O ESTRANHO QUE EU AMAVA - Português
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O ESTRANHO QUE EU AMAVA - Português
1 O ESTRANHO QUE EU AMAVA - Roteiro de Daniel J. ZIMERMAN AGOSTO 2014 FADE IN: LEGENDA CISJORDÂNIA Há 18 anos. INT. QUARTO DE DAVE-CRIANÇA – NOITE. Um menino RUIVO de sete anos está trabalhando com os componentes eletrônicos do que um dia foi um microcomputador. Um gravador portátil está ligado: OUVIMOS os Beatles, cantando LUCY IN THE SKY WITH DIAMONDS. De repente, DAVE ouve a voz de MIKE e abaixa o volume do rádio. MIKE (em OFF) DAVE! Onde foi que você colocou meu laptop?! Não consigo achá-lo. Ele parece preocupado com alguma coisa. É um adulto em tudo, menos na aparência de criança. MIKE (com vinte anos a menos) aparece, apontando primeiro a cabeça na porta. DAVE Coloquei de novo no carro, Mike. Tive que fazer nova formatação, tudo bem? MIKE OKAY, DAVE. E o sistema operacional? DAVE (paciente) Troquei. Aquele sistema é muito ruim, Mike. Fiz um novo para sua máquina, mais adequado ao seu perfil de usuário. MIKE (educado, mas sem calor humano) Não precisava. Mas obrigado de qualquer maneira. DAVE Mike? MIKE 2 O quê? DAVE Você é o meu pai? MIKE Já falamos sobre isso, DAVE. DAVE Por que não gosta que eu chame você de pai, Mike? MIKE Não é que eu não goste. DAVE É sim. Você não gosta mesmo. MIKE Não é isso. DAVE Por que você vai me levar para Toronto? Eu prefiro ir morar com você. MIKE Eu já expliquei. Trabalho num lugar muito perigoso. Não posso levar você para lá. DAVE Perigoso por quê? Desde quando o trabalho de um jornalista é perigoso? MIKE Eu sou correspondente de guerra, Dave. É diferente. Beirute não é um bom lugar para criar uma criança. DAVE (fitando Mike com os olhos brilhando) Todo mundo diz a mesma coisa da Cisjordânia, mas eu gosto daqui. Minha mãe também gostava. MIKE Hannah morava aqui porque era importante para o jornal dela, Dave. Se pudesse escolher, moraria em TEL-AVIV. DAVE Não sei se concordo com você, Mike. Os melhores amigos dela moram aqui. MIKE 3 (firme) Você vai gostar do Canadá, DAVE. Você vai para uma escola especial, para garotos inteligentes como você. DAVE Lá eu vou aprender astrofísica? MIKE Você vai aprender tudo o que quiser. DAVE Promete? MIKE Prometo. O menino sorri para Mike. ROLAM OS CRÉDITOS INICIAIS, que são impressos em imagens fascinantes do cosmo, com estrelas, planetas, reconstituindo o BIG BANG. Essas imagens são intercaladas por imagens que representam as muitas outras disciplinas estudadas por DAVE: o fundo do mar, ondas gigantescas, reprodução celular, choque entre átomos, números e fórmulas, animais selvagens, blocos de gelo na Antártida, imagens internas do corpo humano, simulações de fissão e fusão nuclear, velocidades altíssimas percorridas por jatos de última geração etc. Imagens em CLOSE-UP do rosto de DAVE, evoluindo de criança a adulto, absorvendo todo aquele conhecimento. Na trilha sonora, ACROSS THE UNIVERSE, com os Beatles. FIM DOS CRÉDITOS. INT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE. DAVE está diante do espelho, contemplando sua imagem. Com uma tesoura na mão, corta um ou outro fio de barba que está desalinhado, deixando tudo como queria: perfeito. Ruivo, muito elegante (parece mais um modelo pronto a desfilar do que um cientista renomado), ele ajeita os cabelos antes de dar-se por satisfeito e sair da frente do espelho. Ouve uma buzina, vai até a porta – VEMOS um pôster dos Beatles ainda jovens, caminhando por Liverpool – e então DAVE repara 4 num papel amarelo adesivo POST IT, em que está escrito à mão, com caneta vermelha: Dr.LOGAN 9h Ele faz uma careta e sai, depois de uma última espiada no espelho. EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE. DAVE sai de casa e entra rapidamente no carro de MADELEINE (a roliça e simpática assistente dele, de 35 anos), um modelo já bem usado. INT. CARRO DE MADELEINE – NOITE. Madeleine dá um assovio de admiração. MADELEINE Não precisava dessa produção toda, DAVE. O lugar é simples, você vai ver. DAVE Os rapazes de Liverpool merecem. E os ingressos? MADELEINE Na bolsa. Vamos embora? DAVE O que você está esperando, menina? Quero esquecer aquela maldita consulta e sacudir o esqueleto até raiar o sol. EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE. O carro arranca rápido, dando uns solavancos. Fica evidente de que Madeleine é péssima motorista. FUSÃO para a pista de uma boate, no embalo de TWIST AND SHOUT, com os Beatles. INT. PISTA DA BOATE/TORONTO – NOITE. Na pista, entre vários casais, DAVE e Madeleine dançando. Ela é um pouco desajeitada, mas Dave é um bom dançarino, que imita Travolta no filme SATURDAY NIGHT FEVER sem fazer feio. Na pista, VEMOS que muitas garotas (na faixa de 25-30 anos) olham com muito interesse para DAVE. 5 Devagar, uma mais ousada vai se aproximando de DAVE, sempre dançando, procurando ficar na frente dele. A garota é linda e não parece se importar com o fato dele estar acompanhado na pista. DAVE dá a entender que não percebe que a moça está dançando ‘para’ ele; Madeleine deixa claro que entendeu o recado. Ela cede espaço para a moça, discretamente. Outra moça, igualmente linda, começa a se aproximar da mesma forma, depois de notar que DAVE não pareceu atraído pela primeira. E assim ocorre com quatro moças. Uma delas chega a ser bem enfática para tentar seduzir DAVE. Sem sucesso. As moças parecem ter desistido de seduzir DAVE. Uma delas sinaliza para a outra, sem que DAVE e Madeleine percebam, que DAVE é gay. Na trilha, outra música dos Beatles, GET BACK. DAVE finge que está tocando guitarra, completamente envolvido pela canção. Um casal gay (homens) observa a sinalização entre as moças. O mais bonito, visivelmente afeminado, toma coragem e se aproxima de DAVE e Madeleine, olhando ostensivamente para ele. DAVE está inteiramente voltado para a música: como ocorreu com as moças, dá a entender que não percebeu a intenção do rapaz afeminado – que quer chamar atenção dele, tal como as moças – e continua a dançar, sempre olhando para Madeleine. Está sorrindo, feliz: adora dançar. Não deseja passar a impressão de que é um convencido, que esnoba as tentativas de aproximação de quem quer que seja. O rapaz afeminado vê que não conseguiu atrair Dave e sai dançando, sem graça. Outro homem, musculoso, bonito como Dave, aproxima-se com a mesma intenção. O resultado é o mesmo. Dave só tem olhos para Madeleine enquanto está dançando. Mas fica evidente que são apenas amigos. Os rapazes gays não compreendem a atitude de DAVE. EXT. ESTAÇÃO DE METRÔ/RUA DUNDAS/TORONTO – DIA. Bem agasalhado, sempre muito elegante, DAVE está saindo da estação do metrô. Despreocupado, caminha pela rua, até entrar num prédio. 6 INT. CORREDOR/PRÉDIO – DIA. DAVE sai do elevador e caminha até uma porta em que está afixada a placa James Logan, Ph.D. Psiquiatra. INT. SALA DE ESPERA/CONSULTÓRIO DR. LOGAN – DIA. DAVE entra e vai até a secretária. DAVE Dave KÖNIGSBERG. SECRETÁRIA O doutor LOGAN está aguardando o senhor, professor. Por favor. (aponta a porta, autorizando a entrada dele) Ele caminha na direção da porta do consultório. DAVE Obrigado. INT. CONSULTÓRIO DR. LOGAN – DIA. O Doutor Logan parece ter chegado aos 70 anos. Austero, usa óculos clássicos. Levanta-se com agilidade e recebe DAVE com um sorriso, oferecendo uma poltrona perto da dele e não o divã. Estende a mão a DAVE, que aperta. LOGAN Bom dia, doutor KÖNIGSBERG. É um prazer conhecê-lo. DAVE (pouco à vontade) Obrigado. DAVE apenas, por favor. Tudo bem com o senhor? LOGAN Você. James. Sentam-se. LOGAN Sou seu fã, DAVE. Quero saiba que lamento muito as circunstâncias em que estamos nos conhecendo. Eu ficaria aliviado se você entendesse que essa (...) 7 DAVE (interrompendo-o) Sessão. LOGAN Conversa (ênfase aqui)... Não foi ideia minha. DAVE Muito gentil de sua parte, Doutor. Mas nós sabemos que eu estou aqui para ser avaliado. Gosto de chamar as coisas pelos seus nomes. LOGAN Eu disse ao seu diretor que essa conversa era desnecessária. Não acredito, de forma alguma, que haja alguma coisa errada com você. DAVE parece mais confortável. Repara que há duas revistas com ele na capa na mesinha perto da poltrona do psiquiatra: as capas de edições das revistas TIME e NEWSWEEK mostram DAVE (sem barba, bem mais novo, cara de menino, aos 21 anos). CLOSE-UP do título da matéria de capa da revista TIME: NOBEL DE FÍSICA. DAVE Você sabe deixar um sujeito à vontade. psiquiatra você também é psicanalista? Além de LOGAN Acertou. Meu relatório já está escrito e nele seu diretor vai ler o que eu acabei de dizer a você. Quer ler? DAVE Absolutamente. Confio em você. LOGAN Ótimo. O que acha de aproveitar que está aqui e conversar sobre a pressão que você está sofrendo de seu diretor? Talvez eu possa ajudar. DAVE Exatamente o quê Archibald disse a você, James? LOGAN Ele falou que seu projeto de pesquisa está parado há quatro anos. Que você não consegue descobrir a solução para determinado problema e que sua inteligência se esgotou. 8 DAVE Você não acredita nisso. LOGAN Nem um pouco. DAVE Por quê? LOGAN Andei bisbilhotando e descobri algumas coisas bem interessantes. DAVE Bancando o detetive, James? LOGAN Só para fazer o relatório que seu diretor encomendou. Fiquei realmente impressionado com o que descobri. DAVE Archibald está certo. Não produzi nada mesmo. LOGAN É um ponto de vista. Em quatro anos você fez um curso inteiro de medicina e um doutorado em química nuclear. É algo notável, mesmo para alguém como você. DAVE Estudei psicanálise também, James. LOGAN Mas o que mais me surpreendeu foi saber que você aprendeu oito idiomas. Não sabia desse seu interesse em aprender outras línguas. DAVE Tenho interesse em aprender tudo o que eu ainda não sei. Há muito mais coisas desconhecidas do que conhecidas, James. Simplesmente não gosto de aceitar isso. LOGAN Não duvido. Mas eu descobri algo que você ainda não sabe. DAVE É mesmo, James? O quê? LOGAN 9 O seu bloqueio criativo – se me permite - começou exatamente no dia 12 de junho de 2010. DAVE (seriamente interessado) É mesmo? LOGAN Sabe o que foi que aconteceu nesse dia, DAVE? DAVE Não tenho a mínima ideia. LOGAN Foi exatamente nesse dia que um jornalista de Toronto chamado Mike HOOPER ganhou o prêmio Pulitzer. E se mudou para o Brasil. Dave fica visivelmente desconfortável. DAVE (dando um suspiro) Se eu tivesse lido algo sobre isso eu saberia, James. LOGAN Falta estudar mais um pouco de psicanálise. EXT. AVENIDA HOSKIN/TRINITY COLLEGE - DIA. DAVE avança de patins na direção do imponente prédio histórico da renomada instituição de ensino. Ele patina com segurança e habilidade, desviando-se dos estudantes que entram e saem do prédio, numa manhã chuvosa. DAVE confunde-se com os alunos, pois parece bem mais jovem do que de fato é (25 anos). DAVE chega à entrada principal e sobe a escadaria de patins mesmo, com segurança. Ele entra. INT/CORREDOR/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. Sem tirar os patins, DAVE entra num corredor amplo, que dá acesso à sala do diretor. Passa com agilidade pelos alunos que vem e vão pelo corredor e dá uma parada ao lado de um faxineiro já idoso, surpreendendoo com um beijo na careca dele. O bom humor de DAVE é contagiante. 10 Ele entra numa porta na qual há uma placa: DIRETOR. INT. SALA DO DIRETOR/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. DAVE entra na sala, sempre de patins. O DIRETOR está aparando uma árvore bonsai, usando uma tesourinha especial, de avental sobre o terno. Em momento algum ele olha para DAVE, que se senta poltrona, ficando, então, de costas para o diretor. Que bom que KÖNIGSBERG. DIRETOR você resolveu aparecer, numa doutor DAVE Amigos sempre aparecem, Archibald. O diretor dá um pigarro (ele não gosta de informalidade). DAVE Bacana esse seu hobby, Archibald. Bem repousante, com certeza. O diretor para de aparar a pequena árvore e olha fixamente para DAVE. DIRETOR O senhor sabe o quanto essa universidade já enfiou no seu projeto? DAVE Que verbo mais inadequado, Archibald. Mas eu tenho uma estimativa. O que me diz de cinco milhões? DIRETOR É muito dinheiro para você ficar quatro anos só estudando, doutor KÖNIGSBERG. Ah, sim: e jogando dados. DAVE Você anda me espionando, Archibald? Que coisa mais feia. DIRETOR Depois do Nobel você se acomodou, doutor KÖNIGSBERG. Não escreveu nem um mísero artigo científico. (ironizando) Fez muita coisa, mas trabalhar no projeto bancado pela universidade que é a sua obrigação, nada. 11 DAVE Não é verdade, Archibald. Há um problema que será resolvido. É questão de tempo. DIRETOR James Logan diz a mesma coisa. Mas eu não penso assim. DAVE Coisa comum na ciência. É claro que é involuntário e é ainda mais claro que vou resolver isso de forma satisfatória. DIRETOR Acabou a boa vida, doutor KÖNIGSBERG. A universidade não vai colocar nem mais um centavo na sua pesquisa. DAVE Uma decisão um tanto drástica essa sua, Archibald. Olhe que muitas universidades gostariam de ter meu projeto. DIRETOR Nem um centavo até lá. Você está por sua conta. Fique à vontade para procurar outra universidade. Já estou farto de sua enrolação. DAVE Fique tranquilo, Archibald. Vou ao Rio de Janeiro amanhã e na segunda-feira esse probleminha estará resolvido. DIRETOR Faça o que quiser. Mas com o seu dinheiro, entendeu? DAVE sai sem se despedir do diretor, que nem repara que o cientista não está mais lá. Ele tira os patins. INT. CORREDOR/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. MADELEINE, ansiosa, dá um gritinho quando o rosto sorridente de DAVE aparece saindo da sala do diretor. Dave leva os patins nas mãos; anda rapidamente. Madeleine tem dificuldade para segui-lo. MADELEINE O que ele queria? Dave 12 Sujeitinho detestável. MADELEINE Direto ao ponto, Dave. DAVE Ficamos sem os fundos de pesquisa. MADELEINE Sem nada? Nadinha? DAVE Zero. (pausa) Telefone à redação do New York Times e consiga o endereço do correspondente deles no Rio de Janeiro. MADELEINE Só tem um? DAVE É. Mike HOOPER. MADELEINE Rio de Janeiro? Não entendi. DAVE Providencie tudo, Madeleine. Depois eu explico. Não há tempo a perder. MADELEINE Que papo é esse? O que você vai fazer no Brasil? DAVE Vou lá ver se Sigmund Freud tinha razão, Madeleine. MADELEINE Freud? O que Freud tem a ver com isso? Pode me explicar? DAVE Eu não. Mas talvez ele possa. Depois, Madeleine. (pausa) Cuide de tudo, querida. Quero ficar num hotel simples, perto de uma favela. Quero conhecer a cidade real e não o Rio dos cartões postais. MADELEINE Sim, bwana. Mais alguma ordem? DAVE Quero viajar o mais rápido possível. Se der para ir hoje à noite, melhor. Volto segunda à noite. 13 CORTA PARA Uma bela visão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. VEMOS o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar. A imagem se expande e VEMOS que a bela paisagem é vista a partir de uma favela e não de um endereço nobre como sugerem as informações turísticas. LEGENDA RIO DE JANEIRO EXT. FAVELA DO CANTAGALO/RIO DE JANEIRO – DIA. Uma casa simples, típica das favelas cariocas. A casa é vigiada por homens fortemente armados, muitos sem camisa, só de calção, acostumados a ficar sob o sol forte. Homens negros ou mestiços, magros, jovens, alguns ainda na adolescência. INT. FAVELA DO CANTAGALO/RIO DE JANEIRO – DIA. Num cômodo mal iluminado, sem móveis, MIKE (52 anos, cabelos pretos, magro) está dependurado numa barra de ferro, que foi atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, a um metro e meio do chão. Ele está nu, ensopado de suor, cheio de marcas de pancadas, sangue escorrendo pelo nariz, muito ferido, visivelmente esgotado: está sendo torturado por um traficante, JOÃO GORDO (que é esquelético). CLOSE-UP: um revólver calibre 44 aproxima-se do rosto dele e o cano é colocado na boca de MIKE. JOÃO GORDO (em OFF) O que é que você anda xeretando por aqui, malandro? Mike tenta falar, mas não consegue. JOÃO GORDO tira o cano da arma da boca dele. MIKE não fala nada. Começa uma roleta russa. O tambor começa a girar e o gatilho é acionado. MIKE fecha os olhos. Aliviado, percebe que não houve disparo. Ele suspira. 14 JOÃO GORDO Você é um sujeito de sorte. Dá pra ver que você é um sortudo de primeira. CLOSE-UP de uma mão que segura dois fios desencapados, usados para aplicar um choque elétrico nos testículos de MIKE, que retorce o corpo e grita. JOÃO GORDO (em OFF) E aí? Estou esperando. Mike nada fala. Dá um gemido de dor. Novo giro do tambor do revólver. O gatilho é acionado, o tambor do revólver move-se mais uma vez. MIKE fecha os olhos, esperando o pior. Nenhum tiro. Mais um longo suspiro de alívio. JOÃO GORDO Deixa de ser besta. Não tem nenhum otário aqui. MIKE Está certo. Eu vou falar. Eu vim comprar pó pra minha namorada. JOÃO GORDO Sei. Bacana você. Meu cliente. A lâmpada pisca, ameaçando apagar-se, quando começa mais uma sessão de choques em Mike. Gritos terríveis são ouvidos na favela, que já se acostumou com coisas assim. INT. QUARTO DE MIKE/CASA/COPACABANA/RIO – DIA. Mike (de cueca) está despertando. Muito suado, com respiração difícil e muita falta de ar, ele dá um grito desesperado. MIKE Não! Não! Pelo amor de Deus, parem com isso! Eu juro que não sei de nada. Ele se acalma ao perceber que a tortura não foi real: era um pesadelo. 