2011
http://iconica.com.br/site/40-anos-de-viagem-pelo-fantastico-fotografias-de-boris-kossoy/
Há poucos dias fui surpreendido pelo curador de fotografia da Pinacoteca do Estado, Diógenes Moura,
com um comentário: “você sabia que faz 40 anos que foi publicado o livro Viagem pelo Fantástico, de
Boris Kossoy?”. Realmente, não tinha me dado conta da data – junho de 1971 –, mas imediatamente
indaguei se poderia usar essa informação para escrever aqui no Icônica. Liberado, me questionei: se tenho
um bom arquivo, se documento uma cronologia da fotografia brasileira há décadas para manter-me
atualizado, por que não faço consultas com regularidade para poder celebrar certas datas?
Devemos respeitar mais nossa história e comemorar algumas efemérides que pontuam as principais
referências. E para isso precisamos refrescar permanentemente nossa memória. O livro de fotografias de
Boris Kossoy, Viagem pelo Fantástico, da Livraria Kosmos Editora, esgotadíssimo, ainda hoje é
desconcertante. Para a nova geração de artistas e fotógrafos que não teve a oportunidade de folhear as
páginas desta viagem, é preciso descrever um pouco o ousado projeto gráfico e a direção de arte (ambos
de Kossoy).
O livro é trilíngue – português, inglês e francês –, coisa rara naquele momento, é impresso em dois tipos
de papel, craft e couche, formato 22 X 31,3 cm, e tem prefácio de Pietro Maria Bardi, o então diretor do
Museu de Arte de São Paulo. Na primeira guarda, traz uma fotografia em forma circular de um berço
(lado direito) e de um relógio (lado direito) que marca exatamente 6H44m. Na outra guarda, a fotografia
também circular de um manequim menino (lado direito) e de um relógio distorcido (lado esquerdo), como
as representações surrealistas de Salvador Dali. O tempo passou pelas páginas da viagem e as fotografias
deixam claro que nada é gratuito nesta obra diferenciada no cenário editorial do Brasil e da América
Latina.
Depois do texto de Bardi, que exalta o trabalho fotográfico e se refere a ele dizendo que “estamos
vivendo num tempo de novos ideogramas”, chegamos às fotografias de Kossoy divididas como se fossem
dez pequenos ensaios – A mulher e a cidade; Cenas num parque; Aeroporto; A estrada de ferro; A
montanha; O viaduto; Cenas numa casa; Poder mágico; O maestro; Outros tempos... Aliás, o próprio
autor recentemente denominou os capítulos de “contos fotográficos que exploravam o drama existencial,
os cenários urbanos, além de enveredar pelo político, a partir de imagens simbólicas”.
Kossoy propõe e assume em sua fotografia um caráter ficcional e traz elementos conflitantes na cena
questionando nossa certeza sobre o estatuto da veracidade fotográfica (vide a sequência Cenas num
parque). Em outros ensaios migra de uma fotografia documental incomum para imagens que provocam
dúvidas acerca da nossa compreensão de realidade. Uma espécie de tableau vivant que combina intensa
dramaticidade com um cenário absolutamente non sense.
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As fotografias querem contar uma história, mas as conexões e as combinações são de responsabilidade do
leitor que tece uma narrativa possível dentre as inúmeras propostas pelo autor. Ou seja, podemos entender
o livro Viagem pelo Fantástico como uma obra aberta, uma vez que a intensa qualidade narrativa
possibilita a proximidade de imagens díspares. Por exemplo, como justapor a fotografia da mulher-noiva
aguardando os acontecimentos na estação ferroviária com aquela do maestro diante de dezenas de
túmulos (um dos quais mostra o nome de Perpétua), regendo dramaticamente uma sinfonia silenciosa?
O interessante é justamente buscar entender em nossa livre associação que Kossoy não segue a tradição
da fotografia documental produzida naquele momento no país, mas busca se enveredar pela tensão, pelo
instante aparentemente encontrado ao acaso, mas que foi meticulosamente engendrado. A literatura é sua
principal influência, daí essa sensação de inquietude que instiga nossa curiosidade sobre sua
representação fotográfica que cria espaços para buscar aproximar aquele mundo representado da nossa
experiência sócio-cultural.
Olhando com os olhos de hoje, o livro é muito especial e raro. Primeiro, porque talvez ele represente o
melhor da experiência com a linguagem fotográfica; depois, porque reúne Bardi e Kossoy, dois nomes
emblemáticos das artes visuais no Brasil; e, finalmente, porque é o projeto editorial de livro fotográfico
mais arrojado que tivemos nas últimas décadas. E mais, Viagem pelo Fantástico permanece
contemporâneo porque confere à nossa imaginação o poder de criar sem obviedade uma livre associação
homem-mundo. Quando escrevo contemporâneo, quero me aproximar da proposta de Giorgio Agamben:
“contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o
escuro. (...) o contemporâneo é justamente aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe
concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente a
ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém do seu tempo”.
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Site de Boris Kossoy: www.boriskossoy.com
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A cidade como autorretrato [parte I]*
by Mauricio Lissovsky - segunda-feira, dezembro 03, 2012
http://iconica.com.br/site/a-cidade-como-autorretrato-parte-i/
Nas cidades, tudo conspira contra a contemplação. A cidade exige de nós velocidade, instantaneidade,
decisão. Não é por acaso que a cidade fotografada encontra sua expressão mais notória em um tipo de
imagem que veio a chamar-se street photography, onde estes valores tornam-se aqueles que nos
habituamos a esperar de uma fotografia. De fato, nesta tensão entre o hábito, e mesmo o tédio, por um
lado, e a agilidade que requer “reflexos rápidos”, constrói-se esta “afinidade eletiva” entre fotografia e
cidade que só fez crescer ao longo do século XX. A cidade tornou-se o fotografável por excelência, em
uma relação similar à que ocorreu entre a xilogravura e a ruína, ou entre a aquarela e a marina.
Martin Chambi, Cuzco, Peru, c.1930 / Horacio Coppola, Buenos Aires, Argentina, 1936.
Martin Chambi, Kiorikancha , Peru, 1940.
No alvorecer do modernismo, na década de 1930, duas cidades são fotografadas por dois fotógrafos sulamericanos: Cuzco por Martin Chambi; Buenos Aires por Horacio Coppola. Apesar de ambos estarem
fortemente marcados por esta afinidade entre fotografia e cidade, não pode haver maior evidência do
contraste entre eles do que estas duas ruas. Em Chambi, a fotografia é um instrumento da ressurgência
heróica das forças do passado incaico. Fotografia anacrônica, como esta sua famosa imagem de uma
Igreja em Kiorikancha, erguida sobre o templo inca que uma escavação acabara de revelar. A descoberta
dos poderes transformadores da imagem será celebrada em um autorretrato magnífico, de 1923, onde
Chambi contempla o negativo de outro autorretrato, feito de Arequipa, um ou dois anos antes, no refinado
estúdio dos Irmãos Vargas, onde o fotógrafo havia aprendido a técnica e os truques do retrato burguês.
Mas será sobre a própria paisagem das cidades andinas que Chambi irá compor seu mais incisivo
autorretrato.
Martin Chambi, Moon Temple, Machu Picchu, Peru, 1931 / Eugéne Atget, Au Tambour, Paris, 1908
Muitos paralelos poderiam se traçados entre a Cuzco de Chambi e a Paris de Atget. Em ambos, a mesma
força anacrônica. Atget faz troça de si mesmo no momento em que decide ser ele próprio um antiquário
(o colecionador deste repertório de formas em vias de desaparecer que é o seu arquivo de “documentos
para artistas. O fotógrafo tem a face mil vezes refratada em seu arquivo. Chambi, ao contrário, assinala na
própria sombra projetada sobre o Templo da Lua, a força de uma aparição, de uma sobrevivência. É por
fazer de si e de sua fotografia um modo de favorecer esta ”aparição” que Chambi é peculiarmente
moderno, enquanto Atget terá que ser “deformado” pelos surrealistas tornar-se um.
Horacio Coppola, Buenos Aires, 1931
O lugar ocupado pela sombra nos ajuda a observar o contraste entre Chambi e Coppola de modo ainda
mais interessante. Em Chambi, a sombra sinaliza para a máquina de ressurreição de uma cidade soterrada
sob as pedras e debaixo da peles dos habitantes de Cuzco. Em Coppola, a sombra é o que sinaliza o
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poder da câmera de agregar uma qualidade nova, uma qualidade moderna, universalmente moderna, a
Buenos Aires. A carroça é submetida aqui a um conhecido truque Moholyano (a inversão), cujo objetivo
era demonstrar a capacidade da fotografia de engendrar uma “nova visão”.
Chambi e Coppola sintetizam – porque levam a extremos – duas formas de anacronismo características da
fotografia urbana latino-americana durante grande parte do século XX. Em Chambi, a câmera projeta
sobre o mundo a memória, como se o registro arcaico recobrisse a atualidade. Em Coppola, a câmara se
volta para dentro de si própria, para este olhar visionário transformado pelo dispositivo técnico e que
permite antever a essência de uma cidade moderna. É na tensão destes anacronismos que os imaginários
urbanos sul-americanos frutificam: o anacronismo das sobrevivências, das ressurreições e dos fantasmas;
e o anacronismo das “reconfigurações” do olhar moderno que renova tudo o que toca. Autorretratos de
nossos sonhos e expectativas.
-------------* Este texto é parte da conferência que fiz na New York University, em 11/11/2012, no seminário
“Cidades Imaginadas: Arte, cultura, política e a invenção de espaços urbanos na América Latina”. O
meu painel, dedicado à fotografia, contou com a participação de Cláudia Jaguaribe e Cássio
Vasconcellos.
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A construção de uma geração
by Ronaldo Entler - terça-feira, abril 19, 2011
http://iconica.com.br/site/a-construcao-de-uma-geracao/
Geração 00 é uma mostra que assume um grande desafio e, claro, alguns riscos: pensar a produção
fotográfica de um período marcado pela liberdade de procedimentos, pela velocidade das mudanças, uma
década sem um marco inicial e sem um desfecho evidente, vivida por artistas de formações e idades
muito distintas.
Seria pretensioso propor o mapa de um território movediço que, se tem uma marca evidente, é a
despreocupação com suas fronteiras (aquilo que distingue a fotografia de outras linguagens artísticas e,
ainda, aquilo que define cada um de seus usos sociais). Mas Eder Chiodetto, curador da exposição, é
cuidadoso ao dizer que o que pretende é sintetizar não propriamente essa produção recente, mas suas
principais “linhas de força”. Sendo assim, não cabe julgar o resultado pelos nomes individuais
selecionados ou, sequer, por um ou outro tipo de fotografia que ficamos tentados a identificar como
hegemônico.
Podemos pensar em instalação, performance, vídeoarte, foto-filme, infografia, abstracionismo, fotografia
construída etc. De algum modo, essas experiências estão lá devidamente representadas. Mas essas
palavras que tentaram dar conta de um universo de experimentações surgidas nos últimos trinta, quarenta
anos, de um lado, já revelaram seus limites e, de outro, já se institucionalizaram. Em vez de novas
nomenclaturas e categorias unificantes, essa síntese visa promover uma experiência efetiva com a
pluralidade.
A ênfase dada às novas tecnologias poderia apontar para um tipo didático de transgressão, ainda
preocupado demais em expor uma "denúncia" da tradição. Mas estão lá as grandes e as pequenas
experimentações, da desmontagem mais evidente dos códigos ao gesto sutil de encenação que perturba a
confiança na imagem. E, cabe dizer, também está lá a “fotografia-fotografia”, colocada na moldura, na
parede, estão lá o documento, a memória, o fotojornalismo, a pesquisa antropológica, velhas coisas que,
num certo momento, a fotografia pareceu ter de negar para se afirmar contemporânea. Exatamente pelo
embate que propõe entre a tradição documental e a experimentação, a leitura proposta pelo bloco
“Documental Imaginário, Novo Fotojornalismo” me pareceu a mais impactante.
