Propostas para o Trabalho Digno e Emprego de Qualidade
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Propostas para o Trabalho Digno e Emprego de Qualidade
Propostas para o Trabalho Digno e o Emprego de Qualidade Documento realizado no âmbito do Processo do Diálogo Estruturado da União Europeia enquadrado na campanha Trabalho Digno para Tod@s. Ficha Técnica Coordenação Negesse Pina Autoria Filipe Lamelas Magda Nico Manuel Gil Design gráfico e paginação Mom is Proud Dezembro de 2014 ÍNDICE Prefácio 4 Introdução 8 Parte I. Trabalho Digno e Emprego de Qualidade 12 3.1. Dimensão política 13 3.2. Dimensão legal 16 Parte II. Transição para o mercado de trabalho: a ponta do iceberg 4.1. A transição para a vida adulta: um conceito, múltiplas abordagens 4.2.1 Propostas Parte III. Evolução do mercado de trabalho 18 19 22 28 5.1. Do modelo clássico ao modelo dualista 29 5.2. Precariedade e condições de trabalho 33 5.2.1 Precariedade Laboral 5.2.1.1. O tratamento constitucional e legal 5.2.1.2 A situação em Portugal 5.2.1.3. Propostas 34 37 39 40 5.2.2. Condições de trabalho 5.2.2.1. Combater a dualização e fomentar a participação 5.2.2.2. Propostas 5.2.2.3. Aprofundar algumas soluções específicas para melhorar as condições de trabalho dos jovens 42 42 44 46 Parte IV. Os Jovens e os Regimes de Segurança Social: uma Relação Disfuncional 49 6.1. A segurança social em Portugal – uma conquista de Abril 50 6.2. O modelo de segurança social e a juventude em Portugal – uma relação disfuncional 52 6.3. Uma segurança social para todos: a necessidade de uma mobilização política e um diálogo intergeracional em torno de um novo modelo de segurança social 55 6.3.1. Propostas 56 Parte V. Considerações Finais 57 Bibliografia 60 Anexo 65 Prefácio O Documento Propostas para o Trabalho Digno e o Emprego de Qualidade resulta da reflexão de um grupo de investigadores independentes criado no âmbito da campanha “Trabalho Digno Para Tod@s”, promovida pelo Conselho Nacional de Juventude (CNJ), desenvolvida no âmbito do Processo de Diálogo Estruturado da União Europeia e englobada no quadro renovado de Cooperação Europeia no domínio da Juventude 2010-2018. Este quadro renovado de Cooperação Europeia define os princípios do “Diálogo Estruturado” (DE) com os jovens e organizações de juventude de modo a que seja fomentada a participação dos jovens na construção da Política de Juventude da União Europeia (UE), e para que a opinião e a voz da juventude seja ouvida pelas instâncias europeias. O Diálogo Estruturado (DE) é um processo que promove o debate conjunto entre jovens e decisores públicos sobre as prioridades, implementação e acompanhamento da cooperação europeia no domínio da juventude. É um mecanismo de consulta e auscultação que deve sustentar a política de juventude, tanto a nível nacional como europeu. A implementação do DE em cada Estado-Membro é coordenada pelos Grupos de Trabalho Nacionais (GTN), cuja coordenação em Portugal cabe ao CNJ, incluindo também decisores públicos e políticos, técnicos na área da juventude, especialistas/académicos e representantes das organizações de juventude. A Emancipação Jovem foi definida, em 2014, como área prioritária para a intervenção do CNJ. Com efeito, este é um tema que assume toda a centralidade e relevância quando falamos em juventude, designadamente num contexto de crise financeira e de aumento do desemprego, particularmente o desemprego jovem, levando a que a autonomia dos jovens possa estar seriamente comprometida a curto e/ou médio prazo. Ademais, no que concerne a políticas de juventude, o tema da emancipação jovem é atualmente um dos tópicos centrais da agenda das instituições europeias, que procuram fomentar a plena autonomia, a capacitação e a participação dos jovens. Aliás, é desde a revisão parcial das metas de Lisboa (Crescimento e Emprego 2005-2009), através da adoção do Pacto Europeu da Juventude, que os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia reconheceram formalmente a importância de um investimento estratégico em Capital Humano, com vista à prossecução de um desenvolvimento sustentado e sustentável, baseado numa economia do conhecimento, e na formação dos jovens europeus, como agentes promotores do empreendedorismo social e económico. O emprego jovem é, assim, um pilar estrutural na construção de um presente e futuro mais sustentáveis para as novas gerações, e deve, também por isso, ser considerado não apenas como uma ferramenta instrumental, mas como condição de realização pessoal e coletiva, completado por mecanismos que permitam o desenvolvimento de um projeto de vida, com partilha de risco, solidariedade, oportunidades e liberdade de escolha. O CNJ tem sido um agente ativo no diálogo social e no quadro da sua concertação, por entender que os jovens hoje – pelas dificuldades de acesso ao emprego, a prestações sociais e a garantias de segurança social – têm claros constrangimentos no acesso à habitação e à constituição de família, colocando-os à margem do sistema social. Exemplo disso são as alterações efetuadas ao Código Laboral, bem como o aumento da idade legal de reforma, que terão um forte impacto nas condições de vida dos jovens. 