indira silva souza - PPGHIS

Transcrição

indira silva souza - PPGHIS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL
E LOCAL
INDIRA SILVA SOUZA
HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE: OS CIGANOS NO
INTERIOR DA BAHIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
SANTO ANTÔNIO DE JESUS- BAHIA
2015
INDIRA SILVA SOUZA
HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE: OS CIGANOS NO
INTERIOR DA BAHIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
Dissertação de mestrado da linha de pesquisa de
estudos regionais: campo e cidade, apresentada
como requisito de conclusão do curso de PósGraduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Orientadora: Profª. Drª. Nancy Rita Sento Sé de
Assis.
SANTO ANTÔNIO DE JESUS- BAHIA
2015
INDIRA SILVA SOUZA
HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE: OS CIGANOS NO
INTERIOR DA BAHIA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Profª. Drª. Nancy Rita Sento Sé de Assis
UNEB
(Orientadora)
___________________________________________________
Prof. Dr. Carlos José Ferreira dos Santos
(Membro)
___________________________________________________
Profª. Drª. Sara Oliveira Farias
(Membro)
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Souza, Indira Silva
História, memória e identidade: os ciganos no interior da Bahia na segunda Metade do século XX / Indira
Silva Souza . – Santo Antonio de Jesus, 2015.
111f.
Orientador: Profª. Drª. Nancy Rita Sento Sé de Assis
Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento
de Ciências Humanas. Campus V. 2015.
Contém referências.
1. História. 2. Identidade cultural. 3. Cultura cigana. I. Assis, Nancy Rita Sento Sé de. II. Universidade do Estado da
Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 981
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo principal discutir a identidade cigana no interior
da Bahia. Para isso, fizemos uso de duas literaturas regionais do sul da Bahia –
intituladas, “Jorge Medauar conta estórias de água Preta”, de Jorge Emílio Medauar, e
“O tempo é chegado”, de Euclides Teixeira Neto. Além disso, buscamos notícias de
jornais, e dialogamos com sujeitos pertencentes à identidade cigana calon, em algumas
cidades do interior da região. Este trabalho procura atentar para o lugar reservado àquela
etnia em espaços discursivos como, por exemplo, os jornais o “Diário de Itabuna e o “A
tarde”, a partir da segunda metade do século XX. Buscamos desse modo, dialogar com
teóricos importantes para uma melhor compreensão acerca dos estudos culturais e sua
relação com a dinâmica historiográfica. Consideramos ainda que, o estudo das
percepções da identidade cigana na literatura regional e nas notícias jornalísticas
permite ponderações sobre o jogo dialético para a construção daquelas identidades, por
meio do contraponto das narrativas literárias, jornalísticas e orais, percebidas enquanto
uma disputa de memórias concorrentes. Assim, estudamos a identidade chamada cigana
no interior da Bahia, a partir de meados do século XX e as relações de poder e de
disputa entre grupos sociais na região para afirmações de memórias e identidades no
campo da cultura.
Palavras-chave: identidade, calon, memória, cultura cigana
ABSTRACT
The present study has as its main objective to discuss the so-called Gypsy identity in
some cities in the interior of Bahia. To do this, we made use of two regional literatures
of southern Bahia – titled, "Jorge Medauar tells stories of black water" of Jorge Emilio
Medauar, and "the time is now", Euclid Teixeira Neto. In addition, we seek news of
local newspapers from inside the South of Bahia, and the way we deal with subjects
belonging to the Gypsy identity sayings calon, in some cities in the interior of the
region. This work seeks to look at the place reserved to ethnicity in discursive spaces
such as the newspaper "Diário de Itabuna", from the second half of the 20th century.
This way, we seek to engage with important theoretical for a better understanding about
the cultural studies and its relation with the historiographic dynamics. We also think
that the study of the perceptions of Roma identity in regional literature and in news
reports allows weights on the dialectical game for the construction of those identities,
through the counterpoint of literary, journalistic and oral narratives, perceived as a
contest of competing memories. Thus, we studied the identity named Gypsy inside of
Bahia, from the mid-20th century and the power relations and dispute between social
groups in the region to assertions of memories and identities in the field of culture.
Keywords: identity, calon, memory, cultura gitana
AGRADECIMENTOS
Ter chegado até a este momento de escrita significa afirmar que a superação é
possível. Ter sobrevivido para escrever estas palavras é de extrema relevância para
quem as escreve. Entendo que, depois de momentos tão dolorosos e incertos, escrever
os “agradecimentos” significa a melhor parte, pois faz lembrar que os amigos e os
demais colaboradores estão presentes para dar significado a esta tarefa. Desse modo,
quero manifestar a minha mais justa gratidão.
Este trabalho não é propriedade exclusiva de minha parte, mas um trabalho
compartilhado, que contou com diversos colaboradores. Cada um ao meu lado, e ao seu
modo, atuando com suas particularidades me apoiaram e me ajudaram até aqui.
Agradeço a minha fé em Jeová Deus e em seu filho Jesus Cristo, a qual tem me
sustentado cotidianamente.
A CAPES- FAPESB- pelo auxilio da bolsa de estudos para o desenvolvimento
da pesquisa. Ao Programa de Pós- Graduação em História Regional e Local- PPGHIS
que nos apoiou em diversos momentos. A todos da secretaria do mestrado: Andréia,
Ane, Hélder e a coordenadora do programa Sara Oliveira. A minha orientadora Nancy
Rita Sento Sé de Assis pelo apoio, amizade e dedicação, sempre.
Aos meus colegas de turma: Alcides, Alex, Ana Paula, Cristina, Denise,
Edimara, Gabriela Bonomo, Gabriela Silva, Joelma, Karla, Letícia, Marcelo, Paulo,
Priscila, Rosimário, Willan, agradeço pelos momentos juntos, pelas conversas,
principalmente em frente à Universidade, na casa de Cristina, e em sala de aula.
Agradeço também a Vilza Mascarenhas, Laís Mascarenhas, Cristina Assis e
Nancy pela estadia em suas casas em Santo Antônio de Jesus, sempre que precisei
permanecer naquela cidade por conta do mestrado.
Aos depoentes que muito fizeram por este trabalho: a família dos Fortuna
Rebouças, a Jucelho, a Gilson, a seu Renato Marques, a família cigana dos Almeida
Rodrigues. E aos demais que direta ou indiretamente contribuíram de alguma forma. A
minha primeira professora Bernadete Moreira dos Santos (Bena).
Sou grata também, aos professores da UESC- Universidade Estadual de Santa
Cruz, em especial, Adão Ornelas, Carlos José, Carlos Alberto, Clóvis, Elvis Barbosa,
Marcelo Lins, Kátia Vinhático e Blume. Ao curso de Especialização em História do
Brasil da UESC. A João Cordeiro e a Estela responsáveis pelo CEDOC – Centro de
documentação e memória na UESC. E agradeço também a Elenilton, técnico,
responsável pelas pesquisas dos jornais, por meio dos computadores, uma generosa
pessoa que me auxiliava nos momentos de pesquisa com o jornal na Biblioteca Central
do Estado da Bahia.
Aos professores da rede pública estadual da cidade de Itabuna que me aceitaram
generosamente para estagiar em suas turmas no período da graduação. A escola
Estadual Indígena Tupinambá de Olivença- EEITO.
Aos professores do mestrado em História Regional e Local: Sara Oliveira,
Suzana, Nancy e Raimundo Nonato.
Aos amigos: Daniela Almeida, Domingos da Cruz, Egnaldo França, Geninson
(Nuno), Girleney, Cristiano e a Berenaldo, que muito me incentivaram para a pesquisa.
Aos amigos Jamile Magalhães e Ozimiro que estiveram ao meu lado nos momentos
mais difíceis da minha vida: um acidente de carro que ocasionou na morte de minha
única irmã Indaiara na manhã do dia 05 de novembro de 2014, um acontecimento
inesperado e profundamente doloroso muito perto de minha qualificação dos capítulos
desta dissertação. Irmã tão jovem que havia completado 29 anos em tão pouquíssimo
tempo, guerreira, que tinha um coração lindo e bondoso, uma referência de filha, de
irmã, de amiga, de cristã, de professora e de educadora em Filosofia, a ela presto todo o
meu agradecimento, pois é digna. Agradeço a Melissa, uma grande amiga. Perdoe-me
aos que não foram lembrados por falha e/ou pela seletividade da memória, mas isso não
significa que não são importantes.
Agradeço a minha mãe Sabrina e a família. Ao meu Jairo, um companheiro
sempre presente e dedicado, o meu jardim está mais florido depois que tu chegaste.
E agradeço exclusivamente, a minha irmã Indaiara (*28/10/1985 + 05/11/2014),
irmã de luta, de estrada, de sangue e de alma. Obrigada por tudo, te sinto viva em cada
palavra que escrevi e que escrevo.
SUMÁRIO
Introdução
10
1 A literatura e o jornal como fontes de memórias
1.1 Entre contos: os ciganos em “Jorge Medauar conta estórias de Água Preta”
18
1.2 Contando um Conto: Euclides Neto e os ciganos em “O tempo é chegado”
36
1.3 “Tem ciganos na praça”: a presença de ciganos no jornal o diário de Itabuna
51
2 Memória, história e identidade étnica
2.1 A memória entre os ciganos
2.2 A identidade: “Uma correria de ciganos” - visões ciganas e não ciganas em
Itabuna e região
55
58
2.3 A tradição: “a pessoa nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição”- 65
A formação dos Fortuna Rebouças
3 Ciganos no interior da Bahia
3.1. Os ciganos no Sul da Bahia
80
Considerações Finais
106
Referências Bibliográficas
107
Fontes
111
INTRODUÇÃO
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, na primeira parte do livro “história: a arte
de inventar o passado”, apresenta a história e a literatura como conhecimentos que
podem ser pensados em permanente articulação e diálogo. “Meu objetivo, neste texto,
não será separar a História da Literatura, não será encontrar seus limites e suas
fronteiras, mas articulá-las, pensar uma com a outra.”1 Nem tampouco, buscará uma
formulação conceitual sobre história e literatura, mas a reflexão sobre o relacionamento
existente entre elas. Pois, por décadas, a história foi vista como um campo de domínio
da razão e a literatura como campo das emoções. Ou seja, “História e Literatura,
masculino e feminino”.
Albuquerque Júnior nos permite pensar, a partir de suas reflexões, que os
campos de conhecimento não estão fechados em si mesmos, e que a literatura, por vezes
trabalha em busca do “real” na tentativa de relatar uma dada “realidade”, logo,
poderíamos também pensar que a mesma pode nos oferecer um sentido histórico, o que
rompe com uma mentalidade histórica sobre os estudos literários que entende a
literatura como um campo exclusivo de conhecimento ficcional. Desse modo, chega-se
a conclusão de que, assim como a literatura é capaz de produzir conhecimentos
históricos de uma determinada realidade, a história também pode elaborar sentidos
literários sobre o passado que se busca conhecer. Essa mudança de perspectiva e, por
que não dizer, com relação a história e a literatura, acaba provocando reflexões sobre os
próprios campos conceituais, e abrando, de ambos os lados do conhecimento,
importantes chaves de diálogos e discussão, como a que pretendemos realizar nesse
estudo que, em parte, tem a literatura como referência de apoio e análise.
Literaturas sobre ciganos nos levaram a alguns estudos literários regionais, que
retratam a presença de ciganos em algumas cidades do interior da Bahia. Logo,
entendemos que as reflexões de Albuquerque Júnior fazem todo sentido, por nos fazer
1
ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz de. A hora da estrela: história e literatura, uma questão de
gênero?. In: História : a arte de inventar o passado. Edusc, Bauru- SP, 2007. p 43-51.
10
pensar nesta relação entre história e literatura para compreender os modos de construção
da realidade do passado. Os ciganos que se autodenominam da etnia calon são os
principais sujeitos deste estudo. Sem dúvida, a escolha do tema se deu sob a influência
de Michael Pollak em sua afirmação de que “os objetos de pesquisa são escolhidos de
preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.”2
O interesse sobre o estudo de ciganos começou a partir de 2009 em algumas
cidades do interior da Bahia, particularmente nas cidades de Itabuna e de Ubatã, ambas
pertencentes ao interior do sul da Bahia. Em grande a temática ganhou mais força pela
relativa ausência de pesquisas historiográficas sobre as comunidades ciganas, ainda
mais no âmbito local. Além desse fato, ter tido contato direto com uma família cigana,
os Fortuna Rebouças, na cidade de Itabuna, não só fortaleceu as observações e os
diálogos sobre a identidade cultural dos ciganos, como também potencializou novos
contatos com outros ciganos pertencentes ou não à mesma família em outras cidades do
interior da Bahia.
Fizemos entrevistas gravadas e filmadas com parte da família, a partir de roteiros
pré-estabelecidos, permitindo a retenção e manutenção da fala, dos gestos e das
expressões dos depoentes. Concordamos que a transcrição3 é também uma transcriação,
um conceito que, segundo Meihy, é “uma mutação”. Logo, as transcriações dos
depoimentos que fizemos permitiram interpretações e o confronto entre as narrativas
orais e outras fontes.
Hoje consolida no campo
da historiografia, particularmente enquanto
metodologia de abordagem, a história oral que tem se colocado como procedimento de
inegável credibilidade para a construção do conhecimento histórico. Nesse sentido,
realçamos que a fonte oral foi de fundamental importância para a história do próprio
grupo, sendo a narrativa um meio de valorização da memória e do fortalecimento da
identidade, tanto individual quanto coletiva desta família cigana local. Todavia,
considerando a ponderação de Delgado, segundo a qual “na verdade, nenhuma história,
conquanto processo e construção da trajetória da humanidade ao longo do tempo, é
2
POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2,
n.3, 1989. p. 3-15.
3
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História Oral: como fazer, como pensar. Ed: Contexto. São Paulo,
2010. p. 133-175.
11
oral”.4 Entendemos a construção dessa história enquanto um processo que não se diz
exclusivo de uma história oral, por pensar que essa produção se faz por meio da
complexidade do depoimento e de seu registro. Afinal, a história oral é um
“procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos,
registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e
interpretações sobre a História.”5 Nesse sentido, Lucília Delgado nos leva a refletir
sobre a História Oral enquanto um procedimento metodológico que guarda certas
armadilhas, quando pensamos a mesma como metodologia desprendida do registro
documental, a história oral não significa a história que se viveu, mas a história da
história vivida e experimentada. Desse modo, a história oral enquanto procedimento
metodológico passa por vários processos, sendo um deles a interpretação do sujeito que
se lembra da história, vivida ou não vivida por ele; outro, a interpretação por parte de
quem ouve a narrativa de quem relata o vivido. E por fim, uma produção de registros de
depoimentos sobre a história da história do que se lembra do que se viveu para daí então
serem acrescentadas outras leituras por parte do historiador para a construção de outras
histórias.“Finalmente, recorre à memória como fonte principal que a subsidia e alimenta
as narrativas que construirão o documento final, a fonte histórica produzida.”6
A narração por si só detém sua própria interpretação e significado, como explica
Walter Benjamin. Nesse sentido, percebemos que a “arte da narrativa” serviu como uma
espécie de resgate da cultura cigana e reafirmação da mesma. Aqui também lembramos
Portelli ao nos fazer refletir que devemos levar em consideração a presença da
subjetividade7 contida nas fontes, sem deixar de considerar a intersubjetividade para a
análise histórica dos fatos na composição identitária de uma categoria social. Do mesmo
modo lembramos Pierre Nora quando afirma que, “a memória se enraíza no concreto,
no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”, observamos que a narrativa dos Fortuna
Rebouças se apresenta como expressão da memória e identidade individual e coletiva
daquele grupo familiar, considerando ainda conforme Nora, que para sobreviver, a
4
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In. História
oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 15.
5
Idem. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In:
História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 15.
6
Op. cit. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In:
História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 16.
7
Ver o texto - O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto
e senso comum”. In: Usos e Abusos da História Oral. Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira.
Editora: FGV, Rio de Janeiro, 2001.
12
memória precisa de ritos, ordenações e práticas de lembranças, dentre as quais se
destaca a oralidade. Isto por que, “o que nós chamamos de memória, é de fato, a
constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível
lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de lembrar”.8
Segundo Beatriz Sarlo “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há
experiência sem narração: a linguagem libera o aspecto mudo da experiência, redime-a
de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no
comum.”9 Bem sabemos quão importante é a experiência e o quanto ela acrescenta ao
testemunho, e aqui cabe lembrar que entre os ciganos, por serem de culturas
tradicionalmente orais, prevalecem as memórias de experiências. Desse modo, seu
testemunho descreve outras vivências que muito embora, sejam experiências de seus
antepassados são incorporadas às suas próprias experiências, existindo, portanto, uma
reelaboração de memórias e de experiências.
Outras fontes também foram consideradas no diálogo com a oralidade, tais como:
fotografias; registros de nascimentos e de casamento; livro de estudo genealógico
pertencente à família dos Fortuna Rebouças; jornal O Diário de Itabuna das décadas de
1980 e 1990 e o jornal A tarde entre as décadas de 1970 a 1990.
Por fim, salientamos que, utilizamos métodos de investigação junto à Família
Fortuna Rebouças e a outros ciganos. Além desses, ampliamos o conjunto da nossa
fonte oral, entrevistando pessoas não pertencentes à etnia cigana da cidade de Ubatã.
Realizamos esta metodologia por acreditarmos que é possível apreender dimensões de
interatividades entre ciganos que vivem na cidade de Itabuna e de Ubatã junto à
comunidade não cigana dessas cidades, por meio das próprias entrevistas realizadas
junto ao núcleo familiar escolhido, bem como através da análise documental dos jornais
já citados. Nosso intuito foi colocar as informações obtidas junto aos jornais em diálogo
com os depoimentos.
Existem carências de estudos sobre os povos ciganos da Bahia, sobretudo sobre o
seu interior. Em nossas pesquisas, encontramos na biblioteca da Universidade Estadual
8
NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo:
CEDUC, n. 10, dezembro,1993. p. 9 -15.
9
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das
letras, Belo Horizonte, UFMG, 2007. p. 24,25.
13
de Santa Cruz-UESC (Ilhéus/Bahia)10 apenas uma dissertação de Mestrado em História
Social, chamada Caminheiros do Destino11 escrita por Sônia Maria Ribeiro Simon
Cavalcanti, e uma obra já clássica denominada Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos
ciganos, escrita por Mello Moraes Filho12 pioneiro em estudos sobre ciganos no Brasil.
Localizamos também um trabalho de conclusão de curso em Pedagogia para o Ensino
da Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, escrito por Lidiane Batista
de Oliveira, denominado Representação Social entre os Povos Ciganos e a Escola.13
Porém, este trabalho não está disponível na Biblioteca da UESC. Por fim, foi possível
encontrar alguns artigos em periódicos no site da própria Universidade. Além da
pequena quantidade de trabalhos, tratando sobre a cultura dos povos tradicionais
ciganos, apenas a dissertação de mestrado em história, de Sônia Cavalcanti, aborda os
ciganos na região sul baiana. Logo, estes estudos não dão conta de explicar a
diversidade étnica dos povos ciganos existentes naquela região.
Além da biblioteca da Universidade supracitada, encontramos algumas leituras de
autores que discutem as questões da cultura cigana, apontam para a presença de ciganos
em território brasileiro desde o século XVI, aproximadamente no ano de 1574, como
salientam: Melo Moraes Filho; Ático Vilas Boas da Mota; Frans Moonen; Rodrigo
Corrêa Teixeira; Geraldo Pieroni e Cristina da Costa Pereira. Lemos também, as obras
de Charles Godfrey Leland; D. H. Lawrence; Isabel Fonseca; Maria de Lourdes
Santana; Nicole Martinez; Oswaldo Macêdo e Pierre Derlon, entre outras, que fazem
referências aos ciganos no Brasil e na Europa.
Entretanto, ainda pouco se sabe sobre a história, a identidade e a cultura dos
ciganos, que viveram e vivem no interior da Bahia, bem como sobre as contribuições
socioculturais desse povo para a formação das identidades baianas. Portanto, não
10
A biblioteca da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC é referencial para quem deseja estudar as
histórias dos municípios e de seus sujeitos na região onde fica localizada: sul da Bahia. Cabe observar que
este levantamento bibliográfico foi realizado entre os anos de 2008 a 2013.
11
CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Caminheiros do Destino. São Paulo: Dissertação de
Mestrado Apresentada ao Programa de Estudos Pós- Graduados em História da Pontifícia Universidade
Católica/SP, outubro de 1994.
12
MORAES Filho, Mello. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. Ed: Itatiaia: São Paulo, 1981.
13
OLIVEIRA, Lidiane Batista de. Representação Social entre os Povos Ciganos e a Escola. Ilhéus:
Monografia: trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Estadual de
Santa Cruz, Ilhéus, junho de 2010.
14
podemos contar com um número significativo de trabalhos acadêmicos que discutam os
ciganos na Bahia como sujeitos históricos.
O desafio de enfrentar a carência de estudos e de fontes sobre os ciganos no
interior da Bahia remete a reflexões no sentido de pensar em uma tentativa de
esquecimento, silêncio e negação sociocultural dos ciganos para a formação das
identidades locais da Bahia e do interior.
A deficiência de estudos sobre a história e a cultura dos povos ciganos na região
não é uma exceção. Notamos uma fragilidade na quantidade de trabalhos acadêmicos no
geral sobre o assunto, sobretudo, na área de História. O antropólogo Frans Moonen
revela que:
ao iniciar as pesquisas ciganas em 1992 [não encontrou] um único
livro sobre ciganos nas bibliotecas da Universidade Federal da
Paraíba. Adquirir uma razoável bibliografia cigana nacional e
internacional levou anos e custou bastante dinheiro.14
Contraditoriamente, apesar da quase inexistência de trabalhos sobre ciganos na
referida região, a presença de ciganos e grupos de ciganos nas cidades do interior é
bastante comum. Embora quase sempre sejam vistos como sujeitos de admiração,
surpresa, preconceito e medo pelos não ciganos.15 Em nossa compreensão, tais grupos e
sujeitos constituem uma das dimensões socioculturais destas cidades, compondo parte
de sua história, apesar da insuficiência de estudos.
Tomamos como referência literária o livro O tempo é chegado (2006), de
Euclides José Teixeira Neto (1925 - 2000), ex-prefeito de Ipiaú (1963 - 1967), cidade
localiza na região cacaueira. Particularmente o conto intitulado “Os Ciganos”.
Antes de iniciar o conto, Euclides José Teixeira Neto dedica o texto ao escritor
Jorge Emilio Medauar (1918 - 2003), que nasceu em Água Preta do Mocambo, “sede do
então distrito de Ilhéus, hoje cidade e município de Uruçuca” (REVISTA AGULHA,
16/06/2003), também localizada no sul da Bahia – região cacaueira. Aqui também
14
MOONEN, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: 2011. p. 7.
Entre as cidades da região que realizamos entrevistas, destacamos as que possuímos mais contato com
ciganos em ordem decrescente: Ubatã, Itabuna, Ipiaú, Ilhéus, Camaçari, Feira de Santana, Santo Antônio
de Jesus e Salvador.
15
15
analisamos a obra de Jorge Emílio Medauar intitulada Jorge Medauar conta estórias de
Água Preta (1975).16
Ao analisar essas obras problematizamos o que levou os autores Jorge Medauar e
Euclides Neto a selecionarem justamente os ciganos para fazer parte de seus livros de
contos e quais foram os lugares reservados a eles naquela literatura regional.
No primeiro capítulo -“A literatura e o jornal como meios de memória”buscamos ponderar sobre o lugar reservado aos ciganos na literatura dos autores
regionais Jorge Emílio Medauar e Euclides Teixeira Neto e também a presença dos
ciganos nos jornais de Itabuna e região. No segundo capítulo -“A pessoa nascendo
cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição” - apresentamos a história e a formação
de um grupo familiar cigano na cidade de Itabuna, a partir da segunda metade do século
XX.
Metodologicamente, trabalhamos os textos literários e/ou jornalísticos, aliás como qualquer outra fonte – como leituras do real que não podem ser desvinculados do
contexto em que foram produzidos. Ou seja, as narrativas literárias e jornalísticas
oferecem vestígios sobre os acontecimentos e experiências dos ciganos na região e
acerca daqueles que se expressam através de seus escritores, leituras e versões,
permitindo a construção de um conhecimento sobre o passado dos ciganos, pois, como
bem assinala Walter Benjamin ao afirmar que, “articular historicamente o passado não
significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência,
tal como ela relampeja no momento de um perigo.”17
E no terceiro capítulo – “Ciganos no interior da Bahia”- Brevemente,
apresentamos os ciganos a partir do jornal A tarde para então, versar algumas
reportagens do próprio jornal junto a entrevistas, no sentido de possibilitar uma
aproximação ou não entre os discursos envolvendo ciganos, afim de, perceber os
contrastes e suas as complementações. Assim, ao estudar os textos literários e
jornalísticos como vestígios e/ou reminiscências, estivemos atentos à premissa de que
16
Procuramos também, um livro de contos do mesmo autor com o título, O dinheiro do cajú: O cigano –
Contos: Angola – Brasil. Colecção Imbomdeiro, 1963. Porém, não foi possível a aquisição da obra pela
sua indisponibilidade em bibliotecas e sites virtuais e livrarias.
17
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Coleção Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural, 1985. p. 224.
16
a única garantia no trabalho historiográfico, bem como seu limite, é
que as coisas tenham acontecido e deixado vestígios: a história é uma
ideia limite do que nós podemos conhecer. Você só pode conhecer do
passado e do presente aquilo que o passado e o presente deixou e
deixa.18
Dessa perspectiva, ponderamos sobre as intencionalidades dos escritores aqui
em debate, sem perder de vista o fato de que ambos, ao se dedicarem à escrita de contos,
servindo a um tempo e a um espaço socioeconômico, político e cultural específico,
aproximaram-se do ofício do historiador.
Um dos principais objetivos deste estudo se fundamenta a partir, de reflexões
sobre a identidade de sujeitos denominados ciganos em algumas cidades do interior da
Bahia. Refletir sobre estas identidades através dos discursos literários e jornalísticos
como veremos a seguir no primeiro capítulo deste estudo implica pensar sobre as
tentativas dos escritores Euclides Neto e Jorge Medauar na construção de discursos de
identidades, percebidas tanto na literatura de ambos, como nas matérias de jornais sobre
a presença de ciganos na região. Desse modo, este estudo permite ponderar sobre a
cultura de um povo, sua identidade e seu modo de vida, a partir da trajetória de uma
família de ciganos na cidade de Itabuna no interior do sul da Bahia. Visamos assim,
apreender melhor as suas identidades individuais, familiar e de grupo, para pensar
aquelas identidades e aquela cultura enquanto elementos entrelaçados em uma história
que não se restringe à história local.
Pensamos naqueles sujeitos enquanto sujeitos relacionais que participam da
dinâmica de uma sociedade, dando suas contribuições para os diversos âmbitos da
sociedade. Este estudo espera dar a sua contribuição ao conhecimento histórico, visando
romper com os silêncios de uma historiografia que durante anos manteve-se afastada da
história de um povo historicamente presente na sociedade nacional, baiana e interiorana.
Um trabalho como este pretende mostrar a resistência sociocultural, histórica e familiar
dessas comunidades.
18
DE DECCA, Edgar. “O estatuto da história”. In: Revista Espaço & Debate. 34: Cidade e História. São
Paulo: NERU, 1991. p. 7.
17
A Jorge Medauar
Há trint’anos (tanto corre
O tempo) escrevi a poesia
Onde disse que fazia
Meus versos como quem morre.
Ainda não eras nascido.
Agora, orgulhosamente
Moço, ao poeta velho e doente
Parodiaste destemido:
Das batalhas em que estive
É o suor que em meu verso escorre!
Tu o fazes como quem morre:
Eu o faço como quem vive!
Façam-no como quem morre
Ou quem vive, que ele viva!
Vive o que é belo e deriva
Da alma e para outra alma corre.
Verso que dela se prive,
Ai dele! Quem lhe socorre?
Nem Marx nem Deus! Ele morre.
Só o verso com alma vive.
Deste ou daquele pensar,
Esta me parece a reta,
A justa linha do poeta,
Poeta Jorge Medauar!
(Poema de Manuel Bandeira – publicado em “Mafuá do Malungo” em 1945)
18
A LITERATURA E O JORNAL COMO FONTES DE MEMÓRIAS
1.1 - ENTRE CONTOS: OS CIGANOS EM JORGE MEDAUAR CONTA
ESTÓRIAS DE ÁGUA PRETA
Jorge Emílio Medauar nasceu em 15 de abril de 1918 em Água Preta do
Mocambo, Distrito de Areia, atual Uruçuca, no estado da Bahia. Era filho de Emílio
Medauar e Maria Zaidan Medauar, imigrantes árabes.19
Quando ainda menino mudou-se para São Paulo com a família. Faleceu em 03
de junho de 2003 na mesma cidade de São Paulo. Teve forte presença em antologias,
enciclopédias e dicionários.
Sua vida social, profissional e como escritor foi marcada pela qualidade de suas
atribuições. Foi membro da Academia de Letras de Ilhéus/Bahia e membro da
Academia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil em São Paulo. Fez parte de várias
Associações e de Sindicatos. Foi por duas vezes diretor Cultural da Associação Paulista
de Propaganda e duas vezes presidente da Comissão de Relações Públicas e
Comunicação da Associação Cristã de Moços.
Pertenceu ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo e foi
membro da União dos velhos jornalistas e membro da União Brasileira dos Escritores.
Compôs o Corpo Deliberativo do Conselho Estadual de Cultura, da Secretaria de
Cultura, Esporte e Turismo de São Paulo. Foi membro da Associação Brasileira de
Crítica Literária e membro do Sindicato dos Escritores do Estado de São Paulo.