Se eu tivesse de apontar algo que distingue a produção dessa década, arriscaria o seguinte: agora, as
liberdades conquistadas nas gerações anteriores podem ser praticadas sem a necessidade de uma bandeira,
sem a eleição de um inimigo, sem rituais de auto-afirmação. Essa liberdade significa a “possibilidade” e
não a “obrigação” da transgressão. E é isso que permite a reinvenção do documental nesse campo de
experimentação, é isso também que sepulta a velha e precária distinção entre fotojornalismo e fotografia
artística.
A exposição acerta ao dosar bem suas pretensões: não se trata de tentar definir – como tantas vezes se
tentou - o que é a fotografia contemporânea, mas sim de apontar potencialidades (as “linhas de força”)
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que foram consolidadas nessa década, mesmo que não necessariamente nela inauguradas. Estranhamos
encontrar ali Cláudia Andujar, com uma fotografia de 1976. O texto fala em homenagem, mas também
podemos entender essa presença como uma espécie de relativização: o reconhecimento de que toda
periodização é arbitrária, de que a história é feita sempre de diálogos, sobreposições e retornos. Portanto,
assim como Cláudia Andujar soube se renovar nas décadas seguintes, todas as novidades propostas por
essa nova geração têm também seu devido diálogo com a história.
A exposição possui dois blocos: “Limites, Metalinguagem” e “Documental Imaginário, Novo
Fotojornalismo”. Honestamente, eu preferia que não houesse esse salto, mas imagino que havia ali
limitações impostas pelo espaço. Também reconheço que essa separação ajuda a identificar dois efeitos
produzido pela síntese proposta: mesmo que não haja homogeneidade, enxergamos dentro dos blocos
certas “concentrações de força” (alguns modos peculiares de se debater com o meio), e mesmo que não
haja contradições, a passagem entre os blocos sugere a presença de “tensões de forças” (entre uma
imagem que quer pensar a si mesma e outra que ainda tenta dar conta do mundo diante da câmera).
Vi que essa exposição gerou dúvidas que, creio, a própria fotografia pode ajudar a responder.
Essa curadoria produz um retrato fiel dessa geração? Não. Mas e a fotografia, ela própria, produz um
retrato fiel de alguma coisa? A curadoria também é um recorte que, como tal, assume seus limites, exclui,
mas também permite a leitura de um extraquadro. Seria estranho supor que uma obra está ali
representando outras de sua categoria. A própria exposição nos convida a duvidar da ideia de categorias
representativas, e esperamos ter outras oportunidades para ver aquilo de bom ou de ruim que ficou de
fora. Mas é preciso reconhecer que a reflexão que se desprende da exposição é sim bastante inclusiva:
demarca e estimula a sensibilidade ampla que a produção contemporânea exige. Assim, essa experiência
certamente nos ajuda a pensar outros tantos artistas dessa mesma geração que não foram mostrados.
Aliás, muitos deles estavam lá na abertura da exposição reforçando o debate sobre uma experiência que
ajudaram a construir.
Mais do que identificar, essa curadoria não constrói uma idéia de geração? Sim. Mas e a fotografia, não é
ela também uma construção? Ao tentar identificar um fenômeno, uma investida conceitual desse porte
certamente lhe impõe um modo de existência. É ao mesmo tempo uma leitura e uma ação, isto é, uma
curadoria é o sinalizador e o motor dos processos que apresenta. Na prática, Chiodetto já teve um papel
importante na projeção de alguns daqueles nomes e na afirmação de seus trabalhos. E é evidente que uma
exposição como essa pode fazer o mesmo com outros artistas menos consagrados. Não é preciso ver isso
com moralismo, temos hoje plena consciência de que o crítico, o curador e o colecionador são coautores
dos sentidos que, depois, com algumas décadas ou séculos de distanciamento, os historiadores tentarão
alinhavar. Se isso soa algo perigoso, Eder Chiodetto parece ter a devida consciência de que, além das
questões estéticas obviamente implicadas, esse gesto de poder também exige uma ética. Se as escolhas
feitas por um curador são sempre arbitrárias, tem sido exemplar o modo como ele se abre ao diálogo,
como expõe seus critérios, como discute suas decisões nos textos, palestras, aulas, nas visitas guiadas e
nas conversas informais.
Qualquer um que passar por lá vai lembrar de uma dúzia de nomes que gostaria de ver incluídos. Também
pode estranhar uma ou outra presença. Mas é impossível não reconhecer a força do conjunto apresentado.
Aguardaremos outras leituras, mas esta geração já se revelou privilegiada, pelo que produziu, mas
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também por merecer uma exposição como esta.
***
Geração 00 fica em cartaz no Sesc Belenzinho, em São Paulo, até o dia 12/06.
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A crueldade que reivindica o fantasma da fotografia*
by Cláudia Linhares Sanz - segunda-feira, abril 08, 2013
http://iconica.com.br/site/a-crueldade-que-reivindica-o-fantasma-da-fotografia/
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Da série de fatos inexplicáveis que são o universo ou o tempo acrescentaria a fotografia. Uma espécie
gabinete mágico, a espera de que algo aconteça para, enfim, revelar-se.
Sua sobrevivência histórica é ainda mais enigmática. Hoje? Entre tantas tecnologias inovadoras, entre
tantos hibridismos imagéticos: como poderia a fotografia não ter sido totalmente tragada pelas famílias de
imagens que não cessam de se multiplicar e fundir-se?
Sua persistência é, provavelmente, acontecimento que ninguém poderia pressentir. A despeito dos
prognósticos mais acurados de teóricos e pensadores da mais alta qualidade, que avistavam apenas seu
declínio histórico e seu desuso prático; a despeito da diminuição de sua eficácia e de seu poder: a
fotografia hoje salga.
Salga, porque, como a carne, se sacrifica por outra. Mas salga também porque nesse sacrifício parece
conservar o trânsito da voz que, um dia, teria já entoado. Salga como os alimentos, que têm sua
decomposição ralentada – salga porque se compõem enquanto se decompõe. Mas como se haveria de
salgar?
Sua persistência acontece disseminada, dissimulada, transmutada¬ em várias imagens, vários objetos.
Uma persistência da qual só conhecemos seus restos, vestígios da carne que foi convertida em
“outramentos”, como aqueles fósseis aquáticos que criam suas próprias sedimentologias. Sedimentada –
em todos os instantes que transcorreram entre os dias em que primeiro veio a ser e os de nossa atualidade
– a experiência fotográfica carrega a projeção em retrospectiva das diferenças e das sincronias entre
aquilo em que ela se constituiu e o que já não pode mais ser. Entre aquela crise temporal que a configurou
e uma profunda alteração tanto no diagrama da temporalidade do mundo quanto da imagem. Entre um
estado intensivo que efetiva o tempo de acontecimentos – aquele que a cronologia não consegue devorar
– e as dificuldades que as fotografias contemporâneas apresentam em disponibilizar tal experiência.
Cia de Foto, Prefácio, 2012
A fotografia atual se tornou o fóssil da convivência de dois regimes concomitantes, duplamente relativos,
posto que um só pode se dizer em relação ao outro. Dois regimes que compartilham em segredo a tensa
coexistência entre o que podia e o que já não pode mais.
Se a fotografia cometeu suicídio (como pensou a pesquisadora norte-americana Abigail SolomonGodeau), é esse fantasma que ronda por aí. Espírito teimoso que, ao vagar pela história, ri quando adentra
os lugares sem ser convidado. Ri quando se apodera das casas; dos contos dos escritores; dos garçons e da
cigarras. Espírito do ar que vaga principalmente na vida cotidiana. Viajando, carrega em sua bagagem o
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enigma de fazer o tempo abismar por uma espécie de voo suspenso, distensão do tempo na contração do
movimento.
É esse enigma que ele tenta disseminar, soprando no ouvido das dezenas de milhares de pessoas que,
seguram câmeras (já não são estritamente fotográficas) e ainda exclamam:
Fo.... to... gra.....fi....a....
Então, quando percebemos a profunda aderência entre a vida comum contemporânea e a imagem, ele
novamente sopra: Fo.... to... gra.....fi....a...., e quando vemos que a imagem abdicou do acontecimento e
preferiu a banalidade..., lá vem ele novamente: Fo.... to... gra.....fi....a....
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Talvez sejam anjos também, mas, sobretudo ele, esse fantasma. Talvez o que os anjos façam seja apenas
guardar a sorte dessa alma vagante. Entendido, então. É o sussurro dele, tentando manter sob seu domínio
toda a compulsividade imagética que se integra ao cotidiano contemporâneo; é seu reclame que diante da
naturalização com que os dispositivos imagéticos se impõem hoje à vida do homem comum ainda nos faz
pronunciar, ecoando seu sopro, Fo...to...gra...fia.
O ritmo, a frequência, a quantidade e o destino das imagens atuais e todo esse deslocamento das
representações... e o fantasma insiste: fo...to...gra...fia. Quando a imagem assume o caráter monumental
no mundo contemporâneo, ele ainda repete: fo...to...gra...fia.
Sopra principalmente ao ouvido dos passantes da vida ordinária – que, desatentos, só repetem o anúncio.
O Espírito ri (decerto). Ri principalmente quando faz os mais atentos sentirem sua presença no momento
exato em que já se vai. Sua gargalhada ecoa no espaço, e, enquanto repetimos sua sentença, nossa voz já
não faz mais sentido para nós.
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Fotografia???
Ele ri e sai porque sabe que está sempre ameaçado, passível de desaparecimento. O eco do seu riso é,
então, a convivência paradoxal de dois regimes de visibilidade.
O fantasma nos faz indagar se estaríamos livres de seus ecos se, como aconteceram com outros sujeitos,
as imagens fotográficas de todos os nomes perdidos tivessem pouco a pouco desaparecido, sem deixar
rastros ou vestígios. Talvez o fantasma nem saiba que, no fundo, a história concedeu-lhe o privilégio do
abandono: esquecido nos arquivos, nos álbuns, nas casas, nos olhares. Escapando por vezes da lei
compulsória da mudança, ficou por aí, se movendo entre as imagens, rindo de nós, fazendo com que sua
presença seja sentida toda vez a que nos deparamos com uma vertigem temporal concentrada, com a força
abismal que a duração, liberta do movimento, dispara.
Trágico que ele ainda exista: toda vez que sopra pelo ar o vulto fo...to...gra...fia e consegue fazer disparar
estados fotográficos (que já não dependem sequer da existência de uma única fotografia) nos exige lidar
com o precipício de um tempo intensivo. Sem que de fato habite plenamente no presente, nos obriga a
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lembrar a fragilidade de nossa existência e o nosso limite em pensá-la. Nos coloca em perigo porque
testemunha que os caminhos do labirinto da fotografia e do tempo são como caminhos no mar, fugitivos
da métrica.
Pois essa é a crise que o fantasma, nos atingindo com estados fotográficos, disponibiliza. Nos retira do
fluxo habitual e nos faz ingressar numa duração sem medidas espaciais. Se enfrentamos a imagem
petrificada de nossa eternidade, também a lucidez nos ocupa e, num instalo, percebemos que essa é desde
já a imagem do esquecimento que seremos. O estado fotográfico requer, então, que se concilie a inscrição
dos rastros de nós mesmos com a vastidão do esquecimento que elas implicam. Instala-se a suspensão:
andaria o tempo apenas de ida? Caminhos entrelaçados nesse enredo fotográfico nos dirigem ao passado,
como se andássemos para trás, simultaneamente, a que nos aproximam do fim. Como se entrássemos no
fim pelo caminho de trás, como se as pontas do tempo se tocassem através de um pequeno buraco de
agulha. Desse orifício, nos encontramos com a imagem impossível do instante e, simultaneamente, com a
materialidade da experiência de momentos de sobressaltos, com a potência da singularidade temporal.
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Nesse abismo que já não se pode medir com o deslocamento dos ponteiros do relógio, emerge a crueldade
que reivindica o fantasma da fotografia: o enigma de um tempo sem movimento.
