Teologia dos conselhos evangélicos

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Teologia dos conselhos evangélicos
Comunidade Católica Novo Ardor
Teologia dos conselhos evangélicos
Paulo Guilherme Borges Chaves
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Teologia dos Conselhos Evangélicos
A Nova Lei revelada por Cristo possui prescrições que são absolutamente necessárias à
salvação, conforme o próprio testemunho evangélico atesta: “Se queres entrar na vida, observa os
mandamentos” (Mt 19, 17c). No entanto, segundo o mesmo texto, notamos que o jovem do
evangelho não deseja ater-se ao mínimo necessário à salvação, mas deseja ―assegurar-se‖ de que
poderá ter a vida eterna. De fato, Jesus ordena a ele, primeiramente, que seja autêntico, fuja das
paixões, honre seus pais e ame o próximo como a si mesmo. Nisto encerra-se a santidade cristã,
porém a alguns Jesus chama a um seguimento mais estreito de Seus passos, como aos apóstolos e a
este jovem. São claros na vida de Jesus os conselhos que ele dá aos seus potenciais seguidores:
A obediência tem lugar de relevo na vida terrena de Jesus. ―Não
quiseste nem sacrifício nem oferenda. Por isso me deste um corpo. Não
foram do teu agrado holocaustos nem sacrifícios pelos pecados. Então eu
disse: Eis que venho! Porque de mim está escrito no livro: Eis que venho
para fazer, ó Deus, a tua vontade‖ (Hb 10, 5-7; Sl 40, 6-8)1
Cristo ―viveu pobre ao longo de sua existência. Nasceu numa
estrebaria e foi colocado na manjedoura. A Sagrada Família de Nazaré vivia
na pobreza de meios. Cristo avisava as pessoas que se ofereciam
espontaneamente para o seguir: Recordem que ‗as raposas têm suas tocas e
os pássaros do céu tem seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde
repousar a cabeça‘ (cf. Mt 8, 20). Cristo morreu na cruz e foi posto numa
sepultura que lhe emprestaram.
Cristo convidou os apóstolos para segui-lo e prometeu que todos os
que deixassem pai, mãe, mulher, filhos, casas e terrenos pelo nome dele,
receberiam o cêntuplo como recompensa e teriam como herança a vida
eterna (cf. Mt 19, 29). Ele convidou seus discípulos a pregar e os preveniu a
evitarem bagagem embaraçosa, a não levarem uma túnica de reserva e a não
terem excessiva preocupação com alimentos e vestes para o dia seguinte (cf.
Mt 10, 10)‖2
Cristo viveu vida virginal, ensinou a seus discípulos a castidade e
propôs a virgindade aos que estavam dispostos e em grau de seguir-lhe o
chamado.3
A este meio de santificação, porém, apenas alguns são chamados e, a estes, Deus mesmo
concede o dom da prática dos três conselhos aduzidos no Evangelho. No texto referido acima, Jesus
aconselha o jovem à voluntária pobreza – “vende teus bens” – e à obediência – “segue-me”. Aqui
não se evidencia a castidade perfeita (ou continência voluntária) tal como é entendida pela Igreja
hoje, mas no mesmo texto Jesus havia atestado: “há eunucos que se fazem eunucos por causa do
Reino dos céus” (v. 12c). Note-se a severidade do que Jesus afirma, a escolha é livre e o motivo é
bem definido: por causa do Reino dos céus. Os conselhos evangélicos são, portanto, uma via
aperfeiçoamento que Jesus propõe e que não são essenciais à salvação de todos, mas alguns os
escolhem como valores permanentes e tem neles o único meio pelo qual poderão alcançar a
salvação. S. Tomás de Aquino é claro ao afirmar que
Este elemento voluntário se apresenta como matéria, porque o
conselho é relativo ao que o homem quer fazer; e também como motivo,
1
pois desde que o homem quer o fim, move-se ao conselho relativo aos
meios.