Como jornalista, foi presença destacada em vários setores, transitando entre os
principais jornais da capital paulista, conselhos e o exercício da docência. Colaborou
19
Os dados biográficos do autor foram retirados da obra Jorge Medauar em prosa e verso organizada por
Maria Odete, Maria Matilde e Jorge Medauar Júnior, editada pela Editus. Editora da Universidade
Estadual de Santa Cruz, em 2006.
19
com o “Correio do Povo”; Rio Grande do Sul; “Gazeta de Moema”, de São Paulo; e
atuou como editor de Literatura da Revista “Afinal”, também de São Paulo. Membro do
Conselho Editorial da Revista de Estudos Árabes e Secretário da Revista Literatura
entre outros cargos profissionais. Ocupou o cargo de diretor geral de “O Globo”,
Sucursal de São Paulo e foi diretor e professor da Escola Superior de Propaganda
também em do mesmo estado.
Entre suas obras citamos: Chuva sobre a tua Semente, 1945, poemas; Morada de
Paz 1949, poemas; Prelúdios, Noturnos e Temas de Amor, 1954, poemas; Às Estrelas e
aos Bichos, 1956, poemas; Água Preta, 1958, seu primeiro livro de contos; Histórias de
Menino, 1961; A Procissão e os Porcos, 1962, contos; O Incêndio, 1966, contos; O
Visgo da Terra, 1996, romance; entre outros trabalhos. Em 1959 Medauar ganhou a
mais importante premiação literária brasileira, o Prêmio Jabuti, promovido pela Câmara
Brasileira do livro, pela produção da obra de contos Jorge Medauar conta estórias de
Água Preta.
Porém, apesar de todas suas atividades e obras, sendo um dos maiores escritores
da região do sul da Bahia, encontramos dificuldade em pesquisá-lo em fontes
jornalísticas locais. Fazemos esta observação sem aprofundá-la porque não é objetivo
deste estudo analisar as relações entre os escritores locais e a dinâmica sociocultural
regional que, muitas vezes, ignora alguns destes autores.
No conto “O cigano”, que faz parte do livro Jorge Medauar conta estórias de
Água Preta, o escritor apresenta de forma descritiva não só o tratamento que “O
Cigano” dá a suas mercadorias, mas também, o cenário no qual a narrativa se desenrola.
A história, tendo como palco Água Preta do Mocambo, atual Uruçuca,
desenrola-se na cidade tendo como pano de fundo o comércio. Assim, a trama literária
de Jorge Medauar, bem como de Euclides Neto, como veremos adiante, se passa no
interior do sul da Bahia.
É nessa região que os ciganos aqui estudados viveram, e ainda vivem suas
experiências históricas enquanto sujeitos e grupo étnico. E, nesse sentido, dada a
universalidade da presença cigana, a abordagem aqui proposta só pode se identificar
com uma História dita local tendo como perspectiva o proposto por José de Assunção
20
Barros para quem a história local/regional é uma das abordagens historiográficas que
está presente em todo o modo de fazer história.
uma história, entre outros adjetivos, será uma ‘história local’ no
momento em que o ‘local’ torna-se central para a análise não no
sentido de que toda história deve fazer uma análise do local e do
tempo que contextualiza os seus objetos, mas no sentido de que o
‘local’,uma cultura ou uma política local, uma singularidade
regional, uma prática que só se encontra aqui ou que aqui adquire
conotações especiais a serem examinadas em primeiro plano.20
Sobre a mesma questão Júlio Aróstegui também é uma referência quando discute
sobre a natureza do conhecimento histórico, a teoria e o método da pesquisa histórica,
no sentido de compreender melhor o modo de fazer história. Um deles é pensar uma
história que se diz local, mas que está entrelaçada ao global.
Quer dizer, a história de uma sociedade reúne em si todas as
atividades que os homens realizam e que estão entrelaçadas de forma
indissolúvel. A história de todas as sociedades do mundo, por sua vez,
se encontra também entrelaçada, ou tende a estar. Dessa forma, a
História é sempre global.21
Ainda pensando sobre a história, vale destacar Pierre Nora no texto “Entre
Memória e História: A problemática dos lugares”, que afirma que a história “é uma
reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”. Desse modo,
entendemos que essa história reconstruída a partir das memórias dos autores regionais e
dos textos jornalísticos, nada mais é que uma batalha entre memórias e história, pois
concordamos com as colocações de Nora que, aponta que a memória e a história estão
“longe se serem sinônimos”.
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
20
BARROS, José D´ Assunção. O lugar da História Local na expansão dos campos históricos. In.
Conferência para o I Encontro de História Local/ Regional da UNEB, novembro, 2009. p. 231.
21
AROSTÉGUI, Júlio. História e Historiografia: os fundamentos. In. A pesquisa histórica: teoria e
método: Edusc. Bauru, São Paulo, 2006. p. 95.
21
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repentinas revitalizações.22
Para Nora, a história opera com “um criticismo destrutor de memória
espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é
destruí-la e a repelir.” Com base em Pierre Nora e Márcia Motta, entendemos que a
memória é um fenômeno atual e que não possui compromisso direto com a criticidade,
já a história “busca uma representação crítica do passado, o que não elimina, porém, o
perigo de o historiador incauto apenas restaurar memórias”. Concluímos, com as
reflexões de Nora e Motta, que a história, além dessas definições, é “uma operação
intelectual que, ao criticar as fontes, construí-las à luz de uma teoria, realiza uma
interpretação na qual o que importa não é só a noção de um consenso, mas também a do
conflito.”23
O “trabalho de enquadramento da memória”24, conceito de Henry Rousso,
retomado por Pollak no texto “Memória, Esquecimento e Silêncio”, revela que este
trabalho de enquadramento se alimenta do material fornecido pela história”. Mas, é
interessante pensar também que o trabalho literário, assim como o histórico fornecem
materiais para a construção de um trabalho de memória enquadrada, que pretende se
firmar enquanto memória oficial de uma coletividade. Pollak conceitua a memória,
como uma “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que
se quer salvaguardar”25, essa operação é dada pela seletividade dos fatos e personagens
que devem participar de uma memória coletiva e de uma história nacional, regional e
local.
Nesse processo, os grupos de ciganos e outras minorias étnicas têm sido
historicamente excluídos de uma memória oficial, geralmente liderada por grupos
22
NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. In. Projeto História. São Paulo:
CEDUC, n. 10, dezembro,1993. p. 9 -15.
23
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História, memória e tempo presente”. In. Novos domínios da
história: Elsevier. Rio de Janeiro, 2012. p. 24-26.
24
ROUSSO Henry.“A memória não é mais o que era”. In: Usos e Abusos da História Oral. In: Org.
Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV. Rio de Janeiro, 2001.
25
POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2,
n.3, 1989. p. 9.
22
opostos aos grupos ciganos apesar da presença cigana no Brasil remontar ao século
XVI. Sem dúvidas, a questão perpassa pelo preconceito acerca da cultura dos ciganos,
provocado pelo desconhecimento que desdobra na ignorância sobre aqueles sujeitos em
seu modo de vida.
Voltando ao conto de Jorge Medauar, em todo texto o escritor atribui
importância à sabedoria (o conhecimento) e à experiência adquirida nas viagens reais
que o Cigano realizou e realizava. Isto permitia aos “da terra”, ou os “tabaréus”,
experimentarem viagens de pensamento de maneira diferente, uma viagem ficcional.
O Cigano apresentado por Medauar é um personagem dotado de sentimentos e
de princípios. Em sua escrita, o autor demonstra respeito e admiração pelo cigano criado
por ele, um indivíduo que encarna a experiência e a sabedoria, entre a arte da
negociação e a arte da convivência sociocultural em Água Preta.
O conto inicia desta maneira:
Amarrou a montaria na Praça e começou a arrumar as bugigangas no
chão. Primeiro abriu a esteira, depois foi distribuindo chocolateira
com chocolateira, caneco com caneco, fifó com fifó, cuscuzeira com
cuscuzeira. Num instante a esteira se cobriu de mercadoria. No meio,
uma pilha de bacias esmaltadas, uma por dentro da outra, subindo em
pirâmide, as grandes por baixo, afinando em cima com as pequenas. A
esteira estava bem sortida de lamparinas, canecos, caçarolas, bules,
frigideiras.
Quando viu que tudo estava como queria, ajeitou o tamborete de três
pernas, sentou-se. Ainda era muito cedo para principiar a vendagem.
A manhã mal havia nascido, com os primeiros animais chegando,
balançando os caçuás carregados de farinha, frutas, rapadura, legumes
para a feira do sábado. Como não quis ficar sem fazer nada, abriu um
livro e na luz dos primeiros pingos de sol pegou a ler.26
O escritor, além de descrever a diversidade de mercadorias do Cigano, traz uma
informação importante: este cigano era um “Cigano instruído”. Dominava a leitura e o
26
MEDAUAR, Jorge Emilio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL. São
Paulo/Brasília, 1975. p. 58.
23
poder da experiência, vivenciada no momento de barganhar na feira em Água Preta,
tinha prática de vendas de mercadorias e sabia contar casos e estórias como ninguém.
Aquele homem unia o conhecimento dos livros ao conhecimento da experiência
adquirida nas relações que estabelecia na feira da cidade de Água Preta. Porém, saber
ler e escrever não era e, ainda não é, uma prática comum entre os ciganos, que
tradicionalmente, se constituíram enquanto um povo de cultura ágrafa. Todavia esse
fato não significa dizer que a ausência de uma educação formal entre os povos ciganos
faça parte de um traço cultural daquela etnia.
Entendemos que, o cigano personagem de Medauar domina o exercício de
leitura e de escrita, o que nos leva a crer na existência de brechas e exceções no
conjunto de uma maioria de ciganos analfabetos. A questão da escrita e da leitura tem
ganhado um maior espaço entre as famílias ciganas, sobretudo no final do século XX e
do século XXI. Porém, são poucos os ciganos que conseguem uma educação escolar e
universitária de qualidade, que respeite suas tradições culturais e o seu estilo de vida.
Jucelho Dantas da Cruz foi uma dessas exceções.27 Professor da área de Agronomia na
Universidade Estadual de Feira de Santana na cidade de Feira de Santana, município do
interior do estado da Bahia, que se autodenomina cigano, relata sua experiência como
professor cigano naquela instituição.
Quando a gente se identifica como cigano aonde quer que seja, choca
muito, aqui na universidade mesmo, eu faço questão em me identificar
como cigano para todas as turmas que começo a dar aulas e quando eu
vou me apresentar como professor da disciplina, e vou apresentar um
pouco do meu currículo, eu falo da minha formação e também da
minha origem, e a gente ainda vê um pessoal dando uns pulinhos da
cadeira, muito também por não ver um cigano dentro da academia
estudando ou sendo professor, dando aulas dentro de uma
universidade, eu acho até certo ponto natural, não a discriminação,
mas o espanto por ver um cigano dando aulas, porque realmente, não é
muito comum ver ciganos que têm uma formação acadêmica, um
nível superior, dando aula, trabalhando ou exercendo uma profissão.
27
Entrevista realizada entre os meses de setembro e outubro de 2014 com duração entre 01 hora e 42
minutos, aproximadamente. Jucelho Dantas da Cruz participou da abertura da ANPUH (Associação
Nacional dos Profissionais em História) realizada na Universidade Estadual de Santa Cruz em 2012,
evento que marca pela primeira vez a participação de um cigano professor contando sobre a história do
povo cigano naquela universidade.
24
Seria fantástico, seria maravilhoso se todos os ciganos tivessem
condição de estudar, de se formar, de ter uma profissão.28
A relação entre formação escolar escolar e/ou acadêmica e afirmação de
identidade é comum a diversos grupos, particularmente os étnicos e as chamadas
“minorias”. Ser cigano e ter uma formação acadêmica, como no caso do professor
Jucelho, o faz atuar como militante de seu povo, reforçar sua identidade e sentimento de
pertença. Além disso, a forma como os outros ciganos os vêm não é unânime, enquanto
uns declaram sentimentos de satisfação por ter um cigano como representante de seu
povo em um lugar de prestígio social e cultural; outros expressam opiniões contrárias
que revelam receios da perda de seus elementos culturais.
O contato direto e permanente com os não ciganos, em uma escola ou em uma
instituição de ensino superior, significa para alguns ciganos uma transgressão cultural.
Em muitos casos, não somente os pais proíbem seus filhos e filhas de darem
continuidade à vida escolar. As mulheres, por exemplo, quando ainda muito jovens,
expressam o desejo de continuar estudando, elas logo são impedidas pelos próprios pais
ou pelos maridos. As mulheres devem viver exclusivamente para a vida doméstica e os
homens precisam desde muito cedo aprender a negociar e cuidar da vida financeira da
família.
Assim, no contexto dos destinos traçados para os jovens ciganos, a escola e a
universidade não correspondem à dinâmica da vida social e cultural de muitas famílias,
não restando, portanto, alternativa, senão abortar o desejo de continuar os estudos. Para
seu Gerisnal Fortuna Rebouças - chefe familiar da Família cigana Fortuna Rebouças em
Itabuna e parente próximo de Jucelho Dantas da Cruz, a quem inclusive faz referência
nesse momento, “o cigano é muito difícil pra formar, ele não interessa, vive para eles,
não trabalha pra ninguém. Entendeu? Eu tenho uns três a quatro primos que é formado.”
Sobre a escolaridade entre as mulheres ciganas, seu Gerisnal Rebouças é categórico: “a
mulher cigana não pode formar, antigamente, o pessoal tinha aquele carracismo velho
pra não escrever pra namorado, pra não misturar a família, pra não casar com pessoa
que não seja cigano”.
28
Entrevista realizada com Jucelho Dantas da Cruz, professor da Universidade Estadual de Feira de
Santana em Feira de Santana, 2014.
25
Tanto na narrativa do chefe familiar, seu Gerisnal Rebouças quanto na do
professor Jucelho fica bastante claro que a permanência na escola entre os ciganos é
motivo de exclusão e rejeição, tanto para homens como para mulheres, com muitas
implicações e consequências na vida do indivíduo cigano com maior grau de
escolaridade. Todavia, o que muitas vezes é visto como um traço cultural entre as
comunidades ciganas não passa de uma incompreensão da cultura do outro, pois
existem outros empecilhos à frequência escolar desses povos como, por exemplo, a
compatibilidade de horários entre o trabalho informal e o horário da escola, a
inexistência de escolas itinerantes ou, ainda escolas preparadas com professores ciganos
para dar continuidade ao processo de escolarização de crianças e adultos nômades.
Diante desses e outros impasse, “para os ciganos, o que o outro fala ainda tem muito
peso, eles vivem muito em função do que os outros pensam.” O “outro”, significa, outro
cigano. Segundo Jucelho, alguns ciganos pensam da seguinte forma:
eu não vou deixar minha filha estudar, porque os outros vão falar que
minha filha virou puta porque está estudando, daqui a pouco ela vai
estar namorando, ela vai estar aprendendo a ser livre. De alguma
forma eles têm a noção disso que vai estar proporcionando uma certa
sabedoria, de poder de discernimento do certo e do errado, ou de que é
positivo e do que é negativo. Então por isso acho que eles têm essa
resistência, por isso que as ciganas não estudam muito. Os ciganos
têm uma formação muito machista, então eu já não aceito, é da cultura
do cigano ser machista, é um traço da cultura que eu não concordo. As
ciganas não aceitam se vestir de uma outra forma, com uma roupa
comum, com calça jeans e blusa, eu não acho que é a roupa que vai
fazer ela ser ou não ser cigana. Infelizmente isso é muito comum entre
os ciganos. Tem melhorado muito, os tempos estão outro, as coisas
estão mudando de forma mais acelerada, mas é muito comum ainda , o
homem, o cigano ter a esposa como objeto dele. Muito embora
quando eu não estava com esse pé fora da família, vivia ali, não estava
estudando ainda, porque eu comecei a estudar muito tarde com quinze
anos, fosse normal isso, é pela ignorância, por não perceber isso, tudo
isso é um absurdo, você tratar seres humanos dessa forma, apenas
muda o sexo, que um é homem e outro, mulher e tratar de forma tão
diferente.29
Surgem portanto, algumas questões de gênero, envolvidas nas práticas e relações
cotidianas entre homens e mulheres. Questões dessa natureza se apresentam como mais
uma das inúmeras leituras que podem ser feitas a respeito da história dos povos ciganos
29
Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014.
26
no Brasil. Todavia, embora não ignoremos sua importância para a compreensão de uma
lógica de poder entre os indivíduos e famílias desses povos, as relações e/ou questões de
gênero não serão discutidas aqui.
Voltemos, pois ao cigano descrito por Medauar que entre leituras e histórias,
continua o trabalho estratégico na venda de suas mercadorias.
Tabaréus passando, dando “bom dia”. O cigano respondia com um
balanço de cabeça, sem arredar os olhos do livro. Alguns paravam,
examinavam em silêncio a mercadoria. Quando o freguês demorava
mais, os olhos levantavam da página, pousavam um instante no
comprador. Com um simples olhar sabia quem era de compra e quem
era apenas curioso, perguntador de preços. Se valesse a pena, cortava
a leitura: dobrava a ponta da página, pousava o livro sobre uma
caçarola emborcada, levantava-se para atender. Raras vezes se
enganava. Raras vezes deixava de vender, quando descobria o bom
comprador e quando fazia empenho. Ninguém por ali vendia melhor.
Muitos donos de loja iam ver, se admirar de seus recursos. Tinha um
jeito diferente de vender: deixava para um lado o preço das coisas,
pegava de conversas. A palavra mansa, descansada, fugindo do
assunto para casos que não tinham nada a ver com a qualidade do
artigo, o preço, a utilidade. Sabia que os tabaréus gostavam de ouvir
histórias passadas no outro lado do mundo. Então pegava um caso,
emendava com outro, envolvendo a atenção do tabaréu. Fazia gosto
ouvi-lo, a palavra como água de riacho escorrendo manso, levando a
esquecer o eito duro do cacau, o suor de muitos dias pingando debaixo
de sol, a mão engrossando no cabo do facão, na enxada que ia e vinha,
trazendo sustento sofrido de todos os dias. Deixavam o tempo passar,
entretidos naquela rede de balanço.30
Medauar atribui ao Cigano um jeito próprio de negociação por estar o Cigano
atento aos desejos alheios, no caso, “dos tabaréus.” O escritor mostra o jeito de falar
daquele homem bem como a sua sensibilidade, por que percebia que “os tabaréus
gostavam de ouvir histórias passadas no outro lado do mundo” como sendo também um
dos fatores que contribuíam para a eficiência no momento da barganha. Tanto era assim
que “suas histórias pegavam, seu jeito capenga de falar parece que tinha visgo”. O
Cigano fazia as pessoas caírem “na maciez da fala.”
30
Idem. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 58-60.
27
Além disso, o cenário social e econômico apresentado por Medauar era de
trabalho duro nas lavouras de cacau e aqueles momentos entre barganha e estórias
serviam como distração para muitos trabalhadores rurais. Para o professor Jucelho, os
ciganos, “mesmo quando ficavam parados durante algum tempo em determinado local,
nunca foram de trabalhar assalariadamente mesmo se tivesse oportunidade”.
Como convivíamos em situações difíceis nas roças de cacau, naquelas
fazendas de cacau bem no interior daquelas matas, onde muitas vezes
nem acesso a carros se tinha, era somente andar de animais, mesmo. E
naqueles locais tinha oportunidade de trabalho braçal, de trabalhar em
roça de cacau, trabalhar como tropeiro, ou fazendo algum serviço
dessa natureza para os fazendeiros. Mas, os ciganos eles sempre,
devido a forma que os fazendeiros tratavam seus empregados, quando
eles viam a forma do tratamento, como se fosse o dono da pessoa, era
como um regime escravista, praticamente, onde o empregado era
submetido a tudo que o fazendeiro queria. Então, os ciganos não se
sujeitavam muito áquele tipo de trabalho, nem entre si, os ciganos não
aceitavam muito um tratamento impositivo, como por exemplo, você
tem que fazer assim, ou assado, ou, eu estou querendo que seja
assim... Então, eles têm muito essa dificuldade de aceitar, apesar de
aceitar que tenham um líder, tenha um representante que falem por
eles frente a autoridades, como é muito comum ter entre os ciganos,
chamados chefe dos ciganos da região cacaueira.31
A narrativa de Jucelho, sobre a dificuldade de alguns ciganos se manterem
ligados pelos vínculos de trabalho com os não ciganos na condição de empregados
dialoga com a atitude do cigano personagem de Medauar, quando o mesmo é convidado
a firmar um compromisso de se tornar empregado da loja de João das Neves.
Um dia, seu João das Neves apostou que o cigano seria seu caixeiro.
Anunciou a todo mundo que dobraria o peregrino. O cigano em sua
loja de ferragens seria capaz de quebrar o comércio das outras lojas.
Foi assim que seu João lhe ofereceu passadio, moradia e um ordenado
nunca visto. Mas quando foi contratar o serviço, o cigano, na frente de
todo mundo, só fez balançar a cabeça e ficar sorrindo: não havia
dinheiro no mundo que amarrasse seus pés num lugar, disse. Queria
montar seu animal, armar sua tenda em qualquer canto. Onde tivesse,
comeria. Onde chegasse, aí dormia. Gostava era de bater estrada,
vendo os matos, ouvindo os bichos, os cantos dos passarinhos.
Perguntou depois a seu João quanto valia beber água na concha da
mão, na beira de um riacho de água fresca, no caminho de uma
viagem. Seu João se espantou, arregalou os olhos. O diabo do cigano
tinha a cabeça mole. Danou-se, quando viu que o homem estava era
31
Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014.
28
com mangação grossa. Sentiu-se derrotado. Então saiu dizendo por aí
a fora que o cigano era pancada. Espalhou a história debaixo de
zombarias, entortando o caso a seu modo. O cigano havia sumido.
Noutra viagem a Água Preta, o povo se lembrou, arrodeou o homem
com perguntas. Queriam saber como alguém podia desprezar um
emprego daqueles, trocar cama com lençol por uma esteira estendida
nos capins dos matos, arriscando a ser mordido de cobra.32
Notamos, em inúmeras fontes, uma política sociocultural contra as comunidades
ciganas, bem como determinadas políticas que são direcionadas para a construção de uma
identidade cultural dos ciganos na região. Políticas baseadas, em diversas tentativas de aplicação
de modelos identitários que visam impor definições de identidade única para uma diversidade
de famílias ciganas. Nesse contexto, a literatura, os jornais, o cinema, a música e a televisão são
importantes mecanismos de difusão de conceitos de identidade e de cultura que interessam a
determinadas práticas políticas de segregação, exclusão e discriminação.
Encontramos muitos indícios de uma política sistemática, entre as elites locais, contra
aqueles que são configurados como os “estranhos” na esfera social. Desse modo, os ciganos são
encaixados nesse perfil da diferença sociocultural, inclusive com relação a sua organização
familiar e suas práticas culturais.
Por conseguinte, surgem os preconceitos e os estereótipos, como fica evidenciado no
conto de Medauar, quando o cigano se nega a aceitar o trabalho oferecido pelo comerciante João
das Neves, o último diz ser louco o cigano. Assim, “seu João das Neves espalhava: o homem
andava mesmo de juízo frouxo, os miolos balançando”. A partir desse momento, começa uma
acirrada perseguição ao cigano, cujo talento para os negócios parecia ameaçar os lojistas da
cidade, porque o “tabaréu só fazia mergulhar a mão na algibeira, pagar o quanto fosse, sem se
atrever a pedir um vintém de diferença. Aquilo é que fazia os donos das lojas ficarem
embasbacados. Com o cigano, nunca viram tabaréu pechiringando”. E se perguntavam, “quanto
valia um homem daqueles por detrás de um balcão? Não havia fortuna que pagasse”. Curiosos
alguns “donos de loja iam ver, se admirar de seus recursos,” o cigano, não era apenas admirado,
existia na verdade, um clima de enfrentamento e competitividade entre aquele cigano e os donos
de loja.
Notamos em Medauar e nas memórias de um passado recente, narradas pelo professor
Jucelho, que mesmo que falem de elementos sociais e econômicos de um determinado contexto,
ambos se entrelaçam em uma discussão identitária. A identidade cigana aqui em discussão fica
32
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 61,62.
29
mais evidenciada no contexto rural em que viva a sociedade entre as décadas de 1970 de 1980,
sobretudo no interior do Sul da Bahia, onde ainda predominava a lavoura de cacau, em torno da
qual se articulavam elementos culturais, socioeconômicos, religiosos e políticos da região.
O cigano vendedor de mercadorias é um sujeito comum às narrativas do escritor
Medauar e do professor Jucelho, quando este último afirma a dificuldade de aceitação por parte
do cigano, e sobretudo de sua família, em se sujeitar a determinadas atividades vistas por eles
como trabalho de gadjhão, ou seja, de não cigano. Em Medauar, percebemos que o cigano faz
uso de uma autonomia socioeconômica em um contexto em que o trabalho, principalmente na
lavoura cacaueira, era pautado nas relações de poder entre patrão e empregado, relações muitas
vezes de humilhante segregação socioeconômica, política e cultural. Questões como essas,
também são apresentadas a partir dos desdobramentos narrativos de Medauar.
Na sequência, o escritor Jorge Medauar destaca que as estórias contadas pelo
cigano atraíam as pessoas, inclusive os meninos, enquanto descreve a aparência do
Cigano e seu modo de se vestir, que causavam estranheza em muitos.
O povo ajuntava, os meninos vinham de longe para ouvir.
Acocoravam no chão, pelo meio das pernas dos roceiros. E ficavam de
queixo caído. Desentupiam os ouvidos, botucavam os olhos em cima
do cigano. A costeleta comprida, os bigodes entrando pelos cantos da
boca, as argolas derramadas das orelhas eram uma admiração de
embasbacar. Nunca ninguém por ali havia visto homem macho com
argolas. A não ser no carnaval. Muitos chegavam atraídos pelo lenço
de mulher amarrado na cabeça, ou pelas argolas balançando na ponta
das orelhas.33
Para Medauar, o contar histórias e casos era um instrumento fundamental
utilizado pelo cigano para uma negociação satisfatória. O autor constrói um cigano
enquanto uma figura exótica que contava histórias para envolver e atrair as pessoas que,
envolvidas, eram levadas a comprar suas mercadorias.
Este quadro podemos também verificar na obra de Mario Scherer A Voz da
Cigana, resultante da convivência do autor com ciganos de Porto Alegre, no Rio Grande
33
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 59.
30
Sul. O autor salienta que, sendo cosmopolitas e misteriosos, os ciganos sempre se
mostram muito hospitaleiros com aqueles que também os tratam de modo hospitaleiro.
Porém, para Scherer, sendo um povo que tem a “arte de negociar” com certa
“dose de esperteza”, os ciganos, por vezes, são considerados como “comerciantes
trapaceiros”. Mario Scherer considera que os ciganos têm na liberdade, na alegria e na
simplicidade a lógica de viver. Perder ou ganhar para eles é consequência natural do
fato de estarem vivos.
O trabalho de Scherer esclarece que a vida cigana tem como ponto crucial, a
liberdade, no sentido da não obediência no jogo social entre a sociedade não cigana,
rompendo com imposições, normas, leis e convenções sociais destrutivas para a
dinâmica da vida cigana.
As criminalizações a que são submetidas as práticas de vida ciganas, bem como
os preconceitos divulgados pela mídia, correspondem à necessidade do estado e da
justiça de combaterem um estilo de vida que transgride a ordem social existente. O que
se aprende por meio do estudo de Scherer, bem como das descrições tendo presente as
descrições feitas por Medauar em seu conto, é que o modo de vida cigano incomoda o
modus vivendi estabelecido naquela cidade.
Lendo o conto e observando as análises de Scherer, percebe-se que o povo
cigano preza o tempo para ficar longos momentos em grupo, em reuniões com a família,
conversando e confraternizando. Nesses momentos são narradas histórias cotidianas
pelos mais velhos em suas barracas ou casas, tendo neste comportamento uma prática
diária e dinâmica de rememoração, de (re) − construção e de transferência (in) −
voluntária da tradição cultural entre famílias ciganas.
O estudo de Scherer, quando analisado a partir da perspectiva de Geertz, permite
perceber que a cultura cigana é fortalecida e alimentada pela tradição, particularmente a
oral. É nos momentos de conversas que as tradições são transmitidas.
Assim, a obra de Scherer serve como norteador para nosso trabalho, no sentido
de compreendermos a importância das reuniões e confraternizações, fundamentais para
a manutenção e reelaboração da memória e identidade destes grupos. No conto de
Medauar essa premissa é demonstrada nos momentos de barganha entre o cigano e os
31
não ciganos na feira de Água Preta, quando o cigano revisita, rememora sua história e
tradições e a afirma sua identidade por meio dos contos narrados por ele mesmo.
Dialogar com a cultura cigana perpassa pela análise e interpretação do próprio
conceito de cultura. Nesse sentido, reconhecemos a pertinência do conceito de cultura
apresentado pelo antropólogo Clifford Geertz, para quem o conceito de cultura é
essencialmente semiótico. Geertz, assim como Max Weber, afirma que o homem é um
animal “amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu”, assumindo a cultura
como sendo estas mesmas teias.
Novamente retornando ao conto “O Cigano”, Medauar, diferentemente de
Euclides Neto – como veremos adiante, apresenta o Cigano como um “sujeito útil” à
sociedade de Água Preta. O escritor associava o Cigano à alguns aspectos positivos,
pois, de acordo com o texto, o cigano servia a uma sociedade, com seus utensílios e suas
estórias.