Pois me parece que a perversidade desse vulto, senhor de estados fotográficos, está em instalar dobras
temporais infinitas sem que nada necessariamente se mova. Dobras entre ciência e magia; poesia e
pensamento; tristeza e alegria; entre os tempos passados, presentes e futuros; entre perda e vida;
destruição e preservação; escrita e seus sucessivos apagamentos. O fantasma, assim, nos coloca diante de
um labirinto de dobras, num conjunto de percursos intrincados que, desorientados, tentamos percorrer
sem que de fato algo se desloque. Já não é mais a história e sua decorrência cronológica que nos separa do
que encontramos na imagem. Já não se pode seguir linearmente a história para distinguir a minha da
presença do passado; já não transitamos na extensão. Desenrolamos virtualmente os fios de novelos
contorcidos e bifurcantes em um território sem centímetros, que flui verticalmente, fora das réguas.
A sobrevivência fotográfica no mundo contemporâneo é trágica porque não nos permite esquecer; trágica,
porque nos coloca diante do destino das imagens e do nosso destino. Por que vagaria ainda a voz do
fantasma? Viva e, simultaneamente, morta; potência sem corpo, a fantasmagoria do estado fotográfico
nos faz pesar o fato de ainda sermos tomados por estados fotográficos quando já não sabemos se podemos
suportar sua experiência: quando já não podemos esperar nem hesitar para clicar; quando já não
desejamos lidar com a ausência do movimento; quando o instante já não parece pretender interromper o
fluxo; nem crivar o tempo com a marca do acontecimento.
----* Adaptação do texto publicado em Prefácio, livro de Cia de Foto com texto de Cláudia Linhares Sanz e
Ronaldo Entler, dezembro de 2012.
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A escola e a fábula da câmera total – Parte I
by Cláudia Linhares Sanz - terça-feira, abril 15, 2014
http://iconica.com.br/site/a-escola-e-a-fabula-da-camera-total-parte-i/
Fritz Lang, fotograma do filme Metrópolis, 1927
Há alguns dias, uma aluna contou em sala, na Universidade de Brasília, uma sequência de fatos recentes
ocorridos na turma em que é professora, segunda série do ensino fundamental, numa escola pública do
Plano Piloto do Distrito Federal. Seu depoimento gerou um debate interessante acerca das imagens que
nos são sincrônicas no regime de visibilidade contemporâneo e sua relação com a escola; debate daqueles
que nos fazem ficar um bom tempo refletindo sobre eles. Meses; às vezes anos. Pois bem, um furto deu
início aos eventos.
O dinheiro da carteira de um dos alunos da escola – que têm em média oito ou nove anos – tinha
desaparecido dentro da sala. O fato gerou uma série de desconfortos, conversas, discussões ríspidas entre
pais, alunos, professores e diretora. Em primeiro lugar, a professora tratou de colocar o furto em discurso.
O “ladrão” deveria – segundo minha aluna – confessar seu ato e tudo, então, voltaria ao normal. A técnica
da confissão, como nas escolas disciplinares descritas por Foucault, foi evocada como dever fundamental
para o bom relacionamento da turma. A professora, em mais de uma “conversa” dedicou-se
obstinadamente, representando as instâncias de poder da escola, a ouvir falar e fazê-lo falar (ele próprio, o
ladrão, quem quer que fosse) de modo explícito sobre o pequeno delito. Por confidência sutil ou por
interrogatório autoritário, o furto deveria ser dito, e a conduta de confissão levaria, então, à solução do
constrangimento geral. Deveria, mas não levou.
Jo Ainley, Vigilância.
A autoridade da professora não foi capaz de incidir de fato na conduta requerida. A exigência e a ameaça,
métodos de inquisição, não surtiram nenhum efeito coercivo diante do pequeno e provavelmente pontual
“delinquente”. O silêncio total – do culpado e de seus colegas – deixou a professora e a escola diante de
um impasse. Depois de seguidas reclamações dos pais, a diretora da escola convidou a professora para
uma conversa e, juntas (na verdade, por sugestão da diretora), reformularam a estratégia. Ao final das
aulas do dia seguinte, a professora desfiou, para a turma, sua fábula. Nela, a direção da escola e a
professora já conheciam a identidade do culpado porque as câmeras dispostas nas salas de aula lhes
tinham contado quem teria cometido o furto e comprovado a ação. Por compaixão, a professora estava
dando a última chance para que o culpado se entregasse por conta própria, que confessasse uma
explicação – não um esclarecimento de si (porque isso não parecia importar) mas do mau comportamento.
Alguns dias depois, o silêncio foi quebrado por um bilhete escrito com “péssima caligrafia” (segundo a
professora), sem assinatura, declarando: “roubei o dinheiro, mas desculpa não tenho dinheiro para pagar”.
A professora reconheceu a letra do aluno, chamou os responsáveis por ele, e “o mau indivíduo” (que, na
verdade, era órfão e morava há alguns meses na cidade com uma tia) foi enviado, “devolvido”,
novamente ao Piauí. A câmera imaginária, no entanto, permaneceu na sala de aula, em Brasília.
Não sabemos ao certo quantos acreditaram ou ainda acreditam em sua existência dentro de um espaço tão
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íntimo quanto a escola pode parecer para as crianças. Também difícil seria dizer quantas das crianças já
procuraram averiguar sua materialidade nos cantos da escola ou o que a imaginação infantil foi capaz de
produzir a partir da “existência” dessas câmeras invisíveis no local em que passam grande parte de seus
dias. Teria alguma criança levado as câmeras que tudo veem também para os seus sonhos?
A professora não pode desmentir-se, sob pena de perder a autoridade que ainda lhe resta. Assim
resguarda, protege, acoberta, com o apoio de sua diretora, a perversa “fábula da câmera total”, perdendo a
oportunidade de transformar o fato em algo verdadeiramente “pedagógico”, desperdiçando a chance de
verter o infortúnio em um acontecimento comum. Trata-se aqui de um pedido de clemência: o regime
disciplinar implorando ajuda às tecnologias contemporâneas de vigilância para se manter minimamente
moribundo.
Imaginemos, então, o que está acontecendo exatamente agora nessa sala de aula, mediada por uma
câmera que tudo vê e nunca é vista. Numa espécie de pique-esconde eterno, os “pegos” nunca finalizam
sua contagem, nunca surgem de nenhum “pique”; sem rosto, estão continuamente em todos os lugares,
simultaneamente, funcionando no “modo” TOTAL. Por outro lado, nesse jogo involuntário as crianças
não são capazes, de fato, de se esconder em nenhum canto de parede, debaixo de nenhuma mesa, atrás de
nenhuma cortina. Como no panóptico, “se o olho está escondido, ele me olha, ainda quando não me esteja
vendo”.
Denis Beaubois, In the event of Amnesia the city will recall… 1996 – 1997 (Instalação).
Primeiro, seria interessante pensar o que possibilita e legitima a criação de câmeras invisíveis dentro dos
espaços privados de uma escola como único dispositivo capaz de instaurar o acordo escolar (porque,
temos de admitir, só as técnicas disciplinares tradicionais, o discurso e a ameaça de ação punitiva da
professora não foram capazes, não é mesmo?). De que escola e de que falência trata, então, a fábula da
câmera invisível? Depois, também nos parece relevante indagar que corpos e subjetividades a ideia dessa
câmera invisível pode produzir na escola, que modos de ser estão sendo estimulados por essas câmeras de
ver. O que sentiriam esses alunos que estão permanentemente “guardados” pelo olhar do outro? Trata-se
de um olhar especular, invisível, superior, capaz de vigiar e de punir, mas, além disso, capaz de tornar
cada uma daquelas crianças, incluídas as que não cometeram qualquer delito, um ser/comportamento
controlado e exibível, simultaneamente.
De fato, poderíamos investigar se não estaria sendo efetivado nessa escola um corpo-sujeito dócil (ou
artificialmente dócil), mas, também, bastante exteriorizado, exibicionista e performático. Ou vão dizer
que a câmera só funcionaria para os “maus indivíduos ladrões de carteira”? Iriam os “bons indivíduos”
provavelmente exceder seus bons comportamentos a fim de fazê-los visíveis? Assim, seria possível supor
que a existência da câmera invisível irá gerar outros efeitos além do constrangimento paranoico nos
alunos. Apoiados na subjetividade contemporânea, poderíamos ironicamente até imaginar que os alunos
experimentam certo prazer em estar sendo filmados. Explico. Não se trata apenas de “atualizar” a
vigilância moderna. Essas câmeras, sejam visíveis ou não, fazem parte de uma subjetividade em
transformação que tem nas tecnologias da imagem um de seu pilares.
Como Benjamin afirmou, “todo o presente é determinado pelas imagens que lhe são sincrônicas”. Em sua
perspectiva, “cada agora” é o agora de um certo reconhecimento, o agora de uma legibilidade própria, e
cada época histórica é determinada por uma constelação de imagens. Isso significa, primeiramente, que
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algumas imagens só se tornam legíveis em uma determinada época e atingir essa legibilidade constitui um
certo ponto crítico específico do movimento interior das próprias imagens. Por essa razão, conclui
Benjamin, “a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir”. Sendo histórica, a verdade
dependeria também das imagens que emergem em nossos regimes de visibilidade. Cabe ressaltar que,
nesse sentido, imagem e política, percepção e história não são dimensões que se entrelaçam apenas, mas
agem reciprocamente umas sobre as outras. A imagem adquire, no pensamento de Benjamin uma
característica ambivalente: assume a potência catalisadora de absorver seu momento histórico (ser efeito
de uma época) e, simultaneamente, fazer nascer outros sentidos para a história e para a arte.
Bansky
Nesse aspecto, a “fábula da câmera total” – sustentada nessa escola a justificativa de uma espécie de
estado de exceção produzido por um pequeno furto (para pensarmos com Giorgio Agamben) – não
representa apenas uma mentira enunciada por professores, mantida provavelmente também pelos pais,
tornando-os tão mentirosos quanto os “mestres”. Do mesmo modo, não noticia apenas a falência de um
modelo escolar. Na realidade, talvez não haja nela nada de excepcional, a não ser o fato de ter sido
vivenciada com extrema banalidade e profunda naturalidade, por integrar a regularidade de uma série de
outros enunciados contemporâneos; mas, especialmente, por ter sido crível para as crianças e dizível
pelos adultos (e certamente isso não se dá porque as crianças sejam idiotas ou inocentes e os adultos
diabólicos, como talvez possa parecer).
A câmera invisível pôde e pode existir, ser visível, legível e, sobretudo, capaz de produzir efeitos reais na
vida das pessoas, porque dá carne às imagens que nos são sincrônicas, para lembrarmos o pensamento de
Benjamin. Como enunciado, aceito e reconhecido, emerge do solo no qual repousam as verdades e os
saberes contemporâneos. Mais do que isso: a fábula da câmera total materializa-se como dispositivo da
subjetividade atual dentro da escola, fazendo parte do tecido de nossos tempos, participando das
constelações de imagens que não são apenas produtos de nossa episteme, mas que também,
simultaneamente, agem sobre ela e determinam nosso presente histórico. Continuaremos esse papo no
próximo post.
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A estética dos bancos de imagem
by Ronaldo Entler - terça-feira, abril 26, 2011
http://iconica.com.br/site/a-anestetica-dos-bancos-de-imagem/
Esse é um recado para meus alunos, mas que vale a pena compartilhar. O trabalho final que peço a eles
envolve sempre a produção de uma obra visual com técnica livre a partir um tema que varia a cada
semestre. O objetivo é avaliar a capacidade que eles tem de traduzir ou construir uma reflexão por meio
de imagens. É sempre uma experiência incrível. Mas, nos últimos anos, os bancos de imagem tem
facilitado tanto quanto atrapalhado a nossa vida, aliás, atrapalham exatamente pelo modo como
pretendem facilitar as coisas.
Há dez anos, era raro, mas quando um aluno perguntava se poderia partir de imagens prontas, tinha em
mente Duchamp, Andy Warhol, e as possibilidades de ressignificação implicadas no gesto de
apropriação. Essa era a opção mais ousada e trabalhosa, significava geralmente um tanto de páginas a
mais de reflexão escrita. Hoje, a pergunta se tornou mais frequente, mas parte de um princípio de
economia (eufemismo para preguiça). Parte também da sensação de que tudo já está feito e
disponibilizado na internet.
Os grandes bancos de imagem poderiam ser importantes fornecedores de matéria-prima para os criadores.