O fim, nas ações, exerce a função de princípio, porque a razão de ser
dos meios se deduz do fim. Ora, sobre um princípio não se discute, antes,
deve ser suposto em toda inquirição. Por onde, sendo o conselho uma
inquirição, tem por objeto, não o fim, mas só os meios.4
Nisto se fundamenta a vida consagrada na Igreja, sobre a base destes três conselhos que são
um meio de aperfeiçoamento a que alguns abraçam livremente a modo de valores permanentes, cuja
prática lhes garante a entrada no Reino. A compreensão dos votos, porém, beneficia toda a
comunidade cristã, uma vez que supõem as virtudes contrárias a tudo quanto pode prender o homem
às coisas da terra: “as riquezas que tornam a vida fácil e agradável, os prazeres da carne a que se
inclinam os apetites e, por último, as honras e posições de autoridade que satisfazem o amorpróprio do indivíduo.”5 Por isso, todo cristão pode, de modo a aperfeiçoar a prática da ―nova lei‖,
abraçar o seguimento dos conselhos evangélicos, de modo a conter a concupiscência em qualquer
matéria. A vida consagrada, porém, confere aos conselhos evangelhos uma particular eloquência e
visibilidade no testemunho e no seguimento de Cristo.
A vida consagrada, profundamente arraigada nos exemplos e
ensinamentos de Cristo Senhor, é um dom de Deus Pai à sua Igreja, por
meio do Espírito. Através da profissão dos conselhos evangélicos, os traços
característicos de Jesus — virgem, pobre e obediente — adquirem uma
típica e permanente “visibilidade” no meio do mundo, e o olhar dos fiéis é
atraído para aquele mistério do Reino de Deus que já atua na história, mas
aguarda a sua plena realização nos céus.6
A teologia dos conselhos evangélicos se desenvolve a partir desta premissa claramente
asseverada pelo Concílio Vaticano II. A profissão dos conselhos como valores permanentes é,
segundo o direito, o que define a vida consagrada na Igreja, sendo sancionadas como lei geral para
seu seguimento as normas seguintes:
O Conselho evangélico da castidade, assumido por causa do Reino
dos céus e que é sinal do mundo futuro e fonte de maior fecundidade num
coração indiviso, implica a obrigação da continência perfeita no celibato.
O Conselho evangélico da pobreza, à imitação de Cristo, que sendo
rico se fez pobre por nós, além de uma vida pobre na realidade e no espírito,
a ser vivida laboriosamente na sobriedade e alheia às riquezas terrenas,
implica a dependência e a limitação no uso e na disposição dos bens, de
acordo com o direito próprio de cada instituto.
O Conselho evangélico da obediência, assumido com espírito de fé e
amor no seguimento de Cristo obediente até à morte, obriga à submissão da
vontade aos legítimos Superiores, que fazem as vezes de Deus quando
ordenam de acordo com as próprias constituições.7
2
Tudo o que a Igreja diz a respeito dos três conselhos, no que se refere à sua doutrina e
prática, se resume a essa interpretação. Desse modo, o documento Vita Consecrata afirma:
A castidade dos celibatários e das virgens, enquanto manifestação da
entrega a Deus com um coração indiviso (cf. 1 Cor 7,32-34), constitui um
reflexo do amor infinito que une as três Pessoas divinas na profundidade
misteriosa da vida trinitária; amor testemunhado pelo Verbo encarnado até
ao dom da própria vida; amor ―derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo‖ (Rm 5,5), que incita a uma resposta de amor total a Deus e aos
irmãos.
A pobreza confessa que Deus é a única verdadeira riqueza do
homem. Vivida segundo o exemplo de Cristo que, ―sendo rico, Se fez
pobre‖ (2 Cor 8,9), torna-se expressão do dom total de Si que as três
Pessoas divinas reciprocamente se fazem. É dom que transborda para a
criação e se manifesta plenamente na Encarnação do Verbo e na sua morte
redentora.
A obediência, praticada à imitação de Cristo cujo alimento era fazer
a vontade do Pai (cf. Jo 4, 34), manifesta a graça libertadora de uma
dependência filial e não servil, rica de sentido de responsabilidade e
animada pela confiança recíproca, que é reflexo, na história, da amorosa
correspondência das três Pessoas divinas.