15 INT. AVIÃO – NOITE. DAVE está sentado no canto, perto da janela, na econômica. Está com fone de ouvidos, absorto na música. classe Um sujeito corpulento, ruivo como ele, chega e coloca uma maleta pequena no bagageiro. Senta-se e tira a boina xadrez no assento vago entre eles. Os dois se olham com curiosidade: são bem parecidos. DAVE tira o fone de ouvido. DAVID O meu pai ou o seu andaram pulando a cerca. (Estende a mão, sorrindo) David. DAVE (apertando a mão estendida) DAVE. DAVID Está me gozando? DAVE De jeito nenhum. DAVE KÖNIGSBERG. DAVID O’HARA. DAVE Mundo pequeno, esse, hein? É por essas e outras que adoro matemática. DAVID Você não acredita em coincidências? DAVE A física quântica desmoralizou a visão determinista, xará. Não dá mais para buscar refúgio no bom senso. O mundo deixou de ser tão simples. DAVID fica incomodado. Acha que DAVE é presunçoso. DAVID E qual é o seu ramo? DAVE Sou pesquisador. DAVID 16 Pesquisa de quê? DAVE Científica. E o seu? DAVID Sou bom fisionomista, por dever de ofício. Já vi você em algum lugar. DAVE É possível. Você também mora em Toronto? DAVID Moro. Mas não é por isso. (lembrou-se) Ei! Você é um sujeito famoso. É o garoto que ganhou o prêmio Nobel, não é? DAVE Você não é muito mais velho do que eu. DAVID (balançando a cabeça) É você. Agora está de barba. Garoto inteligente, físico nuclear. DAVE Físico teórico. DAVID Dá na mesma. Meu trabalho é bem mais divertido do que o seu, quer apostar? DAVE A física pode ser muitas coisas, mas monótona eu garanto que não é. DAVID Topa a aposta ou vai amarelar? DAVE Topo. Qual é o seu ramo? DAVID Turismo. DAVE Você tem uma agência de viagens? DAVID Mais ou menos. Sou autônomo. Vendo passagens para um único destino. Meu lugar preferido. 17 DAVE Um só? E o que tem de divertido nisso? DAVID Para o inferno, meu amigo. DAVE olha fascinado. para David, examinando-o com atenção. Sorri, DAVE Impressionante. É mesmo, David? Não é brincadeira? DAVID Tenho cara de quem brinca com essas coisas? DAVE Talvez. DAVID É um negócio como qualquer outro. DAVE E tem muita gente interessada? DAVID Não posso reclamar. DAVE Não tem problema de consciência? DAVID Por que teria? Acho o inferno um lugar bem mais divertido do que o céu. DAVE Nem todos pensam como você. Que tipo compra uma passagem para o inferno? de pessoa DAVID Gente rica. Com problemas. DAVE Eles não ficam com receio de não gostar da viagem? DAVID Nem um pouco. Não são eles que fazem a viagem. DAVE Eles contratam a viagem para outras pessoas, não pra elas mesmas. 18 DAVID Você pega as coisas rápido. Gosto de gente assim. O interesse de DAVE é genuíno. DAVE Nunca conheci alguém de seu ramo. Sua profissão é moralmente condenável, mas muito interessante. Posso fazer uma pergunta? DAVID Manda. DAVE Quanto você cobra? DAVID Depende da importância do passageiro. Normalmente, de 500 mil a um milhão. De euros. Você deve aposentar? DAVE estar muito rico. Não pensa em se DAVID Pra quê? Adoro o que faço. DAVE Não sente nenhum arrependimento? tipo DAVID Durmo muito bem. Para qualquer outro. mim de é remorso? um trabalho Algum como DAVE Não se preocupa com um julgamento lá em cima? DAVID Se eu fosse Deus, faria o mundo exatamente como ele é hoje. Eu sou uma peça numa engrenagem muito maior. DAVE Você teve formação religiosa? DAVID Católica. DAVE Frequenta a igreja? Já se confessou? 19 DAVID Não frequento mais. Já fui muitas vezes. Acho os padres um bando de hipócritas. Que diferença existe em despachar um sujeito com uma bala na cabeça e queimá-lo lentamente numa fogueira? DAVE A Igreja garantia inquisidores. um lugar no céu para os DAVID Os padres garantiram para mim também. DAVE Mas você teria que se arrepender. DAVID Não tenho do que me arrepender. Estou fazendo um favor às pessoas que despacho para o inferno. DAVE está pensativo. Imagino que instantânea. DAVE uma bala na cabeça provoca morte DAVID Nem todas. As minhas sim. Só uso balas com ponta de titânio. DAVE Você realmente está falando sério, não é mesmo? DAVID (rindo) Claro que não. Estou brincando. Você acreditou? DAVE dá uma risada; o outro apenas sorri. Os dois trocam um olhar cúmplice. INT. QUARTO DE MIKE/CASA/COPACABANA/RIO – DIA. Uma bela negra, inteiramente espreguiçando-se como um gato. nua, Mike está com os cabelos molhados, afundando o rosto na água refrescante. RITA acorda próximo ao devagar, lavatório, 20 Aconteceu alguma coisa? Tive a impressão de ouvir alguém gritando. MIKE Foi impressão sua. OUVIMOS batidas na porta. ALAIN Mike? Mike? Tudo bem aí? Mike vai até a porta e abre parcialmente, apenas o suficiente para que ele veja o rosto de ALAIN do outro lado da porta. Ele fala com afeminado. forte sotaque francês. É, visivelmente, um ALAIN Tudo certo? MIKE Na mais perfeita ordem, Alain. ALAIN (em voz baixa) Sua namorada estava aqui. MIKE Ex-namorada. ALAIN Que seja. Ela acabou de ir embora. MIKE Deixou algum recado? ALAIN Ela falou de uma câmera. Disse que espera você no escritório. MIKE OKAY. Mike tenta fechar a porta, mas não consegue: o pé de Alain está impedindo. MIKE O que foi agora? ALAIN Não deixe a moça escapar, Mike. Ela é especial. 21 MIKE Não acho que isso seja de sua conta, Alain. ALAIN É difícil encontrar uma mulher como ela, Mike. Mike não diz mais nada. Fecha a porta e vê que Rita acendeu um cigarro de maconha e está tragando. Ele vai até uma mesinha, onde quatro carreiras de cocaína estão enfileiradas; ele cheira as duas primeiras de uma vez só. Na mesinha, VEMOS uma foto de LAURA, numa moldura. MIKE Tenho que ir trabalhar. Vamos tomar um banho. RITA (tragando) Hoje é feriado, delícia. Esqueceu? MIKE Pra mim é um dia normal. RITA Tem problema se eu ficar aqui? MIKE Tem. Alain não vai gostar. RITA E eu com isso? Quero mais é que esse veado se dane. Mike fica irritado; pega as roupas dela e joga sobre Rita. MIKE (ríspido) Vá embora. Cai fora logo, menina! RITA (sem se mexer) O que foi? Ficou bravo porque chamei seu amigo de veado? Todo mundo na comunidade sabe que esse francês é gay. Mike caminha na direção do banheiro. MIKE Vou tomar um banho e quero você fora daqui quando eu voltar. Estamos entendidos? 22 RITA Filho da puta. Ele entra no banheiro e fecha a porta. Rita começa a vestirse, irritadíssima. PONTO DE VISTA de Rita, olhando com curiosidade a foto de Laura. CORTA PARA Na trilha sonora, GAROTA Jobim e Vinícius de Moraes DE IPANEMA, interpretada por Tom (http://youtu.be/KJzBxJ8ExRk). Imagens de Laura fazendo surf. Morena, 34 anos, ela tem um belo corpo, bem definido, com músculos no lugar certo, sem perder a feminilidade. Novas imagens: agora LAURA está jogando vôlei de praia. Depois aparece numa barra, fazendo exercícios. Por fim, caminhando na praia, numa imagem poética, ao por do sol. INT. AVIÃO – AMANHECER. A luz do sol entra pela janela e acorda DAVE, que cochilava. Ele olha para o lado e vê DAVID numa posição pouco usual; a boina está caída no piso da aeronave. Estranhando a posição de DAVID, DAVE cutuca o companheiro de viagem e percebe que ele está imóvel. Ele levanta-se e constata que o homem não respira. DAVE acende a luz de comunicação com as comissárias. Vê uma delas. DAVE Comissária! Comissária! Por favor, venha aqui. A comissária aproxima-se. COMISSÁRIA Senhor? Em que posso ajudar? DAVE aponta o defunto. DAVE Esse homem está morto. 23 A comissária, surpresa, coloca a mão no pescoço de DAVID, verificando a pulsação dele. Os passageiros olham para o cadáver, horrorizados. comissária vai até a cabine do comandante em passos rápidos. A COMISSÁRIA Por favor, não mexam no corpo. Eu não demoro. EXT. CASA DE MIKE/COPACABANA – DIA. Mike está saindo de casa. De chapéu panamá, roupas largas (bem à vontade) ele está numa bicicleta, seu meio de transporte preferido. Um belo dia de sol no Rio de Janeiro. EXT. BAR/FAVELA DE CANTAGALO/COPACABANA – DIA. Mike para no bar que fica entre a favela e Copacabana. Entra e leva a bicicleta para dentro, nas mãos. MIKE (dirigindo-se ao balconista, um negro forte, simpático) Manda o café, Miguel. Mike acende um cigarro. Miguel está sempre com uma toalha nos ombros. Com ela limpa o suor de vez em quando. Está quente demais, como é comum no Rio. MIGUEL O pão-de-queijo saiu agora. Está quentinho. MIKE Dois então. Acordei com fome. Miguel serve o café para Mike, num copo simples, cheio até a borda. Tira dois pães de queijo de uma lata, usando guardanapos que são sobras de papel de pão: é um bar frequentado por gente muito simples. MIGUEL Ninguém faz pão de queijo igual a minha patroa. MIKE E eu não sei? 24 Mike toma café, olhando o movimento. Sua atenção é despertada por um Mercedes-Benz negro, que entra na favela. Ele apaga o cigarro. Homens armados, postados com discrição em locais estratégicos, trocam sinais entre si: é uma autorização para que o carro entre na favela sem ser incomodado. O vidro escuro se abaixa e o rosto do passageiro do banco de trás (RUBENS, sócio de LAURA, aparece, saudando um segurança que parece mais graduado) fica parcialmente visível. MIKE Miguel? Você já viu aquele carro por aqui antes? MIGUEL Aquele carro preto? MIKE É. Já viu? MIGUEL (lavando copos) Já. Uma ou duas vezes. Mike continua observando o carro; repara que os ‘seguranças’ do tráfico cumprimentam o passageiro do carro, que não aparece, pois o vidro é escuro, provavelmente blindado. Um dos ‘seguranças’ olha em volta e vê que Mike está olhando o carro, tentando ver quem é o passageiro, sem conseguir. MIKE Você sabe quem é aquele sujeito que está no carro? MIGUEL Tá de sacanagem comigo, cara? MIKE Não vejo por que. Manda mais um café. Miguel serve mais um café. MIGUEL Você não sabe mesmo? MIKE Por que deveria saber? 25 MIGUEL É o namorado de seu amigo francês. MIKE Alain? MIGUEL Tem algum outro? MIKE Não. Mike pega a bicicleta e sai, sem voltar-se para Miguel. EXT. ESCRITÓRIO DE LAURA/COPACABANA/RIO – DIA. Laura está linda num terninho cinza com a saia riscada na altura das belas pernas, trabalhando em seu laptop. LÚCIA (em OFF) Mike está aqui. Ou o que sobrou dele. Parece que veio pedalando do México. Estou servindo uma água ao coitadinho. LAURA Você passou na costureira? LÚCIA Você vai adorar. Ela é linda, maravilhosa. Coloquei no bagageiro da moto. Mike entra na sala. LAURA E a câmera? MIKE Lúcia é exagerada demais. Estou ótimo. Laura se levanta e vai até ele. Ele tenta beijá-la nos lábios, ela vira o rosto. LAURA Já passamos dessa fase, querido. Trouxe a câmera? MIKE (entrega a ela um prendedor de gravatas) Claro. LAURA O que é isso? 26 MIKE A câmera que você pediu. Mike mostra a ela que a caneta é uma câmera disfarçada. LAURA Incrível. E a qualidade da imagem? MIKE Ótima. Está programada para mandar imagens para meu laptop. São do mesmo fabricante. Tem certeza que vai querer usá-la? LAURA Meu pai é um canalha. Depois de tudo o que aconteceu, o filho da puta está traindo a minha mãe de novo. MIKE Isso é problema dele e de sua mãe. Você não deveria se meter nessa estória. LAURA Você menos ainda. Homens são todos iguais. MIKE Eu nunca prometi fidelidade a ninguém. LAURA Nem disse que era promíscuo. Nem que tinha doença venérea. MIKE Como é que você sabe que foi comigo que pegou? Laura para, olha fixamente para Mike. LAURA SE (ênfase aqui) a sua existência fosse relevante – e não é – eu consideraria dar a você uma resposta adequada. MIKE Veja lá como vai usar problemas com o conde. essa câmera. Não quero LAURA (olhando fascinada para o prendedor de gravata) Não vai ter. Só preciso das imagens para convencer minha mãe. 27 MIKE É bom mesmo. Já tenho problemas demais. LAURA E como é que faço para acionar a gravação? MIKE (mostrando a ela) Na hora em que você firmar na gravata dele, aperta aqui. Só para de transmitir se você apertar de novo. LAURA Muito bacana. MIKE Vi seu sócio lá em Cantagalo hoje. Subindo o morro. E não foi para namorar. Alain estava em casa. LAURA (absorta na observação da câmera) Quase todos os maiores traficantes do Rio são nossos clientes. MIKE Você não tem nenhum problema de consciência? Essa gente é perniciosa. LAURA Minha conta bancária incomoda você? ajuda a superar isso. Isso MIKE Muito. Não acho certo. LAURA De qualquer modo, quem cuida dos traficantes é Rubens. Eu só lido com os clientes que atuam dentro da lei. MIKE Não faz diferença. LAURA Para mim faz. De qualquer forma, isso não é mais problema seu. Ela dá dois passos e abre a porta. LAURA Não precisa editar as imagens. Mande para meu e-mail e me favoreça com sua ausência. Para sempre. 28 INT. AVIÃO – AMANHECER. Dois comissários levam o corpo de DAVID para os fundos da aeronave. DAVE pega a boina xadrez no chão e faz menção de chamar a comissária. Muda de ideia e coloca a boina na cabeça, ajeitando-a. EXT. PRÉDIO/APTO DO CONDE/AV. VIEIRA SOUTO/RIO – DIA. Vista externa do sofisticado prédio em que vivem CONDE, a mulher dele e LAURA, filha única. INT. BANHEIRO/APTO DO CONDE/AV. VIEIRA SOUTO/RIO – DIA. O conde LUIZ FRANCISCO DE ORLEANS E BRAGANÇA, pai de LAURA, está diante do espelho, ajeitando o prendedor de gravatas que ganhou da filha. BERNADETE, mulher dele, fala algo sem entrar no banheiro. VOZ DE MULHER (em OFF) Querido. Rubens já está esperando você. CONDE Laura está com ele? VOZ DE MULHER (em OFF) Não. Ela foi ao Fórum. Depois de ajeitar os cabelos, ele sai. INT. QUARTO DE MIKE/COPACABANA/RIO – DIA. Mike está diante do laptop, teclando com rapidez. Um sinal sonoro avisa que a máquina está recebendo imagens. CLOSE-UP de um ícone que representa uma câmera, piscando. Ele leva o mouse até o ícone e clica. Na tela começa a surgir, distorcida, a imagem de Rubens, captada pela câmera embutida no prendedor de gravata de Conde. PONTO DE VISTA DA MINI-CAM: Rubens parece preocupado. RUBENS (na tela do laptop) 29 O filho da mãe está quase descobrindo tudo. Ele me viu no morro hoje. A imagem firma-se. MIKE faz menção de voltar ao trabalho, mas resolve acompanhar as imagens da conversa entre Rubens e o conde. CONDE (em OFF) Você estava no carro do escritório? RUBENS Tive que sair às pressas, conde. Não deu tempo de trocar de carro. CONDE (em OFF) Acalme-se, rapaz. Trate diabo mora nos detalhes. de ficar mais atento. O RUBENS Laura já terminou com ele. Vamos resolver isso logo. CLOSE-UP DE MIKE. Ele está assustado. A voz do conde é registrada em OFF quando a CAM estiver no PONTO-DE-VISTA de Mike, que está de olho na tela de seu laptop. Nesse caso, só Rubens aparece na imagem, enquadrado pela CAM fixada na gravata do Conde. CONDE Nosso convidado já chegou? RUBENS Deve estar chegando ao Galeão agora. CONDE (em OFF) Quero uma recepção de gala. Inesquecível. RUBENS Já cuidei de tudo, conde. Ele vai ser tratado como rei. Contratei uma menina nova, espetacular. CONDE (ironizando) Fico preocupado quando você diz que uma mulher é espetacular. RUBENS 30 Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A moça é da alta sociedade, refinada, fala inglês e francês fluente. Perfeita para nosso hóspede canadense. CONDE Quero esse assunto resolvido amanhã. Deixe o sujeito descansar hoje. RUBENS Considere resolvido. CONDE E o movimento da semana? Rubens aproxima-se da MINI-CAM e entrega a CONDE uma pasta. O conde examina os papeis. PONTO DE VISTA DA MINI-CAM: as mãos de Conde estão manuseando as folhas, uma após a outra. As folhas mostram planilhas, cheias de números. CONDE (em OFF) Pavãozinho tem que melhorar. Aperte aquele crioulo. Essa gente de favela é folgada demais. RUBENS Você acha que ele está metendo a mão? CONDE (em OFF) Não. Ele não é louco pra fazer isso. É só relaxado. RUBENS O faturamento no Complexo do Alemão cresceu quase 20%. Paulo Preto é fera, conde. CONDE (em OFF) Os caras tem que saber que você está de olho, Rubens. Vigilância, meu caro. O negócio é vigilância. RUBENS O pessoal de Zé Marreco está reclamando da polícia. CONDE (em OFF) Que Zé Marreco é esse? 31 RUBENS Da Rocinha. CONDE (em OFF) Vá direto ao governador. Esse secretário é um bobão. Quem é mesmo que está na Polícia Civil? Cada dia tem um sujeito diferente lá. RUBENS Delegado Marcílio, conde. Não é má pessoa. CONDE (em OFF) Detesto gente gulosa demais. Reduza a parte dele em 15%. Não, 20%. Passe para o governador. RUBENS Está certo. Acabam as apanha. folhas. CONDE estende a pasta a Rubens, que CONDE E Vigário Geral? RUBENS As folhas estão grudadas. CONDE separa as duas folhas. CONDE Bom. Muito bom. Mais alguma coisa? RUBENS Não. CONDE Algum problema além do comendo a minha filha? bisbilhoteiro que estava RUBENS Você se refere àquele assunto que já está resolvido? CONDE É assim que eu gosto das coisas, Rubens. Vou para Angra depois do almoço. (pausa) Arrume umas duas meninas para mim. RUBENS Vou cuidar disso, conde. a 32 Rubens levanta-se. PONTO DE VISTA DA MINICAM: Rubens se aproxima. Os dois se abraçam. Mike suspira, passando as mãos na cabeça. Está muito abatido. INT. AEROPORTO DO GALEÃO/RIO DE JANEIRO – DIA. DAVE, usando desembarque. a boina de DAVID, está saindo da área de Carrega numa mão o porta terno de couro e na outra uma sacola, também de couro. Um sujeito com uniforme aproxima-se dele. de motorista (com quepe inclusive) MOTORISTA Senhor David O’HARA? DAVE para. Depois de titubear um pouco, DAVE responde. DAVE Sim. Pois não? MOTORISTA Vim buscar o senhor. DAVE Para onde você vai me levar? Para um hotel? MOTORISTA Não, senhor O’HARA. O senhor é convidado pessoal do Doutor Rubens. DAVE Sou? MOTORISTA O senhor vai ficar hospedado na casa de hóspedes. Recebi ordens para fazer tudo o que o senhor quiser. Prefere ir para um hotel? DAVE Não. A casa de hóspedes está bem. Qual é o seu nome? MOTORISTA Sergio. Ao seu dispor. 