A Dobra Deleuziana: Políticas de Subjetivação

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A Dobra Deleuziana: Políticas de Subjetivação
A Dobra Deleuziana: Políticas de Subjetivação
Rosane Neves da Silva+
RESUMO
O conceito deleuziano de dobra permite problematizar tanto a produção da
subjetividade – no sentido da constituição de determinados territórios existenciais –
quanto os modos de subjetivação, entendidos aqui como o processo pelo qual se produz
a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças que resultam na criação de
determinados territórios existenciais em uma formação histórica específica. A dobra
exprime a invenção de diferentes formas de relação consigo e com o mundo ao longo do
tempo. Inicialmente nós vamos utilizar as próprias ferramentas do pensamento
deleuziano para situar o plano de imanência e o personagem conceitual que se atualizam
na criação do conceito de dobra. Num segundo momento, pretendemos mostrar como
este conceito se operacionaliza no debate contemporâneo sobre os processos de
subjetivação.
Palavras-chave: Deleuze; Dobra; Subjetivação
The Deleuzian fold: politics of subjectivation
ABSTRACT
The deleuzian concept of fold allow us to think critically about the production of
subjectivity – in the sense of a constitution of determined existential territories – as well
as the modes of subjectification, understood like a process through witch will be
produced the flexion or the curbing of a certain type of power relationships that results
in the creation of specific existential territories in a particular historic formation. In
this sense, the fold expresses differents kinds of relationship with us and with the world
throughout the time. Initially we are going to use Deleuze’s own thought devices to
situate the plan of immanence and the conceptual personage that are actualized in the
creation of the concept of fold. After, we intend to demonstrate how this concept is
present in the contemporary debate of the processes of subjectification.
Key words: Deleuze; Fold; Subjectivation
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Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS
A dobra deleuziana: políticas de subjetivação
O conceito deleuziano de dobra é uma importante ferramenta teórica para se
pensar a experiência subjetiva contemporânea. A dobra exprime tanto um território
subjetivo quanto o processo de produção desse território, ou seja, ela exprime o próprio
caráter coextensivo do dentro e do fora. A dobra constitui assim tanto a subjetividade,
enquanto território existencial, quanto a subjetivação, entendida aqui como o processo
pelo qual se produzem determinados territórios existenciais em uma formação histórica
específica. A idéia de indivíduo, por exemplo, enquanto território subjetivo moderno,
expressa um modo de subjetivação específico, pois traduz uma certa captura da
subjetividade dentro de um determinado sistema de códigos, no caso, o sistema de
códigos próprio ao modo de produção capitalista. O ‘modo-indivíduo’ do capitalismo
moderno é completamente diferente da experiência subjetiva em outros períodos
históricos. A subjetivação refere-se, portanto, às diferentes formas de produção da
subjetividade em uma determinada formação social.
Ao falarmos de ‘subjetivação’ estamos considerando que esta expressão
constitui, "um modo intensivo e não um sujeito pessoal" (Deleuze, 1990, p. 135). Sendo
assim, podemos dizer que um processo de subjetivação traduz o modo singular pelo
qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças. Cada
formação histórica irá ‘dobrar’ diferentemente a composição de forças que a atravessa,
dando-lhe um sentido particular. Isso explica por que a própria subjetividade pode
adquirir uma configuração distinta em função do modo pelo qual se produz a curvatura
das forças que a constituem.
A idéia de dobra é, portanto, fundamental para entendermos o que vem a ser um
processo de subjetivação. Ela torna-se um importante operador conceitual para pensar a
produção, ao longo da história, de diferentes modos de constituição da relação consigo e
com o mundo, ou seja, dos diferentes modos de produção da subjetividade.
É através do pensamento deleuziano – sobretudo nas obras dedicadas a Foucault
(Deleuze, 1986) e a Leibniz (Deleuze, 1988) – que situaremos esta relação do conceito
de dobra com os processos de subjetivação. Nessas obras, Deleuze procura apreender a
problemática que atravessa o campo de investigação desses dois filósofos em um
determinado momento, mostrando que tanto as tecnologias de si, que marcam a obra de
Foucault, quanto a idéia de que o mundo encontra-se virtualmente dobrado em cada
alma, característica da mônada leibniziana, exprimem a idéia de multiplicidade e de
criação permanente que vão forjar o conceito deleuziano de dobra.
A seguir, nós vamos utilizar as próprias ferramentas do pensamento deleuziano
para problematizar o conceito de dobra e, num segundo momento, mostrar como este
conceito se operacionaliza no debate contemporâneo sobre os processos de
subjetivação.
1. Traçar, inventar, criar: a dobra como “efeito de superfície”
O que seriam estas ferramentas do pensamento deleuziano? No livro ‘O que é a
filosofia?’, escrito em parceria com Félix Guattari, encontramos que a própria definição
da filosofia consiste na arte de criar conceitos e que a criação de todo conceito está
diretamente relacionada a um problema ao qual o filósofo se vê confrontado. É claro
que este problema não é um problema do filósofo exclusivamente, mas um problema do
seu tempo e que remete a questões que habitam o mundo deste filósofo – mesmo que a
maioria de seus contemporâneos não consiga identificar e perceber qual é exatamente
este problema. Por isso, muitas vezes, os problemas filosóficos são tão mal
compreendidos, pois o filósofo, assim como o artista, ao expressar a intensidade do
presente, experimenta a sensação de estar fora do seu tempo.
Existe, portanto, uma relação de pressuposição recíproca entre o conceito e o
problema a ele relacionado. Antes de falarmos da dobra e da relação deste conceito com
os processos de subjetivação, vamos entender outros dois elementos que, segundo
Deleuze e Guattari (1992), são inerentes a toda criação conceitual. São eles: o traçado
de um plano de imanência e a invenção de personagens conceituais.
O plano de imanência é a paisagem ou o solo onde se tece “a imagem que o pensamento
se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento...”
(Deleuze e Guattari, op. cit., p. 53). Neste sentido, o plano de imanência seria o
impensado do/no pensamento, como “um deserto movente que os conceitos vêm a
povoar” (ibid., p.57), atualizando o movimento infinito no qual se desloca o pensamento
enquanto pura variação.