(VC 21)
Todavia, a Igreja reconhece as novas formas de vida consagrada que o Espírito tem
suscitado na Igreja desde a renovação do Vaticano II e que não professam os votos tal como são
canonicamente definidos. De fato, os conselhos evangelhos não podem ser entendidos como meras
prescrições externas, mas como transbordamento do que há no coração do consagrado, por isso,
ainda que a profissão canônica dos votos implique a sua prática segundo o direito, na impede que
qualquer fiel os interprete à luz de sua vocação específica e os escolha, também, como valores
permanentes para sua vida. Por isso OLIVEIRA (2002) diz: Basta que esse voto signifique uma
convergência entre a vontade do consagrado ou da consagrada e a do superior ou da superiora, em
vista do projeto do Reino.8
A Castidade
É a vida de Cristo a imagem da perfeita castidade. A compreensão do conselho evangélico
da castidade, porém, deve partir do significado da castidade que Cristo ensina aos seus seguidores e
não simplesmente na prática do próprio Jesus. Embora o termo ―castidade perfeita‖ seja comumente
associado ao conteúdo teológico do voto de castidade – a continência – contemplar a castidade
apenas por este viés seria limitar o alcance da salvação, que está condicionada à prática da lei de
Deus – os Dez Mandamentos – apenas àqueles que se fazem ―eunucos‖ por amor do Reino dos
Céus. De fato, o sexto mandamento é condição de santificação a todos os homens e mulheres,
celibatários ou não. O que é, então, a castidade? Castidade é a virtude pela qual é ―contida‖ a
concupiscência que, como uma criança, precisa de limites. Virtude, essencialmente, consiste em ser
algo moderado pela razão.9
3
Faz-se necessário, portanto, um olhar atento sobre a obra de Deus, na criação, para que haja
uma compreensão mais exata da sexualidade humana.
A sexualidade, enquanto elemento constitutivo da pessoa humana, é
uma coisa boa, positiva, porque é criação de Deus. Já o primeiro livro da
Bíblia evidencia essa realidade. Deus criou a pessoa humana e quis que a
sexualidade fosse parte constitutiva dela: ―Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou‖ (Gn
1, 27).
Um cristão, portanto, não pode negar o valor da sexualidade. Pelo
contrário, ele deve perceber que tanto ela como o próprio sexo são
realidades altamente positivas. Podemos ir mais além: o sexo deve ser
amado como se ama a própria vida, pois é dele que brota a existência
humana.10
A Igreja, com efeito, assim exorta o povo de Deus no seguimento de Cristo: Procurem, por
isso, ordenar retamente os próprios afetos, para não serem impedidos de avançar na perfeição da
caridade pelo uso das coisas terrenas e pelo apego às riquezas.11
Enquanto o elemento formal da castidade – ou seja, a disposição
habitual para valorizar e exercer no modo justo a sexualidade, de acordo
com as exigências do amor autêntico – é necessariamente igual em todos,
todavia, o modo de vivê-la concretamente que varia de acordo com os
diversos estados de vida.12
De fato, a castidade, enquanto virtude que se refere especificamente à sexualidade, não pode
ser entendida apenas como algum tipo de educação sexual, mas sim como ordenação de tudo quanto
define o ser masculino ou feminino. Necessário é que se leve em conta as dimensões psíquica,
emocional, afetiva e fisiológica do homem e da mulher, uma vez que
ser homem não é só e nem principalmente uma questão fisiológica,
senão uma questão psicológica e espiritual. Também essa dimensão da
pessoa humana é absolutamente irrenunciável, sob pena de uma nova
frustração que nada tem a ver com o sacrifício e a renúncia que impõe a
virgindade ou castidade consagrada.13
Ser casto significa, portanto, viver de acordo com a própria natureza, em obediência ao
desígnio do Pai ao criar-nos à Sua imagem e à Sua semelhança. O conteúdo fundamental do
conselho evangélico da castidade é o ―equilíbrio psico-social‖, a ordenação dos afetos e tensões
psíquicas ao amor ensinado por Jesus, que redunda no amor ao próximo como a si mesmo. Por isso,
a castidade ―é ao mesmo tempo dom divino e conquista pessoal‖14, porque compreende um esforço
contínuo de ―retorno‖ às origens do ser humano, ao seu estado de dignidade e pureza, impossível
sem a graça de Deus, e a disciplina no exercício da virtude, moderando as inclinações da natureza,
ferida pelo pecado, pela reta razão.