33 O motorista se oferece para levar a bagagem de DAVE e ambos caminham na direção da saída do aeroporto. SERGIO Por aqui, por favor. EXT. AEROPORTO DO GALEÃO/RIO – DIA. O carro preto (Mercedes-Benz) que apareceu antes está estacionado num local proibido. DAVE, atento, observa que há um guarda de trânsito por perto. O motorista abre a porta traseira, depois de fazer um sinal de agradecimento ao policial, sob o olhar curioso de DAVE. DAVE entra no carro, o motorista também. EXT. RUAS/AVENIDAS DO RIO DE JANEIRO – DIA. O carro preto avança por ruas e avenidas do Rio de Janeiro. CAM NO PONTO DE VISTA DE DAVE: um Rio que não aparece em cartões postais. Ruas sujas, muita confusão no trânsito, favelas. Na TRILHA SONORA, uma música emblemática do caos urbano em que se transformou a cidade: RIO 40 Graus, de Fernanda de Abreu, cantora carioca (http://youtu.be/Y5gneAzzpGk). O carro para num engarrafamento gigantesco. O motorista vira a cabeça para trás. SERGIO Se o senhor quiser, pode ligar a televisão. DAVE Prefiro apreciar a vista. É minha primeira vez no Rio. SERGIO Com esse engarrafamento não vai dar para apreciar nada, senhor O’HARA. DAVE Não tem importância. Isso acontece em todo lugar. SERGIO (rindo) Vamos ficar presos aqui por pelo menos duas horas. 34 DAVE (muito surpreso) Duas horas? SERGIO Se estivermos com sorte. (pausa) Aí atrás tem jornais e revistas, se preferir. Em inglês. Tem água e uísque também. IMAGENS DO ALTO, mostrando uma interminável fila de carros. DAVE Os engarrafamentos aqui são sempre assim? SERGIO Nem todos, mas é comum. Já estamos acostumados. O trânsito no Rio é um caos. DAVE Então vou sair para ver a cidade. Não vou me afastar muito. Quero conhecer as pessoas. SERGIO Ninguém fala inglês aqui, Senhor O’HARA. DAVE Eu sei. Não falo português, mas razoavelmente. Vou treinar meus ouvidos. DAVE já se afasta do carro. Sergio. entendo Não presta atenção na fala de SERGIO Cuidado com assaltos, Senhor O’HARA. (para si mesmo) Que bobagem a minha. Os assaltantes é que tem que tomar cuidado. DAVE afasta-se, caminhando entre os transeuntes na movimentada rua do centro do Rio. PLANOS APROXIMADOS de pessoas comuns que circulam pela parte antiga do centro do Rio, sem o glamour das imagens de cartões postais. Na TRILHA, volta Rio 40 Graus. INT. QUARTO/CASA DE MIKE/COPACABANA – RIO. Mike ainda está diante do laptop. 35 O monitor do laptop transforma-se na tela e VEMOS o que Mike digita, com rapidez, anexando à mensagem as imagens captadas com a conversa entre CONDE e Rubens: Envio a você imagens que acabei de receber. O arquivo está criptografado, para sua segurança. Veja esse material somente quando estiver sozinha. Tranque as portas. É estarrecedor. O namorado de meu amigo que adora vinho aparece prestando contas ao chefe dele, que é o verdadeiro comandante do tráfico de drogas no Rio. A promotora Alice KUROSAWA está recebendo essa mensagem, bem como as informações que já consegui apurar. Estou saindo do Rio agora. Você vai entender por que. É certo que minha extinção física foi determinada. Espero ter ajuda da promotora e proteção da Polícia Federal. Fique em paz. M. Ele levanta-se, clica no mouse. PONTO DE VISTA DE MIKE: VEMOS o e-mail da destinatária com cópia oculta para Laura ([email protected]), ([email protected]). MIKE fecha o laptop, junta algumas roupas numa mochila e sai o mais rápido que consegue. EXT. MANSÃO DE COSME VELHO/RIO DE JANEIRO – DIA. O carro chega a uma bela mansão e estaciona em frente à porta. Sergio desce primeiro e abre a porta para DAVE, que está adorando ser tratado como VIP. Sergio pega os itens acompanhando DAVE. da bagagem Imediatamente surge um empregado porta e pega a bagagem de DAVE. e leva até uniformizado, a que porta, abre MORDOMO Boa tarde, senhor O’HARA. Seja bem-vindo. Boa tarde, Sergio. Sergio aponta o caminho para DAVE. SERGIO Por aqui, senhor. Boa tarde, Hermínio. a 36 DAVE Boa tarde, Hermínio. O cumprimento de DAVE é caloroso. Hermínio, muito formal, fica surpreso. HERMÍNIO (a Sergio) Não se preocupe. Levo o senhor O’HARA até a suíte dele. SERGIO Está certo. Boa estada, senhor O’HARA. Estarei aqui à sua disposição. Sergio sai e Hermínio conduz DAVE ao quarto dele, no segundo pavimento da bela casa. SEGUIMOS os dois, que sobem a escada. DAVE repara o bom gosto da decoração e da construção da casa. Obras de arte valiosas estão espalhadas por todo canto. INT. SUÍTE/MANSÃO/COSME VELHO/RIO – DIA. As janelas estão abertas, proporcionando uma bela vista para o Pão de Açúcar. A mesa está posta para um lanche frugal. HERMÍNIO Tomei a liberdade de preparar um lanche para o senhor. Não sei exatamente do que gosta, mas fiz o possível para agradá-lo. Se faltar alguma coisa é só apertar aquela campainha, certo? DAVE Está perfeito, Hermínio (recita o nome em português com pronúncia perfeita). Muito obrigado por sua atenção. HERMÍNIO Não há de que. É meu trabalho. Boa tarde, senhor. O mordomo sai. DAVE senta-se na cama espaçosa e dá um suspiro. DAVE Madeleine? DAVE. Quero mudar o voo de volta. Passe para terça-feira à noite. Vou precisar de mais dois dias. OKAY. DAVE termina o telefonema e dá uma olhada para a mesa, cheia de quitandas típicas do Rio. 37 O que chama a atenção dele é um bolo esverdeado, com alguns morangos na superfície. DAVE Esse bolo parece uma delícia. Come uma fatia de uma vez e aprova o sabor. Corta mais uma, começa a comer e serve-se de suco de laranja. Sem que ele percebesse, Laura entrou no quarto por uma porta lateral da suíte. É difícil reconhecer nela a advogada bem-sucedida: está literalmente vestida como uma rainha egípcia e devidamente maquiada, no estilo CLEÓPATRA que Liz Taylor celebrizou em Hollywood. A vestimenta é ricamente adornada, uma festa para os olhos. Ela usa joias verdadeiras, impressionantes: é como se Cleópatra tivesse saído diretamente dos livros de história e se materializado naquela suíte. Está descalça, pés com esmalte branco, como as mãos. Uma festa para os olhos. LAURA Gostou do bolo? Fui eu que fiz. DAVE vira-se e olha surpreso para Laura. DAVE Impressionante. CLEOPATRA THEA PHILOPATOR, filha ÍSIS, senhora do Sol e da Lua, mãe do Alto e Baixo Egito, filha de Ptolomeu, o Flautista. incrível! (Faz uma curvatura reverente) A que devo honra, majestade? de do É a Laura age como se fosse a própria CLEOPATRA. LAURA Ajoelhe-se, plebeu impertinente! Não lhe ensinaram a respeitar uma rainha? DAVE ajoelha-se. DAVE (sorrindo) Mil perdões, majestade! LAURA 38 Estás perdoado, ó plebeu! Mas somente de tiveres adorado o bolo real. DAVE caminha até a mesa e corta mais uma rapidamente, tomando um mais um gole do suco. DAVE Isso é fácil. (acaba de engolir) delicioso que já comi. De que é? É o fatia. bolo Come mais LAURA (senta-se na cama e cruza as pernas, teatral) De trigo, naturalmente. Coma mais, plebeu! Pode ser que assim eu poupe sua vida miserável! DAVE dá uma risada gostosa. E serve-se de mais uma fatia, que come tão rápido como as demais. Laura abaixa-se e, debaixo da cama, puxa um balde em que há uma garrafa de champanhe. LAURA O bolo vai ficar ainda mais saboroso se você tomar um pouco disso aqui, plebeu. DAVE dá mais uma risada sonora; PERCEBEMOS, então, que ele está alterado. DAVE Agradeço muito, alteza. alcóolica. Mas não tomo bebida LAURA E quem foi que disse que um plebeu ordinário como você tem o direito de recusar o champanhe real? (Ela serve champanhe numa taça) Beba imediatamente! E coma mais um pedaço do bolo. Senão, calabouço! DAVE ri de forma ainda mais exagerada. Corta mais uma fatia e toma o champanhe de um gole só. DAVE Meu Deus! Eu era infeliz e não sabia! Isso é bom demais! DAVE vai rápido até o balde e serve devagar, saboreando o sabor da bebida. mais um LAURA Você realmente nunca tomou bebida alcóolica? copo. Toma 39 DAVE Por que o espanto? LAURA Isso é muito raro. Raríssimo! DAVE serve mais uma taça. Mais uma risada. DAVE Acho que devo contar um pequeno segredo a você, minha rainha. Mas antes quero a receita desse bolo magistral. O que vai além de trigo? LAURA Segredo? Que segredo? DAVE (sorridente) É uma troca. Eu dou o segredo, você dá a receita. LAURA Fechado, plebeu. O bolo é de haxixe. DAVE Haxixe?! Aquele negócio que parece maconha? LAURA O melhor haxixe do mundo, plebeu. Padrão holandês. EXT. RUA SAINT ROMAIN/IPANEMA/RIO – DIA. O táxi em que está Mike segue pela rua quando é fechado por dois carros, de onde descem vários dos ‘seguranças’ do tráfico na favela de Cantagalo. Eles rendem o motorista e tiram Mike à força com carro. Um deles volta e pega a mochila. Colocam Mike no bagageiro de um dos carros e saem em alta velocidade. INT. SUÍTE/MANSÃO/COSME VELHO/RIO – ANOITECENDO. VEMOS a passagem do tempo: está anoitecendo. Na cama da suíte, debaixo dos lençóis, DAVE e Laura parecem estar se divertindo muito. Peças da roupa ‘real’ de Laura são lançadas para fora, ao chão, uma a uma. 40 DAVE ri pra valer. DAVE Ei! Você realmente vai ficar nua? LAURA Estou pensando seriamente nisso, ordinário. Alguma coisa contra? seu plebeu DAVE (rindo muito) Você é uma prostituta? Ela bate no rosto dele, mais para fazer barulho do que para machucar. LAURA Plebeu impertinente! DAVE (rindo muito) Eu não tenho prostitutas. experiência com rainhas. Nem com LAURA Fora daqui eu tenho uma profissão, plebeu. Rainha só nas horas vagas, e por diversão, não por dinheiro. Entendeu? DAVE Impressionante. Mil perdões, minha rainha!Acho que tem alguém aqui que vai ter uma surpresa desagradável. LAURA Será? Você tem o pinto muito pequeno? Deixe-me dar uma conferida. DAVE Ei! Vamos com calma aí, senhora do Nilo! LAURA Hum, aqui tem coisa boa, plebeu. Trate de tirar a calça rápido. Mal posso esperar para soltar essa cobra enorme. E eu achando que era uma minhoquinha. DAVE O problema não é esse, alteza. LAURA Você é gay? 41 DAVE ri com vontade, até ficar com lágrimas nos olhos. DAVE Não exatamente. Laura coloca a cabeça para fora. VEMOS que está com os seios nus. LAURA Que raio de resposta é essa, plebeu? É gay ou não é? DAVE levanta-se, vai até a mesa e come mais um pedaço de bolo. Toma mais um gole em sua taça de champanhe e volta para a cama. DAVE Nem uma coisa nem outra. Sexo não é uma coisa que funcione para mim. Mas nunca senti falta. LAURA É impotente ou coisa assim? Mais risadas. DAVE Coisa assim. LAURA Exatamente do que estamos falando aqui? DAVE Não tenho apetite sexual. Nunca tive. LAURA Jura? DAVE Não precisa fazer essa cara, minha rainha. Isso não me afeta em nada. Não sinto falta de algo que não conheço. LAURA Que desperdício, meu psicólogo ver isso? Deus. Você já foi a um DAVE Não é preciso. Eu já sei. Estudei psicanálise para entender o meu caso. LAURA 42 Assim não vale. Você jamais vai ter isenção para analisar a si mesmo. DAVE Confirmei meu diagnóstico com um camarada de alto nível. LAURA E aí? DAVE Perdi minha mãe aos cinco anos, alteza. Substituí a pulsão sexual por um interesse insaciável por conhecimento. Chama-se sublimação. É simples assim. LAURA Simples que nada. Nunca ouvi falar disso. DAVE Eu sou cientista, alteza. Razoavelmente sucedido. Nunca senti falta de sexo. bem- LAURA Pois isso vai acabar agora. Vamos apostar? DAVE Não seria justo com você, alteza. Você não tem a mínima chance de ganhar. LAURA Isso é problema meu. Topa ou não topa a aposta? DAVE Topo. O que está valendo? LAURA Se eu ganhar você vai comigo a um baile funk. Mas antes disso quero esclarecer uma coisa. O segredo que você mencionou é esse? DAVE Não. É outro. LAURA Uma aposta por cada vez, plebeu. DAVE Eu enganei as pessoas que trabalham nessa casa. Eles acham que eu sou um assassino profissional. 43 Agora é a vez de Laura rir com vontade. Lágrimas aparecem no rosto dela. DAVE O assassino verdadeiro morreu no avião, de um ataque cardíaco. Estava ao meu lado, conversei com ele e eu não resisti à tentação de saber como era a vida deum matador. LAURA Você é maluco? Não tem ideia do que vai acontecer quando esse pessoal descobrir que foi enganado? Ela levanta-se de uma vez. Está inteiramente nua. Um corpo estupendo, que DAVE contempla admirado (sem apetite sexual). LAURA Vamos embora daqui imediatamente! DAVE E a aposta? Nunca apostei tanto em minha vida! LAURA Você perdeu por usar falsidade ideológica. Fique quietinho aqui e me espere. Vou trocar de roupa e já volto. DAVE Fique à vontade, alteza. Vou comer mais bolo. Essa conversa atrapalhou o efeito do bolo. Essa é uma forma muito engenhosa de consumir haxixe. Você é um gênio. Vou levar o resto do bolo, posso? LAURA (já saindo pela porta lateral) Autorização concedida, plebeu. Não demoro. EXT. BECO NA FAVELA/CANTAGALO/RIO – ANOITECENDO. Um carro (modelo simples, mais antigo) estaciona perto de uma casa da favela. Rubens sai do carro, apressado e entra no sobrado típico de uma favela carioca. Homens da ‘segurança’ fortemente protegida. do tráfico INT. SOBRADO/CANTAGALO/RIO – NOITE. cercam a casa, que é 44 Rubens entra cadeira. na sala e vê Alain sentado e amarrado numa Ao lado dele, João Gordo, chefe do tráfico na favela. Rubens observa que Alain está desacordado, mas sem sinais de violência. Um rapaz jovem está no canto, trabalhando no laptop de Mike. JOÃO GORDO Ninguém encostou a mão nele, tranquilo. Doutor. Pode ficar RUBENS Sei. (apontando o rapaz que trabalha no laptop) Quem é esse aí? JOÃO GORDO É gente de confiança. Eu garanto o menino. Trabalha para nós. RUBENS Saia menino. Obediente, o rapaz sai. João Gordo parece contrariado. RUBENS Explicações, Gordo. Quero boas explicações. JOÃO GORDO Pegamos o jornalista tentando fugir. RUBENS Onde ele está? JOÃO GORDO (aponta uma porta) Está ali dentro. Virou ‘presunto’ (gíria para cadáver). RUBENS Não era para matar o sujeito. JOÃO GORDO Não foi de propósito. Ele tentou fugir e a gente não teve alternativa. RUBENS Desde quando é você que decide isso? JOÃO GORDO 45 Antes de morrer ele contou que mandou umas filmagens para sua sócia no escritório. Rubens fica atento. RUBENS Que filmagens? JOÃO GORDO Você ‘prestando contas’ (ele enfatiza) a outro sujeito. Hoje de manhã. Sua sócia colocou uma câmara na gravata do sujeito com quem você se reuniu. Ele não aparece. Só você, doutor. RUBENS Você viu a filmagem? JOÃO GORDO Não. Meu menino estava tentando abrir a porra do arquivo. Está mais trancado do que cofre do Banco Central. RUBENS Alguém mais ouviu o que ele disse? JOÃO GORDO Só eu e o meu secretário, Peruca. O menino não sabe de nada, mas leu a mensagem do jornalista para a sócia do doutor. Rubens observa a tela do laptop e vê que uma mensagem está na tela. RUBENS É aquela? JOÃO GORDO É. RUBENS (apontando Alain) E esse aqui? JOÃO GORDO Dei uma coisinha pra ele dormir até sua chegada. Ninguém encostou a mão nele. RUBENS Acabe com seu secretário. 46 João Gordo dá uns passos e abre a porta. Rubens se aproxima e vê os corpos de Peruca e Mike (com sangue nas costas e sinais de tortura). RUBENS Acabe com o garoto do micro. JOÃO GORDO Canarinho! O rapaz que trabalhava no laptop de Mike entra. CANARINHO Posso voltar ao trabalho? João Gordo saca a automática com rapidez e atira na cabeça do rapaz, que morre na hora. Ato contínuo, Rubens saca um revólver 38 e atira em João Gordo, que também morre na hora. Um ‘segurança’ empunhada. entra logo depois, com uma submetralhadora RUBENS Calma. O menino e João Gordo se mataram. Tudo bem aqui. Pode sair. O ‘segurança’ faz menção de sair. RUBENS Fernando. FERNANDO Sim, doutor. RUBENS Você fica no lugar do Gordo. FERNANDO Obrigado pela confiança, doutor. O senhor não vai se arrepender. O novo chefe do tráfico em Cantagalo sai, quase explodindo de alegria. Rubens confirma que Alain dorme profundamente, vai até o laptop, lê a mensagem, confirma que o arquivo anexado está criptografado e tecla um número no celular. EXT. RUA DE COSME VELHO/RIO – NOITE. 