5 O fenómeno da crise está a agudizar a pobreza em alguns países da Europa, especialmente no Sul. Consequência disso é o elevado número de jovens desempregados no espaço europeu (23,7%), transformando-os, assim, na classe menos protegida, implicando um aumento de vínculos precários neste segmento da população. A precariedade tem causado nos jovens um sentimento de instabilidade, que leva à dependência em relação à família, à incerteza em relação ao futuro que não permite fazer planos, à falta de segurança no trabalho, a salários desiguais entre homens e mulheres, à dificuldade em conciliar a vida familiar e profissional. Assim, o CNJ desenvolveu a campanha “Trabalho Digno Para Tod@s” que pretende fomentar a discussão entre os jovens, empregadores, decisores políticos e a sociedade em geral sobre questões relacionadas com a necessidade da criação de trabalho digno e emprego de qualidade para os jovens em Portugal. Objetivos Específicos para os Decisores Políticos: • Incentivar a implementação de medidas que levem a que os jovens tenham as mesmas condições de trabalho, remuneração e direitos que os outros trabalhadores e que previnam a discriminação contra os jovens em razão da idade; • Incentivar o Governo a combater mais eficazmente a utilização abusiva de todas as formas de trabalho precário; • Chamar a atenção dos decisores políticos para a importância de medidas que promovam a conciliação entre a vida profissional e familiar. Objetivos Específicos para os Jovens: • Consciencializar os jovens sobre a importância do trabalho digno e do emprego de qualidade; • Incentivar a procura de informações sobre os direitos dos jovens no que diz respeito às leis laborais; • Estimular a participação dos jovens mais ativamente na luta contra a precariedade no trabalho; • Fomentar a discussão junto dos jovens sobre novas formas de combate à precariedade laboral. Objetivos Específicos para os Empregadores: • Fomentar a discussão sobre trabalho digno e emprego de qualidade; • Incentivar os empregadores a combater a precariedade na contratação; • Motivar os empregadores para a aplicação da política não discriminatória no que se refere ao salário. Trabalho Igual – Salário Igual. 6 No âmbito desta campanha, o CNJ assinalou o Dia Internacional do Trabalho Digno, através da realização de um seminário, no passado dia 7 de outubro de 2014, em Cascais. Deste dia resultaram vários contributos sobre os temas em discussão e que são alvo de reflexão neste documento. As conclusões desde seminário, onde participaram sobretudo jovens e dirigentes associativos, mas também responsáveis políticos e institucionais, parceiros sociais e especialistas, encontram-se em anexo. O presente documento resulta do trabalho desenvolvido por um grupo de investigadores independentes, constituído por um conjunto de jovens peritos de diferentes ciências sociais, contendo, por isso, diversos contributos que se sintetizam numa linguagem técnica que não pode ser dissociada desses diferentes saberes. Tal justifica, por exemplo, que em determinados momentos, a linguagem e os conceitos presentes no documento tenham, por um lado, um cariz mais sociológico e noutros surjam predominantemente associados a uma certa hermenêutica jurídica ou à própria economia política. O conteúdo desde documento é, assim, da inteira responsabilidade dos seus autores. O nosso muito obrigado ao Filipe Lamelas, Magda Nico e Manuel Gil pelo seu contributo. As propostas que aqui se apresentam são essencialmente pistas para reflexão e debate, mas que se pretende que venham a ter uma consequência concreta, e são provenientes de uma alargada diversidade de opiniões e perspetivas, dada a composição do Conselho Nacional de Juventude. Queremos, com o documento que construímos, lançar um amplo debate sobre como promover o Trabalho Digno e o Emprego de Qualidade para uma juventude que cada vez mais precisa de políticas sectoriais concretas e objetivas. Acreditamos que estas são aspirações reais da juventude, e queremos contribuir com propostas que, não sendo a exigência inflexível do CNJ, são em si um meio para ajudarmos a alcançar o objetivo central: construir em Portugal um futuro digno e de qualidade para a Juventude. Por último, reforçamos a intenção de discutir o conteúdo deste documento com diferentes parceiros sociais, deputados, membros de governo, empregadores e os jovens em geral, de acordo com o espírito do Processo de Diálogo Estruturado, criando, assim, condições para que possamos tornar as propostas mais condizentes com a realidade do país e a vontade dos jovens e das nossas