No Novo Testamento, em sua primeira carta a Timóteo, o apóstolo Paulo diz: ―torna-te
modelo para os fiéis, no modo de falar e de viver, na caridade, na fé, na castidade‖15. No texto
grego, Paulo usa a palavra ἁγνεία, que foi traduzida como castidade. ἁγνεία, significa pureza,
castidade e tem sua origem na palavra ἁγνός, que significa, originalmente, em uma condição
4
preparada para a adoração, puro (etica, ritual ou cerimonialmente), casto, não misturado com culpa
ou qualquer coisa condenável16. Aduz-se do texto de S. Paulo que a castidade é mais do que impor
restrições à genitalidade, refere-se à pureza de consciência, de corpo e de alma.
A Pobreza
Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo rico, por causa de vós se fez pobre (cf. 2Cor 8, 9). Esta é a
síntese do sentido da pobreza de Cristo. Ele fez-se pobre ‗por nossa causa‘, para colocar-se a
serviço: “Pois se eu, o Senhor, e o Mestre, tenho lavado vossos pés, também vós deveis lavar
vossos pés uns aos outros.” (Jo 13, 14).
A pobreza de Jesus não é carência de bens, porque ele mora na
propriedade de seu pai José (Mt 2, 23); exerce uma profissão remunerada
(Mc 6, 3); seu grupo é mantido pela ajuda dos amigos, sobretudo mulheres
abastadas (Lc 8, 1-3). Sua pobreza equivale a liberdade (Mt 8, 20),
mansidão, humildade de coração (Jo 11, 29), disponibilidade à vontade do
Pai (Jo 4, 34) até a morte na cruz (Fl 2, 8), aceitação consciente do
sofrimento.17
O conselho evangélico da pobreza, portanto, supõe essa liberdade pregada por Jesus, com
palavras e exemplo. De fato, Jesus, depois de despedir-se do jovem rico, faz uma afirmação
incisiva: ―Em verdade vos digo, que dificilmente entrará um rico no reino dos céus.‖ (Mt 19, 23) No
entanto, é no espanto dos apóstolos que descobrimos o sentido das palavras de Jesus. O rico não é
aquele efetivamente possui muitos bens, mas aquele que deles não se desapega. Em Mateus e Lucas
(18, 24), o advérbio usado por Jesus no original grego, δυζκόλως, significa, literalmente, o que em
geral é encontrado nas traduções da Bíblia: dificilmente. Em Marcos (10, 24), porém, Jesus diz
δύζκολος, difícil de digerir.
Por oposição ao ‗rico‘ - em sentido bíblico – que se apoia em si
mesmo, em seus recursos materiais, em sua experiência, em sua astúcia ou
em seus méritos diante de Deus, o pobre é consciente de sua radical
indigência, reconhece que não pode alegar méritos próprios nem apoiar-se
em si mesmo. Por isso, confia sua causa a Deus e se abandona em sua
misericórdia. A dor, a pobreza real e a injustiça dos homens o fizeram
compreender que só Deus é o recurso definitivo e toral. Aprendeu, por sua
própria experiência, que tudo é transitório e que nada oferece ao homem
uma segurança sem riscos, fora de Deus.
[…]
A pobreza verdadeira, em sentido cristão, é uma experiência total.