47 Numa HARLEY&DAVIDSON modelo clássico, de guidon alto, VEMOS DAVE na garupa da moto, sem capacete. Quem conduz a moto é uma pessoa com traje preto de couro, capacete negro também. A motocicleta sai da casa devagar gasolina, parando para abastecer. e entra num posto de O condutor da moto tira o capacete e reconhecemos Laura. Ela está com uma pequena mochila presa às costas. A bagagem que DAVE trouxe do Canadá está na moto: parte entre ele e Laura e parte atada ao pequeno bagageiro da moto. Um carro negro para com intenção de fazer a conversão e virar à direita, para entrar na casa em que Laura e DAVE estavam. Ela reconhece o MERCEDEZ-BENS do escritório. O vidro está abaixado: VEMOS Rubens, no PONTO DE VISTA de Laura, no banco de trás. Ela observa que dois carros acompanham o Mercedes-Benz. LAURA (apontando para Rubens) Você conhece aquele homem? DAVE Não, minha rainha. Nunca vi. Quem é? LAURA Acho que foi ele quem contratou seu amigo do avião. DAVE É o mesmo sujeito que contratou você? LAURA É. Depois te conto essa estória, plebeu. Agora a gente vai se divertir. EXT. RUAS/AVENIDAS/IPANEMA – NOITE. A HARLEY&DAVIDSON de Laura avança devagar pela orla marítima do Rio. DAVE está na garupa dela, sem capacete. Ele dá gritos de prazer com o passeio. 48 Na trilha sonora, GAROTA NACIONAL, da banda brasileira SKANK (http://youtu.be/DjPtwYunRq4) Chegam a um prédio pequeno e entram pela garagem. INT. GARAGEM/PRÉDIO PEQUENO/IPANEMA – NOITE. Carregando a bagagem de DAVE na mão, eles caminham até o elevador e entram. VAMOS COM ELES NO ELEVADOR. LAURA É só o tempo de trocar de roupa. Quer ficar aqui? DAVE Minha assistente fez reserva favela chamada Cantagalo. numa pousada. Numa LAURA Aqui é melhor. DAVE Quero conhecer uma favela. LAURA Deixe isso comigo, plebeu. Você vai ter sua favela e não vai demorar. O elevador para. INT. SALA/APARTAMENTO CONDE/AV. VIEIRA SOUTO – NOITE. Rubens está servindo um uísque. O conde está tenso. CONDE Eu avisei a você que esse namoro com aquela bicha francesa iria dar merda. Quantas vezes eu avisei, seu monte de merda?! RUBENS (cabisbaixo) Não precisa humilhar, conde. (pausa) Sem ele a gente nunca saberia o que aquele jornalista estava fazendo. CONDE E do que adiantou a gente saber? RUBENS 49 O arquivo está criptografado. Dá tempo de dar um jeito na japa. CONDE Não sei quanto tempo. Vá falar com o nosso amigo canadense. Agora mesmo. Resolva esse negócio hoje à noite mesmo. RUBENS (tomando o uísque de um gole só) E Laura? O que a gente vai fazer com ela, conde? CONDE Diga você. RUBENS Não tem outro jeito. CONDE Você é que vai dar a notícia pra mãe dela. Não estou com saco para drama de novela mexicana. RUBENS Eu dou. E o jornalista? CONDE Mande sumir com o corpo. RUBENS Pode ficar tranquilo, conde. O filho da puta não mandou nada para o jornal. Alain acompanhou diariamente tudo que ele andou enviando para Nova York. CONDE Sou um poço de tranquilidade. Se essa merda vazar você é quem vai pagar o pato. Eu não apareço na gravação, já que a câmera estava comigo. RUBENS Vão identificar você. Não há outro conde no Rio. CONDE Nisso é possível dar um jeito. Pode ser apelido de um marginal. Mas quem vai assumir a merda é você, claro. Mas agora não é hora de pensar nisso. Vá logo cuidar de Laura. O celular de Rubens vibra. Rubens confere o número de quem está chamando. 50 RUBENS Só um minuto. É de Toronto. O Conde serve um uísque para ele e vai até a sacada. PONTO DE VISTA do Conde: uma vista monumental da orla da praia de Ipanema. Ele olha para Rubens, que parece surpreendido com o que ouviu. Rubens se aproxima. RUBENS Não estou entendendo mais nada. CONDE O que foi agora? RUBENS O sujeito morreu no voo para o Rio. CONDE Que sujeito? RUBENS O nosso canadense. Chegou morto ao Galeão. Eu não entendo mais nada. CONDE Só me faltava essa. E quem é o cara que está na casa de Cosme Velho? Não tenho descobrir. a RUBENS menor ideia, conde. Vou lá agora CONDE Leve gente do Gordo com você. Entre em contato com a companhia aérea. Descubra quem sentou perto do canadense. Mexa esse rabo gay, rapaz. Suma daqui! INT. GARAGEM/PRÉDIO PEQUENO/IPANEMA – NOITE. DAVE e Laura garagem. acabam de sair pelo elevador, entrando na Ela veste um vestidinho bem curto e usa uma sandália de salto alto. DAVE também trocou de roupa; está elegante, como sempre. 51 DAVE Você está linda, alteza. LAURA Você também. A cobra deu sinal? DAVE ri. DAVE Não deu e nem vai dar, alteza. (Ele tosse) LAURA A garganta fica irritada mesmo. É normal. DAVE É bem melhor comer do que fumar. LAURA Depois do baile tenho uma surpresa pra você. DAVE Ainda não desistiu? LAURA Essa palavra não existe em meu dicionário. (aproximase dele e dá um beijo carinhoso) Plebeu. Os dois se encaminham para uma camionete, modelo esportivo, nacional, que está ao lado da moto. VEMOS um bagageiro com chave logo atrás da cabine. EXT. FAVELA DA ROCINHA/ZONA SUL/RIO – NOITE. A camionete de Laura está entrando na favela da Rocinha, a maior do Rio. DAVE olha para tudo, admirando a paisagem, fascinado. Laura estaciona a camionete num lugar que parece perto de enorme galpão, que é onde vai ser o baile funk tradicional na favela. Ao fundo, OUVIMOS a zoeira do funk. Os descem do carro. Muita gente jovem, mulheres de vestidos bem curtos, seios contidos com dificuldade. DAVE faz um grande sucesso, chamando atenção das brasileiras. Laura responde olhando de cara fechada, delimitando o terreno, apresentando-se como acompanhante dele. 52 EXT. BILHETERIA/BAILE FUNK/ROCINHA – NOITE. Os dois aguardam na fila. Tudo é bem simples. DAVE Adorei a surpresa, alteza. Mal posso esperar para entrar. LAURA Você gosta de dançar? DAVE Adoro. Mas nunca experimentei esse tipo de música. LAURA É o funk carioca, plebeu. Não se assuste se as meninas se esfregarem em você. Lá dentro pode. Aqui não. Entendeu? DAVE Impressionante. LAURA É bom ir se acostumando com a ideia, plebeu. Você é meu. DAVE Você está pensando me transformar em seu gigolô ou algo assim, alteza? LAURA Você gosta da ideia? DAVE É um tanto exótico para um cientista. Você faria bolo de haxixe para mim todo dia? LAURA Pode contar com isso, plebeu. DAVE Já se esqueceu daquele pequeno problema? LAURA Não existe pequeno problema quando a cobra é grande como a sua. Nós vamos resolver isso hoje, plebeu. Prepare-se para a melhor noite de sua vida, querido. DAVE Seu otimismo é comovente, alteza. 53 Eles entram no corredor de acesso ao galpão. SEGUIMOS COM OS dois descendo um lance de escada, num pequeno corredor e COM ELES CHEGAMOS à pista de dança. Na trilha sonora o som do funk carioca, ao vivo. INT. PISTA DO BAILE FUNK/ROCINHA – NOITE. DAVE e Laura dançam com alegria, envolvidos alucinante da música em altíssimo volume. Muitos casais erótica. se beijam, a dança é sensual, pelo ritmo extremamente As mulheres partem para cima dos homens, beijam mais de um na sequência: coisa comum nesses bailes. Um casal faz sexo na pista: a mulher de vestido muito curto, sem calcinha. Ninguém dá importância. Outros fumam crack, droga preocupação com a polícia. comum nas favelas, sem qualquer DAVE é abordado por mais de uma e aceita os beijos, sem muito entusiasmo na resposta, mas aceita. De vez em quando, Laura se aproxima e dá um pequeno empurrão numa dançarina mais afoita. Depois de muita dança, Laura percebe que o telefone celular está vibrando; o aparelho está dentro uma minúscula bolsa que ela leva presa à cintura. Ela para de dançar e atende, mesmo com o barulho infernal. PERCEBEMOS que é impossível ouvir qualquer coisa: ela avisa a DAVE que precisa sair. Os dois saem desceram. da pista e depois sobem a escada que antes INT. SALA DE ESTAR/APTO DO CONDE/IPANEMA – NOITE. O conde lê um livro, auxiliado pela luz indireta de um abajur. A mulher dele chega com uma bandeja: café e biscoitos. CONDE Obrigado, querida. 54 BERNADETE Não há de quê, meu bem. O celular dele vibra em cima da mesa onde Bernadete colocou a bandeja. O conde toma um gole do café e olha quem está chamando. Atende: é Rubens. O conde olha em volta e não vê ninguém por perto. CONDE Luiz Francisco. Encontrou Laura? insistindo. Uma hora ela tem que atender. Continue VEMOS que Bernadete está escondida, ouvindo a conversa dele. CONDE Mande alguém naquele apartamentinho dela. Claro. (pausa) O quê? Localize a cafetina e ache a moça. O sujeito deve estar com ela. Ligou na companhia aérea? HOOPER? Tem certeza? Você acredita em Papai Noel? Coincidência uma merda! O celular de Bernadete toca e o conde percebe que ela estava ouvindo a conversa, escondida. Ele levanta-se, surpreende. continua conversando normalmente e a CONDE Consiga umas fotos dele e vá direto ao governador. Quando a polícia quer, pega qualquer um bem rápido. Monte uma operação de guerra se for preciso, mas ache aqueles dois de qualquer jeito! Ela também, imbecil! Coloque gente seguindo a japa 24h e grampeie todos os telefones dela. Se ela conseguir abrir o arquivo você está perdido, Rubinho. É seu rabo que está em jogo! Ao terminar de falar o conde está diante de Bernadete, que desligou o celular sem atender e está paralisada de medo do marido. EXT. GALPÃO/BAILE FUNK/ROCINHA/ZONA SUL/RIO – NOITE. DAVE e Laura estão do lado de fora, onde é possível conversar ao telefone. Ela está teclando um número. 55 LAURA Era minha mãe. E agora não atende. Estranho isso. DAVE Não estamos com pressa. Vamos tomar água? LAURA Quero dar uma olhada em minha caixa postal antes. Pode ser? DAVE OKAY. Vou lá buscar a água. Fique à vontade, minha rainha. LAURA Você é um amor de plebeu. (Dá um beijo carinhoso nos lábios dele) Gracinha. DAVE se afasta e Laura olha para a tela de seu celular. Vê a mensagem enviada por Mike e quase desfalece. LAURA Meu Deus! Não é possível. Não pode ser. Relê a mensagem. Tecla outro número. LAURA Alain? Laura. Você pode falar? (pausa) Desculpe ligar a essa hora, querido. Por quê? Alô? Alain?! DAVE se aproxima com uma garrafa de água. DAVE Você está pálida, minha rainha. Está passando bem? Algum problema? Laura começa a chorar. DAVE O que aconteceu, alteza? Algum problema com sua mãe? Vamos sair daqui. LAURA daqui. Vamos embora. Precisamos sair Ela puxa DAVE pela mão. INT. QUARTO DO CONDE/APTO/IPANEMA/RIO – NOITE. O conde está sentado diante de Bernadete, com o celular de Bernadete na mão. 56 Verifica se ela fez alguma ligação recente. CONDE Exatamente o que você falou com Laura, Bernadete? BERNADETE Pelo amor de Deus, Luiz Francisco, ela é sua filha. CONDE Responda. BERNADETE Eu não falei nada. Juro por Deus. Não deu tempo. CONDE Eu não queria isso, Bernadete. Deus sabe que eu não queria. BERNADETE Pelo que existe de mais sagrado no mundo, Luiz Francisco. Não faça uma coisa dessas com sua filha. CONDE Ela se meteu aonde não devia e agora não há outro jeito. Quem mandou seguir aquele jornalista de merda? BERNADETE O culpado é ele, Luiz Francisco. Só ele. (chorando) CONDE Sabe o que ele fez? O filho da puta mandou o material para aquela promotora japa. E quem colocou aquela câmera foi minha própria filha. Foi Laura, meu bem. Bernadete recompõe-se. BERNADETE Tem certeza? CONDE (mostra o prendedor de gravata) Aqui está a maldita câmera. BERNADETE E se você mandar Laura para o exterior? CONDE Ela não é mais criança, Bernadete. Não iria adiantar. 57 BERNADETE Tem que haver um jeito, Luiz Francisco. CONDE Infelizmente não vejo outra solução, meu bem. BERNADETE Você promete que ela não vai sofrer? CONDE Garanto que não, meu bem. Ela é nossa filha. Bernadete volta a chorar. EXT. FAVELA DA ROCINHA/ZONA SUL/RIO – NOITE. A camionete de Laura está se dirigindo para fora da favela, quando para, repentinamente. INT. CAMIONETE/FAVELA DA ROCINHA/RIO – NOITE. Laura abre a porta da camionete. LAURA Você se incomoda em dirigir? DAVE Nem um pouco, alteza. Ela sai e DAVE ocupa o lugar dela, que entra pela porta do carona. DAVE dá a partida e sai. LAURA Fique tranquilo que eu te oriento. DAVE Para onde vamos? LAURA Para meu apartamento. Vamos lá pegar suas coisas. DAVE Não vou mais ser seu hóspede? LAURA Mudei de ideia, se você não se importa. DAVE 58 Claro que não. LAURA Pegue a primeira à esquerda. DAVE Eu memorizei o caminho. LAURA Ótimo. Mas antes dê uma parada, por favor. DAVE para a camionete. Laura abre o porta-luvas do carro e tira material para cheirar três carreiras de cocaína. Curioso, DAVE observa. DAVE Impressionante. LAURA Quer? Ela cheira a primeira carreira. DAVE Obrigado, alteza. Não tenho vontade de experimentar drogas químicas ou injetáveis. LAURA Melhor. Eu não faço isso sempre. Quer um cigarro de haxixe? Laura cheira a segunda carreira. DAVE Não se for continuar dirigindo. LAURA Qual é o endereço de seu hotel? Cantagalo é uma favela enorme. DAVE Não peguei o endereço. Vou ligar para Madeleine. Laura cheira a terceira fileira. LAURA Quem é essa? 59 DAVE Minha assistente. LAURA Vamos trocar de lugar. Já estou pronta para dirigir. Trocam de lugar mais uma vez. Ela dá a ele um cigarro de haxixe e um isqueiro. DAVE Não é perigoso fazer isso aqui? LAURA Na Rocinha? Esqueça. DAVE pega seu celular e tecla o número de Madeleine, depois de tragar a primeira vez. DAVE MADDY? Sou eu. Tudo bem. Ótimo. Mande o endereço por SMS. Como? Mike ligou? Não, claro que não. Pode fornecer meu celular também. DAVE desliga. DAVE Muito estranho ele ter ligado. Nunca fez isso. LAURA Quem? DAVE Meu pai biológico. Ele mora aqui no Rio. Laura freia bruscamente o carro. Não segurança os dois teriam se machucado. fosse o cinto LAURA Qual é o nome dele? DAVE Vá com calma, alteza. Pelo amor HOOPER. de LAURA Deus me DAVE Você conhece Mike? diga que você não é DAVE de 60 Laura suspira profundamente. Dave para de fumar, joga fora o cigarro de haxixe. Você está dirigir. DAVE pálida como um cadáver. É melhor eu Laura respira devagar, profundamente. LAURA Não. Minha pressão caiu. Já está melhorando. Vou ficar bem. DAVE Quem é você, afinal de contas? De onde conhece Mike? LAURA É uma estória longa. Vamos a um lugar tranquilo. Vou contar tudo a você. DAVE (firme) Não vai dar para esperar, alteza. Preciso saber o que está acontecendo. Por favor, alteza. LAURA Não foi Mike quem ligou para sua assistente no Canadá. Não sei quem ligou, mas com certeza, Mike não foi. DAVE E como é que você sabe quem não foi ele? LAURA Lamento muito ter que dizer isso a você, mas Mike está morto. DAVE Morto? Você está enganada. Eu vim falar com Mike. Laura liga a partida do carro e começa a dirigir. LAURA Tentei falar com ele agora há pouco. Os traficantes mataram Mike, querido. Ele estava fazendo uma reportagem sobre tráfico de drogas no Rio. DAVE Quando ele morreu? LAURA 61 Ontem. DAVE Sei. (pausa) E como é que você soube disso? LAURA Eu fui namorada dele. DAVE fica pensativo. Não está exatamente emocionado, apenas intrigado. DAVE Pare o carro. Vamos conversar com calma. (pausa) E quem era aquele sujeito que chegou naquela casa? Laura para e estaciona a camionete. LAURA Meu sócio. DAVE Sócio? Seu gigolô? LAURA Não. Meu sócio no escritório de advocacia. DAVE Você é advogada? LAURA Sou. Meu escritório é o maior do Rio. DAVE Por que você... (é interrompido) LAURA Para magoar meu pai. Sou muito rica, não preciso daquilo. DAVE O que houve entre você e seu pai? LAURA Fui abusada. Sexualmente abusada até os 16 anos. DAVE Não sei o que dizer. Terrível, triste demais. LAURA Quando eu cresci ele perdeu o interesse por mim. Gosta só de garotinhas. 