organizações. Esta discussão alargada servirá para que possamos sustentar as nossas tomadas de posição no âmbito do emprego que se querem participadas, críticas e co-construídas. A Direcção do Conselho Nacional de Juventude 7 Introdução As questões contemporâneas sobre trabalho digno e qualidade no trabalho atravessam o tempo e o espaço social. Dizem respeito a todas e a todos, ativos e inativos; empregados e empregadores; em situações de emprego, subemprego ou desemprego; com ou sem contrato; em situações mais e menos acentuadas, ou mais e menos continuadas de precariedade; aos mais novos ou recém-chegados ao mercado de trabalho e aos mais velhos e mais experientes. As questões – preocupantes – relacionadas com as ameaças contemporâneas ao exercício e ao direito a um trabalho digno correspondem a um fenómeno social total. Independentemente das franjas mais direta ou acentuadamente afetadas, os fatores que ameaçam a existência ou permanência de um trabalho digno exercem efeitos negativos na qualidade de vida dos indivíduos de todas as unidades geracionais de uma sociedade – sejam eles crianças, jovens, adultos ou idosos – em todas as esferas da vida e não apenas na do trabalho/emprego ou rendimento/sustento (família, saúde, educação, etc.). Os efeitos da experiência – socialmente desprotegida e legalmente impune – de um trabalho não digno são, ainda, repetidos e/ou continuados no tempo, e de efeito duradouro. Representando então uma espécie de polvo social, o trabalho, e a dignidade com que o mesmo pode ser exercido, deve, por isso, reclamar a maior e mais urgente atenção pública, política e científica. Este documento pretende precisamente dar um pequeno contributo nesse sentido. Mas por que motivos então falar de trabalho digno e emprego de qualidade num documento que, aparentemente, e apenas aparentemente, diz respeito exclusivamente aos indivíduos mais jovens? Estes prendem-se essencialmente com as três ordens de motivos mencionadas anteriormente (aspeto holístico, aspeto intergeracional e aspecto temporal), mas em associação (a) ao facto de o período da transição para a vida adulta ser por natureza e por excelência “demograficamente denso”, isto é, um relativamente curto período da vida onde grande parte dos acontecimentos demográficos (e não só) geralmente ocorrem – acabar os estudos, entrar e tentar manter-se no mercado de trabalho, sair de casa dos pais, viver conjugalmente, ter filhos – e, em segundo lugar, (b) ao facto de qualquer dinâmica de exclusão social (entre as quais se sabe que o desemprego, especialmente o continuado ou repetido; a precariedade; o assédio moral no trabalho; a deficiente qualidade de vida no trabalho; etc. são exemplares) que seja vivida enquanto criança ou jovem ter repercussões de maior duração, mais graves, mais objetivas, mais profundas psicologicamente e, por fim, mais integrais, do que a ‘mesma’ dinâmica vivida em idades mais avançadas. É, por isso, não mais importante ou necessário, mas simplesmente mais urgente, falar de trabalho digno a partir de uma perspetiva da juventude. São dois os motivos adicionais que justificam a urgência, e a importância, de um documento desta natureza: por um lado, o facto das mudanças mais recentes no mercado de trabalho em geral, e, em particular, em Portugal, – como a terciarização, a flexibilização e a precarização – afetarem os recém-chegados ao mercado de trabalho. Estes, por norma, são constituídos por indivíduos mais jovens que inauguram, sem a experiência ou a informação necessária e, consequentemente, sem os instrumentos adequados ou suficientes para a reivindicação dos seus direitos, as novas formas de trabalho não digno, não obstante as suas mais elevadas qualificações médias por comparação a outras gerações; acrescendo ainda o facto de os jovens serem das camadas da população mais diretamente afetadas pela crise económica vivida em Portugal. Mas para além da pluralidade dos efeitos negativos da vivência de um trabalho que não cumpra os requisitos do trabalho digno, também as definições de trabalho digno e de 9 qualidade de vida no trabalho são plurais. Desde definições top-down, como as sugeridas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e mais dirigidas à questão do trabalho digno e aos direitos do trabalhador e direitos humanos; até às definições bottom-up, como as que são sugeridas por indicadores construídos – e amadurecidos – após consulta aos indivíduos (entre as quais as do European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions (EuroFound) devem ser inevitavelmente mencionadas), mais direcionadas pela gradação, relação e ranking dos vários indicadores de qualidade de vida no trabalho; passando pelos enquadramentos legais específicos a cada contexto nacional, são muitos os aspetos considerados definições de trabalho digno. A complexidade polifacetada – bem como objetiva e ‘subjetiva’ – do