Os fazendeiros da zona gostavam dele, por que seus casos eram um
pouco de distração para os trabalhadores. E estava sempre servindo,
chegando na hora da precisão de uma chocolateira, um caneco, um
urinol.34
Além disso, destaca que a
primeira vez que o cigano chegara à Água Preta, trouxera a sorte de
uma safra, esperada com sofrimento, não estava sabendo que vinha
para a terra com o melhor sinal desse mundo: as chuvas desciam pelas
cabeceiras do Água Preta.35
No entanto, enquanto Calimério, um dos personagens de Medauar que conhecia
muito bem o modo de vida cigano, dizia “que o cigano era um santo: não tinha natureza
para fazer mal a ninguém”, Seu João das Neves, outro personagem criado por Medauar,
proprietário de comércio no povoado, “vivia na malinidade, criando ódio” contra o
Cigano Eliziário.
34
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 63.
35
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 64.
32
Na história, Seu João, não tendo o que contar, “metia o cigano em casos de
roubo, de criancinhas carregadas de uma cidade e vendida em outra.” O comerciante
salientava que Cigano era “raça de sonso que vivia com disfarce de vender coisas só
mode encobrir seus intentos.”
O Cigano não ignorava essa “malinidade”, “vinha a Água Preta tão raras vezes,
mas, já sentia que o tempo de se afastar estava chegando. Iria rarear até sumir.” Muitas
vezes, “recebera ofensas em outras cidades. Em qualquer parte do mundo cigano era
mal visto, olhado de banda. O povo temia. E era difícil acabar com o medo do povo.”36
Observa-se ainda o receio que o Seu João das Neves tinha de que seu filho se
relacionasse com o cigano, bem como a postura do cigano com relação à atitude de seu
João das Neves.
Seu João das Neves era um dos que temiam a sorte dos filhos. Quando
arrastava o menino aos pinotes, pelo meio do povo, não fazia outra
coisa senão futucar o medo daquela gente simples. Era como se
dissesse: “não deixem seus filhos aí não”. Sentia pena do menino, a
vontade era dizer que não fizesse aquilo. Mas, tinha que trancar a
boca, esconder seus sentimentos. Então, como se não tivesse
acontecido nada, voltava ao ponto interrompido de sua história.37
Importa perceber que a narrativa de Medauar tende para a criação de uma
identidade cigana em que o personagem é um trabalhador honesto, inocente e um bom
contador de estórias. As histórias negativas sobre seu passado, a perseguição contra a
sua permanência na feira da cidade, bem como os perigos que todos sofreriam com tal
presença, são “malinidades” - atribuídas ao comerciante local, Seu João das Neves.
Seu João chegou mesmo a contratar alguns cegos para cantarem cantigas que
falavam mal dos ciganos, próximo à tenda do cigano. Seu objetivo era incomodar até
que o cigano fosse embora. O próprio João dizia que havia “dado duzentos mil-réis para
36
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 65.
37
Idem. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 65.
33
os cegos. Nunca viram tanto dinheiro. O trato foi não parar de cantar, até o cigano
enfurecer.”38
Continuou seu João das Neves a tecer suas conclusões de aversão à presença do
cigano na cidade junto ao seu compadre na sua loja de peças em Água Preta. Contudo,
contrapondo-se às ideias de Seu João das Neves, seu Calimério pensava de maneira
mais amistosa a respeito do cigano.
[João das Neves] Cada vez que esse filho do cão aparecer em água
Preta vai ouvir cantiga de cego até não poder mais. Eu fecho o
negócio desse gajão, compadre Calimério.
Calimério achando exagerada a vingança. Donde vinha aquele ódio?
Pensou em ir embora, não dizer nada, deixar seu João falando sozinho.
A vontade era andar até a praça, ajudar o cigano arrumar suas coisas.
O homem era inocente. E os cegos estavam cantando sem sentimento,
ensinados pela raiva de seu João. Não podia discutir com o compadre:
uma alma possuída de ódio e vingança não ouve, não vê. Perto da loja
de seu João, Calimério abanou um adeus, perguntado:
- Quando aparece?
O cigano encolheu a cabeça nos ombros. Continuou seu caminho.39
Seu João e Calimério protagonizam assim duas posturas bem comuns quando
tratamos de ciganos. Por um lado a idealização de pessoas livres e sem maldades; por
outro, a de que representam um perigo à ordem social por serem constantemente
considerados povos errantes e vinculados à desordem e à bagunça.
Nas entrelinhas o conto de Jorge Medauar evidencia a figura do cigano, na
cidade de Água Preta, como uma identidade forjada. A noção de invenção de uma
identidade cigana aparece quando percebemos a própria seletividade do autor, o cigano
é de certo escolhido, por ser esta identidade criada para ser fixa, imutável, engessada.
Ela se aplica ao contexto de fala do autor, talvez por se enquadrar em um campo
idealizado.
38
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 70.
39
Op. cit. MEDAUAR, Jorge Emílio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. Editora: GRD/INL.
São Paulo/Brasília, 1975. p. 71.
34
A identidade daquele cigano Elizário, embora narrado pelo autor como um
sujeito que interage, de certa forma, positivamente no meio social, ainda, permanece
refém de uma narrativa que o interpreta como sujeito desprendido de qualquer vínculo
social. A liberdade que é construída em volta da identidade cigana se apresenta como
um conceito problemático. Uma retórica muitas vezes construída em torno de uma
sociedade até então desconhecida, gera incompreensões e falsos conceitos.
O nomadismo, por exemplo - até então destacado elemento de definição de
comunidade cigana assinalado como fenômeno natural e espontâneo –, não é comum a
todos os povos ciganos. Na verdade, às vezes tratam-se de deslocamentos forçados e
não mudanças por “livre e espontânea vontade” ou por fazer parte de um traço cultural.
Muitas vezes as famílias ciganas não têm outra escolha a não ser sair do lugar, por
inúmeras razões, entre as quais se destacam, a aversão, o ódio e os próprios conflitos
familiares e/ou entre ciganos e não ciganos.
O cigano do conto representava a aspiração de liberdade dos habitantes da
“pequena” Água Preta, uma liberdade idealizada de tal modo que havia uma projeção
naqueles sujeitos, enquanto sujeitos tidos como “livres” daquelas amarras sociopolíticas
de Água Preta e região do interior sul baiano.
35
Euclides Neto Vovô
Alguma coisa em Ipiaú aconteceu.
Não. Euclides não morreu, apenas foi passear na caatinga.
Foi rever amigos, dar umas voltas na praça e pelas ruas.
Depois, estendeu o olhar para suas cabras, sentou-se.
Ficou refletindo sobre a vida, sobre os homens.
Seu olhar distante. Longe. No poente.
Mas de repente, alguma coisa aconteceu:
o sol estava vivo, brilhante,o dia claro.
Derrepente escureceu.
Mas, Euclides não morreu: está circulando,
revendo suas árvores, as cabras
que balem como que a gemer saudades.
Tudo agora é triste.
A morte não existe.
Aleluia. Aleluia. Euclides está chegando.
O sorriso é o mesmo. É o mesmo andar.
A voz é a mesma, meio alegre e meio triste.
Entardeceu
Em Ipiaú. Alguma coisa aconteceu.
Mas Euclides não morreu.
(Citação de Jorge Medauar em: O tempo é chegado, 2006)
36
1.2 - CONTANDO UM CONTO: EUCLIDES NETO E OS CIGANOS EM
O TEMPO É CHEGADO
A obra póstuma O tempo é chegado é um conjunto de contos ficcionais do
escritor Euclides José Teixeira Neto (1925 - 2000), editada pela Editus da Universidade
Estadual de Santa Cruz/Ilhéus. Sua primeira edição data de 2001 e a segunda de 2006,
sendo esta última a que consideramos para o presente estudo.
Euclides Neto nasceu em 11 de novembro de 1925 em Jenipapo, distrito de
Areia, atual cidade de Ubaíra, situada no interior da Bahia. Formou-se em direito,
porém, suas origens são de agricultor e criador de cabras.40
O escritor foi prefeito da cidade de Ipiaú entre 1963 e 1967 cidade também
situada no sul da Bahia – região cacaueira. Segundo o site “Revista Bahia em Foco”:
Euclides Neto, ex-prefeito de Ipiaú, realizou a primeira experiência de
reforma agrária na Bahia (a chamada Fazenda do Povo, em 1963),
obra que lhe valeu abertura de inquérito pelas forças armadas, prisão e
heróica resistência à Ditadura Militar. Formado em Direito pela
UFBa, defendeu os posseiros e os pequenos proprietários de terra.
Com os seus mandamentos registrados no livro “Trilhas da Reforma
Agrária”, o ex-secretário da Reforma Agrária [1980], deixou um
legado reconhecido por grandes nomes da literatura mundial, a
exemplo de José Saramago (REVISTA BAHIA EM FOCO,
dezembro/2013).
Ainda como prefeito, fundou dois estabelecimentos, a fazenda do povo e o
museu do lavrador. Porém, é interessante destacar que Euclides Neto “é um escritor
muito pouco conhecido e de audiência restrita até em seu próprio estado.”41
No entanto, alguns trabalhos foram produzidos sobre ele, entre os quais: O
romance dos excluídos: terra e política em Euclides Neto, de Elieser César, publicado
40
As informações biográficas sobre Euclides Neto foram obtidas junto ao livro Euclides Neto – Coleção
Gente da Bahia, escrito pela jornalista Lilia de Souza e publicado em 2013.
41
CESAR, Elieser. O romance dos excluídos: terra e política em Euclides Neto. Ilhéus: Editus, 2003. p.
11.
37
pela Editus, em 2003; Literatura do cacau: ficção, ideologia e realidade em Adonias
Filho, Euclides Neto, James Amado e Jorge Amado, de João Batista Cardoso, também
pela Editus em 2006; Euclides Neto – Coleção Gente da Bahia, escrito pela jornalista
Lilia de Souza e publicado pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia em 2013.
Além dessas publicações, uma dissertação foi desenvolvida por Ana Sayonara Fagundes
Britto Marcelo no Programa de Pós Graduação em Estudos de Linguagens da
Universidade do Estado da Bahia em 2010.
Euclides Neto teve participação em diversos jornais da região como, por
exemplo, Tribuna da Bahia, A Tarde, A folha do Interior e o Jornal da Bahia. Atuou
também como membro da Academia de Letras de Ilhéus em 1990.
Publicou 13 livros. Em suas obras trabalha com temas polêmicos, tais como, as
questões da terra, da reforma agrária, do trabalhador rural e as mazelas sofridas pelo
homem e pela mulher, ambos, explorados e oprimidos no campo.
Uma boa indicação para quem deseja entender o trabalho de Euclides Neto é a
leitura feita por Rita Lírio de Oliveira42 durante o Congresso de Linguagens e
Representações. A autora pensa as narrativas de Euclides como produção de memória,
nos ajudando a refletir sobre os modos de percepção do escritor sobre a identidade da
região sul-baiana.
Optei por discutir dois contos da obra “O tempo é chegado”. O primeiro conto
analisado possui o mesmo título do livro, o segundo conto tem como título “Os
Ciganos”. Estes contos nos permitem refletir, não só o cenário socioeconômico do
interior do sul da Bahia nos tempos do cacau, mas também sobre uma memória
produzida acerca da identidade cigana na região, a partir das narrativas do escritor.
Em “O tempo é chegado”, o escritor apresenta um contraste social e econômico
que vai do apogeu ao declínio do cacau. Ele trabalha com muita propriedade a noção de
tempo (que não se limita apenas ao tempo cronológico). Permite-nos, por meio de sua
narrativa, apreender uma temporalidade que ocorre com a chegada do cacau, durante a
sua permanência e depois do seu declínio, com a devastação da lavoura atacada pela
praga conhecida como “vassoura de bruxa” na região. Logo nas primeiras páginas desse
42
OLIVEIRA, Rita Lírio de. SIMÕES, Maria de Lurdes Netto. Identidade e Imaginário em a rica
fazendeira de cacau. Vol. 1, nº 7, Ano VII, Dez/2010 ISSN – 1808 -8473 FFC/UNESP.
38
conto, Euclides ilumina, por meio de sua narrativa, o cenário socioeconômico,
ambiental e a diversidade agrícola do sul da Bahia. Porém, aparece a denúncia em
relação às condições de trabalho em que viviam os trabalhadores oprimidos e
explorados na região. Na obra, percebe-se que a partir da chegada do cacau e dos
desdobramentos daquele processo nasce uma sociedade sustentada na desigualdade
socioeconômica.
Antes, os índios, nas liberdades da criação. Chegaram os caçadores.
Toparam ipeca, plantinha rasteira e milagrosa; a copaíba, árvore
linheira, galhuda, passando as outras, gorda de óleo grosso, curando
enfermidades. Muitos foram ficando por ali, abrindo a clareira,
levantando a casa de taipa, indaiá, chão socado. Sementes no útero da
terra alvoroçada. Trilhas saindo daqueles brongos, procurando os
pareceiros. Mandioca, cana, fumo, café. Cacau chegando. Floração.
Safras ainda de quilos. Suor dos homens escorrendo nos eitos.
Mulheres morriam de parto, homens esmagados sob as derrubadas dos
machados, o pico-de-jaca matando meninos que metiam a mão nos
ocos para tirar buguelos de periquito. Com a terra mais domesticada
pela valentia dos primeiros, os bodegueiros bateram palmas de
chegada. Vinham também de fora, no faro do fruto já colhido.
Traziam raiva da decadência deixada nos nortes que deixaram. Não
era gente de enxada. Gerações deles trocando charque, barricas de
bacalhau, bulgariana, pólvora, chumbo, espoleta, pelos pés de cacau
que começavam a safrejar. Daí, nasceram os fazendeiros cerzindo as
roças umas nas outras. Os primeiros viraram agregados, caititus,
alugados, vendendo os braços. Edificaram-se casas-sede.43
Euclides Neto descreve rapidamente, o momento de origem e surgimento de
uma sociedade, aponta a relação do homem com a terra, contando brevemente a
experiência de homens, mulheres e crianças nas roças. Ao mesmo tempo em que monta
um cenário de riqueza, denominado de “Anos gordos”, Euclides apresenta em contraste
a miséria, como no trecho a seguir onde aparece a Dona Justina viúva do fazendeiro, Dr.
Santos, que “não suportou a pobreza”. Euclides revela que “os que mandavam nos
povoados”, eram “os doutores e os genros”. Estes compravam “carrões rabos-de- peixe,
aviões, estendendo campos de pouso nas fazendas, mobílias recortadas na nobreza dos
carvalhos, trazidos de Portugal, só para fazer bonito, copiando o que viam nas viagens”.
43
NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 11.
39
O autor descreve os contrates entre a riqueza e a miséria na terra do cacau:
O sol, a vassoura-de-bruxa, a comedilha dos bancos, as casas roídas
pelos bichos miúdos. O comércio descia aos fundos do inferno. Por
toda parte, em vez de anúncios iluminados, chamando a freguesia,
restou o “vende-se” o que ninguém queria comprar. Paradeiro.
Castigo. Foi o que a viúva do Dr. Santos viu e se lembrou quando
sentou-se no batente da varanda, chegada numa boléia de caminhão
que o antigo exportador de cacau, amigo do seu marido, arranjara para
ela voltar à fazenda. A mulher chorava. Os cabeleireiros, as butiques,
as joalherias, as viagens de navio para onde o mundo tivesse cantos.
As lágrimas da viúva lavavam aquelas tristes lembranças, o peito
sofrendo, pisado, como se os pés do barcaceiro o esmagassem, feito ao
sambar sobre o cacau mole, cantando para tanger o sono das noites
perdidas na estufa, atiçando fogo, estuporando nas noites frias e
chuvosas de julho. A pobreza a apavorava naquele momento. Preferia
morrer a ver as roças queimadas pela doença, as árvores do
sombreamento desaparecidas para virar dinheiro que a manteve até
ali.44
Euclides Neto faz referência às memórias de seus personagens em vários
momentos de suas narrativas. Ao mesmo tempo, também, faz referências as suas
próprias memórias como podemos verificar na personagem de Dona Justina.
O autor elabora todo um processo de viagem real e ficcional em sua trama
literária, deixando transbordar por meio de seus personagens os sentimentos mais
profundos que aqueles puderam sentir no contexto do cacau, fazendo lembrar a
importante relação entre história e literatura, imbricadas por meio das ações e sensações
construídas por seus personagens, como explica Albuquerque Júnior, argumentando que
“na literatura os acontecimentos ainda não chegam racionalizados, podem vir como
impressões e digressões, como expressão de sentimentos e sensações.”45
Nesse conto, Euclides Neto traz à tona inúmeras sensações refletidas pela viúva
Justina. Da mesma forma, demonstra a insatisfação dos moradores com a presença dos
sujeitos “sem terra” na região. O escritor revela que “os sem terra apareceram, levas de
sujos, magros, meninos puxando peitos despencados e, ali mesmo, no terreiro, como
ciganos que não pediam licença para arranchar, levantaram as barracas.” E ainda,
44
Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 12.
ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Editora:
EDUSC. Bauru, São Paulo, 2007. p.48.
45
40
durante a noite “como se achassem pouco, tocaram uma viola de duas cordas, um
pandeiro furado e até um pé-de-bode da sua infância apareceu. Orquestra macabra que
nada tinha a ver com os concertos de Paris.”46
Percebe-se que a comparação daquela “leva de sujos” com os ciganos demonstra
como esses últimos eram percebidos pelo autor. Porém, muitos dos “sem terra” não
eram ciganos, mas, porque “não pediam licença para arranchar”, eram vistos como tal,
por conta dos comportamentos, tidos como “comportamentos de ciganos”. Tomamos
alguns cuidados ao analisar o discurso literário de Euclides Neto e de Jorge Medauar
porque, em alguns momentos, os autores denominam pessoas não ciganas como
ciganas.
Recorri ao conceito de identidade de Stuart Hall para entender o modo como o
escritor Euclides Neto conceitua a identidade cigana em seu outro conto: “Os Ciganos”.
Nesse texto, o escritor, tenta de certo modo, construir o conceito de identidade cigana
em sua narrativa, a partir de suas próprias impressões e experiências sobre aquela
identidade. Nesse sentido, Euclides Neto, na tentativa de reconstrução das memórias e
das identidades grapiúnas aponta os ciganos como “exploradores da região”, assim
como os fazendeiros e os proprietários de terra no sul da Bahia. O autor nos leva a
acreditar que a chegada dos ciganos na região foi um acontecimento impactante e, de
certo modo, devastador, assim como foram o cacau e a vassoura-de-bruxa. Pois,
segundo Euclides Neto, a chegada deles à região trouxe consequências negativas,
significando ruína por atuarem como instrumento de exploração e desigualdade entre os
indivíduos da terra.
Assim que começa a fazer referência aos ciganos, no conto “Os Ciganos”,
Euclides Neto mantém a viagem como um dos elementos principais de sua narrativa.
Mas muda o seu modo de narrar como vinha fazendo com os personagens do conto “O
tempo é chegado”, analisado anteriormente. Os ciganos se transformam em personagens
viajantes reais que não mudam de identidade apesar de ter como elemento principal de
sobrevivência, o ato de viajar.
46
Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 13.
41
Um dos pontos que considero mais instigante e contraditório na narrativa de
Euclides Neto é o momento em que o escritor parece negar todo um processo de viagem
que permite o sujeito chegar a um determinado lugar. Ou seja, o autor não percebe que o
sujeito, conforme discute Octávio Ianni, “ao longo da travessia, não somente encontrase, mas reencontra-se, já que se descobre mesmo e diferente, idêntico e transfigurado.”
Podendo “até revelar-se irreconhecível para si próprio, o que pode ser uma manifestação
extrema do desenvolvimento do eu. Um eu que se move, podendo reiterar-se e
modificar-se.”47
Euclides Neto inicia o conto a partir do processo de chegada dos ciganos.
Descreve algumas características de seus cavalos, as impressões sobre aqueles
indivíduos e as sensações geradas por conta daquela presença.
Derrubaram as bagagens. A tropa de burros, cavalos e jumentos
esparavonados, docas, orelhas caídas, na ossada, foram soltos no areão
do Rio de Contas, ao lado das barracas, à entrada da cidade. A notícia
disparou rua afora até o fim das casas e voltou por outros caminhos, já
carregada de receios. As galinhas foram presas, os baés escondidos,
perus nem se fala. Daí a pouco os ciganos, em busca, de jacas e outras
frutas. Famintos, nem tanto. Vício antigo.48
A memória narrativa de seu Gerisnal Rebouças é impregnada da ideia de ciganos
viajantes, o que se aproxima de certo modo, com os ciganos apresentados por Euclides
Neto. Gerisnal Rebuças descreve a forma como sua família realizava as viagens. E em
seu trabalho de memória, o chefe cigano relembra o tempo passado, ou seja, o tempo
vivido, atrelado ao tempo presente. Diferentemente de Euclides Neto, que fala a partir
do que se vê, de uma vivência presente. Tratam-se de narrativas construídas de ângulos
distintos, pois enquanto Euclides Neto narra suas impressões sobre os ciganos, Gerisnal
Rebouças constrói uma narrativa de suas próprias experiências.
Antigamente, quando viajava pelo mundo, viajava muito cigano, a
bagajona, cada carroça vinte e trinta bagagem, cada qual em sua
barraca. Agora hoje, já estamos morando cada qual em sua casa, não
47
IANNI, O. “A metáfora da viagem”. In: Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio deJaneiro : Civilização
Brasileira, 2000. p. 26.
48
Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 65.
42
viaja mais pelo mundo. O cigano que mora em casa ou em barraca é a
mesma coisa.49
E continua narrando a sobrevivência econômica de sua família que, de certo
modo, determinava principalmente o rumo da viagem. Aponta mudanças ocorridas entre
os ciganos, não somente no abandono das andanças, mas também nos objetos e nas
mercadorias, antes “trocava animal” e hoje, “compra carro”. Todavia, o ofício continua,
a negociação entre ciganos e entre ciganos e não ciganos, o que muda são as
mercadorias que passaram a ser negociadas pelos ciganos.
Os ciganos mudaram o rumo do comércio, a muito tempo, três
décadas pra cá, mais ou menos, e minha família é oriunda da região do
estado, da região cacaueira e é o maior exemplo que nós temos é o
declínio da cacauicultura e isso significa não comprar mais animais,
não ter mais aquele volume de comércio que tinha. Então o comércio
de animais foi se extinguindo e até porque foi criada condições de
mobilidade melhores do que os animais que tinha na época, as
estradas foram avançando dentro das roças e o transporte do cacau
passou a não ser mais no lombo dos burros, mas em carros, e aí
gradativamente, foram mudando esse tino no comércio, passou a
comprar e a vender carros, começaram outras oportunidades, compra e
venda de lotes de fazendas de sítio, ou até mesmo, os ciganos
começaram a atuar como corretores, ganhando comissões para
comprar e vender terrenos, fazenda. Então hoje o ramo é muito mais
diversificado, sem contar ainda com dinheiro a juros, a chamada
agiotagem que muitos ciganos fazem e isso é rentabilíssimo para eles,
hoje se você perguntar para um cigano que tem um bom poder
aquisitivo se ele gostaria de ter um emprego fixo, com certeza ele vai
dizer que não, porque com a vida que ele tem com o comércio, ele vai
ganhar dez ou vinte vezes mais do que um assalariado. Então não é
lucrativo pra ele. Os ciganos não têm um trabalho assalariado como
meta a ser alcançada, por isso até que ele não tenha se esforçado pra
pôr seus filhos pra estudar, pra se dedicar, pra realmente ter uma
formação superior.50
O fim do nomadismo significa dizer que a cultura se modifica. O povo cigano
se fixa, mas é hora da tradição e da cultura se movimentarem ainda mais. Muda-se não
somente as mercadorias de negociação entre os ciganos, muda-se o próprio sujeito, o
que nem sempre é entendido ou aceito entre os ciganos. Para Gerisnal Rebouças, essas
mudanças não afetaram sua família. Segundo ele, “cigano que mora em casa ou em
49
Entrevista realizada com Gerisnal Fortuna Rebouças, chefe da família cigana “Fortuna Rebouças” em
Itabuna, 2014.
50
Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014.
43
barraca é a mesma coisa”. O professor Jucelho da Cruz explica que o nomadismo não
foi um processo natural e voluntário. Assim como o professor, Gerisnal Rebouças e sua
família também passaram pelo processo de sedentarização. No caso de sua experiência
pessoal, Jucelho da Cruz credita a sua opção por morar em uma casa à responsabilidade
para com a sua esposa e filhos. Afirma que é por conta deles, que mora em uma casa e
não mais em barraca, porém foram as motivações e as experiências ao longo de sua
trajetória de vida, mesmo antes da existência de sua família não cigana, que
impossibilitaram a sua inserção plena no grupo dos ciganos, assim como, acontece com
seus filhos, que são vistos pelos ciganos e por ele mesmo, como não sendo ciganos em
sua totalidade, não somente por serem filhos de um gadje, mas também pela
inexistência de uma relação cultural próxima e contínua entre eles e outros ciganos.
Muitas vezes essa questão do nomadismo não foi somente por conta
da vontade dos ciganos andarem ou estarem mudando. Mas pela
imposição da sociedade, geralmente os delegados de polícia, os
prefeitos dos municípios, os donos dos locais onde os ciganos
acampavam que não aceitavam e estavam sempre colocando os
ciganos para fora. Apesar de viver como eu vivo hoje dentro de uma
casa muito bem estruturada e não viver mais em barraca, é mais por
conta da família, minha esposa, meus filhos, já não foram criados
nesse sistema e agora é praticamente impossível, de estar vivendo
dessa forma livre, digamos assim.51
Identificamos através da narrativa do professor Jucelho da Cruz que, embora o
mesmo afirme ser o mesmo cigano Jucelho, ele não é. Isso fica evidente quando ele
declara, em vários momentos da entrevista, que saiu do convívio entre os ciganos desde
a década de 1980. Desse modo, entendemos que, uma vez que saímos da convivência
sociocultural, mesmo que o sujeito retorne definitivamente (o que não aconteceu com o
professor Jucelho) a sua identidade jamais será a mesma.
Por ser um cigano que concluiu mesmo que tardiamente seus estudos, ele se faz
um cigano diferenciado e suas experiências denunciam essa diferença. Quando fala
sobre a identidade e o sentimento de pertença de seus filhos, Jucelho da Cruz
inevitavelmente está falando sobre sua própria identidade, em um processo
51
Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014.
44
inconsciente, o professor Jucelho da Cruz traça um espelho que reflete sua “nova
identidade”, há um choque cultural no encontro não só entre os filhos de Jucelho da
Cruz, mas também quando o último se apresenta entre os ciganos que não mais o
reconhecem como o cigano Jucelho da Cruz, mas como o professor cigano Jucelho da
Cruz.
Com relação aos meus filhos, eu procuro conversar, falar para ela o
meu orgulho, o que eu vivi como cigano, convivendo dentro da
cultura, vivendo dentro da família, dentro do grupo dos ciganos e que
eu vivo hoje fora, mas o meu sentimento que está aqui no coração, a
minha pertença é total, eu não tenho como dizer que eu não sou
cigano, onde eu estiver eu faço sempre questão de falar isso pra que
diminua esse preconceito que existe contra os ciganos, que é uma
forma de diluir, mas meus filhos não se sentem ciganos, mesmo
porque não têm um convívio estreito, a maior parte da vida deles é
estudando na escola que não tem ciganos, de vez em quando é que
vamos ver minha família e muitas vezes para eles que vivem a muito
tempo com outra cultura, com outro traço cultural, quando chego lá,
choca a forma, os meus filhos não se identificam. De alguma forma
isso vai influenciar no desenvolvimento da cultura do povo cigano,
porque eu não me casei com uma cigana, não estou vivendo mais no
ambiente. Então os meus filhos, apesar de serem ciganos 50% (por
cento), já não têm a cultura arraigada e seus filhos também não terão,
então isso vai estar tirando, dirimindo, diluindo essa cultura é o que eu
chamo de “aculturação”, vai acontecendo isso naturalmente, e em todo
o segmento da sociedade isso vai acontecer, é natural isso. Mas, eu
acredito que entre os ciganos será mais acentuado.52
Bem sabemos que, a aculturação, não significa perda da cultura, mas ganho
cultural. Ou seja, um cigano ao relacionar-se com um não cigano, ele está naquele
momento ganhando mais elementos culturais que serão agregados e reelaborados numa
outra cultura, mas isso não significa dizer que, o cigano deixou de ser quem ele é,
cigano. Porém, um cigano com novos aspectos de cultura. Desse modo, é possível ser o
outro sem deixar de ser quem nós somos.
É importante salientar que, a presença dos ciganos na narrativa euclidiana foi
importante para estabelecer um diálogo entre os impactos causados por aquela presença
junto no contexto da crise econômica na região. Isso talvez se justifique por ser nos
momentos de crise, sobretudo econômica, que algumas categorias sociais passam a ser
repensadas e questionadas. Neste caso particular, a identidade e o povo cigano.
52
Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014.
45
No conto de Euclides Neto os ciganos são personagens que, de certo modo,
correspondem à necessidade do escritor em reforçar a sociedade e a cultura dos tempos
do cacau, a partir de suas memórias.
O escritor até aponta as diferenças econômicas dos grupos ciganos, mas os
mantém sob a identidade cultural de errantes. Ou seja, cigano para ele tinha apenas um
parâmetro de definição de identidade e de cultura, o permanente estado de itinerantes,
mesmo quando adquiriam poder e propriedades em um lugar.
Com dois meses da presença dos ciganos ricos, como passaram a ser
conhecidos, muitos fazendeiros e comerciantes, antigamente também
endinheirados, lhe tomavam empréstimos, alguns para pagar os
trabalhadores e até mesmo para comer. A chamada crise, conhecida de
muitos, mas que os mais velhos afirmavam que como aquela nenhuma
acontecera. Os ciganos têm cobre a rodo, viajava a notícia. Para eles
corriam todos. Questão de vida ou morte, nesse meio tempo, surge a
campanha eleitoral. Político compra dinheiro onde acha. Nem procura
saber o preço. Cigano encheu o papo, apareceu o gosto pela política.
