indira silva souza - PPGHIS
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL INDIRA SILVA SOUZA HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE: OS CIGANOS NO INTERIOR DA BAHIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX SANTO ANTÔNIO DE JESUS- BAHIA 2015 INDIRA SILVA SOUZA HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE: OS CIGANOS NO INTERIOR DA BAHIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX Dissertação de mestrado da linha de pesquisa de estudos regionais: campo e cidade, apresentada como requisito de conclusão do curso de PósGraduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Orientadora: Profª. Drª. Nancy Rita Sento Sé de Assis. SANTO ANTÔNIO DE JESUS- BAHIA 2015 INDIRA SILVA SOUZA HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE: OS CIGANOS NO INTERIOR DA BAHIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________ Profª. Drª. Nancy Rita Sento Sé de Assis UNEB (Orientadora) ___________________________________________________ Prof. Dr. Carlos José Ferreira dos Santos (Membro) ___________________________________________________ Profª. Drª. Sara Oliveira Farias (Membro) FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Souza, Indira Silva História, memória e identidade: os ciganos no interior da Bahia na segunda Metade do século XX / Indira Silva Souza . – Santo Antonio de Jesus, 2015. 111f. Orientador: Profª. Drª. Nancy Rita Sento Sé de Assis Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus V. 2015. Contém referências. 1. História. 2. Identidade cultural. 3. Cultura cigana. I. Assis, Nancy Rita Sento Sé de. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 981 RESUMO O presente estudo tem como objetivo principal discutir a identidade cigana no interior da Bahia. Para isso, fizemos uso de duas literaturas regionais do sul da Bahia – intituladas, “Jorge Medauar conta estórias de água Preta”, de Jorge Emílio Medauar, e “O tempo é chegado”, de Euclides Teixeira Neto. Além disso, buscamos notícias de jornais, e dialogamos com sujeitos pertencentes à identidade cigana calon, em algumas cidades do interior da região. Este trabalho procura atentar para o lugar reservado àquela etnia em espaços discursivos como, por exemplo, os jornais o “Diário de Itabuna e o “A tarde”, a partir da segunda metade do século XX. Buscamos desse modo, dialogar com teóricos importantes para uma melhor compreensão acerca dos estudos culturais e sua relação com a dinâmica historiográfica. Consideramos ainda que, o estudo das percepções da identidade cigana na literatura regional e nas notícias jornalísticas permite ponderações sobre o jogo dialético para a construção daquelas identidades, por meio do contraponto das narrativas literárias, jornalísticas e orais, percebidas enquanto uma disputa de memórias concorrentes. Assim, estudamos a identidade chamada cigana no interior da Bahia, a partir de meados do século XX e as relações de poder e de disputa entre grupos sociais na região para afirmações de memórias e identidades no campo da cultura. Palavras-chave: identidade, calon, memória, cultura cigana ABSTRACT The present study has as its main objective to discuss the so-called Gypsy identity in some cities in the interior of Bahia. To do this, we made use of two regional literatures of southern Bahia – titled, "Jorge Medauar tells stories of black water" of Jorge Emilio Medauar, and "the time is now", Euclid Teixeira Neto. In addition, we seek news of local newspapers from inside the South of Bahia, and the way we deal with subjects belonging to the Gypsy identity sayings calon, in some cities in the interior of the region. This work seeks to look at the place reserved to ethnicity in discursive spaces such as the newspaper "Diário de Itabuna", from the second half of the 20th century. This way, we seek to engage with important theoretical for a better understanding about the cultural studies and its relation with the historiographic dynamics. We also think that the study of the perceptions of Roma identity in regional literature and in news reports allows weights on the dialectical game for the construction of those identities, through the counterpoint of literary, journalistic and oral narratives, perceived as a contest of competing memories. Thus, we studied the identity named Gypsy inside of Bahia, from the mid-20th century and the power relations and dispute between social groups in the region to assertions of memories and identities in the field of culture. Keywords: identity, calon, memory, cultura gitana AGRADECIMENTOS Ter chegado até a este momento de escrita significa afirmar que a superação é possível. Ter sobrevivido para escrever estas palavras é de extrema relevância para quem as escreve. Entendo que, depois de momentos tão dolorosos e incertos, escrever os “agradecimentos” significa a melhor parte, pois faz lembrar que os amigos e os demais colaboradores estão presentes para dar significado a esta tarefa. Desse modo, quero manifestar a minha mais justa gratidão. Este trabalho não é propriedade exclusiva de minha parte, mas um trabalho compartilhado, que contou com diversos colaboradores. Cada um ao meu lado, e ao seu modo, atuando com suas particularidades me apoiaram e me ajudaram até aqui. Agradeço a minha fé em Jeová Deus e em seu filho Jesus Cristo, a qual tem me sustentado cotidianamente. A CAPES- FAPESB- pelo auxilio da bolsa de estudos para o desenvolvimento da pesquisa. Ao Programa de Pós- Graduação em História Regional e Local- PPGHIS que nos apoiou em diversos momentos. A todos da secretaria do mestrado: Andréia, Ane, Hélder e a coordenadora do programa Sara Oliveira. A minha orientadora Nancy Rita Sento Sé de Assis pelo apoio, amizade e dedicação, sempre. Aos meus colegas de turma: Alcides, Alex, Ana Paula, Cristina, Denise, Edimara, Gabriela Bonomo, Gabriela Silva, Joelma, Karla, Letícia, Marcelo, Paulo, Priscila, Rosimário, Willan, agradeço pelos momentos juntos, pelas conversas, principalmente em frente à Universidade, na casa de Cristina, e em sala de aula. Agradeço também a Vilza Mascarenhas, Laís Mascarenhas, Cristina Assis e Nancy pela estadia em suas casas em Santo Antônio de Jesus, sempre que precisei permanecer naquela cidade por conta do mestrado. Aos depoentes que muito fizeram por este trabalho: a família dos Fortuna Rebouças, a Jucelho, a Gilson, a seu Renato Marques, a família cigana dos Almeida Rodrigues. E aos demais que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma. A minha primeira professora Bernadete Moreira dos Santos (Bena). Sou grata também, aos professores da UESC- Universidade Estadual de Santa Cruz, em especial, Adão Ornelas, Carlos José, Carlos Alberto, Clóvis, Elvis Barbosa, Marcelo Lins, Kátia Vinhático e Blume. Ao curso de Especialização em História do Brasil da UESC. A João Cordeiro e a Estela responsáveis pelo CEDOC – Centro de documentação e memória na UESC. E agradeço também a Elenilton, técnico, responsável pelas pesquisas dos jornais, por meio dos computadores, uma generosa pessoa que me auxiliava nos momentos de pesquisa com o jornal na Biblioteca Central do Estado da Bahia. Aos professores da rede pública estadual da cidade de Itabuna que me aceitaram generosamente para estagiar em suas turmas no período da graduação. A escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença- EEITO. Aos professores do mestrado em História Regional e Local: Sara Oliveira, Suzana, Nancy e Raimundo Nonato. Aos amigos: Daniela Almeida, Domingos da Cruz, Egnaldo França, Geninson (Nuno), Girleney, Cristiano e a Berenaldo, que muito me incentivaram para a pesquisa. Aos amigos Jamile Magalhães e Ozimiro que estiveram ao meu lado nos momentos mais difíceis da minha vida: um acidente de carro que ocasionou na morte de minha única irmã Indaiara na manhã do dia 05 de novembro de 2014, um acontecimento inesperado e profundamente doloroso muito perto de minha qualificação dos capítulos desta dissertação. Irmã tão jovem que havia completado 29 anos em tão pouquíssimo tempo, guerreira, que tinha um coração lindo e bondoso, uma referência de filha, de irmã, de amiga, de cristã, de professora e de educadora em Filosofia, a ela presto todo o meu agradecimento, pois é digna. Agradeço a Melissa, uma grande amiga. Perdoe-me aos que não foram lembrados por falha e/ou pela seletividade da memória, mas isso não significa que não são importantes. Agradeço a minha mãe Sabrina e a família. Ao meu Jairo, um companheiro sempre presente e dedicado, o meu jardim está mais florido depois que tu chegaste. E agradeço exclusivamente, a minha irmã Indaiara (*28/10/1985 + 05/11/2014), irmã de luta, de estrada, de sangue e de alma. Obrigada por tudo, te sinto viva em cada palavra que escrevi e que escrevo. SUMÁRIO Introdução 10 1 A literatura e o jornal como fontes de memórias 1.1 Entre contos: os ciganos em “Jorge Medauar conta estórias de Água Preta” 18 1.2 Contando um Conto: Euclides Neto e os ciganos em “O tempo é chegado” 36 1.3 “Tem ciganos na praça”: a presença de ciganos no jornal o diário de Itabuna 51 2 Memória, história e identidade étnica 2.1 A memória entre os ciganos 2.2 A identidade: “Uma correria de ciganos” - visões ciganas e não ciganas em Itabuna e região 55 58 2.3 A tradição: “a pessoa nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição”- 65 A formação dos Fortuna Rebouças 3 Ciganos no interior da Bahia 3.1. Os ciganos no Sul da Bahia 80 Considerações Finais 106 Referências Bibliográficas 107 Fontes 111 INTRODUÇÃO Durval Muniz de Albuquerque Júnior, na primeira parte do livro “história: a arte de inventar o passado”, apresenta a história e a literatura como conhecimentos que podem ser pensados em permanente articulação e diálogo. “Meu objetivo, neste texto, não será separar a História da Literatura, não será encontrar seus limites e suas fronteiras, mas articulá-las, pensar uma com a outra.”1 Nem tampouco, buscará uma formulação conceitual sobre história e literatura, mas a reflexão sobre o relacionamento existente entre elas. Pois, por décadas, a história foi vista como um campo de domínio da razão e a literatura como campo das emoções. Ou seja, “História e Literatura, masculino e feminino”. Albuquerque Júnior nos permite pensar, a partir de suas reflexões, que os campos de conhecimento não estão fechados em si mesmos, e que a literatura, por vezes trabalha em busca do “real” na tentativa de relatar uma dada “realidade”, logo, poderíamos também pensar que a mesma pode nos oferecer um sentido histórico, o que rompe com uma mentalidade histórica sobre os estudos literários que entende a literatura como um campo exclusivo de conhecimento ficcional. Desse modo, chega-se a conclusão de que, assim como a literatura é capaz de produzir conhecimentos históricos de uma determinada realidade, a história também pode elaborar sentidos literários sobre o passado que se busca conhecer. Essa mudança de perspectiva e, por que não dizer, com relação a história e a literatura, acaba provocando reflexões sobre os próprios campos conceituais, e abrando, de ambos os lados do conhecimento, importantes chaves de diálogos e discussão, como a que pretendemos realizar nesse estudo que, em parte, tem a literatura como referência de apoio e análise. Literaturas sobre ciganos nos levaram a alguns estudos literários regionais, que retratam a presença de ciganos em algumas cidades do interior da Bahia. Logo, entendemos que as reflexões de Albuquerque Júnior fazem todo sentido, por nos fazer 1 ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz de. A hora da estrela: história e literatura, uma questão de gênero?. In: História : a arte de inventar o passado. Edusc, Bauru- SP, 2007. p 43-51. 10 pensar nesta relação entre história e literatura para compreender os modos de construção da realidade do passado. Os ciganos que se autodenominam da etnia calon são os principais sujeitos deste estudo. Sem dúvida, a escolha do tema se deu sob a influência de Michael Pollak em sua afirmação de que “os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.”2 O interesse sobre o estudo de ciganos começou a partir de 2009 em algumas cidades do interior da Bahia, particularmente nas cidades de Itabuna e de Ubatã, ambas pertencentes ao interior do sul da Bahia. Em grande a temática ganhou mais força pela relativa ausência de pesquisas historiográficas sobre as comunidades ciganas, ainda mais no âmbito local. Além desse fato, ter tido contato direto com uma família cigana, os Fortuna Rebouças, na cidade de Itabuna, não só fortaleceu as observações e os diálogos sobre a identidade cultural dos ciganos, como também potencializou novos contatos com outros ciganos pertencentes ou não à mesma família em outras cidades do interior da Bahia. Fizemos entrevistas gravadas e filmadas com parte da família, a partir de roteiros pré-estabelecidos, permitindo a retenção e manutenção da fala, dos gestos e das expressões dos depoentes. Concordamos que a transcrição3 é também uma transcriação, um conceito que, segundo Meihy, é “uma mutação”. Logo, as transcriações dos depoimentos que fizemos permitiram interpretações e o confronto entre as narrativas orais e outras fontes. Hoje consolida no campo da historiografia, particularmente enquanto metodologia de abordagem, a história oral que tem se colocado como procedimento de inegável credibilidade para a construção do conhecimento histórico. Nesse sentido, realçamos que a fonte oral foi de fundamental importância para a história do próprio grupo, sendo a narrativa um meio de valorização da memória e do fortalecimento da identidade, tanto individual quanto coletiva desta família cigana local. Todavia, considerando a ponderação de Delgado, segundo a qual “na verdade, nenhuma história, conquanto processo e construção da trajetória da humanidade ao longo do tempo, é 2 POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989. p. 3-15. 3 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História Oral: como fazer, como pensar. Ed: Contexto. São Paulo, 2010. p. 133-175. 11 oral”.4 Entendemos a construção dessa história enquanto um processo que não se diz exclusivo de uma história oral, por pensar que essa produção se faz por meio da complexidade do depoimento e de seu registro. Afinal, a história oral é um “procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História.”5 Nesse sentido, Lucília Delgado nos leva a refletir sobre a História Oral enquanto um procedimento metodológico que guarda certas armadilhas, quando pensamos a mesma como metodologia desprendida do registro documental, a história oral não significa a história que se viveu, mas a história da história vivida e experimentada. Desse modo, a história oral enquanto procedimento metodológico passa por vários processos, sendo um deles a interpretação do sujeito que se lembra da história, vivida ou não vivida por ele; outro, a interpretação por parte de quem ouve a narrativa de quem relata o vivido. E por fim, uma produção de registros de depoimentos sobre a história da história do que se lembra do que se viveu para daí então serem acrescentadas outras leituras por parte do historiador para a construção de outras histórias.“Finalmente, recorre à memória como fonte principal que a subsidia e alimenta as narrativas que construirão o documento final, a fonte histórica produzida.”6 A narração por si só detém sua própria interpretação e significado, como explica Walter Benjamin. Nesse sentido, percebemos que a “arte da narrativa” serviu como uma espécie de resgate da cultura cigana e reafirmação da mesma. Aqui também lembramos Portelli ao nos fazer refletir que devemos levar em consideração a presença da subjetividade7 contida nas fontes, sem deixar de considerar a intersubjetividade para a análise histórica dos fatos na composição identitária de uma categoria social. Do mesmo modo lembramos Pierre Nora quando afirma que, “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”, observamos que a narrativa dos Fortuna Rebouças se apresenta como expressão da memória e identidade individual e coletiva daquele grupo familiar, considerando ainda conforme Nora, que para sobreviver, a 4 DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In. História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 15. 5 Idem. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In: História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 15. 6 Op. cit. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In: História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 16. 7 Ver o texto - O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”. In: Usos e Abusos da História Oral. Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV, Rio de Janeiro, 2001. 12 memória precisa de ritos, ordenações e práticas de lembranças, dentre as quais se destaca a oralidade. Isto por que, “o que nós chamamos de memória, é de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de lembrar”.8 Segundo Beatriz Sarlo “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem libera o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum.”9 Bem sabemos quão importante é a experiência e o quanto ela acrescenta ao testemunho, e aqui cabe lembrar que entre os ciganos, por serem de culturas tradicionalmente orais, prevalecem as memórias de experiências. Desse modo, seu testemunho descreve outras vivências que muito embora, sejam experiências de seus antepassados são incorporadas às suas próprias experiências, existindo, portanto, uma reelaboração de memórias e de experiências. Outras fontes também foram consideradas no diálogo com a oralidade, tais como: fotografias; registros de nascimentos e de casamento; livro de estudo genealógico pertencente à família dos Fortuna Rebouças; jornal O Diário de Itabuna das décadas de 1980 e 1990 e o jornal A tarde entre as décadas de 1970 a 1990. Por fim, salientamos que, utilizamos métodos de investigação junto à Família Fortuna Rebouças e a outros ciganos. Além desses, ampliamos o conjunto da nossa fonte oral, entrevistando pessoas não pertencentes à etnia cigana da cidade de Ubatã. Realizamos esta metodologia por acreditarmos que é possível apreender dimensões de interatividades entre ciganos que vivem na cidade de Itabuna e de Ubatã junto à comunidade não cigana dessas cidades, por meio das próprias entrevistas realizadas junto ao núcleo familiar escolhido, bem como através da análise documental dos jornais já citados. Nosso intuito foi colocar as informações obtidas junto aos jornais em diálogo com os depoimentos. Existem carências de estudos sobre os povos ciganos da Bahia, sobretudo sobre o seu interior. Em nossas pesquisas, encontramos na biblioteca da Universidade Estadual 8 NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: CEDUC, n. 10, dezembro,1993. p. 9 -15. 9 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das letras, Belo Horizonte, UFMG, 2007. p. 24,25. 13 de Santa Cruz-UESC (Ilhéus/Bahia)10 apenas uma dissertação de Mestrado em História Social, chamada Caminheiros do Destino11 escrita por Sônia Maria Ribeiro Simon Cavalcanti, e uma obra já clássica denominada Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos, escrita por Mello Moraes Filho12 pioneiro em estudos sobre ciganos no Brasil. Localizamos também um trabalho de conclusão de curso em Pedagogia para o Ensino da Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, escrito por Lidiane Batista de Oliveira, denominado Representação Social entre os Povos Ciganos e a Escola.13 Porém, este trabalho não está disponível na Biblioteca da UESC. Por fim, foi possível encontrar alguns artigos em periódicos no site da própria Universidade. Além da pequena quantidade de trabalhos, tratando sobre a cultura dos povos tradicionais ciganos, apenas a dissertação de mestrado em história, de Sônia Cavalcanti, aborda os ciganos na região sul baiana. Logo, estes estudos não dão conta de explicar a diversidade étnica dos povos ciganos existentes naquela região. Além da biblioteca da Universidade supracitada, encontramos algumas leituras de autores que discutem as questões da cultura cigana, apontam para a presença de ciganos em território brasileiro desde o século XVI, aproximadamente no ano de 1574, como salientam: Melo Moraes Filho; Ático Vilas Boas da Mota; Frans Moonen; Rodrigo Corrêa Teixeira; Geraldo Pieroni e Cristina da Costa Pereira. Lemos também, as obras de Charles Godfrey Leland; D. H. Lawrence; Isabel Fonseca; Maria de Lourdes Santana; Nicole Martinez; Oswaldo Macêdo e Pierre Derlon, entre outras, que fazem referências aos ciganos no Brasil e na Europa. Entretanto, ainda pouco se sabe sobre a história, a identidade e a cultura dos ciganos, que viveram e vivem no interior da Bahia, bem como sobre as contribuições socioculturais desse povo para a formação das identidades baianas. Portanto, não 10 A biblioteca da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC é referencial para quem deseja estudar as histórias dos municípios e de seus sujeitos na região onde fica localizada: sul da Bahia. Cabe observar que este levantamento bibliográfico foi realizado entre os anos de 2008 a 2013. 11 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Caminheiros do Destino. São Paulo: Dissertação de Mestrado Apresentada ao Programa de Estudos Pós- Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica/SP, outubro de 1994. 12 MORAES Filho, Mello. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. Ed: Itatiaia: São Paulo, 1981. 13 OLIVEIRA, Lidiane Batista de. Representação Social entre os Povos Ciganos e a Escola. Ilhéus: Monografia: trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, junho de 2010. 14 podemos contar com um número significativo de trabalhos acadêmicos que discutam os ciganos na Bahia como sujeitos históricos. O desafio de enfrentar a carência de estudos e de fontes sobre os ciganos no interior da Bahia remete a reflexões no sentido de pensar em uma tentativa de esquecimento, silêncio e negação sociocultural dos ciganos para a formação das identidades locais da Bahia e do interior. A deficiência de estudos sobre a história e a cultura dos povos ciganos na região não é uma exceção. Notamos uma fragilidade na quantidade de trabalhos acadêmicos no geral sobre o assunto, sobretudo, na área de História. O antropólogo Frans Moonen revela que: ao iniciar as pesquisas ciganas em 1992 [não encontrou] um único livro sobre ciganos nas bibliotecas da Universidade Federal da Paraíba. Adquirir uma razoável bibliografia cigana nacional e internacional levou anos e custou bastante dinheiro.14 Contraditoriamente, apesar da quase inexistência de trabalhos sobre ciganos na referida região, a presença de ciganos e grupos de ciganos nas cidades do interior é bastante comum. Embora quase sempre sejam vistos como sujeitos de admiração, surpresa, preconceito e medo pelos não ciganos.15 Em nossa compreensão, tais grupos e sujeitos constituem uma das dimensões socioculturais destas cidades, compondo parte de sua história, apesar da insuficiência de estudos. Tomamos como referência literária o livro O tempo é chegado (2006), de Euclides José Teixeira Neto (1925 - 2000), ex-prefeito de Ipiaú (1963 - 1967), cidade localiza na região cacaueira. Particularmente o conto intitulado “Os Ciganos”. Antes de iniciar o conto, Euclides José Teixeira Neto dedica o texto ao escritor Jorge Emilio Medauar (1918 - 2003), que nasceu em Água Preta do Mocambo, “sede do então distrito de Ilhéus, hoje cidade e município de Uruçuca” (REVISTA AGULHA, 16/06/2003), também localizada no sul da Bahia – região cacaueira. Aqui também 14 MOONEN, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: 2011. p. 7. Entre as cidades da região que realizamos entrevistas, destacamos as que possuímos mais contato com ciganos em ordem decrescente: Ubatã, Itabuna, Ipiaú, Ilhéus, Camaçari, Feira de Santana, Santo Antônio de Jesus e Salvador. 15 15 analisamos a obra de Jorge Emílio Medauar intitulada Jorge Medauar conta estórias de Água Preta (1975).16 Ao analisar essas obras problematizamos o que levou os autores Jorge Medauar e Euclides Neto a selecionarem justamente os ciganos para fazer parte de seus livros de contos e quais foram os lugares reservados a eles naquela literatura regional. No primeiro capítulo -“A literatura e o jornal como meios de memória”buscamos ponderar sobre o lugar reservado aos ciganos na literatura dos autores regionais Jorge Emílio Medauar e Euclides Teixeira Neto e também a presença dos ciganos nos jornais de Itabuna e região. No segundo capítulo -“A pessoa nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição” - apresentamos a história e a formação de um grupo familiar cigano na cidade de Itabuna, a partir da segunda metade do século XX. Metodologicamente, trabalhamos os textos literários e/ou jornalísticos, aliás como qualquer outra fonte – como leituras do real que não podem ser desvinculados do contexto em que foram produzidos. Ou seja, as narrativas literárias e jornalísticas oferecem vestígios sobre os acontecimentos e experiências dos ciganos na região e acerca daqueles que se expressam através de seus escritores, leituras e versões, permitindo a construção de um conhecimento sobre o passado dos ciganos, pois, como bem assinala Walter Benjamin ao afirmar que, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”17 E no terceiro capítulo – “Ciganos no interior da Bahia”- Brevemente, apresentamos os ciganos a partir do jornal A tarde para então, versar algumas reportagens do próprio jornal junto a entrevistas, no sentido de possibilitar uma aproximação ou não entre os discursos envolvendo ciganos, afim de, perceber os contrastes e suas as complementações. Assim, ao estudar os textos literários e jornalísticos como vestígios e/ou reminiscências, estivemos atentos à premissa de que 16 Procuramos também, um livro de contos do mesmo autor com o título, O dinheiro do cajú: O cigano – Contos: Angola – Brasil. Colecção Imbomdeiro, 1963. Porém, não foi possível a aquisição da obra pela sua indisponibilidade em bibliotecas e sites virtuais e livrarias. 17 BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Coleção Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural, 1985. p. 224. 16 a única garantia no trabalho historiográfico, bem como seu limite, é que as coisas tenham acontecido e deixado vestígios: a história é uma ideia limite do que nós podemos conhecer. Você só pode conhecer do passado e do presente aquilo que o passado e o presente deixou e deixa.18 Dessa perspectiva, ponderamos sobre as intencionalidades dos escritores aqui em debate, sem perder de vista o fato de que ambos, ao se dedicarem à escrita de contos, servindo a um tempo e a um espaço socioeconômico, político e cultural específico, aproximaram-se do ofício do historiador. Um dos principais objetivos deste estudo se fundamenta a partir, de reflexões sobre a identidade de sujeitos denominados ciganos em algumas cidades do interior da Bahia. Refletir sobre estas identidades através dos discursos literários e jornalísticos como veremos a seguir no primeiro capítulo deste estudo implica pensar sobre as tentativas dos escritores Euclides Neto e Jorge Medauar na construção de discursos de identidades, percebidas tanto na literatura de ambos, como nas matérias de jornais sobre a presença de ciganos na região. Desse modo, este estudo permite ponderar sobre a cultura de um povo, sua identidade e seu modo de vida, a partir da trajetória de uma família de ciganos na cidade de Itabuna no interior do sul da Bahia. Visamos assim, apreender melhor as suas identidades individuais, familiar e de grupo, para pensar aquelas identidades e aquela cultura enquanto elementos entrelaçados em uma história que não se restringe à história local. Pensamos naqueles sujeitos enquanto sujeitos relacionais que participam da dinâmica de uma sociedade, dando suas contribuições para os diversos âmbitos da sociedade. Este estudo espera dar a sua contribuição ao conhecimento histórico, visando romper com os silêncios de uma historiografia que durante anos manteve-se afastada da história de um povo historicamente presente na sociedade nacional, baiana e interiorana. Um trabalho como este pretende mostrar a resistência sociocultural, histórica e familiar dessas comunidades. 