Os personagens conceituais não designam um personagem extrínseco, como, por
exemplo, um personagem de diálogo ou um tipo psicossocial, mas “uma presença
intrínseca ao pensamento, uma condição de possibilidade do próprio pensamento”
(ibid., p. 11). Segundo Deleuze e Guattari (op. cit., p. 10), quando os gregos inventam a
filosofia, ‘amigo’ é um dos personagens conceituais que torna possível o próprio
exercício do pensamento filosófico: o filósofo é um amigo da sabedoria, aquele que
pretende se aproximar da sabedoria não para capturá-la, mas para potencializá-la em
novos e diferentes devires.
Portanto, os conceitos não existem em algum lugar prontos para serem
descobertos pelos filósofos. Eles precisam ser criados, fabricados e sempre a partir do
encontro com algo que coloque uma necessidade absoluta de se pensar outramente. É aí
que entra o combate do filósofo com o seu tempo e a irredutibilidade da criação de
conceitos que expressem os problemas deste tempo, na direção, quem sabe, de um novo
porvir.
Para entender esta relação de pressuposição recíproca entre o conceito e o
problema ao qual ele remete, vamos começar analisando o plano de imanência e os
personagens conceituais inerentes à criação do conceito de dobra.
O plano de imanência deleuziano, ou o solo de onde brota o conceito de dobra,
introduz uma diferença fundamental na imagem que, desde Descartes, com algumas
exceções, o pensamento filosófico se dá do que significa ‘pensar’. A novidade do plano
de imanência traçado por Deleuze é, justamente, romper com uma imagem do
pensamento que remete o próprio pensamento a pressupostos implícitos e subjetivos
calcados na forma pessoal e individual de um sujeito empírico.
Antes de analisarmos a topologia do pensamento deleuziano, convém entender a
sua crítica a essa imagem do pensamento que caracterizou e ainda caracteriza boa parte
da filosofia moderna. Tal imagem do pensamento se constituiu a partir do modo muito
peculiar com que o plano de imanência cartesiano e o seu respectivo personagem
conceitual encontravam-se articulados na criação do conceito de Cogito, tomando como
ponto de partida pressupostos implícitos e subjetivos fundados no senso comum sobre o
que significava pensar. Segundo Deleuze (1968), Descartes é extremamente habilidoso
ao traçar o solo de onde brotam seus conceitos ao dizer, por exemplo, que como todos
pensam, supõe-se que todos saibam o que significa pensar. Vemos, portanto, de que
maneira o plano cartesiano vai envelopar o movimento infinito do pensamento: pensar
torna-se o exercício natural de uma faculdade e a proposição ‘eu penso’ será
completamente separada do problema que lhe diz respeito e que remete à questão ‘o que
é pensar?’.
Ao recorrer ao bom senso e ao senso comum como modelos da recognição que
sabe a priori o que significa pensar, esse tipo de pressuposto implícito e subjetivo vai
estabelecer uma afinidade ‘natural’ do pensamento com a verdade.
No entanto, o apelo a uma ‘doxa generalizada’ não seria suficiente para explicar
nem essa afinidade do pensamento com o verdadeiro nem o alcance de tal procedimento
filosófico. É preciso considerar também as condições interiores ao pensamento em seu
exercício real, ou seja, a maneira pela qual o que todos sabem (o que significa duvidar,
pensar, ser, etc.) será selecionado para a criação do conceito de Cogito.
Essa seleção se fará pela intervenção do personagem conceitual. Vimos que tal
personagem não é "o representante do filósofo", mas corresponde a uma atitude ou
"aptidão do pensamento" (Deleuze e Guattari, op.cit., p.86).
No caso da filosofia de Descartes, o personagem conceitual vai se caracterizar
por um movimento de deriva entre o Cogito (Eu penso) e os pressupostos implícitos e
subjetivos do plano de imanência (todos sabem o que quer dizer pensar); entre a
capacidade ‘natural’ do ato de pensar e uma ‘banalização’ do próprio pensamento. Esse
estranho personagem que quer pensar e que pensa pela "luz natural" de seu próprio
pensamento será denominado por Deleuze e Guattari de "o Idiota" (ibid., p. 83). O
idiota caracterizaria aquele que duvida de tudo e considera que a "luz natural" de seu
próprio pensamento pode levá-lo à verdade, já que a única coisa da qual não pode
duvidar é que ele "pensa".
Vemos assim que a criação de todo conceito é inseparável de uma relação de
pressuposição recíproca entre um plano de imanência e o ou os personagens conceituais.
Os conceitos não se deduzem do plano, há necessidade do personagem
conceitual para criá-los sobre o plano, assim como há necessidade dele para traçar o
próprio plano, mas as duas operações não se confundem no personagem, que se
apresenta ele próprio como um operador distinto (ibid., p. 100).
Portanto, podemos dizer que a consistência do conceito de Cogito será dada
pelas ‘zonas de indiscernibilidade’ de seus componentes, isto é, por essas relações de
pressuposição recíproca entre um plano de imanência que opera a seleção de certos
elementos oriundos do senso comum, e um personagem conceitual que é tomado como
uma espécie de ‘operador’ para o próprio exercício do pensamento.
O plano de imanência e o personagem conceitual implicados na criação do
Cogito cartesiano fazem com que pensar e o ato de pensar convertam-se, assim, em uma
única e mesma coisa. Dissolve-se assim todo vestígio de uma exterioridade e,
consequentemente, do próprio tempo: o pensamento torna-se então um "assunto
privado" que cada um possui por sua própria conta (Deleuze, 1968).
Ao contrário do que ocorre no pensamento cartesiano, o plano de imanência e o
personagem conceitual implicados na criação do conceito deleuziano de dobra vão
produzir uma nova imagem do pensamento. Para Deleuze (1968), pensar não é o
exercício natural de uma faculdade: nós só pensamos raramente e sempre a partir do
encontro com algo que nos força a pensar. É o caráter contingente deste encontro e a
violência de seu golpe que cria no pensamento a necessidade absoluta do ato de pensar.