Resolveram financiar um candidato. Agora meteram na cabeça que
deviam ter candidato, não entenderam que, sendo errantes, não
possuindo título de eleitor, nem inscrição partidária era-lhes proibido
tal direito. Os coronéis e comerciantes antigos, depois seus filhos e
genros, e os doutores, mandões até ali, sentiram-se ameaçados por
aqueles novos donos do poder e da terra.53
Alguns ciganos gozavam de um prestígio social nos tempos de declínio do
cacau. Todavia, segundo explica Jucelho, “antigamente, os ciganos eram mais
nivelados, eram todos pobres, era raro você encontrar um cigano que tivesse um poder
aquisitivo melhor”.
Segundo Euclides Neto, o cigano
é criatura que vem de outras eras e perseguições. Jamais lutaram por
um território só deles. Ao contrário dos Judeus, também errantes e
perseguidos, que sempre lutaram e morreram por um pedaço de pátria.
O gozo do poder acordou no bando um velho desejo, adormecido
pelos séculos, sempre bem escondido. A vontade agora era ter pelo
menos uma cidade própria, com fazendas, dominando o comércio.54
53
54
Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 69.
Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 70.
46
Aqui é possível problematizar, por exemplo, que aos sujeitos ciganos
construídos/idealizados pelo autor, no conto “Os Ciganos” e no livro “O tempo é
chegado”, atribui-se a ausência de desejo ou ambição de ter um território como uma
característica que se encontra na origem da sua formação enquanto grupo e, como tal,
constitutiva de uma identidade singular dos povos ciganos. Nesse sentido, subentendese que, ao desejar a posse de terra ou de um território próprio, os ciganos personagens
de Euclides Neto trairiam a sua verdadeira identidade, individual ou de grupo.
Stuart Hall trabalha com o conceito de Identidade na pós-modernidade. No
processo de concepção e reflexão do autor, a ideia de identidades e culturas híbridas,
remete, de algum modo, à experiência histórica dos povos ciganos e nos ajuda a pensar
sobre a identidade desses povos.
As pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente
suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições,
das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas.
A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho
sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias
histórias e culturas interconectadas, pertencentes a uma e, ao mesmo
tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas
pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar
ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural
“perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente
traduzidas.55
Mesmo os ciganos não tendo um lugar de origem demarcado e definido
historicamente, muitos possuem nexos de identificação sociocultural específico de cada
grupo ou clã. Desse modo, não podemos afirmar que as diversas identificações anulem
os vínculos culturais de suas tradições.
Isto é perceptível na narrativa do cigano Victor Vishnevsky, que escreveu um
livro de memórias para contar suas histórias durante um longo período de viagem pela
55
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do ‘popular’. In: Da diáspora: Identidades e mediações
culturais. Editora: UFMG. Belo Horizonte, 2003. p. 88,89.
47
Europa. Em seu livro, Memórias de um Cigano, a ideia de fortalecimento da cultura
cigana é sentida a partir de suas memórias e da jornada de sua família até a chegada ao
Brasil. Trata-se de uma “aventura” de alguém que nasceu na China, de ascendentes
iranianos, e que viveu na Índia por algum tempo.
Nesta obra autobiográfica, Victor Vishnevsky nos leva a diversos momentos do
modo de vida cigano que, diante da preocupação da extinção de seu povo, Os Lovara, o
autor registra os acontecimentos mais marcantes das histórias que viveu, as tradições
ciganas de sua família e de outros clãs ciganos, bem como dos diferentes contextos que
influenciaram os rumos familiares.
Segundo Moonen, os Rom é um clã oriundo do Leste europeu que fala o Romani,
dialeto dos Rom, entre todos os ciganos são os mais estudados e descritos. Como já
dito, o Rom é um dos grupos que compõe o tripé da cultura cigana, pois ela se divide
em três grandes grupos Rom, Calon e Sinti. Porém, apenas os Rom se subdividem, em
aproximadamente sete clãs. E os Lovara, asssim como os Kalderash são subgrupos,
pertencentes ao grupo Rom. A nomenclatura “Kalderash” indica a profissão de
caldeireiros entre os ciganos deste clã. Geralmente, os Rom se denominam como
“ciganos autênticos”, considerando os demais ciganos pertencentes aos grupos Calon e
Sinti, como “falsos ciganos” ou ciganos de terceira categoria.
Nós, os ciganos, não somos as pessoas que a maioria pensa que
somos. Através dos séculos, pessoas de todas as nações nos olham
como nômades, sem país e sem nenhuma proteção. Portanto, caso
aconteça alguma coisa ruim, como roubo de criança, ou algum tipo de
fraude, e existam ciganos nas redondezas, com certeza a culpa sempre
será atribuída a nós.56
Como a viagem é um elemento presente na narrativa de Euclides Neto, é
interessante perceber como o escritor elabora sua escrita destacando a simultaneidade de
chegada e partida de grupos ciganos. Ou seja, ao mesmo tempo em que desaparecem os
ciganos pobres, aparecem os ciganos ricos. Euclides Neto monta um jogo em que as
peças principais são a presença ou a ausência de sujeitos e de determinadas situações. A
56
VISHNEVSKY, Victor. Memórias de um cigano. Editora: Duna Dueto. São Paulo,1999. p. 25.
48
partir desses elementos é possível perceber que a presença dos ciganos ricos só
aconteceu com o desaparecimento dos ciganos pobres no tempo e no espaço.
A chegada e a partida, os encontros e as despedidas também são aspectos
utilizados pelo escritor cigano Victor Vishnevsky que, da sua vida nômade estava muito
mais preocupado em apresentar o processo de sua viagem pelo mundo, suas
experiências e vivências até chegar a um lugar onde o aceitassem melhor enquanto
cigano. Vishnevsky descreve seus sentimentos e desejos, narrando em detalhes a sua
fala também, como foi sua passagem por diversos países europeus, revelando através da
narrativa da viagem de sua família, a sua própria trajetória enquanto indivíduo cigano.
Ou seja, uma história que se compromete com os processos de viagem.
Diferentemente da obra euclidiana que traz impressões de um escritor não
cigano, a partir da criação de personagens, também não ciganos, com relação à presença
de ciganos na região do interior, a obra de Vishnevsky, se realiza a partir do lugar
político de fala de um cigano comprometido com uma memória individual e de grupo.
Trata-se de uma escrita de si, das percepções de um cigano, a partir do convívio e das
relações estabelecidas em diferentes lugares que percorreu na Europa, até chegar ao
Brasil, permitindo a ampliação do nosso olhar sobre as experiências e as intenções
narrativas em ambos os escritores.
Além dos ciganos (pobres e ricos), Euclides Neto constrói dois personagens
importantes que, de certo modo, podemos considerar como principais desse conto. A
trama se passa entre Nicodemo ‒ fazendeiro que não faz parte da cultura cigana – se
relacionava diretamente com os ciganos, inclusive estabelecendo negócios e trocas de
animais e de carros.
Nicodemo se apaixona por uma suposta cigana, Carmelita, que era noiva
também de um fictício cigano, e resolve fugir com Carmelita no dia do casamento dela e
diante da confusão que um bando de ciganos rivais fizera em sua festa de casamento, “o
noivo deve ter ficado no chão. Carmelita só encontrou Nicodemo para pedir socorro.
Com quem fugiu sem destino.”57 O escritor retoma a fala sobre os ciganos ricos e sua
relação com a política partidária. Apresenta também, a relação conjugal entre a
57
Op. cit. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 71.
49
hipotética cigana Carmelita e o não cigano Nicodemo, sinalizando para a situação
econômica deste último.
Os ciganos ricos desapareceram. Ganharam a política, mas decisão da
Corte Suprema anulou tudo. Vou adiante e volto atrás: os ciganos
desapareceram. Modo de dizer, pois depois retornaram para cobrar
seus créditos e tomar conta da cidade e de toda a região como se
fossem pequenos bancos. Nicodemo perdera quase tudo. Só lhe
restava o casco da fazenda Poço da Caça. Ficou comendo na mão
como suia [em dificuldade financeira, pobre]. Tanta felicidade não
demorou muito. Carmelita desapareceu. O fazendeiro recebeu um
bilhete, sem assinatura: “Você é mesmo um trouxa. Com mania de
sabido e conquistador de mulher alheia. Carmelita, mora em Jequié,
filha de dona de pensão. O falso noivo dela também não tem nada de
cigano.” Nicodemo perdeu o cálculo, trocou a fazenda Poço da Caça,
reduzida a um quinto, por uma caatinga nas bandas de Boa Nova.
Findou-se por lá.58
A narração feita por Euclides Neto mostra questões sobre identidade, memória e
história. Ao mesmo tempo, aparecem os interesses individuais e coletivos dos sujeitos,
sobretudo, dos ciganos. São esses interesses sociais que circulam principalmente em
entorno dos aspectos políticos e econômicos. Em sua narrativa, o escritor sugere que os
verdadeiros ciganos são aqueles cujos interesses não estão direcionados para o
envolvimento partidário, político, questões materiais, como a posse da terra e questões
econômicas.
Transparece que, para o autor, o fazer-se cigano se concretiza na medida em que
aqueles sujeitos se mantêm distanciados das questões políticas e econômicas de uma
sociedade e de uma cultura não cigana. É notório perceber em outras fontes narrativas,
além das literárias, que a presença cigana surge negativamente discriminada. A
literatura tenta construir histórias para a construção de memórias absolutas e os jornais
buscam, por meio do imediatismo da notícia, uma suposta verdade absoluta dos fatos.
Ambos os veículos são importantes meios de construções de supostas memórias e
identidades.
58
Idem. NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006. p. 71.
50
1.3- “TEM CIGANOS NA PRAÇA”: A PRESENÇA DE CIGANOS NO
JORNAL O DIÁRIO DE ITABUNA
Nesta parte do capítulo analisaremos as dimensões do tratamento dado aos
ciganos por uma das fontes jornalísticas local: O Diário de Itabuna, particularmente
entre as décadas de 1950 e 1980. Na apresentação e análise das notícias desse jornal
acompanhamos algumas situações que potencializam o medo e o ódio da sociedade
contra os ciganos e seu modo de vida na cidade de Itabuna. Situações que remetem a
Zygmunt Bauman, ao inferir que “os nossos guetos voluntários – sim, voluntários – são
resultados da vontade de defender a própria segurança procurando somente a companhia
dos semelhantes e afastando os estrangeiros.”59 Assim, Bauman se apresenta como
importante interlocutor nessa parte do nosso trabalho.
Geralmente os ciganos costumam ocupar o lugar da diferença, do sujeito exótico
e folclórico em alguns livros e trabalhos acadêmicos. Alguns estudos antropológicos,
por exemplo, têm como proposta analisar os ciganos enquanto sujeitos estranhos,
exóticos e de cultura nunca antes explorada. Nos jornais, os ciganos aparecem como
sujeitos já conhecidos e, portanto, indesejáveis à sociedade, sem se preocupar com a
humanização daquele sujeito e a necessidade relacional de todo e qualquer indivíduo
para o estabelecimento de uma vida social. Bauman (2009), em seus estudos sobre a
urbanização do mundo global nos permite
sublinhar aqui, que as cidades são depósitos nos quais se procura
desesperadamente soluções locais para problemas que foram
produzidos pela globalização. O que nos lembra mais uma vez que o
local e o global continuam em plena sintonia e união, mesmo que por
vezes, atitudes locais não correspondam com os interesses e
intencionalidade do global. É preciso também, acrescentar outras duas
59
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Editora: Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2009. p. 85.
51
considerações: Primeiro que as cidades são depósitos, e segundo, que
elas são também, campos de batalha e laboratórios.60
Uma demonstração do argumento de Bauman pode ser percebida na forma pela
qual O Diário de Itabuna tratou da presença de ciganos numa das praças da cidade de
Itabuna, denominada de “Praça Camacã”, em 1959. Vale salientar que a notícia
reaparece em outros momentos do mesmo jornal.61
O próprio título da matéria já revela uma opinião de que os ciganos seriam
intrusos naquela praça e estariam se apossando da mesma. Importa ponderar também
que, a cidade de Itabuna entre os fins da década de 1950 e início da década de 1960
passou por um forte processo de urbanização.
Havia então um projeto de higienização da cidade para supostamente melhorar o
funcionamento do espaço urbano da cidade. Este projeto tratava da:
implementação de uma empresa de urbanização, chamada de
Companhia Urbanizadora de Itabuna - CURSITA, a qual tinha o
objetivo de resolver um problema, a presença de barraqueiros nas
principais vias da cidade e que deveria contar com verbas da
Aliança para o Progresso, programa de ajuda financeira da política
externa norte-americana para a América Latina62.
Ao lermos O Diário de Itabuna, é comum encontrarmos manifestações que
descrevem os ciganos como “vândalos, trapaceiros, assassinos, violentos”, entre outros
adjetivos, considerando sua presença como algo negativo para a cidade.
Novamente a título de demonstração, o Diário de Itabuna, em matéria publicada
em maio de 1980, utilizou da argumentação citada anteriormente para descrever os
ciganos na cidade de Itabuna e região na matéria “Fazendeiro foi amarrado e espancado
por ciganos”63, conforme imagem que segue. Como podemos observar a matéria
60
Op.cit. BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Editora: Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2009.
p. 86.
61
O Diário de Itabuna. Itabuna,1959. p. 3.
62
RIBEIRO, Danilo Ornelas. Do fazer jornalístico às sociabilidades das elites: a construção da Itabuna
moderna (1957-1964). Trabalho de Conclusão de Curso- TCC, Ilheús, Ba - DFCH/UESC, 2010.
63
O Diário de Itabuna. Itabuna, 1980. p. 6.
52
jornalística traz uma notícia que informa que, ciganos espancaram o fazendeiro de uma
pequena vila denominada de Santa Luzia, pertencente ao município de Canavieiras, no
interior da Bahia.
Percebe-se que o jornal trata os ciganos como “grupos de ciganos” de forma
genérica, não apresenta nomes dos indivíduos que fizeram parte do grupo envolvidos no
espancamento do fazendeiro. O jornal apresenta apenas o nome do fazendeiro, de seu
filho e do delegado de Santa Luzia, que havia expulsado supostamente o mesmo grupo
de ciganos, se resumindo a matéria a sujeitos no anonimato que, supostamente, “vinham
cometendo atos de vandalismo”. Porém, não se pode dizer que políticas e práticas de
expulsão de “indivíduos indesejáveis” seja uma novidade no Brasil. Antes, é possível
afirmar que elas sempre fizeram parte do repertório de medidas e ações com os quais as
elites e/ou autoridades esperavam ordenar os espaços públicos.
Uma antiga prática da coroa portuguesa no período colonial foi o banimento de
sujeitos considerados indesejáveis por Portugal. Segundo Geraldo Pieroni, a prática de
criminalização e banimento não são práticas novas. A coroa portuguesa, por considerar
o Brasil durante muito tempo como espaço de degredo, expulsava ciganos de Portugal
para sua colônia
no século XVII é que podemos ver generalizado o degredo de ciganos
para o Brasil. Bandos deles, provenientes de Castela, entravam em
Portugal.
Sua majestade D. Pedro, rei de Portugal e Algarves, preocupadíssimo
com a “inundação de gente tão ociosa e prejudicial por sua vida e
costume, andando armados para melhor cometerem seus assaltos”,
decidiu determinar, por decreto, que, além do degredo para África já
estabelecido nas Ordenações Filipinas de 1603, eles também seriam
degredados para o Brasil.64
Em nossa pesquisa e análise, pudemos constatar que a presença cigana na cidade
suscita os mais variados sentimentos e reações entre os não ciganos, destacando-se entre
eles as reações de curiosidade pelo exótico dessa cultura que chama atenção pelos fortes
coloridos das vestimentas das mulheres e pelo estilo de vida de alguns ciganos, de
desconfiança, de preconceito e de discriminação, fomentados pela incompreensão
64
PIERONI, G. Vadios e Ciganos, Heréticos e bruxas. Os degredados do Brasil-Colônia. Editora:
Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2006. p. 17-111.
53
daquela maneira de viver; e o sentimento de medo, medo do desconhecido que os
ciganos representam.
Nos jornais locais é comum encontrarmos manifestações que descrevem os
ciganos como “vândalos, arruaceiros, trapaceiros, assassinos, bandidos e violentos”,
entre outros adjetivos, considerando sua presença como algo negativo para o município.
Voltando ao jornal O Diário de Itabuna, na matéria já citada, “Fazendeiro foi amarrado
e espancado por ciganos”, percebe-se a utilização da referida argumentação para
descrever os ciganos que se encontram no município de Canavieiras e região. Após
acusar os ciganos pelo espancamento, a matéria conclui: “possivelmente, foi o mesmo
grupo de ciganos que foi expulso no mês passado, de Santa Luzia, pelo delegado
regional Henrique Oliveira porque vinha cometendo atos de vandalismo”65.
Ainda em outra reportagem do mesmo jornal, escrita de 27 de abril de 1984,
intitulada “Evaristo Morais vai acusar em Ubatã”66, os ciganos voltam as páginas
policiais. E mesmo quando não aparecem como protagonistas na condição de
criminosos, surgem de forma secundária por terem seu estilo de vida comparado a
práticas desviantes de não ciganos. Sinalizamos que não significa dizer que os
assassinatos não ocorreram na cidade de Ubatã, mas apontamos para o lugar que os
ciganos costumeiramente aparecem naquele jornal, apenas nos noticiários policiais,
sendo silenciados em outras páginas, como por exemplo, as páginas dedicadas pelo
jornal para expor as festas de casamento, os quais os ciganos não aparecem em
nenhuma até então analisada.
O mesmo Jornal, em sua edição de 04 de maio de 1984, publicou outra matéria
com o título: “Ciganos foram condenados por assassinatos em Ubatã”.
Os ciganos Valdecy Fiuza Barreto e Edney Barreto da Gama que
foram julgados segunda-feira, em Ubatã, pelo assassinato do estudante
Arivaldo Teófilo da Silva, de 19 anos, foram condenados a 19 anos de
reclusão.67
65
Idem. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1980. p. 06.
Op. Cit. O diário de Itabuna, Itabuna,1984. p. 07.
67
Op. cit. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1984. p. 02.
66
54
Não se trata aqui de negar que os crimes acima citados tenham ocorrido, mas de
assinalar que os ciganos, quando aparecem na imprensa local quase sempre são
mencionados e lembrados por sua relação com a criminalidade. Além disso, quando
comentem delitos os jornais fazem questão de destacar sua identidade étnica. Ciganos e
não ciganos (por possuírem um estilo de vida assinalado como de ciganos) são
apontados como sujeitos passíveis de punição e banimento: ou por ser um cigano; ou
por se comportar como um.
Mesmo quando vítima, o cigano é apresentado de forma negativa. A matéria do
jornal O Diário de Itabuna, na edição de 15 de Março de 1984, publicou a seguinte
notícia:
Baleado na barriga no último dia de carnaval, durante o atrito ocorrido
na Praça Adami, ainda não foi ouvido no inquérito que apura o fato.
Informalmente, “Zé Grande” confessou que foi ele quem realmente
atirou no arruaceiro Cláudio João Batista, “Cigano”, matando com um
tiro na cabeça.68
Não é possível afirmar que o uso do termo “Cigano”, entre aspas, sirva na matéria
para informar a origem étnica de Cláudio João Batista, pode-se conjecturar tratar-se
apenas de apelido. Porém não deixa dúvida quanto à intenção de sinalizar a relação
entre ser “Cigano” e ser “arruaceiro”.
De certo modo, podemos ponderar sobre um jogo dialético do jornal O Diário de
Itabuna que pode provocar no leitor certa dificuldade de entendimento, levando-o, desse
modo, a interpretações equivocadas contida da escrita do texto jornalístico, o que
permite pensar que: ou todo “arruaceiro” é “Cigano” ou que todo “Cigano” é
“arruaceiro”.
O jornal deixa brechas no discurso, que consente interpretarmos que o termo
“arruaceiro” é uma característica de “Ciganos” ou podemos concluirmos ainda que,
Cláudio João Batista pode ser apelidado como “Cigano” justamente por praticar
“arruaças na Praça Adami e de ter agredido o rapaz” em Itabuna, conforme consta na
matéria.
68
Op. cit. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1984, p. 04.
55
Por vezes, certos discursos constroem identidades ciganas para esses sujeitos,
colocando-os em outros lugares, inclusive, em um não lugar. No não lugar da
historiografia: o lugar do silêncio; na ciganologia o lugar é o da discussão sobre
questões cigana, mas, às vezes, também não há reconhecimento por parte de alguns
ciganos; no cinema e na música os ciganos geralmente são compreendidos como uma
unidade cultural de forma preconceituosa; e lugar oferecido pelos diversos meios
midiáticos apresenta os ciganos de forma estereotipada.
MEMÓRIA, HISTÓRIA E IDENTIDADE ÉTNICA
2.1 – A MEMÓRIA ENTRE OS CIGANOS
Caminhando pelas ruas de Itabuna nos deparamos, às vezes, com pessoas que
formam os grupos ciganos daquela cidade. Em nossa compreensão, tais grupos e
sujeitos constituem uma das dimensões socioculturais itabunense, que formam parte de
sua história. Porém, entre os que buscam pesquisar sobre a cultura cigana é costumeiro
ouvir que os ciganos formam um grupo muito fechado, cismado, um tanto perigoso e
que não costuma se abrir para o diálogo. Maria de Lourdes B. Sant’ana,”69, apresenta
cinco principais dificuldades, que surgiram no momento da sua pesquisa. Uma delas foi
o “fato do grupo se mostrar muito fechado a uma investigação realizada em tempo
limitado”. O que, no entanto, não aconteceu conosco nem no início e nem ao longo de
nossas pesquisas de campo.
Refletindo do ponto de vista do recurso à metodologia da história oral, é
necessário considerar o fato de que o “contato inicial é muito importante porque
constitui um primeiro momento de avaliação recíproca, base sobre a qual se
desenvolverá a relação de entrevista.”70 No caso particular de Itabuna e de Ubatã, além
da ideia de que se trata de um grupo muito fechado, acrescentam-se incompreensões e
estereótipos, resultantes do não conhecimento sobre as histórias e tradições das famílias
69
SANTANA, Maria de Lourdes B. Os ciganos: aspectos da organização social de um grupo cigano em
Campinas. Editora: FFLCH/USP. São Paulo, 1983. p. 09-186.
70
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Editora: FGV. Rio de Janeiro, 2013. p. 169.
56
que vivem na cidade, provocando um estranhamento em relação àquela cultura e àquele
modo de vida. Nesse sentido, é possível pensar sobre alguns preconceitos na busca da
desmistificação de certos estereótipos criados sobre a história e a cultura da comunidade
cigana naqueles municípios, contribuindo, de certo modo, para futuros estudos sobre o
assunto.
Procuramos apresentar nesse capítulo a presença dos Fortuna Rebouças, uma
família cigana que estabeleceu residência fixa no município de Itabuna em 1982,
aproximadamente, ponderando sobre suas experiências de interação sociocultural com a
sociedade não cigana. Intencionamos, desse modo, problematizar as ausências desta
discussão na historiografia brasileira, do interior da Bahia, espaço onde se percebe uma
significativa presença de grupos ciganos, marcada pela interação, mas também por
muitos conflitos, quer entre si, quer entre aqueles e os não ciganos, chamados gajões.
Tal intento implica no rompimento com o silêncio dentro e fora dos espaços
acadêmicos. Nesse sentido, pensamos que a seleção de determinadas “memórias
coletivas”71 não são espontâneas, elas fazem parte de um jogo político e ideológico que
impõe uma memória, que se tenta legitimar junto às coletividades, em detrimento de
outras memórias. Mas, a memória coletiva não atua como um processo impositivo e
arbitrário frente a outras memórias, posto que estas últimas buscam de antemão, uma
negociação e o trabalho de “enquadramento da memória”72, segundo proposto por
Henry Rousso. Enquadramento que é uma demonstração desse processo dialético que
atua não só pela via do conflito, mas também entre o acordo harmônico que objetiva
uma convivência de memórias concorrentes e que se “alimenta do material fornecido
pela história.”73.
Consideramos estas discussões sobre ciganos importantes porque permitem
problematizar não só a produção do conhecimento historiográfico, mas também, outras
pesquisas na área das Ciências Humanas. Assim sendo, é relevante apresentar uma
parcela da história dos Fortuna Rebouças e suas trajetórias por meio da memória e da
história do grupo estudado. Pois entendemos que a “memória, principal fonte dos
depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde múltiplas variáveis – temporais,
71
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era” de. In: Usos e Abusos da História da História
Oral. In: Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV Rio de Janeiro, 2001.
73
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos históricos: Rio de Janeiro, vol. 2 n.3,
1987. p. 9.
72
57
topográficas, individuais, coletivas- dialogam entre si, muitas vezes revelando
lembranças, algumas vezes de forma velada”. Entre os ciganos, por exemplo, pudemos
perceber que muitas dessas memórias são traumáticas e muitos deles chegam “em
alguns casos a ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor,
inconscientemente, que assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções
que marcaram sua vida.”74
A partir da nossa proposta metodológica, buscamos realizar uma análise
historiográfica acerca das trajetórias e das relações socioculturais do grupo familiar
cigano (os Fortuna Rebouças) na cidade de Itabuna, a partir de 1980. Buscamos discutir
as memórias deste grupo familiar, a (re)construção da identidade individual e coletiva
do mesmo, conforme já pontuamos. Procuramos, assim, acompanhar esta família cigana
através da narração de suas práticas comuns e “maneiras de fazer” cotidianamente
experimentadas. Portanto, um estudo de natureza sociocultural que se aproxima das
perspectivas da Nova História Cultural presentes em autores como: Michel de Certeau,
E.P.Thompson, Raymond Williams, entre outros.
Aqui a principal fonte para a análise histórica foram os depoimentos orais.
Salientamos que um dos principais sujeitos para a realização deste estudo foi o chefe
familiar Seu Gerisnal Fortuna Rebouças. Apesar dos outros componentes da família
dominarem a escrita, conforme analisamos no tópico anterior, a oralidade é componente
fundamental para as tradições ciganas.
Nesse capítulo, para realizarmos nosso estudo buscamos ponderar sobre alguns
aspectos, tais como a (re)configuração e dinamização da cultura cigana daquele grupo
em Itabuna, estudando as possíveis formas de interação com a sociedade local. Por
último, discutimos dimensões do percurso que levou aquela família cigana migrar e
permanecer no município de Itabuna, pensando sua relação com a dinâmica
sociocultural da cidade.
74
Ibdem. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In:
História oral: Memória, tempo, identidades. Ed: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 16.
58
2.2 - A IDENTIDADE: “UMA CORRERIA DE CIGANOS” – VISÕES CIGANAS E NÃO
CIGANAS EM ITABUNA E REGIÃO
Ao procurar informações sobre a notícia do Jornal “O Diário de Itabuna”, de 1980,
junto às entrevistas com seu Gerisnal Fortuna Rebouças e outros ciganos, como Jucelho
Dantas da Cruz, percebemos que, o estudante assassinado era filho de um “poderoso”
fazendeiro da cidade de Ubatã, chamado Manuel Teófilo, informação omitida pelo
Jornal. Este mesmo órgão jornalístico da imprensa local também não conta que, depois
da morte do estudante Arivaldo Teófilo da Silva, ocorreu “uma chacina de ciganos”,
conforme nos conta seu Gerisnal Fortuna Rebouças.75
Seu Gerisnal narra que barracas foram incendiadas e muitos ciganos foram mortos
na cidade de Ubatã76. “Uma correria de ciganos” foi provocada na cidade naquele
período. Muitos deles foram expulsos e impedidos de morar naquela cidade por muito
tempo, só retornando alguns anos depois, quando a família do fazendeiro não morava
mais em Ubatã. Jucelho também relembra esse acontecimento do crime que ocorreu em
Ubatã.
Na época do assassinato que teve em Ubatã , minha família morava lá
na região de Ibirapitanga e aconteceu esse episódio lá em Ubatã.
Filhos de Juvenal, Galdino e Edinho, irmãos de dois ciganos que veio
a morrer depois. Não sei a circunstância que mataram um filho de um
fazendeiro, e eu sei que esses dois rapazes foram presos, cumpriram
pena e antes ou depois deles saírem da cadeia ou depois, o fazendeiro
ou alguém a mando do fazendeiro mandou matar dois ciganos que
eram irmãos de um desses que matou o filho do fazendeiro, morreram
dois irmãos, Adroaldo e Derivaldo, dois ciganos que eu conheci e tive
a oportunidade de conhecer, eram duas pessoas muito legais mesmo,
75
Todas as entrevistas com Seu Gerisnal Fortuna Rebouças e seus familiares Dona Ione Fortuna
Rebouças (matriarca da família); Cosme fortuna Rebouças e Jocenir Fortuna Rebouças (ambos filhos do
Senhor Gerisnal e da Senhora Ione Fortuna Rebouças), foram realizadas entre os meses de junho, julho,
agosto e setembro de 2014. A citação completa das mesmas encontra-se na parte dedicada às fontes.
76
“O povoamento da sede de Ubatã teve inicio no ano de 1909, com a denominação de Dois Irmãos, em
território do Distrito de Orojó, município de Camamú. A povoação em 1932 era anexada ao município de
Maraú e teve sua denominação alterada para São Sebastião. Em 1933, retornava à jurisdição de Camamú.