18 DE DECCA, Edgar. “O estatuto da história”. In: Revista Espaço & Debate. 34: Cidade e História. São Paulo: NERU, 1991. p. 7. 17 A Jorge Medauar Há trint’anos (tanto corre O tempo) escrevi a poesia Onde disse que fazia Meus versos como quem morre. Ainda não eras nascido. Agora, orgulhosamente Moço, ao poeta velho e doente Parodiaste destemido: Das batalhas em que estive É o suor que em meu verso escorre! Tu o fazes como quem morre: Eu o faço como quem vive! Façam-no como quem morre Ou quem vive, que ele viva! Vive o que é belo e deriva Da alma e para outra alma corre. Verso que dela se prive, Ai dele! Quem lhe socorre? Nem Marx nem Deus! Ele morre. Só o verso com alma vive. Deste ou daquele pensar, Esta me parece a reta, A justa linha do poeta, Poeta Jorge Medauar! (Poema de Manuel Bandeira – publicado em “Mafuá do Malungo” em 1945) 18 A LITERATURA E O JORNAL COMO FONTES DE MEMÓRIAS 1.1 - ENTRE CONTOS: OS CIGANOS EM JORGE MEDAUAR CONTA ESTÓRIAS DE ÁGUA PRETA Jorge Emílio Medauar nasceu em 15 de abril de 1918 em Água Preta do Mocambo, Distrito de Areia, atual Uruçuca, no estado da Bahia. Era filho de Emílio Medauar e Maria Zaidan Medauar, imigrantes árabes.19 Quando ainda menino mudou-se para São Paulo com a família. Faleceu em 03 de junho de 2003 na mesma cidade de São Paulo. Teve forte presença em antologias, enciclopédias e dicionários. Sua vida social, profissional e como escritor foi marcada pela qualidade de suas atribuições. Foi membro da Academia de Letras de Ilhéus/Bahia e membro da Academia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil em São Paulo. Fez parte de várias Associações e de Sindicatos. Foi por duas vezes diretor Cultural da Associação Paulista de Propaganda e duas vezes presidente da Comissão de Relações Públicas e Comunicação da Associação Cristã de Moços. Pertenceu ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo e foi membro da União dos velhos jornalistas e membro da União Brasileira dos Escritores. Compôs o Corpo Deliberativo do Conselho Estadual de Cultura, da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo de São Paulo. Foi membro da Associação Brasileira de Crítica Literária e membro do Sindicato dos Escritores do Estado de São Paulo. Como jornalista, foi presença destacada em vários setores, transitando entre os principais jornais da capital paulista, conselhos e o exercício da docência. Colaborou 19 Os dados biográficos do autor foram retirados da obra Jorge Medauar em prosa e verso organizada por Maria Odete, Maria Matilde e Jorge Medauar Júnior, editada pela Editus. Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, em 2006. 19 com o “Correio do Povo”; Rio Grande do Sul; “Gazeta de Moema”, de São Paulo; e atuou como editor de Literatura da Revista “Afinal”, também de São Paulo. Membro do Conselho Editorial da Revista de Estudos Árabes e Secretário da Revista Literatura entre outros cargos profissionais. Ocupou o cargo de diretor geral de “O Globo”, Sucursal de São Paulo e foi diretor e professor da Escola Superior de Propaganda também em do mesmo estado. Entre suas obras citamos: Chuva sobre a tua Semente, 1945, poemas; Morada de Paz 1949, poemas; Prelúdios, Noturnos e Temas de Amor, 1954, poemas; Às Estrelas e aos Bichos, 1956, poemas; Água Preta, 1958, seu primeiro livro de contos; Histórias de Menino, 1961; A Procissão e os Porcos, 1962, contos; O Incêndio, 1966, contos; O Visgo da Terra, 1996, romance; entre outros trabalhos. Em 1959 Medauar ganhou a mais importante premiação literária brasileira, o Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara Brasileira do livro, pela produção da obra de contos Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Porém, apesar de todas suas atividades e obras, sendo um dos maiores escritores da região do sul da Bahia, encontramos dificuldade em pesquisá-lo em fontes jornalísticas locais. Fazemos esta observação sem aprofundá-la porque não é objetivo deste estudo analisar as relações entre os escritores locais e a dinâmica sociocultural regional que, muitas vezes, ignora alguns destes autores. No conto “O cigano”, que faz parte do livro Jorge Medauar conta estórias de Água Preta, o escritor apresenta de forma descritiva não só o tratamento que “O Cigano” dá a suas mercadorias, mas também, o cenário no qual a narrativa se desenrola. A história, tendo como palco Água Preta do Mocambo, atual Uruçuca, desenrola-se na cidade tendo como pano de fundo o comércio. Assim, a trama literária de Jorge Medauar, bem como de Euclides Neto, como veremos adiante, se passa no interior do sul da Bahia. É nessa região que os ciganos aqui estudados viveram, e ainda vivem suas experiências históricas enquanto sujeitos e grupo étnico. E, nesse sentido, dada a universalidade da presença cigana, a abordagem aqui proposta só pode se identificar com uma História dita local tendo como perspectiva o proposto por José de Assunção 20 Barros para quem a história local/regional é uma das abordagens historiográficas que está presente em todo o modo de fazer história. uma história, entre outros adjetivos, será uma ‘história local’ no momento em que o ‘local’ torna-se central para a análise não no sentido de que toda história deve fazer uma análise do local e do tempo que contextualiza os seus objetos, mas no sentido de que o ‘local’,uma cultura ou uma política local, uma singularidade regional, uma prática que só se encontra aqui ou que aqui adquire conotações especiais a serem examinadas em primeiro plano.20 Sobre a mesma questão Júlio Aróstegui também é uma referência quando discute sobre a natureza do conhecimento histórico, a teoria e o método da pesquisa histórica, no sentido de compreender melhor o modo de fazer história. Um deles é pensar uma história que se diz local, mas que está entrelaçada ao global. Quer dizer, a história de uma sociedade reúne em si todas as atividades que os homens realizam e que estão entrelaçadas de forma indissolúvel. A história de todas as sociedades do mundo, por sua vez, se encontra também entrelaçada, ou tende a estar. Dessa forma, a História é sempre global.21 Ainda pensando sobre a história, vale destacar Pierre Nora no texto “Entre Memória e História: A problemática dos lugares”, que afirma que a história “é uma reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”. Desse modo, entendemos que essa história reconstruída a partir das memórias dos autores regionais e dos textos jornalísticos, nada mais é que uma batalha entre memórias e história, pois concordamos com as colocações de Nora que, aponta que a memória e a história estão “longe se serem sinônimos”. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações 20 BARROS, José D´ Assunção. O lugar da História Local na expansão dos campos históricos. In. Conferência para o I Encontro de História Local/ Regional da UNEB, novembro, 2009. p. 231. 21 AROSTÉGUI, Júlio. História e Historiografia: os fundamentos. In. A pesquisa histórica: teoria e método: Edusc. Bauru, São Paulo, 2006. p. 95. 21 sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações.22 Para Nora, a história opera com “um criticismo destrutor de memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir.” Com base em Pierre Nora e Márcia Motta, entendemos que a memória é um fenômeno atual e que não possui compromisso direto com a criticidade, já a história “busca uma representação crítica do passado, o que não elimina, porém, o perigo de o historiador incauto apenas restaurar memórias”. Concluímos, com as reflexões de Nora e Motta, que a história, além dessas definições, é “uma operação intelectual que, ao criticar as fontes, construí-las à luz de uma teoria, realiza uma interpretação na qual o que importa não é só a noção de um consenso, mas também a do conflito.”23 O “trabalho de enquadramento da memória”24, conceito de Henry Rousso, retomado por Pollak no texto “Memória, Esquecimento e Silêncio”, revela que este trabalho de enquadramento se alimenta do material fornecido pela história”. Mas, é interessante pensar também que o trabalho literário, assim como o histórico fornecem materiais para a construção de um trabalho de memória enquadrada, que pretende se firmar enquanto memória oficial de uma coletividade. Pollak conceitua a memória, como uma “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar”25, essa operação é dada pela seletividade dos fatos e personagens que devem participar de uma memória coletiva e de uma história nacional, regional e local. Nesse processo, os grupos de ciganos e outras minorias étnicas têm sido historicamente excluídos de uma memória oficial, geralmente liderada por grupos 22 NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. In. Projeto História. São Paulo: CEDUC, n. 10, dezembro,1993. p. 9 -15. 23 MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História, memória e tempo presente”. In. Novos domínios da história: Elsevier. Rio de Janeiro, 2012. p. 24-26. 24 ROUSSO Henry.“A memória não é mais o que era”. In: Usos e Abusos da História Oral. In: Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV. Rio de Janeiro, 2001. 25 POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989. p. 9. 22 opostos aos grupos ciganos apesar da presença cigana no Brasil remontar ao século XVI. Sem dúvidas, a questão perpassa pelo preconceito acerca da cultura dos ciganos, provocado pelo desconhecimento que desdobra na ignorância sobre aqueles sujeitos em seu modo de vida. Voltando ao conto de Jorge Medauar, em todo texto o escritor atribui importância à sabedoria (o conhecimento) e à experiência adquirida nas viagens reais que o Cigano realizou e realizava. Isto permitia aos “da terra”, ou os “tabaréus”, experimentarem viagens de pensamento de maneira diferente, uma viagem ficcional. O Cigano apresentado por Medauar é um personagem dotado de sentimentos e de princípios. Em sua escrita, o autor demonstra respeito e admiração pelo cigano criado por ele, um indivíduo que encarna a experiência e a sabedoria, entre a arte da negociação e a arte da convivência sociocultural em Água Preta. O conto inicia desta maneira: Amarrou a montaria na Praça e começou a arrumar as bugigangas no chão. Primeiro abriu a esteira, depois foi distribuindo chocolateira com chocolateira, caneco com caneco, fifó com fifó, cuscuzeira com cuscuzeira. Num instante a esteira se cobriu de mercadoria. No meio, uma pilha de bacias esmaltadas, uma por dentro da outra, subindo em pirâmide, as grandes por baixo, afinando em cima com as pequenas. A esteira estava bem sortida de lamparinas, canecos, caçarolas, bules, frigideiras. Quando viu que tudo estava como queria, ajeitou o tamborete de três pernas, sentou-se. Ainda era muito cedo para principiar a vendagem. A manhã mal havia nascido, com os primeiros animais chegando, balançando os caçuás carregados de farinha, frutas, rapadura, legumes para a feira do sábado. Como não quis ficar sem fazer nada, abriu um livro e na luz dos primeiros pingos de sol pegou a ler.26 O escritor, além de descrever a diversidade de mercadorias do Cigano, traz uma informação importante: este cigano era um “Cigano instruído”. Dominava a leitura e o 26 MEDAUAR, Jorge Emilio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 58. 23 poder da experiência, vivenciada no momento de barganhar na feira em Água Preta, tinha prática de vendas de mercadorias e sabia contar casos e estórias como ninguém. Aquele homem unia o conhecimento dos livros ao conhecimento da experiência adquirida nas relações que estabelecia na feira da cidade de Água Preta. Porém, saber ler e escrever não era e, ainda não é, uma prática comum entre os ciganos, que tradicionalmente, se constituíram enquanto um povo de cultura ágrafa. Todavia esse fato não significa dizer que a ausência de uma educação formal entre os povos ciganos faça parte de um traço cultural daquela etnia. Entendemos que, o cigano personagem de Medauar domina o exercício de leitura e de escrita, o que nos leva a crer na existência de brechas e exceções no conjunto de uma maioria de ciganos analfabetos. A questão da escrita e da leitura tem ganhado um maior espaço entre as famílias ciganas, sobretudo no final do século XX e do século XXI. Porém, são poucos os ciganos que conseguem uma educação escolar e universitária de qualidade, que respeite suas tradições culturais e o seu estilo de vida. Jucelho Dantas da Cruz foi uma dessas exceções.27 Professor da área de Agronomia na Universidade Estadual de Feira de Santana na cidade de Feira de Santana, município do interior do estado da Bahia, que se autodenomina cigano, relata sua experiência como professor cigano naquela instituição. Quando a gente se identifica como cigano aonde quer que seja, choca muito, aqui na universidade mesmo, eu faço questão em me identificar como cigano para todas as turmas que começo a dar aulas e quando eu vou me apresentar como professor da disciplina, e vou apresentar um pouco do meu currículo, eu falo da minha formação e também da minha origem, e a gente ainda vê um pessoal dando uns pulinhos da cadeira, muito também por não ver um cigano dentro da academia estudando ou sendo professor, dando aulas dentro de uma universidade, eu acho até certo ponto natural, não a discriminação, mas o espanto por ver um cigano dando aulas, porque realmente, não é muito comum ver ciganos que têm uma formação acadêmica, um nível superior, dando aula, trabalhando ou exercendo uma profissão. 27 Entrevista realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014 com duração entre 01 hora e 42 minutos, aproximadamente. Jucelho Dantas da Cruz participou da abertura da ANPUH (Associação Nacional dos Profissionais em História) realizada na Universidade Estadual de Santa Cruz em 2012, evento que marca pela primeira vez a participação de um cigano professor contando sobre a história do povo cigano naquela universidade. 24 Seria fantástico, seria maravilhoso se todos os ciganos tivessem condição de estudar, de se formar, de ter uma profissão.28 A relação entre formação escolar escolar e/ou acadêmica e afirmação de identidade é comum a diversos grupos, particularmente os étnicos e as chamadas “minorias”. Ser cigano e ter uma formação acadêmica, como no caso do professor Jucelho, o faz atuar como militante de seu povo, reforçar sua identidade e sentimento de pertença. Além disso, a forma como os outros ciganos os vêm não é unânime, enquanto uns declaram sentimentos de satisfação por ter um cigano como representante de seu povo em um lugar de prestígio social e cultural; outros expressam opiniões contrárias que revelam receios da perda de seus elementos culturais. O contato direto e permanente com os não ciganos, em uma escola ou em uma instituição de ensino superior, significa para alguns ciganos uma transgressão cultural. Em muitos casos, não somente os pais proíbem seus filhos e filhas de darem continuidade à vida escolar. As mulheres, por exemplo, quando ainda muito jovens, expressam o desejo de continuar estudando, elas logo são impedidas pelos próprios pais ou pelos maridos. As mulheres devem viver exclusivamente para a vida doméstica e os homens precisam desde muito cedo aprender a negociar e cuidar da vida financeira da família. Assim, no contexto dos destinos traçados para os jovens ciganos, a escola e a universidade não correspondem à dinâmica da vida social e cultural de muitas famílias, não restando, portanto, alternativa, senão abortar o desejo de continuar os estudos. Para seu Gerisnal Fortuna Rebouças - chefe familiar da Família cigana Fortuna Rebouças em Itabuna e parente próximo de Jucelho Dantas da Cruz, a quem inclusive faz referência nesse momento, “o cigano é muito difícil pra formar, ele não interessa, vive para eles, não trabalha pra ninguém. Entendeu? Eu tenho uns três a quatro primos que é formado.” Sobre a escolaridade entre as mulheres ciganas, seu Gerisnal Rebouças é categórico: “a mulher cigana não pode formar, antigamente, o pessoal tinha aquele carracismo velho pra não escrever pra namorado, pra não misturar a família, pra não casar com pessoa que não seja cigano”. 28 Entrevista realizada com Jucelho Dantas da Cruz, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana em Feira de Santana, 2014. 25 Tanto na narrativa do chefe familiar, seu Gerisnal Rebouças quanto na do professor Jucelho fica bastante claro que a permanência na escola entre os ciganos é motivo de exclusão e rejeição, tanto para homens como para mulheres, com muitas implicações e consequências na vida do indivíduo cigano com maior grau de escolaridade. Todavia, o que muitas vezes é visto como um traço cultural entre as comunidades ciganas não passa de uma incompreensão da cultura do outro, pois existem outros empecilhos à frequência escolar desses povos como, por exemplo, a compatibilidade de horários entre o trabalho informal e o horário da escola, a inexistência de escolas itinerantes ou, ainda escolas preparadas com professores ciganos para dar continuidade ao processo de escolarização de crianças e adultos nômades. Diante desses e outros impasse, “para os ciganos, o que o outro fala ainda tem muito peso, eles vivem muito em função do que os outros pensam.” O “outro”, significa, outro cigano. Segundo Jucelho, alguns ciganos pensam da seguinte forma: eu não vou deixar minha filha estudar, porque os outros vão falar que minha filha virou puta porque está estudando, daqui a pouco ela vai estar namorando, ela vai estar aprendendo a ser livre. De alguma forma eles têm a noção disso que vai estar proporcionando uma certa sabedoria, de poder de discernimento do certo e do errado, ou de que é positivo e do que é negativo. Então por isso acho que eles têm essa resistência, por isso que as ciganas não estudam muito. Os ciganos têm uma formação muito machista, então eu já não aceito, é da cultura do cigano ser machista, é um traço da cultura que eu não concordo. As ciganas não aceitam se vestir de uma outra forma, com uma roupa comum, com calça jeans e blusa, eu não acho que é a roupa que vai fazer ela ser ou não ser cigana. Infelizmente isso é muito comum entre os ciganos. Tem melhorado muito, os tempos estão outro, as coisas estão mudando de forma mais acelerada, mas é muito comum ainda , o homem, o cigano ter a esposa como objeto dele. Muito embora quando eu não estava com esse pé fora da família, vivia ali, não estava estudando ainda, porque eu comecei a estudar muito tarde com quinze anos, fosse normal isso, é pela ignorância, por não perceber isso, tudo isso é um absurdo, você tratar seres humanos dessa forma, apenas muda o sexo, que um é homem e outro, mulher e tratar de forma tão diferente.29 Surgem portanto, algumas questões de gênero, envolvidas nas práticas e relações cotidianas entre homens e mulheres. Questões dessa natureza se apresentam como mais uma das inúmeras leituras que podem ser feitas a respeito da história dos povos ciganos 29 Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014. 26 no Brasil. Todavia, embora não ignoremos sua importância para a compreensão de uma lógica de poder entre os indivíduos e famílias desses povos, as relações e/ou questões de gênero não serão discutidas aqui. Voltemos, pois ao cigano descrito por Medauar que entre leituras e histórias, continua o trabalho estratégico na venda de suas mercadorias. Tabaréus passando, dando “bom dia”. O cigano respondia com um balanço de cabeça, sem arredar os olhos do livro. Alguns paravam, examinavam em silêncio a mercadoria. Quando o freguês demorava mais, os olhos levantavam da página, pousavam um instante no comprador. Com um simples olhar sabia quem era de compra e quem era apenas curioso, perguntador de preços. Se valesse a pena, cortava a leitura: dobrava a ponta da página, pousava o livro sobre uma caçarola emborcada, levantava-se para atender. Raras vezes se enganava. Raras vezes deixava de vender, quando descobria o bom comprador e quando fazia empenho. Ninguém por ali vendia melhor. Muitos donos de loja iam ver, se admirar de seus recursos. Tinha um jeito diferente de vender: deixava para um lado o preço das coisas, pegava de conversas. A palavra mansa, descansada, fugindo do assunto para casos que não tinham nada a ver com a qualidade do artigo, o preço, a utilidade. Sabia que os tabaréus gostavam de ouvir histórias passadas no outro lado do mundo. Então pegava um caso, emendava com outro, envolvendo a atenção do tabaréu. Fazia gosto ouvi-lo, a palavra como água de riacho escorrendo manso, levando a esquecer o eito duro do cacau, o suor de muitos dias pingando debaixo de sol, a mão engrossando no cabo do facão, na enxada que ia e vinha, trazendo sustento sofrido de todos os dias. Deixavam o tempo passar, entretidos naquela rede de balanço.30 Medauar atribui ao Cigano um jeito próprio de negociação por estar o Cigano atento aos desejos alheios, no caso, “dos tabaréus.” O escritor mostra o jeito de falar daquele homem bem como a sua sensibilidade, por que percebia que “os tabaréus gostavam de ouvir histórias passadas no outro lado do mundo” como sendo também um dos fatores que contribuíam para a eficiência no momento da barganha. Tanto era assim que “suas histórias pegavam, seu jeito capenga de falar parece que tinha visgo”. O Cigano fazia as pessoas caírem “na maciez da fala.” 30 Idem. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 58-60. 27 Além disso, o cenário social e econômico apresentado por Medauar era de trabalho duro nas lavouras de cacau e aqueles momentos entre barganha e estórias serviam como distração para muitos trabalhadores rurais. Para o professor Jucelho, os ciganos, “mesmo quando ficavam parados durante algum tempo em determinado local, nunca foram de trabalhar assalariadamente mesmo se tivesse oportunidade”. Como convivíamos em situações difíceis nas roças de cacau, naquelas fazendas de cacau bem no interior daquelas matas, onde muitas vezes nem acesso a carros se tinha, era somente andar de animais, mesmo. E naqueles locais tinha oportunidade de trabalho braçal, de trabalhar em roça de cacau, trabalhar como tropeiro, ou fazendo algum serviço dessa natureza para os fazendeiros. Mas, os ciganos eles sempre, devido a forma que os fazendeiros tratavam seus empregados, quando eles viam a forma do tratamento, como se fosse o dono da pessoa, era como um regime escravista, praticamente, onde o empregado era submetido a tudo que o fazendeiro queria. Então, os ciganos não se sujeitavam muito áquele tipo de trabalho, nem entre si, os ciganos não aceitavam muito um tratamento impositivo, como por exemplo, você tem que fazer assim, ou assado, ou, eu estou querendo que seja assim... Então, eles têm muito essa dificuldade de aceitar, apesar de aceitar que tenham um líder, tenha um representante que falem por eles frente a autoridades, como é muito comum ter entre os ciganos, chamados chefe dos ciganos da região cacaueira.31 A narrativa de Jucelho, sobre a dificuldade de alguns ciganos se manterem ligados pelos vínculos de trabalho com os não ciganos na condição de empregados dialoga com a atitude do cigano personagem de Medauar, quando o mesmo é convidado a firmar um compromisso de se tornar empregado da loja de João das Neves. Um dia, seu João das Neves apostou que o cigano seria seu caixeiro. Anunciou a todo mundo que dobraria o peregrino. O cigano em sua loja de ferragens seria capaz de quebrar o comércio das outras lojas. Foi assim que seu João lhe ofereceu passadio, moradia e um ordenado nunca visto. Mas quando foi contratar o serviço, o cigano, na frente de todo mundo, só fez balançar a cabeça e ficar sorrindo: não havia dinheiro no mundo que amarrasse seus pés num lugar, disse. Queria montar seu animal, armar sua tenda em qualquer canto. Onde tivesse, comeria. Onde chegasse, aí dormia. Gostava era de bater estrada, vendo os matos, ouvindo os bichos, os cantos dos passarinhos. Perguntou depois a seu João quanto valia beber água na concha da mão, na beira de um riacho de água fresca, no caminho de uma viagem. Seu João se espantou, arregalou os olhos. O diabo do cigano tinha a cabeça mole. Danou-se, quando viu que o homem estava era 31 Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014. 28 com mangação grossa. Sentiu-se derrotado. Então saiu dizendo por aí a fora que o cigano era pancada. Espalhou a história debaixo de zombarias, entortando o caso a seu modo. O cigano havia sumido. Noutra viagem a Água Preta, o povo se lembrou, arrodeou o homem com perguntas. Queriam saber como alguém podia desprezar um emprego daqueles, trocar cama com lençol por uma esteira estendida nos capins dos matos, arriscando a ser mordido de cobra.32 Notamos, em inúmeras fontes, uma política sociocultural contra as comunidades ciganas, bem como determinadas políticas que são direcionadas para a construção de uma identidade cultural dos ciganos na região. Políticas baseadas, em diversas tentativas de aplicação de modelos identitários que visam impor definições de identidade única para uma diversidade de famílias ciganas. Nesse contexto, a literatura, os jornais, o cinema, a música e a televisão são importantes mecanismos de difusão de conceitos de identidade e de cultura que interessam a determinadas práticas políticas de segregação, exclusão e discriminação. Encontramos muitos indícios de uma política sistemática, entre as elites locais, contra aqueles que são configurados como os “estranhos” na esfera social. Desse modo, os ciganos são encaixados nesse perfil da diferença sociocultural, inclusive com relação a sua organização familiar e suas práticas culturais. Por conseguinte, surgem os preconceitos e os estereótipos, como fica evidenciado no conto de Medauar, quando o cigano se nega a aceitar o trabalho oferecido pelo comerciante João das Neves, o último diz ser louco o cigano. Assim, “seu João das Neves espalhava: o homem andava mesmo de juízo frouxo, os miolos balançando”. A partir desse momento, começa uma acirrada perseguição ao cigano, cujo talento para os negócios parecia ameaçar os lojistas da cidade, porque o “tabaréu só fazia mergulhar a mão na algibeira, pagar o quanto fosse, sem se atrever a pedir um vintém de diferença. Aquilo é que fazia os donos das lojas ficarem embasbacados. Com o cigano, nunca viram tabaréu pechiringando”. E se perguntavam, “quanto valia um homem daqueles por detrás de um balcão? Não havia fortuna que pagasse”. Curiosos alguns “donos de loja iam ver, se admirar de seus recursos,” o cigano, não era apenas admirado, existia na verdade, um clima de enfrentamento e competitividade entre aquele cigano e os donos de loja. Notamos em Medauar e nas memórias de um passado recente, narradas pelo professor Jucelho, que mesmo que falem de elementos sociais e econômicos de um determinado contexto, ambos se entrelaçam em uma discussão identitária. A identidade cigana aqui em discussão fica 32 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 61,62. 29 mais evidenciada no contexto rural em que viva a sociedade entre as décadas de 1970 de 1980, sobretudo no interior do Sul da Bahia, onde ainda predominava a lavoura de cacau, em torno da qual se articulavam elementos culturais, socioeconômicos, religiosos e políticos da região. O cigano vendedor de mercadorias é um sujeito comum às narrativas do escritor Medauar e do professor Jucelho, quando este último afirma a dificuldade de aceitação por parte do cigano, e sobretudo de sua família, em se sujeitar a determinadas atividades vistas por eles como trabalho de gadjhão, ou seja, de não cigano. Em Medauar, percebemos que o cigano faz uso de uma autonomia socioeconômica em um contexto em que o trabalho, principalmente na lavoura cacaueira, era pautado nas relações de poder entre patrão e empregado, relações muitas vezes de humilhante segregação socioeconômica, política e cultural. Questões como essas, também são apresentadas a partir dos desdobramentos narrativos de Medauar. Na sequência, o escritor Jorge Medauar destaca que as estórias contadas pelo cigano atraíam as pessoas, inclusive os meninos, enquanto descreve a aparência do Cigano e seu modo de se vestir, que causavam estranheza em muitos. O povo ajuntava, os meninos vinham de longe para ouvir. Acocoravam no chão, pelo meio das pernas dos roceiros. E ficavam de queixo caído. Desentupiam os ouvidos, botucavam os olhos em cima do cigano. A costeleta comprida, os bigodes entrando pelos cantos da boca, as argolas derramadas das orelhas eram uma admiração de embasbacar. Nunca ninguém por ali havia visto homem macho com argolas. A não ser no carnaval. Muitos chegavam atraídos pelo lenço de mulher amarrado na cabeça, ou pelas argolas balançando na ponta das orelhas.33 Para Medauar, o contar histórias e casos era um instrumento fundamental utilizado pelo cigano para uma negociação satisfatória. O autor constrói um cigano enquanto uma figura exótica que contava histórias para envolver e atrair as pessoas que, envolvidas, eram levadas a comprar suas mercadorias. Este quadro podemos também verificar na obra de Mario Scherer A Voz da Cigana, resultante da convivência do autor com ciganos de Porto Alegre, no Rio Grande 33 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 59. 