Pensar não é, portanto, um ato involuntário e banal, mas algo que pressupõe uma
relação imediata com o Fora, entendido aqui como um campo intensivo que se desloca a
uma velocidade infinita. O Fora funciona assim como uma máquina abstrata que emite
singularidades e envolve o movimento infinito do pensamento. O plano de imanência
deleuziano caracteriza-se por uma topologia traçada a partir dessas “emissões de
singularidade” (Deleuze, 1969, p. 122) que fazem do pensamento uma máquina de
experimentação permanente: pensar é pura potência de invenção. Esta experimentação,
no entanto, não é calcada em um sujeito empírico ou transcendental, mas no impessoal
enquanto potência de atualização das virtualidades que habitam este campo intensivo
que se desloca a uma velocidade infinita.
A idéia de singularidades, portanto de anti-generalidades, distingue-se de
imediato da idéia de senso comum que serve de fundamento à imagem do pensamento
que estrutura a forma da representação. As singularidades, caracterizando-se como
"anti-generalidades", excluem toda relação a uma forma pessoal e individual. O que
Deleuze chama em Lógica do sentido de "emissões de singularidade" se dá sobre uma
superfície móvel e heterogênea, distinguindo-se, assim, das distribuições fixas e
sedentárias características das formas pessoais e individuais.
É neste sentido que se pode dizer que o plano de imanência deleuziano
caracteriza-se por um campo transcendental marcado por estas emissões de
singularidade “anônimas e nômades, impessoais e pré-individuais” (Deleuze, 1969, p.
125).
Esse campo transcendental não se assemelha aos campos empíricos
correspondentes: toda a sua importância no pensamento deleuziano é que este campo
transcendental não pode ser relacionado "a" alguma coisa que pressuponha uma base
pessoal ou individual.
Segundo Schérer (2000, p. 22), o plano de imanência deleuziano é traçado como
um “campo transcendental impessoal” que dispensa o “eu penso” da tradição cartesiana
e todo suporte transcendente daí decorrente (quer se trate de um sujeito empírico ou
mesmo de uma consciência transcendental).
O campo transcendental para Deleuze (1969) é, portanto, povoado de
singularidades-acontecimentos providos de uma "energia potencial" que organizará esse
campo de um modo "metaestável", de maneira que "o elemento paradoxal" que percorre
todas as séries que compõem essas singularidades vai colocá-las em ressonância. Esse
elemento paradoxal funciona então como contra-senso (non-sens) e assegura assim uma
outra característica das singularidades que é seu "efeito de superfície", isto é, sua função
de contato entre o exterior e o interior. A superfície das singularidades constitui uma
espécie de membrana que anula a existência de uma distância topológica entre o dentro
e o fora. Portanto, é ao nível da superfície das singularidades que pode se produzir o
sentido. Não um sentido já fixado numa direção única, mas um sentido que sobrevoa os
acontecimentos na espera de sua efetuação. É por isso que se deve falar de uma
produção de sentido em oposição à idéia de uma origem do sentido, pois a produção
comporta um caráter indeterminado que terá por estatuto "o problemático" e não "o
idêntico". O estatuto do problemático como característica do campo transcendental
deleuziano pode-se explicar pelo fato de as singularidades se distribuírem nesse campo
de uma forma aleatória (sem sentido único ou identidade fixa) e de sobrevoarem os
acontecimentos de acordo com sua superfície de contato antes de adquirir uma
significação. O problemático torna-se então uma categoria imanente à determinação
mesma do campo transcendental, pois as singularidades que povoam tal campo são
irredutíveis a qualquer instância dita "originária". Essa irredutibilidade das
singularidades à forma da representação constitui um aspecto importante da crítica
deleuziana à determinação do campo transcendental. Esse campo não seria
condicionado por nenhuma forma preestabelecida, pois toda determinação a uma base
empírica conduziria inevitavelmente à constituição de universais.
A importância do pensamento deleuziano consiste em mostrar que o
transcendental não pode ser concebido à imagem e à semelhança do que ele
supostamente fundaria, e que é a partir de uma teoria das singularidades que se pode
compreender a complexidade pela qual o campo transcendental é determinado.
O problema do sentido constitui assim um aspecto essencial da crítica deleuziana
à filosofia da representação: enquanto instância originária e predicável, o sentido não
cessa de produzir uma imagem do pensamento que deve decalcar o transcendental a
partir do empírico. É por essa razão que o elemento paradoxal vai desempenhar um
papel preponderante no procedimento deleuziano: tal elemento não cessa de fazer girar
o sentido em todas as direções, permitindo que a experimentação se desloque do
idêntico (plano da representação) para o problemático (plano do acontecimento).
Essa função criativa e produtora do elemento paradoxal permite tratar o sentido
não como predicado ou propriedade original, mas como acontecimento. E, quando o
sentido se torna "acontecimento", podemos separar o transcendental de seu suporte
empírico e problematizar a determinação do campo transcendental a partir de sua
própria capacidade genética. Mas, para tanto, é preciso desenvolver toda uma "lógica do
acontecimento" que produzirá uma mudança crucial em relação ao problema mesmo do
sentido. Desde já podemos dizer que a "natureza" mesma de tal problema muda
consideravelmente: não se trata mais de um problema de origem, mas de um problema
de gênese, pois o "problema", enquanto exercício transcendente, não quer estar de posse
de uma "regra de soluções", mas simplesmente nos ensinar a fazer germinar seu poder
genético, ou seja, seu poder de constituição de um campo de problematização.
Além de seu caráter impessoal e pré-individual (sua dimensão “anônima”,
segundo Deleuze, 1969), as singularidades se caracterizam também por seu nomadismo.
Uma singularidade não é separável de uma zona de indeterminação que constitui de
certo modo o espaço aberto de sua distribuição nômade. Esse nomadismo se traduz por
um movimento imanente que faz com que uma singularidade possa se estender até a
vizinhança de uma outra e constituir assim uma série convergente. Essa convergência
das singularidades numa série constitui ao mesmo tempo o início de sua efetuação e é a
condição para que um mundo comece.