Ainda em 1933, foi desmembrado do distrito de Orojó, passando constituir o distrito de Dois Irmãos,
município de Rio Novo, atual Ipiaú. Recebeu posteriormente o nome de Doutor Alfredo Martins e
finalmente em 1943, Ubatã, criando o município por força do Decreto Estadual de 12.12.1952,
desmembrado de Ipiaú”. Essas informações foram retiradas dos sites que fazem referência às notícias
cotidianas ocorridas em Ubatã. Sites: www.ubatanoticias.com.br; www.noticiasdeubata.com.br;
www.ubatarealidade.com.br; www.canoatan.com
59
gostava muito deles, não tinha muita idade na época, mas me lembro
que eram pessoas muito tranquilas. Esses ciganos que matou o filho
do fazendeiro eram pessoas que tinham índole de briga, aquele pessoal
que andava no brega. O motivo eu não sei porque eles mataram o filho
do fazendeiro. Na época foi um escárnio, todo ciganos temia pela
vida, porque quem matou foi um cigano, não foi um tal de Galdino e
Edinho, foram os ciganos, eles generalizaram, aí começou a
perseguição a todos os ciganos, então todos os ciganos tinham muito
medo de serem assassinados naquele momento. Não sei se eu dou
graças a Deus, mas pra sorte da maioria dos ciganos quem terminou
pagando o pato foram os irmãos de um dos ciganos criminosos, que
foi o Derivaldo e o Adroaldo que terminou sendo assassinados lá
mesmo em Ubatã.77
Em entrevista78 com seu Renato Tavares Marques, pudemos obter maiores
detalhes sobre o referido assassinato:
O fato eu presenciei, eu vi tudo, desde o início. Eu vi quando o filho
de Manoel Téofilo encostou o carro nas patas do cavalo do cigano
Edinho, Edinho cigano. E aí, ele estava bebendo pegou o facão e “pê,
pê, pê” cortou o rapaz todo de facão. Não tinha, não havia necessidade
nenhuma daquilo.79
Neste momento, seu Renato T. Marques, gesticula com a mão direita
transmitindo um som, ou seja, se utiliza da onomatopeia para demonstrar a intensidade
dos golpes de facão dados no estudante Arivaldo Teófilo da Silva. Porém, vale sinalizar
que, seu Renato, muito embora, seja uma testemunha ocular e tenha participado do
momento do crime, dando, inclusive, depoimento no julgamento contra os ciganos
(Edinho e Galdino), mantinha relações de amizade com o fazendeiro Manoel Teófilo.
Ele não se recordava do nome do estudante (filho de Manoel Teófilo) assassinado na
praça central da cidade no dia da micareta de Ubatã. Levamos fotografias do jornal O
Diário de Itabuna de 04 de maio de 84 “Ciganos foram condenados por assassinato em
Ubatã”, para melhor facilitar as lembranças e o diálogo entre entrevistado e
entrevistador sobre o acontecimento, por entender que a história oral se movimenta “em
terreno interdisciplinar, já que utiliza muitas vezes música, literatura, lembranças, fontes
77
Jucelho da Cruz. Feira de Santana, 2014.
Realizamos duas sessões de entrevista com seu Renato Tavares Marque, 79 anos, um dos sócios e
fundador do Cube Social de Ubatã em 1968. Durante muito tempo, ele foi um homem muito influente na
política da cidade e testemunha ocular do assassinato envolvendo o filho de um fazendeiro e dois ciganos
no centro da cidade de Ubatã em 1981. Realizamos apenas 75 minutos, por entender a fragilidade e os
problemas de saúde que o entrevistado vem enfrentado há alguns anos.
79
Entrevista realizada com Renato T. Marques, sócio do antigo clube da cidade de Ubatã, em Ubatã,
2014.
78
60
iconográficas, documentação escrita, entre outras, para estimular a memória” 80. Desse
modo, assim fizemos com o senhor Renato T. Marques.
Sobre as mortes de ciganos em Ubatã e em algumas cidades próximas, o seu
Renato T. Marques de maneira mais descontraída e descritiva começou a relatar os
assassinatos posteriores à morte de Arivaldo Teófilo da Silva, filho de Manoel Teófilo.
Os ciganos envolvidos no crime não são chamados pelos entrevistados pelos nomes de
registro, mas de acordo com seus apelidos. Ediney é conhecido como Edinho Cigano, e
Valdecy como Galdino Cigano.
Morreu ciganos de mais, rapaz. Depois morreu Galdino e outro
morreu alí perto, defronte, não tem Vanderley81? Então, um morreu na
porta, o outro morreu cá, na outra rua. Estava eu e o tenente Rocha,
nós estávamos no passeio e Rocha conhecia os bandidos, né? Que
Rocha foi delegado. Aí disse: rapaz, vamos ficar aqui, que vai ter
alguma coisa aqui, porque aqueles dois é pistoleiro e não trabalha de
graça pra ninguém e deve tá ganhando algum dinheiro pra matar
alguém. Não deu outra. Quando estou assim, chegou o carro do cigano
e parou. Aí, ele [o pistoleiro] veio, chegou de junto do cigano aqui e
“pá”, atirou no que estava no volante, matou o que estava alí, o outro
cigano que estava na porta saiu correndo, ele aí [o pistoleiro] “pá, pá,
pá82”, ele [o cigano] caiu na porta de Vanderley, ele [o pistoleiro] foi
andando e chegou lá deu dois tiros na cara do cigano “tei, tei” e eu
acho que os ciganos eram parentes do cigano que matou o filho de
Manoel Teófilo. E aí, ele [um dos pistoleiros] pendurou na porta do
carro, negócio de cinema, mesmo. Pendurou na porta da Berlina, a
Berlina arrancou, ele [o pistoleiro] entrou e puxou a porta [do carro] e
caiu fora. Ninguém pegou. Eram dois pistoleiros, um dirigindo e outro
pra fazer a arte, né? O que atirou matou o primeiro cigano no volante,
o outro cigano abriu a porta e saiu correndo ele [o pistoleiro] acertou
dois tiros na cara do cigano, ele caiu, ainda o cigano no chão, ele
arrancou a Berlina, e lá na frente o cara entrou no carro e bateu a porta
e foram embora, ninguém pegou, não tinha carro pra ir atrás, naquele
tempo, o carro da polícia aqui era um carro vei desgraçado, e o carro
dos cara era um carro novo, uma Berlina nova 0Km. Os caras
antigamente, só trabalhavam com carro novo. Teve morte de cigano
no Camamuzinho83, morreu dois no Camamuzinho e depois morreu
um na estrada de Ibirataia, que o pessoal disse que foi o cigano que
atropelou uma vaca, mas como é que uma vaca entra no carro, mata
todo mundo, só não matou uma criança que estava deitada? Mas quem
estava sentado morreu. A vaca matou todo mundo (fala de forma
irônica e sorrir), que nada, foi morte, foi matado mesmo. E ficou vinte
80
Op. cit. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História e memória: metodologia da história oral. In.
História oral: Memória, tempo, identidades. Editora: autêntica. Belo Horizonte, 2006. p. 16.
81
Vanderley Ramos de Souza era um antigo farmacêutico muito conhecido na cidade e possuía uma
farmácia no centro comercial da cidade de Ubatã.
82
Seu Renato mais uma vez gesticulou com o braço e emitiu um som representando uma arma.
83
Pequeno município de Ibirapitanga, vizinho a cidade de Ubatã.
61
anos sem aparecer cigano aqui. Manoel Teófilo foi embora aí eles
voltaram, depois que ele morreu foi que apareceu. Veja só, em uma
ocasião eu e um amigo meu no ferry boat, no lado de cá em Bom
Despacho, a cigana passou e esse amigo meu bebendo e nós chegamos
tomando cerveja, né? Aí passou a mão na bunda da cigana, a cigana
olhou, olhou e falou: Meu amo já que tú gosta de cú assim, porque tú
não levou nove meses no cú de tua mãe? E olhou a placa do carro que
era de Ubatã e disse: Ubatã é lugar de Manoel Teófilo quer matar nós
tudo (risos descontraídos). No camamuzinho, na ladeira defronte com
a igreja, era feira alí dia de domingo, o cigano parou lá em cima, o
cara chegou e “pá, pá”, matou dois, entrou no carro e sumiu. Manoel
Teófilo disse que enquanto ele vivesse aqui que cigano não morava, e
não morou mesmo não, só veio morar depois que ele foi embora, eles
mataram o filho dele, ele [Manoel Teófilo] tinha dinheiro pra dar ao
pistoleiro pra fazer a arte.84
Os crimes contra os ciganos eram frequentes, bastava ser cigano para ser visto
como uma ameaça. A identidade se coloca como uma questão importante nesse
momento. Mas, esta mesma “categoria da identidade não é ela própria problemática?”
Até porque, seria “possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento
de identidade coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são
questionadas pela imediatez e pela intensidade das confrontações culturais globais.” 85 O
que nos leva a pensar sobre as identidades culturais dos ciganos, que se afastam de uma
“identidade coerente e integral”, por serem eles, sujeitos relacionais por excelência.
Alguns parentes dos ciganos envolvidos no crime ainda mantêm residência em
Ubatã. Entrevistamos uma senhora que tem laços de parentesco muito próximo de
Ediney e de Valdecy, já que entre eles o casamento endogâmico é uma prática muito
comum. Talvez por isso, tenha exigido que seu nome não fosse revelado e que a sua
entrevista não fosse utilizada para outro fim, senão para este. Logo, utilizaremos o
pseudônimo de dona Dinha, para trazer a fala dessa cigana para a nossa abordagem.
Cabe salientar que por se tratar de um crime de grande repercussão entre ciganos e não
ciganos na cidade de Ubatã e região, existe um clima tenso entre eles até hoje, ficaram
cismados durante muito tempo e perguntavam se este trabalho iria prejudicá-los de
alguma forma. Muitos deles demonstraram surpresa quando se depararam com a notícia
do jornal sobre aquele acontecimento e, em alguns momentos de entrevista, disseram
que, por ter se passado muitos anos achavam que em lugar algum se falasse mais sobre
84
Renato Marques. Ubatã, 2014.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do ‘popular’. In: Da diáspora: Identidades e mediações
culturais; Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003. p. 83.
85
62
aquele fato. Exceto dona Dinha, pois assim que chegamos a sua casa, ela nos revelou
que essa memória é tão viva para ela, que todos os dias pensa e chora, e que minutos
antes de nossa presença em sua casa, ela estava refletindo sobre o passado. No dia 19 de
setembro de 2014, dona Dinha, de 37 anos, começa a rememorar o passado não tão
distante.
Eles estavam na fazenda perto de Ubaitaba no mato seco, aí, ele,
Valdecy, pegou o dinheiro para comprar uma carne, aí o trio tava
passando, ele esperou o trio passar, aí veio o Arivaldo picou uma
chutada no nariz dele, de Valdecy, ele perguntou a Arivaldo o que ele
queria, aí Arivaldo tornou dar outro chute, eles discutiram, Valdecy
saiu e veio com um facão, aí começou dar os golpes de facão.86
Sobre algumas mortes de ciganos na cidade de Ubatã, logo depois deste crime,
dona Dinha nos sugere que talvez não tenha sido seu Manoel Teófilo que organizou
uma matança de ciganos na cidade para vingar a morte de seu filho, “o cigano que tinha
rixa dos outros ciganos, aproveitou essa chance para poder se vingar e dizer que foi por
que dessa briga”. Percebemos nos momentos das entrevistas que, a memória articula o
presente com o passado na tentativa de trazê-lo para o presente, trazer somente frações
de um passado que se lembra ou que se quer lembrar, a partir de estímulos atuais. No
caso aqui tratado, as matérias do jornal “O Diário de Itabuna” serviram como um destes
estímulos.
Ressaltamos que são versões de um mesmo crime. É possível observar que, um
mês antes do comentado julgamento em notícia de 27 de Abril de 1984, o Jornal O Diário
de Itabuna teceu seu próprio julgamento sobre os ciganos ao denominá-los,
genericamente, como “assassinos do estudante”.
Portanto, a acusação foi feita de forma precipitada, por parte do texto jornalístico,
pois a condenação só aconteceria em maio do mesmo ano de 1984, portanto um mês
depois da “sentença” d’Diário de Itabuna. Ao mesmo tempo, aquele veículo de
comunicação negligenciou os acontecimentos posteriores que resultaram na perseguição
da comunidade cigana em Ubatã. O jornal, mais uma vez criminalizando com
antecedência, compreendeu que era mais importante salientar a presença de um
criminalista conhecido nacionalmente atuando no caso do assassinato, do que a presença
86
Entrevista realizada com dona Dinha, parente próxima de um dos ciganos envolvidos no assassinato em
Ubatã, 2014.
63
de helicópteros em uma cidade de aproximadamente, 25 mil habitantes, com pessoas
mascaradas que surgiam na captura de ciganos, nem mostrou a desconstrução de suas
casas que ficavam concentradas em um bairro da cidade conhecido como bairro dos
ciganos, denominado hoje de bairro Esperança.
O criminalista Evaristo de Morais Filho, um dos mais famosos do
país, na próxima segunda-feira vai participar de um julgamento na
cidade de Ubatã, quando acusará os ciganos Valdecy Barreto da Gama
e Edney Fiúza Barreto, assassinos do estudante Arivaldo Teófilo da
Silva, de 19 anos de idade. O crime ocorreu no dia 31 de maio de
1981, durante a micareta da cidade e abalou a população local. Ficou
apurado pela polícia que a briga entre a vítima e os ciganos nasceu de
um pequeno desentendimento com Valdecy. Além de apanhar um
facão, Valdecy se ajuntou a Ediney Fiúza Barreto, também conhecido
por “Edinho” para matar Arivaldo Teófilo.87
Na escrita do texto daquele Jornal, podemos acompanhar ainda alterações nos
sobrenomes dos ciganos, quando comparamos com a matéria anterior do dia 04 de maio
de 1984. Valdecy, cujo sobrenome aparece na primeira matéria como Fiúza Barreto,
nesta reportagem ocorre uma mudança dos sobrenomes, passando Valdecy Fiúza
Barreto a ser identificado como Valdecy Barreto da Gama. O mesmo acontece com o
sobrenome do outro cigano: Edney. A troca dos sobrenomes pode ter sido uma confusão
feita pelo jornal, mas não devemos descartar a possibilidade de que, talvez, os próprios
ciganos tenham, em depoimento, feito essa confusão entre os sobrenomes. Afinal, está é
uma prática de estratégia intencional muito comum entre os ciganos, como forma de
proteção individual e de grupo. Porém, se não podemos afirmar que o jornal tivesse
qualquer propósito ao fazer confusão com os sobrenomes dos ciganos envolvidos, o
“deslize jornalístico” sugere a incompreensão sociocultural daqueles a quem não
interessava levar em conta as especificidades e sutilezas da identidade familiar cigana.
Seu Gerisnal Rebouças narra que a família do cigano Ediney (“Edinho”) foi “quase
toda” perseguida e morta. Porém cabe destacar, o jornal em estudo não faz nenhuma
menção à violência e à vingança gerada contra os ciganos na cidade de Ubatã.
Nos noticiários policiais, mesmo quando os ciganos não aparecem de forma
primária na condição de criminosos, surgem de forma secundária. Em toda a leitura do
Jornal de Ipiaú “Uma imprensa livre para um povo livre” do diretor e proprietário
Joanito Rocha, só encontramos um breve texto sobre “A cigana e o destino”. O jornal
87
Idem. O Diário de Itabuna. Itabuna, 1984, p. 04.
64
traz uma representação da mulher cigana como aquela ligada diretamente à leitura da
mão, à quiromancia ou buena dicha e à leitura de cartas. Apresenta desse modo, uma
mulher que ambiciona apenas o dinheiro. Nesse mister, ludibriar as pessoas sobre o
destino delas é a marca que definiria qualquer cigana. Mais ainda, ela é vista por aquele
jornal, como “astuta vendedora de sonhos e de confusões” ou “corretora dos destinos”.
Sobre o papel desempenhado pela cigana, o jornal afirma:
São astrólogos, quiromantes, cartomantes e a popularíssima cigana,
cujos poderes de previsão crescem na proporção do dinheiro que
recebe. As “consultas baratas” só trazem respostas insignificantes e
corriqueiras, que não causam emoções e nem suspiros. Não sei por
que as linhas da mão ficam ilegíveis quando pertencem a um
consulente pobre.88
Na realização do nosso estudo, estamos contrapondo as falas contidas nos
depoimentos orais, sobretudo as falas da família Fortuna Rebouças, com outras leituras
que nos chegam de entrevistados não ciganos e das notícias de jornais. Destacamos
Analisamos, sobretudo, as narrativas do Seu Gerisnal Rebouças, o chefe daquele núcleo
familiar, por ser para os outros membros da família, segundo eles mesmos dizem, um
“porta voz” dos demais.
Buscamos analisar as posições e as contraposições dos discursos orais dessa
família. Para isto, apreendemos as memórias individuais e coletivas do grupo familiar
Fortuna Rebouças, acompanhando facetas de suas histórias e jornada até Itabuna, no
provável período de chegada e de fixação daquela família na cidade, (entre 1980-1990).
88
Jornal de Ipiaú, 1965, p.03.
65
2.3- A TRADIÇÃO: “A PESSOA NASCENDO CIGANO É CIGANO. MAS, TEM QUE
VIVER A TRADIÇÃO” – A FORMAÇÃO DOS FORTUNAS REBOUÇAS
As décadas de 1980-1990, como salientamos anteriormente, constituem nosso
recorte cronológico. O início da década de 80 do século XX, marca a chegada da família
Fortuna Rebouças na região do sul da Bahia e na cidade de Itabuna. Em 1990
aproximadamente, essa família fixa residência na cidade, tendo contato com o álbum
genealógico familiar sobre a família Rebouças (família não cigana), organizado pelo
não cigano José Antônio Formigli Rebouças, denominado como: Álbum de família:
Perfis e Genealogias.89 Neste levantamento genealógico, parte das origens dos Fortuna
Rebouças (família cigana) aparece registrada.
Lendo o Álbum genealógico familiar e ouvindo as entrevistas dos Fortuna
Rebouças é possível acompanhar que aquela família em sua origem paterna não era
totalmente cigana. Segundo conta Gerisnal, seu pai (Juvenal Fortuna Rebouças)
pertencia a uma família não cigana dos Rebouças. Entretanto, após ter fugido com Seu
Gustavo Fortuna Ribeiro, considerado “um cigano legítimo por ser de origem cigana,
seu Juvenal, deixou a família dos Rebouças” se tornou parte da família dos Fortuna,
uma família de ciganos.
Algumas das páginas do Álbum de família: Perfis e Genealogias, reservadas para
descrever “um pouco” da história de Seu Juvenal Fortuna Rebouças (pai de Gerisnal) e
da família Fortuna Rebouças, possibilitam ponderações sobre as origens daquele grupo
familiar. Um dos capítulos, tendo como título “Capitão Juvenal Fortuna Rebouças e sua
família cigana”90 apresenta estas origens da seguinte maneira:
Nos arredores de Itabuna, há muitos anos, vive uma família cigana
com o sobrenome Rebouças. Seu capitão, patriarca e chefe é Juvenal
Fortuna Rebouças. Juvenal deve estar atualmente girando em torno
dos oitenta anos de idade. Diz-se natural de Tartaruga e afirma
pertencer a família Rebouças. Suas recordações de infância e dos
89
REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. Este
livro foi feito por um não cigano, produzido para homenagear o centenário de nascimento (1893- 1993)
de Seu Daniel Miranda Rebouças.
90
REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p. 58.
66
antepassados são vagas e algumas confusas, mas sua fisionomia é
semelhante a dos Rebouças de Amargosa, parece confirmar a historia
que nos conta.
Conta Juvenal que é filho de Gustavo. A narração de Juvenal relata
que, quando era garoto em Tartaruga, aprendia a ler e escrever com
minha avó Ana Miranda Rebouças, conhecida como Don’ Ana. Por
suas danações, minha avó aplicou-lhe alguns bolos de palmatória.
Havia passado um bando de ciganos por ali na véspera. Juvenal, então
resolveu fugir e se juntar aos ciganos. De fato fugiu e alcançou o
bando acampado a meio caminho entre Tartaruga e Milagres, no
arruado chamado Déreis. Juntou-se aos ciganos, tornando-se um deles
(REBOUÇAS, 1994, p. 58).
Salientamos que a produção deste álbum foi feita por um não cigano pertencente à
família Rebouças. Talvez por isto dedicou poucas palavras para descrever quem era Seu
Gustavo – homem que acolheu seu Juvenal. Do mesmo modo, é possível atribuir às
origens não ciganas de seu autor a utilização do termo “bando”, quando se refere aos
ciganos com os quais Seu Juvenal “fugiu”. Começa, portanto, uma relação de
afetividade entre o seu Gustavo que era considerado um cigano e seu Juvenal, um não
cigano, pertencente a outra família, a dos Rebouças. Porém, mais tarde, se tornaria um
cigano ao passar a morar com a família de ciganos dos Fortuna, reafirmando assim,
simbolicamente, por meio do casamento, sua identidade cigana.
Porém, sem deixar de considerar estas ressalvas, acompanha-se no Álbum
genealógico que Seu Juvenal não era “totalmente cigano” por não “ter nascido só de
ciganos”, ou seja, por não ter nascido de pais de etnia cigana, pois, seu Juvenal fazia
parte da família não cigana dos Rebouças. De acordo com o texto, até sua “fisionomia”
era “semelhante a dos Rebouças de Amargosa”. Mas tornou-se cigano ao se “juntar”
com eles. É interessante salientar que a família dos Fortuna Rebouças nasce a partir das
relações entre ciganos e não ciganos.
Somente com a união matrimonial de Seu Juvenal com Dona Prosperina Fortuna
Ribeiro (nome da mãe de Seu Gerisnal, antes do casamento), é que surge a família
cigana dos Fortuna Rebouças. O Álbum de família: Perfis e Genealogias registra o
surgimento dos Fortuna Rebouças.
Muito tempo depois, casou-se [Seu Juvenal] em Jequiriçá, cidade que
fica as margens do rio do mesmo nome, rio que nasce no fundo das
casas de Maracás. Sua esposa era a bela Prosperina, com Prosperina,
67
Juvenal teve doze filhos: Jerisnal, Augusto (falecido em 1992),
Aderbal, Ubirajara, Salomão, Adigenal, Jorgeval e Risomar. Ao todo,
oito homens. As mulheres são quatro: Italva, Violeta, Risoleta e Riza.
Prosperina também é falecida, mas são numerosos os seus netos e
bisnetos.91
Foto de Senhor Juvenal Fortuna Rebouças e Senhora Prosperina Fortuna
Rebouças. Fonte: REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de Família: Perfis
e Genealogias. Itabuna, 1994.
Na sequência, o Álbum prossegue descrevendo o ramo familiar pertencente a
Seu Gerisnal, cujo nome encontra-se grafado como Jerisnal.
Jerisnal Fortuna Rebouças, o filho mais velho de Juvenal, com 52
anos, é casado com Ione e tem os seguinte filhos: Diaçui, Jussiara,
Lindiara, Juvenal Neto, Luciara, Cosme e Gardênia. Diaçui é casada
com Walter Ribeiro Dantas e já deu a Juvenal os bisnetos [e a
Gerisnal, os netos]: Maiane, Diego e Walter. Jussiara é casada com
Temístocles Silvestre Farias e também já deu a Juvenal os bisnetos [e
a Gerisnal os netos], Daiane e Danilo. Lindiara é casada com Eliomar
Fiúza Barreto, seus filhos são: Jaqueline e Faionara. Luciara tem como
esposo Lindomar Rodrigues de Almeida e sua filha é Fernanda [e
Rodrigo, tudo indica que no momento do estudo ele ainda não era
nascido]. Juvenal Neto [Este não é o nome correto do filho de
Gerisnal com Dona Ione, e sim, Joceni Fortuna Rebouças, ele é
apelidado dessa forma, talvez por ser o neto mais velho de seu Juvenal
e o primeiro filho do casal. Permitindo-nos refletir que, talvez essa
mudança do nome seja uma espécie de tributo à Seu Juvenal Fortuna
Rebouças]. Ele é casado com Keila Pinheiro Dórea e o filho é Ricardo
91
Idem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p.
58.
68
[o filho do casal faleceu ainda jovem em acidente de carro. Mas,
nasceu Tarcisio, único filho do casal, atualmente].92
Aqui cabem algumas ponderações sobre a relação entre os considerados ciganos
e os não ciganos. O seu Gerisnal faz questão de destacar sua insatisfação em relação ao
casamento dos seus irmãos com mulheres não ciganas. Para ele, a relação matrimonial
entre ciganos com não ciganas não poderia ser mantida sob nenhuma condição. Porém,
percebemos que ele mesmo nasceu a partir da relação entre sua mãe, que era cigana de
origem, e seu pai que não era. Logo, toda a sua família de certo modo, é resultado
dessas relações de ciganos com não ciganos.
Mesmo sabendo que sua família se origina a partir do relacionamento entre uma
cigana com um não cigano (a união matrimonial entre a cigana Prosperina e o “não
cigano” Juvenal) seu Gerisnal é contrário não ao casamento entre seus pais, mas ao
relacionamento matrimonial estabelecido entre seus irmãos que são casados com
mulheres não ciganas. De acordo com o patriarca da família Fortuna Rebouças, o
relacionamento tem que ser entre homens ciganos com mulheres ciganas.
Vale observar que o senhor Juvenal Fortuna Rebouças, segundo seu Gerisnal,
era um “cigano mestiço”. De acordo com seu Gerisnal, seu pai não nascera cigano e foi
adotado por uma família cigana quando ainda era pequeno. Foi a criação de seus pais
adotivos que tornou o senhor Juvenal um cigano “Fortuna Rebouças”, conforme
depoimento a seguir.
Eu [Gerisnal Fortuna Rebouças] sou cigano original pela parte de
minha mãe. Meu pai já era misturado e minha mãe era cigana
legítima. Meu pai foi criado no meio de ciganos. O parente dele pegou
ele pequeno e casou ele com minha mãe Rebouças. É por isso que tem
a Família Rebouças. Entendeu? Porque meu pai era da Família
Rebouças, Rebouças é do meu pai. O cigano pegou meu pai e criou
ele. Então ele ficou como cigano. Agora, as irmãs dele tudo ficou
como irmão, porque foi criado tudo junto. Ele ficou como cigano
mesmo. (Seu Gerisnal: julho/agosto de 2014).
92
Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p.
58.
69
Pela narrativa acima é possível pensar que Seu Juvenal Fortuna Rebouças (um
“cigano de criação”), ao casar-se com Dona Prosperina Fortuna Rebouças (uma cigana
de nascimento), reafirmou sua condição cigana diante da sua comunidade. Ainda assim
seu filho (Seu Gerisnal) não deixa de marcar a diferença de origem familiar de seu pai
(dos Rebouças). Foi da união matrimonial entre Dona Prosperina Fortuna e Seu Juvenal
Rebouças que surgiu a família aqui estudada: os Fortuna Rebouças.
Pelas falas dos entrevistados é possível a interpretação de que a família Fortuna
Rebouças é a base central da vida de cada um dos membros daquela comunidade. A
família é o que sedimenta a construção e o fortalecimento da identidade étnica cigana. A
antropóloga Cristina da Costa Pereira, estudiosa dos ciganos que vive no estado de São
Paulo revela a importância da família entre os grupos e subgrupos de ciganos: “seja ele
nômade, seminômade ou sedentário; analfabeto, com instrução regular ou universitário”
(1991). A autora salienta que, além da etnicidade e identidade, o núcleo familiar é o
elemento principal da sua estrutura socioeconômica desses grupos.
Ainda sobre o assunto, outra dimensão e característica marcante entre as famílias
ciganas é a subalternidade feminina dentro do núcleo familiar. Subalternidade que
transparece nas falas de Seu Gerisnal e também nos argumentos e análises de alguns
autores que estudamos. Mesmo se opondo à relação entre ciganos e mulheres não
ciganas como é o caso de alguns dos irmãos e filhos de Seu Gerisnal o patriarca da
família Fortuna Rebouças “ainda tolera” este tipo de relacionamento. Não obstante, Seu
Gerisnal rejeita esta possibilidade quando se refere a uma cigana casar com um não
cigano, salientando que: “eu tenho cinco filhas, todas elas eu que fiz o casamento,
arranjei o noivo”. Seu Gerisnal nos explica que:
Eu não permitiria isso não, casar com não cigana. Tem uma sobrinha
minha que não é cigana, é mestiça. Nos tempo de minha mãe não
tinha ninguém casado com mulher que não era cigana. Meus irmãos
são casados com mulheres que não é cigana. O Ubirajara, Salomão,
Risomar, eles têm filhas que não são ciganas já estão casando fora. Lá
vive quase igual ao pessoal que não é cigana, a roupa já é daquele
jeito, já veste calça, já vão casar com gente que não é cigana. Já tão
perdendo a tradição por parte deles. Cigano já tem aquele ritmo, já
vem de século, de bisavós e avós. Já a parte dele não é. Já tá misturado
70
com não cigana. Minha parte já é diferente. Eu tenho cinco filhas,
todas elas eu que fiz o casamento, arranjei o noivo.93
Cosme Fortuna Rebouças, 27 anos, o filho mais novo de Seu Gerisnal Fortuna
Rebouças e de Dona Ione Fortuna Rebouças, continua com a mesma compreensão de
seu pai quando o assunto é matrimônio entre ciganos e não ciganos. Cosme explica que
preservar o casamento entre indivíduos da mesma etnia é uma tentativa de manter a
tradição daquele grupo e seus traços familiares. Neste sentido, um costume que aquela
família considera como um dos mais importantes é o casamento entre ciganos.
Segundo os depoentes da família Fortuna Rebouças, o relacionamento conjugal
entre ciganos é essencial para a manutenção da cultura, história e identidade cultural.
Por exemplo, cabe às mulheres a responsabilidade de casarem virgens e
obrigatoriamente com ciganos. Compete às mulheres, não só a preservação do estilo de
vida cigano, mas também transmitir os costumes entre as gerações, preservando os
traços culturais daquele grupo familiar. Desta maneira, a função sociocultural das
mulheres ciganas dentro da organização familiar é também a de guardiãs culturais.