30 Sul. O autor salienta que, sendo cosmopolitas e misteriosos, os ciganos sempre se mostram muito hospitaleiros com aqueles que também os tratam de modo hospitaleiro. Porém, para Scherer, sendo um povo que tem a “arte de negociar” com certa “dose de esperteza”, os ciganos, por vezes, são considerados como “comerciantes trapaceiros”. Mario Scherer considera que os ciganos têm na liberdade, na alegria e na simplicidade a lógica de viver. Perder ou ganhar para eles é consequência natural do fato de estarem vivos. O trabalho de Scherer esclarece que a vida cigana tem como ponto crucial, a liberdade, no sentido da não obediência no jogo social entre a sociedade não cigana, rompendo com imposições, normas, leis e convenções sociais destrutivas para a dinâmica da vida cigana. As criminalizações a que são submetidas as práticas de vida ciganas, bem como os preconceitos divulgados pela mídia, correspondem à necessidade do estado e da justiça de combaterem um estilo de vida que transgride a ordem social existente. O que se aprende por meio do estudo de Scherer, bem como das descrições tendo presente as descrições feitas por Medauar em seu conto, é que o modo de vida cigano incomoda o modus vivendi estabelecido naquela cidade. Lendo o conto e observando as análises de Scherer, percebe-se que o povo cigano preza o tempo para ficar longos momentos em grupo, em reuniões com a família, conversando e confraternizando. Nesses momentos são narradas histórias cotidianas pelos mais velhos em suas barracas ou casas, tendo neste comportamento uma prática diária e dinâmica de rememoração, de (re) − construção e de transferência (in) − voluntária da tradição cultural entre famílias ciganas. O estudo de Scherer, quando analisado a partir da perspectiva de Geertz, permite perceber que a cultura cigana é fortalecida e alimentada pela tradição, particularmente a oral. É nos momentos de conversas que as tradições são transmitidas. Assim, a obra de Scherer serve como norteador para nosso trabalho, no sentido de compreendermos a importância das reuniões e confraternizações, fundamentais para a manutenção e reelaboração da memória e identidade destes grupos. No conto de Medauar essa premissa é demonstrada nos momentos de barganha entre o cigano e os 31 não ciganos na feira de Água Preta, quando o cigano revisita, rememora sua história e tradições e a afirma sua identidade por meio dos contos narrados por ele mesmo. Dialogar com a cultura cigana perpassa pela análise e interpretação do próprio conceito de cultura. Nesse sentido, reconhecemos a pertinência do conceito de cultura apresentado pelo antropólogo Clifford Geertz, para quem o conceito de cultura é essencialmente semiótico. Geertz, assim como Max Weber, afirma que o homem é um animal “amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu”, assumindo a cultura como sendo estas mesmas teias. Novamente retornando ao conto “O Cigano”, Medauar, diferentemente de Euclides Neto – como veremos adiante, apresenta o Cigano como um “sujeito útil” à sociedade de Água Preta. O escritor associava o Cigano à alguns aspectos positivos, pois, de acordo com o texto, o cigano servia a uma sociedade, com seus utensílios e suas estórias. Os fazendeiros da zona gostavam dele, por que seus casos eram um pouco de distração para os trabalhadores. E estava sempre servindo, chegando na hora da precisão de uma chocolateira, um caneco, um urinol.34 Além disso, destaca que a primeira vez que o cigano chegara à Água Preta, trouxera a sorte de uma safra, esperada com sofrimento, não estava sabendo que vinha para a terra com o melhor sinal desse mundo: as chuvas desciam pelas cabeceiras do Água Preta.35 No entanto, enquanto Calimério, um dos personagens de Medauar que conhecia muito bem o modo de vida cigano, dizia “que o cigano era um santo: não tinha natureza para fazer mal a ninguém”, Seu João das Neves, outro personagem criado por Medauar, proprietário de comércio no povoado, “vivia na malinidade, criando ódio” contra o Cigano Eliziário. 34 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 63. 35 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 64. 32 Na história, Seu João, não tendo o que contar, “metia o cigano em casos de roubo, de criancinhas carregadas de uma cidade e vendida em outra.” O comerciante salientava que Cigano era “raça de sonso que vivia com disfarce de vender coisas só mode encobrir seus intentos.” O Cigano não ignorava essa “malinidade”, “vinha a Água Preta tão raras vezes, mas, já sentia que o tempo de se afastar estava chegando. Iria rarear até sumir.” Muitas vezes, “recebera ofensas em outras cidades. Em qualquer parte do mundo cigano era mal visto, olhado de banda. O povo temia. E era difícil acabar com o medo do povo.”36 Observa-se ainda o receio que o Seu João das Neves tinha de que seu filho se relacionasse com o cigano, bem como a postura do cigano com relação à atitude de seu João das Neves. Seu João das Neves era um dos que temiam a sorte dos filhos. Quando arrastava o menino aos pinotes, pelo meio do povo, não fazia outra coisa senão futucar o medo daquela gente simples. Era como se dissesse: “não deixem seus filhos aí não”. Sentia pena do menino, a vontade era dizer que não fizesse aquilo. Mas, tinha que trancar a boca, esconder seus sentimentos. Então, como se não tivesse acontecido nada, voltava ao ponto interrompido de sua história.37 Importa perceber que a narrativa de Medauar tende para a criação de uma identidade cigana em que o personagem é um trabalhador honesto, inocente e um bom contador de estórias. As histórias negativas sobre seu passado, a perseguição contra a sua permanência na feira da cidade, bem como os perigos que todos sofreriam com tal presença, são “malinidades” - atribuídas ao comerciante local, Seu João das Neves. Seu João chegou mesmo a contratar alguns cegos para cantarem cantigas que falavam mal dos ciganos, próximo à tenda do cigano. Seu objetivo era incomodar até que o cigano fosse embora. O próprio João dizia que havia “dado duzentos mil-réis para 36 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 65. 37 Idem. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 65. 33 os cegos. Nunca viram tanto dinheiro. O trato foi não parar de cantar, até o cigano enfurecer.”38 Continuou seu João das Neves a tecer suas conclusões de aversão à presença do cigano na cidade junto ao seu compadre na sua loja de peças em Água Preta. Contudo, contrapondo-se às ideias de Seu João das Neves, seu Calimério pensava de maneira mais amistosa a respeito do cigano. [João das Neves] Cada vez que esse filho do cão aparecer em água Preta vai ouvir cantiga de cego até não poder mais. Eu fecho o negócio desse gajão, compadre Calimério. Calimério achando exagerada a vingança. Donde vinha aquele ódio? Pensou em ir embora, não dizer nada, deixar seu João falando sozinho. A vontade era andar até a praça, ajudar o cigano arrumar suas coisas. O homem era inocente. E os cegos estavam cantando sem sentimento, ensinados pela raiva de seu João. Não podia discutir com o compadre: uma alma possuída de ódio e vingança não ouve, não vê. Perto da loja de seu João, Calimério abanou um adeus, perguntado: - Quando aparece? O cigano encolheu a cabeça nos ombros. Continuou seu caminho.39 Seu João e Calimério protagonizam assim duas posturas bem comuns quando tratamos de ciganos. Por um lado a idealização de pessoas livres e sem maldades; por outro, a de que representam um perigo à ordem social por serem constantemente considerados povos errantes e vinculados à desordem e à bagunça. Nas entrelinhas o conto de Jorge Medauar evidencia a figura do cigano, na cidade de Água Preta, como uma identidade forjada. A noção de invenção de uma identidade cigana aparece quando percebemos a própria seletividade do autor, o cigano é de certo escolhido, por ser esta identidade criada para ser fixa, imutável, engessada. Ela se aplica ao contexto de fala do autor, talvez por se enquadrar em um campo idealizado. 38 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 70. 39 Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São Paulo/Brasília, 1975. p. 71. 34 A identidade daquele cigano Elizário, embora narrado pelo autor como um sujeito que interage, de certa forma, positivamente no meio social, ainda, permanece refém de uma narrativa que o interpreta como sujeito desprendido de qualquer vínculo social. A liberdade que é construída em volta da identidade cigana se apresenta como um conceito problemático. Uma retórica muitas vezes construída em torno de uma sociedade até então desconhecida, gera incompreensões e falsos conceitos. O nomadismo, por exemplo - até então destacado elemento de definição de comunidade cigana assinalado como fenômeno natural e espontâneo –, não é comum a todos os povos ciganos. Na verdade, às vezes tratam-se de deslocamentos forçados e não mudanças por “livre e espontânea vontade” ou por fazer parte de um traço cultural. Muitas vezes as famílias ciganas não têm outra escolha a não ser sair do lugar, por inúmeras razões, entre as quais se destacam, a aversão, o ódio e os próprios conflitos familiares e/ou entre ciganos e não ciganos. O cigano do conto representava a aspiração de liberdade dos habitantes da “pequena” Água Preta, uma liberdade idealizada de tal modo que havia uma projeção naqueles sujeitos, enquanto sujeitos tidos como “livres” daquelas amarras sociopolíticas de Água Preta e região do interior sul baiano. 35 Euclides Neto Vovô Alguma coisa em Ipiaú aconteceu. Não. Euclides não morreu, apenas foi passear na caatinga. Foi rever amigos, dar umas voltas na praça e pelas ruas. Depois, estendeu o olhar para suas cabras, sentou-se. Ficou refletindo sobre a vida, sobre os homens. Seu olhar distante. Longe. No poente. Mas de repente, alguma coisa aconteceu: o sol estava vivo, brilhante,o dia claro. Derrepente escureceu. Mas, Euclides não morreu: está circulando, revendo suas árvores, as cabras que balem como que a gemer saudades. Tudo agora é triste. A morte não existe. Aleluia. Aleluia. Euclides está chegando. O sorriso é o mesmo. É o mesmo andar. A voz é a mesma, meio alegre e meio triste. Entardeceu Em Ipiaú. Alguma coisa aconteceu. Mas Euclides não morreu. (Citação de Jorge Medauar em: O tempo é chegado, 2006) 36 1.2 - CONTANDO UM CONTO: EUCLIDES NETO E OS CIGANOS EM O TEMPO É CHEGADO A obra póstuma O tempo é chegado é um conjunto de contos ficcionais do escritor Euclides José Teixeira Neto (1925 - 2000), editada pela Editus da Universidade Estadual de Santa Cruz/Ilhéus. Sua primeira edição data de 2001 e a segunda de 2006, sendo esta última a que consideramos para o presente estudo. Euclides Neto nasceu em 11 de novembro de 1925 em Jenipapo, distrito de Areia, atual cidade de Ubaíra, situada no interior da Bahia. Formou-se em direito, porém, suas origens são de agricultor e criador de cabras.40 O escritor foi prefeito da cidade de Ipiaú entre 1963 e 1967 cidade também situada no sul da Bahia – região cacaueira. Segundo o site “Revista Bahia em Foco”: Euclides Neto, ex-prefeito de Ipiaú, realizou a primeira experiência de reforma agrária na Bahia (a chamada Fazenda do Povo, em 1963), obra que lhe valeu abertura de inquérito pelas forças armadas, prisão e heróica resistência à Ditadura Militar. Formado em Direito pela UFBa, defendeu os posseiros e os pequenos proprietários de terra. Com os seus mandamentos registrados no livro “Trilhas da Reforma Agrária”, o ex-secretário da Reforma Agrária [1980], deixou um legado reconhecido por grandes nomes da literatura mundial, a exemplo de José Saramago (REVISTA BAHIA EM FOCO, dezembro/2013). Ainda como prefeito, fundou dois estabelecimentos, a fazenda do povo e o museu do lavrador. Porém, é interessante destacar que Euclides Neto “é um escritor muito pouco conhecido e de audiência restrita até em seu próprio estado.”41 No entanto, alguns trabalhos foram produzidos sobre ele, entre os quais: O romance dos excluídos: terra e política em Euclides Neto, de Elieser César, publicado 40 As informações biográficas sobre Euclides Neto foram obtidas junto ao livro Euclides Neto – Coleção Gente da Bahia, escrito pela jornalista Lilia de Souza e publicado em 2013. 41 CESAR, Elieser. O romance dos excluídos: terra e política em Euclides Neto. Ilhéus: Editus, 2003. p. 11. 37 pela Editus, em 2003; Literatura do cacau: ficção, ideologia e realidade em Adonias Filho, Euclides Neto, James Amado e Jorge Amado, de João Batista Cardoso, também pela Editus em 2006; Euclides Neto – Coleção Gente da Bahia, escrito pela jornalista Lilia de Souza e publicado pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia em 2013. Além dessas publicações, uma dissertação foi desenvolvida por Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo no Programa de Pós Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia em 2010. Euclides Neto teve participação em diversos jornais da região como, por exemplo, Tribuna da Bahia, A Tarde, A folha do Interior e o Jornal da Bahia. Atuou também como membro da Academia de Letras de Ilhéus em 1990. Publicou 13 livros. Em suas obras trabalha com temas polêmicos, tais como, as questões da terra, da reforma agrária, do trabalhador rural e as mazelas sofridas pelo homem e pela mulher, ambos, explorados e oprimidos no campo. Uma boa indicação para quem deseja entender o trabalho de Euclides Neto é a leitura feita por Rita Lírio de Oliveira42 durante o Congresso de Linguagens e Representações. A autora pensa as narrativas de Euclides como produção de memória, nos ajudando a refletir sobre os modos de percepção do escritor sobre a identidade da região sul-baiana. Optei por discutir dois contos da obra “O tempo é chegado”. O primeiro conto analisado possui o mesmo título do livro, o segundo conto tem como título “Os Ciganos”. Estes contos nos permitem refletir, não só o cenário socioeconômico do interior do sul da Bahia nos tempos do cacau, mas também sobre uma memória produzida acerca da identidade cigana na região, a partir das narrativas do escritor. Em “O tempo é chegado”, o escritor apresenta um contraste social e econômico que vai do apogeu ao declínio do cacau. Ele trabalha com muita propriedade a noção de tempo (que não se limita apenas ao tempo cronológico). Permite-nos, por meio de sua narrativa, apreender uma temporalidade que ocorre com a chegada do cacau, durante a sua permanência e depois do seu declínio, com a devastação da lavoura atacada pela praga conhecida como “vassoura de bruxa” na região. Logo nas primeiras páginas desse 42 OLIVEIRA, Rita Lírio de. SIMÕES, Maria de Lurdes Netto. Identidade e Imaginário em a rica fazendeira de cacau. Vol. 1, nº 7, Ano VII, Dez/2010 ISSN – 1808 -8473 FFC/UNESP. 38 conto, Euclides ilumina, por meio de sua narrativa, o cenário socioeconômico, ambiental e a diversidade agrícola do sul da Bahia. Porém, aparece a denúncia em relação às condições de trabalho em que viviam os trabalhadores oprimidos e explorados na região. Na obra, percebe-se que a partir da chegada do cacau e dos desdobramentos daquele processo nasce uma sociedade sustentada na desigualdade socioeconômica. Antes, os índios, nas liberdades da criação. Chegaram os caçadores. Toparam ipeca, plantinha rasteira e milagrosa; a copaíba, árvore linheira, galhuda, passando as outras, gorda de óleo grosso, curando enfermidades. Muitos foram ficando por ali, abrindo a clareira, levantando a casa de taipa, indaiá, chão socado. Sementes no útero da terra alvoroçada. Trilhas saindo daqueles brongos, procurando os pareceiros. Mandioca, cana, fumo, café. Cacau chegando. Floração. Safras ainda de quilos. Suor dos homens escorrendo nos eitos. Mulheres morriam de parto, homens esmagados sob as derrubadas dos machados, o pico-de-jaca matando meninos que metiam a mão nos ocos para tirar buguelos de periquito. Com a terra mais domesticada pela valentia dos primeiros, os bodegueiros bateram palmas de chegada. Vinham também de fora, no faro do fruto já colhido. Traziam raiva da decadência deixada nos nortes que deixaram. Não era gente de enxada. Gerações deles trocando charque, barricas de bacalhau, bulgariana, pólvora, chumbo, espoleta, pelos pés de cacau que começavam a safrejar. Daí, nasceram os fazendeiros cerzindo as roças umas nas outras. Os primeiros viraram agregados, caititus, alugados, vendendo os braços. Edificaram-se casas-sede.43 Euclides Neto descreve rapidamente, o momento de origem e surgimento de uma sociedade, aponta a relação do homem com a terra, contando brevemente a experiência de homens, mulheres e crianças nas roças. Ao mesmo tempo em que monta um cenário de riqueza, denominado de “Anos gordos”, Euclides apresenta em contraste a miséria, como no trecho a seguir onde aparece a Dona Justina viúva do fazendeiro, Dr. Santos, que “não suportou a pobreza”. Euclides revela que “os que mandavam nos povoados”, eram “os doutores e os genros”. Estes compravam “carrões rabos-de- peixe, aviões, estendendo campos de pouso nas fazendas, mobílias recortadas na nobreza dos carvalhos, trazidos de Portugal, só para fazer bonito, copiando o que viam nas viagens”. 43 NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 11. 39 O autor descreve os contrates entre a riqueza e a miséria na terra do cacau: O sol, a vassoura-de-bruxa, a comedilha dos bancos, as casas roídas pelos bichos miúdos. O comércio descia aos fundos do inferno. Por toda parte, em vez de anúncios iluminados, chamando a freguesia, restou o “vende-se” o que ninguém queria comprar. Paradeiro. Castigo. Foi o que a viúva do Dr. Santos viu e se lembrou quando sentou-se no batente da varanda, chegada numa boléia de caminhão que o antigo exportador de cacau, amigo do seu marido, arranjara para ela voltar à fazenda. A mulher chorava. Os cabeleireiros, as butiques, as joalherias, as viagens de navio para onde o mundo tivesse cantos. As lágrimas da viúva lavavam aquelas tristes lembranças, o peito sofrendo, pisado, como se os pés do barcaceiro o esmagassem, feito ao sambar sobre o cacau mole, cantando para tanger o sono das noites perdidas na estufa, atiçando fogo, estuporando nas noites frias e chuvosas de julho. A pobreza a apavorava naquele momento. Preferia morrer a ver as roças queimadas pela doença, as árvores do sombreamento desaparecidas para virar dinheiro que a manteve até ali.44 Euclides Neto faz referência às memórias de seus personagens em vários momentos de suas narrativas. Ao mesmo tempo, também, faz referências as suas próprias memórias como podemos verificar na personagem de Dona Justina. O autor elabora todo um processo de viagem real e ficcional em sua trama literária, deixando transbordar por meio de seus personagens os sentimentos mais profundos que aqueles puderam sentir no contexto do cacau, fazendo lembrar a importante relação entre história e literatura, imbricadas por meio das ações e sensações construídas por seus personagens, como explica Albuquerque Júnior, argumentando que “na literatura os acontecimentos ainda não chegam racionalizados, podem vir como impressões e digressões, como expressão de sentimentos e sensações.”45 Nesse conto, Euclides Neto traz à tona inúmeras sensações refletidas pela viúva Justina. Da mesma forma, demonstra a insatisfação dos moradores com a presença dos sujeitos “sem terra” na região. O escritor revela que “os sem terra apareceram, levas de sujos, magros, meninos puxando peitos despencados e, ali mesmo, no terreiro, como ciganos que não pediam licença para arranchar, levantaram as barracas.” E ainda, 44 Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 12. ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Editora: EDUSC. Bauru, São Paulo, 2007. p.48. 45 40 durante a noite “como se achassem pouco, tocaram uma viola de duas cordas, um pandeiro furado e até um pé-de-bode da sua infância apareceu. Orquestra macabra que nada tinha a ver com os concertos de Paris.”46 Percebe-se que a comparação daquela “leva de sujos” com os ciganos demonstra como esses últimos eram percebidos pelo autor. Porém, muitos dos “sem terra” não eram ciganos, mas, porque “não pediam licença para arranchar”, eram vistos como tal, por conta dos comportamentos, tidos como “comportamentos de ciganos”. Tomamos alguns cuidados ao analisar o discurso literário de Euclides Neto e de Jorge Medauar porque, em alguns momentos, os autores denominam pessoas não ciganas como ciganas. Recorri ao conceito de identidade de Stuart Hall para entender o modo como o escritor Euclides Neto conceitua a identidade cigana em seu outro conto: “Os Ciganos”. Nesse texto, o escritor, tenta de certo modo, construir o conceito de identidade cigana em sua narrativa, a partir de suas próprias impressões e experiências sobre aquela identidade. Nesse sentido, Euclides Neto, na tentativa de reconstrução das memórias e das identidades grapiúnas aponta os ciganos como “exploradores da região”, assim como os fazendeiros e os proprietários de terra no sul da Bahia. O autor nos leva a acreditar que a chegada dos ciganos na região foi um acontecimento impactante e, de certo modo, devastador, assim como foram o cacau e a vassoura-de-bruxa. Pois, segundo Euclides Neto, a chegada deles à região trouxe consequências negativas, significando ruína por atuarem como instrumento de exploração e desigualdade entre os indivíduos da terra. Assim que começa a fazer referência aos ciganos, no conto “Os Ciganos”, Euclides Neto mantém a viagem como um dos elementos principais de sua narrativa. Mas muda o seu modo de narrar como vinha fazendo com os personagens do conto “O tempo é chegado”, analisado anteriormente. Os ciganos se transformam em personagens viajantes reais que não mudam de identidade apesar de ter como elemento principal de sobrevivência, o ato de viajar. 46 Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 13. 41 Um dos pontos que considero mais instigante e contraditório na narrativa de Euclides Neto é o momento em que o escritor parece negar todo um processo de viagem que permite o sujeito chegar a um determinado lugar. Ou seja, o autor não percebe que o sujeito, conforme discute Octávio Ianni, “ao longo da travessia, não somente encontrase, mas reencontra-se, já que se descobre mesmo e diferente, idêntico e transfigurado.” Podendo “até revelar-se irreconhecível para si próprio, o que pode ser uma manifestação extrema do desenvolvimento do eu. Um eu que se move, podendo reiterar-se e modificar-se.”47 Euclides Neto inicia o conto a partir do processo de chegada dos ciganos. Descreve algumas características de seus cavalos, as impressões sobre aqueles indivíduos e as sensações geradas por conta daquela presença. Derrubaram as bagagens. A tropa de burros, cavalos e jumentos esparavonados, docas, orelhas caídas, na ossada, foram soltos no areão do Rio de Contas, ao lado das barracas, à entrada da cidade. A notícia disparou rua afora até o fim das casas e voltou por outros caminhos, já carregada de receios. As galinhas foram presas, os baés escondidos, perus nem se fala. Daí a pouco os ciganos, em busca, de jacas e outras frutas. Famintos, nem tanto. Vício antigo.48 A memória narrativa de seu Gerisnal Rebouças é impregnada da ideia de ciganos viajantes, o que se aproxima de certo modo, com os ciganos apresentados por Euclides Neto. Gerisnal Rebuças descreve a forma como sua família realizava as viagens. E em seu trabalho de memória, o chefe cigano relembra o tempo passado, ou seja, o tempo vivido, atrelado ao tempo presente. Diferentemente de Euclides Neto, que fala a partir do que se vê, de uma vivência presente. Tratam-se de narrativas construídas de ângulos distintos, pois enquanto Euclides Neto narra suas impressões sobre os ciganos, Gerisnal Rebouças constrói uma narrativa de suas próprias experiências. Antigamente, quando viajava pelo mundo, viajava muito cigano, a bagajona, cada carroça vinte e trinta bagagem, cada qual em sua barraca. Agora hoje, já estamos morando cada qual em sua casa, não 47 IANNI, O. “A metáfora da viagem”. In: Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio deJaneiro : Civilização Brasileira, 2000. p. 26. 48 Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 65. 42 viaja mais pelo mundo. O cigano que mora em casa ou em barraca é a mesma coisa.49 E continua narrando a sobrevivência econômica de sua família que, de certo modo, determinava principalmente o rumo da viagem. Aponta mudanças ocorridas entre os ciganos, não somente no abandono das andanças, mas também nos objetos e nas mercadorias, antes “trocava animal” e hoje, “compra carro”. Todavia, o ofício continua, a negociação entre ciganos e entre ciganos e não ciganos, o que muda são as mercadorias que passaram a ser negociadas pelos ciganos. Os ciganos mudaram o rumo do comércio, a muito tempo, três décadas pra cá, mais ou menos, e minha família é oriunda da região do estado, da região cacaueira e é o maior exemplo que nós temos é o declínio da cacauicultura e isso significa não comprar mais animais, não ter mais aquele volume de comércio que tinha. Então o comércio de animais foi se extinguindo e até porque foi criada condições de mobilidade melhores do que os animais que tinha na época, as estradas foram avançando dentro das roças e o transporte do cacau passou a não ser mais no lombo dos burros, mas em carros, e aí gradativamente, foram mudando esse tino no comércio, passou a comprar e a vender carros, começaram outras oportunidades, compra e venda de lotes de fazendas de sítio, ou até mesmo, os ciganos começaram a atuar como corretores, ganhando comissões para comprar e vender terrenos, fazenda. Então hoje o ramo é muito mais diversificado, sem contar ainda com dinheiro a juros, a chamada agiotagem que muitos ciganos fazem e isso é rentabilíssimo para eles, hoje se você perguntar para um cigano que tem um bom poder aquisitivo se ele gostaria de ter um emprego fixo, com certeza ele vai dizer que não, porque com a vida que ele tem com o comércio, ele vai ganhar dez ou vinte vezes mais do que um assalariado. Então não é lucrativo pra ele. Os ciganos não têm um trabalho assalariado como meta a ser alcançada, por isso até que ele não tenha se esforçado pra pôr seus filhos pra estudar, pra se dedicar, pra realmente ter uma formação superior.50 O fim do nomadismo significa dizer que a cultura se modifica. O povo cigano se fixa, mas é hora da tradição e da cultura se movimentarem ainda mais. Muda-se não somente as mercadorias de negociação entre os ciganos, muda-se o próprio sujeito, o que nem sempre é entendido ou aceito entre os ciganos. Para Gerisnal Rebouças, essas mudanças não afetaram sua família. Segundo ele, “cigano que mora em casa ou em 49 Entrevista realizada com Gerisnal Fortuna Rebouças, chefe da família cigana “Fortuna Rebouças” em Itabuna, 2014. 50 Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014. 