Neste sentido, podemos dizer que o nômade constitui o personagem conceitual
do pensamento deleuziano. O nômade “é o homem da terra, o homem da
desterritorialização – ainda que ele seja também aquele que não se move, que
permanece agarrado ao meio, deserto ou estepe” (Deleuze, 1977, p.162). Ele se
caracteriza menos pelos deslocamentos que realiza de um ponto a outro que pelo fato de
habitar a superfície lisa e intensiva do campo transcendental.
Segundo Deleuze (1968, p. 188), é sempre pela intensidade que o pensamento
nos advém, uma intensidade que se produz no encontro com o que força a pensar. A
intensidade constitui-se assim na condição de possibilidade do próprio pensamento. O
nômade atualiza esta intensidade na medida em que habita o campo transcendental
povoado de singularidades anônimas. A construção do plano, neste sentido, é sempre
uma política (Deleuze, 1977, p. 110), ou melhor, uma micropolítica, pois ela engaja
uma série de agenciamentos coletivos que se expressam através destas singularidades
móveis e anônimas. É toda uma geografia do pensamento que se coloca em movimento
e o nômade é aquele que, mesmo sem sair do lugar, foge por todos os lados, para não se
deixar capturar pelas armadilhas do instituído.
A dobra deleuziana é a curvatura ou a inflexão destas linhas infinitamente
móveis que percorrem o plano de imanência cuja superfície é povoada por
singularidades anônimas e nômades. A dobra exprime a desaceleração deste movimento
infinito, produzindo a convergência das singularidades em um dado momento, criando
assim um dentro que é coextensivo ao fora, e que é a condição para que um mundo
comece. A dobra é, portanto, a expressão de um mundo possível. Este mundo possível
não corresponde ao melhor dos mundos, segundo a fórmula leibniziana, mas significa
que o mundo mesmo é acontecimento, é produção contínua do absolutamente novo.
Partir do mundo, da série infinita que é o mundo, implica traçar um plano de imanência
– cujo pressuposto é a multiplicidade – e inventar um personagem conceitual – o
nômade – que possa habitar esta multiplicidade e montar sua tenda em qualquer lugar.
2. As dobras da subjetivação capitalística
Para Deleuze (1988), tudo no mundo existe dobrado. Sendo assim, nós
poderíamos dizer que são essas múltiplas dobraduras do Fora que vão produzir
diferentes modos de expressão da subjetividade. A dobra, neste caso, pode ser
caracterizada como o ponto de inflexão através do qual se constitui um determinado tipo
de relação consigo; o modo pelo qual se produz um Dentro do Fora (Deleuze, 1986, p.
104). A noção de dobra não é, portanto, independente do campo social. Como vimos
anteriormente, a produção de um certo tipo de relação consigo e com o mundo é
coextensiva às forças que atravessam e constituem um determinado arranjo do tecido
social.
Deleuze (ibid., p. 111 - 114) considera que há quatro tipos de dobras presentes
em qualquer modo de subjetivação. A primeira concerne à "parte material de nós
mesmos que vai ser cercada, apanhada na dobra" (o corpo, entre os gregos; a carne,
entre os cristãos, e assim por diante). A segunda é a "regra singular" pela qual "a relação
de forças é vergada para tornar-se relação consigo" (pode ser tanto uma regra "divina",
"racional", "estética", ou outra, conforme o caso). A terceira é a maneira pela qual se
constitui uma relação entre saber e verdade. A quarta se refere àquilo que o sujeito
espera do exterior. Esta última dobra já pressupõe um modo de subjetivação calcado na
idéia de uma divisão entre o dentro e o fora, característico das formações ocidentais.
Essas quatro dobras propostas por Deleuze no livro Foucault nos permitem
compreender o caráter singular dos diferentes processos de subjetivação ao longo da
História.
Interessa-nos entender como essas quatro dobras vão se atualizar num modo de
subjetivação específico que, segundo Guattari (1986), caracteriza a subjetivação
capitalística_. As dobras da subjetivação capitalística também se produzem
diferentemente ao longo do tempo. Tomaremos duas cenas, uma de um passado recente
e outra mais contemporânea, para explicar os diferentes desdobramentos da
subjetivação capitalística e como as quatro dobras de que falamos acima se atualizam
em cada uma das cenas.
Primeira cena da subjetivação capitalística
A primeira cena se localiza no momento em que assistimos ao apogeu (e, ao
mesmo tempo, ao declínio) do que Foucault (1975) denominou de “sociedade
disciplinar”, e que coincide com um arranjo social marcado por um processo de
industrialização crescente, mas, sobretudo, por uma tecnologia disciplinar forjada pela
visibilidade permanente imposta aos mais diferentes espaços de confinamento. Segundo
Foucault (ibid.), o aperfeiçoamento de uma tecnologia disciplinar, ancorada sobre um
modo específico de organização das relações de produção, constitui o correlato
essencial para o desenvolvimento do capitalismo.
Nesta primeira cena, vemos que é preciso disciplinar o corpo (primeira dobra),
vinculando-o a um lugar preciso na produção a partir da vigilância constante do espaço
que ele ocupa em cada momento (na escola, na fábrica, na prisão, etc.), e nele
imprimindo uma cadência ritmada no tempo a partir de uma programação de seus
gestos, que será tanto mais eficaz quanto mais se torne automática e retire todo vestígio
de vontade do corpo. O corpo é a superfície de inscrição das normas e valores de uma
determinada sociedade, logo, é sobre ele que também se atualizarão as relações de
poder.