62 DAVE Uma monstruosidade, minha rainha. Tenho dificuldade para compreender algo tão monstruoso. LAURA Mike sabia disso? LAURA Sabia. DAVE O que seu sócio foi fazer naquela casa? LAURA Ele contratou os serviços de uma prostituta. Não sabia que era eu. Iria aparecer lá cedo ou tarde. DAVE Escoltado por homens armados? Aquilo não era uma visita social. LAURA Ele foi atrás do sujeito que você substituiu. Não de você. DAVE Ele levou aqueles homens para mim mesmo, alteza. LAURA Ele não conhece você, plebeu. DAVE Descobriram que o sujeito que esperavam estava morto. Chegaram a mim, com certeza. Foram eles que ligaram para Madeleine. LAURA Como conseguiram chegar a você? DAVE Na companhia aérea. Tenho HOOPER no nome. LAURA Você tem que sair do Rio imediatamente, plebeu. Meu pai controla a polícia. Vão achar você. É questão de tempo. DAVE Traficantes tem tanto poder assim aqui no Rio? LAURA 63 Meu pai não é um traficante comum, plebeu. É da alta sociedade, de família aristocrática. Mike descobriu e me mandou uma mensagem. DAVE Seu pai é uma espécie de bon vivant? LAURA Pelo contrário. Trabalha 20h por dia. É dono de uma rede de jornais e revistas, incluindo o maior jornal do Brasil. Herdou um titulo de nobreza, da antiga realeza que veio de Portugal. DAVE Uma mistura do príncipe Phillip, com Ruppert Murdoch e Pablo Escobar. Impressionante. LAURA Ele era só um título falido, aí se casou com minha mãe e enriqueceu de novo. DAVE Sua mãe sabe dos abusos que você sofreu? LAURA Sabe. DAVE E nunca fez nada para denunciar seu pai? LAURA Minha mãe é de uma das famílias mais tradicionais do Rio de Janeiro. Jamais colocaria o nome da família no noticiário policial. DAVE Impressionante. LAURA Se você falar ‘impressionante’ de novo vai ficar sem metade da cobra. DAVE Você acha que seu pai mandaria matar você? LAURA Estou contando com isso, plebeu. Estamos marcados para morrer, plebeu. DAVE Isso não parece incomodar você. LAURA 64 Eu me preparei para esse momento desde que tinha oito anos de idade. DAVE Não tem medo? LAURA Muito. Você não? DAVE Ainda não parei para pensar nisso. LAURA Você não parece alguém que está com a cabeça a prêmio. Nesse momento a polícia e todo o crime organizado do Rio estão atrás de você. DAVE A polícia também? LAURA Meu pai controla o governador, que controla polícia. Isso não preocupa você, plebeu? Acho tudo DAVE isso (...) (olha para Laura, que expressão ameaçadora para ele) (...) emocionante faz a uma demais. Essa adrenalina é deliciosa. LAURA Você é completamente doido, plebeu. Não tem medo de morrer? DAVE Nem de viver. O que você pretende fazer? LAURA Não pretendo ficar de braços cruzados. Vou acabar com ele antes que ele perceba o que está acontecendo. DAVE Conte comigo, minha rainha. LAURA Você é um amor, plebeu. Mas não sabe mesmo atirar? Nem um tiro bem pequenininho, assim... praticamente invisível a olho nu? DAVE 65 Nada. Sou uma nulidade na área de assassinatos em série. LAURA Se pelo menos a cobra fosse venenosa. DAVE Voltamos à cobra, alteza? LAURA Foi só uma brincadeira boba. Isso agora não tem mais nenhuma importância. DAVE Humor é bom para relaxar. Mas (...) o que vamos fazer agora? LAURA Agora nada. Vamos passar a noite num lugar tranquilo. Colocar a cabeça em ordem. Raciocinar. Amanhã vai ser outro dia. DAVE coloca a mão dele sobre a dela. Olham-se com carinho. EXT. EDIFÍCIO-SEDE DA POLÍCIA FEDERAL/CENTRO/RIO – NOITE. Só uma sala está com a luz acessa. INT. SALA/COMBATE A CRIMES INTERNET/SEDE – NOITE. Três homens trabalhando em microcomputadores. Um deles tem aparência NERD, é muito jovem. Toca o telefone na mesa dele. MAURO Mauro. VOZ DE ALICE (em OFF) Alguma novidade, Maurinho? MAURO Nenhuma doutora. Esse tipo de código é muito difícil de decifrar. VOZ DE ALICE (em OFF) Está certo. Você me avisa assim que abrir o arquivo? MAURO 66 A grana está de pé? VOZ DE ALICE (em OFF) Acabei de aumentar para 30 mil. Se você conseguir em meio dia. CORTA PARA VEMOS um gravador. A imagem se expande e identificamos um homem com fones de ouvido. VOZ DE MAURO (em OFF) Não existe milagre em tecnologia, doutora. Vou levar pelo menos uma semana nesse serviço. E não garanto que vou conseguir abrir o arquivo. VOZ DE ALICE (em OFF) Está certo. Trinta mil. Dólares. OUVIMOS o click de um telefone fixo que é desligado. EXT. PRAIA DESERTA/RIO DE JANEIRO – NOITE. A camionete de Laura está numa praia deserta. Uma noite sem nuvens, de céu estrelado. Um clima agradável, propício para um banho de mar. Os dois descem da camionete. LAURA Esse é o meu paraíso particular. Estou investindo para fazer um loteamento. DAVE É um paraíso mesmo, alteza. Vamos dar uma volta? LAURA Foi para isso que trouxe você aqui, plebeu. Laura começa a tirar a roupa. DAVE fica maravilhado com a ousadia dela, que num piscar de olhos está nua. DAVE Isso aqui é um campo de nudismo? LAURA 67 Agora é. Venha, dê um pouco de ar para sua anaconda. DAVE Eu não fico à vontade. Pode chegar alguém. Laura já está inteiramente nua. Dá a volta e vai até o bagageiro da camionete. Pega uma bola de futebol e começa a brincar com ela, chutandoa com os pés, como fazem os craques de futebol. DAVE observa como é notável a habilidade dela com os pés: a bola nunca vai ao chão, sendo chutada para cima repetidas vezes. Ele está maravilhado. LAURA Relaxe, plebeu. Não vai aparecer ninguém. A praia é particular. DAVE Ei! Você é boa nisso, alteza. LAURA Não quer aprender? É fácil. Na trilha sonora começam os acordes de guitarras em “É uma partida de futebol”, com a banda brasileira de rock SKANK. (https://www.youtube.com/watch?v=4gqeHu7r5dQ) Ela dá um chute mais forte, jogando a bola longe e corre atrás dela. DAVE despe-se rapidamente e corre atrás dela, inteiramente à vontade. Os dois começam a trocar passes. DAVE adquire habilidade. segurança aos poucos, revelando alguma As imagens dos dois brincando com a bola (ela ensina a ele como dominar a bola), simulando uma partida de futebol são intercaladas com imagens da torcida numa arena de futebol, num jogo de verdade. EXT. PRÉDIO DA POLÍCIA FEDERAL/CENTRO/RIO – NOITE. 68 Mauro, o técnico em informática que está trabalhando para a promotora ALICE, está saindo do trabalho. Entre um bocejo e outro, ele caminha na direção de seu carro, quando uma moto aproxima-se e o piloto dá dois tiros nele, afastando-se rapidamente. Um homem sai do prédio e corre na direção de Mauro, que parece muito ferido. EXT. PRAIA/RIO DE JANEIRO – NOITE. DAVE e Laura estão dormindo na carroceria da camionete. Estão nus, abraçados. INT. SALA/COMBATE A CRIMES INTERNET/SEDE DA PF/CENTRO – NOITE. O telefone toca e um funcionário atende. VOZ DE JÚLIA (em OFF) Mauro? FUNCIONÁRIO Não. Quem quer falar com ele? VOZ DE JÚLIA (em OFF) Alice KUROSAWA. Sou promotora de Justiça. FUNCIONÁRIO Mauro está no hospital, doutora. Atiraram nele há menos de uma hora. VOZ DE JÚLIA (em OFF) Que pena. E como ele está? FUNCIONÁRIO O estado dele não é dos melhores, mas parece que vai escapar. VOZ DE JÚLIA (em OFF) Eu espero que sim. Ele é ótima pessoa. Obrigado. O funcionário desliga o telefone e volta ao trabalho. EXT. PRAIA DESERTA/RIO DE JANEIRO – AMANHECER. A camionete de Laura segue por uma estrada vicinal, de terra. 69 O sol está nascendo. DAVE no volante. Laura termina de digitar uma mensagem SMS no celular e acende um cigarro de haxixe. LAURA Não me dou bem com ALICE, mas não tenho dúvida de que ela é honesta. Nela dá para confiar, plebeu. DAVE Qual é seu problema com ela? Laura interrompe suas falas algumas vezes, para tragar. LAURA Pessoal, nenhum. Mas tirei da cadeia algumas pessoas que ela queria condenar. DAVE Só isso? LAURA Sabe como ela é chamada no fórum? Pittbull japonês. Assim. No masculino mesmo. DAVE Impressionante. Ela é combativa? LAURA Combativa sou eu. Ela é obsessiva. Quando pega no pescoço de alguém não larga de jeito nenhum. DAVE Você acha que ela vai pegar no pescoço de seu pai? LAURA Essa é a nossa sorte, plebeu. Ela tem ódio mortal de meu pai. Ela faz qualquer coisa para botar o filho da puta em cana. DAVE É pessoal? LAURA Tudo para ela é pessoal, plebeu. Meu pai teve uma amante há alguns anos. Uma jornalista. Linda a moça, Maria. Vinte e um anos, recém-formada, uma ninfeta. Meu pai enlouqueceu com a menina. 70 DAVE E onde entra a promotora pittbull? LAURA Relaxe, plebeu. Quer mais um pouco de erva? DAVE Não. Obrigado. Fiquei com a garganta irritada. LAURA A menina quis largar meu pai e o conde não costuma aceitar um pé na bunda. CORTA PARA Numa cavalariça, VEMOS o conde, mais novo alguns anos, correndo atrás de uma mulher jovem (MARIA) e atirando nela, nas costas. A mulher cai e ele se aproxima bem perto, atirando duas vezes na cabeça dela. CLOSE-UP de Maria, indefesa, ferida. VOLTAMOS À CAMIONETE. DAVE (coloca uma mão sobre a mão de Laura) Seu pai não é um ser humano normal. Não pode ser minha rainha. LAURA Meu pai comprou todo mundo. É réu confesso, mas nunca passou um único dia atrás das grades. DAVE Ele confessou e ainda assim não foi preso? LAURA Só por três horas. Habeas Corpus. DAVE Não entendo como isso é possível. LAURA Aqui as leis existem para serem burladas, plebeu. Só pobre vai para a cadeia nesse país. Quem pode pagar um advogado razoavelmente bom jamais vê o sol nascer quadrado. DAVE 71 Impressionante. E sua amiga pittbull não se conforma com isso. LAURA Bingo. Alice não convive muito bem com a impunidade. É uma promotora pouco heterodoxa. Fabrica provas, corrompe, faz qualquer coisa para botar as mãos em um criminoso impune. Vai perseguir meu pai até o último suspiro. CORTA PARA EXT. AV. VIEIRA SOUTO/IPANEMA/RIO – AMANHECER. O carro de ALICE para ao lado de um furgão. Ela desce e entra na parte de trás do furgão. INT. FURGÃO – AMANHECER. Os dois policiais que trabalham com Alice, TOURINHO E MATTOS – vestidos de preto, com o rosto parcialmente coberto –, aguardavam a promotora na parte de trás do furgão. ALICE Tudo certo? TOURINHO Tudo, doutora. Daqui a pouco o porteiro dá o sinal e nós entramos. ALICE E os seguranças dele? TOURINHO Ficam sempre de fora. Foram proibidos de entrar na garagem. ALICE E o motorista dele? MATTOS Não tem. O homem faz questão de dirigir. ALICE Vai ser fácil então. Não quero erros. Levem o filho da mãe para o Ninho da Águia. Bom trabalho, crianças. Alice sai. VOLTAMOS À ESTRADA VICINAL: DAVE e Laura continuam na camionete. 72 DAVE Alice já sabe que é seu pai que controla o tráfico de drogas? LAURA Eu acho que não. Só sabe que eu sei quem é. Mike mandou as provas para ela, mas o arquivo com as imagens que incriminam meu pai está criptografado. DAVE Mike conseguiu filmar seu pai na favela? LAURA Não exatamente. Mas a prova é boa se for apresentada junto com meu depoimento. Mas antes ela tem que conseguir abrir o arquivo, coisa que ainda não fez. DAVE É uma prática usual do New York Times para proteger seus repórteres. Laura dá um trago ainda mais lento do que os demais. LAURA Pelo visto não adiantou muito. Como é que você sabe disso? DAVE O jornal me contratou para fazer esse tipo de coisa. Ninguém vai conseguir abrir o arquivo. Só eu consigo. LAURA Você não é psicanalista? Não. Estudei disse a você. DAVE psicanálise, mas sou físico. Eu já LAURA Não prestei atenção, plebeu. Desculpe. DAVE Tudo bem. Como é que tem tanta certeza de que Mike morreu? EXT. FAVELA DE CANTAGALO/COPACABANA/RIO – MANHÃ. Um buraco enorme é usado como lixo pelos moradores da favela. Uma fogueira foi feita com muitos pneus, o que produz uma fumaça negra, espessa. 73 Perto, em CLOSE-UP, VEMOS um pé de sapato e outro de uma sandália de dedo, muito comum no Rio. VOLTAMOS À CAMIONETE, com DAVE e Laura. LAURA Liguei para Alain. Ele estava em prantos. DAVE Ele viu meu pai biológico ser morto? LAURA Não disse isso, mas sabe que ele deve ter morrido. DAVE Deve? Você não tem certeza? LAURA Não cultive nenhuma esperança, plebeu. É modo de dizer. DAVE Quem é Alain? LAURA O melhor amigo de Mike. Foi namorado dele, morava junto com ele. DAVE Mike namorava homens e mulheres? LAURA Era um sujeito versátil seu pai biológico, plebeu. Não sabia? DAVE A última vez que vi Mike foi quando tinha sete anos de idade. LAURA Foi por isso que você estudou psicanálise? DAVE Na época eu achava que não. Estudei muitas coisas, sempre gostei de estudar. LAURA E aí descobriu que precisava bater um papo com Mike. DAVE 74 Nunca senti falta dele, alteza. Mas há quatro anos minha criatividade secou e eu vim ao Rio para resolver isso. LAURA O que tem a ver uma coisa com a outra, plebeu? DAVE Vamos deixar isso para depois, alteza. Agora quero saber se esse lugar para onde estamos indo é mesmo seguro. LAURA O pittbull garantiu que é. Vamos entrar pelos fundos, um caminho que só ela usa. Falta pouco. CORTA PARA INT. GARAGEM/PRÉDIO/IPANEMA/RIO – AMANHECER. O furgão está estacionado perto do Toyota do conde, que sai pelo elevador observado pelos homens que trabalham para Alice. PONTO DE VISTA DE TOURINHO: pela fresta da porta traseira do furgão, Tourinho vê o conde saindo do elevador. O conde, com abrigo para ginástica, de tênis, aproxima-se do Toyota. Rápidos, os dois homens saem do furgão e imobilizam o conde, sedando-o com um lenço umedecido com clorofórmio. Ele desmaia e é carregado pelos homens até a traseira do furgão e colocado lá dentro. Mattos fica lá com ele e Tourinho entra na cabine, dando a partida e saindo devagar da garagem. DE VOLTA À ESTRADA VICINAL. DAVE e Laura na camionete. DAVE Quero conhecer Alain. Você pode levar-me até ele? LAURA Ficou maluco? Alain agora é namorado de meu sócio, que é o braço direito de meu pai. DAVE Ele está envolvido na morte de Mike? 75 LAURA Duvido. É boa pessoa. Ao contrário de Mike, que era um grandíssimo filho da puta. DAVE Por que diz isso, alteza? LAURA Incomoda você eu falar assim? DAVE Nem um pouco. Quero saber mais sobre Mike, só isso. LAURA Mike não gostava de conversar. Tudo o que interessava a ele era o trabalho, cocaína e fazer sexo. Ele era viciado em sexo. Passou–me doença venérea. DAVE É tudo que pode dizer dele? LAURA Seu pai biológico era um egoísta incorrigível, plebeu. Um manipulador, que usava as pessoas e as descartava sem consideração. DAVE Você foi descartada? LAURA Não, porque ele me passou doença e eu caí fora. Acredite em mim, plebeu: você não perdeu nada importante ficando longe dele. EXT. BAR/FAVELA DO CANTAGALO/COPACABANA/RIO – MANHÃ. Em meio a barracos e casas simples, algumas apenas parcialmente construídas, VEMOS a fumaça negra subindo aos céus. Miguel está do lado de fora, olhando o movimento, e vê a fumaça. Numa mesa colocada tomando cerveja. do lado de fora Miguel sinaliza, mostrando a fumaça. FREGUÊS dois fregueses estão 76 Isso vai dar merda. MIGUEL Vai nada. Um gringo a mais ou a menos não vai fazer diferença. FREGUÊS Daqui a pouco isso aqui vai estar cheio de televisão. Ele caminha até o balcão e serve-se de pinga, bebida típica do Brasil. Volta à porta e observa mais uma vez a fumaça. Faz um brinde (à fumaça) e bebe toda a pinga de um só gole. MIGUEL Saúde! EXT. FAZENDA/INTERIOR/RIO DE JANEIRO – DIA. A camionete de Laura chega à entrada dos fundos da fazenda de Alice. VEMOS que há duas casas (separadas entre si por uma distância de cerca de duzentos metros) e um curral vazio. A camionete passa pela casa menor (todas as janelas fechadas) e segue na direção da casa maior. DAVE observa que há várias placas em volta da casa menor, todas iguais em tamanho e conteúdo. PLACAS: ACESSO PROIBIDO Dois cachorros enormes, de aparência hostil, estão presos por coleiras ligadas a argolas que permitem a movimentação deles em volta da casa, com espaço suficiente para atacar quem se aproximar e tentar entrar. PONTO DE VISTA DE DAVE, em movimento, na camionete: Os cães ladram de forma ameaçadora. Devagar, a camionete aproxima-se da casa maior, que é ampla, confortável e arejada, com todas as janelas abertas. Um homem muito alto, negro, está plantado diante da casa, aparentemente esperando DAVE e Laura. A camionete estaciona e os dois descem. O homem parece amigável, sorridente. É TONHO, empregado de Alice. 77 LAURA Bom dia. TONHO Bom dia, senhora. Meu nome é TONHO. A doutora disse que vocês iam chegar. DAVE observa o ambiente, curioso. Ninguém à vista. TONHO Vocês não têm malas? LAURA Não, Tonho. Vamos ficar pouco tempo. TONHO Já preparei os quartos de vocês. A cozinheira vai fazer o almoço. Se quiserem lanchar é só falar com ela. Fiquem à vontade. Vou esperar a doutora na outra casa. LAURA Obrigado. Tonho afasta-se com rapidez pouco usual para um homem tão grande. LAURA Ele disse ‘os’ quartos, reparou? DAVE Eu quero ficar no seu quarto, alteza. Posso? LAURA Mesmo sem haxixe? DAVE Sua cama é melhor do que haxixe. LAURA Ai de você se mudar de ideia, plebeu. DAVE (distraído) Não sei de quem tenho mais medo. O sujeito quer parecer amigável, mas prefiro a companhia dos cães. LAURA Impressão sua, plebeu. É só um caseiro grandalhão. Vamos entrar? Estou morrendo de fome. 78 DAVE Prefiro um banho, mas umas fatias daquele seu bolo seriam bem-vindas. Os dois entram. VOLTAMOS À ESTRADA DE ACESSO À FAZENDA. O furgão avança pela entrada da fazenda, seguido pelo carro de Alice, um Jeep Cherokee. Tonho aproxima-se dos cães e faz carinho neles, acalmando-os. Depois, abre o portão de acesso à garagem, entra e acende a luz. Os dois carros aproximam-se e entram na garagem; Tonho sai e tranca o portão com um cadeado enorme. INT. GARAGEM DA CASA/FAZENDA DE ALICE – DIA. Tourinho e Mattos descem do furgão e abrem a porta traseira, retirando o conde (de olhos vendados), que está amarrado e amordaçado e levando-o para dentro da casa. Alice também sai do carro e entra rapidamente pela porta à esquerda. INT. QUARTO DA CASA/FAZENDA DE ALICE – DIA. O conde é colocado numa cama, deitado com as costas para cima, em cima das mãos, que continuam atadas. Tourinho tira a calça dele e sai do quarto, junto com Mattos, depois de remover a venda e a mordaça. O conde respira fundo. CONDE Eu já sei que é você, doutora Alice. Só não sei o que você pretende com essa loucura. Alice está na porta, longe do alcance da visão do conde. CONDE Seu perfume traiu você, doutora. Da próxima vez seja mais cuidadosa. ALICE Esteja certo de que vou seguir seu conselho. CONDE 79 A essa altura metade do Rio de Janeiro está atrás de mim, doutora. ALICE É provável. Mas isso não me preocupa nem um pouco. CONDE O que significa essa palhaçada? Ele vê Tonho entrar no quarto e começar a despir-se. Tourinho traz uma câmera apoiada num tripé e faz um enquadramento, voltando a CAM para o conde. Mattos faz a mesma coisa com outro tripé, enquadrando o conde de outro ângulo. Os dois ligam as câmeras e saem. ALICE Você vai saber agora o virgindade, senhor conde. que significa perder a CONDE Como assim? ALICE Tonho vai comer seu aristocrático rabo, senhor conde. CONDE (desesperado) Que loucura essa, doutora? O que está pensando em fazer? ALICE Eu vou exercitar meus dons começa uma nova carreira, programa. de cineasta. E você querido. Garoto de Tonho já está nu. Masturba-se, cuspindo na mão ocupada. ALICE Aproxime-se dele, Tonho. Parece que ele quer dar uma olhada em seu equipamento. Tonho chega perto do rosto de Conde, que se assusta com o tamanho do pênis de Tonho. CONDE Que loucura é essa? ALICE 80 Você tomou o Viagra, decepcionado aqui. Tonho? Não quero ninguém TONHO Não precisa, doutora. O conde está chocado, sem saber o que falar. CONDE Socorro! Socorro! Alice confere os enquadramentos das câmeras. ALICE Não mexa ele de lugar, Tonho. Vamos começar a festa. PONTO DE VISTA de Alice na câmera: o rosto do conde (transformado numa máscara de ódio) é enquadrado em PLANO APROXIMADO. CONDE Você não faz ideia do que vou fazer com você depois, doutora. Nem você, crioulo. Vamos, aproveitem. Depois vai ser a minha vez de rir. VEMOS, no PONTO DE VISTA da câmera de Alice, em CLOSE-UP, que o conde foi penetrado. O rosto dele revela a dor que está sentindo. Mas não grita: morde os lábios e o sangue escorre. ALICE Vamos ver. Vou colocar essas imagens na Internet, conde. A menos que você pare de comprar meio mundo e aceite responder pelo assassinato daquela menina. CONDE (contendo a dor, mas mostrando um tipo de alívio) Então é isso. É aquela menina. ALICE O que mais poderia ser? Você matou aquela menina sem dar a ela nenhuma chance de defesa. CONDE Pois pode colocar na Internet. Você incriminada por isso também, sua piranha. vai ser ALICE Vamos ver se você continuar tão valente depois que começar a gozar. 