43 barraca é a mesma coisa”. O professor Jucelho da Cruz explica que o nomadismo não foi um processo natural e voluntário. Assim como o professor, Gerisnal Rebouças e sua família também passaram pelo processo de sedentarização. No caso de sua experiência pessoal, Jucelho da Cruz credita a sua opção por morar em uma casa à responsabilidade para com a sua esposa e filhos. Afirma que é por conta deles, que mora em uma casa e não mais em barraca, porém foram as motivações e as experiências ao longo de sua trajetória de vida, mesmo antes da existência de sua família não cigana, que impossibilitaram a sua inserção plena no grupo dos ciganos, assim como, acontece com seus filhos, que são vistos pelos ciganos e por ele mesmo, como não sendo ciganos em sua totalidade, não somente por serem filhos de um gadje, mas também pela inexistência de uma relação cultural próxima e contínua entre eles e outros ciganos. Muitas vezes essa questão do nomadismo não foi somente por conta da vontade dos ciganos andarem ou estarem mudando. Mas pela imposição da sociedade, geralmente os delegados de polícia, os prefeitos dos municípios, os donos dos locais onde os ciganos acampavam que não aceitavam e estavam sempre colocando os ciganos para fora. Apesar de viver como eu vivo hoje dentro de uma casa muito bem estruturada e não viver mais em barraca, é mais por conta da família, minha esposa, meus filhos, já não foram criados nesse sistema e agora é praticamente impossível, de estar vivendo dessa forma livre, digamos assim.51 Identificamos através da narrativa do professor Jucelho da Cruz que, embora o mesmo afirme ser o mesmo cigano Jucelho, ele não é. Isso fica evidente quando ele declara, em vários momentos da entrevista, que saiu do convívio entre os ciganos desde a década de 1980. Desse modo, entendemos que, uma vez que saímos da convivência sociocultural, mesmo que o sujeito retorne definitivamente (o que não aconteceu com o professor Jucelho) a sua identidade jamais será a mesma. Por ser um cigano que concluiu mesmo que tardiamente seus estudos, ele se faz um cigano diferenciado e suas experiências denunciam essa diferença. Quando fala sobre a identidade e o sentimento de pertença de seus filhos, Jucelho da Cruz inevitavelmente está falando sobre sua própria identidade, em um processo 51 Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014. 44 inconsciente, o professor Jucelho da Cruz traça um espelho que reflete sua “nova identidade”, há um choque cultural no encontro não só entre os filhos de Jucelho da Cruz, mas também quando o último se apresenta entre os ciganos que não mais o reconhecem como o cigano Jucelho da Cruz, mas como o professor cigano Jucelho da Cruz. Com relação aos meus filhos, eu procuro conversar, falar para ela o meu orgulho, o que eu vivi como cigano, convivendo dentro da cultura, vivendo dentro da família, dentro do grupo dos ciganos e que eu vivo hoje fora, mas o meu sentimento que está aqui no coração, a minha pertença é total, eu não tenho como dizer que eu não sou cigano, onde eu estiver eu faço sempre questão de falar isso pra que diminua esse preconceito que existe contra os ciganos, que é uma forma de diluir, mas meus filhos não se sentem ciganos, mesmo porque não têm um convívio estreito, a maior parte da vida deles é estudando na escola que não tem ciganos, de vez em quando é que vamos ver minha família e muitas vezes para eles que vivem a muito tempo com outra cultura, com outro traço cultural, quando chego lá, choca a forma, os meus filhos não se identificam. De alguma forma isso vai influenciar no desenvolvimento da cultura do povo cigano, porque eu não me casei com uma cigana, não estou vivendo mais no ambiente. Então os meus filhos, apesar de serem ciganos 50% (por cento), já não têm a cultura arraigada e seus filhos também não terão, então isso vai estar tirando, dirimindo, diluindo essa cultura é o que eu chamo de “aculturação”, vai acontecendo isso naturalmente, e em todo o segmento da sociedade isso vai acontecer, é natural isso. Mas, eu acredito que entre os ciganos será mais acentuado.52 Bem sabemos que, a aculturação, não significa perda da cultura, mas ganho cultural. Ou seja, um cigano ao relacionar-se com um não cigano, ele está naquele momento ganhando mais elementos culturais que serão agregados e reelaborados numa outra cultura, mas isso não significa dizer que, o cigano deixou de ser quem ele é, cigano. Porém, um cigano com novos aspectos de cultura. Desse modo, é possível ser o outro sem deixar de ser quem nós somos. É importante salientar que, a presença dos ciganos na narrativa euclidiana foi importante para estabelecer um diálogo entre os impactos causados por aquela presença junto no contexto da crise econômica na região. Isso talvez se justifique por ser nos momentos de crise, sobretudo econômica, que algumas categorias sociais passam a ser repensadas e questionadas. Neste caso particular, a identidade e o povo cigano. 52 Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014. 45 No conto de Euclides Neto os ciganos são personagens que, de certo modo, correspondem à necessidade do escritor em reforçar a sociedade e a cultura dos tempos do cacau, a partir de suas memórias. O escritor até aponta as diferenças econômicas dos grupos ciganos, mas os mantém sob a identidade cultural de errantes. Ou seja, cigano para ele tinha apenas um parâmetro de definição de identidade e de cultura, o permanente estado de itinerantes, mesmo quando adquiriam poder e propriedades em um lugar. Com dois meses da presença dos ciganos ricos, como passaram a ser conhecidos, muitos fazendeiros e comerciantes, antigamente também endinheirados, lhe tomavam empréstimos, alguns para pagar os trabalhadores e até mesmo para comer. A chamada crise, conhecida de muitos, mas que os mais velhos afirmavam que como aquela nenhuma acontecera. Os ciganos têm cobre a rodo, viajava a notícia. Para eles corriam todos. Questão de vida ou morte, nesse meio tempo, surge a campanha eleitoral. Político compra dinheiro onde acha. Nem procura saber o preço. Cigano encheu o papo, apareceu o gosto pela política. Resolveram financiar um candidato. Agora meteram na cabeça que deviam ter candidato, não entenderam que, sendo errantes, não possuindo título de eleitor, nem inscrição partidária era-lhes proibido tal direito. Os coronéis e comerciantes antigos, depois seus filhos e genros, e os doutores, mandões até ali, sentiram-se ameaçados por aqueles novos donos do poder e da terra.53 Alguns ciganos gozavam de um prestígio social nos tempos de declínio do cacau. Todavia, segundo explica Jucelho, “antigamente, os ciganos eram mais nivelados, eram todos pobres, era raro você encontrar um cigano que tivesse um poder aquisitivo melhor”. Segundo Euclides Neto, o cigano é criatura que vem de outras eras e perseguições. Jamais lutaram por um território só deles. Ao contrário dos Judeus, também errantes e perseguidos, que sempre lutaram e morreram por um pedaço de pátria. O gozo do poder acordou no bando um velho desejo, adormecido pelos séculos, sempre bem escondido. A vontade agora era ter pelo menos uma cidade própria, com fazendas, dominando o comércio.54 53 54 Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 69. Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 70. 46 Aqui é possível problematizar, por exemplo, que aos sujeitos ciganos construídos/idealizados pelo autor, no conto “Os Ciganos” e no livro “O tempo é chegado”, atribui-se a ausência de desejo ou ambição de ter um território como uma característica que se encontra na origem da sua formação enquanto grupo e, como tal, constitutiva de uma identidade singular dos povos ciganos. Nesse sentido, subentendese que, ao desejar a posse de terra ou de um território próprio, os ciganos personagens de Euclides Neto trairiam a sua verdadeira identidade, individual ou de grupo. Stuart Hall trabalha com o conceito de Identidade na pós-modernidade. No processo de concepção e reflexão do autor, a ideia de identidades e culturas híbridas, remete, de algum modo, à experiência histórica dos povos ciganos e nos ajuda a pensar sobre a identidade desses povos. As pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencentes a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas.55 Mesmo os ciganos não tendo um lugar de origem demarcado e definido historicamente, muitos possuem nexos de identificação sociocultural específico de cada grupo ou clã. Desse modo, não podemos afirmar que as diversas identificações anulem os vínculos culturais de suas tradições. Isto é perceptível na narrativa do cigano Victor Vishnevsky, que escreveu um livro de memórias para contar suas histórias durante um longo período de viagem pela 55 HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do ‘popular’. In: Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Editora: UFMG. Belo Horizonte, 2003. p. 88,89. 47 Europa. Em seu livro, Memórias de um Cigano, a ideia de fortalecimento da cultura cigana é sentida a partir de suas memórias e da jornada de sua família até a chegada ao Brasil. Trata-se de uma “aventura” de alguém que nasceu na China, de ascendentes iranianos, e que viveu na Índia por algum tempo. Nesta obra autobiográfica, Victor Vishnevsky nos leva a diversos momentos do modo de vida cigano que, diante da preocupação da extinção de seu povo, Os Lovara, o autor registra os acontecimentos mais marcantes das histórias que viveu, as tradições ciganas de sua família e de outros clãs ciganos, bem como dos diferentes contextos que influenciaram os rumos familiares. Segundo Moonen, os Rom é um clã oriundo do Leste europeu que fala o Romani, dialeto dos Rom, entre todos os ciganos são os mais estudados e descritos. Como já dito, o Rom é um dos grupos que compõe o tripé da cultura cigana, pois ela se divide em três grandes grupos Rom, Calon e Sinti. Porém, apenas os Rom se subdividem, em aproximadamente sete clãs. E os Lovara, asssim como os Kalderash são subgrupos, pertencentes ao grupo Rom. A nomenclatura “Kalderash” indica a profissão de caldeireiros entre os ciganos deste clã. Geralmente, os Rom se denominam como “ciganos autênticos”, considerando os demais ciganos pertencentes aos grupos Calon e Sinti, como “falsos ciganos” ou ciganos de terceira categoria. Nós, os ciganos, não somos as pessoas que a maioria pensa que somos. Através dos séculos, pessoas de todas as nações nos olham como nômades, sem país e sem nenhuma proteção. Portanto, caso aconteça alguma coisa ruim, como roubo de criança, ou algum tipo de fraude, e existam ciganos nas redondezas, com certeza a culpa sempre será atribuída a nós.56 Como a viagem é um elemento presente na narrativa de Euclides Neto, é interessante perceber como o escritor elabora sua escrita destacando a simultaneidade de chegada e partida de grupos ciganos. Ou seja, ao mesmo tempo em que desaparecem os ciganos pobres, aparecem os ciganos ricos. Euclides Neto monta um jogo em que as peças principais são a presença ou a ausência de sujeitos e de determinadas situações. A 56 VISHNEVSKY, Victor. Memórias de um cigano. Editora: Duna Dueto. São Paulo,1999. p. 25. 48 partir desses elementos é possível perceber que a presença dos ciganos ricos só aconteceu com o desaparecimento dos ciganos pobres no tempo e no espaço. A chegada e a partida, os encontros e as despedidas também são aspectos utilizados pelo escritor cigano Victor Vishnevsky que, da sua vida nômade estava muito mais preocupado em apresentar o processo de sua viagem pelo mundo, suas experiências e vivências até chegar a um lugar onde o aceitassem melhor enquanto cigano. Vishnevsky descreve seus sentimentos e desejos, narrando em detalhes a sua fala também, como foi sua passagem por diversos países europeus, revelando através da narrativa da viagem de sua família, a sua própria trajetória enquanto indivíduo cigano. Ou seja, uma história que se compromete com os processos de viagem. Diferentemente da obra euclidiana que traz impressões de um escritor não cigano, a partir da criação de personagens, também não ciganos, com relação à presença de ciganos na região do interior, a obra de Vishnevsky, se realiza a partir do lugar político de fala de um cigano comprometido com uma memória individual e de grupo. Trata-se de uma escrita de si, das percepções de um cigano, a partir do convívio e das relações estabelecidas em diferentes lugares que percorreu na Europa, até chegar ao Brasil, permitindo a ampliação do nosso olhar sobre as experiências e as intenções narrativas em ambos os escritores. Além dos ciganos (pobres e ricos), Euclides Neto constrói dois personagens importantes que, de certo modo, podemos considerar como principais desse conto. A trama se passa entre Nicodemo ‒ fazendeiro que não faz parte da cultura cigana – se relacionava diretamente com os ciganos, inclusive estabelecendo negócios e trocas de animais e de carros. Nicodemo se apaixona por uma suposta cigana, Carmelita, que era noiva também de um fictício cigano, e resolve fugir com Carmelita no dia do casamento dela e diante da confusão que um bando de ciganos rivais fizera em sua festa de casamento, “o noivo deve ter ficado no chão. Carmelita só encontrou Nicodemo para pedir socorro. Com quem fugiu sem destino.”57 O escritor retoma a fala sobre os ciganos ricos e sua relação com a política partidária. Apresenta também, a relação conjugal entre a 57 Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 71. 49 hipotética cigana Carmelita e o não cigano Nicodemo, sinalizando para a situação econômica deste último. Os ciganos ricos desapareceram. Ganharam a política, mas decisão da Corte Suprema anulou tudo. Vou adiante e volto atrás: os ciganos desapareceram. Modo de dizer, pois depois retornaram para cobrar seus créditos e tomar conta da cidade e de toda a região como se fossem pequenos bancos. Nicodemo perdera quase tudo. Só lhe restava o casco da fazenda Poço da Caça. Ficou comendo na mão como suia [em dificuldade financeira, pobre]. Tanta felicidade não demorou muito. Carmelita desapareceu. O fazendeiro recebeu um bilhete, sem assinatura: “Você é mesmo um trouxa. Com mania de sabido e conquistador de mulher alheia. Carmelita, mora em Jequié, filha de dona de pensão. O falso noivo dela também não tem nada de cigano.” Nicodemo perdeu o cálculo, trocou a fazenda Poço da Caça, reduzida a um quinto, por uma caatinga nas bandas de Boa Nova. Findou-se por lá.58 A narração feita por Euclides Neto mostra questões sobre identidade, memória e história. Ao mesmo tempo, aparecem os interesses individuais e coletivos dos sujeitos, sobretudo, dos ciganos. São esses interesses sociais que circulam principalmente em entorno dos aspectos políticos e econômicos. Em sua narrativa, o escritor sugere que os verdadeiros ciganos são aqueles cujos interesses não estão direcionados para o envolvimento partidário, político, questões materiais, como a posse da terra e questões econômicas. Transparece que, para o autor, o fazer-se cigano se concretiza na medida em que aqueles sujeitos se mantêm distanciados das questões políticas e econômicas de uma sociedade e de uma cultura não cigana. É notório perceber em outras fontes narrativas, além das literárias, que a presença cigana surge negativamente discriminada. A literatura tenta construir histórias para a construção de memórias absolutas e os jornais buscam, por meio do imediatismo da notícia, uma suposta verdade absoluta dos fatos. Ambos os veículos são importantes meios de construções de supostas memórias e identidades. 58 Idem. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 71. 50 1.3- “TEM CIGANOS NA PRAÇA”: A PRESENÇA DE CIGANOS NO JORNAL O DIÁRIO DE ITABUNA Nesta parte do capítulo analisaremos as dimensões do tratamento dado aos ciganos por uma das fontes jornalísticas local: O Diário de Itabuna, particularmente entre as décadas de 1950 e 1980. Na apresentação e análise das notícias desse jornal acompanhamos algumas situações que potencializam o medo e o ódio da sociedade contra os ciganos e seu modo de vida na cidade de Itabuna. Situações que remetem a Zygmunt Bauman, ao inferir que “os nossos guetos voluntários – sim, voluntários – são resultados da vontade de defender a própria segurança procurando somente a companhia dos semelhantes e afastando os estrangeiros.”59 Assim, Bauman se apresenta como importante interlocutor nessa parte do nosso trabalho. Geralmente os ciganos costumam ocupar o lugar da diferença, do sujeito exótico e folclórico em alguns livros e trabalhos acadêmicos. Alguns estudos antropológicos, por exemplo, têm como proposta analisar os ciganos enquanto sujeitos estranhos, exóticos e de cultura nunca antes explorada. Nos jornais, os ciganos aparecem como sujeitos já conhecidos e, portanto, indesejáveis à sociedade, sem se preocupar com a humanização daquele sujeito e a necessidade relacional de todo e qualquer indivíduo para o estabelecimento de uma vida social. Bauman (2009), em seus estudos sobre a urbanização do mundo global nos permite sublinhar aqui, que as cidades são depósitos nos quais se procura desesperadamente soluções locais para problemas que foram produzidos pela globalização. O que nos lembra mais uma vez que o local e o global continuam em plena sintonia e união, mesmo que por vezes, atitudes locais não correspondam com os interesses e intencionalidade do global. É preciso também, acrescentar outras duas 59 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Editora: Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2009. p. 85. 51 considerações: Primeiro que as cidades são depósitos, e segundo, que elas são também, campos de batalha e laboratórios.60 Uma demonstração do argumento de Bauman pode ser percebida na forma pela qual O Diário de Itabuna tratou da presença de ciganos numa das praças da cidade de Itabuna, denominada de “Praça Camacã”, em 1959. Vale salientar que a notícia reaparece em outros momentos do mesmo jornal.61 O próprio título da matéria já revela uma opinião de que os ciganos seriam intrusos naquela praça e estariam se apossando da mesma. Importa ponderar também que, a cidade de Itabuna entre os fins da década de 1950 e início da década de 1960 passou por um forte processo de urbanização. Havia então um projeto de higienização da cidade para supostamente melhorar o funcionamento do espaço urbano da cidade. Este projeto tratava da: implementação de uma empresa de urbanização, chamada de Companhia Urbanizadora de Itabuna - CURSITA, a qual tinha o objetivo de resolver um problema, a presença de barraqueiros nas principais vias da cidade e que deveria contar com verbas da Aliança para o Progresso, programa de ajuda financeira da política externa norte-americana para a América Latina62. Ao lermos O Diário de Itabuna, é comum encontrarmos manifestações que descrevem os ciganos como “vândalos, trapaceiros, assassinos, violentos”, entre outros adjetivos, considerando sua presença como algo negativo para a cidade. Novamente a título de demonstração, o Diário de Itabuna, em matéria publicada em maio de 1980, utilizou da argumentação citada anteriormente para descrever os ciganos na cidade de Itabuna e região na matéria “Fazendeiro foi amarrado e espancado por ciganos”63, conforme imagem que segue. Como podemos observar a matéria 60 Op.cit. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Editora: Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2009. p. 86. 61 O Diário de Itabuna. Itabuna,1959. p. 3. 62 RIBEIRO, Danilo Ornelas. Do fazer jornalístico às sociabilidades das elites: a construção da Itabuna moderna (1957-1964). Trabalho de Conclusão de Curso- TCC, Ilheús, Ba - DFCH/UESC, 2010. 63 O Diário de Itabuna. Itabuna, 1980. p. 6. 52 jornalística traz uma notícia que informa que, ciganos espancaram o fazendeiro de uma pequena vila denominada de Santa Luzia, pertencente ao município de Canavieiras, no interior da Bahia. Percebe-se que o jornal trata os ciganos como “grupos de ciganos” de forma genérica, não apresenta nomes dos indivíduos que fizeram parte do grupo envolvidos no espancamento do fazendeiro. O jornal apresenta apenas o nome do fazendeiro, de seu filho e do delegado de Santa Luzia, que havia expulsado supostamente o mesmo grupo de ciganos, se resumindo a matéria a sujeitos no anonimato que, supostamente, “vinham cometendo atos de vandalismo”. Porém, não se pode dizer que políticas e práticas de expulsão de “indivíduos indesejáveis” seja uma novidade no Brasil. Antes, é possível afirmar que elas sempre fizeram parte do repertório de medidas e ações com os quais as elites e/ou autoridades esperavam ordenar os espaços públicos. Uma antiga prática da coroa portuguesa no período colonial foi o banimento de sujeitos considerados indesejáveis por Portugal. Segundo Geraldo Pieroni, a prática de criminalização e banimento não são práticas novas. A coroa portuguesa, por considerar o Brasil durante muito tempo como espaço de degredo, expulsava ciganos de Portugal para sua colônia no século XVII é que podemos ver generalizado o degredo de ciganos para o Brasil. Bandos deles, provenientes de Castela, entravam em Portugal. Sua majestade D. Pedro, rei de Portugal e Algarves, preocupadíssimo com a “inundação de gente tão ociosa e prejudicial por sua vida e costume, andando armados para melhor cometerem seus assaltos”, decidiu determinar, por decreto, que, além do degredo para África já estabelecido nas Ordenações Filipinas de 1603, eles também seriam degredados para o Brasil.64 Em nossa pesquisa e análise, pudemos constatar que a presença cigana na cidade suscita os mais variados sentimentos e reações entre os não ciganos, destacando-se entre eles as reações de curiosidade pelo exótico dessa cultura que chama atenção pelos fortes coloridos das vestimentas das mulheres e pelo estilo de vida de alguns ciganos, de desconfiança, de preconceito e de discriminação, fomentados pela incompreensão 64 PIERONI, G. Vadios e Ciganos, Heréticos e bruxas. Os degredados do Brasil-Colônia. Editora: Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2006. p. 17-111. 53 daquela maneira de viver; e o sentimento de medo, medo do desconhecido que os ciganos representam. Nos jornais locais é comum encontrarmos manifestações que descrevem os ciganos como “vândalos, arruaceiros, trapaceiros, assassinos, bandidos e violentos”, entre outros adjetivos, considerando sua presença como algo negativo para o município. Voltando ao jornal O Diário de Itabuna, na matéria já citada, “Fazendeiro foi amarrado e espancado por ciganos”, percebe-se a utilização da referida argumentação para descrever os ciganos que se encontram no município de Canavieiras e região. Após acusar os ciganos pelo espancamento, a matéria conclui: “possivelmente, foi o mesmo grupo de ciganos que foi expulso no mês passado, de Santa Luzia, pelo delegado regional Henrique Oliveira porque vinha cometendo atos de vandalismo”65. Ainda em outra reportagem do mesmo jornal, escrita de 27 de abril de 1984, intitulada “Evaristo Morais vai acusar em Ubatã”66, os ciganos voltam as páginas policiais. E mesmo quando não aparecem como protagonistas na condição de criminosos, surgem de forma secundária por terem seu estilo de vida comparado a práticas desviantes de não ciganos. Sinalizamos que não significa dizer que os assassinatos não ocorreram na cidade de Ubatã, mas apontamos para o lugar que os ciganos costumeiramente aparecem naquele jornal, apenas nos noticiários policiais, sendo silenciados em outras páginas, como por exemplo, as páginas dedicadas pelo jornal para expor as festas de casamento, os quais os ciganos não aparecem em nenhuma até então analisada. O mesmo Jornal, em sua edição de 04 de maio de 1984, publicou outra matéria com o título: “Ciganos foram condenados por assassinatos em Ubatã”. Os ciganos Valdecy Fiuza Barreto e Edney Barreto da Gama que foram julgados segunda-feira, em Ubatã, pelo assassinato do estudante Arivaldo Teófilo da Silva, de 19 anos, foram condenados a 19 anos de reclusão.67 65 Idem. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1980. p. 06. Op. Cit. O diário de Itabuna, Itabuna,1984. p. 07. 67 Op. cit. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1984. p. 02. 66 54 Não se trata aqui de negar que os crimes acima citados tenham ocorrido, mas de assinalar que os ciganos, quando aparecem na imprensa local quase sempre são mencionados e lembrados por sua relação com a criminalidade. Além disso, quando comentem delitos os jornais fazem questão de destacar sua identidade étnica. Ciganos e não ciganos (por possuírem um estilo de vida assinalado como de ciganos) são apontados como sujeitos passíveis de punição e banimento: ou por ser um cigano; ou por se comportar como um. Mesmo quando vítima, o cigano é apresentado de forma negativa. A matéria do jornal O Diário de Itabuna, na edição de 15 de Março de 1984, publicou a seguinte notícia: Baleado na barriga no último dia de carnaval, durante o atrito ocorrido na Praça Adami, ainda não foi ouvido no inquérito que apura o fato. Informalmente, “Zé Grande” confessou que foi ele quem realmente atirou no arruaceiro Cláudio João Batista, “Cigano”, matando com um tiro na cabeça.68 Não é possível afirmar que o uso do termo “Cigano”, entre aspas, sirva na matéria para informar a origem étnica de Cláudio João Batista, pode-se conjecturar tratar-se apenas de apelido. Porém não deixa dúvida quanto à intenção de sinalizar a relação entre ser “Cigano” e ser “arruaceiro”. De certo modo, podemos ponderar sobre um jogo dialético do jornal O Diário de Itabuna que pode provocar no leitor certa dificuldade de entendimento, levando-o, desse modo, a interpretações equivocadas contida da escrita do texto jornalístico, o que permite pensar que: ou todo “arruaceiro” é “Cigano” ou que todo “Cigano” é “arruaceiro”. O jornal deixa brechas no discurso, que consente interpretarmos que o termo “arruaceiro” é uma característica de “Ciganos” ou podemos concluirmos ainda que, Cláudio João Batista pode ser apelidado como “Cigano” justamente por praticar “arruaças na Praça Adami e de ter agredido o rapaz” em Itabuna, conforme consta na matéria. 68 Op. cit. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1984, p. 04. 55 Por vezes, certos discursos constroem identidades ciganas para esses sujeitos, colocando-os em outros lugares, inclusive, em um não lugar. No não lugar da historiografia: o lugar do silêncio; na ciganologia o lugar é o da discussão sobre questões cigana, mas, às vezes, também não há reconhecimento por parte de alguns ciganos; no cinema e na música os ciganos geralmente são compreendidos como uma unidade cultural de forma preconceituosa; e lugar oferecido pelos diversos meios midiáticos apresenta os ciganos de forma estereotipada. MEMÓRIA, HISTÓRIA E IDENTIDADE ÉTNICA 2.1 – A MEMÓRIA ENTRE OS CIGANOS Caminhando pelas ruas de Itabuna nos deparamos, às vezes, com pessoas que formam os grupos ciganos daquela cidade. Em nossa compreensão, tais grupos e sujeitos constituem uma das dimensões socioculturais itabunense, que formam parte de sua história. Porém, entre os que buscam pesquisar sobre a cultura cigana é costumeiro ouvir que os ciganos formam um grupo muito fechado, cismado, um tanto perigoso e que não costuma se abrir para o diálogo. Maria de Lourdes B. Sant’ana,”69, apresenta cinco principais dificuldades, que surgiram no momento da sua pesquisa. Uma delas foi o “fato do grupo se mostrar muito fechado a uma investigação realizada em tempo limitado”. O que, no entanto, não aconteceu conosco nem no início e nem ao longo de nossas pesquisas de campo. Refletindo do ponto de vista do recurso à metodologia da história oral, é necessário considerar o fato de que o “contato inicial é muito importante porque constitui um primeiro momento de avaliação recíproca, base sobre a qual se desenvolverá a relação de entrevista.”70 No caso particular de Itabuna e de Ubatã, além da ideia de que se trata de um grupo muito fechado, acrescentam-se incompreensões e estereótipos, resultantes do não conhecimento sobre as histórias e tradições das famílias 69 SANTANA, Maria de Lourdes B. Os ciganos: aspectos da organização social de um grupo cigano em Campinas. Editora: FFLCH/USP. São Paulo, 1983. p. 09-186. 70 ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Editora: FGV. Rio de Janeiro, 2013. p. 169. 