O objetivo principal dessa tecnologia disciplinar é forjar a idéia mesma de
indivíduo no interior desse espaço produtivo. Neste sentido, "a elaboração de um
‘micropoder’ fundado sobre o corpo como objeto a manipular é a chave do poder
disciplinar" (Dreyfus e Rabinow, 1984, p.222). Trata-se, portanto, de criar um indivíduo
apto a ser manipulado como um “corpo dócil” a partir da implementação de dois tipos
de vetores de atualização: um espacial e outro temporal. Esses dois vetores acham-se
mutuamente implicados. Por meio do vetor espacial produz-se uma demarcação precisa
entre o dentro e o fora. É principalmente através da organização dos grandes espaços de
confinamento (a escola, a fábrica, a caserna, a prisão, etc.) que vai se produzir essa
divisão entre o dentro e o fora. Nesse modelo disciplinar, o indivíduo não cessa de
passar de um meio fechado (a escola, por exemplo) a um outro meio fechado (a fábrica,
a caserna ou a prisão, conforme o caso). Esse enquadramento dos corpos em diferentes
tipos de espaços fechados e a vigilância constante do lugar que o indivíduo ocupa em
cada um deles são a expressão, por excelência, da atualização do vetor espacial desse
modelo disciplinar. Por outro lado, através do vetor temporal produz-se um
automatismo dos corpos. Pela imposição de um ritmo cadenciado no interior de cada um
dos equipamentos coletivos (escola, fábrica, caserna, prisão, etc.), o poder disciplinar
busca aplainar toda forma de experimentação criativa do tempo. A linha de montagem
traduz, de certo modo, o ponto culminante da instalação de um dispositivo de captura
dos corpos em relações de tempo fixas e determinadas que caracterizam esse outro vetor
de atualização do modelo disciplinar.
Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento,
particularmente visível na fábrica: concentrar; repartir no espaço; ordenar no tempo;
compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das
forças elementares (Deleuze, 1990, p.240).
A noção de indivíduo é então forjada através da lógica disciplinar instaurada no
interior de um ambiente fechado, a partir da sujeição dos corpos a uma regra de
visibilidade e de segmentaridade; com isso, seria possível exercer uma vigilância
generalizada. "A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder
que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu
exercício" (Foucault, 1975, p.172).
Assim, sem a inserção na produção de indivíduos disciplinados e regrados, as
novas exigências do capital jamais poderiam ter sido satisfeitas. A implementação de
uma tecnologia disciplinar está, portanto, intimamente relacionada à própria escalada do
capitalismo.
A individualização e a vigilância encontram-se assim ligadas no interior do
espaço disciplinar e constituem o elemento indispensável para garantir a eficácia e a
consolidação do modo de produção capitalista, caracterizado, sobretudo, pela junção de
um grande número de indivíduos em diferentes tipos de ambientes fechados. Torna-se
de fundamental importância a organização desses indivíduos no espaço, pois a
vigilância sobre o indivíduo permite vigiar melhor a multiplicidade e reduzir o perigo
iminente de instabilidade causado por essa "mistura dos corpos" no interior dos espaços
fechados. O poder disciplinar se encarregará, então, de vincular cada indivíduo a uma
identidade bem determinada de uma vez por todas, e criar assim a idéia de uma
subjetividade privatizada.
Por outro lado, é recorrendo a um modelo de racionalidade, organizado em torno
de uma regra de equivalência geral (segunda dobra), que produz, ao mesmo tempo, uma
segmentação e uma homogênese dos universos de valor, que as forças que atravessam
esse campo de intensidades serão dobradas para constituir um novo tipo de relação
consigo, que, daqui para frente, será territorializada sobre a idéia de indivíduo.
De acordo com Guattari (1986), um modo de subjetivação está sempre ligado à
busca de uma estabilização da subjetividade em torno de um certo tipo de relação
consigo. Isso explica por que, ao longo da história, vamos encontrar diferentes
configurações da subjetividade, pois toda produção subjetiva é coextensiva à produção
de um certo tipo de configuração do campo social.
"Até a Revolução Francesa e o Romantismo, a subjetividade permaneceu ligada
a modos de produção territorializados – na família ampla, nos sistemas de corporação,
de castas, de segmentaridade social – que não tornavam a subjetividade operatória ao
nível específico do indivíduo" (Guattari e Rolnik, 1986, p.35).
Com a emergência de uma nova relação entre forças produtivas e meios de
produção, produz-se também uma mudança ao nível da subjetividade: em vez de uma
subjetividade engendrada a partir de certos territórios articulados a um domínio mais
amplo, vamos assistir a um processo de privatização da subjetividade. Tal processo
acompanha certamente o movimento de desterritorialização desencadeado por uma nova
configuração sócio-econômica e pela invenção de novas tecnologias. Essa
desterritorialização produz, por sua vez, uma transformação dos modos de valorização
dos bens e das atividades humanas. O conjunto dessas transformações dos modos de
valorização dos bens e das atividades humanas marca a emergência do que Guattari
(1986) chama de “subjetivação capitalística” em sua versão moderna.
Isso explica por que a invenção de um novo território subjetivo fundado sobre a
idéia de indivíduo constitui o principal dispositivo em torno do qual a subjetivação
capitalística vai dobrar as forças do Fora (e que, ao mesmo tempo, lhe são imanentes) e
produzir um novo tipo de relação consigo.
O controle dos corpos, a partir de sua sujeição a relações de espaço e de tempo
introduzidas pela tecnologia disciplinar, constituía apenas a ‘dimensão material’
segundo a qual a relação de forças era capturada nesse modo de subjetivação. Todavia,
para atingir sua plena eficácia, o poder disciplinar deve também se apoderar de uma
‘dimensão imaterial’ que vai definir a regra imanente à constituição desse novo tipo de
relação consigo territorializada sobre a idéia de indivíduo. Essa regra se organiza em
torno de um princípio de equivalência generalizada que produz uma segmentação e uma
homogeneização dos modos de valorização, fazendo com que qualquer coisa possa
equivaler a qualquer coisa. O equivaler generalizado é a expressão mesma da
subjetivação capitalística e se caracteriza por um duplo movimento: um de
desterritorialização, marcado pela destruição dos sistemas de valor tradicionais, e o
outro de reterritorialização, marcado pela recomposição dos valores que foram
destruídos em cima de modelos funcionalmente similares a estes.
Assim, pela sistemática dissolução dos universos de valor (desterritorialização),
cada esfera de valorização segmentarizada vai erigir (reterritorializar)
um pólo de referência transcendente autonomizado: o Verdadeiro das idealidades
lógicas, o Bem da vontade moral, a Lei do espaço público, o Capital do intercâmbio
econômico, o Belo do domínio estético... Esse recorte da transcendência é consecutivo
de uma individualização da subjetividade, ela própria fragmentada em faculdades
modulares tais como a Razão, o Entendimento, a Vontade, a Afetividade... A
segmentação do movimento infinito de desterritorialização é acompanhada de uma
reterritorialização desta vez incorporal, de uma reificação imaterial (Guattari, 1992,
p.143-144).