conceito é, de certa forma, inversamente proporcional ao consenso encontrado para a sua definição e para a sua operacionalização. A definição dada por Esping-Andersen ilustra esta complexidade, ao afirmar que o grau de dignidade de um trabalho pode ser medido pelo “grau segundo o qual aos indivíduos ou às famílias é possível manter um nível de vida socialmente aceitável, independentemente da participação no mercado” (1990; 37); bem como a de Hodson (em Cruz, 2010): “A dignidade económica é concretizada pela posse de um salário que permita assegurar todas as necessidades e pela igualdade de oportunidades. A dignidade é concretizada mediante um número restrito de atos de resistência contra abusos e uma conduta que permite aos trabalhadores sentir orgulho do seu quotidiano laboral.” Antes das considerações sobre a natureza deste documento e do seu enquadramento, são absolutamente necessárias duas notas sobre os grupos dos “jovens”, ambas esclarecendo a posição equidistante dos autores relativamente às abordagens geracionais e classistas no estudo das realidades e condições juvenis. Uma nota tem que ver com o uso deste termo, necessariamente simplista e redutor de uma realidade heterogénea. O uso deste termo neste documento não pretende negar a profunda heterogeneidade social (e até etária) que o compõe. Apenas se pretende enfatizar os aspetos que, independentemente das coordenadas sociais em que o indivíduo jovem se move, são mais, ou com maior gravidade, experienciados por via da idade dos indivíduos. Não se pretende, desde modo, negar a existência de desigualdades de género, território, sociais, entre outras que, no interior da categoria dos “jovens”, operam. Por outro lado, e esta seria a segunda nota, não se pretende igualmente exacerbar as desigualdades geracionais ou o conflito intergeracional, mas sim abordar com mais veemência os aspetos problemáticos que, sendo comuns a todas as gerações ativas e inativas, são mais preponderantes ou urgentes entre os jovens. Este documento segue, na sua natureza, dois grandes princípios associados ao desenho de políticas de juventude. O primeiro refere-se à ideia de “knowledge-based youth policy” que, por princípio, define que as políticas para jovens devem ser construídas em resposta a questões identificadas por campos idóneos politicamente, entre os quais se pode identificar o da investigação. Isto porque as políticas de juventude não devem constituir-se como exercícios ideológicos. Além disso, a ideia de “conhecimento” em que se deve basear o conteúdo dessas mesmas políticas é aqui encarado como multidisciplinar e multimétodo, como aliás a composição da equipa que elaborou este documento e a variedade de perspetivas e de tipos de dados: quantitativos, qualitativos, documentais). Isto porque um só olhar disciplinar não poderia dar conta de um fenómeno tão complexo e, simultaneamente, porque não apenas através de estatísticas deve pensar-se e propor-se soluções para um problema social e/ou político. O segundo princípio transversal a este documento é o da necessidade de “cross-sectorial youth policy”. Ao longo do documento, não apenas da apresentação das propostas mas também da apresentação dos conteúdos propriamente ditos, ficará claro o argumento 10 de que qualquer política, programa, ou ação pensados para resolver problemas que parecem específicos à juventude ou específicos à esfera do trabalho, terão de ser pensados interministerialmente e intersetorialmente (setor público, setor privado e terceiro setor – onde muito do trabalho atípico se desenvolve). Por fim, as propostas apresentadas ao longo deste documento devem ser encaradas como linhas orientadoras, que, como um todo, pretendem começar a “cercar” legalmente o problema do trabalho digno. Serve o presente documento, portanto, para oferecer oficialmente estas propostas para discussão no espaço público e político. 11 PARTE I Trabalho Digno e Emprego de Qualidade 3.1. DIMENSÃO POLÍTICA Existe, a nível europeu e internacional, um longo trabalho de concetualização e de definição dos conceitos de Trabalho Digno e Emprego de Qualidade realizado pela OIT, no âmbito da Agenda para o Trabalho Digno, lançada em 1999 1. A promoção da Agenda do Trabalho Digno é o desígnio central da OIT e tem em vista o acesso de homens e mulheres a um trabalho produtivo em condições de liberdade, de equidade, de proteção e de dignidade humana. A Agenda assenta em quatro objetivos fundamentais: 1) Promover o emprego através da criação de um ambiente institucional e económico sustentável. 2) Desenvolver e reforçar medidas de proteção social – segurança social e proteção dos trabalhadores – sustentáveis e adaptadas às circunstâncias nacionais. 3) Promover o diálogo social e o tripartismo (governos, empregadores e sindicatos). 