Mas o serviço é mais completo, e aqui mora o problema: eles têm a pretensão de oferecer um catálogo de
pensamentos prontos já traduzidos em imagens. E é assim que muitos, não só alunos, mas também
professores, editores, jornalistas, publicitários tem a oportunidade de resolver qualquer questão com duas
ou três palavras-chave nos mecanismos de busca desses serviços.
Apenas pensamentos muito elementares se prestam a esse tipo de redução, e apenas imagens
estereotipadas podem garantir a legibilidade prometida. Prato cheio para palestras motivacionais, que
traduzem raciocínios óbvios e conselhos moralistas em ilustrações que portam alguma dose de humor ou
sentimentalismo. Vou poupar nossos olhares de ilustrações, mas acho que todos reconhecem esse tipo de
imagem: são metáforas rasas, tipo “um homem com uma lâmpada na cabeça”, “um estudante numa
corrida de obstáculos”, “um executivo com uma luva de boxe”, “um gadget mostrado como um canivetesuiço”, coisas assim. São imagens pobres, repetitivas, com mensagens didáticas que sempre pressupõe a
idiotice do público.
Se alguém fizer questão de exemplos, pode dar uma olhada numa compilação de sessenta fotos
“completamente inutilizáveis” de bancos de imagem que circulou pela internet. Esses são casos extremos
do que ocorre quando se tenta arrancar a força uma forma visível de um conjunto mal articulado de
“palavras-chave”. Podemos imaginar que é a descontextualização que transforma em piada imagens desse
tipo. Mas a ausência de contexto é o trunfo dessas imagens, elas pretendem ser versáteis, globalizadas e
genéricas.
Muitas vezes a arte almeja representar uma experiência universal numa forma particular: um retrato
deseja representar um drama humano, uma paisagem deseja representar a força da natureza Os grandes
bancos, em contrapartida, substituem esse poder alegórico pela afirmação de “tipos genéricos”: o pai, a
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mãe, o filho, o estudante, o executivo, o chefe, a família, a equipe de trabalho, a sociedade, sempre
simplificando e limpando a imagem de toda experiência. A representação se torna abrangente não porque
convida à identificação com um outro, mas porque impõe um estereótipo que reduz todo mundo a uma
coisa só.
A indexação das imagens por meio metadados – chaves de interpretação que podem ser traduzidas em
dados quantificáveis – constituem uma ciência peculiar, com um pé na estética e outro na matemática.
Sua missão nesse caso é permitir a navegação por um oceano de imagens que tende à entropia (a
dissolução de toda diferença e, assim, de toda possibilidade de sentido). Mas a preguiça dá a essa ciência
um papel maior do que ela deveria ter: os metadados, que deveriam ser simplificações de interpretações
possíveis, passam a ditar os critérios para a produção das imagens. Como ilustrações de “palavras-chave”,
essas fotografias já nascem indexadas, já nascem simplificadas. E assim, a imagem que deveria ser
estética, se torna anestésica, anula a sensibilidade do olhar.
Não há novidade nesse processo, é a lógica da cultura de massa. A história da cultura moderna está
invariavelmente marcada por uma tensão entre “acesso” e “massificação”. O que isso significa? Algo
simples: a circulação exige padronização. Isso tem, em princípio, um sentido técnico: a expansão das
redes de informação exige a escolha de um protocolo de comunicação (assim como a expansão da malha
ferroviária exigia a escolha de um tipo único de bitola para os trilhos). Isso parece uma questão
burocrática, que não afeta nossas experiências, nossas viagens. O problema é que a lógica da
padrozinação se torna um dado da cultura: age sobre uma dimensão técnica, mas também sobre uma
dimensão estética. O que circula e se expande sob esse protocolo deve fazer algum sentido para todos. A
maneira corajosa de enfrentar isso é assumir o ganho que, num médio prazo, pode surgir do conflito
cultural e do estranhamento. Esse é um belo aprendizado. Não temos encontrado esse tempo. A maneira
mais fácil é estabelecer uma média daquilo que circula. Mas a média, infelizmente, nunca está no meio,
está abaixo, espécie de mínimo denominador comum.
Este não é um discurso contra a forma de comercialização estabelecida pelos bancos de imagem, mas
contra a pretensão de construir um mercado global por meio de uma linguagem visual média. A arma
contra isso é justamente o pequeno banco de imagem, as cooperativas, os coletivos, os artistas
independentes com seus fotologs, experiências que garantem a diversidade e o estranhamento necessários
ao exercício efetivo do olhar.
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"La cámara oscura", em busca de um olhar que transcende as
aparências
by Ronaldo Entler - segunda-feira, fevereiro 21, 2011
http://iconica.com.br/site/la-camara-oscura-em-busca-de-um-olhar-que-transcende-as-aparencias/
Zapear a TV a cabo é como a rotina de andar no meio da multidão. Depois de um longo percurso,
nenhuma marca, nenhuma história pra contar. Até que um dia, quando a gente menos espera, a gente
dobra uma esquina e vê um rosto, uma expressão, um gesto, algo que nos surpreende e que é capaz de
produzir uma experiência. A TV e, claro, também a internet são as metrópoles dos flaneurs preguiçosos.
###
Num desses dias de sorte, pulando de canal em canal, dei de cara com um filme chamado A câmera
escura. Opa! Bom motivo pra largar o controle remoto. Filme argentino recente (La camara oscura,
2008), escrito e dirigido pela desconhecida Maria Victoria Menis, traz uma produção simples, uma
história delicada e, como o título promete, uma presença forte da fotografia.
Uma família judia aporta na Argentina fugindo da perseguição dos pogroms na Rússia, no final do século
XIX. A mulher, que chegou grávida ao país, dá a luz ainda na rampa do navio a Gertrudis, uma menina
que dizem ser muito feia. A fotografia aparece em alguns momentos de sua vida mas, sabendo-se feia, ela
trata de sempre esconder o rosto.
http://www.youtube.com/watch?v=m6Y4W3GksYE
Mesmo crescendo solitária e introspectiva, ela se casa e tem filhos com um colono, que a escolhe como
esposa por uma razão inusitada (que não vou contar). Sua família ocupa bem o seu tempo, mas não
consegue livrá-la da solidão. Certo dia, um retratista francês aparece no vilarejo e é contratado para passar
alguns dias na fazenda, fotografando a família e o local. O fotógrafo, como ele mesmo explica, viveu
experiências trágicas mas aprendeu com o surrealismo a buscar uma dimensão mais profunda e sutil da
realidade. E é assim que ele é capaz de ver beleza em Gertrudis que, aos poucos, aprende a encarar a
câmera e também a si mesma. Até encontrá-la, o fotógrafo amarga o fato de que, em seu exílio de
retratista ambulante, ninguém está preparado para entender suas fotografias experimentais.
Não é um filme difícil, intelectualizado, mas é silencioso, contemplativo e alguns fatos são mais intuídos
do que vistos. Exige-se do nosso olhar a mesma capacidade imaginativa que o fotógrafo reivindica.
Em dois momentos, sem maiores explicações, a diretora pede licença para passear por imagens
completamente descoladas da narrativa. Primeiro, uma animação que traduz o universo introspectivo da
pequena Gertrudis. Depois, num devaneio do fotógrafo, uma série de imagens experimentais que
associam elementos do filme com o cinema e a fotografia das vanguardas.
http://www.youtube.com/watch?v=vtVVbemuu4E
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De quebra, o filme dá forma a situações que hoje só conseguimos imaginar a partir dos relatos históricos.
Os fotógrafos europeus que tentavam a vida na América e perambulavam pelas pequenas cidades e
fazendas, famílias de origem humilde que buscam no retrato uma confirmação de sua recente
prosperidade, os “caixotes” que começam a conviver com as primeiras câmeras de pequeno formato,
laboratórios improvisados em celeiros. Também vemos ali, didaticamente, como se pode construir um
mundo com a fotomontágem, e como funciona uma camara obscura, que no filme se forma
acidentalmente, de um modo mais poético do que convincente.
http://www.youtube.com/watch?v=YBr-jofyY9g
Infelizmente, não é fácil encontrar o filme. Passou muito rápido pela programação de um canal pouco
interessante da TV a cabo, não me lembro de ter entrado em cartaz, e não está disponível em DVD nem
mesmo na Argentina.
Quem sabe, com um pouco de paciência, conseguimos garimpar e rencontrar em meio à multidão aquele
rosto que gostaríamos de olhar mais detidamente.
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"Pixo" na Bienal
by Ronaldo Entler - quinta-feira, abril 15, 2010
http://iconica.com.br/site/pixo-na-bienal/
(... entre um post e outro, um pensamento em voz alta, mesmo deslocado dos nossos temas...)
Mônica Bergamo noticiou na Folha Ilustrada de segunda-feira que o grupo de “pixadores” que fez um
protesto na 28a Bienal de São Paulo foi convidado a integrar a 29a edição do evento. Naquela ocasião, o
curador Ivo Mesquita criticou duramente a ação.
Deixo aqui algumas dúvidas.
O gesto de Moacir dos Anjos, atual curador, pode ser lido de modo ambíguo: pode representar a abertura
do evento a manifestações não institucionalizadas, ou pode ser uma demonstração do poder das
instituições sobre as manifestações que lhes são críticas.
Só pelas discussões que suscita, a iniciativa já é válida, como uma espécie de performance que visa
refletir sobre os limites da arte contemporânea. Mas, caso o grupo aceite, como será a intervenção? Ou
melhor, ainda será uma intervenção? Eles poderão decidir qual parede vão utilizar ou em quais obras vão
interferir? É improvável, mas quem sabe...?
Em entrevista à Folha, o curador disse:
"O que realmente queremos incluir na presente edição da Bienal é a pixação, ou simplesmente o
pixo, com ‘x’ mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em São
Paulo das pichações político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que
há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do quão ‘limpa’ ela queira
apresentar-se."
Existe aqui algo curioso. Para organizar um processo de abertura que começou lá pelos anos 60, construiuse a distinção entre o grafite e a pichação, em palavras da época, entre a arte de rua e o vandalismo. Neste
momento, abrir a Bienal para as ruas exige, novamente, dividir suas experiências: existe então a boa e a
má pichação. Soa um pouco maniqueísta.
Por enquanto, o curador pode estar dando um passo bastante razoável: se essa intervenção chegou até ali,
ali é um bom lugar para discuti-la. Mas ainda é preciso entender o que significaria a presença dos
pichadores na Bienal, para ambos os lados.
Para que o debate não se dilua precocemente, tendo a pensar que a coisa mais interessante neste momento
seria a Bienal fazer o convite e o grupo não aceitá-lo. Os pichadores continuariam sendo um fantasma que
assombra a curadoria, a curadoria seguiria tentando lidar com as forças desse além-da-arte. E agente
seguiria discutindo.
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170 anos de fotografia no Brasil. VIVA A FOTOGRAFIA
BRASILEIRA!
by Rubens Fernandes Junior - domingo, janeiro 17, 2010
http://iconica.com.br/site/170-anos-de-fotografia-no-brasil-viva-a-fotografia-brasileira/
No dia 17 de janeiro de 1840, seis meses após o anúncio oficial do advento da fotografia, uma experiência
de daguerreotipia foi realizada no Largo do Paço Imperial na cidade do Rio de Janeiro, pelo abade Louis
Compte. Sabemos pelos anúncios dos jornais da época que no navio-escola L’Orientale, viajava o Abade
Compte encarregado de propagar o advento da fotografia ao mundo. Suas experiências foram realizadas
em Salvador, em dezembro de 1839, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, mas apenas o daguerreótipo
de 17 de janeiro, tomado no Largo do Paço, sobreviveu aos nossos dias e pertence à família Imperial,
ramo Petrópolis.
O Jornal do Commercio registrou: “É preciso ter visto a cousa com os seus próprios olhos para se fazer
idéia da rapidez e do resultado da operação. Em menos de nove minutos o chafariz do Largo do Paço, a
praça do Peixe, o Mosteiro de São Bento, e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos
com tal fidelidade, precisão e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido feita pela própria mão
da natureza, e quase sem intervenção do artista.”