A segmentação e a transcendência dos valores podem então ser definidas como
capitalísticas em razão do ‘achatamento’ e da desqualificação sistemática das matérias
de expressão das quais procedem. Disso resulta uma homogeneização onde todos os
valores passam a estar referidos a um equivalente geral, ou seja, o capital. A tendência
do sistema de valorização capitalístico é dissolver todo ganho de consistência dos
valores que por ventura pretendam escapar à sua lei, já que o poder semiótico desse
sistema consiste particularmente em confundir, num mesmo plano geral de
equivalências, elementos que são, à primeira vista, radicalmente heterogêneos.
Esse novo território subjetivo permite a esse “indivíduo” reconhecer-se ao
mesmo tempo como sujeito e objeto de conhecimento (terceira dobra), expressando
assim um determinado “regime de verdade” para que o modelo da subjetivação
capitalística ganhe uma relativa consistência.
Segundo Foucault (1975), um regime de verdade se caracteriza pelo "conjunto
das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se vinculam ao
verdadeiro efeitos específicos do poder" (ibid., p.26). Por conseguinte, "não há relação
de poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder" (ibid., p.32).
A efetivação de um certo tipo de saber torna-se então um componente essencial
para afirmar um regime de poder e de verdade em uma formação social específica.
A terceira dobra é, portanto,
a dobra do saber, ou a dobra da verdade, enquanto ela constitui uma relação do
verdadeiro com nosso ser e do nosso ser com a verdade, que servirá de condição formal
a todo saber, a todo conhecimento: subjetivação do saber que não ocorre em absoluto da
mesma maneira entre os gregos e os cristãos, em Platão, em Descartes ou em Kant
(Deleuze, 1986, p.111-112).
A partir dessa relação entre saber, poder e verdade, que se atualiza
diferentemente segundo a relação de forças que atravessam uma formação histórica em
um dado momento, podemos tentar compreender a relação entre o modo de subjetivação
capitalístico e o sistema de racionalidade próprio às ciências modernas. Parece-nos que
há uma complementaridade intrínseca entre ambos e que esse sistema de racionalidade
vai proporcionar, de certo modo, uma "legitimidade científica" ao princípio de
equivalência generalizada que se encontra na base do novo tipo de relação consigo
caracterizado pela invenção do indivíduo moderno.
Podemos mesmo dizer que a realização máxima desse sistema de racionalidade
se traduz pela invenção de uma subjetividade privatizada cujo protótipo é precisamente
esse homo psychologicus que emerge ao mesmo tempo como sujeito e objeto de
investigação no quadro desse novo corpo de conhecimentos chamado "ciências
humanas", e que constitui assim o fundamento necessário para legitimar a idéia de
indivíduo tão cara ao desenvolvimento do modelo capitalista.
É a partir da invenção dessa subjetividade privatizada que podemos analisar a
complementaridade entre o modo de subjetivação capitalístico e o sistema de
racionalidade próprio às ciências modernas. É nesse ponto, relativo à invenção da idéia
de indivíduo, que a subjetivação capitalística junta-se à questão concernente à posição
de fundamento do sujeito colocada pelo discurso científico oriundo de uma herança
cartesiana, e permite criar as condições de possibilidade para a invenção do psicológico
enquanto campo específico de saberes e práticas.
A invenção de tal campo acompanha o modelo de racionalidade próprio ao
conjunto das ciências modernas cuja operacionalidade implica a efetivação da síntese
realizada pelo cogito cartesiano entre pensamento e existência. A partir dessa síntese, o
sujeito assume uma posição de fundamento: a cada enunciado do saber científico, o "eu
penso" permanece co-presente.
Deste modo, a idéia de uma consciência totalizante que se encontraria na base do
modelo operatório da racionalidade científica – cujo enunciado poderia ser formulado
da seguinte maneira: "sou o mestre tanto de mim quanto do universo" – participaria
também, segundo Guattari (1989, p.39), de uma espécie de "mito fundador" da
subjetividade capitalística.
Instalado nessa posição de fundamento, o sujeito não apenas faz o mundo
comparecer diante de si, como também atinge uma representação objetivante de si
mesmo. Em suma, para pensar as coisas ele deverá também se auto-representar.
Essas três dobras preparam o ponto de inflexão para a criação da quarta dobra
desse modo de subjetivação. A quarta dobra se constitui por um movimento de dupla
captura_ envolvido na divisão entre o dentro e o fora imanente ao modo de subjetivação
capitalístico e que garante assim a operacionalidade desse modelo.
Vimos, na terceira dobra, que o modelo de racionalidade próprio às ciências
modernas se sustentava precisamente sobre essa divisão para afirmar a posição de
fundamento ocupada pelo sujeito, e que, por outro lado, esse artifício levaria
naturalmente à criação de duas séries dicotômicas – de um lado, o indivíduo, de outro, a
sociedade. A criação dessas duas séries seria então o corolário natural de um certo tipo
de relação entre saber e verdade que, ao afirmar a posição de fundamento do sujeito,
constituiria as condições necessárias para o desenvolvimento de um preceito de
objetividade intrínseco ao modelo de racionalidade das ciências modernas.
O movimento de dupla captura, característico da quarta dobra, consiste
particularmente em "aprisionar" essas duas séries numa espécie de "armadilha
semiótica" tramada por aquilo que Guattari (1994, p.34) chama de "pensamento
referencial". O postulado de base desse pensamento é que não há nenhum acesso ao real
sem que se estabeleça uma relação entre um sistema de signos ditos significantes e o
objeto referente. Assim, o real só pode se constituir a partir de uma capacidade de
reconhecer uma forma preexistente. A trama urdida nessa armadilha semiótica repousa,
portanto, sobre a proliferação de todos as formas de mediação entre as duas séries para
que se possa finalmente alcançar o real.
Isso nos leva a pensar que a existência desses dois registros (sujeito versus
mundo; indivíduo versus sociedade) não pode ser considerada como um "fato natural".