56 que vivem na cidade, provocando um estranhamento em relação àquela cultura e àquele modo de vida. Nesse sentido, é possível pensar sobre alguns preconceitos na busca da desmistificação de certos estereótipos criados sobre a história e a cultura da comunidade cigana naqueles municípios, contribuindo, de certo modo, para futuros estudos sobre o assunto. Procuramos apresentar nesse capítulo a presença dos Fortuna Rebouças, uma família cigana que estabeleceu residência fixa no município de Itabuna em 1982, aproximadamente, ponderando sobre suas experiências de interação sociocultural com a sociedade não cigana. Intencionamos, desse modo, problematizar as ausências desta discussão na historiografia brasileira, do interior da Bahia, espaço onde se percebe uma significativa presença de grupos ciganos, marcada pela interação, mas também por muitos conflitos, quer entre si, quer entre aqueles e os não ciganos, chamados gajões. Tal intento implica no rompimento com o silêncio dentro e fora dos espaços acadêmicos. Nesse sentido, pensamos que a seleção de determinadas “memórias coletivas”71 não são espontâneas, elas fazem parte de um jogo político e ideológico que impõe uma memória, que se tenta legitimar junto às coletividades, em detrimento de outras memórias. Mas, a memória coletiva não atua como um processo impositivo e arbitrário frente a outras memórias, posto que estas últimas buscam de antemão, uma negociação e o trabalho de “enquadramento da memória”72, segundo proposto por Henry Rousso. Enquadramento que é uma demonstração desse processo dialético que atua não só pela via do conflito, mas também entre o acordo harmônico que objetiva uma convivência de memórias concorrentes e que se “alimenta do material fornecido pela história.”73. Consideramos estas discussões sobre ciganos importantes porque permitem problematizar não só a produção do conhecimento historiográfico, mas também, outras pesquisas na área das Ciências Humanas. Assim sendo, é relevante apresentar uma parcela da história dos Fortuna Rebouças e suas trajetórias por meio da memória e da história do grupo estudado. Pois entendemos que a “memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde múltiplas variáveis – temporais, 71 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era” de. In: Usos e Abusos da História da História Oral. In: Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV Rio de Janeiro, 2001. 73 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos históricos: Rio de Janeiro, vol. 2 n.3, 1987. p. 9. 72 57 topográficas, individuais, coletivas- dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes de forma velada”. Entre os ciganos, por exemplo, pudemos perceber que muitas dessas memórias são traumáticas e muitos deles chegam “em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida.”74 A partir da nossa proposta metodológica, buscamos realizar uma análise historiográfica acerca das trajetórias e das relações socioculturais do grupo familiar cigano (os Fortuna Rebouças) na cidade de Itabuna, a partir de 1980. Buscamos discutir as memórias deste grupo familiar, a (re)construção da identidade individual e coletiva do mesmo, conforme já pontuamos. Procuramos, assim, acompanhar esta família cigana através da narração de suas práticas comuns e “maneiras de fazer” cotidianamente experimentadas. Portanto, um estudo de natureza sociocultural que se aproxima das perspectivas da Nova História Cultural presentes em autores como: Michel de Certeau, E.P.Thompson, Raymond Williams, entre outros. Aqui a principal fonte para a análise histórica foram os depoimentos orais. Salientamos que um dos principais sujeitos para a realização deste estudo foi o chefe familiar Seu Gerisnal Fortuna Rebouças. Apesar dos outros componentes da família dominarem a escrita, conforme analisamos no tópico anterior, a oralidade é componente fundamental para as tradições ciganas. Nesse capítulo, para realizarmos nosso estudo buscamos ponderar sobre alguns aspectos, tais como a (re)configuração e dinamização da cultura cigana daquele grupo em Itabuna, estudando as possíveis formas de interação com a sociedade local. Por último, discutimos dimensões do percurso que levou aquela família cigana migrar e permanecer no município de Itabuna, pensando sua relação com a dinâmica sociocultural da cidade. 74 Ibdem. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In: História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 16. 58 2.2 - A IDENTIDADE: “UMA CORRERIA DE CIGANOS” – VISÕES CIGANAS E NÃO CIGANAS EM ITABUNA E REGIÃO Ao procurar informações sobre a notícia do Jornal “O Diário de Itabuna”, de 1980, junto às entrevistas com seu Gerisnal Fortuna Rebouças e outros ciganos, como Jucelho Dantas da Cruz, percebemos que, o estudante assassinado era filho de um “poderoso” fazendeiro da cidade de Ubatã, chamado Manuel Teófilo, informação omitida pelo Jornal. Este mesmo órgão jornalístico da imprensa local também não conta que, depois da morte do estudante Arivaldo Teófilo da Silva, ocorreu “uma chacina de ciganos”, conforme nos conta seu Gerisnal Fortuna Rebouças.75 Seu Gerisnal narra que barracas foram incendiadas e muitos ciganos foram mortos na cidade de Ubatã76. “Uma correria de ciganos” foi provocada na cidade naquele período. Muitos deles foram expulsos e impedidos de morar naquela cidade por muito tempo, só retornando alguns anos depois, quando a família do fazendeiro não morava mais em Ubatã. Jucelho também relembra esse acontecimento do crime que ocorreu em Ubatã. Na época do assassinato que teve em Ubatã , minha família morava lá na região de Ibirapitanga e aconteceu esse episódio lá em Ubatã. Filhos de Juvenal, Galdino e Edinho, irmãos de dois ciganos que veio a morrer depois. Não sei a circunstância que mataram um filho de um fazendeiro, e eu sei que esses dois rapazes foram presos, cumpriram pena e antes ou depois deles saírem da cadeia ou depois, o fazendeiro ou alguém a mando do fazendeiro mandou matar dois ciganos que eram irmãos de um desses que matou o filho do fazendeiro, morreram dois irmãos, Adroaldo e Derivaldo, dois ciganos que eu conheci e tive a oportunidade de conhecer, eram duas pessoas muito legais mesmo, 75 Todas as entrevistas com Seu Gerisnal Fortuna Rebouças e seus familiares Dona Ione Fortuna Rebouças (matriarca da família); Cosme fortuna Rebouças e Jocenir Fortuna Rebouças (ambos filhos do Senhor Gerisnal e da Senhora Ione Fortuna Rebouças), foram realizadas entre os meses de junho, julho, agosto e setembro de 2014. A citação completa das mesmas encontra-se na parte dedicada às fontes. 76 “O povoamento da sede de Ubatã teve inicio no ano de 1909, com a denominação de Dois Irmãos, em território do Distrito de Orojó, município de Camamú. A povoação em 1932 era anexada ao município de Maraú e teve sua denominação alterada para São Sebastião. Em 1933, retornava à jurisdição de Camamú. Ainda em 1933, foi desmembrado do distrito de Orojó, passando constituir o distrito de Dois Irmãos, município de Rio Novo, atual Ipiaú. Recebeu posteriormente o nome de Doutor Alfredo Martins e finalmente em 1943, Ubatã, criando o município por força do Decreto Estadual de 12.12.1952, desmembrado de Ipiaú”. Essas informações foram retiradas dos sites que fazem referência às notícias cotidianas ocorridas em Ubatã. Sites: www.ubatanoticias.com.br; www.noticiasdeubata.com.br; www.ubatarealidade.com.br; www.canoatan.com 59 gostava muito deles, não tinha muita idade na época, mas me lembro que eram pessoas muito tranquilas. Esses ciganos que matou o filho do fazendeiro eram pessoas que tinham índole de briga, aquele pessoal que andava no brega. O motivo eu não sei porque eles mataram o filho do fazendeiro. Na época foi um escárnio, todo ciganos temia pela vida, porque quem matou foi um cigano, não foi um tal de Galdino e Edinho, foram os ciganos, eles generalizaram, aí começou a perseguição a todos os ciganos, então todos os ciganos tinham muito medo de serem assassinados naquele momento. Não sei se eu dou graças a Deus, mas pra sorte da maioria dos ciganos quem terminou pagando o pato foram os irmãos de um dos ciganos criminosos, que foi o Derivaldo e o Adroaldo que terminou sendo assassinados lá mesmo em Ubatã.77 Em entrevista78 com seu Renato Tavares Marques, pudemos obter maiores detalhes sobre o referido assassinato: O fato eu presenciei, eu vi tudo, desde o início. Eu vi quando o filho de Manoel Téofilo encostou o carro nas patas do cavalo do cigano Edinho, Edinho cigano. E aí, ele estava bebendo pegou o facão e “pê, pê, pê” cortou o rapaz todo de facão. Não tinha, não havia necessidade nenhuma daquilo.79 Neste momento, seu Renato T. Marques, gesticula com a mão direita transmitindo um som, ou seja, se utiliza da onomatopeia para demonstrar a intensidade dos golpes de facão dados no estudante Arivaldo Teófilo da Silva. Porém, vale sinalizar que, seu Renato, muito embora, seja uma testemunha ocular e tenha participado do momento do crime, dando, inclusive, depoimento no julgamento contra os ciganos (Edinho e Galdino), mantinha relações de amizade com o fazendeiro Manoel Teófilo. Ele não se recordava do nome do estudante (filho de Manoel Teófilo) assassinado na praça central da cidade no dia da micareta de Ubatã. Levamos fotografias do jornal O Diário de Itabuna de 04 de maio de 84 “Ciganos foram condenados por assassinato em Ubatã”, para melhor facilitar as lembranças e o diálogo entre entrevistado e entrevistador sobre o acontecimento, por entender que a história oral se movimenta “em terreno interdisciplinar, já que utiliza muitas vezes música, literatura, lembranças, fontes 77 Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014. Realizamos duas sessões de entrevista com seu Renato Tavares Marque, 79 anos, um dos sócios e fundador do Cube Social de Ubatã em 1968. Durante muito tempo, ele foi um homem muito influente na política da cidade e testemunha ocular do assassinato envolvendo o filho de um fazendeiro e dois ciganos no centro da cidade de Ubatã em 1981. Realizamos apenas 75 minutos, por entender a fragilidade e os problemas de saúde que o entrevistado vem enfrentado há alguns anos. 79 Entrevista realizada com Renato T. Marques, sócio do antigo clube da cidade de Ubatã, em Ubatã, 2014. 78 60 iconográficas, documentação escrita, entre outras, para estimular a memória” 80. Desse modo, assim fizemos com o senhor Renato T. Marques. Sobre as mortes de ciganos em Ubatã e em algumas cidades próximas, o seu Renato T. Marques de maneira mais descontraída e descritiva começou a relatar os assassinatos posteriores à morte de Arivaldo Teófilo da Silva, filho de Manoel Teófilo. Os ciganos envolvidos no crime não são chamados pelos entrevistados pelos nomes de registro, mas de acordo com seus apelidos. Ediney é conhecido como Edinho Cigano, e Valdecy como Galdino Cigano. Morreu ciganos de mais, rapaz. Depois morreu Galdino e outro morreu alí perto, defronte, não tem Vanderley81? Então, um morreu na porta, o outro morreu cá, na outra rua. Estava eu e o tenente Rocha, nós estávamos no passeio e Rocha conhecia os bandidos, né? Que Rocha foi delegado. Aí disse: rapaz, vamos ficar aqui, que vai ter alguma coisa aqui, porque aqueles dois é pistoleiro e não trabalha de graça pra ninguém e deve tá ganhando algum dinheiro pra matar alguém. Não deu outra. Quando estou assim, chegou o carro do cigano e parou. Aí, ele [o pistoleiro] veio, chegou de junto do cigano aqui e “pá”, atirou no que estava no volante, matou o que estava alí, o outro cigano que estava na porta saiu correndo, ele aí [o pistoleiro] “pá, pá, pá82”, ele [o cigano] caiu na porta de Vanderley, ele [o pistoleiro] foi andando e chegou lá deu dois tiros na cara do cigano “tei, tei” e eu acho que os ciganos eram parentes do cigano que matou o filho de Manoel Teófilo. E aí, ele [um dos pistoleiros] pendurou na porta do carro, negócio de cinema, mesmo. Pendurou na porta da Berlina, a Berlina arrancou, ele [o pistoleiro] entrou e puxou a porta [do carro] e caiu fora. Ninguém pegou. Eram dois pistoleiros, um dirigindo e outro pra fazer a arte, né? O que atirou matou o primeiro cigano no volante, o outro cigano abriu a porta e saiu correndo ele [o pistoleiro] acertou dois tiros na cara do cigano, ele caiu, ainda o cigano no chão, ele arrancou a Berlina, e lá na frente o cara entrou no carro e bateu a porta e foram embora, ninguém pegou, não tinha carro pra ir atrás, naquele tempo, o carro da polícia aqui era um carro vei desgraçado, e o carro dos cara era um carro novo, uma Berlina nova 0Km. Os caras antigamente, só trabalhavam com carro novo. Teve morte de cigano no Camamuzinho83, morreu dois no Camamuzinho e depois morreu um na estrada de Ibirataia, que o pessoal disse que foi o cigano que atropelou uma vaca, mas como é que uma vaca entra no carro, mata todo mundo, só não matou uma criança que estava deitada? Mas quem estava sentado morreu. A vaca matou todo mundo (fala de forma irônica e sorrir), que nada, foi morte, foi matado mesmo. E ficou vinte 80 Op. cit. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In. História oral: Memória, tempo, identidades. Editora: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 16. 81 Vanderley Ramos de Souza era um antigo farmacêutico muito conhecido na cidade e possuía uma farmácia no centro comercial da cidade de Ubatã. 82 Seu Renato mais uma vez gesticulou com o braço e emitiu um som representando uma arma. 83 Pequeno município de Ibirapitanga, vizinho a cidade de Ubatã. 61 anos sem aparecer cigano aqui. Manoel Teófilo foi embora aí eles voltaram, depois que ele morreu foi que apareceu. Veja só, em uma ocasião eu e um amigo meu no ferry boat, no lado de cá em Bom Despacho, a cigana passou e esse amigo meu bebendo e nós chegamos tomando cerveja, né? Aí passou a mão na bunda da cigana, a cigana olhou, olhou e falou: Meu amo já que tú gosta de cú assim, porque tú não levou nove meses no cú de tua mãe? E olhou a placa do carro que era de Ubatã e disse: Ubatã é lugar de Manoel Teófilo quer matar nós tudo (risos descontraídos). No camamuzinho, na ladeira defronte com a igreja, era feira alí dia de domingo, o cigano parou lá em cima, o cara chegou e “pá, pá”, matou dois, entrou no carro e sumiu. Manoel Teófilo disse que enquanto ele vivesse aqui que cigano não morava, e não morou mesmo não, só veio morar depois que ele foi embora, eles mataram o filho dele, ele [Manoel Teófilo] tinha dinheiro pra dar ao pistoleiro pra fazer a arte.84 Os crimes contra os ciganos eram frequentes, bastava ser cigano para ser visto como uma ameaça. A identidade se coloca como uma questão importante nesse momento. Mas, esta mesma “categoria da identidade não é ela própria problemática?” Até porque, seria “possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez e pela intensidade das confrontações culturais globais.” 85 O que nos leva a pensar sobre as identidades culturais dos ciganos, que se afastam de uma “identidade coerente e integral”, por serem eles, sujeitos relacionais por excelência. Alguns parentes dos ciganos envolvidos no crime ainda mantêm residência em Ubatã. Entrevistamos uma senhora que tem laços de parentesco muito próximo de Ediney e de Valdecy, já que entre eles o casamento endogâmico é uma prática muito comum. Talvez por isso, tenha exigido que seu nome não fosse revelado e que a sua entrevista não fosse utilizada para outro fim, senão para este. Logo, utilizaremos o pseudônimo de dona Dinha, para trazer a fala dessa cigana para a nossa abordagem. Cabe salientar que por se tratar de um crime de grande repercussão entre ciganos e não ciganos na cidade de Ubatã e região, existe um clima tenso entre eles até hoje, ficaram cismados durante muito tempo e perguntavam se este trabalho iria prejudicá-los de alguma forma. Muitos deles demonstraram surpresa quando se depararam com a notícia do jornal sobre aquele acontecimento e, em alguns momentos de entrevista, disseram que, por ter se passado muitos anos achavam que em lugar algum se falasse mais sobre 84 Renato Marques. Ubatã, 2014. HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do ‘popular’. In: Da diáspora: Identidades e mediações culturais; Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 83. 85 62 aquele fato. Exceto dona Dinha, pois assim que chegamos a sua casa, ela nos revelou que essa memória é tão viva para ela, que todos os dias pensa e chora, e que minutos antes de nossa presença em sua casa, ela estava refletindo sobre o passado. No dia 19 de setembro de 2014, dona Dinha, de 37 anos, começa a rememorar o passado não tão distante. Eles estavam na fazenda perto de Ubaitaba no mato seco, aí, ele, Valdecy, pegou o dinheiro para comprar uma carne, aí o trio tava passando, ele esperou o trio passar, aí veio o Arivaldo picou uma chutada no nariz dele, de Valdecy, ele perguntou a Arivaldo o que ele queria, aí Arivaldo tornou dar outro chute, eles discutiram, Valdecy saiu e veio com um facão, aí começou dar os golpes de facão.86 Sobre algumas mortes de ciganos na cidade de Ubatã, logo depois deste crime, dona Dinha nos sugere que talvez não tenha sido seu Manoel Teófilo que organizou uma matança de ciganos na cidade para vingar a morte de seu filho, “o cigano que tinha rixa dos outros ciganos, aproveitou essa chance para poder se vingar e dizer que foi por que dessa briga”. Percebemos nos momentos das entrevistas que, a memória articula o presente com o passado na tentativa de trazê-lo para o presente, trazer somente frações de um passado que se lembra ou que se quer lembrar, a partir de estímulos atuais. No caso aqui tratado, as matérias do jornal “O Diário de Itabuna” serviram como um destes estímulos. Ressaltamos que são versões de um mesmo crime. É possível observar que, um mês antes do comentado julgamento em notícia de 27 de Abril de 1984, o Jornal O Diário de Itabuna teceu seu próprio julgamento sobre os ciganos ao denominá-los, genericamente, como “assassinos do estudante”. Portanto, a acusação foi feita de forma precipitada, por parte do texto jornalístico, pois a condenação só aconteceria em maio do mesmo ano de 1984, portanto um mês depois da “sentença” d’Diário de Itabuna. Ao mesmo tempo, aquele veículo de comunicação negligenciou os acontecimentos posteriores que resultaram na perseguição da comunidade cigana em Ubatã. O jornal, mais uma vez criminalizando com antecedência, compreendeu que era mais importante salientar a presença de um criminalista conhecido nacionalmente atuando no caso do assassinato, do que a presença 86 Entrevista realizada com dona Dinha, parente próxima de um dos ciganos envolvidos no assassinato em Ubatã, 2014. 63 de helicópteros em uma cidade de aproximadamente, 25 mil habitantes, com pessoas mascaradas que surgiam na captura de ciganos, nem mostrou a desconstrução de suas casas que ficavam concentradas em um bairro da cidade conhecido como bairro dos ciganos, denominado hoje de bairro Esperança. O criminalista Evaristo de Morais Filho, um dos mais famosos do país, na próxima segunda-feira vai participar de um julgamento na cidade de Ubatã, quando acusará os ciganos Valdecy Barreto da Gama e Edney Fiúza Barreto, assassinos do estudante Arivaldo Teófilo da Silva, de 19 anos de idade. O crime ocorreu no dia 31 de maio de 1981, durante a micareta da cidade e abalou a população local. Ficou apurado pela polícia que a briga entre a vítima e os ciganos nasceu de um pequeno desentendimento com Valdecy. Além de apanhar um facão, Valdecy se ajuntou a Ediney Fiúza Barreto, também conhecido por “Edinho” para matar Arivaldo Teófilo.87 Na escrita do texto daquele Jornal, podemos acompanhar ainda alterações nos sobrenomes dos ciganos, quando comparamos com a matéria anterior do dia 04 de maio de 1984. Valdecy, cujo sobrenome aparece na primeira matéria como Fiúza Barreto, nesta reportagem ocorre uma mudança dos sobrenomes, passando Valdecy Fiúza Barreto a ser identificado como Valdecy Barreto da Gama. O mesmo acontece com o sobrenome do outro cigano: Edney. A troca dos sobrenomes pode ter sido uma confusão feita pelo jornal, mas não devemos descartar a possibilidade de que, talvez, os próprios ciganos tenham, em depoimento, feito essa confusão entre os sobrenomes. Afinal, está é uma prática de estratégia intencional muito comum entre os ciganos, como forma de proteção individual e de grupo. Porém, se não podemos afirmar que o jornal tivesse qualquer propósito ao fazer confusão com os sobrenomes dos ciganos envolvidos, o “deslize jornalístico” sugere a incompreensão sociocultural daqueles a quem não interessava levar em conta as especificidades e sutilezas da identidade familiar cigana. Seu Gerisnal Rebouças narra que a família do cigano Ediney (“Edinho”) foi “quase toda” perseguida e morta. Porém cabe destacar, o jornal em estudo não faz nenhuma menção à violência e à vingança gerada contra os ciganos na cidade de Ubatã. Nos noticiários policiais, mesmo quando os ciganos não aparecem de forma primária na condição de criminosos, surgem de forma secundária. Em toda a leitura do Jornal de Ipiaú “Uma imprensa livre para um povo livre” do diretor e proprietário Joanito Rocha, só encontramos um breve texto sobre “A cigana e o destino”. O jornal 87 Idem. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1984, p. 04. 64 traz uma representação da mulher cigana como aquela ligada diretamente à leitura da mão, à quiromancia ou buena dicha e à leitura de cartas. Apresenta desse modo, uma mulher que ambiciona apenas o dinheiro. Nesse mister, ludibriar as pessoas sobre o destino delas é a marca que definiria qualquer cigana. Mais ainda, ela é vista por aquele jornal, como “astuta vendedora de sonhos e de confusões” ou “corretora dos destinos”. Sobre o papel desempenhado pela cigana, o jornal afirma: São astrólogos, quiromantes, cartomantes e a popularíssima cigana, cujos poderes de previsão crescem na proporção do dinheiro que recebe. As “consultas baratas” só trazem respostas insignificantes e corriqueiras, que não causam emoções e nem suspiros. Não sei por que as linhas da mão ficam ilegíveis quando pertencem a um consulente pobre.88 Na realização do nosso estudo, estamos contrapondo as falas contidas nos depoimentos orais, sobretudo as falas da família Fortuna Rebouças, com outras leituras que nos chegam de entrevistados não ciganos e das notícias de jornais. Destacamos Analisamos, sobretudo, as narrativas do Seu Gerisnal Rebouças, o chefe daquele núcleo familiar, por ser para os outros membros da família, segundo eles mesmos dizem, um “porta voz” dos demais. Buscamos analisar as posições e as contraposições dos discursos orais dessa família. Para isto, apreendemos as memórias individuais e coletivas do grupo familiar Fortuna Rebouças, acompanhando facetas de suas histórias e jornada até Itabuna, no provável período de chegada e de fixação daquela família na cidade, (entre 1980-1990). 88 Jornal de Ipiaú, 1965, p.03. 65 2.3- A TRADIÇÃO: “A PESSOA NASCENDO CIGANO É CIGANO. MAS, TEM QUE VIVER A TRADIÇÃO” – A FORMAÇÃO DOS FORTUNAS REBOUÇAS As décadas de 1980-1990, como salientamos anteriormente, constituem nosso recorte cronológico. O início da década de 80 do século XX, marca a chegada da família Fortuna Rebouças na região do sul da Bahia e na cidade de Itabuna. Em 1990 aproximadamente, essa família fixa residência na cidade, tendo contato com o álbum genealógico familiar sobre a família Rebouças (família não cigana), organizado pelo não cigano José Antônio Formigli Rebouças, denominado como: Álbum de família: Perfis e Genealogias.89 Neste levantamento genealógico, parte das origens dos Fortuna Rebouças (família cigana) aparece registrada. Lendo o Álbum genealógico familiar e ouvindo as entrevistas dos Fortuna Rebouças é possível acompanhar que aquela família em sua origem paterna não era totalmente cigana. Segundo conta Gerisnal, seu pai (Juvenal Fortuna Rebouças) pertencia a uma família não cigana dos Rebouças. Entretanto, após ter fugido com Seu Gustavo Fortuna Ribeiro, considerado “um cigano legítimo por ser de origem cigana, seu Juvenal, deixou a família dos Rebouças” se tornou parte da família dos Fortuna, uma família de ciganos. Algumas das páginas do Álbum de família: Perfis e Genealogias, reservadas para descrever “um pouco” da história de Seu Juvenal Fortuna Rebouças (pai de Gerisnal) e da família Fortuna Rebouças, possibilitam ponderações sobre as origens daquele grupo familiar. Um dos capítulos, tendo como título “Capitão Juvenal Fortuna Rebouças e sua família cigana”90 apresenta estas origens da seguinte maneira: Nos arredores de Itabuna, há muitos anos, vive uma família cigana com o sobrenome Rebouças. Seu capitão, patriarca e chefe é Juvenal Fortuna Rebouças. Juvenal deve estar atualmente girando em torno dos oitenta anos de idade. Diz-se natural de Tartaruga e afirma pertencer a família Rebouças. Suas recordações de infância e dos 89 REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. Este livro foi feito por um não cigano, produzido para homenagear o centenário de nascimento (1893- 1993) de Seu Daniel Miranda Rebouças. 90 REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 58. 66 antepassados são vagas e algumas confusas, mas sua fisionomia é semelhante a dos Rebouças de Amargosa, parece confirmar a historia que nos conta. Conta Juvenal que é filho de Gustavo. A narração de Juvenal relata que, quando era garoto em Tartaruga, aprendia a ler e escrever com minha avó Ana Miranda Rebouças, conhecida como Don’ Ana. Por suas danações, minha avó aplicou-lhe alguns bolos de palmatória. Havia passado um bando de ciganos por ali na véspera. Juvenal, então resolveu fugir e se juntar aos ciganos. De fato fugiu e alcançou o bando acampado a meio caminho entre Tartaruga e Milagres, no arruado chamado Déreis. Juntou-se aos ciganos, tornando-se um deles (REBOUÇAS, 1994, p. 58). Salientamos que a produção deste álbum foi feita por um não cigano pertencente à família Rebouças. Talvez por isto dedicou poucas palavras para descrever quem era Seu Gustavo – homem que acolheu seu Juvenal. Do mesmo modo, é possível atribuir às origens não ciganas de seu autor a utilização do termo “bando”, quando se refere aos ciganos com os quais Seu Juvenal “fugiu”. Começa, portanto, uma relação de afetividade entre o seu Gustavo que era considerado um cigano e seu Juvenal, um não cigano, pertencente a outra família, a dos Rebouças. Porém, mais tarde, se tornaria um cigano ao passar a morar com a família de ciganos dos Fortuna, reafirmando assim, simbolicamente, por meio do casamento, sua identidade cigana. Porém, sem deixar de considerar estas ressalvas, acompanha-se no Álbum genealógico que Seu Juvenal não era “totalmente cigano” por não “ter nascido só de ciganos”, ou seja, por não ter nascido de pais de etnia cigana, pois, seu Juvenal fazia parte da família não cigana dos Rebouças. De acordo com o texto, até sua “fisionomia” era “semelhante a dos Rebouças de Amargosa”. Mas tornou-se cigano ao se “juntar” com eles. É interessante salientar que a família dos Fortuna Rebouças nasce a partir das relações entre ciganos e não ciganos. Somente com a união matrimonial de Seu Juvenal com Dona Prosperina Fortuna Ribeiro (nome da mãe de Seu Gerisnal, antes do casamento), é que surge a família cigana dos Fortuna Rebouças. O Álbum de família: Perfis e Genealogias registra o surgimento dos Fortuna Rebouças. Muito tempo depois, casou-se [Seu Juvenal] em Jequiriçá, cidade que fica as margens do rio do mesmo nome, rio que nasce no fundo das casas de Maracás. Sua esposa era a bela Prosperina, com Prosperina, 67 Juvenal teve doze filhos: Jerisnal, Augusto (falecido em 1992), Aderbal, Ubirajara, Salomão, Adigenal, Jorgeval e Risomar. Ao todo, oito homens. As mulheres são quatro: Italva, Violeta, Risoleta e Riza. Prosperina também é falecida, mas são numerosos os seus netos e bisnetos.91 Foto de Senhor Juvenal Fortuna Rebouças e Senhora Prosperina Fortuna Rebouças. Fonte: REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de Família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. Na sequência, o Álbum prossegue descrevendo o ramo familiar pertencente a Seu Gerisnal, cujo nome encontra-se grafado como Jerisnal. Jerisnal Fortuna Rebouças, o filho mais velho de Juvenal, com 52 anos, é casado com Ione e tem os seguinte filhos: Diaçui, Jussiara, Lindiara, Juvenal Neto, Luciara, Cosme e Gardênia. Diaçui é casada com Walter Ribeiro Dantas e já deu a Juvenal os bisnetos [e a Gerisnal, os netos]: Maiane, Diego e Walter. Jussiara é casada com Temístocles Silvestre Farias e também já deu a Juvenal os bisnetos [e a Gerisnal os netos], Daiane e Danilo. Lindiara é casada com Eliomar Fiúza Barreto, seus filhos são: Jaqueline e Faionara. Luciara tem como esposo Lindomar Rodrigues de Almeida e sua filha é Fernanda [e Rodrigo, tudo indica que no momento do estudo ele ainda não era nascido]. Juvenal Neto [Este não é o nome correto do filho de Gerisnal com Dona Ione, e sim, Joceni Fortuna Rebouças, ele é apelidado dessa forma, talvez por ser o neto mais velho de seu Juvenal e o primeiro filho do casal. Permitindo-nos refletir que, talvez essa mudança do nome seja uma espécie de tributo à Seu Juvenal Fortuna Rebouças]. Ele é casado com Keila Pinheiro Dórea e o filho é Ricardo 91 Idem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 58. 