Se relativizarmos a questão do tempo e do espaço, seis meses na primeira metade do século XIX é um
período pequeno para a fotografia ser disseminada mundo afora. Nessa experiência realizada no Rio de
Janeiro, um jovem de 14 anos ficou, como todos os presentes, encantado e estupefato com o resultado.
Era D. Pedro II que encomendou um aparelho de daguerreotipia e tornou-se o primeiro fotógrafo amador
brasileiro. Esse impulso, somado a uma série de iniciativas pioneiras do Imperador, como a criação do
título “Photographo da Casa Imperial” a partir de 1851, atribuído a 23 profissionais (17 no Brasil e 6 no
exterior), coloca a produção fotográfica do século XIX como a mais importante da América Latina,
qualitativa e quantitativamente falando. E Marc Ferrez, que recebeu o título de “Photographo da Marinha
Imperial”, talvez seja o exemplo mais emblemático dessa produção, já que seu trabalho tem
hoje reconhecimento internacional frente à produção do século XIX.
A primeira grande sistematização da fotografia brasileira foi publicada no Rio de Janeiro, em 1946, pelo
historiador Gilberto Ferrez (1908-2000), neto e herdeiro do fotógrafo, na Revista do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, Nº 10. O ensaio A Fotografia no Brasil e um de seus mais dedicados servidores:
Marc Ferrez (1843-1923) ocupava as páginas 169-304, já trazia boas fotografias da sua coleção e buscava
mapear o movimento da fotografia no período estudado. Trinta anos mais tarde, o historiador e professor
Boris Kossoy, mostrou ao mundo que o francês Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879),
isoladamente na cidade Vila da São Carlos, atual Campinas, descobre em 1832 os processos de registro
da imagem fotográfica. E mais, escreve a palavra photographia para denominar o processo. As pesquisas
do professor Kossoy, desenvolvidas a partir de 1973 e comprovadas nos laboratórios de Rochester, nos
Estados Unidos, ganharam as páginas das principais revistas de arte e fotografia do mundo, entre elas, a
Art Forum, de fevereiro de 1976 e a Popular Photography, de novembro de 1976. No mesmo ano foi
publicada a primeira edição do livro Hercules Florence 1833: a descoberta isolada da fotografia no
Brasil, agora na terceira edição ampliada pela EDUSP.
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A tese demonstrou que esse fato isolado provocou uma reviravolta e uma nova interpretação da história
da fotografia, que tem agora seu início não mais em Nièpce e Daguerre, mas é entendida como uma série
de iniciativas de pesquisa que foram desenvolvidas quase simultaneamente, gestando o advento da
fotografia. Uma nova história da fotografia relaciona os nomes dos pioneiros sem hierarquizá-los ou
priorizá-los do ponto de vista da descoberta.
É importante nos lembrarmos destas nossas iniciativas pioneiras, pois além de sistematizarem uma
história mínima, nos propiciaram a possibilidade de buscar e relacionar outras fontes e trazer à superfície
a história de muitos outros profissionais que desenvolveram incríveis trabalhos de documentação e
linguagem. O novo gesta-se no conhecido, uma idéia que dá importância ao conhecimento acumulado por
todos aqueles que têm preocupação de pesquisar e democratizar informações com o intuito de que outros
pesquisadores desenvolvam novas reflexões e indagações diversas a partir do que foi estabelecido.
Nesses últimos anos, diversos livros foram publicados sobre a produção fotográfica brasileira produzida
no século XIX e primeira metade do século XX, enriquecendo a iconografia conhecida e agregando
alguns dados novos sobre a biografia dos fotógrafos e suas trajetórias profissionais. Além disso, o
interesse despertado em jovens pesquisadores, em todo o Brasil, evidencia a urgência de sistematizar
informações, divulgar acervos e coleções e estabelecer parâmetros de análise e crítica sobre a produção e
preservação fotográfica. Dezenas de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado foram apresentadas
nos últimos anos, algumas delas já publicadas, demonstrando que precisamos encorpar, relacionar e
preservar nossa fotografia, bem como discutir a produção contemporânea com o intuito de produzir um
corpus mínimo capaz de facilitar nossa compreensão sobre a fotografia enquanto fato cultural da maior
importância para a identidade e memória de um povo.
Infelizmente nenhum Museu ou Instituição Cultural programou alguma atividade para celebrar os 170
anos da fotografia no Brasil, mas com este texto queremos reforçar a máxima popular que diz “um país
sem memória é um país sem história”. Particularmente, estamos programando um Seminário, ainda este
semestre, cujo objetivo será comemorar esta data, com discussão, reflexão e crítica sobre a fotografia
brasileira. O momento é olhar um pouco para trás para fortalecer o presente e criar bases sólidas para
refletir sobre o novo cenário da imagem técnica, particularmente a fotografia.
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25 anos de A ILUSÃO ESPECULAR
by Rubens Fernandes Junior - terça-feira, outubro 27, 2009
http://iconica.com.br/site/25-anos-de-a-ilusao-especular/
O Brasil não gosta de efemérides. Muito menos de discutir mecanismos de preservação e conservação de
informações que pertencem à nossa história. Ou até mesmo as reedições são raras em nossa história do
livro, particularmente do livro de fotografia. Acreditamos até o último momento que alguma editora
pudesse fazer uma nova edição deste clássico da fotografia brasileira.
O livro A Ilusão Especular – Introdução à Fotografia, de Arlindo Machado, foi publicado em 1984,
graças a uma ação conjunta entre a Editora Brasiliense e o Instituto Nacional da Fotografia/Funarte, e ao
esforço de Pedro Vasquez, na época Diretor do INFOTO. Por iniciativa própria e por acreditar que
também temos que contemplar a produção dos pesquisadores, historiadores e críticos que pensam a
fotografia como uma manifestação visual particular e com características próprias, Pedro Vasquez criou a
Coleção “Luz e Reflexão”, iniciada em 1983, com a publicação de Universos e Arrabaldes, de Luis
Humberto. Pedro Vasquez justificou a importância da coleção que se propunha, entre outras metas,
“garantir em espaço fixo para o debate das questões fotográficas”.
No início da década de 1980 várias editoras arriscaram a publicação em língua portuguesa de livros que
contemplavam a fotografia: em 1981, tivemos Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, e A Câmara
Clara de Roland Barthes; e, em 1985 Vilém Flusser com o antológico Filosofia da Caixa Preta – ensaios
para uma futura filosofia da fotografia.
Isso nos permitiu antever um espaço de democratização da produção científica, crítica e histórica da
fotografia, ao mesmo tempo em que se abria uma nova possibilidade de articulação entre os diferentes
autores que potencializaram o campo da reflexão fotográfica.
Por razões diversas a coleção idealizada não progrediu, mas A Ilusão Especular tornou-se referência
obrigatória para fotógrafos e pesquisadores. Uma rápida pesquisa nos sites de vendas de livros é possível,
de tempos em tempos, se deparar com algum exemplar “em bom estado” de A Ilusão Especular, por um
preço assustador: R$ 300,00. Como vimos isto ser praticado nos últimos anos, já se justifica uma nova
edição.
Queremos lembrar Arlindo Machado que na Introdução assinala: “ O que nós chamamos aqui ‘ilusão
especular’ não é senão um conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram
florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um
poder revelatório. A fotografia, em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida
como ‘espelho do mundo’, só que um espelho dotado de memória”.
Parece que os nossos editores se pretendem efêmeros, não dotados de memória. Mesmo assim, vale o
registro dos 25 anos de existência de um dos textos mais citados em teses acadêmicas no país que versam
sobre fotografia.
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40 anos de Viagem pelo Fantástico – fotografias de Boris Kossoy
by Rubens Fernandes Junior - segunda-feira, outubro 03, 2011
http://iconica.com.br/site/40-anos-de-viagem-pelo-fantastico-fotografias-de-boris-kossoy/
Há poucos dias fui surpreendido pelo curador de fotografia da Pinacoteca do Estado, Diógenes Moura,
com um comentário: “você sabia que faz 40 anos que foi publicado o livro Viagem pelo Fantástico, de
Boris Kossoy?”. Realmente, não tinha me dado conta da data – junho de 1971 –, mas imediatamente
indaguei se poderia usar essa informação para escrever aqui no Icônica. Liberado, me questionei: se tenho
um bom arquivo, se documento uma cronologia da fotografia brasileira há décadas para manter-me
atualizado, por que não faço consultas com regularidade para poder celebrar certas datas?
Devemos respeitar mais nossa história e comemorar algumas efemérides que pontuam as principais
referências. E para isso precisamos refrescar permanentemente nossa memória. O livro de fotografias de
Boris Kossoy, Viagem pelo Fantástico, da Livraria Kosmos Editora, esgotadíssimo, ainda hoje é
desconcertante. Para a nova geração de artistas e fotógrafos que não teve a oportunidade de folhear as
páginas desta viagem, é preciso descrever um pouco o ousado projeto gráfico e a direção de arte (ambos
de Kossoy).
O livro é trilíngue – português, inglês e francês –, coisa rara naquele momento, é impresso em dois tipos
de papel, craft e couche, formato 22 X 31,3 cm, e tem prefácio de Pietro Maria Bardi, o então diretor do
Museu de Arte de São Paulo. Na primeira guarda, traz uma fotografia em forma circular de um berço
(lado direito) e de um relógio (lado direito) que marca exatamente 6H44m. Na outra guarda, a fotografia
também circular de um manequim menino (lado direito) e de um relógio distorcido (lado esquerdo), como
as representações surrealistas de Salvador Dali. O tempo passou pelas páginas da viagem e as fotografias
deixam claro que nada é gratuito nesta obra diferenciada no cenário editorial do Brasil e da América
Latina.
Depois do texto de Bardi, que exalta o trabalho fotográfico e se refere a ele dizendo que “estamos
vivendo num tempo de novos ideogramas”, chegamos às fotografias de Kossoy divididas como se fossem
dez pequenos ensaios – A mulher e a cidade; Cenas num parque; Aeroporto; A estrada de ferro; A
montanha; O viaduto; Cenas numa casa; Poder mágico; O maestro; Outros tempos... Aliás, o próprio
autor recentemente denominou os capítulos de “contos fotográficos que exploravam o drama existencial,
os cenários urbanos, além de enveredar pelo político, a partir de imagens simbólicas”.
Kossoy propõe e assume em sua fotografia um caráter ficcional e traz elementos conflitantes na cena
questionando nossa certeza sobre o estatuto da veracidade fotográfica (vide a sequência Cenas num
parque). Em outros ensaios migra de uma fotografia documental incomum para imagens que provocam
dúvidas acerca da nossa compreensão de realidade. Uma espécie de tableau vivant que combina intensa
dramaticidade com um cenário absolutamente non sense.
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As fotografias querem contar uma história, mas as conexões e as combinações são de responsabilidade do
leitor que tece uma narrativa possível dentre as inúmeras propostas pelo autor. Ou seja, podemos entender
o livro Viagem pelo Fantástico como uma obra aberta, uma vez que a intensa qualidade narrativa
possibilita a proximidade de imagens díspares. Por exemplo, como justapor a fotografia da mulher-noiva
aguardando os acontecimentos na estação ferroviária com aquela do maestro diante de dezenas de
túmulos (um dos quais mostra o nome de Perpétua), regendo dramaticamente uma sinfonia silenciosa?
O interessante é justamente buscar entender em nossa livre associação que Kossoy não segue a tradição
da fotografia documental produzida naquele momento no país, mas busca se enveredar pela tensão, pelo
instante aparentemente encontrado ao acaso, mas que foi meticulosamente engendrado. A literatura é sua
principal influência, daí essa sensação de inquietude que instiga nossa curiosidade sobre sua
representação fotográfica que cria espaços para buscar aproximar aquele mundo representado da nossa
experiência sócio-cultural.