Ao contrário, a formulação dessa dicotomia corresponde a um tipo de subterfúgio
produzido por um certo tipo de relação entre saber e verdade que se acha ligado a um
modo de subjetivação específico.
O artifício desse movimento de dupla captura consiste em criar uma regra de
identidade entre esses dois registros (o social e o individual) que ao mesmo tempo os
opõe (como se fossem duas séries dicotômicas) e os aproxima (como se um pudesse
explicar ou ser explicado pelo outro), criando, deste modo, uma espécie de aderência
entre esses dois termos. A invenção desses dois registros traduz, de certo modo, um
procedimento esquizofrenizante próprio ao modelo capitalista cuja característica é fazer
circular simultaneamente mensagens que se excluem mutuamente: ao mesmo tempo em
que são divididos, criando-se uma relação de oposição entre as duas séries (por
exemplo, o individual e o social), produz-se uma espécie de amálgama entre esses dois
registros, de modo a jamais se encontrar seu ponto de discernibilidade. É a isso
precisamente que corresponde o movimento de dupla captura próprio a uma lógica
capitalística.
É importante ressaltar que essas quatro dobras não podem ser dissociadas: cada
dobra segue a outra e a precede, tudo isso simultaneamente, pois elas fazem parte de um
mesmo campo de intensidades e são expressões de um certo tipo de relação de forças
que, neste caso, caracteriza a subjetivação capitalística.
A principal característica desse modo de subjetivação é a de “embaralhar” todos
os códigos: na medida em que opera a apropriação das forças produtivas dentro de
novas relações de produção sustentadas pela divisão entre o dentro e o fora, provoca,
simultaneamente, a abolição sistemática de toda relação a uma exterioridade. A
armadilha da subjetivação capitalística traduzir-se-ia, portanto, em um movimento de
dupla captura que implicaria forjar a separação entre estes dois registros (o dentro e o
fora) e, ao mesmo tempo, romper com tal divisão já que a lógica inerente à dinâmica
capitalística é uma lógica inclusiva, fundamentalmente desterritorializada e
homogeneizante, que não cessa de fabricar riqueza e miséria ao mesmo tempo e em
todos os lugares. Isso significa que a lógica capitalística não opera por exclusão e sim a
partir de uma estratégia de “inclusão diferencial”(Hardt, 2000, p. 365). Deste modo,
nada escapa à ubiqüidade do seu poder.
Segunda cena da subjetivação capitalística
A partir da segunda metade do século XX podemos perceber um novo tipo de
arranjo dessa lógica capitalística, traçando o esboço de um novo campo intensivo
marcado, principalmente, por uma volatilização do poder capitalístico.
Nós podemos dizer que este novo arranjo caracteriza-se basicamente por uma
revolução tecnológica e cibernética que produz uma nova trama do tecido social a partir
do advento de novas tecnologias resultantes dos avanços da informática. Este conjunto
de novas tecnologias aliado a uma concentração de poder do capital financeiro
internacional dá condições para a criação de uma nova ordem mundial, um megamercado planetário conhecido pela expressão “globalização”. A globalização implica
não somente a eliminação de limites bem definidos (“ausência de fronteiras”)_ como
também uma aceleração das formas de experimentação do tempo. Deste modo,
podemos dizer que a principal característica desse novo cenário da subjetivação
capitalística é estabelecer novas coordenadas nas relações espaço-temporais, criando
uma superfície lisa para a expansão “ilimitada” do capital que vai, sem dúvida, afetar os
modos de existência em escala planetária.
Vejamos como, neste caso, as quatro dobras de que falamos anteriormente,
atualizam a lógica subjacente ao modo de subjetivação capitalístico: chegamos a um
estágio de modelagem contínua e visibilidade permanente que se produz através de um
culto exacerbado do próprio corpo (primeira dobra). A disciplina do corpo continua
sendo um elemento imprescindível neste novo cenário da subjetivação capitalística. Só
que neste momento, não há mais necessidade de docilizar os corpos submetendo-os às
duras regras e à intensa vigilância dos meios de confinamento. A individualização e o
controle permanente continuam sendo os elementos fundamentais para garantir as novas
relações de produção e, sobretudo, a expansão do mega-mercado no capitalismo
globalizado. No entanto, a docilidade dos corpos é alcançada através de meios muito
mais sutis e eficazes. Ao invés da passagem de um meio fechado a outro para assegurar
o disciplinamento dos corpos, chegamos a um estágio de modelagem contínua e
visibilidade permanente que se produz através de um culto exacerbado do próprio
corpo.
A mídia desempenha aí um papel fundamental: é ela que vai se encarregar de
modelar o padrão de corpo que se deve ter, definindo o que e quando comemos, como e
o que vestimos, como amamos e nos relacionamos com o sexo oposto, etc., procurando
sempre identificar os “erros” e corrigir as “falhas”, traçando assim um verdadeiro
“mapa” das múltiplas normalizações e normatizações indispensáveis para se alcançar o
corpo ideal (Fischer, 1996). Com um tal dispositivo de modelização dos corpos, é
possível que as antigas disciplinas nos meios de confinamento pareçam pertencer, como
diz Deleuze (1990, p.237), a um passado “delicioso e benevolente”.
O bio-poder a que Foucault (1975) se referia no caso das sociedades
disciplinares atinge tais proporções que podemos falar de um bio-imperialismo onde
não se trata apenas de dominar os corpos, mas toda e qualquer forma de vida sobre o
planeta. Os avanços tecnológicos permitem eliminar assim qualquer resquício de
imperfeição que possa vir a comprometer um padrão definido como universal.
Chegamos, no entanto, a um estágio paradoxal em relação à experiência do
corpo na atualidade: ao mesmo tempo em que se produz um controle contínuo e uma
visibilidade permanente através de um culto exacerbado dos corpos, assistimos também
à dissolução e à ausência de vestígios dos corpos quando estes estão conectados ao
ciberespaço. Na rede, os caracteres que comumente dão uma certa espessura ao corpo
(como o sexo e a idade, por exemplo), tornam-se puros efeitos de texto. É como se a
supressão do corpo favorecesse de certa forma os contatos. O paradoxo da sociedade de
controle é que a perfeição tão almejada do corpo não é alcançada por uma visibilidade e
uma exposição permanente dos corpos, mas, ao contrário, exatamente pelo fato de o
corpo se tornar quase imaterial.