Abarca o homem inteiro. É interior e exterior, ao mesmo tempo. Invisível e
visível. Espiritual e material. Atitude da alma e expressão corporal. Uma
mística e um comportamento real. O material e o exterior se convertem em
sinal visível do espiritual e da atitude interior. Um não pode subsistir sem o
outro. É uma exigência do mistério da ‗encarnação‘ e da própria condição
do homem como ‗espírito encarnado‘. O exterior sem a interioridade carece
de valor humano e cristão. Mas a interioridade que não tende a expressar-se,
de algum modo, exteriormente, não é autêntica ou é, no mínimo, duvidosa.18
5
De fato, Jesus em sua vida associa intimamente essas duas vias da pobreza, a espiritual e
material. Aquele que é ‗difícil de digerir‘ pode ser comparado àquele a quem Deus vomita que diz:
sou rico, enriqueci-me, de nada mais preciso (cf. Ap 3, 16). O morno Jesus define como aquele que
pretende servir a Deus e às riquezas, o que é impossível (cf. Mt 6, 24). Portanto, o rico a quem é
vedada a entrada no Reino dos Céus é aquele que não confia na Providência Divina, e o contrário se
pode dizer daquele que vive segundo o conselho evangélico da pobreza.
Porém, como foi dito acima, o voto de pobreza tal como é canonicamente definido, implica
a dependência e a limitação no uso e na disposição dos bens, de acordo com o direito próprio de
cada instituto.19
A Obediência
―A verdadeira obediência não considera aquele a quem é prestada, mas sim aquele por
quem se obedece; e se obedece só por nosso Criador e Senhor, é ao mesmo Senhor de todos que se
obedece.”20
Pensar em obediência costuma despertar em nós um sentimento de aversão, como se fosse
mera submissão de nossa vontade à vontade de outro, como se nossos desejos particulares devessem
ser suprimidos a fim de fazer prevalecer outra vontade, não a nossa. O significado da obediência,
porém, segue outra direção, e se define de maneira completamente diversa desta que imediatamente
costumamos imaginar. O fundamento da obediência segundo os moldes do Evangelho é o propósito
comum, isto é, aquele que exerce autoridade e o que se submete a ela possuem o mesmo propósito,
o mesmo objetivo que, vale ressaltar, não deriva da vontade pessoal deles. De fato, o exercício da
autoridade se revela assim como um serviço, e isso essencial e fundamentalmente. Na Igreja
ninguém pode atribuir a si mesmo um título de autoridade, mas todos que possuem tal
responsabilidade a receberam de uma autoridade maior, finalizada em Deus. Em outras palavras, a
obediência é sempre anterior ao exercício da autoridade. “Ninguém seguramente fala, senão quem
gosta de calar. Ninguém seguramente manda, senão o que perfeitamente aprendeu a obedecer” 21.
Isso nos é ensinado por São Paulo quando diz: “Tende um mesmo amor, uma só alma e os mesmos
pensamentos. Nada façais por espírito de partido ou vanglória, mas que a humildade vos ensine a
considerar os outros superiores a vós mesmos”22.
Aparece também na obediência o sacrifício, a mortificação, porém não é o sacrifício que
Deus deseja de nós, mas a obediência23. Frei Raniero Cantalamessa diz que a obediência Deus a
quer por si mesma, o sacrifício, só indiretamente, como a condição que por si faz possível e
autêntica a obediência24. ―Verdade é que cada um gosta de seguir seu próprio parecer e mais se
inclina àqueles que participam da sua opinião. Entretanto, se Deus está conosco, cumpre-nos, às
vezes, renunciar ao nosso parecer por amor da paz. Quem é tão sábio que possa saber tudo
completamente? Não confies, pois, demasiadamente em teu próprio juízo; mas atende também, de
boa mente, ao dos demais. Se o teu parecer for bom e o deixares, por amor de Deus, para seguires
o de outrem, muito lucrarás com isso.”25
Com efeito, há muito a Igreja abandonou a interpretação da obediência que afirmava que ela