Olhando com os olhos de hoje, o livro é muito especial e raro. Primeiro, porque talvez ele represente o
melhor da experiência com a linguagem fotográfica; depois, porque reúne Bardi e Kossoy, dois nomes
emblemáticos das artes visuais no Brasil; e, finalmente, porque é o projeto editorial de livro fotográfico
mais arrojado que tivemos nas últimas décadas. E mais, Viagem pelo Fantástico permanece
contemporâneo porque confere à nossa imaginação o poder de criar sem obviedade uma livre associação
homem-mundo. Quando escrevo contemporâneo, quero me aproximar da proposta de Giorgio Agamben:
“contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o
escuro. (...) o contemporâneo é justamente aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe
concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente a
ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém do seu tempo”.
***
Site de Boris Kossoy: www.boriskossoy.com
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A cidade como autorretrato [parte I]*
by Mauricio Lissovsky - segunda-feira, dezembro 03, 2012
http://iconica.com.br/site/a-cidade-como-autorretrato-parte-i/
Nas cidades, tudo conspira contra a contemplação. A cidade exige de nós velocidade, instantaneidade,
decisão. Não é por acaso que a cidade fotografada encontra sua expressão mais notória em um tipo de
imagem que veio a chamar-se street photography, onde estes valores tornam-se aqueles que nos
habituamos a esperar de uma fotografia. De fato, nesta tensão entre o hábito, e mesmo o tédio, por um
lado, e a agilidade que requer “reflexos rápidos”, constrói-se esta “afinidade eletiva” entre fotografia e
cidade que só fez crescer ao longo do século XX. A cidade tornou-se o fotografável por excelência, em
uma relação similar à que ocorreu entre a xilogravura e a ruína, ou entre a aquarela e a marina.
Martin Chambi, Cuzco, Peru, c.1930 / Horacio Coppola, Buenos Aires, Argentina, 1936.
Martin Chambi, Kiorikancha , Peru, 1940.
No alvorecer do modernismo, na década de 1930, duas cidades são fotografadas por dois fotógrafos sulamericanos: Cuzco por Martin Chambi; Buenos Aires por Horacio Coppola. Apesar de ambos estarem
fortemente marcados por esta afinidade entre fotografia e cidade, não pode haver maior evidência do
contraste entre eles do que estas duas ruas. Em Chambi, a fotografia é um instrumento da ressurgência
heróica das forças do passado incaico. Fotografia anacrônica, como esta sua famosa imagem de uma
Igreja em Kiorikancha, erguida sobre o templo inca que uma escavação acabara de revelar. A descoberta
dos poderes transformadores da imagem será celebrada em um autorretrato magnífico, de 1923, onde
Chambi contempla o negativo de outro autorretrato, feito de Arequipa, um ou dois anos antes, no refinado
estúdio dos Irmãos Vargas, onde o fotógrafo havia aprendido a técnica e os truques do retrato burguês.
Mas será sobre a própria paisagem das cidades andinas que Chambi irá compor seu mais incisivo
autorretrato.
Martin Chambi, Moon Temple, Machu Picchu, Peru, 1931 / Eugéne Atget, Au Tambour, Paris, 1908
Muitos paralelos poderiam se traçados entre a Cuzco de Chambi e a Paris de Atget. Em ambos, a mesma
força anacrônica. Atget faz troça de si mesmo no momento em que decide ser ele próprio um antiquário
(o colecionador deste repertório de formas em vias de desaparecer que é o seu arquivo de “documentos
para artistas. O fotógrafo tem a face mil vezes refratada em seu arquivo. Chambi, ao contrário, assinala na
própria sombra projetada sobre o Templo da Lua, a força de uma aparição, de uma sobrevivência. É por
fazer de si e de sua fotografia um modo de favorecer esta ”aparição” que Chambi é peculiarmente
moderno, enquanto Atget terá que ser “deformado” pelos surrealistas tornar-se um.
Horacio Coppola, Buenos Aires, 1931
O lugar ocupado pela sombra nos ajuda a observar o contraste entre Chambi e Coppola de modo ainda
mais interessante. Em Chambi, a sombra sinaliza para a máquina de ressurreição de uma cidade soterrada
sob as pedras e debaixo da peles dos habitantes de Cuzco. Em Coppola, a sombra é o que sinaliza o
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poder da câmera de agregar uma qualidade nova, uma qualidade moderna, universalmente moderna, a
Buenos Aires. A carroça é submetida aqui a um conhecido truque Moholyano (a inversão), cujo objetivo
era demonstrar a capacidade da fotografia de engendrar uma “nova visão”.
Chambi e Coppola sintetizam – porque levam a extremos – duas formas de anacronismo características da
fotografia urbana latino-americana durante grande parte do século XX. Em Chambi, a câmera projeta
sobre o mundo a memória, como se o registro arcaico recobrisse a atualidade. Em Coppola, a câmara se
volta para dentro de si própria, para este olhar visionário transformado pelo dispositivo técnico e que
permite antever a essência de uma cidade moderna. É na tensão destes anacronismos que os imaginários
urbanos sul-americanos frutificam: o anacronismo das sobrevivências, das ressurreições e dos fantasmas;
e o anacronismo das “reconfigurações” do olhar moderno que renova tudo o que toca. Autorretratos de
nossos sonhos e expectativas.
-------------* Este texto é parte da conferência que fiz na New York University, em 11/11/2012, no seminário
“Cidades Imaginadas: Arte, cultura, política e a invenção de espaços urbanos na América Latina”. O
meu painel, dedicado à fotografia, contou com a participação de Cláudia Jaguaribe e Cássio
Vasconcellos.
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A construção de uma geração
by Ronaldo Entler - terça-feira, abril 19, 2011
http://iconica.com.br/site/a-construcao-de-uma-geracao/
Geração 00 é uma mostra que assume um grande desafio e, claro, alguns riscos: pensar a produção
fotográfica de um período marcado pela liberdade de procedimentos, pela velocidade das mudanças, uma
década sem um marco inicial e sem um desfecho evidente, vivida por artistas de formações e idades
muito distintas.
Seria pretensioso propor o mapa de um território movediço que, se tem uma marca evidente, é a
despreocupação com suas fronteiras (aquilo que distingue a fotografia de outras linguagens artísticas e,
ainda, aquilo que define cada um de seus usos sociais). Mas Eder Chiodetto, curador da exposição, é
cuidadoso ao dizer que o que pretende é sintetizar não propriamente essa produção recente, mas suas
principais “linhas de força”. Sendo assim, não cabe julgar o resultado pelos nomes individuais
selecionados ou, sequer, por um ou outro tipo de fotografia que ficamos tentados a identificar como
hegemônico.
Podemos pensar em instalação, performance, vídeoarte, foto-filme, infografia, abstracionismo, fotografia
construída etc. De algum modo, essas experiências estão lá devidamente representadas. Mas essas
palavras que tentaram dar conta de um universo de experimentações surgidas nos últimos trinta, quarenta
anos, de um lado, já revelaram seus limites e, de outro, já se institucionalizaram. Em vez de novas
nomenclaturas e categorias unificantes, essa síntese visa promover uma experiência efetiva com a
pluralidade.
A ênfase dada às novas tecnologias poderia apontar para um tipo didático de transgressão, ainda
preocupado demais em expor uma "denúncia" da tradição. Mas estão lá as grandes e as pequenas
experimentações, da desmontagem mais evidente dos códigos ao gesto sutil de encenação que perturba a
confiança na imagem. E, cabe dizer, também está lá a “fotografia-fotografia”, colocada na moldura, na
parede, estão lá o documento, a memória, o fotojornalismo, a pesquisa antropológica, velhas coisas que,
num certo momento, a fotografia pareceu ter de negar para se afirmar contemporânea. Exatamente pelo
embate que propõe entre a tradição documental e a experimentação, a leitura proposta pelo bloco
“Documental Imaginário, Novo Fotojornalismo” me pareceu a mais impactante.
Se eu tivesse de apontar algo que distingue a produção dessa década, arriscaria o seguinte: agora, as
liberdades conquistadas nas gerações anteriores podem ser praticadas sem a necessidade de uma bandeira,
sem a eleição de um inimigo, sem rituais de auto-afirmação. Essa liberdade significa a “possibilidade” e
não a “obrigação” da transgressão. E é isso que permite a reinvenção do documental nesse campo de
experimentação, é isso também que sepulta a velha e precária distinção entre fotojornalismo e fotografia
artística.
A exposição acerta ao dosar bem suas pretensões: não se trata de tentar definir – como tantas vezes se
tentou - o que é a fotografia contemporânea, mas sim de apontar potencialidades (as “linhas de força”)
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que foram consolidadas nessa década, mesmo que não necessariamente nela inauguradas. Estranhamos
encontrar ali Cláudia Andujar, com uma fotografia de 1976. O texto fala em homenagem, mas também
podemos entender essa presença como uma espécie de relativização: o reconhecimento de que toda
periodização é arbitrária, de que a história é feita sempre de diálogos, sobreposições e retornos. Portanto,
assim como Cláudia Andujar soube se renovar nas décadas seguintes, todas as novidades propostas por
essa nova geração têm também seu devido diálogo com a história.
A exposição possui dois blocos: “Limites, Metalinguagem” e “Documental Imaginário, Novo
Fotojornalismo”. Honestamente, eu preferia que não houesse esse salto, mas imagino que havia ali
limitações impostas pelo espaço. Também reconheço que essa separação ajuda a identificar dois efeitos
produzido pela síntese proposta: mesmo que não haja homogeneidade, enxergamos dentro dos blocos
certas “concentrações de força” (alguns modos peculiares de se debater com o meio), e mesmo que não
haja contradições, a passagem entre os blocos sugere a presença de “tensões de forças” (entre uma
imagem que quer pensar a si mesma e outra que ainda tenta dar conta do mundo diante da câmera).
Vi que essa exposição gerou dúvidas que, creio, a própria fotografia pode ajudar a responder.
Essa curadoria produz um retrato fiel dessa geração? Não. Mas e a fotografia, ela própria, produz um
retrato fiel de alguma coisa? A curadoria também é um recorte que, como tal, assume seus limites, exclui,
mas também permite a leitura de um extraquadro. Seria estranho supor que uma obra está ali
representando outras de sua categoria. A própria exposição nos convida a duvidar da ideia de categorias
representativas, e esperamos ter outras oportunidades para ver aquilo de bom ou de ruim que ficou de
fora. Mas é preciso reconhecer que a reflexão que se desprende da exposição é sim bastante inclusiva:
demarca e estimula a sensibilidade ampla que a produção contemporânea exige. Assim, essa experiência
certamente nos ajuda a pensar outros tantos artistas dessa mesma geração que não foram mostrados.
Aliás, muitos deles estavam lá na abertura da exposição reforçando o debate sobre uma experiência que
ajudaram a construir.
Mais do que identificar, essa curadoria não constrói uma idéia de geração? Sim. Mas e a fotografia, não é
ela também uma construção? Ao tentar identificar um fenômeno, uma investida conceitual desse porte
certamente lhe impõe um modo de existência. É ao mesmo tempo uma leitura e uma ação, isto é, uma
curadoria é o sinalizador e o motor dos processos que apresenta. Na prática, Chiodetto já teve um papel
importante na projeção de alguns daqueles nomes e na afirmação de seus trabalhos. E é evidente que uma
exposição como essa pode fazer o mesmo com outros artistas menos consagrados. Não é preciso ver isso
com moralismo, temos hoje plena consciência de que o crítico, o curador e o colecionador são coautores
dos sentidos que, depois, com algumas décadas ou séculos de distanciamento, os historiadores tentarão
alinhavar. Se isso soa algo perigoso, Eder Chiodetto parece ter a devida consciência de que, além das
questões estéticas obviamente implicadas, esse gesto de poder também exige uma ética. Se as escolhas
feitas por um curador são sempre arbitrárias, tem sido exemplar o modo como ele se abre ao diálogo,
como expõe seus critérios, como discute suas decisões nos textos, palestras, aulas, nas visitas guiadas e
nas conversas informais.
Qualquer um que passar por lá vai lembrar de uma dúzia de nomes que gostaria de ver incluídos. Também
pode estranhar uma ou outra presença. Mas é impossível não reconhecer a força do conjunto apresentado.
Aguardaremos outras leituras, mas esta geração já se revelou privilegiada, pelo que produziu, mas
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também por merecer uma exposição como esta.
***
Geração 00 fica em cartaz no Sesc Belenzinho, em São Paulo, até o dia 12/06.