Tanto no discurso de Seu Gerisnal, quanto no de seu filho Cosme,
acompanhamos a lógica argumentativa de preocupação com relação à manutenção do
grupo, do sentimento de pertença da identidade cultural e étnica. Cosme concebe que a
tradição e os costumes ciganos só serão mantidos a partir da vivência e da submissão
aos estilos de vida cigana.
Esse negócio de cigano casar com pessoa de fora, o homem casar com
essas mulheres que não são ciganas, tá misturando a tradição da gente.
Os filhos já crescem de outro modo, crescem pra fora, crescem fora da
gente. Meus tios casaram com mulheres que não eram ciganas,
mesmo. Tem um que mora longe da gente. O cigano pra ele ser criado
como cigano mesmo, como no caso desse primo meu, tinha que viver
junto com os ciganos pra ele ver como é a tradição da gente. Só tem o
pai, e o pai não vive dentro de casa, o pai só anda pelo mundo, é
criado pela mãe e a mãe só anda pela tradição de lá, aí vai acabar
perdendo a tradição. As filhas de meus tios que já tá se formando não
usam vestidos mais, vestem normal, não anda mais com ciganos,
perdeu a tradição, muitas dela não sabe nem nossa linguagem, nem
nosso idioma não sabe, aí a gente não considera cigana não, aí fica
93
Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014.
71
difícil de arrumar casamento para elas com ciganos. A pessoa
nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição.94
Na fala de Cosme sobressai a preocupação em manter a etnia e a identidade
cigana. Percebe-se que ser cigano, para o entrevistado, não é só ser filho de cigano, mas
também viver na cultura cigana e viver próximo de outros ciganos. Revela-se ainda na
fala de Cosme um pouco uma das razões da crítica ao casamento entre ciganos e não
ciganos. As primas deles, por ter um pai cigano ausente do lar, são criadas com base em
valores, comportamentos e costumes não são ciganas.
Em outras palavras, na compreensão de Seu Gerisnal e Cosme, a relação entre
ciganos e não ciganos provocaria um choque cultural e, posteriormente, o
distanciamento do (a) cigano (a) do modo de vida tradicional daquela cultura. Por isto
Cosme salienta que “a pessoa nascendo cigano é cigano. Mas, tem que viver a tradição”.
Nas fotos a seguir, tiradas em décadas distintas 1998 e 2011, observa-se o
significado das palavras: viver e andar na tradição. Nas imagens os membros do núcleo
familiar Fortuna Rebouças vestem as roubas da tradição de seu povo, assinalando o que
podemos chamar de resistência sociocultural.
Família Fortuna Rebouças em Itabuna,
1998. Fonte: Acervo particular
Filhas, esposa e bisneto de Seu Gerisnal, 2011.
Fonte: Acervo particular
Vejamos o que consta no Álbum de família: perfis e genealogias sobre a noção e
o significado de família e da identidade étnica entre os ciganos.
94
Entrevista realizada com Cosme Fortuna Rebouças, o filho mais novo do casal (Seu Gerisnal e dona
Ione Fortuna Rebouças) em Itabuna, 2014.
72
O sentimento de família é muito intenso entre os ciganos. Os
casamentos muitas vezes são feitos entre parentes, para preservar os
costumes. Os jovens casam-se muito cedo e os pais geralmente
interferem muito nisso. Alguns dos filhos de Juvenal não se casaram
com ciganas e hoje moram na cidade fora do bando.95
Nesta direção, a responsabilidade de Seu Gerisnal Fortuna Rebouças, como
patriarca da família é a de manutenção do casamento entre ciganos dentro do seu núcleo
familiar, pensando na continuidade e legitimidade de sua condição cigana. Talvez este
seja um dos maiores desejos daquele chefe patriarcal e de seus familiares.
O grupo familiar é assim um elemento fulcral para a construção da identidade
étnica cigana dequele grupo familiar na cidade de Itabuna. Cosme, novamente, salienta
a importância da família “Cigano é mais unido. Eu acho que a gente respeita mais os
familiares da gente. Não tem esse negócio de quando fica mais velho joga no asilo. A
gente não faz isso, jamais. A gente não despreza família”96.
De acordo com Cosme Fortuna Rebouças, família diz respeito à função que cada
membro desempenha dentro do núcleo familiar. Na nossa análise pudemos perceber
que, na arte cotidiana da negociação por parte dos homens desta família, cada
componente familiar possui seu papel traçado para o funcionamento da dinâmica
sociocultural.
Nas entrevistas com o Seu Gerisnal e seus parentes, pudemos apreender a lógica
cotidiana deste grupo familiar sobre o trabalho “entre eles” e com os “de fora”. Por
compreender que a família é um elemento vital, o trabalho segue uma lógica criativa de
negociação própria de algumas famílias ciganas. A família aqui em estudo desenvolve
um trabalho “com a cabeça” e/ou um trabalho “de dentro para fora”.97
Este trabalho é reservado exclusivamente para os homens, não cabendo
interferência da mulher. O homem cigano, em suas negociações econômicas, trabalha
em casa e suas viagens a negócio não são demoradas. Na maioria das vezes viajam para
trocas e vendas de carros e outras atividades econômicas, tendo na casa o seu maior
ponto de apoio e referência. Acreditamos, portanto, que a prioridade do homem cigano
95
Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p.
58.
96
Cosme Fortuna Rebouças. Itabuna, 2014.
97
Alguns termos citados foram retirados das falas de seu Gerisnal em seu depoimento. Fazer um trabalho
“com a cabeça” e/ou “de dentro para fora”. O primeiro refere-se, ao trabalho intelectual e o segundo, para
designar a negociação entre ciganos e os não-ciganos.
73
negociador é manter a arte do negócio sem perder as relações de proximidade cotidiana
com a família.
A família estudada possui residência na rua denominada “Rua de Palha”,
localizada na Avenida Itapé, próxima ao Centro Industrial da Nestlé bairro de Ferradas98
na cidade de Itabuna. Este bairro é afastado do centro do município, característica que
corresponde à relação de algumas famílias ciganas com as cidades. Esta preferência por
lugares mais distantes da área central das cidades também transparece em alguns dos
depoimentos. Segundo Senhor Gerisnal Fortuna Rebouças, a decisão de morar afastado
do centro é “por conta da correria e da agitação que se concentra geralmente nos centros
de algumas cidades”. Porém, também decorre “por se sentirem mais próximos dos seus”
(Seu Gerisnal: julho/agosto de 2014).
Os Fortuna Rebouças mantêm residência fixa em Itabuna até os dias atuais. No
entanto, a cidade de origem do Senhor Gerisnal é Maracás-Bahia, localizada nas
proximidades do município de Jequié. O patriarca da família Fortuna Rebouças nasceu
no ano de 1942. Segundo ele, saiu de sua cidade natal ainda “muito pequeno”, com
“cerca de três a quatro anos de idade”. Senhor Gerisnal explica que deixou Maracás
com seus pais, Juvenal e Prosperina Fortuna Rebouças e seus irmãos para percorrer
outras cidades da região do Sul da Bahia, como podemos verificar no depoimento do
próprio Seu Gerisnal.
Nasci em Maracás-Ba. Depois eu me criei por aqui mesmo pra região
de Itabuna. Eu vim pra cá com meu pai e com a família toda. Saí de lá
pequeno. E agora eu tô aqui em Itabuna. Eu vim de Maracás para a
região com uns três a quatro anos de idade, eu acho. Não para Itabuna,
nós vimos pra Jequié e Aiquara. Fomos viajando que nem cigano:
aqui, acolá. Entendeu? Vida cigana. Viajando. Agora, paramos mesmo
aqui em Itabuna. Tem vinte e cinco ano mais ou menos. Meu pai
faleceu tem nove anos, minha mãe faleceu em oitenta e dois e eu
morava em Iguaí. Também parei um pouco em Iguaí, morei uns oito
anos ou nove anos. Entendeu? De Iguaí eu vim pra aqui, pra Itabuna.
98
“Ferradas foi transformada em distrito em 1916, desincorporada de Ilhéus e incorporada a Itabuna, se
tornou palco de violência do cenário político regional, principalmente, durante a Revolução de 1930. Está
situada no coração da Mata Atlântica da área territorial do Brasil, precisamente no Estado da Bahia, na
lavoura cacaueira, com suas formações florestais às margens do rio Cachoeira, dentro dos limites
municipais de Itabuna. O patrimônio ambiental e ecológico é cortado pela BR 415, Rodovia
Itabuna/Ibicaraí. O perímetro urbano, que dista aproximadamente 10 km do centro do município de
Itabuna, é marcado pelo rio Cachoeira e também cortado pela mesma BR. No ano de 1817, Ferradas
reunia homens de toda a sorte, inclusive alguns espanhóis e uma aldeola com várias famílias de índios
camacãs, mongoiós e patachós. Era parada obrigatória para os viajantes e tropeiros que paravam para
ferrar seus animais”. In: VELÔSO, Gustavo. Ferradas: um capítulo na história do Brasil. Itabuna: Via
Lirrerarum, 2010, p.17-20.
74
Eu vim com meu pai, meu pai ainda era vivo, vim com a minha mãe
Rebouças, com minha família toda. Nós compramos uma fazenda ali
em Ferradas, fiquemos ali. Depois de Ferradas eu vim pra aqui - Rua
de Palha, de Rua de Palha. Eu mudei para Nova Itabuna e fiz casa lá.
Depois uns tempos meu irmão faleceu. Eu passei uns quatro a cinco
meses em Jequié, depois tornei voltar e aí fiquei aqui na Rua de Palha,
fiz casa aqui.99
Como afirma seu Gerisnal, toda a família veio para Itabuna, precisamente para o
bairro de Ferradas, criando assim residência fixa a partir da década de 1980. Esta década
marca a presença da família Fortuna Rebouças na região sul baiana, bem como na
cidade de Itabuna.
Naquele momento a família era chefiada pelo Senhor Juvenal Fortuna Rebouças
(pai do Senhor Gerisnal) que vivia do comércio de animais (burros e gados), de
negociar com fazendeiros da região e dos empréstimos de dinheiro a não ciganos. Anos
mais tarde, Seu Gerisnal passou a negociar com fazendas e carros.
Ao analisar alguns depoimentos do Seu Gerisnal, percebemos que sua família
cigana naquele momento era seminômade. Os Fortuna Rebouças viajavam montados em
animais com suas barracas pela região do Sul e Sudoeste da Bahia. Compravam casas
para passar alguma temporada até recomeçar as andanças. Ora viviam viajando em suas
peregrinações, acampando e “batendo” barracas; ora habitando residências temporárias.
Mas, conforme depoimento de Cosme Fortuna Rebouças, aquela família continuou
na estrada, uma espécie de viagem reelaborada pelo grupo. Quando pontua que “a gente
viaja ainda, a gente viaja pra fazer negócio, agora pra viajar pra morar, mais não.
Cigano viajava antigamente pra tá negociando e hoje a gente viaja pra negociar, mas
volta pra casa”.100
Quando perguntamos se a família praticava a quiromancia e a cartomancia,
Jocenir Fortuna Rebouças logo salientou que “não existe não. Isso aí só os Turcos. Isso
aí é tudo mentira, é um jeito de ganhar dinheiro. Cigano é muito esperto”. Conforme as
respostas eram dadas pelo entrevistado, nós nos sentimos instigados a perguntar de que
forma já que cigano é muito esperto, na concepção do entrevistado poderíamos entender
esta esperteza, como algo positivo ou negativo?
99
Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014.
Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014.
100
75
Depende do jeito, depende do contexto. Esse negócio de ler mão é
negativo, queima o filme da gente. A esperteza positiva é a pessoa
saber se virar, né? Se virar com a vida, ele tá tentando ganhar o
dinheiro dele sem precisar roubar, sem fazer nada, a pessoa tem que
aprender a se virar com a vida.101
Durante as entrevistas com os Fortuna Rebouças acompanha-se também a forma
como os mesmos pensam o modo pelo qual os não ciganos encaram seus costumes.
Numa de suas entrevistas, Cosme Fortuna Rebouças, desabafa:
Tem muita gente que tem inveja do nosso estilo de vida, dizendo que a
gente não trabalha, não tem trabalho fixo e porque cigano ganha
dinheiro. Muita gente questiona isso perguntando porque que a gente
não trabalha e ganha dinheiro? Sabe, muita gente não gosta da gente
por causa disso também. Dizem que a gente tem vida boa. Eles
pensam que a gente rouba, alguma coisa assim. Porque nossa vida é
boa, a gente fica aqui, não tem chefe pra mandar na gente, não tem
nada, a gente faz o que a gente quer na hora que a gente quiser e
graças a Deus não falta nada. Queria que eles entendessem isso. Muita
gente me pergunta como é que cigano ganha dinheiro. É como eu te
falei, a gente trabalha com a cabeça, a gente não faz trabalho braçal,
só trabalha com a cabeça, mesmo. Tem que ver um modo fácil pra
ganhar dinheiro.102
Cosme Fortuna Rebouças, ao responder manifesta emoção, revelou algumas
incompreensões dos não ciganos sobre o seu modo de vida e de sua família. Sobretudo
no que se refere às relações socioeconômicas entre ciganos e não ciganos. Ao mesmo
tempo, a fala de Cosme assinala que aquele grupo cigano interage, ao seu modo, com os
não ciganos e, talvez, por isto, de importância que oferece em esclarecer como “ganham
a vida” que sua fala demonstra. O entrevistado revela que “queria que os não ciganos
entendessem” a forma de como eles “ganham dinheiro” e trabalham: “com a cabeça” e
não “roubando”. A preocupação do filho de seu Gerisnal remete a ideia de que todo
grupo sociocultural, mesmo quando busca a manutenção de suas tradições e identidades,
interagem de forma dinâmica com outros sujeitos, reelaborando estas interações em suas
vivências. 103
101
Entrevista realizada com o filho mais velho do casal (seu Gerisnal e dona Ione Fortuna Rebouças) em
Itabuna, 2014.
102
Idem. Cosme Fortuna Rebouças. Itabuna, 2014
103
Ver Canclini, 1997; Certeau, 1994; Chaui, 1985; Geertz, 1989; Thompson, 1998.
76
Vale destacar que, ao analisarmos a fala dos entrevistados e o Álbum de família
dos Rebouças, encontramos elementos de mudanças e permanências no estilo de vida
daqueles ciganos. Ou seja, aquele grupo familiar, como quase todos os grupos sociais,
vivenciou e vivencia um constante processo de reelaborações socioculturais na cidade
de Itabuna.
A vida dos ciganos tem passado por grandes transformações nas
últimas décadas. Hoje raramente se vê o bando perambulando com
tropas estrada a fora. Sua vida hoje é mais sedentária, mas ainda
muitos costumes são preservados. O Capitão Juvenal Fortuna
Rebouças mora em ampla barraca sem paredes, coberta de palha. Os
filhos possuem barracas de lona ao redor da sua. As ciganas
continuam com seus vestidos longos, enfeitados, de cores vistosas que
acentuam muito as formas femininas. Os homens vestem-se
comumente, hoje andam sempre de carro, mas os mais idosos sentem
muita nostalgia do cavalo. Juvenal, que já comprou e vendeu muitas
fazendas, sonha em ter seu pedaço de terra para ali ter seus animais e
andar montado. Os filhos acham que isso já não vale a pena.104
Atualmente, além de mudar a característica de itinerância, o grupo não vive mais
em barracas e nem mantém a arte da negociação com animais (burros), como bem
apontam os fragmentos extraídos do Álbum Genealógico. Da mesma forma, percebemos
esta mudança em aspectos do estilo de vida daqueles ciganos, quando Seu Gerisnal
Fortuna Rebouças é questionado sobre a realidade social dos ciganos na cidade de
Itabuna.
Tão mudando, eles [os não ciganos] tão vendo a realidade.
Antigamente, cigano andava pelo mundo, aqui e acolá. Hoje ficou
tudo difícil. O cacau acabou. Entendeu? Acabou aquela tradição de
cigano com animais, com burro. E hoje ciganos já tão mais fixo na
região. Cada qual no seu lugar, com seu carro. Então, antigamente ele
não tinha morada certa, vivia pelo mundo. Qualquer pessoa que
quando chega em um lugar, chega e ninguém conhece, daí o camarada
[o não cigano], já fica meio cismado, mas não é só com cigano. Então,
quando você mora no lugar três, quatro ou cinco anos, eles falam
assim: fulano mora ali há muitos anos, nunca vi falar mal dele não.105
104
Op. cit. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994.
p. 60.
105
Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014.
77
Percebe-se na fala de Seu Gerisnal a sedentarização entre algumas famílias
ciganas na região, incluindo o núcleo familiar do próprio entrevistado. Os Fortuna
Rebouças não têm mais o nomadismo como estilo de vida e nem negociam com
animais, como faziam quando iniciaram seus primeiros contatos com a cidade de
Itabuna. Alguns efeitos da modernidade e transformações na economia local alteraram
significativamente, a dinâmica sociocultural e econômica do grupo.
Porém, estas adaptações que se observam no cotidiano dos Fortuna Rebouças
não significam que eles deixaram de ser ciganos. O depoimento de Dona Ione Fortuna
Rebouças, narrando o momento quando os Fortuna Rebouças vão morar em Itabuna,
nos ajuda a refletir sobre esta interação.
Na minha parte eu me acostumei logo, todo mundo aqui é gente boa.
Os meninos vivia tudo mais a gente aqui, essa rua toda, essa favela
toda aqui não saíam da minha casa. Se acostumaram com a gente.
Hoje tão mais por fora, mas na hora que a gente chegou logo aqui
(1982, aproximadamente), não saía daqui o pessoal. Eu acho que em
cidade pequena, em lugar pequeno assim, as pessoa se identifica mais
com a gente porque cigano é um povo simples, gosta de fazer
amizade. Ali em Ubatã mesmo cigano tudo é conhecido. Todo mundo
gosta. Pessoa só não faz amizade com cigano porque não quer.106
A concepção da identidade étnica e as relações socioculturais entre ciganos e
não ciganos é manifestada na narrativa de Dona Ione. Percebe-se que a adaptação é
mútua quando desejada, não significando necessariamente perda de cultura.
No entanto, importa novamente ponderarmos que este grupo familiar, assim como
outros, possui também uma trajetória marcada por estigmas e estereótipos, como
assinalado por Cosme Rebouças em sua entrevista: “Sabe, muita gente não gosta da
gente por causa disso também. Dizem que a gente tem vida boa. Eles pensam que a
gente rouba, alguma coisa assim.” Um dos trechos do Álbum Genealógico da família
Rebouças possibilita acompanhar como os Fortunas Reouças também foram
estigmatizados. Explica o autor do Álbum Genealógico que “Juvenal (pai de seu
Gerisnal), sempre se sentiu acanhado em procurar os parentes Rebouças, por ter entrado
para o bando dos ciganos”.
106
Entrevista realizada com dona Ione Fortuna Rebouças, esposa do chefe familiar cigano, seu Gerisnal
Fortuna Rebouças em Itabuna, 2014.
78
Mesmo quando, aparentemente, admite reconhece que não seria demérito ser
cigano, as palavras de apoio revelam que seu autor desconhece a cultura cigana.
Creio ter condições de dizer ao Juvenal em nome de toda a família
Rebouças que o nosso nome não se desonra por alguém ser cigano.
Desonra o nome da família aqueles que se entregam ao vício ou à
desonestidade, sejam ciganos os não. Na vida de ciganos há muitos
valores importantes. Deus queira que vocês continuem fiéis a esses
valores e preservem as tradições, buscando adaptar-se ao mundo
moderno, que em seu bojo tem coisas muito boas e muito ruins. Vocês
constituem uma minoria que deve ser respeitada, preservada e
incentivada. Busquem uma escola especial, procurem mais a arte,
cultivem a música, pratiquem a religião autêntica e criadora, o
cristianismo católico que vocês receberam dos antepassados. Assim
vocês ilustrarão ainda mais o honrado nome da nossa família
Rebouças.107
Ao findar o capítulo sobre os Fortuna Rebouças no Álbum de família: Perfis e
Genealogias o autor termina com um conto lendário, sobre a cultura do povo cigano que
realça sua “esperteza”, vista como algo negativo, “esperteza” como uma espécie de
malandragem inerente a este povo.
Considerados ciganos ricos e honestos, embora extremamente sabidos
em negócios de vender e trocar animais. Foi dessa maneira que
Gustavo Rebouças e sua família passou também a viver. Assim
também encontramos, entre outros, os Fiúsas e Almeidas.
Uma lenda narra que certa vez, um rei árabe, precisava de uma erva
para remédio. Um rei vizinho possuía a erva, mas era intrigado e não a
vendia, nem cedia. Sabedor da dificuldade do soberano, um cigano
que por ali passava, prontificou-se a correr grande risco e roubar o
medicamento tão necessário. Dias depois, levou ao monarca a erva de
que precisava. Como recompensa o rei decretou que, dali em diante,
os ciganos teriam o direito de roubar o que lhes fosse necessário para
a subsistência, sem que isso constituísse crime. Assim, as pessoas não
devem reclamar muito, quando os ciganos lhe levarem uma galinha ou
um bode. Mas, os ciganos também não devem abusar desse
privilégio.108
Por vezes, certos discursos constroem identidades ciganas para esses sujeitos,
colocando-os em outros lugares, inclusive, num não lugar. No não lugar da
107
Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994.
p. 60.
108
Ibdem. REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de família: Perfis e Genealogias. Itabuna, 1994. p.
60.
79
historiografia: o lugar do silêncio; na ciganologia o lugar é o da discussão sobre
questões cigana, mas às vezes, também não há reconhecimento por parte de alguns
ciganos; no cinema e na música os ciganos geralmente são compreendidos como uma
unidade cultural exótica e, muitas vezes, são representados de forma preconceituosa; em
diversos meios midiáticos os ciganos são retratados de forma estereotipada. “Na
verdade, estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e
internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente
mediadas”.109
Muito embora tenhamos conhecimento dessas questões de “falseamento” da
imagem da identidade cigana, é importante percebermos por meio de alguns
depoimentos da família Fortuna Rebouças que existe uma preocupação em tentar
desmistificar as imagens criadas. Seu Gerisnal Fortuna Rebouças e todos da família
vivenciam um processo de reconstituição de suas imagens para reafirmá-las de outro
modo. Isto ocorre porque certos aspectos externos à vida cigana são incorporados,
consciente ou inconscientemente, num constante processo de ressignificações.
Neste sentido, concordamos com as categorias conceituais de Michel de Certeau.
A partir delas pensamos o grupo familiar aqui em estudo não apenas como consumidor
de uma cultura dominante e/ou da cultura dos não ciganos, mas fazendo uso daquilo que
é pertinente dentro de interesses individuais e coletivos.
Em entrevista com o senhor Gerisnal Fortuna Rebouças, ele procura explicar
quem pode ser considerado cigano e, ao mesmo tempo, criticar as associações
equivocadas que levam algumas pessoas a identificarem outras como cigano. Na
concepção dele, só é cigano quem nasce cigano.
Hoje todo mundo que negocia é cigano. Ficou essa lenda. Entendeu?
Por exemplo: você se for negociante, você é uma cigana. Agora, tem
uma origem cigana que nem a gente tem origem cigana. Já pegou
aquele nome ali. Muita gente diz que é cigano, e não é. Só na origem
para ser cigano.110
109
PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito
e política, luto e senso comum”. In: Usos e Abusos da História da História Oral. In: Org. Janaina Amado
e Marieta de Moraes Ferreira. - 4 edição- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 106.
110
Ibdem. Gerisnal Rebouças. Itabuna, 2014.
80
Compreendemos assim que a memória dos Fortuna Rebouças é acionada pelas
vivências cotidianas no contexto social, cultural e econômico da cidade de Itabuna.
Pierre Nora nos explica que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto” e em interação com a sociedade. Sem perder de vista que a
“memória é incontestavelmente da atualidade”.
A memória é também, “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de
fato uma representação seletiva do passado que nunca é aquele do indivíduo somente,
mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional.”111
CIGANOS NO INTERIOR DA BAHIA
3.1.
OS CIGANOS NO SUL DA BAHIA
Neste capítulo analisaremos alguns aspectos da identidade cultural e da história
cigana no interior da Bahia, tendo como perspectiva o entendimento de que a cultura
cigana é complexa e multifacetada, como, aliás, se apresentam a maioria das culturas.
Trabalhamos com uma diversidade de fontes (literárias, jornalísticas e narrativas orais),
como também, com um estudo de caso. Apresentamos parte da história de vida de um
núcleo familiar cigano, bem como, narrativas de ciganos selecionados para compor este
trabalho, mas isso não significa dizer que estamos construindo a história do povo cigano
no interior da Bahia, o que fazemos, na medida do possível, é narrar parte da história de
uma família cigana na cidade de Itabuna, interior da Bahia, para tentar compor uma
história que está inserida em um complexo mosaico cultural.
111
ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era” de. In: Usos e Abusos da História da História
Oral. In: Org. Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Editora: FGV Rio de Janeiro, 2001. p. 94.
81
No domínio dos ciganos, não existe senão múltiplas identidades. A
diferença é muito grande, pois na realidade não existem ciganos, mas
sim diversas comunidades (historicamente diferenciadas) chamadas de
ciganas mantendo relações de semelhança e/ou dessemelhança com as
outras.112
Não é fácil falar de história, mas estas dificuldades de linguagem introduzemnos no próprio âmago das ambiguidades da história. Menos fácil ainda quando se trata
de falar sobre a história sociocultural dos ciganos no interior da Bahia. Nesse sentido, a
história oral nos ajudou enquanto metodologia de pesquisa a partir das narrativas orais
de ciganos e de não ciganos, obtidas através de entrevistas que realizamos, em um
trabalho que, durante muito tempo foi exclusividade do trabalho antropológico,
realizado por antropólogos, chamado de trabalho de campo.
Fizemos um exaustivo exercício para entrevistar ciganos e não ciganos em
cidades diversas do interior da Bahia, a fim de coletar dados que faziam referências às
memórias dos depoentes sobre suas percepções da cultura e do modo de vida cigano.
Nossa trajetória de pesquisa de campo não foi uma tarefa tranquila de ser realizada, por
diversos desafios e dificuldades que encontramos durante todo o processo. Começaram
desde a procura dos selecionados para as entrevistas até os momentos de revisita aos
mesmos.
Muitos dos depoentes não ciganos, não se sentiam confortáveis em falar sobre os
ciganos. Sendo também que, os ciganos não se sentiam a vontade em responder alguns
questionamentos sobre eles mesmos, outros até mesmo não quiseram gravar entrevista,
preferindo atuar apenas de modo informal, e outros quando procurados novamente,
sinalizaram o desejo de abortar sua participação nas entrevistas. As motivações foram as
das mais variadas, o que não cabe pontuar nesse estudo, mas é importante informar que,
o trabalho com a história oral com grupos historicamente marginalizados não flui com
tanta naturalidade. Sem contar que, uma família de ciganos na cidade de Ubatã, que
mantínhamos contato “desapareceu” assim que os buscamos para dar sequência as
entrevistas. Porém, mesmo com estes impedimentos, o trabalho haveria de continuar.
112
TEIXEIRA, Rodrigo, Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte:
Crisálida, 2007, p.21.
82
A partir do momento em que a antropologia, no limiar do século XX
começa a abandonar a postura evolucionista ficou patente a
importância do trabalho de campo ou pesquisa de campo como o
modo característico de coleta de novos dados para reflexão teórica.113
A pesquisa com ciganos nos levou a perceber que, embora os ciganos
selecionados para este estudo estejam fixados no interior da Bahia, em territórios
demarcados politicamente, muitos deles são fixados em espaços geralmente afastados
dos centros da cidade, não entendemos este fenômeno enquanto uma naturalização
espacial, uma escolha feita pelas famílias ciganas por bairros marginalizados, em
especial, no sul da Bahia, mas, entendemos como uma imposição não declarada
atualmente, por que o passado tratou de demarcar estas questões, pelo simples fato de
serem ciganos. Uma imposição das elites dominantes, que ultrapassa os limites
socioculturais, atingindo outros espaços, inclusive econômicos.
113
MATA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981,
p.143.
83
Foto: Dona Ione Fortuna Rebouças ao lado direito, vestida de vestido rosa escuro e branco. A família
fixou residência no bairro de Ferradas, porém, não mais nas proximidades da fábrica de chocolate
“Nestlé”, mas adentrando o mesmo bairro. Itabuna, bairro de Ferradas, 1980.
Em entrevista com Gilson Dantas da Cruz, um cigano, representante da
comunidade cigana da Bahia e irmão do professor universitário Jucelho Dantas da Cruz,
conseguimos ponderar um pouco da complexidade que é tratar com discursos orais de
ciganos. Atentemo-nos para a (im)possibilidade da representação de múltiplas
comunidades ciganas da Bahia e do interior. Focamos nesse momento apenas nas
narrativas de um cigano representante da comunidade cigana da Bahia, mas bem
sabemos das dificuldades implicadas na ideia de representação do outro, tendo em vista
que não podemos falar de comunidade cigana e sim de comunidades ciganas, que
variam histórica e culturalmente, embora sejam todos denominados ciganos.
Eu passei a ser representante do povo cigano, nós morávamos no sul
da Bahia, principalmente em Ibirapitanga, e logo jovem com a idade
de vinte e poucos anos perdi meu pai e meu pai era o chefe de nossa
família, uma família de onze irmãos e meu pai tinha uma certa
liderança nem só na família como na comunidade cigana e aí com a
ausência de meu pai, eu sendo o quarto irmão mais novo, aí comecei a
liderar em minha família mesmo, comecei a ser representante da
minha família e aí mudamos do sul da Bahia para aqui, para Camaçari,
chegando aqui, comecei a liderar, sendo representante, uma
liderança.114
A família na cultura cigana é o lugar onde a história, por meio da memória
fortalece a identidade individual e coletiva dos grupos, sendo decerto o lugar da cultura,
o elemento central das comunidades. Esse fato se aplica a todas as comunidades
ciganas. É na família, nos laços de sangue que a cultura dos ciganos se desenvolve.