81 CONDE Nada nesse mundo vai me tirar o prazer da vingança, sua puta ordinária. Nada! ALICE Vou editar o material e todo o Rio de Janeiro vai ver você gozando. Ninguém vai acreditar em estupro. INT. QUARTO DE LAURA E DAVE/FAZENDA DE ALICE – DIA. DAVE está terminando de fazer a barba: seu rosto inteiramente limpo, mais jovial. ficou Laura está tomando banho. INT. SALA DE RUBENS/ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA – DIA. Rubens está sentado ao lado de um rapaz jovem. RUBENS Tem certeza? RAPAZ Absoluta. Esse tipo de criptografia é praticamente impossível de abrir. Pode desistir, doutor. É coisa de gente grande. RUBENS (sorrindo) Sabe que isso é uma ótima notícia? Ganhei meu dia. Obrigado, pode ir. Rubens pega o telefone e tecla um número. RUBENS Fernando? Sou eu. Pode ligar. Não. Mande um SMS para avisar. Isso. Para a caixa postal dela, a pessoal. Rápido, homem! Não há tempo a perder. INT. QUARTO DE LAURA E DAVE/FAZENDA DE ALICE – DIA. Laura sai do banheiro enrolada numa toalha, com o celular na mão. Parece assustada. Nem repara que DAVE fez a barba. CORTA PARA VEMOS a mãe de Laura, Bernadete, numa imagem gravada qualidade técnica. Está machucada, cheia de hematomas. BERNADETE (chorando) sem 82 Eles me bateram muito, minha filha. Vão me matar. Não fale nada contra seu pai, minha filha. Por favor. Minha vida está em suas mãos. VOLTAMOS AO QUARTO DE DAVE e LAURA. VEMOS que DAVE viu na tela do celular o depoimento da mãe de Laura. Abatida, Laura sentou-se na cama. DAVE, carinhoso, a enlaçou com as mãos, num abraço protetor. LAURA Dessa vez o senhor conde se superou. DAVE Seu pai seria capaz de algo tão horrível? LAURA Aquele filho da puta faz qualquer coisa. Ele não tem consciência. DAVE O que você vai fazer? LAURA Não sei. Não sei. (começa a chorar) O que você acha? DAVE Não há o que pensar. A vida de sua mãe está em suas mãos. LAURA Eu já disse a Alice que vi o material que Mike mandou. DAVE Diga a verdade. Ela vai compreender. LAURA Não vai mesmo. (só então repara que DAVE está sem barba) Ei! Cadê a sua barba? DAVE Achei que seria conveniente. Não gostou, alteza? LAURA Não seja ingênuo, plebeu. diferença. Mas eu gostei. lindo. Não vai fazer nenhuma Você ficou ainda mais 83 Laura dá um beijo nele. Sem perceber, o beijo torna-se cada vez mais sensual. CLOSE-UP das mãos de Laura, apalpando a região genital de DAVE. DAVE A cobra continua em repouso, alteza. E isso não vai mudar. Nem hoje nem nunca. LAURA Você não sentiu prazer? DAVE Claro. Mas não como você esperava. Eu sinto muito. Não queria que fosse assim. LAURA Sabe de uma coisa, plebeu? Você está enganado. DAVE Você não está chateada comigo? LAURA Nem um pouco. Apaixonada, sim. Chateada, não. DAVE Apaixonada? LAURA Irremediavelmente apaixonada, eu diria. DAVE Tem certeza? Eu não vou mudar. Não nisso (aponta seu pênis). LAURA É isso que faz você tão especial para mim, plebeu. Você não se importa por que sou uma prostituta? DAVE Você não é uma prostituta. É uma ativista política. É diferente. Laura dá uma risada. LAURA Você realmente não existe. Posso continuar chamando você de plebeu? DAVE 84 Pelo resto da vida se depender de mim. LAURA (surpresa) O que você quer dizer com isso? Eu não sei embaraçado. DAVE como dizer. Eu nunca fiquei disse que tão LAURA Você quer dizer que me ama? Não exagere, apaixonada. DAVE alteza. LAURA Quer dizer que você Reciprocidade? Você é só a favor da estava Lei da DAVE 100% favorável. LAURA E se eu falar que amo você além de estar apaixonada? DAVE Eu exijo uma declaração formal. Os dois estão com os rostos muito próximos, envolvidos por muito carinho. Alice entra no quarto repentinamente. ALICE Que gracinha dos dois pombinhos. Muito meigo. Eles se afastam um do outro, surpresos com a entrada dela. LAURA Que invasão é essa? DAVE O pittbull japonês! ALICE Em carne e osso, bonitão. Mais em carne do que em osso (mostra a si mesmo com as mãos). Gostou? Laura fica visivelmente incomodada com os olhares de Alice para DAVE e dele para a promotora: DAVE está admirado com a beleza dela. 85 LAURA Você está sendo inoportuna e invasiva. Espere eu me trocar que já vamos conversar. ALICE Quem é o bonitão? LAURA Não é de sua conta. ALICE Talvez seja. Segure seu cãozinho por que eu estou no cio, doutora. DAVE Impressionante. Laura dá alguns passos, pega um travesseiro na cama e abre a porta, apontando para Alice. LAURA Saia daqui! Já! Alice sai rindo, olhando de forma provocativa para DAVE. Laura joga o travesseiro em DAVE. LAURA Deixe-me ver! Vamos, deixe-me ver! DAVE O quê? O que houve? LAURA Se essa cobra estiver em posição de sentido pode ir se despedindo dela. Laura caminha até ele o coloca a mão na área genital dele, apalpando. LAURA É. Parece que ela continua dormindo. Laura está aliviada. DAVE começa a rir. DAVE Você ficou com ciúmes do pittbull? LAURA Deixe de ser bobo. Eu me garanto! 86 Nunca vivi emocionante. DAVE uma cena de ciúmes, alteza. É DAVE aproxima-se para abraçá-la. Ela rejeita o carinho: está irritada. LAURA Vamos parar com essa estória de alteza. DAVE a surpreende: dá um salto e a abraça com força. Fitam-se em falar nada e começam a rir. Beijam-se com carinho depois. LAURA Meu plebeu. DAVE Minha rainha. INT. SOBRADO/CANTAGALO/RIO – NOITE. Rubens e o delegado Marcílio, com colete da polícia carioca, estão sentados à mesa. RUBENS Tem certeza? MARCÍLIO Foi sequestro. Os seguranças não viram nada. Tiraram o conde do prédio num furgão. Chequei as câmeras. RUBENS Já verificou a placa? MARCÍLIO Já. É um sargento do exército aposentado. Um tal Francisco Tourinho. RUBENS Mande trazerem ele para cá. Vou ficar aqui esperando. Vê se não demora. (pausa) Nenhuma pista do filho do jornalista? MARCÍLIO Nenhuma. Mas ele ainda está no Brasil. RUBENS Como é que você sabe? MARCÍLIO 87 Chequei todos os aeroportos. Tem gente nossa na Polícia Federal. O que o senhor quer que a gente faça? RUBENS Minha sócia tinha um caso com Mike HOOPER. Ela trocou o pai pelo filho bonitão e os dois deram sumiço no jornalista. Pode espalhar. MARCÍLIO Podemos colocar a doutora como sócia do tráfico. Matamos dois coelhos de uma só cajadada. RUBENS Deixe de ser burro. Eu sou advogado deles. Vai sobrar pra mim. O desaparecimento do conde é outra estória. Nada a ver uma coisa com a outra. MARCÍLIO E o conde? O que a gente vai fazer? RUBENS Deixe isso comigo, delegado. Eu resolvo. Esqueça o conde. INT. SALA/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA. Alice, Laura e DAVE estão tomando café da manhã. Alice parece irritada. DAVE ataca as quitandas com enorme apetite: dá a impressão de nunca ter comido tanta coisa gostosa. ALICE Seja mais específica, doutora. Não entendi. LAURA Minha mãe foi sequestrada, Alice. Vão matar minha mãe se eu contar a você o que sei. ALICE Você não precisa contar. Abra a porra do arquivo para mim. LAURA É a mesma coisa. Além do mais, eu não sei abrir aquele arquivo. Recebi a mesma mensagem que você. Arrume um técnico de informática. ALICE 88 É sua última palavra? LAURA É a vida de minha mãe, Alice. Você não consegue entender isso? ALICE Tenho certa dificuldade, querida. Nunca tive mãe. Fui criada num orfanato. Alice levanta-se e chega até a janela. ALICE Tonho! TONHO (em OFF) Estou aqui, doutora! ALICE Venha até aqui. Rápido. LAURA (a DAVE) Você gostou mesmo, hein? DAVE (de boca cheia) Absolutamente deliciosas. magistral. Jamais comi coisas tão Tonho entra na sala. ALICE Pode levá-lo (aponta DAVE), Tonho. Tonho aproxima-se e levanta DAVE como se ele criança, imobilizando-o com seus braços enormes. fosse uma Com a boca cheia, DAVE não consegue falar nada; arregala os olhos, surpreendido. LAURA O que é isso, sua maluca?! Pirou de vez, é? ALICE Trate de ficar mais colaborativa, doutora. Ou não vai ver mais seu príncipe encantado inteiro. LAURA Isso não vai ficar assim, sua desgraçada! 89 Ela levanta-se e pula sobre Alice, que a imobiliza com um golpe certeiro de karatê. Laura desmaia. Tonho fica sem saber o que fazer. ALICE Leve o moço para o quarto azul. Leve a doutora para lá também. Tonho dirige-se para a porta, arrastando DAVE. ALICE Coloque a água pra ferver. ALICE Está certo, doutora. Tonho sai. Alice olha para Laura, fica pensativa. INT. SOBRADO/CANTAGALO/RIO – NOITE. Fernando entra na sala empurrando Tourinho. Tourinho tem sangue escorrendo pela boca e alguns hematomas; está algemado. Rubens está cochilando num pequeno sofá. FERNANDO O delegado mandou essa encomenda doutor. Fico aqui ou saio? para o senhor, RUBENS Pode sair. (a Tourinho) Aceita um café? Seja bem-vindo, sargento. TOURINHO Não. RUBENS No exército não ensinaram normas de boa educação? TOURINHO Desculpe. Obrigado. O que o senhor quer de mim? RUBENS Quem quer é você, meu caro. Um milhão limpinho em sua mão (aponta uma pequena sacola) ou uma bala de 38 na cabeça. O que você quer? TOURINHO Pra fazer o quê? RUBENS 90 (mostra um bloco de anotações que está numa mesinha) Não precisa falar. Dedurar os outros é muito feio. Você escreve aqui e pode dizer para seu pessoal, sem mentir, que não falou nada. Tourinho parece ter dúvida. RUBENS Fernando! Fernando entra rápido. FERNANDO Pois não. RUBENS Seu 38. Por favor. Tourinho não fala; observa apenas. FERNANDO (estende o revólver para ele) Está na mão. RUBENS A chave da algema. (pega a chave estendida por Fernando) Pode sair. Fernando sai. RUBENS Não vou esperar muito tempo. TOURINHO O senhor vai me soltar? RUBENS Para escrever? Rubens oferece a ele uma caneta que tira do bolso. TOURINHO Vai ficar mesmo entre nós? RUBENS Pode contar com isso, sargento. Tourinho pega a caneta e escreve. Entrega o bloco de anotações a Rubens, que lê o escrito e entrega a Tourinho a sacola. 91 Tourinho abre a sacola e vê que está cheia de dinheiro. Esboça um sorriso. RUBENS Fernando! (Fernando aparece sargento ir embora. de novo) Pode deixar o Tourinho sai. Rubens devolve a Fernando o revólver. RUBENS (sorrindo) Junte a turma. O dia vai ser animado, garoto. Muito animado. INT. QUARTO AZUL/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA. O quarto é pequeno, todo pintado de azul. Laura, consciente, está amarrada inteiramente imobilizada. numa cadeira de madeira, Está com uma corda atravessada na boca: não pode falar. Um fogão pequeno fica próximo de DAVE: uma panela está debaixo das chamas de uma das trempes do fogão. DAVE está atado a uma barra de ferro presa ao teto, pendurado por uma corrente de ferro ligada a uma roldana, que permite que ele seja puxado para cima ou abaixado. O corpo dele está inteiramente estendido: o teto é bem alto. Também está impedido de falar: uma corda prende a boca dele. Perto dos pés dele, despido dos sapatos, uma bacia vazia, a 10 cm da altura dos pés. Tonho está perto da roldana, esperando ordens de Alice, que acaba de entrar. ALICE A água já está boa? TONHO Quase, doutora. ALICE (a Laura) Está vendo aquela bacia? Laura tenta falar e não consegue. 92 Emite sons que demonstram que está com raiva, muita raiva. DAVE espicha os olhos, tentando ver a bacia. ALICE Na verdade, aquilo não é uma bacia. É um estimulante. Alice vai até a panela e constata que a água já está fervendo. Ela faz sinal para Tonho, que gira a roldana e levanta DAVE cerca de 1cm. CLOSE-UP da panela: o vapor da água já está subindo. Tonho vai até o fogão, apaga a chama da trempe e carrega a panela até a bacia, despejando, devagar, a água fervente. DAVE instintivamente levanta os pés. Tonho volta à roldana e abaixa o corpo de DAVE. CLOSE-UP dos pés de DAVE, que tem que levantá-los para não ter contato com a água fervente. OUVIMOS gemidos e murmúrios de DAVE e de LAURA, que estão desesperados com o que está acontecendo. EXT. CASA DA FAZENDA/RIO DE JANEIRO – DIA. Os cães que cercam a casa estão vigilantes, farejando o ar, rosnando com ferocidade. INT. QUARTO AZUL/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA. DAVE faz um esforço enorme para não queimar os pés na água fervente da bacia. Laura olha para libertar-se. a cena, desesperada; tenta inutilmente ALICE Ele não vai aguentar muito tempo, doutora. Não vai mesmo. De fato, DAVE não aguenta mais manter os pés acima da água e um dos pés encosta na superfície fumegante, provocando uma dor terrível. Ele geme de dor, tenta gritar e não consegue. ALICE 93 Estou sentindo um cheiro estranho. (Cheira o ar) O que será? Carne cozida ou chulé? Alice percebe que Laura emite sinais de que deseja falar. Faz um sinal a Tonho, que tira a corda da boca dela. LAURA Eu vou falar! Eu vou falar! Tire ele daí! Pelo amor de Deus, tire ele daí! DAVE faz sinal negativo: fica claro que ele aguentar a dor e que não deseja que Laura ceda. se dispõe a girando a Laura fica sem saber o que fazer. ALICE Romeu é corajoso. Ela faz sinal e Tonho abaixa o corpo de roldana, mergulhando os pés dele na água. DAVE, Laura grita. DAVE geme e esperneia, levantando os pés e tirando-os da água fervente, sem muito sucesso. A dor dele é terrível e só lhe resta gemer. LAURA Não! Não! Eu falo, eu falo! Alice faz sinal a afastando-o da água. Tonho, que levanta o corpo de DAVE, Nesse momento, OUVIMOS ganidos desesperados de cães. Alice olha para Tonho, que sai rápido para investigar o que está acontecendo lá fora. INT. QUARTO DA CASA/FAZENDA DE ALICE – DIA. O conde está deitado na cama, deitado de bruços. Escuta um ruído e vê Fernando entrando no quarto. O bandido procura evitar fazer qualquer ruído. PLANO APROXIMADO socorro. do conde, que se anima com a chegada de Fernando caminha até ele e dispara três tiros no nas costas do conde, que morre na hora. 94 INT. QUARTO AZUL/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA. Alice, apreensiva, está próxima à janela, que tentando acompanhar o que está acontecendo lá disparos. é lacrada, fora. Mais LAURA Solte DAVE, sua maluca! Tire ele de lá. ALICE Acalme-se, doutora. E fale logo. Senão ele volta para a bacia. LAURA Mike descobriu que meu chefes do tráfico. sócio é quem comanda os ALICE Não acredito. Ele é um bobão. LAURA Meu pai é que manda. Meu pai, Alice. ALICE Você tem provas? Eu preciso de provas! LAURA Você ficou maluca? Não tem ideia do que está acontecendo? Meu pai descobriu tudo. É gente dele que está lá fora! Só pode ser! ALICE Será? LAURA Tire-me daqui, você vai precisar de ajuda! OUVIMOS mais tiros e o grito agonizante de Tonho. Alice solta Laura, que afasta a bacia dos pés de DAVE e vai até a roldana, abaixando-o até que ele possa firmar-se no chão. Com dificuldade ele se firma, pois tem queimaduras nos pés. Laura puxa uma cadeira para ele, colocando outra para que ele descanse as pernas, para evitar que toquem o chão. VEMOS Alice digitando alguma coisa no celular dela. 95 RUBENS (em OFF) Laura! Alice! Estão me ouvindo? Uma rajada de metralhadora é disparada, atingindo a janela lacrada e fazendo vários furos. Alice e Laura atiram-se ao chão e DAVE também. RUBENS (em OFF, gritando) O conde está morto! O crioulo também! Vocês estão cercadas! LAURA É mentira! Meu pai manda nele! Não acredite. Cuidadosamente, Alice aproxima-se da janela e pelos furos de balas vê que Rubens fala a verdade: os corpos de Conde e Tonho estão estendidos no chão, ensanguentados. ALICE É verdade. Matarem eles mesmo! LAURA O meu pai também? ALICE Mataram o conde. Eu vi o corpo dele, doutora. RUBENS (em OFF, gritando) Sua mãe está viva, continua viva. Laura. Venha para cá e ela LAURA Ela está com você? RUBENS (em OFF, gritando) Não. Mas ela está viva. ALICE Não acredite nele. Vamos resistir. Chamei a polícia federal. Eles não demoram! LAURA Onde está seu laptop? Está na outra casa? ALICE Está. Mas eu tenho outro aqui. LAURA 96 Você tem Internet? ALICE Claro! Por quê? LAURA Vá buscar! Rápido! ALICE Um minuto. Rubens! Está me ouvindo? RUBENS (em OFF, gritando) Vamos negociar! Você não precisa morrer. Mande Laura e o rapaz e nos acertamos. Você vai ficar milionária, Alice. LAURA Seu filho da puta! Eu acabo com você, sua bicha filho da puta! RUBENS (em OFF, gritando) Um minuto, Alice! Nem um segundo a mais! ALICE Vocês estão sendo filmados! Há câmeras de segurança espalhadas em volta da casa. RUBENS (em OFF, gritando) Eu sei! É por isso que você ainda está viva. Alice, sempre abaixada, pega a pasta dela, que estava sobre o pequeno sofá no fundo do quarto. De lá, retira um laptop. LAURA Dê a ele! Entregue o laptop a DAVE, Alice! Ele vai abrir o arquivo! DAVE levanta-se, vai até Laura (andando com dificuldade) e pega o laptop, sentando-se no sofá. Ele abre a tela e liga a máquina. DAVE Conversem com ele. Distraia o sujeito, alteza! ALICE Alteza? 