4) Respeitar, promover e aplicar os princípios e direitos fundamentais no trabalho. Este conceito é na sua essência um apelo à reforma da governação na era da globalização, de modo a torná-la mais justa e inclusiva, sem que a dignidade das pessoas tenha de se submeter a interesses económicos e financeiros2 . Esta noção pressupõe também que o crescimento económico e a dignidade humana têm de ser pensados em conjunto, e que os direitos dos trabalhadores devem estar no centro de todas as políticas de desenvolvimento económico, financeiro e de proteção social. Ao longo dos últimos anos, várias campanhas pelo Trabalho Digno foram lançadas pela OIT (como o Fórum da OIT sobre o Trabalho Digno para uma Globalização Justa, em 2007, em Lisboa) e outras organizações internacionais de trabalho como a International Trade Union Confederation e a SOLIDAR (entre outras3), com a campanha Decent Work, Decent Life4 , entre 2005 e 2009. A necessidade de abordar os direitos laborais, de emprego e a proteção social foi também incluída nos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio como resultado do trabalho do movimento em torno do Trabalho Digno. Porém, as ações deste movimento focaram-se muito na melhoria das condições laborais dos países em desenvolvimento, tendo, por esta razão, refletido muito pouco sobre a situação nos países desenvolvidos. Com o início da crise financeira e económica em 2007/2008, esta situação alterou-se consideravelmente, com numerosos relatórios da parte de organizações internacionais como o FMI, a OCDE ou a OIT sobre a degradação das condições laborais em todo o mundo, incluindo nos países desenvolvidos. Uma especial atenção foi dada à situação 1 2 3 4 http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_visita_guiada_02_pt.htm http://2009.wddw.org/IMG/pdf/BookletCampaigning_mail.pdf (pagina 4) International Trade Union Confederation, Solidar, the Global Progressive Forum, Social Alert International e a European Trade Union Confederation http://2009.wddw.org/IMG/pdf/BookletCampaigning_mail.pdf 13 laboral dos jovens pelo mundo, com vários relatórios apontando para a emergência de uma geração perdida a nível mundial e para a necessidade dos governos criarem oportunidades de trabalho e de formação de qualidade para mitigar o impacto da crise financeira nas gerações mais novas5. Devido às características laborais próprias aos jovens, o movimento pelo Trabalho Digno associou-se aos movimentos existentes contra a precariedade laboral com várias campanhas, resultando em alianças e parcerias entre movimentos tais como o Euro MayDay em Itália ou o movimento dos “Indignados” em Espanha, com movimentos ligados aos direitos laborais dos emigrantes ou contra a exploração laboral nos países em desenvolvimento. As organizações de juventude como o Fórum Europeu da Juventude (YFJ) e os Conselhos Nacionais de Juventude também contribuíram ativamente para esse debate, lançando campanhas pela dignificação dos estágios profissionais, da carreira de investigador jovem ou pelo reconhecimento do trabalho de juventude, entre outras, tentando deste modo contextualizar o conceito de Trabalho Digno e Emprego de Qualidade em torno da realidade diária dos jovens. Com a crise económica e financeira, a subida considerável do desemprego e da emigração jovem - qualificada e não-qualificada- em Portugal, os conceitos de trabalho digno e de emprego de qualidade voltaram a ganhar preponderância no debate público nacional. Efetivamente, são cada vez mais os jovens portugueses que sentem que as oportunidades de trabalho digno e de emprego de qualidade escasseiam em Portugal, levando muitos a emigrar, ou a considerar emigrar num futuro próximo. Entre os, ainda raros, estudos sobre esta nova vaga de emigração portuguesa, a precariedade laboral, os baixos salários, a falta de empregos que correspondam às suas qualificações e a falta de perspetivas de um futuro melhor em Portugal são apontados como alguns dos fatores principais que levam os jovens a ponderar essa solução6. Nos últimos anos, o Governo Português, assim como outras entidades públicas e privadas, têm procurado solucionar este problema, através de reformas estruturais (revisão do código do trabalho, revisão do sistema de contribuições para a segurança social, etc.) para facilitar o acesso dos jovens ao mercado laboral; ou pela implementação de iniciativas de fomento de emprego, formação e empreendedorismo jovem como o “Impulso Jovem” (agora integrado no programa Garantia Jovem da Comissão Europeia), o “INOV Contacto” ou a mais recente “Aliança para a Juventude”, promovida pela Nestlé. Estas iniciativas privilegiam a aposta na formação dos jovens, na flexibilização do mercado laboral e no incentivo ao livre-empreendedorismo, de modo a criar oportunidades de emprego de qualidade para a juventude portuguesa e, ao mesmo tempo, fazer baixar a taxa de desemprego. Contudo, e como já tinha sido denunciado anteriormente pelo CNJ e pelo YFJ, esta abordagem à problemática