Mas, o que chamamos de cultura cigana é na verdade, uma representação da cultura
cigana. O tema da representatividade remete às reflexões de Tzvetan Todorov que,
embora não faça referência à representação cigana, nos ajuda a pensar sobre o assunto.
114
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
84
A representação que os membros de uma comunidade se fazem de sua
cultura não é algo de automático; pelo contrário, trata-se do produto
de uma construção que processa em todos os instantes. As práticas
sociais de um grupo são múltiplas e variáveis; ora, para construir uma
representação, deve-se proceder a escolhas e combinações – em vez
de refletirem passivamente a natureza das coisas, essas operações vão
organizá-las de maneira peculiar. Por conseguinte, os indivíduos
encontram-se imersos, não em contatos puramente físicos com o
mundo, mas em um conjunto de representações coletivas que, em
determinado momento, ocupam uma posição hierárquica
predominante no âmago da cultura. Essas representações formam um
saber oral que transmite de geração a geração ou, então, encontram-se
também consignadas por escrito; elas é que conferem sentidos aos
diferentes acontecimentos constitutivos da vida de uma pessoa. Nesse
sentido, a cultura é a imagem que a sociedade tem de si mesma: assim,
é a essa representação que os indivíduos procuram identificar-se – ou
da qual aspiram a libertar-se; mas elas não resultam mecanicamente
dos fatos.115
Entendemos que, entre os ciganos, ter uma pessoa como representante é quase
uma regra grupal e familiar, para que as questões e conflitos familiares sejam
comunicados e/ou equacionados entre eles e ajudar nas resoluções e nas interlocuções.
Entendemos de todo modo, que a escolha de uma pessoa para chefiar o grupo, ou o
bando, ou a família de ciganos é o que temos de mais emblemático quando pensamos
em representações de comunidades ciganas. Mesmo tendo consciência dos mais
variados elementos que compõem tal representação.
Segundo [Gilson], a maioria do grupo cigano são pessoas muito
carente de instrução, principalmente na área jurídica e policiais, e aí
eu como mais esclarecido, comecei sempre a representar o povo
cigano. Foi quando chegou o dia Nacional do povo cigano, que pra
todos nós foi uma grande conquista, uma honra, que o nosso expresidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu o dia Nacional do
cigano, 24 de maio.
115
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Editora:Vozes.
Petrópolis, Rio de Janeiro, 2010.
85
Embora, o dia nacional do cigano tenha sido um direito conquistado para o povo
cigano que vive em território brasileiro, são pouco os que têm conhecimento desse
decreto e, decerto, podemos afirmar que com o decreto, criando o Dia Nacional do
Cigano, não houve por parte do Estado um real compromisso para com o povo cigano.
Grande parte da população cigana desconhece este dia, sem falar que muitos não
ciganos também ignoram esta data comemorativa. Não houve divulgação nem por parte
da mídia, nem tampouco nos meios educacionais. Já faz nove anos (2007 a 2015) que,
de acordo com a legislação brasileira se comemora o dia nacional do cigano no Brasil.
Mas, na prática, o que permanece é o silêncio deste dia decretado em lei. De acordo
com Gilson, nosso entrevistado, algumas reivindicações feitas por ele, enquanto
representante da comunidade cigana do interior da Bahia, referem-se ao direito do
cigano nômade viver em barraca.
Começaram a chegar lideranças políticas e sempre me colocando
como representante, até que tivemos várias conferências, municipal,
tivemos federal e tivemos estadual e tinha que eleger um representante
de cada etnia e pela unanimidade. Por incrível que pareça, eu não
estava nem no dia que eu estava com problema de saúde e a
comunidade cigana me elegeu como unanimidade como eu sendo
representante e aí passei a ser representante da comunidade cigana e
sempre que posso faço reuniões, convido aqueles mais carentes de
instruções, aqueles mais jovens, essa conferência já tem uns cinco
86
anos que aconteceu mais ou menos, uma conferência que aconteceu
em Salvador, tivemos a nível municipal, estadual e federal e aí
colocamos todas as nossas preferências, todos os nossos desejos que
nós almeja, foram colocados no papel, tanto municipal, estadual e
federal, só que até agora, os nossos governantes só ficou isso no papel.
Sempre que o pessoal da cultura, da SEPROMI116 me procura , sempre
entra um representante a cada tempo e sai aquele representante e entra
outro e aí todos eles cobram isso que a gente volte a fazer tudo que já
tá feito no papel, aí eu disse a ele ‘meu amigo, eu não vou me prestar
mais a isso, por que todas as nossas reivindicações já foram feitas a
nível nacional, estadual e municipal, resta agora os nossos
governantes colocar em prática’, uma das reivindicações é que o povo
seja respeitado em seu modo de vida, por exemplo: o cigano desde
que ele nasceu que mora numa barraca e as autoridades civis, militar e
judiciais, quando chega um acampamento cigano, uma barraca, eles
invadem pode ser qualquer hora da noite, pode ter mulher grávida,
pode ter criança, pode ter idoso e não diz a hora e nem o momento,
chega e invade. Isso é uma grande reivindicação não só minha, mas da
comunidade cigana, pra que a barraca seja respeitada como a casa do
cigano, que o cigano que viva em barraca tenha o mesmo direito que o
cigano que viva em casa de alvenaria. Do mesmo modo que se tem o
direito para entrar numa casa é preciso um mandado judicial, da
mesma forma seja para quem more na barraca, nós reivindicamos isso,
para que a barraca do cigano seja respeitada como uma casa de
alvenaria, que ali é o lar, a casa do cigano.117
Observa-se que, ao explicar as reivindicações ciganas, seu Gilson da Cruz
revela o desejo de participar do jogo político, no bojo do qual as chamadas minorias
expõem suas dificuldades e buscam soluções para os seus problemas, conscientes de
que dependem, em larga medida, da maneira como se relacionam com os poderes
públicos das nações a que pertencem ou nas quais se fixaram. Mais que isso, o
representante dos ciganos da Bahia, denuncia os abusos das autoridades públicas,
particularmente das autoridades policiais, quando se trata de abordar o povo cigano,
desrespeitando suas mulheres, seus idosos, suas crianças e, sua cultura, na medida em
que não reconhecem as barracas como a casa do indivíduo cigano e, portanto, como a de
qualquer outro cidadão brasileiro, inviolável.
116
SEPROMI- Secretária de Promoção da Igualdade Racial- www.sepromi.ba.gov.br
Ver também: www.portaldaigualdade.gov.br
117
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
87
Notícias do jornal “A tarde118”, trazem informações que apontam a presença de
ciganos como uma problemática para as cidades do interior da Bahia. A prática de
expulsar os ciganos é muito comum e o jornal “A tarde” nos apresenta em toda a década
de 1970, em vários municípios do interior da Bahia, ciganos nômades expulsos de seus
acampamentos e muitos deles são vistos pelo jornal, como “invasores”, assassinos” e
“ladrões”. Houve sem dúvida, uma política de perseguição aos ciganos, inclusive nas
cidades do interior da Bahia. As perseguições são diversas, começa com os ataques às
barracas de ciganos, para expulsar ou para exterminar, e termina com os mais variados
adjetivos dados aos ciganos.
Não é possível detectar o número de ciganos mortos durante as décadas deste
estudo ‒ 1970, 1980 e 1990 ‒ mas, podemos afirmar que, as perseguições e as mortes
possam ser configuradas como crimes de genocídio. Podemos ponderar a partir do
jornal supracitado, a situação dos ciganos com relação ao preconceito racial. “Todo esse
processo de extermínio cigano é desconhecido em pesquisas no Brasil e passou a ser
objeto de estudos na Europa a partir de 1972 e, em especial, a partir da década de 1990”.
O estudo feito por Ania Cavalcante lança luz sobre a perseguição e o genocídio cigano
na Alemanha nazista, chamando atenção para os silêncios da história sobre a questão
cigana antes, durante e depois do nazismo.
Segundo Renato Rosso, foi no início do século XX que “o nazismo retomou toda
a série de preconceitos, discriminações e perseguições dos séculos anteriores, tentando
assim uma campanha de extermínio nunca antes empreendida.”119
A historiografia europeia mais recente cunhou o termo em romani
Porrajmos para denominar o extermínio dos ciganos pelos nazistas e
seus colaboradores na Alemanha e nos países ocupados (500 mil
ciganos) e foi resultado de uma política planejada, direcionada,
sobretudo, contra os ciganos nômades, de exclusão socioeconômica.120
118
O jornal “A tarde” foi pesquisado na Biblioteca Pública do Estado da Bahia- BPEB na Subgerência de
periódicos no setor de jornais correntes na cidade de Salvador- Bahia.
119
MOTA, Ático Vilas – Boas da. Ciganos: Perseguições. In: Ciganos: antologia de ensaios. Brasília:
Thesaurus, p. 297. 2004.
120
CAVALCANTE, Ania. A perseguição e o genocídio de ciganos durante o holocausto. In: Conflitos
Armados: massacres e genocídios. Organizadores: Rodrigo Medina Zagni e André Borelli. Editora: Fino
Traço, p. 109, 2013.
88
Não resta dúvida de que houve perseguições e genocídio de ciganos durante o
holocausto na Alemanha. Perseguições e mortes de ciganos no Brasil e nas cidades do
interior do Brasil também foi “resultado de uma política planejada, direcionada,
sobretudo, contra os ciganos nômades, de exclusão socioeconômica.”121 Desde o início
até o final da década de 1970, o jornal “A tarde” traz reportagens sobre a presença de
ciganos nas mais variadas cidades do interior da Bahia, bem como, em algumas regiões
do estado do nordeste. Desse modo, podemos identificar uma política anticigana, que
começa na Europa e seus desdobramentos chega ao Brasil, adentrando as principais
capitais e seus interiores desde os tempos coloniais.
A escolha da Coroa pela capitania do Maranhão visava pelo menos a dois
objetivos. Primeiro, colocar os ciganos ‘bastante afastados das áreas brasileiras
de mineração e de agricultura assim como longe dos principais portos da
colônia, do Rio de Janeiro a Salvador.’ Segundo, esperava-se que os ciganos
ajudassem a ocupar extensas áreas dos sertões nordestinos, então ainda
ocupadas por índios. Ainda que perigosos, preferia-se os ciganos aos índios.
Não foram ainda descobertos documentos com dados sobre o número de
ciganos deportados para o Brasil nesta época, para quais capitanias e por quais
motivos. Mas sabemos que também outras capitanias receberam ciganos,
principalmente a partir de 1718, outro marco na política portuguesa de
deportação de ciganos.122
Encontramos documentos importantes do final do século XIX, no Arquivo
Público do Estado da Bahia ‒ Seção Colonial e Provincial, Série Judiciário, Maço 2404
‒, os quais informam a presença de uma família de ciganos na cidade de Ilhéus no sul da
Bahia. Ambos os documentos são comunicações entre a secretaria de polícia da
província da Bahia e a delegacia de polícia de Ilhéus, com o propósito de informar não
somente a presença de ciganos, que segundo o documento era “composta de dez homens
e quarenta e tantas mulheres e crianças”, mas também apresentá-los como “salteadores
em Ilhéus.” De acordo com o documento, “o tenente da família de ciganos” deve ser
submetido a um rigoroso interrogatório verbal, por o mesmo possuir dois dentes de
ouro. No final do documento encontramos informações que talvez justifiquem tal
interrogatório, os ciganos mencionados “há quinze dias se acham abarracados na
121
Ibdem, p. 109, 2013.
122
TEIXEIRA, Rodrigo Côrrea, História dos ciganos no Brasil, Recife, Núcleo de Estudos Ciganos,
1999.
89
fazenda do subdelegado”, José de Mello Sá. Os anos se passaram e a preocupação e
intolerância com relação à presença cigana continuaram.
As notícias do jornal A tarde da década de 1970 apontam os ciganos enquanto
“bandos invasores” ou “intranquilizadores” do Estado. No jornal é possível perceber a
preocupação das autoridades com a passagem dos ciganos da fronteira que ligava
Sergipe à Bahia. Segundo as notícias do jornal, de 20 de setembro de 1972, a polícia
estava à procura de vinte ciganos, pois aqueles “bandos de ciganos continuam
intranquilizando o interior do Estado, principalmente, as zonas rurais de fronteira entre
Sergipe com a Bahia”.123
Do início ao fim da década de 1970 encontramos inúmeras reportagens que
evidenciam as preocupações das autoridades com a presença dos ciganos nas mais
variadas regiões do Brasil e no interior da Bahia. Como por exemplo, no Ceará e em
Alagoas. Constatamos essa presença, nas notícias do jornal A tarde: “Ciganos assaltam
e saqueiam: Ceará”124, “Ciganos invadem Alagoas”125 e “Polícia do Maranhão acusada
de atacar ciganos na Bahia”126. Isso talvez se explique pelo fato de que o século XX foi
um período que marcou a consolidação do preconceito e da aversão ao diferente. O
racismo marca a Europa no início do século XX com mais força, sobretudo na
Alemanha e nos países associados ao governo nazista. Os ciganos no Brasil, sobretudo
na segunda metade do século XX, aparecem com muita frequência no jornal pesquisado,
como um povo a ser temido e rejeitado, simplesmente, por ser cigano.
No século XX, o racismo não foi simplesmente uma forma de
darwinismo social: apresentou-se como uma ideologia complexa que
atribuía as virtudes, a moral e a honorabilidade da época aos modelos
culturais da burguesia ocidental e as imaginavam qualidades inatas da
raça superior. Os judeus, os ciganos e os negros não correspondiam a
esse ideal- tipo, forjado pela burguesia branca.127
123
Jornal A tarde, Salvador, 1972. p.3.
Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 25 de setembro 1973, p. 1.
125
Op.cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de julho de 1976. p. 8.
126
Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador - 29 de dezembro de 1975. p. 9
124
127
Revista de cultura Vozes. Duas canções. Editoras cristãs e conjuntura, por uma Pastoral dos Nômades.
Ano 79. Abril 1985 nº 3. Ciganos uma cultura milenar. p. 31
90
O jornal pesquisado aponta para algumas mortes envolvendo ciganos em
diversas regiões da Bahia, dando- nos uma pista de que, se haviam crimes, cujos autores
eram ciganos, em vários momentos também, ciganos eram mortos por seus pares e por
não ciganos. Nosso objetivo não é relatar essas mortes detalhadamente, apenas dizer que
elas aconteceram em um dado momento histórico, mas particularmente, entre as
décadas de 1970 e 1980 e talvez esses assassinatos se justifiquem pelo fato do Brasil
viver então sob forte influência das teorias racistas.
Todavia, temos como propósito discutir brevemente sobre a morte e os
processos de luto entre os ciganos. A morte de um dos membros de uma família de
ciganos é geralmente avisada aos parentes mais distantes e entre os mais próximos,
mediante uma rede de comunicação oral. A manifestação da cerimônia fúnebre é
encarada de diversas maneiras. Dependendo do grupo, do espaço em que ele está
inserido e do tempo histórico em que o luto é processado. Os principais elementos
citados, como o grupo, o espaço e o tempo darão uma nova roupagem ao processo de
luto entre as famílias de ciganos.
Os ritos funerários diferem de um grupo para o outro, de uma região
para a outra, eventualmente de um grupo, de uma família para a outra
e podem variar muito rapidamente no tempo. O luto pode ser
guardado de uma maneira muito rígida. As roupas dos defuntos
podem ser distribuídas aos membros da família ou a estranhos, ou
então queimadas com todos os bens do morto.128
O número de pessoas (ciganos ou não ciganos) que participará da cerimônia
fúnebre significa dizer o quanto o morto era importante, principalmente para a
funcionalidade do grupo e, muitas vezes, também sinaliza o poder econômico da família
do morto. Sem contar o grande lamento em demonstração de muito choro. O momento
da chegada do corpo é de muita tristeza e lamentação, gritos, choros e palavras ditas em
romani. A presença de ciganos de muitos lugares, que se concentram em torno da casa
ou da barraca onde o corpo do morto está posto, evidencia a união de grupos e famílias.
“É comum os parentes mais próximos vestirem roupas pretas e, por um mês ou quarenta
dias, dependendo das particularidades de cada grupo, os homens não fazem a barba 129.”
128
MARTINEZ, Nicole. Os ciganos. Campinas: Papirus, 1989. p. 94,95.
129
PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 78
91
Se for a mulher do morto, além de vestir preto, é preciso raspar a cabeça e não mais se
casar.
É interessante perceber que alguns teóricos, ao historicizar a questão cigana,
costumam naturalizar alguns fenômenos culturais. Categorizando-os como aspectos
culturais do povo cigano. Isso impede, ou melhor, dificulta perceber a diversidade
cultural das manifestações, inclusive as de luto.
Um exemplo muito comum é a naturalização do nomadismo. É bem provável que
as migrações de famílias ciganas são oriundas de variadas motivações. Alguns
deslocamentos, no caso do núcleo familiar cigano em estudo (os Fortuna Rebouças),
entre cidades do interior da Bahia foi resultado de um processo catalizador que vai para
além de um movimento espontâneo de ciganos. Muitas viagens são provocadas por
conflitos e assassinatos internos entre famílias de ciganos e entre famílias de ciganos
com não ciganos, obrigando alguns grupos de famílias ciganas a deixarem os lugares
em que estão instalados. Portanto, nem sempre é correto afirmar que a saída dos ciganos
de determinado local é por conta do nomadismo espontâneo ou que aquele
comportamento é próprio “da cultura cigana”, seria interessante pensar a partir da
abordagem de um deslocamento forçado.
Logo, muitas das justificativas dos deslocamentos, ou migrações de grupos de
ciganos, estão na morte de algum cigano, por conta de perseguições provocadas pelos
preconceitos ou por falta de clientela para suas mercadorias, entre outros motivos
socioeconômicos, socioculturais e/ou sociopolíticos.
Eu vim parar em Camaçari depois da morte de meu pai no sul da
Bahia, o cigano era muito assim, quando falecia alguém numa cidade,
o povo cigano não ficava mais naquela cidade, saía e não voltava mais
e nessa data como sempre, foi em mil e novecentos e oitenta e dois, aí
nós saímos de lá do sul da Bahia pra aqui e não retornamos mais, aí
fixei residência aqui em Camaçari, hoje já tenho um título de cidadão
camaçariense aqui em Camaçari e estamos morando aqui.130
Certamente, um cigano até diria que é normal do cigano sair do lugar que está
arranchado, para não dar explicações do que realmente acontece no centro do seu núcleo
130
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
92
familiar. Isso não significa dizer que, o nomadismo não existe, muito pelo contrário,
estamos afirmando sua existência, apenas justificando que não é um processo natural
entre as comunidades. Foi o que aconteceu com o pai do entrevistado, ele foi
assassinado no interior do Sul da Bahia, e por ser uma memória traumática, o depoente
não se aprofundava quando o assunto era sobre o seu pai.
O que observamos entre algumas famílias de ciganos é que durante algumas
mortes dos familiares, o nomadismo costuma reaparecer, pois os ciganos entendem que,
quando as mortes estão associadas a crimes, permanecer no local significa uma
exposição de sua família ao risco de represálias. Logo, é muito comum, por conta da
ignorância cultural de alguns estudiosos não ciganos, afirmar que o comportamento de
abandonar barracas, casas prontas, uma vida estabelecida em determinada cidade, bem
como todo vínculo social e uma rede de sociabilidade econômica para trás seja uma
ação leviana e natural entre os ciganos.
A partir das análises das fontes escritas e orais, percebe-se que a realidade de
alguns ciganos corresponde à uma política anticigana em toda a parte do nordeste,
inclusive em Salvador, na Bahia.
O jornal “A tarde” faz referências ao descontentamento por parte das elites
locais com a presença de ciganos na Lagoa do Abaeté. Um projeto de higienização da
Lagoa foi pensado para aquela localidade com a criação de um parque como mais um
local histórico e turístico de Salvador. Entretanto, a presença de não ciganos e de
ciganos gerava um incômodo e, sobretudo, colocava em risco o projeto de implantação
daquele equipamento urbanizador. Assim, limpar a área da Lagoa tornou-se prioridade e
essa limpeza estava diretamente ligada aos sujeitos “indesejáveis”. Para que o projeto
urbanizador de criação do parque fosse efetivado, casas seriam demolidas para dar lugar
àquele empreendimento, gerenciado pelo poder público da cidade de Salvador. Portanto,
expulsar era preciso.
O problema da terra se coloca como uma questão a ser enfrentada entre o poder
público, nesse caso, a prefeitura de Salvador, e os moradores (ciganos e não ciganos)
naquela localidade, surgindo a necessidade de pensar onde seriam colocados aqueles
indivíduos. Como a questão da terra e da moradia para os ciganos é histórica, já que eles
não possuíam documentos que legitimassem sua permanência no local, certamente as
93
consequências mais rigorosas e severas atingiriam mais diretamente os grupos de
ciganos que arranchavam nas imediações da lagoa “em suas tendas de palha e lona.”
O jornal tratava a presença das famílias de ciganos na Lagoa do Abaeté 131 como
uma afronta e um desafio à prefeitura soteropolitana. É possível perceber que, essa
política não atingia apenas aos ciganos, mas todos aqueles que não contribuíam para o
embelezamento da lagoa, como por exemplo, as lavadeiras e os pescadores que ali
permaneciam fixos ou não. Na matéria “Abaeté é uma lagoa escura arrodeada de muita
sujeira”132, os ciganos aparecem logo abaixo na extremidade esquerda do texto do
jornal, cujo título é “descaso”, corroborando com nossa análise de que os ciganos são
apontados no texto como figuras que “sujam” a imagem projetada para o parque na
Lagoa do Abaeté.
Segundo as matérias do jornal “A tarde”, aconteceu uma chacina de ciganos na
cidade de Formosa do Rio Preto no interior da Bahia. Policiais de Goiás, Piauí e
Maranhão executaram 40 ciganos. Explica o jornal, de acordo com as investigações, que
a batalha entre policiais e ciganos começou por causa da presença de um acampamento
cigano em terras de um fazendeiro que inclusive já havia sido prefeito do município. A
recusa dos ciganos em se retirar daquelas terras deu início a uma briga que resultou na
morte do fazendeiro pelo chefe do grupo de ciganos que ainda roubou seu cavalo. Como
vingança, os filhos e os netos do fazendeiro organizaram uma operação militar que
ocasionou em uma correria de ciganos, os quais vieram parar na cidade de Formosa do
Rio Preto, onde policias dos estados citados encabeçaram a caça e a chacina dos
ciganos.
Um relatório municipal feito pelo delegado da cidade de Formosa do Rio Preto
nega que a chacina tenha ocorrido. No relatório, o delegado afirma que “somente um
cigano foi morto durante o tiroteio, embora ressalve que, não teve condições de acesso
ao local do crime para fazer uma investigação, por se tratar de uma região pantanosa,
localizada a 180 quilômetros da sede do município de Formosa do Rio Preto.”133 Ainda
de acordo com o relatório, “segundo testemunhas na região, os policiais teriam
assassinado oito pessoas, seis homens e duas mulheres, e o resto do bando foi obrigado
131
Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 28 de setembro de 1978, p. 1.
Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 16 de julho de 1980. p. 3.
133
Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 01 de abril de 1979. p. 11.
132
94
a fazer as covas para os companheiros mortos”134. As perseguições aos ciganos
começaram no Maranhão e terminaram na Bahia, com a morte dos quarenta ciganos.
A cultura do povo cigano hoje mudou. Hoje mais não, mas muitos
achavam que traziam recordação se ficasse no local, aí eles saíam para
ausentar mais, eles não queriam os pertences dos mortos, os ciganos
não doam, não vendiam, os ciganos queimavam todos os pertences e a
mulher cigana cortava o cabelo, usava luto fechado, não casavam
mais. Mas isso ficou no passado, a mulher cigana hoje, a maioria mais
velha usa sempre, não é um luto bem fechado, usa um azul e os
cabelos a maioria delas não cortam mais e a maioria das ciganas
modernas hoje que ficam viúvas , casam- se de novo, então é por isso
que a cultura dos ciganos tá acabando.135
Inclusive na cidade de Ubatã, interior do sul do estado da Bahia, aconteceu um
crime envolvendo ciganos e não ciganos, o qual teve grande repercussão na cidade e na
região. Dois jornais abordam este assassinato. O “Diário de Itabuna” e o jornal “A
tarde”, sendo que, o último apresenta mais detalhes sobre o acontecimento, bem como
os desdobramentos desse fato, fala também sobre as identidades dos ciganos (Valdecy
Barreto da Gama e Ediney Fiúza Barreto) apontados pelo jornal como autores do crime.
Segundo o jornal, os acusados pela morte de Arivaldo Teófilo da Silva, filho do
fazendeiro Manoel Teófilo “são elementos de péssimos antecedentes na região sul da
Bahia”136.
As matérias que se seguem apresentam os dois ciganos acusados pelo
assassinato, e explicam brevemente o crime, sendo que não é possível entender ao certo
o que realmente aconteceu, desse modo, fizemos alguns contrapontos entre diferentes
narrativas nos capítulos anteriores para tentar reconstruir um pouco do acontecimento
ocorrido no município de Ubatã.
134
Fonte: Jornal “A tarde”. Salvador- 27 de janeiro de 1979. p.1.
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
135
136
Jornal “A tarde”. Salvador- 11 de janeiro de 1981. p. 1.
95
Fonte: Jornal “A tarde”. No canto superior da página, ao lado direito, Valdecy Barreto da Gama
e Ediney Fiúza Barreto: ambos supostos envolvidos no crime do estudante na cidade de Ubatã.
Nas matérias “Assassinato de 2 ciganos em Ubatã” e “Ciganos assassinados a
tiros no centro da cidade de Ubatã” percebe-se a dimensão dos desdobramentos do
assassinato de Arivaldo da Silva, “filho de um dos mais ricos cacauicultores da região.”
Afinal, os dois ciganos mortos na cidade de Ubatã, Adroaldo e Deraldo, eram irmãos de
Valdecy, um dos autores do crime contra Arivaldo da Silva, que já se encontrava preso
em Salvador.
Segundo o jornal, o assassinato dos dois irmãos ciganos teria “decorrido de uma
rivalidade existente entre dois grupos de ciganos”137, notamos uma incerteza com
relação às motivações do crime. O jornal afirma que um policial, a serviço na delegacia
de Ubaitaba, informou que a execução foi por vingança do crime do estudante que
ocorrera em Ubatã. De acordo com as informações das matérias, o município de Ubatã
precisou de reforço policial da cidade de Ilhéus, Ipiaú, Barra do Rocha, Gongogi e
Ubaitaba, municípios localizados no Sul do estado da Bahia, para enfrentar o clima de
tensão gerado a partir das mortes citadas138.
Diante de tantas perseguições históricas aos ciganos por mais variadas
motivações, é interessante perceber que, a grande necessidade cigana ainda é a questão
137
138
Op. cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de novembro de 1981. p. 1.
Op.cit. Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de novembro de 1981. p. 11-13.
96
da moradia e de infraestrutura. Pois, a aquisição de um terreno para que o cigano possa
montar sua barraca e/ou construir sua casa significa em termos práticos, a segurança de
ter um lugar onde o cigano possa dar continuidade à vida familiar de seu grupo.
Muitos antigamente moravam em barraca por necessidade. Hoje,
aqueles que moram em barraca ainda, eles são poucos, aqui em
Camaçari principalmente são minorias, porque os ciganos hoje que
não têm condições de ter uma casa eles têm um terreno próprio, arma
uma barraca diferente da de antigamente, tem todos os móveis, até
banheiro. Então, vive uma vida bem melhor do que se vivia,
antigamente quando cigano era nômade. A parte nômade do cigano
ainda existe em alguns lugares da Bahia, mas são poucos. Os ciganos
antigamente andavam no lombo de animais, cavalos, merecendo de
favores de fazendeiros, merecendo de favores de prefeitos e delegados
das cidades, e hoje os ciganos não andam mais a cavalos e não
precisam mais tá pedindo auxílio a fazendeiro e nem a prefeitos pra
que tenha um lugar pra eles acamparem. A verdade é que nossas
reivindicações tem até isso, pra que na cidade onde tenha cigano
exista uma área como se tem pra circo, com lavatório, com banheiro
público e com um lazer melhor, para que seja uma área que o cigano
tenha mais conforto, aquele cigano nômade que ainda anda de barraca,
todos os municípios está no papel pra ver se bota isso em prática.139
Bem sabemos que, muitas das famílias ciganas ainda vivem sem moradia no
interior da Bahia, tendo que transitar por vários municípios, levando uma vida difícil.
Viver no nomadismo hoje está atrelado, geralmente, à condição financeira do grupo
familiar cigano. Possuir uma casa própria passou a ser um desejo bastante comum entre
os ciganos. A negação da existência de ciganos nômades por parte dos ciganos mais
ricos na região significa que, se os últimos afirmarem que os nômades são muitos, é o
mesmo que dizer que os ciganos estão na condição de atrasados, que não se
desenvolveram, e essa é a imagem que eles não desejam passar para nós não ciganos.
139
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
97
Porém, as paisagens de algumas cidades da Bahia mostram outra realidade.
Ciganos que moram em barracas ainda são muitos e isso depende muito dos municípios
nos quais estão instalados. Lama Preta140, por exemplo, um bairro de Camaçari, região
metropolitana de Salvador na Bahia, local onde realizamos entrevistas com o
representante da comunidade cigana da Bahia, moram muitos ciganos acampados em
barracas até hoje.