97 LAURA (gritando) Rubens! Não faça nenhuma loucura! Mike mandou o arquivo para o jornal! Eles vão abrir o arquivo, Rubens! RUBENS (em OFF, gritando) Não vão abrir porra nenhuma! Sabe por quê? Por que o idiota do seu namorado não mandou nada para o jornal! LAURA (gritando) Mandou sim! Ele me disse que mandou! DAVE faz sinal: está quase terminando. RUBENS (em OFF, gritando) Mentirosa! É o fim da linha pra você, Laura! ALICE (gritando) Vá com calma, Rubens! Nós vamos entrar num acordo! RUBENS (em OFF, gritando) Mande Laura sair! Minha paciência acabou! DAVE Pronto! Nesse momento vários tiros são disparados, varam a janela lacrada mais uma vez e um deles acerta a cabeça de DAVE, que cai como morto. O corpo dele vai ao chão, como um saco de batatas. É visível o buraco aberto pela bala na cabeça de DAVE. Escorre um filete de sangue. Laura corre até o corpo estendido no chão. Alice corre para o computador e faz alguns comandos. LAURA Não! Nãaaaaaoooooo! ALICE 98 Acabei de abrir o arquivo, Rubens! Mandei para a Polícia Federal e para os jornais de São Paulo. O fim da linha é para você, seu criminoso filho da puta! RUBENS (em OFF, gritando) Mentira! Mentira! Laura chora desesperada junto ao corpo de DAVE. DAVE Meu amor, meu amor. O que fizeram com você, meu amor?! ALICE Dê uma espiada em meu perfil no TWITTER! Vá! Olhe! EXT. CASA/FAZENDA DE ALICE/RIO DE JANEIRO – DIA. Rubens está com o celular na mão, teclando. Olha para a tela e vê sua imagem no dia em que foi filmado na conversa com o conde. CLOSE-UP da tela do celular de Rubens, no PONTO DE VISTA dele. OUVIMOS um tiro. Rubens explodiu seu cérebro com um único tiro. Fernando, perto dele, viu tudo. FERNANDO Vamos embora, gente! Acabou a festa. Os homens correm na direção dos carros, entram e saem rápido. OUVIMOS sirenes de carros de polícia. EXT. PISTA/AEROPORTO PEARSON/TORONTO – DIA. Rodas enormes de avião atritam-se no piso molhado da pista de pouso, provocando um ruído colossal e irritante. LEGENDA TORONTO VEMOS o avião, que é um cargueiro, com o nome do país de origem (Brasil) estampado do lado de fora: é uma transportadora do Rio de Janeiro. 99 O avião taxia até o hangar da transportadora. INT. HANGAR/AEROPORTO PEARSON/TORONTO – MANHÃ DE CHUVA. O avião entra no hangar mais um pouco e para, ficando imóvel. A equipe que descarrega o avião aproxima-se e dois homens caminham até a porta de entrada na aeronave. A porta traseira do cargueiro se abre lentamente. O tempo está fechado. Chuva fina, intermitente. Faz frio. INT. CARGUEIRO/AEROPORTO – DIA. VEMOS um CAIXÃO entre outros itens que estão no cargueiro do avião. Usando equipamento adequado, dois homens removem o caixão do lugar, levando-o até a plataforma móvel que funciona como elevador. A plataforma começa a descer com o ataúde e, junto dele, os empregados. DAVE (em OFF) Esse negócio de usar títulos acadêmicos me enche mortalmente o saco. (imita a voz do Diretor) Doutor KÖNIGSBERG. Ainda bem que isso acabou. Uma parte do caixão ficou para fora. DAVE (em OFF) Cuidado aí, pessoal! Um dos empregados coloca o caixão na posição normal. DAVE (em OFF) Poucas coisas no mundo são mais detestáveis do que fazer uma viagem muito longa enfiado dentro de um caixão. E não é pela falta de ar, porque você já está morto. Também não é a falta de conforto. A merda é perceber que você mudou de categoria. Virou material orgânico em decomposição. Não há mais energia vital em nenhuma molécula de seu corpo: você é um cadáver e não há nada que se possa fazer quanto a isso. INT. HANGAR/AEROPORTO PEARSON/TORONTO – DIA. 100 Os dois homens pegam o ataúde na plataforma e o conduzem até um veículo funerário. O ataúde está coberto por um pano que reproduz um céu sem nuvens, cheio de estrelas. O caixão é iluminado pela luz dos FLASHES das muitas máquinas fotográficas de jornalistas que foram ao aeroporto fotografálo. DAVE (em OFF) Isso é muito bom. Espera. É bom demais. Ainda estou na fase de encantamento, mas já deu pra perceber que é bem divertido ser uma celebridade. VEMOS mais de uma dezena fotografando o caixão. de fotógrafos PLANO APROXIMADO de uma flâmula Toronto, presa sobre o caixão. do e TRINITY jornalistas, COLLEGE, de DAVE (em OFF) Que mau gosto, meu Deus. Isso só pode ser coisa de Archibald. Sujeitinho detestável. O ataúde é colocado dentro da limusine da funerária. INT. HANGAR DO CARGUEIRO/TORONTO – DIA. Os homens levam o caixão até uma limusine fúnebre, colocando-o dentro do veículo. INT. SALA DE TRABALHO DE DAVE/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. Uma sala espaçosa, com uma enorme (da altura da cintura de DAVE ao teto) lousa verde escura, onde estão anotadas várias equações matemáticas, com integrais, derivadas e símbolos incompreensíveis para leigos. De frente à lousa, uma escada portátil, que ele usa para escrever na parte superior da lousa. Há vários dardos que foram arremessados por um atirador de excelente pontaria; todos os arremessos na zona central do alvo, formada por círculos concêntricos, impressos sobre a fotografia do diretor da faculdade. DAVE (em OFF) 101 Sempre pensei que depois de bater as botas ia ficar livre dos problemas de uma vez só, num passe de mágica. Infelizmente não é bem assim. Sabe aquela encrenca que atazanava você nos bons tempos em que ainda não era um defunto? Ela gruda em você como um carrapato necrófilo. EXT. RUAS DE TORONTO – DIA. A limusine avança pelas ruas de Toronto, num dia chuvoso. PLANOS APROXIMADOS das pessoas, no dia-a-dia da cidade. Gente indo e vindo: o espetáculo da batalha diária pela sobrevivência. CAM no ponto de vista de DAVE, que passeia de patins na pista de gelo da Nathan Phillip Square. CAM no ponto de vista de DAVE, num passeio de bicicleta na ilha de Toronto. CAM no ponto de vista de DAVE, que passeia de patins de rodas em frente à DUNDAS Square. DAVE (em OFF) É claro que você pode fazer de conta que o problema não é seu. Cá entre nós, isso é uma tentação até para um defunto. Mas você sabe: não existe efeito sem causa. O carrapato necrófilo não vai te deixar em paz. Não mesmo, por mais que você arrume distrações pra matar a saudade dos bons tempos. EXT. AGÊNCIA FUNERÁRIA/TORONTO – DIA. O veículo funerário entra na área de serviços de funerária. Empregados descem o caixão e entram com ele. uma INT. FUNERÁRIA/TORONTO – DIA. Os empregados colocam o caixão sobre uma esteira, que começa a mover-se, conduzindo o ataúde. INT. FORNO CREMATÓRIO/FUNERÁRIA/TORONO – DIA. O ataúde move-se na esteira, indo na direção e no sentido de um forno crematório. DAVE (em OFF) 102 Mas não pense que do lado de cá não há emoções fortes. A velha adrenalina pode dar as caras e aí a coisa pode ficar bem desagradável. VEMOS (no ponto de vista do caixão) que o caixão aproxima-se lentamente do forno, que está cada vez mais perto. O caixão está QUASE entrando no forno. PLANO APROXIMADO das chamas. DAVE (em OFF) Forno outra vez? Hum-hum (som de uma negativa). Muito clichê. A esteira para repentinamente e o caixão também. DAVE (em OFF) Melhor assim. Nunca é tarde para ser original. A esteira volta a mover-se. CAM (no ponto de vista do caixão) aproximando-se das CHAMAS, cada vez mais perto. DAVE (em OFF) (tosse) Não está mais aqui quem falou. CAM em movimento, DENTRO do forno. As CHAMAS devoram o caixão. Na trilha, ruído de madeira queimando. CORTA PARA Um empregado aproxima-se da esteira e usa uma espátula e uma pequena pá para juntar as cinzas do que um dia foi um cadáver dentro de um caixão. O conteúdo da pá é despejado num jarro e devidamente tampado. VEMOS, em CLOSE-UP, uma placa metálica com o nome da pessoa que fora um dia parte daquela cinza toda: DAVE KÖNIGSBERG HOOPER. DAVE (em OFF) HOOPER? Agora é assim, é? Mal você vira pó e já colocam o nome de seu pai biológico na sua jarra? Sem consultar você? Ninguém aqui respeita a última vontade de um defunto? Quantas vezes eu vou ter que repetir? Meu nome é KÖNIGSBERG. CLOSE-UP da placa com o nome de DAVE. 103 Vestido inteiramente de azul claro, num terno bem cortado, um homem de aproximados 60 anos aparece repentinamente no recinto, carregando outro vaso, que coloca ao vaso em que estão as cinzas do corpo de DAVE. CLOSE-UP HOOPER. da placa de identificação do novo vaso: MICHAEL DAVE está contemplativo, absorto em pensamentos, quando repara no vaso que foi colocado ao do vaso ‘dele’. CLOSE-UP: MICHAEL HOOPER (placa). OUVIMOS UM RUÍDO ENSURDECEDOR, MUITO PARECIDO COM O DE UM TROVÃO. Um raio corta os céus de Toronto. CORTA PARA Como num passe de mágica, os dois materializam-se na ilha de Toronto. PONTO DE VISTA de DAVE, que vê o homem de costas. DAVE Ei você?! O que está fazendo? O homem vira-se para DAVE. É George Harrison, o beatle, tal como estava nos últimos shows. HARRISON Cumprindo a minha função. DAVE George? É você mesmo, George? HARRISON Como vai você, meu velho? DAVE Devo estar no céu, George. Estou absolutamente honrado em conhecê-lo. Sempre fui seu fã. HARRISON (estendendo a mão) Bons tempos aquele, meu velho. DAVE 104 Nem sei o que falar, George. É emocionante conhecer você. demais Só então DAVE fica repara na mudança (saíram da funerária) e mostra-se surpreso com a mudança de local. Mas não muito. Olha em volta, reconhecendo o local onde costumava andar de bicicleta. George o conduz, pegando-o pelo braço. Começam a caminhar. DAVE As coisas aqui são rápidas, hein? HARRISON Não mais do que você, meu velho. Sua mente é afinada como minha guitarra preferida. DAVE Não é mais um beatle, George? HARRISON Não mais, há muito tempo. Cada um tem a função que escolhe. Tanto na Toronto que você deixou como nessa onde estamos. DAVE Não me parecem muito diferentes. HARRISON São muito semelhantes mesmo. DAVE Por que deixou a música, George? HARRISON Cumpri meu ciclo e achei que era hora de mudar de função. DAVE Todos mudam por aqui? HARRISON Não é regra. Cada um escolhe sua função. DAVE Eu quero continuar na cientista e há coisas fazer. HARRISON minha área. Gosto de ser que eu quero terminar de 105 No mesmo ponto em que estava, quando saiu do Rio de Janeiro? DAVE Não seria o caso de dizer “quando você morreu”? HARRISON Se você prefere. DAVE Não mais, George. Sair é mais confortável do que morrer. Por que se trata disso, não? Saí de lá, entrei aqui. Entrar, sair. HARRISON Eu não diria melhor. Você é bem rápido mesmo, meu caro. DAVE Faz algum sentido aquela inferno? (pausa) Purgatório? conversa de céu, de HARRISON O que você acha? DAVE Lorota religiosa. Reencarnação? HARRISON Você se sente reencarnado? DAVE Nem um pouco. Para mim continua tudo igual. A não ser, claro, o fato de que eu levei um tiro na cabeça. HARRISON Levou mesmo, DAVE. Foi horrível. DAVE Mas isso foi no Rio de Janeiro. E agora há outro Rio de Janeiro. HARRISON Sem dúvida. Mas você escolheu viver aqui em Toronto. DAVE Literalmente. Sinto meu coração batendo normalmente, como se estivesse vivo. HARRISON 106 Bem vivo e com a função que escolheu. Sua sala no TRINITY COLLEGE continua no mesmo lugar, tudo igual. Mas sua assistente agora é outra. DAVE Impressionante. (pausa) E você, George? Qual é a sua nova função? HARRISON Recepcionar você. Você e o titular daquelas cinzas que coloquei ao lado da jarra com seu nome. Meu pai assessoria? DAVE biológico também está recebendo sua HARRISON Você já respondeu a essa pergunta, meu caro. DAVE Você é bem detalhista, George. Entende tudo ao pé da letra. HARRISON Vá se acostumando, meu caro. Todos aqui são como eu. DAVE Aqui? Defina ‘aqui’ (ênfase na palavra), por favor, George. HARRISON Em Toronto. Em 2014. Tudo exatamente igual à Toronto que você conheceu, com uma única exceção. DAVE Todos seriam considerados ‘saídos’ na Toronto que eu conheci. Exatamente, nessa época. HARRISON DAVE. Todos escolheram vir para cá, DAVE Muito interessante. Quer dizer que ao morrer cada um escolhe para onde quer ir? E quando? HARRISON Exatamente. Para onde exemplo, vivo em 1980. DAVE e em que época. Eu, por 107 Muito interessante. E o que está fazendo aqui, em 2014? Escolheu Toronto e não Liverpool? HARRISON Moro em Liverpool. Estou aqui recepcionando você e Michael HOOPER. DAVE Mike também escolheu a Toronto de 2014? HARRISON Ele fez questão de escolher a mesma época que você. DAVE Por quê? HARRISON Isso você vai ter que perguntar a ele. Mas não é difícil imaginar. Não para você, que é tão perspicaz. DAVE Ele sente-se responsável estória toda, presumo. por mim. Você sabe a HARRISON Sei. Faz parte de meu trabalho, meu caro. Sim, ele sente-se responsável por você. DAVE Pois diga a ele que não se preocupe com isso. Eu estou bem em relação a isso. Estava mesmo chateado com ele. Mas já passou. HARRISON Passou mesmo, meu caro? Tem certeza? DAVE Eu não queria admitir, mas tinha muitas mágoas de Mike. Não achei correto ele me abandonar em Toronto quando eu tinha só sete anos. HARRISON Abandonar? Esse verbo sugere que ainda pode haver mágoa. DAVE E não é que você tem razão, George? Mas não há mesmo mais nenhuma mágoa. É que me acostumei a usar esse verbo. 