68 [o filho do casal faleceu ainda jovem em acidente de carro. Mas, nasceu Tarcisio, único filho do casal, atualmente].92 Aqui cabem algumas ponderações sobre a relação entre os considerados ciganos e os não ciganos. O seu Gerisnal faz questão de destacar sua insatisfação em relação ao casamento dos seus irmãos com mulheres não ciganas. Para ele, a relação matrimonial entre ciganos com não ciganas não poderia ser mantida sob nenhuma condição. Porém, percebemos que ele mesmo nasceu a partir da relação entre sua mãe, que era cigana de origem, e seu pai que não era. Logo, toda a sua família de certo modo, é resultado dessas relações de ciganos com não ciganos. Mesmo sabendo que sua família se origina a partir do relacionamento entre uma cigana com um não cigano (a união matrimonial entre a cigana Prosperina e o “não cigano” Juvenal) seu Gerisnal é contrário não ao casamento entre seus pais, mas ao relacionamento matrimonial estabelecido entre seus irmãos que são casados com mulheres não ciganas. De acordo com o patriarca da família Fortuna Rebouças, o relacionamento tem que ser entre homens ciganos com mulheres ciganas. Vale observar que o senhor Juvenal Fortuna Rebouças, segundo seu Gerisnal, era um “cigano mestiço”. De acordo com seu Gerisnal, seu pai não nascera cigano e foi adotado por uma família cigana quando ainda era pequeno. Foi a criação de seus pais adotivos que tornou o senhor Juvenal um cigano “Fortuna Rebouças”, conforme depoimento a seguir. Eu [Gerisnal Fortuna Rebouças] sou cigano original pela parte de minha mãe. Meu pai já era misturado e minha mãe era cigana legítima. Meu pai foi criado no meio de ciganos. O parente dele pegou ele pequeno e casou ele com minha mãe Rebouças. É por isso que tem a Família Rebouças. Entendeu? Porque meu pai era da Família Rebouças, Rebouças é do meu pai. O cigano pegou meu pai e criou ele. Então ele ficou como cigano. Agora, as irmãs dele tudo ficou como irmão, porque foi criado tudo junto. Ele ficou como cigano mesmo. (Seu Gerisnal: julho/agosto de 2014). 92 Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 58. 69 Pela narrativa acima é possível pensar que Seu Juvenal Fortuna Rebouças (um “cigano de criação”), ao casar-se com Dona Prosperina Fortuna Rebouças (uma cigana de nascimento), reafirmou sua condição cigana diante da sua comunidade. Ainda assim seu filho (Seu Gerisnal) não deixa de marcar a diferença de origem familiar de seu pai (dos Rebouças). Foi da união matrimonial entre Dona Prosperina Fortuna e Seu Juvenal Rebouças que surgiu a família aqui estudada: os Fortuna Rebouças. Pelas falas dos entrevistados é possível a interpretação de que a família Fortuna Rebouças é a base central da vida de cada um dos membros daquela comunidade. A família é o que sedimenta a construção e o fortalecimento da identidade étnica cigana. A antropóloga Cristina da Costa Pereira, estudiosa dos ciganos que vive no estado de São Paulo revela a importância da família entre os grupos e subgrupos de ciganos: “seja ele nômade, seminômade ou sedentário; analfabeto, com instrução regular ou universitário” (1991). A autora salienta que, além da etnicidade e identidade, o núcleo familiar é o elemento principal da sua estrutura socioeconômica desses grupos. Ainda sobre o assunto, outra dimensão e característica marcante entre as famílias ciganas é a subalternidade feminina dentro do núcleo familiar. Subalternidade que transparece nas falas de Seu Gerisnal e também nos argumentos e análises de alguns autores que estudamos. Mesmo se opondo à relação entre ciganos e mulheres não ciganas como é o caso de alguns dos irmãos e filhos de Seu Gerisnal o patriarca da família Fortuna Rebouças “ainda tolera” este tipo de relacionamento. Não obstante, Seu Gerisnal rejeita esta possibilidade quando se refere a uma cigana casar com um não cigano, salientando que: “eu tenho cinco filhas, todas elas eu que fiz o casamento, arranjei o noivo”. Seu Gerisnal nos explica que: Eu não permitiria isso não, casar com não cigana. Tem uma sobrinha minha que não é cigana, é mestiça. Nos tempo de minha mãe não tinha ninguém casado com mulher que não era cigana. Meus irmãos são casados com mulheres que não é cigana. O Ubirajara, Salomão, Risomar, eles têm filhas que não são ciganas já estão casando fora. Lá vive quase igual ao pessoal que não é cigana, a roupa já é daquele jeito, já veste calça, já vão casar com gente que não é cigana. Já tão perdendo a tradição por parte deles. Cigano já tem aquele ritmo, já vem de século, de bisavós e avós. Já a parte dele não é. Já tá misturado 70 com não cigana. Minha parte já é diferente. Eu tenho cinco filhas, todas elas eu que fiz o casamento, arranjei o noivo.93 Cosme Fortuna Rebouças, 27 anos, o filho mais novo de Seu Gerisnal Fortuna Rebouças e de Dona Ione Fortuna Rebouças, continua com a mesma compreensão de seu pai quando o assunto é matrimônio entre ciganos e não ciganos. Cosme explica que preservar o casamento entre indivíduos da mesma etnia é uma tentativa de manter a tradição daquele grupo e seus traços familiares. Neste sentido, um costume que aquela família considera como um dos mais importantes é o casamento entre ciganos. Segundo os depoentes da família Fortuna Rebouças, o relacionamento conjugal entre ciganos é essencial para a manutenção da cultura, história e identidade cultural. Por exemplo, cabe às mulheres a responsabilidade de casarem virgens e obrigatoriamente com ciganos. Compete às mulheres, não só a preservação do estilo de vida cigano, mas também transmitir os costumes entre as gerações, preservando os traços culturais daquele grupo familiar. Desta maneira, a função sociocultural das mulheres ciganas dentro da organização familiar é também a de guardiãs culturais. Tanto no discurso de Seu Gerisnal, quanto no de seu filho Cosme, acompanhamos a lógica argumentativa de preocupação com relação à manutenção do grupo, do sentimento de pertença da identidade cultural e étnica. Cosme concebe que a tradição e os costumes ciganos só serão mantidos a partir da vivência e da submissão aos estilos de vida cigana. Esse negócio de cigano casar com pessoa de fora, o homem casar com essas mulheres que não são ciganas, tá misturando a tradição da gente. Os filhos já crescem de outro modo, crescem pra fora, crescem fora da gente. Meus tios casaram com mulheres que não eram ciganas, mesmo. Tem um que mora longe da gente. O cigano pra ele ser criado como cigano mesmo, como no caso desse primo meu, tinha que viver junto com os ciganos pra ele ver como é a tradição da gente. Só tem o pai, e o pai não vive dentro de casa, o pai só anda pelo mundo, é criado pela mãe e a mãe só anda pela tradição de lá, aí vai acabar perdendo a tradição. As filhas de meus tios que já tá se formando não usam vestidos mais, vestem normal, não anda mais com ciganos, perdeu a tradição, muitas dela não sabe nem nossa linguagem, nem nosso idioma não sabe, aí a gente não considera cigana não, aí fica 93 Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014. 71 difícil de arrumar casamento para elas com ciganos. A pessoa nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição.94 Na fala de Cosme sobressai a preocupação em manter a etnia e a identidade cigana. Percebe-se que ser cigano, para o entrevistado, não é só ser filho de cigano, mas também viver na cultura cigana e viver próximo de outros ciganos. Revela-se ainda na fala de Cosme um pouco uma das razões da crítica ao casamento entre ciganos e não ciganos. As primas deles, por ter um pai cigano ausente do lar, são criadas com base em valores, comportamentos e costumes não são ciganas. Em outras palavras, na compreensão de Seu Gerisnal e Cosme, a relação entre ciganos e não ciganos provocaria um choque cultural e, posteriormente, o distanciamento do (a) cigano (a) do modo de vida tradicional daquela cultura. Por isto Cosme salienta que “a pessoa nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição”. Nas fotos a seguir, tiradas em décadas distintas 1998 e 2011, observa-se o significado das palavras: viver e andar na tradição. Nas imagens os membros do núcleo familiar Fortuna Rebouças vestem as roubas da tradição de seu povo, assinalando o que podemos chamar de resistência sociocultural. Família Fortuna Rebouças em Itabuna, 1998. Fonte: Acervo particular Filhas, esposa e bisneto de Seu Gerisnal, 2011. Fonte: Acervo particular Vejamos o que consta no Álbum de família: perfis e genealogias sobre a noção e o significado de família e da identidade étnica entre os ciganos. 94 Entrevista realizada com Cosme Fortuna Rebouças, o filho mais novo do casal (Seu Gerisnal e dona Ione Fortuna Rebouças) em Itabuna, 2014. 72 O sentimento de família é muito intenso entre os ciganos. Os casamentos muitas vezes são feitos entre parentes, para preservar os costumes. Os jovens casam-se muito cedo e os pais geralmente interferem muito nisso. Alguns dos filhos de Juvenal não se casaram com ciganas e hoje moram na cidade fora do bando.95 Nesta direção, a responsabilidade de Seu Gerisnal Fortuna Rebouças, como patriarca da família é a de manutenção do casamento entre ciganos dentro do seu núcleo familiar, pensando na continuidade e legitimidade de sua condição cigana. Talvez este seja um dos maiores desejos daquele chefe patriarcal e de seus familiares. O grupo familiar é assim um elemento fulcral para a construção da identidade étnica cigana dequele grupo familiar na cidade de Itabuna. Cosme, novamente, salienta a importância da família “Cigano é mais unido. Eu acho que a gente respeita mais os familiares da gente. Não tem esse negócio de quando fica mais velho joga no asilo. A gente não faz isso, jamais. A gente não despreza família”96. De acordo com Cosme Fortuna Rebouças, família diz respeito à função que cada membro desempenha dentro do núcleo familiar. Na nossa análise pudemos perceber que, na arte cotidiana da negociação por parte dos homens desta família, cada componente familiar possui seu papel traçado para o funcionamento da dinâmica sociocultural. Nas entrevistas com o Seu Gerisnal e seus parentes, pudemos apreender a lógica cotidiana deste grupo familiar sobre o trabalho “entre eles” e com os “de fora”. Por compreender que a família é um elemento vital, o trabalho segue uma lógica criativa de negociação própria de algumas famílias ciganas. A família aqui em estudo desenvolve um trabalho “com a cabeça” e/ou um trabalho “de dentro para fora”.97 Este trabalho é reservado exclusivamente para os homens, não cabendo interferência da mulher. O homem cigano, em suas negociações econômicas, trabalha em casa e suas viagens a negócio não são demoradas. Na maioria das vezes viajam para trocas e vendas de carros e outras atividades econômicas, tendo na casa o seu maior ponto de apoio e referência. Acreditamos, portanto, que a prioridade do homem cigano 95 Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 58. 96 Cosme Fortuna Rebouças. Itabuna, 2014. 97 Alguns termos citados foram retirados das falas de seu Gerisnal em seu depoimento. Fazer um trabalho “com a cabeça” e/ou “de dentro para fora”. O primeiro refere-se, ao trabalho intelectual e o segundo, para designar a negociação entre ciganos e os não-ciganos. 73 negociador é manter a arte do negócio sem perder as relações de proximidade cotidiana com a família. A família estudada possui residência na rua denominada “Rua de Palha”, localizada na Avenida Itapé, próxima ao Centro Industrial da Nestlé bairro de Ferradas98 na cidade de Itabuna. Este bairro é afastado do centro do município, característica que corresponde à relação de algumas famílias ciganas com as cidades. Esta preferência por lugares mais distantes da área central das cidades também transparece em alguns dos depoimentos. Segundo Senhor Gerisnal Fortuna Rebouças, a decisão de morar afastado do centro é “por conta da correria e da agitação que se concentra geralmente nos centros de algumas cidades”. Porém, também decorre “por se sentirem mais próximos dos seus” (Seu Gerisnal: julho/agosto de 2014). Os Fortuna Rebouças mantêm residência fixa em Itabuna até os dias atuais. No entanto, a cidade de origem do Senhor Gerisnal é Maracás-Bahia, localizada nas proximidades do município de Jequié. O patriarca da família Fortuna Rebouças nasceu no ano de 1942. Segundo ele, saiu de sua cidade natal ainda “muito pequeno”, com “cerca de três a quatro anos de idade”. Senhor Gerisnal explica que deixou Maracás com seus pais, Juvenal e Prosperina Fortuna Rebouças e seus irmãos para percorrer outras cidades da região do Sul da Bahia, como podemos verificar no depoimento do próprio Seu Gerisnal. Nasci em Maracás-Ba. Depois eu me criei por aqui mesmo pra região de Itabuna. Eu vim pra cá com meu pai e com a família toda. Saí de lá pequeno. E agora eu tô aqui em Itabuna. Eu vim de Maracás para a região com uns três a quatro anos de idade, eu acho. Não para Itabuna, nós vimos pra Jequié e Aiquara. Fomos viajando que nem cigano: aqui, acolá. Entendeu? Vida cigana. Viajando. Agora, paramos mesmo aqui em Itabuna. Tem vinte e cinco ano mais ou menos. Meu pai faleceu tem nove anos, minha mãe faleceu em oitenta e dois e eu morava em Iguaí. Também parei um pouco em Iguaí, morei uns oito anos ou nove anos. Entendeu? De Iguaí eu vim pra aqui, pra Itabuna. 98 “Ferradas foi transformada em distrito em 1916, desincorporada de Ilhéus e incorporada a Itabuna, se tornou palco de violência do cenário político regional, principalmente, durante a Revolução de 1930. Está situada no coração da Mata Atlântica da área territorial do Brasil, precisamente no Estado da Bahia, na lavoura cacaueira, com suas formações florestais às margens do rio Cachoeira, dentro dos limites municipais de Itabuna. O patrimônio ambiental e ecológico é cortado pela BR 415, Rodovia Itabuna/Ibicaraí. O perímetro urbano, que dista aproximadamente 10 km do centro do município de Itabuna, é marcado pelo rio Cachoeira e também cortado pela mesma BR. No ano de 1817, Ferradas reunia homens de toda a sorte, inclusive alguns espanhóis e uma aldeola com várias famílias de índios camacãs, mongoiós e patachós. Era parada obrigatória para os viajantes e tropeiros que paravam para ferrar seus animais”. In: VELÔSO, Gustavo. Ferradas: um capítulo na história do Brasil. Itabuna: Via Lirrerarum, 2010, p.17-20. 74 Eu vim com meu pai, meu pai ainda era vivo, vim com a minha mãe Rebouças, com minha família toda. Nós compramos uma fazenda ali em Ferradas, fiquemos ali. Depois de Ferradas eu vim pra aqui - Rua de Palha, de Rua de Palha. Eu mudei para Nova Itabuna e fiz casa lá. Depois uns tempos meu irmão faleceu. Eu passei uns quatro a cinco meses em Jequié, depois tornei voltar e aí fiquei aqui na Rua de Palha, fiz casa aqui.99 Como afirma seu Gerisnal, toda a família veio para Itabuna, precisamente para o bairro de Ferradas, criando assim residência fixa a partir da década de 1980. Esta década marca a presença da família Fortuna Rebouças na região sul baiana, bem como na cidade de Itabuna. Naquele momento a família era chefiada pelo Senhor Juvenal Fortuna Rebouças (pai do Senhor Gerisnal) que vivia do comércio de animais (burros e gados), de negociar com fazendeiros da região e dos empréstimos de dinheiro a não ciganos. Anos mais tarde, Seu Gerisnal passou a negociar com fazendas e carros. Ao analisar alguns depoimentos do Seu Gerisnal, percebemos que sua família cigana naquele momento era seminômade. Os Fortuna Rebouças viajavam montados em animais com suas barracas pela região do Sul e Sudoeste da Bahia. Compravam casas para passar alguma temporada até recomeçar as andanças. Ora viviam viajando em suas peregrinações, acampando e “batendo” barracas; ora habitando residências temporárias. Mas, conforme depoimento de Cosme Fortuna Rebouças, aquela família continuou na estrada, uma espécie de viagem reelaborada pelo grupo. Quando pontua que “a gente viaja ainda, a gente viaja pra fazer negócio, agora pra viajar pra morar, mais não. Cigano viajava antigamente pra tá negociando e hoje a gente viaja pra negociar, mas volta pra casa”.100 Quando perguntamos se a família praticava a quiromancia e a cartomancia, Jocenir Fortuna Rebouças logo salientou que “não existe não. Isso aí só os Turcos. Isso aí é tudo mentira, é um jeito de ganhar dinheiro. Cigano é muito esperto”. Conforme as respostas eram dadas pelo entrevistado, nós nos sentimos instigados a perguntar de que forma já que cigano é muito esperto, na concepção do entrevistado poderíamos entender esta esperteza, como algo positivo ou negativo? 99 Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014. Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014. 100 75 Depende do jeito, depende do contexto. Esse negócio de ler mão é negativo, queima o filme da gente. A esperteza positiva é a pessoa saber se virar, né? Se virar com a vida, ele tá tentando ganhar o dinheiro dele sem precisar roubar, sem fazer nada, a pessoa tem que aprender a se virar com a vida.101 Durante as entrevistas com os Fortuna Rebouças acompanha-se também a forma como os mesmos pensam o modo pelo qual os não ciganos encaram seus costumes. Numa de suas entrevistas, Cosme Fortuna Rebouças, desabafa: Tem muita gente que tem inveja do nosso estilo de vida, dizendo que a gente não trabalha, não tem trabalho fixo e porque cigano ganha dinheiro. Muita gente questiona isso perguntando porque que a gente não trabalha e ganha dinheiro? Sabe, muita gente não gosta da gente por causa disso também. Dizem que a gente tem vida boa. Eles pensam que a gente rouba, alguma coisa assim. Porque nossa vida é boa, a gente fica aqui, não tem chefe pra mandar na gente, não tem nada, a gente faz o que a gente quer na hora que a gente quiser e graças a Deus não falta nada. Queria que eles entendessem isso. Muita gente me pergunta como é que cigano ganha dinheiro. É como eu te falei, a gente trabalha com a cabeça, a gente não faz trabalho braçal, só trabalha com a cabeça, mesmo. Tem que ver um modo fácil pra ganhar dinheiro.102 Cosme Fortuna Rebouças, ao responder manifesta emoção, revelou algumas incompreensões dos não ciganos sobre o seu modo de vida e de sua família. Sobretudo no que se refere às relações socioeconômicas entre ciganos e não ciganos. Ao mesmo tempo, a fala de Cosme assinala que aquele grupo cigano interage, ao seu modo, com os não ciganos e, talvez, por isto, de importância que oferece em esclarecer como “ganham a vida” que sua fala demonstra. O entrevistado revela que “queria que os não ciganos entendessem” a forma de como eles “ganham dinheiro” e trabalham: “com a cabeça” e não “roubando”. A preocupação do filho de seu Gerisnal remete a ideia de que todo grupo sociocultural, mesmo quando busca a manutenção de suas tradições e identidades, interagem de forma dinâmica com outros sujeitos, reelaborando estas interações em suas vivências. 103 101 Entrevista realizada com o filho mais velho do casal (seu Gerisnal e dona Ione Fortuna Rebouças) em Itabuna, 2014. 102 Idem. Cosme Fortuna Rebouças. Itabuna, 2014 103 Ver Canclini, 1997; Certeau, 1994; Chaui, 1985; Geertz, 1989; Thompson, 1998. 76 Vale destacar que, ao analisarmos a fala dos entrevistados e o Álbum de família dos Rebouças, encontramos elementos de mudanças e permanências no estilo de vida daqueles ciganos. Ou seja, aquele grupo familiar, como quase todos os grupos sociais, vivenciou e vivencia um constante processo de reelaborações socioculturais na cidade de Itabuna. A vida dos ciganos tem passado por grandes transformações nas últimas décadas. Hoje raramente se vê o bando perambulando com tropas estrada a fora. Sua vida hoje é mais sedentária, mas ainda muitos costumes são preservados. O Capitão Juvenal Fortuna Rebouças mora em ampla barraca sem paredes, coberta de palha. Os filhos possuem barracas de lona ao redor da sua. As ciganas continuam com seus vestidos longos, enfeitados, de cores vistosas que acentuam muito as formas femininas. Os homens vestem-se comumente, hoje andam sempre de carro, mas os mais idosos sentem muita nostalgia do cavalo. Juvenal, que já comprou e vendeu muitas fazendas, sonha em ter seu pedaço de terra para ali ter seus animais e andar montado. Os filhos acham que isso já não vale a pena.104 Atualmente, além de mudar a característica de itinerância, o grupo não vive mais em barracas e nem mantém a arte da negociação com animais (burros), como bem apontam os fragmentos extraídos do Álbum Genealógico. Da mesma forma, percebemos esta mudança em aspectos do estilo de vida daqueles ciganos, quando Seu Gerisnal Fortuna Rebouças é questionado sobre a realidade social dos ciganos na cidade de Itabuna. Tão mudando, eles [os não ciganos] tão vendo a realidade. Antigamente, cigano andava pelo mundo, aqui e acolá. Hoje ficou tudo difícil. O cacau acabou. Entendeu? Acabou aquela tradição de cigano com animais, com burro. E hoje ciganos já tão mais fixo na região. Cada qual no seu lugar, com seu carro. Então, antigamente ele não tinha morada certa, vivia pelo mundo. Qualquer pessoa que quando chega em um lugar, chega e ninguém conhece, daí o camarada [o não cigano], já fica meio cismado, mas não é só com cigano. Então, quando você mora no lugar três, quatro ou cinco anos, eles falam assim: fulano mora ali há muitos anos, nunca vi falar mal dele não.105 104 Op. cit. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 60. 105 Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014. 77 Percebe-se na fala de Seu Gerisnal a sedentarização entre algumas famílias ciganas na região, incluindo o núcleo familiar do próprio entrevistado. Os Fortuna Rebouças não têm mais o nomadismo como estilo de vida e nem negociam com animais, como faziam quando iniciaram seus primeiros contatos com a cidade de Itabuna. Alguns efeitos da modernidade e transformações na economia local alteraram significativamente, a dinâmica sociocultural e econômica do grupo. Porém, estas adaptações que se observam no cotidiano dos Fortuna Rebouças não significam que eles deixaram de ser ciganos. O depoimento de Dona Ione Fortuna Rebouças, narrando o momento quando os Fortuna Rebouças vão morar em Itabuna, nos ajuda a refletir sobre esta interação. Na minha parte eu me acostumei logo, todo mundo aqui é gente boa. Os meninos vivia tudo mais a gente aqui, essa rua toda, essa favela toda aqui não saíam da minha casa. Se acostumaram com a gente. Hoje tão mais por fora, mas na hora que a gente chegou logo aqui (1982, aproximadamente), não saía daqui o pessoal. Eu acho que em cidade pequena, em lugar pequeno assim, as pessoa se identifica mais com a gente porque cigano é um povo simples, gosta de fazer amizade. Ali em Ubatã mesmo cigano tudo é conhecido. Todo mundo gosta. Pessoa só não faz amizade com cigano porque não quer.106 A concepção da identidade étnica e as relações socioculturais entre ciganos e não ciganos é manifestada na narrativa de Dona Ione. Percebe-se que a adaptação é mútua quando desejada, não significando necessariamente perda de cultura. No entanto, importa novamente ponderarmos que este grupo familiar, assim como outros, possui também uma trajetória marcada por estigmas e estereótipos, como assinalado por Cosme Rebouças em sua entrevista: “Sabe, muita gente não gosta da gente por causa disso também. Dizem que a gente tem vida boa. Eles pensam que a gente rouba, alguma coisa assim.” Um dos trechos do Álbum Genealógico da família Rebouças possibilita acompanhar como os Fortunas Reouças também foram estigmatizados. Explica o autor do Álbum Genealógico que “Juvenal (pai de seu Gerisnal), sempre se sentiu acanhado em procurar os parentes Rebouças, por ter entrado para o bando dos ciganos”. 106 Entrevista realizada com dona Ione Fortuna Rebouças, esposa do chefe familiar cigano, seu Gerisnal Fortuna Rebouças em Itabuna, 2014. 78 Mesmo quando, aparentemente, admite reconhece que não seria demérito ser cigano, as palavras de apoio revelam que seu autor desconhece a cultura cigana. Creio ter condições de dizer ao Juvenal em nome de toda a família Rebouças que o nosso nome não se desonra por alguém ser cigano. Desonra o nome da família aqueles que se entregam ao vício ou à desonestidade, sejam ciganos os não. Na vida de ciganos há muitos valores importantes. Deus queira que vocês continuem fiéis a esses valores e preservem as tradições, buscando adaptar-se ao mundo moderno, que em seu bojo tem coisas muito boas e muito ruins. Vocês constituem uma minoria que deve ser respeitada, preservada e incentivada. Busquem uma escola especial, procurem mais a arte, cultivem a música, pratiquem a religião autêntica e criadora, o cristianismo católico que vocês receberam dos antepassados. Assim vocês ilustrarão ainda mais o honrado nome da nossa família Rebouças.107 Ao findar o capítulo sobre os Fortuna Rebouças no Álbum de família: Perfis e Genealogias o autor termina com um conto lendário, sobre a cultura do povo cigano que realça sua “esperteza”, vista como algo negativo, “esperteza” como uma espécie de malandragem inerente a este povo. Considerados ciganos ricos e honestos, embora extremamente sabidos em negócios de vender e trocar animais. Foi dessa maneira que Gustavo Rebouças e sua família passou também a viver. Assim também encontramos, entre outros, os Fiúsas e Almeidas. Uma lenda narra que certa vez, um rei árabe, precisava de uma erva para remédio. Um rei vizinho possuía a erva, mas era intrigado e não a vendia, nem cedia. Sabedor da dificuldade do soberano, um cigano que por ali passava, prontificou-se a correr grande risco e roubar o medicamento tão necessário. Dias depois, levou ao monarca a erva de que precisava. Como recompensa o rei decretou que, dali em diante, os ciganos teriam o direito de roubar o que lhes fosse necessário para a subsistência, sem que isso constituísse crime. Assim, as pessoas não devem reclamar muito, quando os ciganos lhe levarem uma galinha ou um bode. Mas, os ciganos também não devem abusar desse privilégio.108 Por vezes, certos discursos constroem identidades ciganas para esses sujeitos, colocando-os em outros lugares, inclusive, num não lugar. No não lugar da 107 Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 60. 108 Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 60. 79 historiografia: o lugar do silêncio; na ciganologia o lugar é o da discussão sobre questões cigana, mas às vezes, também não há reconhecimento por parte de alguns ciganos; no cinema e na música os ciganos geralmente são compreendidos como uma unidade cultural exótica e, muitas vezes, são representados de forma preconceituosa; em diversos meios midiáticos os ciganos são retratados de forma estereotipada. “Na verdade, estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas”.109 Muito embora tenhamos conhecimento dessas questões de “falseamento” da imagem da identidade cigana, é importante percebermos por meio de alguns depoimentos da família Fortuna Rebouças que existe uma preocupação em tentar desmistificar as imagens criadas. Seu Gerisnal Fortuna Rebouças e todos da família vivenciam um processo de reconstituição de suas imagens para reafirmá-las de outro modo. Isto ocorre porque certos aspectos externos à vida cigana são incorporados, consciente ou inconscientemente, num constante processo de ressignificações. Neste sentido, concordamos com as categorias conceituais de Michel de Certeau. A partir delas pensamos o grupo familiar aqui em estudo não apenas como consumidor de uma cultura dominante e/ou da cultura dos não ciganos, mas fazendo uso daquilo que é pertinente dentro de interesses individuais e coletivos. Em entrevista com o senhor Gerisnal Fortuna Rebouças, ele procura explicar quem pode ser considerado cigano e, ao mesmo tempo, criticar as associações equivocadas que levam algumas pessoas a identificarem outras como cigano. Na concepção dele, só é cigano quem nasce cigano. Hoje todo mundo que negocia é cigano. Ficou essa lenda. Entendeu? Por exemplo: você se for negociante, você é uma cigana. Agora, tem uma origem cigana que nem a gente tem origem cigana. Já pegou aquele nome ali. Muita gente diz que é cigano, e não é. Só na origem para ser cigano.110 109 PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”. In: Usos e Abusos da História da História Oral. In: Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. - 4 edição- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 106. 