era o critério infalível de que se estava fazendo a vontade de Deus. A obediência somente será meio
de santificação se ela não negar a liberdade, porque ―O Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito
do Senhor, aí há liberdade.‖ (2Cor 3, 17) A submissão é, portanto, o livre sacrifício que torna
autêntica a obediência, ela é exercício pleno da liberdade, uma vez que é a concretização da unidade
que Cristo desejou para nós26. Essa submissão somente será possível se for visível naquele que
recebeu a autoridade a vontade daquele que lha confiou, de maneira semelhante a João Batista; João
6
é a voz, mas o Senhor desde o princípio era a Palavra27. A autêntica obediência somente será
possível se houver esse reconhecimento. “Servos, obedecei aos vossos senhores temporais, com
temor e solicitude, de coração sincero, como a Cristo, não por mera ostentação, só para agradar
aos homens, mas como servos de Cristo, que fazem de bom grado a vontade de Deus. Servi com
dedicação, como servos do Senhor e não dos homens.”28
A obediência, fundamentalmente, significa a disposição íntima e
pessoal à disponibilidade para a oblação. Significa não pertencer a si mesmo
e para seus interesses, mas pertencer ao outro de forma oblativa e,
possivelmente, martirial.29
Assim, pois, os senhores temporais de que fala S. Paulo são os mediadores humanos da
autoridade de Deus; se os respeitamos e nos submetemos de coração livre àquilo que nos dizem,
obedecemos a Deus, não a eles, mesmo em “todas as vezes em que o que é pedido (ou quem o pede)
revela-se humanamente pouco convincente. Quem se encontra em tais situações não esqueça,
então, que a mediação é, por sua mesma natureza, limitada e inferior àquela realidade à qual
remete, e tanto mais o é em se tratando da mediação humana em relação à vontade divina; mas
lembre-se igualmente, toda vez em que se defrontar com uma ordem legitimamente emanada, de
que o Senhor pede que obedeça à autoridade que o representa naquele momento e que Cristo
também „aprendeu a obediência por aquilo que sofreu‟ (Hb 5,8).”30
7
1ARINZE, Francis Card. Reflexões sobre o Sacerdócio. p. 33
2Idem. p. 38
3Ibid. p. 40
4AQUINO, Santo Tomás. Summa Theologiae. I-II, Q. 14, A 1; A2
5BARNES, A. Evangelical Counsels. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton
Company.
Acesso
em:
12/02/2011,
Disponível
em:
http://www.newadvent.org/cathen/04435a.htm
6Vita Consecrata, 1
7CIC cân. 599-601
8OLIVEIRA, José Lisboa M. Viver os votos em tempos de pós-modernidade, p. 155. 2.ª Ed. Loyola,
SP, 2002
9Summa Theologiae, II-II, Q. 151, A. 1
10OLIVEIRA, José Lisboa M. Viver os votos em tempos de pós-modernidade, p. 41. 2.ª Ed. Loyola,
SP, 2002
11LG, 43
12Lexicon – Dicionário Teológico Enciclopédico. p. 97. Edições Loyola, SP, 2003.
13ALONSO, Severino Maria. La Utopia de la vida religiosa, pp. 257. Ed. Publicaciones
Claretianas, 1982.
14Lexicon – Dicionário Teológico Enciclopédico. p. 97. Edições Loyola, SP, 2003.
151Tm 4,12b
16Disponível em http://biblos.com/. Acesso em: 27 de Julho de 2011.
17Idem, p. 97
18ALONSO, Severino Maria. La Utopia de la vida religiosa, pp. 163.164. Ed. Publicaciones
Claretianas, 1982.
19CIC 600
20Santo Inácio de Loyola, Constituições da Companhia de Jesus, 84
21Imitação de Cristo, Livro I, cap. 20
22cf. Fl 2, 2b-3
8
23cf. Hb 10, 5 7
24Com o que sofreu, aprendeu a obediência. Quaresma na Casa Pontifícia, 31/03/2006
25Imitação de Cristo, Livro I, cap. 9
26(cf. Jo 17, 22)
27Ofício das Leituras, 24 de Junho, Solenidade do Nascimento de São João Batista. Sermão de
Santo Agostinho, A voz daquele que clama no deserto.
28Ef 6, 5 7
29OLIVEIRA, José Lisboa M. Viver os votos em tempos de pós-modernidade, p. 137. 2.ª Ed.
Loyola, SP, 2002
30Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida
Apostólica. O Serviço da Autoridade e a Obediência, 10
9