A segunda dobra, que constitui a regra singular que norteia o tipo de relação
consigo, continua sendo calcada sobre o registro de uma equivalência geral dos valores.
Só que agora, nas sociedades de controle, é forjado um novo tipo de relação consigo a
partir de uma “estratégia sem estrategista” (Dreyfus e Rabinow, 1984, p.355) que
corresponde, de certa forma, a um processo de invisibilização das tecnologias
disciplinares. Trata-se, neste caso, de uma regra flutuante, como o são as flutuações das
moedas no mega-mercado mundial, que acaba fazendo com que esta relação consigo se
desenvolva numa perspectiva cada vez mais intimista, atualizando-se sobre o que
Foucault (in Dreyfus e Rabinow, op. cit., p. 333) chama de “nossos sentimentos”. O
conhecimento de si torna-se um fim ao invés de ser um meio para agir no mundo. Sendo
assim, o espaço público vai se tornando cada vez mais desprovido de sentido enquanto
espaço de implicação do sujeito. Paradoxalmente, é a confissão pública que se torna,
neste caso, a forma de expressão por excelência deste intimismo exacerbado_.
A terceira dobra, que corresponde à relação entre saber e verdade, se
territorializa através da idéia de ‘pensamento único’, instaurando um regime de verdade
onde o mundo perde o sentido e, consequentemente, fazendo com que nossa ação no
mundo torne-se supérflua e desnecessária. Isso faz com que a relação do nosso ser com
a verdade oriente-se para um movimento de interiorização especulativa – marcado, por
exemplo, pela enorme quantidade de livros de auto-ajuda – que é totalmente compatível
com o projeto neoliberal. O pensamento único atualiza a figura do Idiota, ou seja,
daquele que acredita que é pela luz natural do seu próprio pensamento que se pode
chegar à verdade. O Idiota funciona aqui como o personagem conceitual deste tipo de
pensamento, ou seja, ele funciona como “uma presença intrínseca ao pensamento, uma
condição de possibilidade do próprio pensamento” (Deleuze e Guattari, 1992, p. 11).
A quarta dobra atualiza-se através da idéia de ‘crise permanente’. A armadilha
semiótica, neste caso, funciona a partir da regra segundo a qual “quanto mais as coisas
se desarranjam, melhor elas funcionam” (Deleuze e Guattari, 1972). A crise torna-se
assim o “meio imanente ao modo de produção capitalista” (ibid., p. 274). É neste
sentido que a crise das diferentes instituições (família, educação, trabalho) aumenta
enormemente a eficácia das estratégias de controle sobre as mesmas. Tais estratégias
operacionalizam-se por meio da “gestão de microconflitualidades numa zona de
expansão contínua” (Hardt, 2000, p. 367), traduzindo assim uma axiomática
capitalística forjada a partir da idéia de “crise generalizada”.
3. Resistência e criação
A partir do que vimos até aqui, podemos dizer que a importância do conceito de
dobra é justamente nos forçar a pensar e a resistir a um mundo que se dá como evidente,
plausível e previsível, mostrando que o mundo é uma obra aberta e permanentemente
inacabada. Ao expressar tanto um território subjetivo quanto o processo de produção
desse território a dobra afirma o próprio mundo como potência de invenção: nela é cada
vez o novo que se produz.
A dobra dá, portanto, visibilidade aos diferentes tipos de atualização da relação
consigo e com o mundo ao longo do tempo, mostrando as contingências e as
singularidades que marcam tanto a produção da subjetividade quanto os modos de
subjetivação. Sendo assim, é possível percorrer o artifício e as intensidades da
experiência subjetiva contemporânea, colocando em questão o que somos e qual é este
mundo, este período no qual vivemos, criando assim novas possibilidades de produção
de sentido.
Notas
1. O termo "capitalístico" foi forjado por Félix Guattari (1986) durante os anos 70 para
designar um modo de subjetivação que não se achava apenas ligado às sociedades ditas
capitalistas, mas que caracterizava também as sociedades, até aquele momento, ditas
socialistas, bem como as dos países do Terceiro Mundo, já que todas elas viveriam
numa espécie de dependência e contra-dependência do modelo capitalista. Por isso, do
ponto de vista de uma economia subjetiva, não haveria diferença entre essas sociedades,
pois elas reproduziriam um mesmo tipo de investimento do desejo no campo social.
2. Empregamos aqui a expressão “dupla captura” baseando-nos na noção de “duplo
vínculo” proposta por G. Bateson (1976, p.238) ao explicar o procedimento
esquizofrênico no interior da família. Para este autor, o duplo vínculo caracteriza-se por
uma série de proposições contraditórias e conflitantes que tendem a embaralhar as
mensagens que circulam num determinado meio, impossibilitando assim a
decodificação das mesmas. A hipótese de Bateson é que cada vez que se apresenta uma
situação de duplo vínculo, produz-se um “colapso” na capacidade do indivíduo para
discriminar as mensagens conflitantes que ali circulam.
3. Evidentemente que esta eliminação das fronteiras apenas existe quando se trata de
defender os interesses dos países que ditam as regras deste modelo, configurando-se,
portanto, numa liberalização seletiva das regras do comércio mundial.
4. A busca da perfeição e da correção de determinadas “falhas” é, em todo caso, a
explicação dada para justificar, por exemplo, as pesquisas com transgênicos e com o
próprio genoma humano.
5. Isso explica o enorme interesse por programas do tipo “big-brother”, onde a
“intimidade” é a todo momento vasculhada e capturada pelo olhar do espectador.
6. Podemos pensar em alguns exemplos para entender o modo pelo qual essa gestão de
microconflitualidades se operacionaliza atualmente: na família, através da proliferação
dos manuais de orientação aos pais; na educação, por meio da implementação de uma
estratégia de “formação permanente”, e no trabalho, pela “flexibilização” (leia-se “fim”)
de uma legislação trabalhista.
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Primeira decisão editorial em: dezembro / 2003
Versão final em: março / 2004
Aceito em: junho / 2004