110 Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014. 80 Compreendemos assim que a memória dos Fortuna Rebouças é acionada pelas vivências cotidianas no contexto social, cultural e econômico da cidade de Itabuna. Pierre Nora nos explica que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” e em interação com a sociedade. Sem perder de vista que a “memória é incontestavelmente da atualidade”. A memória é também, “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional.”111 CIGANOS NO INTERIOR DA BAHIA 3.1. OS CIGANOS NO SUL DA BAHIA Neste capítulo analisaremos alguns aspectos da identidade cultural e da história cigana no interior da Bahia, tendo como perspectiva o entendimento de que a cultura cigana é complexa e multifacetada, como, aliás, se apresentam a maioria das culturas. Trabalhamos com uma diversidade de fontes (literárias, jornalísticas e narrativas orais), como também, com um estudo de caso. Apresentamos parte da história de vida de um núcleo familiar cigano, bem como, narrativas de ciganos selecionados para compor este trabalho, mas isso não significa dizer que estamos construindo a história do povo cigano no interior da Bahia, o que fazemos, na medida do possível, é narrar parte da história de uma família cigana na cidade de Itabuna, interior da Bahia, para tentar compor uma história que está inserida em um complexo mosaico cultural. 111 ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era” de. In: Usos e Abusos da História da História Oral. In: Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV Rio de Janeiro, 2001. p. 94. 81 No domínio dos ciganos, não existe senão múltiplas identidades. A diferença é muito grande, pois na realidade não existem ciganos, mas sim diversas comunidades (historicamente diferenciadas) chamadas de ciganas mantendo relações de semelhança e/ou dessemelhança com as outras.112 Não é fácil falar de história, mas estas dificuldades de linguagem introduzemnos no próprio âmago das ambiguidades da história. Menos fácil ainda quando se trata de falar sobre a história sociocultural dos ciganos no interior da Bahia. Nesse sentido, a história oral nos ajudou enquanto metodologia de pesquisa a partir das narrativas orais de ciganos e de não ciganos, obtidas através de entrevistas que realizamos, em um trabalho que, durante muito tempo foi exclusividade do trabalho antropológico, realizado por antropólogos, chamado de trabalho de campo. Fizemos um exaustivo exercício para entrevistar ciganos e não ciganos em cidades diversas do interior da Bahia, a fim de coletar dados que faziam referências às memórias dos depoentes sobre suas percepções da cultura e do modo de vida cigano. Nossa trajetória de pesquisa de campo não foi uma tarefa tranquila de ser realizada, por diversos desafios e dificuldades que encontramos durante todo o processo. Começaram desde a procura dos selecionados para as entrevistas até os momentos de revisita aos mesmos. Muitos dos depoentes não ciganos, não se sentiam confortáveis em falar sobre os ciganos. Sendo também que, os ciganos não se sentiam a vontade em responder alguns questionamentos sobre eles mesmos, outros até mesmo não quiseram gravar entrevista, preferindo atuar apenas de modo informal, e outros quando procurados novamente, sinalizaram o desejo de abortar sua participação nas entrevistas. As motivações foram as das mais variadas, o que não cabe pontuar nesse estudo, mas é importante informar que, o trabalho com a história oral com grupos historicamente marginalizados não flui com tanta naturalidade. Sem contar que, uma família de ciganos na cidade de Ubatã, que mantínhamos contato “desapareceu” assim que os buscamos para dar sequência as entrevistas. Porém, mesmo com estes impedimentos, o trabalho haveria de continuar. 112 TEIXEIRA, Rodrigo, Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007, p.21. 82 A partir do momento em que a antropologia, no limiar do século XX começa a abandonar a postura evolucionista ficou patente a importância do trabalho de campo ou pesquisa de campo como o modo característico de coleta de novos dados para reflexão teórica.113 A pesquisa com ciganos nos levou a perceber que, embora os ciganos selecionados para este estudo estejam fixados no interior da Bahia, em territórios demarcados politicamente, muitos deles são fixados em espaços geralmente afastados dos centros da cidade, não entendemos este fenômeno enquanto uma naturalização espacial, uma escolha feita pelas famílias ciganas por bairros marginalizados, em especial, no sul da Bahia, mas, entendemos como uma imposição não declarada atualmente, por que o passado tratou de demarcar estas questões, pelo simples fato de serem ciganos. Uma imposição das elites dominantes, que ultrapassa os limites socioculturais, atingindo outros espaços, inclusive econômicos. 113 MATA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981, p.143. 83 Foto: Dona Ione Fortuna Rebouças ao lado direito, vestida de vestido rosa escuro e branco. A família fixou residência no bairro de Ferradas, porém, não mais nas proximidades da fábrica de chocolate “Nestlé”, mas adentrando o mesmo bairro. Itabuna, bairro de Ferradas, 1980. Em entrevista com Gilson Dantas da Cruz, um cigano, representante da comunidade cigana da Bahia e irmão do professor universitário Jucelho Dantas da Cruz, conseguimos ponderar um pouco da complexidade que é tratar com discursos orais de ciganos. Atentemo-nos para a (im)possibilidade da representação de múltiplas comunidades ciganas da Bahia e do interior. Focamos nesse momento apenas nas narrativas de um cigano representante da comunidade cigana da Bahia, mas bem sabemos das dificuldades implicadas na ideia de representação do outro, tendo em vista que não podemos falar de comunidade cigana e sim de comunidades ciganas, que variam histórica e culturalmente, embora sejam todos denominados ciganos. Eu passei a ser representante do povo cigano, nós morávamos no sul da Bahia, principalmente em Ibirapitanga, e logo jovem com a idade de vinte e poucos anos perdi meu pai e meu pai era o chefe de nossa família, uma família de onze irmãos e meu pai tinha uma certa liderança nem só na família como na comunidade cigana e aí com a ausência de meu pai, eu sendo o quarto irmão mais novo, aí comecei a liderar em minha família mesmo, comecei a ser representante da minha família e aí mudamos do sul da Bahia para aqui, para Camaçari, chegando aqui, comecei a liderar, sendo representante, uma liderança.114 A família na cultura cigana é o lugar onde a história, por meio da memória fortalece a identidade individual e coletiva dos grupos, sendo decerto o lugar da cultura, o elemento central das comunidades. Esse fato se aplica a todas as comunidades ciganas. É na família, nos laços de sangue que a cultura dos ciganos se desenvolve. Mas, o que chamamos de cultura cigana é na verdade, uma representação da cultura cigana. O tema da representatividade remete às reflexões de Tzvetan Todorov que, embora não faça referência à representação cigana, nos ajuda a pensar sobre o assunto. 114 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 84 A representação que os membros de uma comunidade se fazem de sua cultura não é algo de automático; pelo contrário, trata-se do produto de uma construção que processa em todos os instantes. As práticas sociais de um grupo são múltiplas e variáveis; ora, para construir uma representação, deve-se proceder a escolhas e combinações – em vez de refletirem passivamente a natureza das coisas, essas operações vão organizá-las de maneira peculiar. Por conseguinte, os indivíduos encontram-se imersos, não em contatos puramente físicos com o mundo, mas em um conjunto de representações coletivas que, em determinado momento, ocupam uma posição hierárquica predominante no âmago da cultura. Essas representações formam um saber oral que transmite de geração a geração ou, então, encontram-se também consignadas por escrito; elas é que conferem sentidos aos diferentes acontecimentos constitutivos da vida de uma pessoa. Nesse sentido, a cultura é a imagem que a sociedade tem de si mesma: assim, é a essa representação que os indivíduos procuram identificar-se – ou da qual aspiram a libertar-se; mas elas não resultam mecanicamente dos fatos.115 Entendemos que, entre os ciganos, ter uma pessoa como representante é quase uma regra grupal e familiar, para que as questões e conflitos familiares sejam comunicados e/ou equacionados entre eles e ajudar nas resoluções e nas interlocuções. Entendemos de todo modo, que a escolha de uma pessoa para chefiar o grupo, ou o bando, ou a família de ciganos é o que temos de mais emblemático quando pensamos em representações de comunidades ciganas. Mesmo tendo consciência dos mais variados elementos que compõem tal representação. Segundo [Gilson], a maioria do grupo cigano são pessoas muito carente de instrução, principalmente na área jurídica e policiais, e aí eu como mais esclarecido, comecei sempre a representar o povo cigano. Foi quando chegou o dia Nacional do povo cigano, que pra todos nós foi uma grande conquista, uma honra, que o nosso expresidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu o dia Nacional do cigano, 24 de maio. 115 TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Editora:Vozes. Petrópolis, Rio de Janeiro, 2010. 85 Embora, o dia nacional do cigano tenha sido um direito conquistado para o povo cigano que vive em território brasileiro, são pouco os que têm conhecimento desse decreto e, decerto, podemos afirmar que com o decreto, criando o Dia Nacional do Cigano, não houve por parte do Estado um real compromisso para com o povo cigano. Grande parte da população cigana desconhece este dia, sem falar que muitos não ciganos também ignoram esta data comemorativa. Não houve divulgação nem por parte da mídia, nem tampouco nos meios educacionais. Já faz nove anos (2007 a 2015) que, de acordo com a legislação brasileira se comemora o dia nacional do cigano no Brasil. Mas, na prática, o que permanece é o silêncio deste dia decretado em lei. De acordo com Gilson, nosso entrevistado, algumas reivindicações feitas por ele, enquanto representante da comunidade cigana do interior da Bahia, referem-se ao direito do cigano nômade viver em barraca. Começaram a chegar lideranças políticas e sempre me colocando como representante, até que tivemos várias conferências, municipal, tivemos federal e tivemos estadual e tinha que eleger um representante de cada etnia e pela unanimidade. Por incrível que pareça, eu não estava nem no dia que eu estava com problema de saúde e a comunidade cigana me elegeu como unanimidade como eu sendo representante e aí passei a ser representante da comunidade cigana e sempre que posso faço reuniões, convido aqueles mais carentes de instruções, aqueles mais jovens, essa conferência já tem uns cinco 86 anos que aconteceu mais ou menos, uma conferência que aconteceu em Salvador, tivemos a nível municipal, estadual e federal e aí colocamos todas as nossas preferências, todos os nossos desejos que nós almeja, foram colocados no papel, tanto municipal, estadual e federal, só que até agora, os nossos governantes só ficou isso no papel. Sempre que o pessoal da cultura, da SEPROMI116 me procura , sempre entra um representante a cada tempo e sai aquele representante e entra outro e aí todos eles cobram isso que a gente volte a fazer tudo que já tá feito no papel, aí eu disse a ele ‘meu amigo, eu não vou me prestar mais a isso, por que todas as nossas reivindicações já foram feitas a nível nacional, estadual e municipal, resta agora os nossos governantes colocar em prática’, uma das reivindicações é que o povo seja respeitado em seu modo de vida, por exemplo: o cigano desde que ele nasceu que mora numa barraca e as autoridades civis, militar e judiciais, quando chega um acampamento cigano, uma barraca, eles invadem pode ser qualquer hora da noite, pode ter mulher grávida, pode ter criança, pode ter idoso e não diz a hora e nem o momento, chega e invade. Isso é uma grande reivindicação não só minha, mas da comunidade cigana, pra que a barraca seja respeitada como a casa do cigano, que o cigano que viva em barraca tenha o mesmo direito que o cigano que viva em casa de alvenaria. Do mesmo modo que se tem o direito para entrar numa casa é preciso um mandado judicial, da mesma forma seja para quem more na barraca, nós reivindicamos isso, para que a barraca do cigano seja respeitada como uma casa de alvenaria, que ali é o lar, a casa do cigano.117 Observa-se que, ao explicar as reivindicações ciganas, seu Gilson da Cruz revela o desejo de participar do jogo político, no bojo do qual as chamadas minorias expõem suas dificuldades e buscam soluções para os seus problemas, conscientes de que dependem, em larga medida, da maneira como se relacionam com os poderes públicos das nações a que pertencem ou nas quais se fixaram. Mais que isso, o representante dos ciganos da Bahia, denuncia os abusos das autoridades públicas, particularmente das autoridades policiais, quando se trata de abordar o povo cigano, desrespeitando suas mulheres, seus idosos, suas crianças e, sua cultura, na medida em que não reconhecem as barracas como a casa do indivíduo cigano e, portanto, como a de qualquer outro cidadão brasileiro, inviolável. 116 SEPROMI- Secretária de Promoção da Igualdade Racial- www.sepromi.ba.gov.br Ver também: www.portaldaigualdade.gov.br 117 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 87 Notícias do jornal “A tarde118”, trazem informações que apontam a presença de ciganos como uma problemática para as cidades do interior da Bahia. A prática de expulsar os ciganos é muito comum e o jornal “A tarde” nos apresenta em toda a década de 1970, em vários municípios do interior da Bahia, ciganos nômades expulsos de seus acampamentos e muitos deles são vistos pelo jornal, como “invasores”, assassinos” e “ladrões”. Houve sem dúvida, uma política de perseguição aos ciganos, inclusive nas cidades do interior da Bahia. As perseguições são diversas, começa com os ataques às barracas de ciganos, para expulsar ou para exterminar, e termina com os mais variados adjetivos dados aos ciganos. Não é possível detectar o número de ciganos mortos durante as décadas deste estudo ‒ 1970, 1980 e 1990 ‒ mas, podemos afirmar que, as perseguições e as mortes possam ser configuradas como crimes de genocídio. Podemos ponderar a partir do jornal supracitado, a situação dos ciganos com relação ao preconceito racial. “Todo esse processo de extermínio cigano é desconhecido em pesquisas no Brasil e passou a ser objeto de estudos na Europa a partir de 1972 e, em especial, a partir da década de 1990”. O estudo feito por Ania Cavalcante lança luz sobre a perseguição e o genocídio cigano na Alemanha nazista, chamando atenção para os silêncios da história sobre a questão cigana antes, durante e depois do nazismo. Segundo Renato Rosso, foi no início do século XX que “o nazismo retomou toda a série de preconceitos, discriminações e perseguições dos séculos anteriores, tentando assim uma campanha de extermínio nunca antes empreendida.”119 A historiografia europeia mais recente cunhou o termo em romani Porrajmos para denominar o extermínio dos ciganos pelos nazistas e seus colaboradores na Alemanha e nos países ocupados (500 mil ciganos) e foi resultado de uma política planejada, direcionada, sobretudo, contra os ciganos nômades, de exclusão socioeconômica.120 118 O jornal “A tarde” foi pesquisado na Biblioteca Pública do Estado da Bahia- BPEB na Subgerência de periódicos no setor de jornais correntes na cidade de Salvador- Bahia. 119 MOTA, Ático Vilas – Boas da. Ciganos: Perseguições. In: Ciganos: antologia de ensaios. Brasília: Thesaurus, p. 297. 2004. 120 CAVALCANTE, Ania. A perseguição e o genocídio de ciganos durante o holocausto. In: Conflitos Armados: massacres e genocídios. Organizadores: Rodrigo Medina Zagni e André Borelli. Editora: Fino Traço, p. 109, 2013. 88 Não resta dúvida de que houve perseguições e genocídio de ciganos durante o holocausto na Alemanha. Perseguições e mortes de ciganos no Brasil e nas cidades do interior do Brasil também foi “resultado de uma política planejada, direcionada, sobretudo, contra os ciganos nômades, de exclusão socioeconômica.”121 Desde o início até o final da década de 1970, o jornal “A tarde” traz reportagens sobre a presença de ciganos nas mais variadas cidades do interior da Bahia, bem como, em algumas regiões do estado do nordeste. Desse modo, podemos identificar uma política anticigana, que começa na Europa e seus desdobramentos chega ao Brasil, adentrando as principais capitais e seus interiores desde os tempos coloniais. A escolha da Coroa pela capitania do Maranhão visava pelo menos a dois objetivos. Primeiro, colocar os ciganos ‘bastante afastados das áreas brasileiras de mineração e de agricultura assim como longe dos principais portos da colônia, do Rio de Janeiro a Salvador.’ Segundo, esperava-se que os ciganos ajudassem a ocupar extensas áreas dos sertões nordestinos, então ainda ocupadas por índios. Ainda que perigosos, preferia-se os ciganos aos índios. Não foram ainda descobertos documentos com dados sobre o número de ciganos deportados para o Brasil nesta época, para quais capitanias e por quais motivos. Mas sabemos que também outras capitanias receberam ciganos, principalmente a partir de 1718, outro marco na política portuguesa de deportação de ciganos.122 Encontramos documentos importantes do final do século XIX, no Arquivo Público do Estado da Bahia ‒ Seção Colonial e Provincial, Série Judiciário, Maço 2404 ‒, os quais informam a presença de uma família de ciganos na cidade de Ilhéus no sul da Bahia. Ambos os documentos são comunicações entre a secretaria de polícia da província da Bahia e a delegacia de polícia de Ilhéus, com o propósito de informar não somente a presença de ciganos, que segundo o documento era “composta de dez homens e quarenta e tantas mulheres e crianças”, mas também apresentá-los como “salteadores em Ilhéus.” De acordo com o documento, “o tenente da família de ciganos” deve ser submetido a um rigoroso interrogatório verbal, por o mesmo possuir dois dentes de ouro. No final do documento encontramos informações que talvez justifiquem tal interrogatório, os ciganos mencionados “há quinze dias se acham abarracados na 121 Ibdem, p. 109, 2013. 122 TEIXEIRA, Rodrigo Côrrea, História dos ciganos no Brasil, Recife, Núcleo de Estudos Ciganos, 1999. 89 fazenda do subdelegado”, José de Mello Sá. Os anos se passaram e a preocupação e intolerância com relação à presença cigana continuaram. As notícias do jornal A tarde da década de 1970 apontam os ciganos enquanto “bandos invasores” ou “intranquilizadores” do Estado. No jornal é possível perceber a preocupação das autoridades com a passagem dos ciganos da fronteira que ligava Sergipe à Bahia. Segundo as notícias do jornal, de 20 de setembro de 1972, a polícia estava à procura de vinte ciganos, pois aqueles “bandos de ciganos continuam intranquilizando o interior do Estado, principalmente, as zonas rurais de fronteira entre Sergipe com a Bahia”.123 Do início ao fim da década de 1970 encontramos inúmeras reportagens que evidenciam as preocupações das autoridades com a presença dos ciganos nas mais variadas regiões do Brasil e no interior da Bahia. Como por exemplo, no Ceará e em Alagoas. Constatamos essa presença, nas notícias do jornal A tarde: “Ciganos assaltam e saqueiam: Ceará”124, “Ciganos invadem Alagoas”125 e “Polícia do Maranhão acusada de atacar ciganos na Bahia”126. Isso talvez se explique pelo fato de que o século XX foi um período que marcou a consolidação do preconceito e da aversão ao diferente. O racismo marca a Europa no início do século XX com mais força, sobretudo na Alemanha e nos países associados ao governo nazista. Os ciganos no Brasil, sobretudo na segunda metade do século XX, aparecem com muita frequência no jornal pesquisado, como um povo a ser temido e rejeitado, simplesmente, por ser cigano. No século XX, o racismo não foi simplesmente uma forma de darwinismo social: apresentou-se como uma ideologia complexa que atribuía as virtudes, a moral e a honorabilidade da época aos modelos culturais da burguesia ocidental e as imaginavam qualidades inatas da raça superior. Os judeus, os ciganos e os negros não correspondiam a esse ideal- tipo, forjado pela burguesia branca.127 123 Jornal A tarde, Salvador, 1972. p.3. Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 25 de setembro 1973, p. 1. 125 Op.cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de julho de 1976. p. 8. 126 Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador - 29 de dezembro de 1975. p. 9 124 127 Revista de cultura Vozes. Duas canções. Editoras cristãs e conjuntura, por uma Pastoral dos Nômades. Ano 79. Abril 1985 nº 3. Ciganos uma cultura milenar. p. 31 90 O jornal pesquisado aponta para algumas mortes envolvendo ciganos em diversas regiões da Bahia, dando- nos uma pista de que, se haviam crimes, cujos autores eram ciganos, em vários momentos também, ciganos eram mortos por seus pares e por não ciganos. Nosso objetivo não é relatar essas mortes detalhadamente, apenas dizer que elas aconteceram em um dado momento histórico, mas particularmente, entre as décadas de 1970 e 1980 e talvez esses assassinatos se justifiquem pelo fato do Brasil viver então sob forte influência das teorias racistas. Todavia, temos como propósito discutir brevemente sobre a morte e os processos de luto entre os ciganos. A morte de um dos membros de uma família de ciganos é geralmente avisada aos parentes mais distantes e entre os mais próximos, mediante uma rede de comunicação oral. A manifestação da cerimônia fúnebre é encarada de diversas maneiras. Dependendo do grupo, do espaço em que ele está inserido e do tempo histórico em que o luto é processado. Os principais elementos citados, como o grupo, o espaço e o tempo darão uma nova roupagem ao processo de luto entre as famílias de ciganos. Os ritos funerários diferem de um grupo para o outro, de uma região para a outra, eventualmente de um grupo, de uma família para a outra e podem variar muito rapidamente no tempo. O luto pode ser guardado de uma maneira muito rígida. As roupas dos defuntos podem ser distribuídas aos membros da família ou a estranhos, ou então queimadas com todos os bens do morto.128 O número de pessoas (ciganos ou não ciganos) que participará da cerimônia fúnebre significa dizer o quanto o morto era importante, principalmente para a funcionalidade do grupo e, muitas vezes, também sinaliza o poder econômico da família do morto. Sem contar o grande lamento em demonstração de muito choro. O momento da chegada do corpo é de muita tristeza e lamentação, gritos, choros e palavras ditas em romani. A presença de ciganos de muitos lugares, que se concentram em torno da casa ou da barraca onde o corpo do morto está posto, evidencia a união de grupos e famílias. “É comum os parentes mais próximos vestirem roupas pretas e, por um mês ou quarenta dias, dependendo das particularidades de cada grupo, os homens não fazem a barba 129.” 128 MARTINEZ, Nicole. Os ciganos. Campinas: Papirus, 1989. p. 94,95. 129 PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 78 91 Se for a mulher do morto, além de vestir preto, é preciso raspar a cabeça e não mais se casar. É interessante perceber que alguns teóricos, ao historicizar a questão cigana, costumam naturalizar alguns fenômenos culturais. Categorizando-os como aspectos culturais do povo cigano. Isso impede, ou melhor, dificulta perceber a diversidade cultural das manifestações, inclusive as de luto. Um exemplo muito comum é a naturalização do nomadismo. É bem provável que as migrações de famílias ciganas são oriundas de variadas motivações. Alguns deslocamentos, no caso do núcleo familiar cigano em estudo (os Fortuna Rebouças), entre cidades do interior da Bahia foi resultado de um processo catalizador que vai para além de um movimento espontâneo de ciganos. Muitas viagens são provocadas por conflitos e assassinatos internos entre famílias de ciganos e entre famílias de ciganos com não ciganos, obrigando alguns grupos de famílias ciganas a deixarem os lugares em que estão instalados. Portanto, nem sempre é correto afirmar que a saída dos ciganos de determinado local é por conta do nomadismo espontâneo ou que aquele comportamento é próprio “da cultura cigana”, seria interessante pensar a partir da abordagem de um deslocamento forçado. Logo, muitas das justificativas dos deslocamentos, ou migrações de grupos de ciganos, estão na morte de algum cigano, por conta de perseguições provocadas pelos preconceitos ou por falta de clientela para suas mercadorias, entre outros motivos socioeconômicos, socioculturais e/ou sociopolíticos. Eu vim parar em Camaçari depois da morte de meu pai no sul da Bahia, o cigano era muito assim, quando falecia alguém numa cidade, o povo cigano não ficava mais naquela cidade, saía e não voltava mais e nessa data como sempre, foi em mil e novecentos e oitenta e dois, aí nós saímos de lá do sul da Bahia pra aqui e não retornamos mais, aí fixei residência aqui em Camaçari, hoje já tenho um título de cidadão camaçariense aqui em Camaçari e estamos morando aqui.130 Certamente, um cigano até diria que é normal do cigano sair do lugar que está arranchado, para não dar explicações do que realmente acontece no centro do seu núcleo 130 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 92 familiar. Isso não significa dizer que, o nomadismo não existe, muito pelo contrário, estamos afirmando sua existência, apenas justificando que não é um processo natural entre as comunidades. Foi o que aconteceu com o pai do entrevistado, ele foi assassinado no interior do Sul da Bahia, e por ser uma memória traumática, o depoente não se aprofundava quando o assunto era sobre o seu pai. O que observamos entre algumas famílias de ciganos é que durante algumas mortes dos familiares, o nomadismo costuma reaparecer, pois os ciganos entendem que, quando as mortes estão associadas a crimes, permanecer no local significa uma exposição de sua família ao risco de represálias. Logo, é muito comum, por conta da ignorância cultural de alguns estudiosos não ciganos, afirmar que o comportamento de abandonar barracas, casas prontas, uma vida estabelecida em determinada cidade, bem como todo vínculo social e uma rede de sociabilidade econômica para trás seja uma ação leviana e natural entre os ciganos. A partir das análises das fontes escritas e orais, percebe-se que a realidade de alguns ciganos corresponde à uma política anticigana em toda a parte do nordeste, inclusive em Salvador, na Bahia. O jornal “A tarde” faz referências ao descontentamento por parte das elites locais com a presença de ciganos na Lagoa do Abaeté. Um projeto de higienização da Lagoa foi pensado para aquela localidade com a criação de um parque como mais um local histórico e turístico de Salvador. Entretanto, a presença de não ciganos e de ciganos gerava um incômodo e, sobretudo, colocava em risco o projeto de implantação daquele equipamento urbanizador. Assim, limpar a área da Lagoa tornou-se prioridade e essa limpeza estava diretamente ligada aos sujeitos “indesejáveis”. Para que o projeto urbanizador de criação do parque fosse efetivado, casas seriam demolidas para dar lugar àquele empreendimento, gerenciado pelo poder público da cidade de Salvador. Portanto, expulsar era preciso. O problema da terra se coloca como uma questão a ser enfrentada entre o poder público, nesse caso, a prefeitura de Salvador, e os moradores (ciganos e não ciganos) naquela localidade, surgindo a necessidade de pensar onde seriam colocados aqueles indivíduos. Como a questão da terra e da moradia para os ciganos é histórica, já que eles não possuíam documentos que legitimassem sua permanência no local, certamente as 93 consequências mais rigorosas e severas atingiriam mais diretamente os grupos de ciganos que arranchavam nas imediações da lagoa “em suas tendas de palha e lona.” O jornal tratava a presença das famílias de ciganos na Lagoa do Abaeté 131 como uma afronta e um desafio à prefeitura soteropolitana. É possível perceber que, essa política não atingia apenas aos ciganos, mas todos aqueles que não contribuíam para o embelezamento da lagoa, como por exemplo, as lavadeiras e os pescadores que ali permaneciam fixos ou não. Na matéria “Abaeté é uma lagoa escura arrodeada de muita sujeira”132, os ciganos aparecem logo abaixo na extremidade esquerda do texto do jornal, cujo título é “descaso”, corroborando com nossa análise de que os ciganos são apontados no texto como figuras que “sujam” a imagem projetada para o parque na Lagoa do Abaeté. Segundo as matérias do jornal “A tarde”, aconteceu uma chacina de ciganos na cidade de Formosa do Rio Preto no interior da Bahia. Policiais de Goiás, Piauí e Maranhão executaram 40 ciganos. Explica o jornal, de acordo com as investigações, que a batalha entre policiais e ciganos começou por causa da presença de um acampamento cigano em terras de um fazendeiro que inclusive já havia sido prefeito do município. A recusa dos ciganos em se retirar daquelas terras deu início a uma briga que resultou na morte do fazendeiro pelo chefe do grupo de ciganos que ainda roubou seu cavalo. Como vingança, os filhos e os netos do fazendeiro organizaram uma operação militar que ocasionou em uma correria de ciganos, os quais vieram parar na cidade de Formosa do Rio Preto, onde policias dos estados citados encabeçaram a caça e a chacina dos ciganos. Um relatório municipal feito pelo delegado da cidade de Formosa do Rio Preto nega que a chacina tenha ocorrido. No relatório, o delegado afirma que “somente um cigano foi morto durante o tiroteio, embora ressalve que, não teve condições de acesso ao local do crime para fazer uma investigação, por se tratar de uma região pantanosa, localizada a 180 quilômetros da sede do município de Formosa do Rio Preto.”133 Ainda de acordo com o relatório, “segundo testemunhas na região, os policiais teriam assassinado oito pessoas, seis homens e duas mulheres, e o resto do bando foi obrigado 131 Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 28 de setembro de 1978, p. 1. Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 16 de julho de 1980. p. 3. 133 Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 01 de abril de 1979. p. 11. 132 94 a fazer as covas para os companheiros mortos”134. As perseguições aos ciganos começaram no Maranhão e terminaram na Bahia, com a morte dos quarenta ciganos. A cultura do povo cigano hoje mudou. Hoje mais não, mas muitos achavam que traziam recordação se ficasse no local, aí eles saíam para ausentar mais, eles não queriam os pertences dos mortos, os ciganos não doam, não vendiam, os ciganos queimavam todos os pertences e a mulher cigana cortava o cabelo, usava luto fechado, não casavam mais. Mas isso ficou no passado, a mulher cigana hoje, a maioria mais velha usa sempre, não é um luto bem fechado, usa um azul e os cabelos a maioria delas não cortam mais e a maioria das ciganas modernas hoje que ficam viúvas , casam- se de novo, então é por isso que a cultura dos ciganos tá acabando.135 Inclusive na cidade de Ubatã, interior do sul do estado da Bahia, aconteceu um crime envolvendo ciganos e não ciganos, o qual teve grande repercussão na cidade e na região. Dois jornais abordam este assassinato. O “Diário de Itabuna” e o jornal “A tarde”, sendo que, o último apresenta mais detalhes sobre o acontecimento, bem como os desdobramentos desse fato, fala também sobre as identidades dos ciganos (Valdecy Barreto da Gama e Ediney Fiúza Barreto) apontados pelo jornal como autores do crime. Segundo o jornal, os acusados pela morte de Arivaldo Teófilo da Silva, filho do fazendeiro Manoel Teófilo “são elementos de péssimos antecedentes na região sul da Bahia”136. As matérias que se seguem apresentam os dois ciganos acusados pelo assassinato, e explicam brevemente o crime, sendo que não é possível entender ao certo o que realmente aconteceu, desse modo, fizemos alguns contrapontos entre diferentes narrativas nos capítulos anteriores para tentar reconstruir um pouco do acontecimento ocorrido no município de Ubatã. 134 Fonte: Jornal “A tarde”. Salvador- 27 de janeiro de 1979. p.1. Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 135 136 Jornal “A tarde”. Salvador- 11 de janeiro de 1981. p. 1. 95 Fonte: Jornal “A tarde”. No canto superior da página, ao lado direito, Valdecy Barreto da Gama e Ediney Fiúza Barreto: ambos supostos envolvidos no crime do estudante na cidade de Ubatã. Nas matérias “Assassinato de 2 ciganos em Ubatã” e “Ciganos assassinados a tiros no centro da cidade de Ubatã” percebe-se a dimensão dos desdobramentos do assassinato de Arivaldo da Silva, “filho de um dos mais ricos cacauicultores da região.” Afinal, os dois ciganos mortos na cidade de Ubatã, Adroaldo e Deraldo, eram irmãos de Valdecy, um dos autores do crime contra Arivaldo da Silva, que já se encontrava preso em Salvador. Segundo o jornal, o assassinato dos dois irmãos ciganos teria “decorrido de uma rivalidade existente entre dois grupos de ciganos”137, notamos uma incerteza com relação às motivações do crime. O jornal afirma que um policial, a serviço na delegacia de Ubaitaba, informou que a execução foi por vingança do crime do estudante que ocorrera em Ubatã. De acordo com as informações das matérias, o município de Ubatã precisou de reforço policial da cidade de Ilhéus, Ipiaú, Barra do Rocha, Gongogi e Ubaitaba, municípios localizados no Sul do estado da Bahia, para enfrentar o clima de tensão gerado a partir das mortes citadas138. Diante de tantas perseguições históricas aos ciganos por mais variadas motivações, é interessante perceber que, a grande necessidade cigana ainda é a questão 137 138 Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de novembro de 1981. p. 1. Op.cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de novembro de 1981. p. 11-13. 96 da moradia e de infraestrutura. Pois, a aquisição de um terreno para que o cigano possa montar sua barraca e/ou construir sua casa significa em termos práticos, a segurança de ter um lugar onde o cigano possa dar continuidade à vida familiar de seu grupo. Muitos antigamente moravam em barraca por necessidade. Hoje, aqueles que moram em barraca ainda, eles são poucos, aqui em Camaçari principalmente são minorias, porque os ciganos hoje que não têm condições de ter uma casa eles têm um terreno próprio, arma uma barraca diferente da de antigamente, tem todos os móveis, até banheiro. Então, vive uma vida bem melhor do que se vivia, antigamente quando cigano era nômade. A parte nômade do cigano ainda existe em alguns lugares da Bahia, mas são poucos. Os ciganos antigamente andavam no lombo de animais, cavalos, merecendo de favores de fazendeiros, merecendo de favores de prefeitos e delegados das cidades, e hoje os ciganos não andam mais a cavalos e não precisam mais tá pedindo auxílio a fazendeiro e nem a prefeitos pra que tenha um lugar pra eles acamparem. A verdade é que nossas reivindicações tem até isso, pra que na cidade onde tenha cigano exista uma área como se tem pra circo, com lavatório, com banheiro público e com um lazer melhor, para que seja uma área que o cigano tenha mais conforto, aquele cigano nômade que ainda anda de barraca, todos os municípios está no papel pra ver se bota isso em prática.139 Bem sabemos que, muitas das famílias ciganas ainda vivem sem moradia no interior da Bahia, tendo que transitar por vários municípios, levando uma vida difícil. Viver no nomadismo hoje está atrelado, geralmente, à condição financeira do grupo familiar cigano. Possuir uma casa própria passou a ser um desejo bastante comum entre os ciganos. A negação da existência de ciganos nômades por parte dos ciganos mais ricos na região significa que, se os últimos afirmarem que os nômades são muitos, é o mesmo que dizer que os ciganos estão na condição de atrasados, que não se desenvolveram, e essa é a imagem que eles não desejam passar para nós não ciganos. 139 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 97 Porém, as paisagens de algumas cidades da Bahia mostram outra realidade. Ciganos que moram em barracas ainda são muitos e isso depende muito dos municípios nos quais estão instalados. Lama Preta140, por exemplo, um bairro de Camaçari, região metropolitana de Salvador na Bahia, local onde realizamos entrevistas com o representante da comunidade cigana da Bahia, moram muitos ciganos acampados em barracas até hoje. Aqui em Camaçari é o lugar da Bahia hoje que têm mais ciganos, na sede e nos municípios, por exemplo, aqui são dez ou doze comunidades ciganas, cada qual em um bairro, aqui, por exemplo, tem: Parque Verde, Lama Preta, Buriçatuba, Grebagá, Mangaba, Jardim Limoeiro, Verde Horizonte, aqui onde moro, próximo a rodoviária, tem Nova Vitória. Todas essas ruas e bairros moram ciganos e todos esses moram em casa própria, aquele mais pobrezinho que é a minoria como eu acabei de dizer, ainda tem aquele de barraca, mas é pouco, bem mais pouco, agora no interior da Bahia ainda surge muito cigano de barraca, agora aquele cigano que andava acampando de animais, não. Mesmo aquele pobrezinho que não tem condições, quando quer mudar de uma cidade pra outra, ele aluga carro de frete e se muda a carro, não anda mais de animal.141 140 Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de novembro de 1981. p. 11. Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 141 98 Foto: Seu Gerisnal Fortuna Rebouças à direita, vestido de blusa azul e ao lado, seu pai Juvenal Fortuna Rebouças na cidade de Coaraci – Sul da Bahia- 1971. Esta fotografia foi colorida em programa do computador, por Cosme, o filho mais novo de seu Gerisnal. Seu Gilson da Cruz apresenta em sua narrativa dificuldades com relação a identificar não somente o número de ciganos que moram em barracas e casas, mas, sobretudo, a quantidade de ciganos existentes na Bahia e no interior. Precisamente, aqui no município de Camaçari a quatro anos mais ou menos, eu fiz um apanhado e existia em torno de 400 famílias no município de Camaçari, hoje eu não fiz mais esse apanhado, porque alguns mudaram pra outras cidades vizinha, talvez ou aumentou ou diminuiu, mas eu não tenho mais essa certeza de quantas famílias mora hoje no município de Camaçari, agora uma coisa eu lhe digo, na Bahia a cidade que tem mais cigano hoje é Camaçari. Nós cigano não temos condições de fazer um censo por conta própria, porque vai requerer muito tempo, dinheiro e pessoas credenciadas e que tenha habilidade pra que seja feito isso, nós não temos essa disponibilidade ainda.142 142 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 99 E com relação ao Brasil, informações sobre o número de populações ciganas existentes ainda é um enigma. “As dificuldades metodológicas que os institutos de pesquisa enfrentam quando se trata de estudar os fenômenos migratórios são bem conhecidas. A estas dificuldades acrescentam-se as de identificação das populações nômades ou de origem nômade.”143 Não se sabe ainda quantas famílias de ciganos vivem em território brasileiro. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estima que são 500 mil, aproximadamente, o número de ciganos vivendo no Brasil. Já autores, como Rodrigo Corrêa Teixeira, julgam que são 800 mil, mas não há um consenso exato quando se trata da população cigana no Brasil. Na Europa, atualmente “vivem cerca de 60 mil ciganos na Alemanha, dos quais 40 mil ciganos são sinti e 20 mil ROM.”144 Mas, os ciganos que vivem em território alemão “são até hoje discriminados, embora sejam cidadãos alemães e trabalhem como comerciantes, operários, artesãos, artistas, funcionários, dentre outras profissões.”145 Situação bem diferente vivem os ciganos brasileiros. Desde que chegaram ao Brasil, o comércio foi, de fato, a mais importante atividade dos ciganos. Comercializavam as mais diversas mercadorias, com destaque para cavalos e mulas. Entre o final do século XVIII e início do XIX, muitos ciganos interessaram-se pelo comércio de escravos. Embora não tenham deixado de negociar suas mercadorias tradicionais, o comércio de cativos transformou, sensivelmente, o papel dos ciganos na sociedade e na economia, sobretudo nas primeiras décadas do oitocentos.146 Entendemos que a “versatilidade dos ciganos para o exercício das atividades econômicas mais favoráveis diante das circunstâncias, foi um dos principais fatores para a sua sobrevivência ao longo do tempo.”147 Como apontado em uma das entrevistas, 143 MARTINEZ, Nicole. Os ciganos. Campinas, SP: Papirus, p. 63,1989. 144 CAVALCANTE, Ania. A perseguição e o genocídio de ciganos durante o holocausto. In: Conflitos Armados: massacres e genocídios. Organizadores: Rodrigo Medina Zagni e André Borelli. Editora: Fino Traço, p. 110, 2013. 145 Ibdem, p. 110, 2013. 146 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, p. 83, 2007. 147 Ibdem, p. 83, 2007. 100 diante de um contexto de crise socioeconômica, surge entre os ciganos uma intranquilidade, sobretudo, sobre quanto ao futuro de suas atividades econômicas, Dinamizando a própria lógica de comércio entre ciganos e não- ciganos.. Embora o entrevistado afirme as necessidades de mudanças na profissão dos ciganos por meio da instrução escolar e universitária, apesar de apontar saídas, alternativas, por meio da inserção dos ciganos na escola e na universidade, o mesmo afirma que ainda é apenas um desejo seu. Ver ainda um calón servir de exemplo aqui na Bahia, formando uma filha cigana, trabalhando, ser uma advogada, ser uma juíza, uma médica, uma professora, pra mim é um grande orgulho. Mas, até então, os pais, vem no sangue, quando as filhas já passam de doze, treze, quatorze anos arrumarem casamento, vem no sangue isso aí. E a mulher cigana assim que ela casa é óbvio que o marido vai ter resistência de deixar ela ir pra escola, pra ir estudar.148 Desse modo, nota-se que, apesar das resistências, a cultura entre alguns ciganos no interior da Bahia, acerca dos filhos permanecerem na escola já é vista como uma possibilidade. A cultura cigana mudou bastante. Mas, como a sociedade toda em comum mudou bastante, porque cada década que passa, cada ano que passa vai se evoluindo. E, o povo cigano como sempre tá evoluindo junto com a evolução da sociedade que não é cigana. Tem que acompanhar, porque se não seguir a sociedade cairá no esquecimento. Os ciganos viviam comprando e vendendo cavalos nas décadas de 70 e 80 até noventa, depois passou a se vender eletrodoméstico, como relógio, rádio, essas coisas. Aí depois do animal, veio o eletrodoméstico, depois o povo cigano passou pra área de comércio de automóveis usados e com essa nova mudança de financiar carro pra tantos anos, aí ficou inviável o comércio de automóvel usado pra o povo cigano. O povo sempre tem a história que o povo cigano mexe muito com o dinheiro a juros, agiota, não vou dizer, não vou ser hipócrita aqui e dizer que o povo cigano já mexeu muito e mexe ainda com isso, mas a maioria do povo cigano teve muito prejuízo com essa prática de comércio que é ilegal. Então, muitos hoje estão aderindo à área da construção civil, muitos estão empreendendo em comprar terrenos, casas, construir casa e vender, então hoje, o cigano tá mais pra esse lado empreendedor, e hoje a maioria dos ciganos todos, interage muito com a televisão, com internet, telefone hoje com Wifi.149 148 Gilson da Cruz. Camaçari, 2015. 149 Gilson da Cruz. Camaçari, 2015. 101 Em Itabuna, a família dos Fortuna Rebouças passou por um processo de transformações similar ao narrado por Gilson Dantas da Cruz, não somente no tocante ao ofício da família, que passou do comércio com animais para o de carros, terrenos, dentre outros. Outras mudanças também foram sentidas nas regras matrimonias que aquela família afirmava manter em suas tradições. Ou seja, o casamento entre pessoas de culturas diferentes. Agora é comum presenciar entre os parentes de seu Gerisnal Fortuna Rebouças, união entre ciganos e não ciganas, seus irmãos, netos e netas já estão casados com pessoas de “fora” da cultura e da tradição. Embora esse comportamento desagrade a muitos membros da família, inclusive ao próprio chefe familiar, seu Gerisnal Rebouças. Filhas de dona Ione e seu Gerisnal Fortuna Rebouças, exceto a da esquerda de vestido rosa mais escuro. Casamento de Cosme Fortuna Rebouças, o filho mais novo do casal. Itabuna, 19/09/2011. Então o povo cigano de antigamente para o de hoje evoluiu, vamos dizer, noventa por cento, só que em termo da cultura cigana, os ciganos tá aderindo muitas coisas aí que eu não concordo, mas a sociedade tá trazendo e o povo cigano como sempre, como o índio, tão aderindo e tá perdendo o grande traço da cultura cigana. Por exemplo, o casamento cigano antigamente, era como os dos coronéis, os pais pediam as moças para os rapazes eles aceitavam e casavam e viviam muito bem, hoje ainda existe em comum acordo com os filhos, se for de acordo dos filhos faz e prossegue o casamento, agora se os pais também não querer não for de acordo não prossegue o casamento, já é uma prática que mudou e também o casamento do cigano com uma 102 não cigana existia sempre e o que era mais difícil, era da cigana com um não cigano, que tá existindo muito. Não que eu seja nada contra ao não cigano e a não cigana, é porque o povo cigano hoje é minoria e se o povo cigano continuar mesclando o cigano e o não cigano, daí a pouco não existe cigano não legítimo, vai ser tudo mestiços e tá extinguindo a cultura cigana e as mulheres ciganas antigamente tinham bastante filho e hoje não, as mulheres ciganas quando querem ter muito é um casal e aí tão ligando muito cedo. E os ciganos daqui a um dia vão ficar em extinção. No caso, minha mãe teve onze filhos, já minha esposa, teve três filhos, meus irmãos cada qual tem dois, o que tem mais tem quatro filhos, minhas filhas hoje cada qual tem dois filhos e já são ligadas. Então, a cultura cigana, a população cigana tá caindo muito, os mais velhos estão morrendo bastante.150 O casamento que presenciamos aconteceu na cidade de Itabuna em 2011. Foi bastante tranquilo e sem nenhum tumulto, no sentido de confusão, brigas e tiroteio, como muitas das vezes acontece em festas ciganas e é divulgado pela imprensa. O primeiro dia foi de muitas fotos, muita dança, muita comida e muita música, uma grande festa na qual um grupo de não ciganos cantava música sertaneja em um salão de um clube social na cidade de Itabuna, no interior do Sul da Bahia. O segundo dia foi realizada a cerimônia do casamento. Todos os convidados e os noivos se deslocaram para a igreja católica de outra cidade, chamada Itapé, onde aconteceu a celebração religiosa. Uma cerimônia muito dinâmica e rápida, se comparada às cerimônias religiosas tradicionais de casamentos não ciganos. Segundo a tradição, é nessa ocasião que a noiva beija seu noivo pela primeira vez. O terceiro dia foi de comemoração na casa dos pais dos recém-casados, é quando o casal terá sua primeira noite de amor na casa do casal, construída com o dinheiro que os pais da noiva dão aos pais do noivo – o dote – para a construção da casa do casal, bem como toda a mobília. A casa geralmente é construída em terreno onde estão fixados os pais do noivo, já que a noiva geralmente segue seu marido, abandonando sua família de origem. 150 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 103 Noiva chegando na igreja com seu padrinho de casamento, Paulo (irmão de Gilson Dantas da Cruz e Jucelho Dantas da Cruz) e sua irmã de vestido vermelho (na extremidade do lado direito). Itapé - interior do sul da Bahia, 19/09/2011. A noiva Daniela Almeida Rodrigues e seu padrinho de casamento, Paulo Dantas da Cruz adentrando a igreja- Itapé, 19/09/2011. 104 Momento de celebração do casamento na igreja. Itapé, 19/09/2011 Os recém-casados dançando no salão do clube, centro da fotografia, Daniela está vestida de vermelho e branco, Cosme, de cabelos longos, veste calça jeans e blusa cinza escura. Itabuna, 19/09/2011. 105 A luta dos ciganos é uma luta histórica. Uma luta de resistência, para que possam viver com respeito em uma sociedade de múltiplos sujeitos e culturas. É visível nas fontes que, o embora o preconceito tenha sido forte, sobretudo, nas décadas do nosso estudo, os ciganos criaram várias formas de sobrevivência sociocultural. Como podemos verificar na matéria do jornal que se segue. “Milhares de ciganos europeus querem ser recebidos pelo Papa”. Ciganos de diversas áreas da Europa se concentraram em Roma, na Itália, para pedir ajuda ao Papa João VI, pediam paz, por conta de uma rivalidade entre ciganos de grupos diferentes. Mas, o motivo dessa rivalidade, o jornal não deixa claro. O interessante é que, embora não sejam esclarecidas as causas dos conflitos entre ciganos, entendemos que os ciganos se mobilizavam em uma organização politizada de ciganos na Europa, inclusive quando se referiam à conscientização política entre alguns ciganos da América do Norte, os quais iniciaram um movimento de escolarização entre os ciganos, por entender que, os ciganos precisavam se qualificar, para melhorar sua profissionalização, e quanto mais instrução escolar e profissional tivessem, seriam mais respeitados naquela sociedade em meados da década de 1970. No Brasil, essa preocupação chega com mais força somente agora no século XXI, adentrando o interior da Bahia entre os ciganos. Influenciados por vários movimentos sociais, ciganas estão manifestando o desejo de que suas filhas não casem tão cedo e busquem permanecer na escola para concluírem seus estudos, inclusive na Universidade. Para os meninos, os pais estão começando a pensar também na necessidade de deixá-los finalizar os estudos para se profissionalizar, pois acreditam que em contexto de crise econômica, a situação financeira da família cigana dependerá do incentivo da educação que, até então, não era vista pela comunidade como algo preponderante. A era cigana já passou. Cigano comercializava com animais, acabou. Cigano comercializava com eletrodoméstico, acabou. Com automóvel, acabou. A prática de emprestar dinheiro acabou. Eles estão emprestando e está perdendo dinheiro. Então, hoje o cigano tem que prevalecer o estudo, pra ter um trabalho digno, porque a década e a era cigana tá acabando, porque tá extinto, comércio não existe mais, comprar e vender cavalo, burro, carro não existe mais é o que os ciganos mais velhos sabem fazer e os mais novos hoje, eu sempre bato 106 nessa tecla, ou vai ser mula pra passar tráfico, ser usado ou vai ser servente de pedreiro, que aquele que não estudar a tendência é essa.151 A realidade social entre os ciganos no interior da Bahia é de fato uma situação preocupante, no sentido do descaso dos poderes públicos para com os mesmos. Compete também a outros espaços a responsabilidade com relação à vida sociocultural, econômica e escolar dos ciganos na Bahia e em seu interior, no sentido de promoção de políticas públicas de valorização da história cultural dos ciganos. É urgente a questão cigana, por várias questões. Se o nazismo foi uma realidade na Alemanha e se espalhou por toda Europa, aqui no Brasil podemos identificar outras formas daquele fenômeno de extermínio social. Aqui ocorreu um silêncio historiográfico retirando esses sujeitos culturais da história. Ocultando assim, a participação e a contribuição dos povos ciganos para a história dos interiores, da Bahia e do Brasil. 151 Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015. 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo foi pensado para refletir sobre a história, memória e identidade cigana na região do interior da Bahia. E para isso, lançamos mão, de narrativas literárias sobre a presença cigana em algumas cidades, para pensar os lugares reservados para aqueles indivíduos na literatura, a partir dos escritores regionalistas como Jorge Medauar e Euclides Neto, por meio de suas obras literárias. Trabalhamos também, com as matérias dos jornais: O Diário de Itabuna e A tarde, das décadas de 1970, 1980 e 1990, que fazem referências aos ciganos. Contrapomos as narrativas literárias com os discursos dos jornais, do mesmo modo fizemos com as narrativas orais de ciganos e não ciganos de algumas cidades do interior da Bahia. A proposta desse trabalho se concentrou em apresentar o lugar reservado aos ciganos em parte da literatura da região e nos jornais locais. A ideia foi refletir o modo de construção de identidades ciganas por meio das tentativas de escrita de intelectuais do interior da Bahia, da imprensa local e da oralidade. Nesse sentido, percebemos – até aqui – o quanto existe uma memória baseada na aversão, no medo, no preconceito e na criminalização quando o assunto é sobre a existência de ciganos na região. Ao mesmo tempo, convivendo com algumas famílias de ciganos em algumas das cidades do interior da Bahia, deparamo-nos com uma forte participação social, econômica, cultural e política dos ciganos, de forma muito efetiva, sobretudo na vida cotidiana daquelas cidades do interior da Bahia. Pensamos que a presença de ciganos é uma representação da resistência sociocultural daqueles indivíduos que reelaboram de diferentes formas as imposições e os preconceitos. O mais interessante é que, mesmo diante de tantas adversidades, os ciganos resistem. Sobre essa resistência, Rodrigo 108 Corrêa Teixeira aponta para um elemento importante muito usado pelos ciganos, a adaptação. “Os ciganos souberam subverter quase todas as situações que o contexto desfavorável lhes oferecia. Adaptaram-se, penetrando nas lacunas que a dinâmica econômica e social criou. A adaptação para a sobrevivência foi o grande triunfo da condição cigana”. E completa, dizendo que, a “sobrevivência foi a realização mais duradoura, o grande evento, da história cigana.” 152 Os grupos ciganos locais reelaboram culturas e linguagens, fazendo uma espécie de “bricolagem”. Esta denominação, dada por Michel de Certeau, auxilia a apreender práticas cotidianas, próprias de grupos que burlam mecanismos e estruturas culturais impostas. Os ciganos constituem, assim, uma das dimensões da história, da cultura e da sociedade da Bahia e de seu interior, compondo, assim, a história do Brasil. Os autores regionais Euclides Teixeira Neto e Jorge Emílio Medauar, em suas tentativas discursivas, construíram identidades, a partir de memórias cotidianas do lugar de que se fala, por meio de seus personagens, quando aponta a presença dos ciganos e suas relações com os não ciganos no interior da Bahia. Concluímos também que, os jornais buscam selecionar um lugar para os ciganos, que aparecerem e desaparecerem em suas matérias jornalísticas. Há sempre um espaço de desprestígio para aqueles indivíduos. Suas histórias são contadas a partir de práticas negativas, tais como roubos, crimes e badernas locais. Nesse contexto, torna-se relevante apresentar história da formação e da trajetória familiar de um grupo de ciganos na cidade de Itabuna com os quais, a partir de suas narrativas orais, também apreendemos suas próprias percepções em relação aos preconceitos e estereótipos direcionados pelos não ciganos ao seu modo de vida. Esta perspectiva de abordagem resulta na desconstrução de alguns mitos sobre a história sociocultural de ciganos a séculos arraigados em nossas memórias. 152 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, p. 138, 2007. 109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Verena. Manual de história Oral – 3 edição.- Rio de Janeiro: Editora FGV, 20013. ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007. AROSTÉGUI, Júlio. 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