do desemprego jovem é superficial e não tem na sua base uma análise profunda sobre a qualidade das oportunidades de emprego e de formação. A abordagem estritamente quantitativa da maioria destes programas contribuiu para que o Estado Português e a União Europeia, através do programa Garantia Jovem, adotassem a máxima segundo a qual “qualquer trabalho é um bom trabalho”, sem tentar 5 6 Alguns exemplos de tais estudos são ILO (2013) “Global Employment Trends for Youth 2013 – A Generation at Risk”, International Labour Office, Geneva e OECD (2010), “Off to a Good Start? Jobs for Youth”, OECD Publishing, Paris. http://www.agrafr.fr/Uploadfiles/files/OAM9-GGEK-348B-4JSP.pdf http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=2&ved=0CC8QFjAB&url=http%3A%2F %2Fwww.zurich.com%2Fportugal%2Fsaladeimprensa%2FEstudo_Emigracao.htm&ei=3LSyU9eGLImP7Abi04GAA Q&usg=AFQjCNGfd720LAo4illwgbLCgYJPRiJNqA&sig2=vjEqWwx2AYmsJDtohoQUWA 14 perceber se essa reinserção no mercado de trabalho é permanente e de qualidade se ou, ao invés, contribui ativamente para a já muito precária situação laboral da juventude portuguesa. O atual enfoque de muitas das políticas de emprego para a juventude em Portugal e na Europa, na rápida “ativação” dos jovens, consiste em inseri-los o mais rapidamente possível7 no mercado de trabalho por via de oportunidades de trabalho, estágio e de formação. Contudo essa ativação revela-se contra-produtiva na medida em que é muitas das vezes concretizada através de trabalhos mal remunerados, precários e com poucas perspetivas de carreira. A falta de um trabalho digno e de um emprego de qualidade para a maioria dos jovens portugueses é uma ofensa grave aos seus direitos enquanto cidadãs e cidadãos de Portugal e da União Europeia. Também as definições de trabalho digno e de qualidade para os jovens têm-se revelado insuficientes na caracterização do problema por precisamente não terem em linha de conta as especificidades dos jovens. É por esta razão que é fundamental iniciar um debate construtivo sobre o que realmente constitui 7 O projeto Garantia Jovem, inspirado no caso finlandês, pretende reintegrar os jovens em menos de quatro meses após o fim dos estudos ou do período de desemprego. 3.2. DIMENSÃO LEGAL A relação laboral caracteriza-se pela desigualdade de armas entre os sujeitos, tanto no momento da celebração do contrato de trabalho como na estipulação das cláusulas que o integram. Precisamente porque o trabalhador tem como única forma de subsistência o seu salário, a legislação laboral tem procurado, ao longo dos anos, atenuar o referido desequilíbrio contratual, autonomizando e acentuando o caráter específico do direito do trabalho. A nível internacional, a Declaração Universal dos Direitos do Humanos (DUDH) preceitua, no seu artigo 23.º, que todos têm direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. De igual modo, prevê que para trabalho igual deverá ser pago salário igual, sem qualquer discriminação, bem como o direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social. Também a Carta Social Europeia (CSE) prevê um conjunto de direitos e garantias no âmbito da relação de trabalho, como a liberdade de emprego, dignidade, justiça e igualdade do trabalho. Mais do que isso, vincula os Estados signatários à adoção de medidas que concretizem essas orientações e princípios, constituindo esse compromisso uma obrigação no sentido de garantir o exercício efetivo do direito ao trabalho de uma forma plena. Por sua vez, o Estado Português, enquanto membro da OIT, também se encontra vinculado a um conjunto de convenções que também integram o acervo do direito do trabalho internacional. A convenção n.º 111, relativa à discriminação em matéria de emprego e profissão, nos termos do seu artigo 2.º, obriga os Estados signatários a definir e a aplicar uma política nacional que tenha por fim promover a igualdade de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda a discriminação. Também a convenção n.º 122, referente à política de emprego, compromete os Estados signatários a desenvolver políticas ativas destinadas a promover o pleno emprego, produtivo e livre. Prevê, ainda, o dever de os respetivos Estados, no âmbito das suas políticas económicas e sociais, tomarem as medidas necessárias para o cumprimento desse objetivo, inclusivamente através da criação de programas específicos. O tratamento normativo internacional desta matéria assume ainda maior relevância visto que o nosso ordenamento constitucional prevê a sua integração na ordem jurídica portuguesa. Ao nível interno, o contrato de trabalho surge definido no Código Civil (CC) como “aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta”. Além disso, o artigo 12.