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A crueldade que reivindica o fantasma da fotografia*
by Cláudia Linhares Sanz - segunda-feira, abril 08, 2013
http://iconica.com.br/site/a-crueldade-que-reivindica-o-fantasma-da-fotografia/
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Da série de fatos inexplicáveis que são o universo ou o tempo acrescentaria a fotografia. Uma espécie
gabinete mágico, a espera de que algo aconteça para, enfim, revelar-se.
Sua sobrevivência histórica é ainda mais enigmática. Hoje? Entre tantas tecnologias inovadoras, entre
tantos hibridismos imagéticos: como poderia a fotografia não ter sido totalmente tragada pelas famílias de
imagens que não cessam de se multiplicar e fundir-se?
Sua persistência é, provavelmente, acontecimento que ninguém poderia pressentir. A despeito dos
prognósticos mais acurados de teóricos e pensadores da mais alta qualidade, que avistavam apenas seu
declínio histórico e seu desuso prático; a despeito da diminuição de sua eficácia e de seu poder: a
fotografia hoje salga.
Salga, porque, como a carne, se sacrifica por outra. Mas salga também porque nesse sacrifício parece
conservar o trânsito da voz que, um dia, teria já entoado. Salga como os alimentos, que têm sua
decomposição ralentada – salga porque se compõem enquanto se decompõe. Mas como se haveria de
salgar?
Sua persistência acontece disseminada, dissimulada, transmutada¬ em várias imagens, vários objetos.
Uma persistência da qual só conhecemos seus restos, vestígios da carne que foi convertida em
“outramentos”, como aqueles fósseis aquáticos que criam suas próprias sedimentologias. Sedimentada –
em todos os instantes que transcorreram entre os dias em que primeiro veio a ser e os de nossa atualidade
– a experiência fotográfica carrega a projeção em retrospectiva das diferenças e das sincronias entre
aquilo em que ela se constituiu e o que já não pode mais ser. Entre aquela crise temporal que a configurou
e uma profunda alteração tanto no diagrama da temporalidade do mundo quanto da imagem. Entre um
estado intensivo que efetiva o tempo de acontecimentos – aquele que a cronologia não consegue devorar
– e as dificuldades que as fotografias contemporâneas apresentam em disponibilizar tal experiência.
Cia de Foto, Prefácio, 2012
A fotografia atual se tornou o fóssil da convivência de dois regimes concomitantes, duplamente relativos,
posto que um só pode se dizer em relação ao outro. Dois regimes que compartilham em segredo a tensa
coexistência entre o que podia e o que já não pode mais.
Se a fotografia cometeu suicídio (como pensou a pesquisadora norte-americana Abigail SolomonGodeau), é esse fantasma que ronda por aí. Espírito teimoso que, ao vagar pela história, ri quando adentra
os lugares sem ser convidado. Ri quando se apodera das casas; dos contos dos escritores; dos garçons e da
cigarras. Espírito do ar que vaga principalmente na vida cotidiana. Viajando, carrega em sua bagagem o
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enigma de fazer o tempo abismar por uma espécie de voo suspenso, distensão do tempo na contração do
movimento.
É esse enigma que ele tenta disseminar, soprando no ouvido das dezenas de milhares de pessoas que,
seguram câmeras (já não são estritamente fotográficas) e ainda exclamam:
Fo.... to... gra.....fi....a....
Então, quando percebemos a profunda aderência entre a vida comum contemporânea e a imagem, ele
novamente sopra: Fo.... to... gra.....fi....a...., e quando vemos que a imagem abdicou do acontecimento e
preferiu a banalidade..., lá vem ele novamente: Fo.... to... gra.....fi....a....
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Talvez sejam anjos também, mas, sobretudo ele, esse fantasma. Talvez o que os anjos façam seja apenas
guardar a sorte dessa alma vagante. Entendido, então. É o sussurro dele, tentando manter sob seu domínio
toda a compulsividade imagética que se integra ao cotidiano contemporâneo; é seu reclame que diante da
naturalização com que os dispositivos imagéticos se impõem hoje à vida do homem comum ainda nos faz
pronunciar, ecoando seu sopro, Fo...to...gra...fia.
O ritmo, a frequência, a quantidade e o destino das imagens atuais e todo esse deslocamento das
representações... e o fantasma insiste: fo...to...gra...fia. Quando a imagem assume o caráter monumental
no mundo contemporâneo, ele ainda repete: fo...to...gra...fia.
Sopra principalmente ao ouvido dos passantes da vida ordinária – que, desatentos, só repetem o anúncio.
O Espírito ri (decerto). Ri principalmente quando faz os mais atentos sentirem sua presença no momento
exato em que já se vai. Sua gargalhada ecoa no espaço, e, enquanto repetimos sua sentença, nossa voz já
não faz mais sentido para nós.
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Fotografia???
Ele ri e sai porque sabe que está sempre ameaçado, passível de desaparecimento. O eco do seu riso é,
então, a convivência paradoxal de dois regimes de visibilidade.
O fantasma nos faz indagar se estaríamos livres de seus ecos se, como aconteceram com outros sujeitos,
as imagens fotográficas de todos os nomes perdidos tivessem pouco a pouco desaparecido, sem deixar
rastros ou vestígios. Talvez o fantasma nem saiba que, no fundo, a história concedeu-lhe o privilégio do
abandono: esquecido nos arquivos, nos álbuns, nas casas, nos olhares. Escapando por vezes da lei
compulsória da mudança, ficou por aí, se movendo entre as imagens, rindo de nós, fazendo com que sua
presença seja sentida toda vez a que nos deparamos com uma vertigem temporal concentrada, com a força
abismal que a duração, liberta do movimento, dispara.
Trágico que ele ainda exista: toda vez que sopra pelo ar o vulto fo...to...gra...fia e consegue fazer disparar
estados fotográficos (que já não dependem sequer da existência de uma única fotografia) nos exige lidar
com o precipício de um tempo intensivo. Sem que de fato habite plenamente no presente, nos obriga a
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lembrar a fragilidade de nossa existência e o nosso limite em pensá-la. Nos coloca em perigo porque
testemunha que os caminhos do labirinto da fotografia e do tempo são como caminhos no mar, fugitivos
da métrica.
Pois essa é a crise que o fantasma, nos atingindo com estados fotográficos, disponibiliza. Nos retira do
fluxo habitual e nos faz ingressar numa duração sem medidas espaciais. Se enfrentamos a imagem
petrificada de nossa eternidade, também a lucidez nos ocupa e, num instalo, percebemos que essa é desde
já a imagem do esquecimento que seremos. O estado fotográfico requer, então, que se concilie a inscrição
dos rastros de nós mesmos com a vastidão do esquecimento que elas implicam. Instala-se a suspensão:
andaria o tempo apenas de ida? Caminhos entrelaçados nesse enredo fotográfico nos dirigem ao passado,
como se andássemos para trás, simultaneamente, a que nos aproximam do fim. Como se entrássemos no
fim pelo caminho de trás, como se as pontas do tempo se tocassem através de um pequeno buraco de
agulha. Desse orifício, nos encontramos com a imagem impossível do instante e, simultaneamente, com a
materialidade da experiência de momentos de sobressaltos, com a potência da singularidade temporal.
Cia de Foto, Prefácio, 2012
Nesse abismo que já não se pode medir com o deslocamento dos ponteiros do relógio, emerge a crueldade
que reivindica o fantasma da fotografia: o enigma de um tempo sem movimento.
Pois me parece que a perversidade desse vulto, senhor de estados fotográficos, está em instalar dobras
temporais infinitas sem que nada necessariamente se mova. Dobras entre ciência e magia; poesia e
pensamento; tristeza e alegria; entre os tempos passados, presentes e futuros; entre perda e vida;
destruição e preservação; escrita e seus sucessivos apagamentos. O fantasma, assim, nos coloca diante de
um labirinto de dobras, num conjunto de percursos intrincados que, desorientados, tentamos percorrer
sem que de fato algo se desloque. Já não é mais a história e sua decorrência cronológica que nos separa do
que encontramos na imagem. Já não se pode seguir linearmente a história para distinguir a minha da
presença do passado; já não transitamos na extensão. Desenrolamos virtualmente os fios de novelos
contorcidos e bifurcantes em um território sem centímetros, que flui verticalmente, fora das réguas.
A sobrevivência fotográfica no mundo contemporâneo é trágica porque não nos permite esquecer; trágica,
porque nos coloca diante do destino das imagens e do nosso destino. Por que vagaria ainda a voz do
fantasma? Viva e, simultaneamente, morta; potência sem corpo, a fantasmagoria do estado fotográfico
nos faz pesar o fato de ainda sermos tomados por estados fotográficos quando já não sabemos se podemos
suportar sua experiência: quando já não podemos esperar nem hesitar para clicar; quando já não
desejamos lidar com a ausência do movimento; quando o instante já não parece pretender interromper o
fluxo; nem crivar o tempo com a marca do acontecimento.
----* Adaptação do texto publicado em Prefácio, livro de Cia de Foto com texto de Cláudia Linhares Sanz e
Ronaldo Entler, dezembro de 2012.
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A escola e a fábula da câmera total – Parte I
by Cláudia Linhares Sanz - terça-feira, abril 15, 2014
http://iconica.com.br/site/a-escola-e-a-fabula-da-camera-total-parte-i/
Fritz Lang, fotograma do filme Metrópolis, 1927
Há alguns dias, uma aluna contou em sala, na Universidade de Brasília, uma sequência de fatos recentes
ocorridos na turma em que é professora, segunda série do ensino fundamental, numa escola pública do
Plano Piloto do Distrito Federal. Seu depoimento gerou um debate interessante acerca das imagens que
nos são sincrônicas no regime de visibilidade contemporâneo e sua relação com a escola; debate daqueles
que nos fazem ficar um bom tempo refletindo sobre eles. Meses; às vezes anos. Pois bem, um furto deu
início aos eventos.
O dinheiro da carteira de um dos alunos da escola – que têm em média oito ou nove anos – tinha
desaparecido dentro da sala. O fato gerou uma série de desconfortos, conversas, discussões ríspidas entre
pais, alunos, professores e diretora. Em primeiro lugar, a professora tratou de colocar o furto em discurso.
O “ladrão” deveria – segundo minha aluna – confessar seu ato e tudo, então, voltaria ao normal. A técnica
da confissão, como nas escolas disciplinares descritas por Foucault, foi evocada como dever fundamental
para o bom relacionamento da turma. A professora, em mais de uma “conversa” dedicou-se
obstinadamente, representando as instâncias de poder da escola, a ouvir falar e fazê-lo falar (ele próprio, o
ladrão, quem quer que fosse) de modo explícito sobre o pequeno delito. Por confidência sutil ou por
interrogatório autoritário, o furto deveria ser dito, e a conduta de confissão levaria, então, à solução do
constrangimento geral. Deveria, mas não levou.
Jo Ainley, Vigilância.
A autoridade da professora não foi capaz de incidir de fato na conduta requerida. A exigência e a ameaça,
métodos de inquisição, não surtiram nenhum efeito coercivo diante do pequeno e provavelmente pontual
“delinquente”. O silêncio total – do culpado e de seus colegas – deixou a professora e a escola diante de
um impasse. Depois de seguidas reclamações dos pais, a diretora da escola convidou a professora para
uma conversa e, juntas (na verdade, por sugestão da diretora), reformularam a estratégia. Ao final das
aulas do dia seguinte, a professora desfiou, para a turma, sua fábula. Nela, a direção da escola e a
professora já conheciam a identidade do culpado porque as câmeras dispostas nas salas de aula lhes
tinham contado quem teria cometido o furto e comprovado a ação. Por compaixão, a professora estava
dando a última chance para que o culpado se entregasse por conta própria, que confessasse uma
explicação – não um esclarecimento de si (porque isso não parecia importar) mas do mau comportamento.
Alguns dias depois, o silêncio foi quebrado por um bilhete escrito com “péssima caligrafia” (segundo a
professora), sem assinatura, declarando: “roubei o dinheiro, mas desculpa não tenho dinheiro para pagar”.