Aqui em Camaçari é o lugar da Bahia hoje que têm mais ciganos, na
sede e nos municípios, por exemplo, aqui são dez ou doze
comunidades ciganas, cada qual em um bairro, aqui, por exemplo,
tem: Parque Verde, Lama Preta, Buriçatuba, Grebagá, Mangaba,
Jardim Limoeiro, Verde Horizonte, aqui onde moro, próximo a
rodoviária, tem Nova Vitória. Todas essas ruas e bairros moram
ciganos e todos esses moram em casa própria, aquele mais pobrezinho
que é a minoria como eu acabei de dizer, ainda tem aquele de barraca,
mas é pouco, bem mais pouco, agora no interior da Bahia ainda surge
muito cigano de barraca, agora aquele cigano que andava acampando
de animais, não. Mesmo aquele pobrezinho que não tem condições,
quando quer mudar de uma cidade pra outra, ele aluga carro de frete e
se muda a carro, não anda mais de animal.141
140
Jornal “A tarde”. Salvador- 10 de novembro de 1981. p. 11.
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
141
98
Foto: Seu Gerisnal Fortuna Rebouças à direita, vestido de blusa azul e ao lado, seu pai Juvenal Fortuna
Rebouças na cidade de Coaraci – Sul da Bahia- 1971. Esta fotografia foi colorida em programa do
computador, por Cosme, o filho mais novo de seu Gerisnal.
Seu Gilson da Cruz apresenta em sua narrativa dificuldades com relação a
identificar não somente o número de ciganos que moram em barracas e casas, mas,
sobretudo, a quantidade de ciganos existentes na Bahia e no interior.
Precisamente, aqui no município de Camaçari a quatro anos mais ou
menos, eu fiz um apanhado e existia em torno de 400 famílias no
município de Camaçari, hoje eu não fiz mais esse apanhado, porque
alguns mudaram pra outras cidades vizinha, talvez ou aumentou ou
diminuiu, mas eu não tenho mais essa certeza de quantas famílias
mora hoje no município de Camaçari, agora uma coisa eu lhe digo, na
Bahia a cidade que tem mais cigano hoje é Camaçari. Nós cigano não
temos condições de fazer um censo por conta própria, porque vai
requerer muito tempo, dinheiro e pessoas credenciadas e que tenha
habilidade pra que seja feito isso, nós não temos essa disponibilidade
ainda.142
142
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
99
E com relação ao Brasil, informações sobre o número de populações ciganas
existentes ainda é um enigma. “As dificuldades metodológicas que os institutos de
pesquisa enfrentam quando se trata de estudar os fenômenos migratórios são bem
conhecidas. A estas dificuldades acrescentam-se as de identificação das populações
nômades ou de origem nômade.”143
Não se sabe ainda quantas famílias de ciganos vivem em território brasileiro. O
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estima que são 500 mil,
aproximadamente, o número de ciganos vivendo no Brasil. Já autores, como Rodrigo
Corrêa Teixeira, julgam que são 800 mil, mas não há um consenso exato quando se trata
da população cigana no Brasil. Na Europa, atualmente “vivem cerca de 60 mil ciganos
na Alemanha, dos quais 40 mil ciganos são sinti e 20 mil ROM.”144 Mas, os ciganos que
vivem em território alemão “são até hoje discriminados, embora sejam cidadãos
alemães e trabalhem como comerciantes, operários, artesãos, artistas, funcionários,
dentre outras profissões.”145 Situação bem diferente vivem os ciganos brasileiros.
Desde que chegaram ao Brasil, o comércio foi, de fato, a mais
importante atividade dos ciganos. Comercializavam as mais diversas
mercadorias, com destaque para cavalos e mulas. Entre o final do
século XVIII e início do XIX, muitos ciganos interessaram-se pelo
comércio de escravos. Embora não tenham deixado de negociar suas
mercadorias tradicionais, o comércio de cativos transformou,
sensivelmente, o papel dos ciganos na sociedade e na economia,
sobretudo nas primeiras décadas do oitocentos.146
Entendemos que a “versatilidade dos ciganos para o exercício das atividades
econômicas mais favoráveis diante das circunstâncias, foi um dos principais fatores para
a sua sobrevivência ao longo do tempo.”147 Como apontado em uma das entrevistas,
143
MARTINEZ, Nicole. Os ciganos. Campinas, SP: Papirus, p. 63,1989.
144
CAVALCANTE, Ania. A perseguição e o genocídio de ciganos durante o holocausto. In: Conflitos
Armados: massacres e genocídios. Organizadores: Rodrigo Medina Zagni e André Borelli. Editora: Fino
Traço, p. 110, 2013.
145
Ibdem, p. 110, 2013.
146
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte:
Crisálida, p. 83, 2007.
147
Ibdem, p. 83, 2007.
100
diante de um contexto de crise socioeconômica, surge entre os ciganos uma
intranquilidade, sobretudo, sobre quanto ao futuro de suas atividades econômicas,
Dinamizando a própria lógica de comércio entre ciganos e não- ciganos.. Embora o
entrevistado afirme as necessidades de mudanças na profissão dos ciganos por meio da
instrução escolar e universitária, apesar de apontar saídas, alternativas, por meio da
inserção dos ciganos na escola e na universidade, o mesmo afirma que ainda é apenas
um desejo seu.
Ver ainda um calón servir de exemplo aqui na Bahia, formando uma
filha cigana, trabalhando, ser uma advogada, ser uma juíza, uma
médica, uma professora, pra mim é um grande orgulho. Mas, até
então, os pais, vem no sangue, quando as filhas já passam de doze,
treze, quatorze anos arrumarem casamento, vem no sangue isso aí. E a
mulher cigana assim que ela casa é óbvio que o marido vai ter
resistência de deixar ela ir pra escola, pra ir estudar.148
Desse modo, nota-se que, apesar das resistências, a cultura entre alguns ciganos
no interior da Bahia, acerca dos filhos permanecerem na escola já é vista como uma
possibilidade.
A cultura cigana mudou bastante. Mas, como a sociedade toda em
comum mudou bastante, porque cada década que passa, cada ano que
passa vai se evoluindo. E, o povo cigano como sempre tá evoluindo
junto com a evolução da sociedade que não é cigana. Tem que
acompanhar, porque se não seguir a sociedade cairá no esquecimento.
Os ciganos viviam comprando e vendendo cavalos nas décadas de 70
e 80 até noventa, depois passou a se vender eletrodoméstico, como
relógio, rádio, essas coisas. Aí depois do animal, veio o
eletrodoméstico, depois o povo cigano passou pra área de comércio de
automóveis usados e com essa nova mudança de financiar carro pra
tantos anos, aí ficou inviável o comércio de automóvel usado pra o
povo cigano. O povo sempre tem a história que o povo cigano mexe
muito com o dinheiro a juros, agiota, não vou dizer, não vou ser
hipócrita aqui e dizer que o povo cigano já mexeu muito e mexe ainda
com isso, mas a maioria do povo cigano teve muito prejuízo com essa
prática de comércio que é ilegal. Então, muitos hoje estão aderindo à
área da construção civil, muitos estão empreendendo em comprar
terrenos, casas, construir casa e vender, então hoje, o cigano tá mais
pra esse lado empreendedor, e hoje a maioria dos ciganos todos,
interage muito com a televisão, com internet, telefone hoje com
Wifi.149
148
Gilson da Cruz. Camaçari, 2015.
149
Gilson da Cruz. Camaçari, 2015.
101
Em Itabuna, a família dos Fortuna Rebouças passou por um processo de
transformações similar ao narrado por Gilson Dantas da Cruz, não somente no tocante
ao ofício da família, que passou do comércio com animais para o de carros, terrenos,
dentre outros. Outras mudanças também foram sentidas nas regras matrimonias que
aquela família afirmava manter em suas tradições. Ou seja, o casamento entre pessoas
de culturas diferentes. Agora é comum presenciar entre os parentes de seu Gerisnal
Fortuna Rebouças, união entre ciganos e não ciganas, seus irmãos, netos e netas já estão
casados com pessoas de “fora” da cultura e da tradição. Embora esse comportamento
desagrade a muitos membros da família, inclusive ao próprio chefe familiar, seu
Gerisnal Rebouças.
Filhas de dona Ione e seu Gerisnal Fortuna Rebouças, exceto a da esquerda de vestido rosa mais escuro.
Casamento de Cosme Fortuna Rebouças, o filho mais novo do casal. Itabuna, 19/09/2011.
Então o povo cigano de antigamente para o de hoje evoluiu, vamos
dizer, noventa por cento, só que em termo da cultura cigana, os
ciganos tá aderindo muitas coisas aí que eu não concordo, mas a
sociedade tá trazendo e o povo cigano como sempre, como o índio, tão
aderindo e tá perdendo o grande traço da cultura cigana. Por exemplo,
o casamento cigano antigamente, era como os dos coronéis, os pais
pediam as moças para os rapazes eles aceitavam e casavam e viviam
muito bem, hoje ainda existe em comum acordo com os filhos, se for
de acordo dos filhos faz e prossegue o casamento, agora se os pais
também não querer não for de acordo não prossegue o casamento, já é
uma prática que mudou e também o casamento do cigano com uma
102
não cigana existia sempre e o que era mais difícil, era da cigana com
um não cigano, que tá existindo muito. Não que eu seja nada contra ao
não cigano e a não cigana, é porque o povo cigano hoje é minoria e se
o povo cigano continuar mesclando o cigano e o não cigano, daí a
pouco não existe cigano não legítimo, vai ser tudo mestiços e tá
extinguindo a cultura cigana e as mulheres ciganas antigamente
tinham bastante filho e hoje não, as mulheres ciganas quando querem
ter muito é um casal e aí tão ligando muito cedo. E os ciganos daqui a
um dia vão ficar em extinção. No caso, minha mãe teve onze filhos, já
minha esposa, teve três filhos, meus irmãos cada qual tem dois, o que
tem mais tem quatro filhos, minhas filhas hoje cada qual tem dois
filhos e já são ligadas. Então, a cultura cigana, a população cigana tá
caindo muito, os mais velhos estão morrendo bastante.150
O casamento que presenciamos aconteceu na cidade de Itabuna em 2011. Foi
bastante tranquilo e sem nenhum tumulto, no sentido de confusão, brigas e tiroteio,
como muitas das vezes acontece em festas ciganas e é divulgado pela imprensa.
O primeiro dia foi de muitas fotos, muita dança, muita comida e muita música,
uma grande festa na qual um grupo de não ciganos cantava música sertaneja em um
salão de um clube social na cidade de Itabuna, no interior do Sul da Bahia. O segundo
dia foi realizada a cerimônia do casamento. Todos os convidados e os noivos se
deslocaram para a igreja católica de outra cidade, chamada Itapé, onde aconteceu a
celebração religiosa. Uma cerimônia muito dinâmica e rápida, se comparada às
cerimônias religiosas tradicionais de casamentos não ciganos. Segundo a tradição, é
nessa ocasião que a noiva beija seu noivo pela primeira vez.
O terceiro dia foi de comemoração na casa dos pais dos recém-casados, é
quando o casal terá sua primeira noite de amor na casa do casal, construída com o
dinheiro que os pais da noiva dão aos pais do noivo – o dote – para a construção da casa
do casal, bem como toda a mobília. A casa geralmente é construída em terreno onde
estão fixados os pais do noivo, já que a noiva geralmente segue seu marido,
abandonando sua família de origem.
150
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
103
Noiva chegando na igreja com seu padrinho de casamento, Paulo (irmão de Gilson Dantas da Cruz e
Jucelho Dantas da Cruz) e sua irmã de vestido vermelho (na extremidade do lado direito). Itapé - interior
do sul da Bahia, 19/09/2011.
A noiva Daniela Almeida Rodrigues e seu padrinho de casamento, Paulo Dantas da Cruz adentrando a
igreja- Itapé, 19/09/2011.
104
Momento de celebração do casamento na igreja. Itapé, 19/09/2011
Os recém-casados dançando no salão do clube, centro da fotografia, Daniela está vestida de vermelho e
branco, Cosme, de cabelos longos, veste calça jeans e blusa cinza escura. Itabuna, 19/09/2011.
105
A luta dos ciganos é uma luta histórica. Uma luta de resistência, para que
possam viver com respeito em uma sociedade de múltiplos sujeitos e culturas. É visível
nas fontes que, o embora o preconceito tenha sido forte, sobretudo, nas décadas do
nosso estudo, os ciganos criaram várias formas de sobrevivência sociocultural. Como
podemos verificar na matéria do jornal que se segue. “Milhares de ciganos europeus
querem ser recebidos pelo Papa”. Ciganos de diversas áreas da Europa se concentraram
em Roma, na Itália, para pedir ajuda ao Papa João VI, pediam paz, por conta de uma
rivalidade entre ciganos de grupos diferentes. Mas, o motivo dessa rivalidade, o jornal
não deixa claro.
O interessante é que, embora não sejam esclarecidas as causas dos conflitos
entre ciganos, entendemos que os ciganos se mobilizavam em uma organização
politizada de ciganos na Europa, inclusive quando se referiam à conscientização política
entre alguns ciganos da América do Norte, os quais iniciaram um movimento de
escolarização entre os ciganos, por entender que, os ciganos precisavam se qualificar,
para melhorar sua profissionalização, e quanto mais instrução escolar e profissional
tivessem, seriam mais respeitados naquela sociedade em meados da década de 1970.
No Brasil, essa preocupação chega com mais força somente agora no século
XXI, adentrando o interior da Bahia entre os ciganos. Influenciados por vários
movimentos sociais, ciganas estão manifestando o desejo de que suas filhas não casem
tão cedo e busquem permanecer na escola para concluírem seus estudos, inclusive na
Universidade. Para os meninos, os pais estão começando a pensar também na
necessidade de deixá-los finalizar os estudos para se profissionalizar, pois acreditam que
em contexto de crise econômica, a situação financeira da família cigana dependerá do
incentivo da educação que, até então, não era vista pela comunidade como algo
preponderante.
A era cigana já passou. Cigano comercializava com animais, acabou.
Cigano comercializava com eletrodoméstico, acabou.
Com
automóvel, acabou. A prática de emprestar dinheiro acabou. Eles estão
emprestando e está perdendo dinheiro. Então, hoje o cigano tem que
prevalecer o estudo, pra ter um trabalho digno, porque a década e a era
cigana tá acabando, porque tá extinto, comércio não existe mais,
comprar e vender cavalo, burro, carro não existe mais é o que os
ciganos mais velhos sabem fazer e os mais novos hoje, eu sempre bato
106
nessa tecla, ou vai ser mula pra passar tráfico, ser usado ou vai ser
servente de pedreiro, que aquele que não estudar a tendência é essa.151
A realidade social entre os ciganos no interior da Bahia é de fato uma situação
preocupante, no sentido do descaso dos poderes públicos para com os mesmos.
Compete também a outros espaços a responsabilidade com relação à vida sociocultural,
econômica e escolar dos ciganos na Bahia e em seu interior, no sentido de promoção de
políticas públicas de valorização da história cultural dos ciganos. É urgente a questão
cigana, por várias questões. Se o nazismo foi uma realidade na Alemanha e se espalhou
por toda Europa, aqui no Brasil podemos identificar outras formas daquele fenômeno de
extermínio social. Aqui ocorreu um silêncio historiográfico retirando esses sujeitos
culturais da história. Ocultando assim, a participação e a contribuição dos povos ciganos
para a história dos interiores, da Bahia e do Brasil.
151
Entrevistado- Gilson Dantas da Cruz- representante do Povo Cigano no estado da Bahia, Camaçari 28/09/2015.
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo foi pensado para refletir sobre a história, memória e identidade cigana
na região do interior da Bahia. E para isso, lançamos mão, de narrativas literárias sobre
a presença cigana em algumas cidades, para pensar os lugares reservados para aqueles
indivíduos na literatura, a partir dos escritores regionalistas como Jorge Medauar e
Euclides Neto, por meio de suas obras literárias. Trabalhamos também, com as matérias
dos jornais: O Diário de Itabuna e A tarde, das décadas de 1970, 1980 e 1990, que
fazem referências aos ciganos. Contrapomos as narrativas literárias com os discursos
dos jornais, do mesmo modo fizemos com as narrativas orais de ciganos e não ciganos
de algumas cidades do interior da Bahia.
A proposta desse trabalho se concentrou em apresentar o lugar reservado aos
ciganos em parte da literatura da região e nos jornais locais. A ideia foi refletir o modo
de construção de identidades ciganas por meio das tentativas de escrita de intelectuais
do interior da Bahia, da imprensa local e da oralidade. Nesse sentido, percebemos – até
aqui – o quanto existe uma memória baseada na aversão, no medo, no preconceito e na
criminalização quando o assunto é sobre a existência de ciganos na região.
Ao mesmo tempo, convivendo com algumas famílias de ciganos em algumas das
cidades do interior da Bahia, deparamo-nos com uma forte participação social,
econômica, cultural e política dos ciganos, de forma muito efetiva, sobretudo na vida
cotidiana daquelas cidades do interior da Bahia. Pensamos que a presença de ciganos é
uma representação da resistência sociocultural daqueles indivíduos que reelaboram de
diferentes formas as imposições e os preconceitos. O mais interessante é que, mesmo
diante de tantas adversidades, os ciganos resistem. Sobre essa resistência, Rodrigo
108
Corrêa Teixeira aponta para um elemento importante muito usado pelos ciganos, a
adaptação. “Os ciganos souberam subverter quase todas as situações que o contexto
desfavorável lhes oferecia. Adaptaram-se, penetrando nas lacunas que a dinâmica
econômica e social criou. A adaptação para a sobrevivência foi o grande triunfo da
condição cigana”. E completa, dizendo que, a “sobrevivência foi a realização mais
duradoura, o grande evento, da história cigana.” 152
Os grupos ciganos locais reelaboram culturas e linguagens, fazendo uma espécie
de “bricolagem”. Esta denominação, dada por Michel de Certeau, auxilia a apreender
práticas cotidianas, próprias de grupos que burlam mecanismos e estruturas culturais
impostas. Os ciganos constituem, assim, uma das dimensões da história, da cultura e da
sociedade da Bahia e de seu interior, compondo, assim, a história do Brasil.
Os autores regionais Euclides Teixeira Neto e Jorge Emílio Medauar, em suas
tentativas discursivas, construíram identidades, a partir de memórias cotidianas do lugar
de que se fala, por meio de seus personagens, quando aponta a presença dos ciganos e
suas relações com os não ciganos no interior da Bahia. Concluímos também que, os
jornais buscam selecionar um lugar para os ciganos, que aparecerem e desaparecerem
em suas matérias jornalísticas. Há sempre um espaço de desprestígio para aqueles
indivíduos. Suas histórias são contadas a partir de práticas negativas, tais como roubos,
crimes e badernas locais.
Nesse contexto, torna-se relevante apresentar história da formação e da
trajetória familiar de um grupo de ciganos na cidade de Itabuna com os quais, a partir de
suas narrativas orais, também apreendemos suas próprias percepções em relação aos
preconceitos e estereótipos direcionados pelos não ciganos ao seu modo de vida. Esta
perspectiva de abordagem resulta na desconstrução de alguns mitos sobre a história
sociocultural de ciganos a séculos arraigados em nossas memórias.
152
TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte:
Crisálida, p. 138, 2007.
109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Verena. Manual de história Oral – 3 edição.- Rio de Janeiro: Editora FGV,
20013.
ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.
Bauru, SP: EDUSC, 2007.
AROSTÉGUI, Júlio. História e Historiografia: os fundamentos. In: A pesquisa
histórica: teoria e método; tradução Andréa Dore; revisão técnica José Jobson de
Andrade Arruda. Bauru, SP: Edusc, 2006.
______________. “O objeto teórico da historiografia”. In: A pesquisa histórica: teoria e
método; tradução Andréa Dore; revisão técnica José Jobson de Andrade Arruda. Bauru,
SP: Edusc, 2006.
ARANTES, A. Antônio. “Desigualdades e diferença: cultura e cidadania em tempos de
globalização”. In: Paisagens paulistanas: Transformações do espaço público. Coleção.
Espaço e Poder. Ed: UNICAMP, 2000.
BARROS, José D´ Assunção. O lugar da História Local na expansão dos campos
históricos. In: Conferência para o I Encontro de História Local/ Regional da UNEB,
novembro/2009.
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. tradução Eliana Aguiar. – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Coleção Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural,
1980.
_____________. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ática,
1985.
BOSI, Éclea. Memória e Sociedade. Lembranças de velho. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas estratégicas para entrar e sair da modernidade.
SP: EDUSP, 1997.
110
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 4. ed. São Paulo: Martins,
[1971]. 2 vol.
CARDOSO, João Batista. Literatura do cacau: ficção, ideologia e realidade em Adonias
Filho, Euclides Neto, James Amado e Jorge Amado. Ilhéus: Editus, 2006.
CARDOSO, R. O. Caminhos da Identidade: Ensaios sobre etnicidades e
multiculturalismo. SP: Editora UNESP; Brasilia: Paralelo, 2006.
CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Caminheiros do Destino. São Paulo:
Dissertação de Mestrado Apresentada ao Programa de Estudos Pós- Graduados em
História da Pontifícia Universidade Católica/SP, outubro de 1994.
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano – Artes de fazer. Petrópolis, Vozes,
1994.
CESAR, Elieser. O romance dos excluídos: terra e política em Euclides Neto. Ilhéus:
Editus, 2003.
DE DECCA, Edgar. “O estatuto da história”. In: Revista Espaço & Debate. 34: Cidade
e História. São Paulo: NERU, 1991.
FERREIRA, Marieta de Moraes; Janaína Amado. Usos e Abusos da História Oral - 4
edição- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001
FONSECA, E. Representações sociais das comunidades ciganas e não cigana:
Implicações para a integração social. Porto: Alto Comissariado para a Imigração e
Minorias Étnicas.
FONSECA, I. Enterrem-me em pé: a longa viagem dos ciganos. SP: Companhia das
Letras, 1996.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. SP: Centauro, 2006.
HALL, Stuart. ‘Que negro é esse na cultura negra?’. In: ______________. Da diásporaIdentidades e Mediações Culturais. 1.ª reimpressão revista. Organização Liv Sovik.
Belo Horizonte. Ed:UFMG, 2006.
______________. Notas sobre a desconstrução do ‘popular’. In: Da diáspora:
Identidades e mediações culturais; Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La
Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
______________. A identidade cultural na pós – modernidade; Tradução Tomaz Tadeu
da Silva, Guaracira Lopes Louro- 8.ed.- Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
111
IANNI, O. “A metáfora da viagem”. In: Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio
deJaneiro : Civilização Brasileira, 2000.
LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
MARCELO, Ana Sayonara Fagundes Britto. Dissertação de mestrado “Dos cacaueiros
aos umbuzeiros: percurso de recepção das narrativas os magros e a enxada e a mulher
que venceu o próprio destino, de Euclides Neto”, apresentada na Universidade do
Estado da Bahia no Departamento de ciências humanas – Campus I – no programa de
pós-graduação em estudo de linguagens em Salvador- Bahia em 2010.
MEDAUAR, Jorge Emilio. Jorge Medauar conta estórias de Água Preta. São
Paulo/Brasília: GRD/INL, 1975.
MOONEN, Frans. Ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Edição Universitária. 1996.
______________. Os ciganos no Brasil - contribuição Etnográfica. RJ: B. L. Garnier,
1986.
______________. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: 2011.
MORAES Filho, Mello. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. São Paulo:
Ed: Itatiaia, 1981.
______________. Cancioneiro dos Ciganos; poesia popular dos Ciganos da Cidade
Nova. RJ: Garnier, 1885.
MOTA, Ático Vilas-Boas da. Ciganos, antologia de ensaios. Brasília: Thesaurus, 2004.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História, memória e tempo presente”. In: Novos domínios
da história / organizadores Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas. – Rio de Janeiro:
Elsevier , 2012. p. 24-26
NATASHA, Ana da Cigana e NAZIRA, Edileuza da Cigana. Mistérios do povo cigano:
espíritos ciganos, simpatias, receitas e jogos. RJ: Pallas, 2010.
NETO, Euclides Teixeira. O tempo é chegado. Editora: Editus. Ilhéus, 2006.
NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. In: Projeto
História. São Paulo: CEDUC, n. 10, dezembro/1993, p. 9 -15.
ODETE, Maria. (org). Jorge Medauar em prosa e verso. Ilhéus: Editus- UESC, 2006.
OLIVEIRA, Rita Lírio. “Sentidos de viagem em Euclides Neto: do real ao imaginário
n’O tempo é chegado”. In: I Congresso Nacional de Linguagens e Representações:
Linguagens e Leituras do III Encontro Nacional da Cátedra UNESCO de Leitura no VII
Encontro Local do PROLER na UESC. Ilhéus, 14 a 17 de outubro 2009.
112
OLIVEIRA, Lidiane Batista de. Representação Social entre os Povos Ciganos e a
Escola. Ilhéus: Monografia: trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em
Pedagogia da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, junho de 2010.
PEREIRA, Cristiana da Costa. Lendas e Histórias ciganas. RJ: Imago,1991.
______________. Povo Cigano. RJ: 1987;
______________. Os ciganos ainda estão na estrada. RJ: Rocco, 2009.
PIERONI, G. Vadios e Ciganos, Heréticos e bruxas. Os degredados do Brasil-Colônia.
RJ: Bertrand Brasil, 2006
PIMENTA, Emanuel Dimas De Melo. Medauar: o homem que sabia demais. Londres:
ASA Art and Technology, 2008.
POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v.2, n.3, 1989.
_____________. “Memória e Identidade Social”. In: Estudos Históricos. RJ: 1992.
POSSENTI, Sírio. “Dez observações sobre a questão do sujeito”. In: Questões para
analistas do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
QUEIRÓS, B.C. Ciganos. SP: Global, 2004.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. – São
Paulo: Companhia das letras, Belo Horizonte, UFMG, 2007.
SCHERER, M. A voz da cigana. PA: Sulina, 1995.
SOUZA, Lilia. Euclides Neto – Coleção Gente da Bahia. Salvador: Assembleia
Legislativa do Estado da Bahia, 2013.
TEXEIRA, R. Correrias de ciganos pelo território mineiro (1808-1903). BH:
Dissertação apresentada para FFCH da UFMG.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
_______________. Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VISHNEVSKY, V. Memórias de um cigano. São Paulo: Duna Dueto,1999.
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo:
Cia. Das Letras, 1989.
113
FONTES
Obras Literárias
MEDAUAR, Jorge. Jorge Medauar Conta Estórias de Água Preta. São Paulo, GRD;
Brasília, INL, 1975.
EUCLIDE NETO, José Teixiera. O tempo é chegado. Ilheús: Editus, 2006.
Jornal e Álbum familiar
O Diário de Itabuna. “Guarda confessa troca de tiros”. Itabuna: O Diário de Itabuna,
quinta-feira, 15 de março de 1984.
O Diário de Itabuna. “Guarda confessa troca de tiros”. Itabuna: O Diário de Itabuna,
quinta-feira, 03 de abril de 1984.
O Diário de Itabuna. “Fazendeiro foi amarrado e espancado por ciganos”. Itabuna: O
Diário de Itabuna, 03 de Maio de 1980, p. 06.
O Diário de Itabuna. “Ciganos foram condenados por assassinatos em Ubatã”.
Itabuna: O Diário de Itabuna, em 04 de Maio de 1984, p. 02.
114
O Diário de Itabuna. “Evaristo Morais vai acusar em Ubatã”, Itabuna: O Diário de
Itabuna, 27 de Abril de 1984, p. 04.
Jornal de Ipiaú. “A cigana e o destino”, Ipiaú: Jornal de Ipiaú, 20 de Novembro de
1965, ano VI, n. 48. p. 03.
Jornal A Tarde. “Ciganos assaltam e saqueiam: Ceará”, Salvador: Jornal A Tarde, 25
de setembro 1973. p. 1.
Jornal A Tarde. “Ciganos invadem Alagoas”, Salvador: Jornal A Tarde, 10 de julho de
1976. p. 8.
Jornal A Tarde. “Polícia do Maranhão acusada de atacar ciganos na Bahia”, Salvador:
Jornal A Tarde, 29 de dezembro de 1975. p. 9.
Jornal A Tarde. “Ciganos na Lagoa do Abaeté”, Salvador: Jornal A Tarde, 28 de
setembro de 1978. p. 1.
Jornal A Tarde. “Abaeté é uma lagoa escura arrodeada de muita sujeira”, Salvador:
Jornal A Tarde, 16 de julho de 1980. p. 3.
Jornal A Tarde. “Criminosos vão ser levados para Ubatã”, Salvador: Jornal A Tarde,
Salvador: 11 de janeiro de 1981. p. 1.
REBOUÇAS, José Antônio Formigli. Álbum de Família: Perfis e Genealogias.
Itabuna, 1994.
Revistas pesquisadas
REVISTA AGULHA. “Jorge Medauar”. In: Revista Agulha - A Tarde Cultural. Disponível
Online: http://www.revista.agulha.nom.br/jmedauar.html, 16/06/2003.
Fontes Orais
115
Entrevistas realizadas com Gerisnal Fortuna Rebouças em Itabuna, 2014-2015.
Entrevistas realizadas com Ione Fortuna Rebouças em Itabuna, 2014-2015.
Entrevistas realizadas com Jocenir Fortuna Rebouças em Itabuna, 2014-2015.
Entrevistas realizadas com Cosme Fortuna Rebouças em Itabuna, 2014-2015.
Entrevistas realizadas com Renato Tavares Marques em Ubatã, 2014-2015.
Entrevistas realizadas com Jucelho Dantas da Cruz em Feira de Santana, 2015.
Entrevistas realizadas com Gilson Dantas da Cruz em Camaçari, 2015.
116