º do Código do Trabalho (CT) elenca um conjunto de indícios que permitem, em caso de dúvida, qualificar a relação como um contrato de trabalho ou não, nomeadamente, o local de trabalho, a utilização de equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes ao empregador, a definição de um horário ou o pagamento de uma retribuição periódica. Também a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra um conjunto de direitos específicos dos trabalhadores (artigos 53.º a 59.º), tanto na sua vertente individual como coletiva. Desde logo, o artigo 58.º obriga o Estado Português a desenvolver políticas de pleno emprego, tendo em consideração a promoção da igualdade, bem como a formação cultural e técnica, e a valorização profissional dos trabalhadores. O direito à segurança no emprego (artigo 53.º) é outro desses princípios estruturantes e significa que, além da proibição dos despedimentos sem justa causa, a contratação a termo ou temporária encontra-se restringida a situações excecionais e apenas é admissível quando se verifique uma justificação legalmente prevista, ou em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho. O mesmo é dizer que, nos termos da CRP, os contratos sem termo são a regra e que os demais contratos atípicos apenas se podem verificar excecionalmente e quando forem devidamente motivados. Por outro lado, o artigo 59.º consagra o princípio da igualdade salarial de acordo com a quantidade, natureza e qualidade, de forma a garantir uma existência digna, ao mesmo tempo que prevê o direito à organização do trabalho de modo a facultar a realização pessoal e a conciliação entre a vida familiar e a atividade profissional. A dimensão coletiva de alguns dos direitos previstos no âmbito das relações de trabalho visam, acima de tudo, privilegiar uma vivência democrática no seio das organizações produtivas. Incentivar a participação dos trabalhadores, nomeadamente através da promoção da negociação coletiva, da institucionalização de um conjunto de estruturas de representação coletiva mas, também, da previsão expressa do direito à greve, é outro dos fins pretendidos por estas normas. O elenco de direitos associados à prestação de trabalho não se esgota nestas disposições específicas. Os princípios da igualdade e da dignidade humana, por exemplo, enformam todo o ordenamento constitucional bem como o próprio desenvolvimento legislativo nesta matéria. Os direitos acima enunciados encontram-se ainda sujeitos a um regime de proteção que vincula o Estado e as entidades privadas. Estes direitos só podem ser restringidos quando se verifiquem situações que o justifiquem, sempre respeitando os princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade. “Trabalho Digno e Emprego de Qualidade”, numa perspetiva jurídica, pode ser entendido como a relação de trabalho 8 legalmente constituída e que respeite, de forma estrita, o conjunto de disposições normativas que a regulam. Nesse sentido, pode dizer-se que é o cumprimento das normas – tanto na dimensão internacional, comunitária, constitucional ou legislativa – que permite a qualificação de uma relação de trabalho como digna e de qualidade. No entanto, esta “neutralidade legislativa” é insuficiente se desconsiderarmos as demais dimensões no âmbito da definição de políticas públicas nesta matéria. 8 Através da celebração de um contrato nos termos do qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas PARTE II Transição para o mercado de trabalho: a ponta do iceberg 4.1. A TRANSIÇÃO PARA A VIDA ADULTA: UM CONCEITO, MÚLTIPLAS ABORDAGENS As mais recentes abordagens à chamada transição para a vida adulta advogam o seu carácter holístico. Tal sucede porque o desenvolvimento do curso de vida nas “três caixas da vida” – mercado de trabalho, habitação e família – são profundamente interdependentes. Analiticamente elas são organizadas por dimensões como a da esfera privada - a passagem da família de origem à nova família ou agregado doméstico, comummente reconhecido como “a saída de casa dos pais” ou “independência residencial” - , a das relações - de relações de dependência para relações de independência - , a das competências - da imaturidade à maturidade - e a da esfera pública, que se caracteriza sumariamente pela transição entre a educação de nível básico, secundário ou superior e o mercado de trabalho remunerado - seja porque formato ou vínculo contratual for (Blatterer, (2009 [2007]). Esta separação cumpre fundamentalmente propósitos analíticos, porque na realidade coletiva e de cada um dos indivíduos, as decisões e os constrangimentos neste período da vida comummente chamado transição para a vida adulta têm em conta uma multiplicidade de fatores, encarados como interdependentes, cujos efeitos recíprocos são fortes e evidentes. TRANSIÇÕES FAMILIARES TRANSIÇÃO HABITACIONAL TRANSIÇÃO ESCOLA - TRABALHO Figura 1. Interdependência entre as esferas de transição para a vida adulta As recomendações para o desenho e operacionalização de políticas de juventude a nível europeu têm este mesmo princípio já