A professora reconheceu a letra do aluno, chamou os responsáveis por ele, e “o mau indivíduo” (que, na
verdade, era órfão e morava há alguns meses na cidade com uma tia) foi enviado, “devolvido”,
novamente ao Piauí. A câmera imaginária, no entanto, permaneceu na sala de aula, em Brasília.
Não sabemos ao certo quantos acreditaram ou ainda acreditam em sua existência dentro de um espaço tão
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íntimo quanto a escola pode parecer para as crianças. Também difícil seria dizer quantas das crianças já
procuraram averiguar sua materialidade nos cantos da escola ou o que a imaginação infantil foi capaz de
produzir a partir da “existência” dessas câmeras invisíveis no local em que passam grande parte de seus
dias. Teria alguma criança levado as câmeras que tudo veem também para os seus sonhos?
A professora não pode desmentir-se, sob pena de perder a autoridade que ainda lhe resta. Assim
resguarda, protege, acoberta, com o apoio de sua diretora, a perversa “fábula da câmera total”, perdendo a
oportunidade de transformar o fato em algo verdadeiramente “pedagógico”, desperdiçando a chance de
verter o infortúnio em um acontecimento comum. Trata-se aqui de um pedido de clemência: o regime
disciplinar implorando ajuda às tecnologias contemporâneas de vigilância para se manter minimamente
moribundo.
Imaginemos, então, o que está acontecendo exatamente agora nessa sala de aula, mediada por uma
câmera que tudo vê e nunca é vista. Numa espécie de pique-esconde eterno, os “pegos” nunca finalizam
sua contagem, nunca surgem de nenhum “pique”; sem rosto, estão continuamente em todos os lugares,
simultaneamente, funcionando no “modo” TOTAL. Por outro lado, nesse jogo involuntário as crianças
não são capazes, de fato, de se esconder em nenhum canto de parede, debaixo de nenhuma mesa, atrás de
nenhuma cortina. Como no panóptico, “se o olho está escondido, ele me olha, ainda quando não me esteja
vendo”.
Denis Beaubois, In the event of Amnesia the city will recall… 1996 – 1997 (Instalação).
Primeiro, seria interessante pensar o que possibilita e legitima a criação de câmeras invisíveis dentro dos
espaços privados de uma escola como único dispositivo capaz de instaurar o acordo escolar (porque,
temos de admitir, só as técnicas disciplinares tradicionais, o discurso e a ameaça de ação punitiva da
professora não foram capazes, não é mesmo?). De que escola e de que falência trata, então, a fábula da
câmera invisível? Depois, também nos parece relevante indagar que corpos e subjetividades a ideia dessa
câmera invisível pode produzir na escola, que modos de ser estão sendo estimulados por essas câmeras de
ver. O que sentiriam esses alunos que estão permanentemente “guardados” pelo olhar do outro? Trata-se
de um olhar especular, invisível, superior, capaz de vigiar e de punir, mas, além disso, capaz de tornar
cada uma daquelas crianças, incluídas as que não cometeram qualquer delito, um ser/comportamento
controlado e exibível, simultaneamente.
De fato, poderíamos investigar se não estaria sendo efetivado nessa escola um corpo-sujeito dócil (ou
artificialmente dócil), mas, também, bastante exteriorizado, exibicionista e performático. Ou vão dizer
que a câmera só funcionaria para os “maus indivíduos ladrões de carteira”? Iriam os “bons indivíduos”
provavelmente exceder seus bons comportamentos a fim de fazê-los visíveis? Assim, seria possível supor
que a existência da câmera invisível irá gerar outros efeitos além do constrangimento paranoico nos
alunos. Apoiados na subjetividade contemporânea, poderíamos ironicamente até imaginar que os alunos
experimentam certo prazer em estar sendo filmados. Explico. Não se trata apenas de “atualizar” a
vigilância moderna. Essas câmeras, sejam visíveis ou não, fazem parte de uma subjetividade em
transformação que tem nas tecnologias da imagem um de seu pilares.
Como Benjamin afirmou, “todo o presente é determinado pelas imagens que lhe são sincrônicas”. Em sua
perspectiva, “cada agora” é o agora de um certo reconhecimento, o agora de uma legibilidade própria, e
cada época histórica é determinada por uma constelação de imagens. Isso significa, primeiramente, que
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algumas imagens só se tornam legíveis em uma determinada época e atingir essa legibilidade constitui um
certo ponto crítico específico do movimento interior das próprias imagens. Por essa razão, conclui
Benjamin, “a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir”. Sendo histórica, a verdade
dependeria também das imagens que emergem em nossos regimes de visibilidade. Cabe ressaltar que,
nesse sentido, imagem e política, percepção e história não são dimensões que se entrelaçam apenas, mas
agem reciprocamente umas sobre as outras. A imagem adquire, no pensamento de Benjamin uma
característica ambivalente: assume a potência catalisadora de absorver seu momento histórico (ser efeito
de uma época) e, simultaneamente, fazer nascer outros sentidos para a história e para a arte.
Bansky
Nesse aspecto, a “fábula da câmera total” – sustentada nessa escola a justificativa de uma espécie de
estado de exceção produzido por um pequeno furto (para pensarmos com Giorgio Agamben) – não
representa apenas uma mentira enunciada por professores, mantida provavelmente também pelos pais,
tornando-os tão mentirosos quanto os “mestres”. Do mesmo modo, não noticia apenas a falência de um
modelo escolar. Na realidade, talvez não haja nela nada de excepcional, a não ser o fato de ter sido
vivenciada com extrema banalidade e profunda naturalidade, por integrar a regularidade de uma série de
outros enunciados contemporâneos; mas, especialmente, por ter sido crível para as crianças e dizível
pelos adultos (e certamente isso não se dá porque as crianças sejam idiotas ou inocentes e os adultos
diabólicos, como talvez possa parecer).
A câmera invisível pôde e pode existir, ser visível, legível e, sobretudo, capaz de produzir efeitos reais na
vida das pessoas, porque dá carne às imagens que nos são sincrônicas, para lembrarmos o pensamento de
Benjamin. Como enunciado, aceito e reconhecido, emerge do solo no qual repousam as verdades e os
saberes contemporâneos. Mais do que isso: a fábula da câmera total materializa-se como dispositivo da
subjetividade atual dentro da escola, fazendo parte do tecido de nossos tempos, participando das
constelações de imagens que não são apenas produtos de nossa episteme, mas que também,
simultaneamente, agem sobre ela e determinam nosso presente histórico. Continuaremos esse papo no
próximo post.
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A estética dos bancos de imagem
by Ronaldo Entler - terça-feira, abril 26, 2011
http://iconica.com.br/site/a-anestetica-dos-bancos-de-imagem/
Esse é um recado para meus alunos, mas que vale a pena compartilhar. O trabalho final que peço a eles
envolve sempre a produção de uma obra visual com técnica livre a partir um tema que varia a cada
semestre. O objetivo é avaliar a capacidade que eles tem de traduzir ou construir uma reflexão por meio
de imagens. É sempre uma experiência incrível. Mas, nos últimos anos, os bancos de imagem tem
facilitado tanto quanto atrapalhado a nossa vida, aliás, atrapalham exatamente pelo modo como
pretendem facilitar as coisas.
Há dez anos, era raro, mas quando um aluno perguntava se poderia partir de imagens prontas, tinha em
mente Duchamp, Andy Warhol, e as possibilidades de ressignificação implicadas no gesto de
apropriação. Essa era a opção mais ousada e trabalhosa, significava geralmente um tanto de páginas a
mais de reflexão escrita. Hoje, a pergunta se tornou mais frequente, mas parte de um princípio de
economia (eufemismo para preguiça). Parte também da sensação de que tudo já está feito e
disponibilizado na internet.
Os grandes bancos de imagem poderiam ser importantes fornecedores de matéria-prima para os criadores.
Mas o serviço é mais completo, e aqui mora o problema: eles têm a pretensão de oferecer um catálogo de
pensamentos prontos já traduzidos em imagens. E é assim que muitos, não só alunos, mas também
professores, editores, jornalistas, publicitários tem a oportunidade de resolver qualquer questão com duas
ou três palavras-chave nos mecanismos de busca desses serviços.
Apenas pensamentos muito elementares se prestam a esse tipo de redução, e apenas imagens
estereotipadas podem garantir a legibilidade prometida. Prato cheio para palestras motivacionais, que
traduzem raciocínios óbvios e conselhos moralistas em ilustrações que portam alguma dose de humor ou
sentimentalismo. Vou poupar nossos olhares de ilustrações, mas acho que todos reconhecem esse tipo de
imagem: são metáforas rasas, tipo “um homem com uma lâmpada na cabeça”, “um estudante numa
corrida de obstáculos”, “um executivo com uma luva de boxe”, “um gadget mostrado como um canivetesuiço”, coisas assim. São imagens pobres, repetitivas, com mensagens didáticas que sempre pressupõe a
idiotice do público.
Se alguém fizer questão de exemplos, pode dar uma olhada numa compilação de sessenta fotos
“completamente inutilizáveis” de bancos de imagem que circulou pela internet. Esses são casos extremos
do que ocorre quando se tenta arrancar a força uma forma visível de um conjunto mal articulado de
“palavras-chave”. Podemos imaginar que é a descontextualização que transforma em piada imagens desse
tipo. Mas a ausência de contexto é o trunfo dessas imagens, elas pretendem ser versáteis, globalizadas e
genéricas.
Muitas vezes a arte almeja representar uma experiência universal numa forma particular: um retrato
deseja representar um drama humano, uma paisagem deseja representar a força da natureza Os grandes
bancos, em contrapartida, substituem esse poder alegórico pela afirmação de “tipos genéricos”: o pai, a
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mãe, o filho, o estudante, o executivo, o chefe, a família, a equipe de trabalho, a sociedade, sempre
simplificando e limpando a imagem de toda experiência. A representação se torna abrangente não porque
convida à identificação com um outro, mas porque impõe um estereótipo que reduz todo mundo a uma
coisa só.
A indexação das imagens por meio metadados – chaves de interpretação que podem ser traduzidas em
dados quantificáveis – constituem uma ciência peculiar, com um pé na estética e outro na matemática.
Sua missão nesse caso é permitir a navegação por um oceano de imagens que tende à entropia (a
dissolução de toda diferença e, assim, de toda possibilidade de sentido). Mas a preguiça dá a essa ciência
um papel maior do que ela deveria ter: os metadados, que deveriam ser simplificações de interpretações
possíveis, passam a ditar os critérios para a produção das imagens. Como ilustrações de “palavras-chave”,
essas fotografias já nascem indexadas, já nascem simplificadas. E assim, a imagem que deveria ser
estética, se torna anestésica, anula a sensibilidade do olhar.
Não há novidade nesse processo, é a lógica da cultura de massa. A história da cultura moderna está
invariavelmente marcada por uma tensão entre “acesso” e “massificação”. O que isso significa? Algo
simples: a circulação exige padronização. Isso tem, em princípio, um sentido técnico: a expansão das
redes de informação exige a escolha de um protocolo de comunicação (assim como a expansão da malha
ferroviária exigia a escolha de um tipo único de bitola para os trilhos). Isso parece uma questão
burocrática, que não afeta nossas experiências, nossas viagens. O problema é que a lógica da
padrozinação se torna um dado da cultura: age sobre uma dimensão técnica, mas também sobre uma
dimensão estética. O que circula e se expande sob esse protocolo deve fazer algum sentido para todos. A
maneira corajosa de enfrentar isso é assumir o ganho que, num médio prazo, pode surgir do conflito
cultural e do estranhamento. Esse é um belo aprendizado. Não temos encontrado esse tempo. A maneira
mais fácil é estabelecer uma média daquilo que circula. Mas a média, infelizmente, nunca está no meio,
está abaixo, espécie de mínimo denominador comum.
Este não é um discurso contra a forma de comercialização estabelecida pelos bancos de imagem, mas
contra a pretensão de construir um mercado global por meio de uma linguagem visual média. A arma
contra isso é justamente o pequeno banco de imagem, as cooperativas, os coletivos, os artistas
independentes com seus fotologs, experiências que garantem a diversidade e o estranhamento necessários
ao exercício efetivo do olhar.
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