108 HARRISON Mesmo que você não tenha mágoa, Michael tem muitas mágoas. DAVE De mim? HARRISON mesmo. Ele Não. Dele não se perdoa por ‘abandonado’ (ênfase no verbo) você tão jovem. ter DAVE Pois diga a ele que está sendo mais realista do que o próprio rei. Se eu, que sou a parte interessada, não tenho mágoas, por que ele haveria de ter? HARRISON Faz sentido. Mas ele não é tão racional como você, meu caro. Há sentimento envolvido, compreende? DAVE De que tipo de sentimento você fala? HARRISON De um tipo que você ainda não compreende. Mas tudo tem seu tempo e sua hora. Vou dar uma volta para conhecer melhor a Toronto de 2014. DAVE Espere aí, George. Faltou você explicar-me como é a logística. Como é que eu faço para dar um pulo na faculdade? Estou ansioso para trabalhar. HARRISON Tudo igual no que diz respeito à logística, meu caro. A única diferença é que você pode escolhe a época de destino, além do local. DAVE Posso ir à Toronto de 2000? HARRISON Na hora em que quiser. É só ir ao terminal rodoviário, ao terminal ferroviário ou ao metrô. DAVE Muito interessante. Essa Toronto é bem melhor do que a outra. HARRISON 109 Com certeza. Se as pessoas soubessem disso ninguém iria querer ficar lá, não acha? DAVE Provavelmente, George. OK, você está liberado de sua tarefa de anjo da guarda. HARRISON Anjo da guarda não é o correto, meu caro. Guia. Eu acho que guia é melhor. DAVE Como preferir, George. Recomendações a Mike. HARRISON Não prefere dá-las pessoalmente? DAVE Se encontrá-lo, vou dá-las, George. HARRISON Vou nessa, meu velho. DAVE Obrigado, George. HARRISON Não agradeça, meu velho. É minha obrigação. DAVE Estou com vontade de desobedecer você, George. HARRISON Gostou do bolo, hein, meu velho? DAVE Adorei. Por aqui também tem? HARRISON (sorrindo) Aqui em Toronto eu não sei. Mas em Liverpool com certeza tem. EXT. PRÉDIO DO TORONTO STAR/TORONTO – DIA. Mike está chegando ao edifício em que funciona o jornal. Caminha devagar, com um jornal dobrado debaixo do braço. EXT. AVENIDA HOSKIN/TRINITY COLLEGE - DIA. 110 DAVE está chegando ao prédio. É cumprimentado saudado por colegas com muito carinho. por alunos, INT. SALA DE TRABALHO DE DAVE/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. Uma sala espaçosa, com uma enorme (da altura da cintura de DAVE ao teto) lousa verde escura, onde estão anotadas várias equações matemáticas, com integrais, derivadas e símbolos incompreensíveis para leigos. De frente à lousa, uma escada portátil, que ele usa para escrever na parte superior da lousa. DAVE entra na sala, sobe na escada e completa uma equação que estava no alto da lousa verde. Desce da escada e fica observando a equação completa. DAVE (para si mesmo) Como é que eu não pensei nisso antes? É tão óbvio. MARIA Tudo aqui fica mais claro, professor. DAVE volta-se para o canto da sala onde ouviu a voz de MARIA, que é a personagem que foi assassinada pelo conde: linda aos 21 anos. DAVE É verdade. Você é minha aluna? MARIA Não, professor. Sou sua secretária. Ela estende a mão para ele. MARIA Maria. Ao seu dispor. DAVE Muito prazer, MARIA. Madeleine? Você foi minha aluna, como MARIA Não. Sou jornalista. Isso é um problema? DAVE Não sei. Talvez seja. Minhas assistentes sempre foram alunas minhas no mestrado ou no doutorado. MARIA 111 Há um motivo especial que me trouxe a esse cargo, professor. DAVE Mal posso esperar para saber qual. MARIA Quem me recomendou para trabalhar com você foi Mike HOOPER. INT. METRÔ/TORONTO – DIA. David O’HARA jornal. está sentado numa poltrona do metrô, lendo CLOSE-UP numa manchete do jornal, no ponto de vista de David: DAVE KÖNIGSBERG ENTRA EM TORONTO. INT. CORREDOR DO TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. DAVE e Maria caminham pelo corredor. DAVE Vamos fazer uma experiência, Maria. Se você conseguir superar sua falta de conhecimento em física será efetivada. OKAY? MARIA Nem sei como agradecer, professor. Prometo que vou empenhar-me e retribuir sua confiança. DAVE É a Mike que você deve o agradecimento, Maria. Eles chegam ao fim do corredor, diante da porta de acesso à sala de aula. DAVE Acompanhe toda a aula, Maria. Veja se consegue um lugar na primeira fila ou num lugar em que eu possa vê-la. MARIA Posso passar por aqui? DAVE Melhor não. Dê a volta, se não se importa. Vá lá. DAVE entra. INT. SALA DE AULA/TRINITY COLLEGE/TORONTO – DIA. 112 A sala é enorme e está inteiramente lotada. Ao verem DAVE entrar ele é aplaudido com entusiasmo. Ele fica surpreso e, sem arrogância, pede a interrupção das palmas, com gestos. DAVE Bom dia, crianças. Hoje vocês estão assanhados, hein? VEMOS que Maria conseguiu um lugar na plateia e faz sinal para DAVE. Ela está sentada ao lado de DAVID O’HARA. PLANO APROXIMADO de DAVE, surpreso ao ver O’HARA na plateia. A plateia finalmente atende ao pedido dele, depois de mais alguns instantes de palmas entusiásticas. DAVE Não quero ser nenhum desmancha-prazeres, mas vocês estão um tanto exagerados demais. Sem falsa modéstia, não mereço tanto entusiasmo. Um sujeito de presumidos oitenta anos entra na área em que DAVE está. É o diretor HOPKINS, do TRINITY COLLEGE. Ao lado dele, um sujeito vestido como na era vitoriana, um tipo sardento, muito nórdico. É Alfred NOBEL, inventor da dinamite, fundador da Fundação NOBEL. DAVE parece não entender a entrada dos dois. HOPKINS Caríssimo professor KÖNIGSBERG. Sou o diretor Hopkins. Desculpe entrar assim, sem ao menos ter me apresentado ao senhor, mas o senhor NOBEL fez questão de vir vê-lo pessoalmente. Chegou a pouco de Estocolmo. DAVE Não há problema, diretor Hopkins. Fez boa viagem, senhor Nobel? NOBEL 113 Excelente, doutor KÖNIGSBERG. Desculpe o incômodo, mas quis trazer seu prêmio pessoalmente. Nobel tira um cheque do bolso. DAVE Prêmio? A que prêmio o senhor se refere? NOBEL (estende o cheque para DAVE) Seu notável trabalho sobre a abordagem holística na física quântica abriu novos horizontes para a ciência moderna. Parabéns, doutor KÖNIGSBERG. DAVE fica em dúvida se pega ou não o cheque. A plateia aplaude entusiasticamente, gritando o nome dele: DAVE! DAVE! DAVE! DAVE! O diretor pede silêncio (com as mãos). DAVE Há aqui um mal entendido, senhor Nobel. Eu terminei agora a pouco a equação que estabelece a conformidade holística. NOBEL Não há nenhum mal entendido, doutor KÖNIGSBERG. HOPKINS DAVE chegou a pouco, senhor Nobel. Ele ainda desconhece algumas de nossas particularidades, apenas isso. NOBEL (a DAVE) Houve um grande avanço no processo de conhecimento, doutor KÖNIGSBERG. O tomou conhecimento de sua equação de conformidade holística imediatamente escrevê-la na lousa. transmissão do mundo inteiro nivelamento da após o senhor DAVE está absolutamente pasmo. DAVE Impressionante. Quer dizer que eu ganhei outro Nobel? NOBEL E outro milhão de dólares. Esse o senhor poderá gastar consigo mesmo, pois não há mais refugiados na Palestina há muitos anos. 114 A plateia volta aos aplausos e invade a área em que DAVE está. DAVE é cercado por cumprimentos e perde-se no meio de tanta gente. INT. QUARTO/CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE. Na mesa ao lado da cama, duas garrafas de champanhe e duas taças. Na cama, nus e abraçados, DAVE e Maria estão acordando. DAVE acorda primeiro e vê Maria abraçada a ele. Tenta desvencilhar-se do abraço, com delicadeza, mas acorda. Maria DAVE Desculpe. Não queria acordar você. MARIA Não tem problema. Quantas horas são? DAVE Não tenho a mínima ideia. Ela faz alongamento, como uma gata. DAVE contempla o belo corpo de Maria. DAVE Que noitada. MARIA Nem me fale. Nunca bebi tanto em minha vida. DAVE Foi maravilhoso. Você é uma mulher incrível. Os dois beijam-se com carinho. MARIA Devo estar com um gosto horrível na boca. DAVE Bobagem. Sua boca está deliciosa. Beijam-se de novo. MARIA Foi mesmo a sua primeira vez? DAVE 115 Foi. Mal posso acreditar que tive uma ereção. MARIA Uma? Você pode ter ganhado o Nobel, mas ainda não aprendeu a contar. Estou moída por dentro. DAVE Nunca fui tão feliz como agora. MARIA Adoro esse seu jeito espontâneo. Ela o beija mais uma vez. MARIA Vou ficar nessa cama o resto do dia. DAVE Pois eu tenho que andar de bicicleta. MARIA Você pedala todo dia? DAVE Pedalava. Pretendo continuar pedalando. MARIA Estou morrendo de sono. Vou ficar por aqui. Você se importa? DAVE Claro que não. Ele sai da cama e vai até o armário. Pega uma camiseta e um calção. Na outra porta do mesmo armário retira um tênis. DAVE Impressionante. Tudo no mesmo lugar. MARIA (sonolenta) Como? Não entendi. DAVE já está vestido. Senta-se numa poltrona e calça o tênis. DAVE Nada, querida. Durma. Eu não demoro. Ele acaba de calçar-se e sai do quarto. 116 EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – NOITE. DAVE está saindo de casa, empurrando com a bicicleta com as mãos. Já na rua, sobe na bicicleta e começa a pedalar. EXT. RUA DA ILHA DE TORONTO – DIA. David O’HARA está sentado em um banco. Olha para os lados: parece esperar alguém. EXT. ILHA DE TORONTO – DIA. David repara que pedalando devagar. DAVE vem se aproximando na bicicleta, Ao aproximar-se de DAVID, DAVE para a bicicleta e a encosta perto do banco. DAVE E não é que nos encontramos de novo? DAVID Mundo pequeno esse, hein? DAVE É. Bem pequeno. (pausa) Vi você em minha aula ontem. Interessado em física agora? DAVID Só curiosidade. Aquela conversa nossa despertou meu interesse por sua área. DAVE Que bom. Qual é a sua função? DAVID Continuo no ramo de extermínio. Gosto muito desse ofício. DAVE Impressionante. Achei que aqui não existisse demanda para isso. DAVID Sempre existe. Há gente incômoda em todo lugar. DAVE 117 Olha. Não quero me meter em sua vida, mas talvez seja adequado mudar de ramo. Aqui as coisas são muito diferentes, David. DAVID Não vejo muita diferença. DAVE Você não vai conseguir clientes por aqui, David. Seu guia não lhe informou sobre isso? DAVID Não sei do que você está falando. DAVE Tenho certeza. Não há assassinatos aqui. DAVID Não concordo. Já tenho um contrato. DAVE Não é possível. Tem alguma coisa errada. DAVID Um daqueles bons. Uma bela grana para despachar um sujeito que eu devia ter despachado lá no Rio de Janeiro. DAVE Sei. Você vai para o Rio. DAVID Não vai ser preciso. Meu alvo mora aqui mesmo. DAVE (empalidecendo) Não é possível. Não pode ser. DAVID Do que diabos você está falando? DAVE Seu alvo é Mike HOOPER? DAVID Como é que você sabe? DAVE (suspirando) Impressionante. 118 DAVE senta-se ao lado de DAVID. DAVE HOOPER é meu pai biológico. DAVID E todo pai não é biológico? DAVE Nem todos, David. Não fui criado por ele. Mal o conheço. DAVID Menos mal. Assim você não vai sentir muito. DAVE Eu não posso deixar você fazer uma coisa dessas, David. É errado. DAVID (tenso) Não vejo como você poderá impedir-me, DAVE. DAVE Não se trata disso. Sou absolutamente contrário à violência. Mas pretendo denunciar você à polícia. DAVID (rindo) Sabe de uma coisa, DAVE? Não existe polícia aqui. por DAVE Por que não existem crimes. Não é permitido matar nesse lugar. DAVID Quem é que disse? (mostra a pistola automática, colocada debaixo das axilas) Ninguém me tirou isso. Tentando surpreender cotovelada. David, DAVE tenta acertar-lhe uma Mas David é mais rápido e lhe dá um golpe de karatê na cabeça: DAVE desmonta e vai ao chão, desmaiando. Calmamente, David levanta-se e segue pela rua. Logo depois, HARRISON surge no quadro e vai até DAVE, tentando reanimá-lo. 119 HARRISON DAVE? Acorde, DAVE. Você está bem? DAVE George? É você? HARRISON O que houve com você, meu velho? Está passando mal? DAVE Ainda bem que você veio. Há um sujeito, um assassino profissional. Ele quer matar Mike. Ele vai matar Mike! HARRISON Calma, meu caro. Não há assassinatos aqui. DAVE Pois vai haver um, George. Eu conheci o assassino no Rio de Janeiro. Ele me agrediu! HARRISON Não permitimos violência simplesmente não é possível. aqui, DAVE. Isso DAVE E como é que você acha que eu consegui isso? (Pega a mão de George e passa resultado da pancada) sobre a cabeça dele, mostrando o HARRISON Você pode ter caído, meu caro. Teve um pesadelo. É natural em situações de adaptação. DAVE Mike vai ser assassinado se você não fizer alguma coisa, George. Estou falando sério. Mike vai morrer! HARRISON Impossível. Não há essa possibilidade. Acredite em mim, meu velho. Não há. DAVE Não vou ficar discutindo posso encontrar Mike? com você, HARRISON No Toronto Star. É lá que ele trabalha. DAVE sai correndo. George. Onde 120 DAVE Procure ajuda, George! É real, acredite em mim! EXT. EDIFÍCIO DO TORONTO STAR/TORONTO – DIA. DAVE desce jornal. de um táxi e corre na direção da portaria do INT. PORTARIA/EDIFÍCIO DO TORONTO STAR – DIA. Um porteiro uniformizado está na recepção. Dave aproxima-se dele, entrando em alta velocidade no recinto. DAVE Mike HOOPER, por favor! Chame Mike HOOPER! É uma emergência! PORTEIRO Calma, amigo. Vamos com calma. O Sr. HOOPER não está na redação. Eu preciso morte! DAVE falar com ele. É questão de vida ou O porteiro parece não entender o que DAVE está falando. PORTEIRO Vida ou morte? DAVE Isso mesmo! A vida de Mike está correndo perigo! PORTEIRO (aparentemente o porteiro acha que DAVE é maluco) Eu entendo. Mas Mike realmente não está na redação. Ele vem muito pouco aqui. DAVE Onde posso conseguir o endereço dele? PORTEIRO Isso é só com ele. O jornal não pode dar o endereço de nenhum profissional. Trata-se de normas internas, senhor. DAVE Não! Trata-se de vida ou morte! DAVE agarra o sujeito pelo pescoço. 121 DAVE Dê-me logo o endereço. Vamos! O endereço! PORTEIRO Eu não sei. Garanto que o jornal não sabe o endereço de nenhum de nós! DAVE Isso é um absurdo! Tem que ter! PORTEIRO Juro que estou dizendo a verdade, senhor. Por favor não me machuque. DAVE parece então perceber que estava muito alterado. Solta o porteiro. DAVE O senhor me desculpe. HOOPER é meu pai! Estou transtornado. Mike PORTEIRO Eu compreendo sua urgência, senhor. Mas realmente não tenho o endereço dele. Ninguém aqui no jornal tem. DAVE Meu Deus! O que eu fazer? DAVE sai correndo e, já na rua, chama um táxi. ENTRAMOS COM ELE no táxi. MOTORISTA Para sua casa, senhor? DAVE Sim. Minha casa. Como é que o senhor sabe? MOTORISTA Estaremos lá em dez minutos exatos. O trânsito está ótimo. DAVE Ei! Eu não disse qual é o meu endereço. MOTORISTA Disse sim. Eu não sou adivinho. DAVE 122 Meu Deus! Todos enlouqueceram? Isso não pode estar acontecendo! MOTORISTA Calma, senhor. O senhor é novato na cidade? DAVE (aliviado) Isso mesmo! Sou novato! MOTORISTA O senhor ainda não foi informado, mas somos todos telepatas por aqui. DAVE Impressionante. Vamos para minha casa então. EXT. CASA DE DAVE/SCARBOUROUGH/TORONTO – DIA. Maria acorda abruptamente e salta da cama. Coloca a roupa rapidamente e sai do quarto. MARIA atravessa a sala de estar, olha pena janela e corre na direção da porta de saída da casa. DAVE está chegando. O táxi para e ele desce. Procura dinheiro nos bolsos e dá duas notas para o motorista. DAVE Obrigado. Fique com o troco. Maria vai até DAVE. DAVE Que bom que você me ouviu. E aí? Conseguiu falar com Mike? MARIA Não. Ele deve estar dormindo. Aí não tem jeito. Por isso você também não conseguiu. DAVE Meu Deus! Não sei mais o que fazer! CORTA PARA VAMOS AO PARQUE. Mike está sentado num banco do parque, cochilando com um livro nas pernas. Começa a acordar. 123 MARIA Já sei onde ele está! VOLTAMOS a DAVE e Maria. DAVE Para o parque! O mesmo táxi está de volta, aproximando-se com rapidez, de ré, parando bruscamente, fazendo muito barulho com a fricção dos pneus no asfalto. Os dois entram no carro, não falam nada e o motorista arranca o carro, bem rápido. EXT. PARQUE DE TORONTO – DIA. Um dia de céu limpo em Toronto. Mike levanta-se do banco e coloca o livro que estava sob suas pernas na pasta de couro. Consulta o relógio movimentada. e decide atravessar a rua, que é bem Perto dali, a cerca de 50m, para o táxi que conduz DAVE e Maria e os dois descem, procurando Mike com os olhos. Mike começa a atravessar a rua. DAVE (gritando) Mike! Ei! Mike! Aqui! Espere por nós, Mike! Mike parece ouvir, mas olha para o lado contrário de onde veem DAVE e Maria. DAVE corre (é muito rápido) na direção dele. Um carro aproxima-se em alta velocidade, indo em direção a Mike. DAVE Volte! Volte! Mike: O carro! Mike não vê que o carro vem na direção dele. PLANO APROXIMADO de David, no volante do carro, bem perto de Mike, que olha para trás e vê Maria, mas não DAVE que já está bem perto dele. PONTO DE VISTA de MIKE: vê Maria, acenando. 124 Tudo acontece muito rápido: o carro está quase em cima de Mike, quando DAVE surge repentinamente, empurrando-o para frente e sendo atropelado no lugar dele. Mas o carro não parece colidir com DAVE. Através de uma fusão, o carro passa através do corpo de DAVE. A trilha sonora acentua um choque, que não parece ser físico, mas realmente acontece. DAVE é jogado longe e vai ao chão desmaiado, com sangue saindo da cabeça, que bateu ao chão ao cair. A IMAGEM QUE SE SEGUE é congelada e começa a ser exibida como num daqueles antigos projetores de slide, foto a foto: Mike, desesperado corre até ele, abaixa-se, coloca a cabeça de DAVE em sua perna e paga na mão dele. Os dois ficam de mãos dadas muito tempo, DAVE desmaiado e Mike olhando para ele com todo o carinho do mundo. VEMOS QUE FOMOS TRANSPORTADOS A UMA SALA DA CASA DA INFÂNCIA DE DAVE, EM QUE MIKE, HANAH e ele assistem à sequência de slides que foi exibida pouco antes (agora são eles que veem os slides, não só o espectador). MIKE DAVE! Meu filho! VOLTAMOS À RUA em que houve o atropelamento de DAVE. Perto dali, VEMOS HARRISON sorrindo. O carro em que David ia para bruscamente. VEMOS que HARRISON. David, ao volante, está sorrindo, olhando para Cumprimentam-se com um gesto e David vai embora. HARRISON surge repentinamente perto de Mike e o levanta, puxando-o pelos ombros, com firmeza, mas com carinho. Mike parece acalmar-se. Fica abraçado a HARRISON. Maria aproxima-se, sorrindo também. OUVIMOS a sirene de uma ambulância e logo VEMOS um veículo paramédico aproximando-se de onde DAVE está estendido no chão, inconsciente. 125 OUVIMOS trovões. O céu cobre-se de nuvens e vários raios iluminam o fim de tarde. VOLTAMOS À CASA MENOR DA FAZENDA DE ALICE. CLOSE-UP do rosto de DAVE. Um filete de sangue escorre de algum lugar na cabeça dele. DAVE abre os olhos e vê a expressão angustiada de Laura, olhando fixamente para ele, em mudo desespero. DAVE Mike? Pai? Você está bem, pai? O rosto de LAURA surge na tela, no PONTO DE VISTA de DAVE. Laura começa a chorar de alegria: pensava que DAVE estivesse morto. Ao fundo, a sirene de ambulância cada vez mais perto. LAURA Meu amor. DAVE, você voltou, seu plebeu maldito. Você voltou! DAVE Laura? O que você está fazendo aqui? LAURA Está tudo bem, querido. Agora está tudo bem. Você vai ficar bom. DAVE Estamos no Rio de Janeiro? LAURA Sim, querido. Estamos no Rio. Mas Toronto. É para lá que você quer ir? vamos para DAVE É. É para Toronto que eu quero ir. Paramédicos entram na sala e aproximam-se de DAVE, colocando-o numa maca. Sempre de mãos dadas com ele, Laura acompanha-o e entra com ele na ambulância. CRÉDITOS FINAIS, impressos sobre imagens da chegada da Polícia Federal. 126 Na trilha sonora, YESTERDAY, com George Harrison. 127