incorporado, nomeadamente, através da ideia de que qualquer política de juventude deve ser, ou é por natureza, transetorial, eventualmente implicando cooperação interministerial na sua operacionalização. A título de exemplo, no White Paper de 2001 é referido que “Todos os temas mencionados durante o exercício de consulta, como emprego, educação, aprendizagens formais e não formais, integração social, racismo e xenofobia, imigração, consumo, saúde e prevenção do risco, ambiente, igualdade de oportunidades para homens e mulheres, etc. requererão coordenação entre várias autoridades, tanto ao nível nacional como Europeu; e no European Youth Capital Policy Tool Kit do European Youth Forum, é assegurada a defesa de que “políticas de juventude são políticas transetoriais e integradas direcionadas aos jovens, emergidas das necessidades dos jovens e que cobrem um leque abrangente de áreas das políticas. Para uma política de juventude coerente e construtiva, as autoridades devem abordar os assuntos da juventude de uma forma integrada e deve haver cooperação entre os vários setores das políticas”. Em Portugal, mais especificamente, foi criada, em 2007, a Comissão Interministerial da Juventude (Lei n.º 77/2007, de 4 de Junho) que reconhece “a necessidade da transversalidade nas várias áreas de governação, designadamente, educação, proteção social e habitação num contexto nacional de racionalização económica” em prol de uma estratégia de política de juventude coerente, pluridimensional e complementar e mais eficiente. Na investigação sobre a transição para a vida adulta ainda se verifica muito esta separação analítica. Os estudos sobre a família tendem a concentrar-se na autonomia residencial, formas de conjugalidade e entrada na parentalidade; enquanto que os estudos sobre transição para o mercado de trabalho tendem a estar mais próximos da sociologia ou dos estudos sobre a educação. A sociologia tende a seguir um esforço, nem sempre conseguido, de conciliação das várias correntes. Na lógica de um outro princípio básico do desenho e produção de políticas de juventude – “knowledge-based policy” – estas poderão beneficiar da identificação das grandes tendências sociodemográficas que sugerem e reforçam a necessidade de uma perspetiva holística na produção de políticas públicas dirigidas aos jovens. Entre estas encontramos: 1) A pluralização do curso de vida, processo através do qual os indivíduos, nomeada e especialmente os mais jovens, tendem cada vez mais a acumular vários papéis sociais ou profissionais ao mesmo tempo. Esta importante sobreposição temporal afeta e é afetada pelo mercado de trabalho, especialmente através de dois processos de conciliação: estudo-trabalho (os estatutos de trabalhadores estudantes) e trabalho-família (conciliação entre o trabalho e a vida familiar). Situações particularmente frequentes no chamado período da transição para a vida adulta, devem ser tidas em conta no desenho e concretização de políticas de juventude interministeriais. O caso do Luís: conciliação escola - família - trabalho “O primeiro dos “primos” sem curso superior, Luís decidiu seguir a sua vocação para uma profissão criativa do mundo das artes. Foi com alguma estranheza que esta decisão foi encarada no início, pelos pais, bem como o foi a sua decisão de ser pai aos 24 anos. Luís quis ser pai apesar de saber que “tínhamos tudo contra nós”: a casa pequena, não ter dinheiro para a creche, a insegurança laboral, querer continuar a estudar... Sabia que havia um preço a pagar por estas duas decisões “adultas”, e paga-o todos os dias, numa admirável conciliação dos seus objetivos de vida, também eles multidimensionais. Organiza a sua vida por turnos: trabalha para se sustentar num emprego onde não se revê, estuda e investe na sua vocação, e estrategicamente se desencontrou, nos turnos diurnos e noturnos, com a cônjuge, para que a filha estivesse, até aos 2 anos, sempre com um dos pais. Não há dinheiro para creches. E Luís não desiste de nenhum sonho. Aos olhos das estatísticas, é apenas um trabalhador em part-time.” Fonte: Nico, 2010 2) A acumulação de desvantagens sociais, situação caracterizada por vulnerabilidades sociais acumuladas, expressas geralmente por exclusão social. Também esta situação afeta e é afetada pelo mercado de trabalho. Veja-se, por exemplo, o caso dos NEET (Not in Education, Employment or Training). As políticas de empregabilidade devem adaptar-se à variedade de situações de vulnerabilidade, precariedade e exclusão social, dando especial atenção aos casos em que estas estão sobrepostas, por exemplo, baixas habilitações formais, problemas de saúde, etc.. Em Portugal, o indicador NEET (ou NEEF em português) é já reconhecido formalmente pelo INE. A análise da evolução por subgrupos etários revela que tem aumentado o número de “jovens que se encontra numa situação de estagnação económica e social quase absoluta”, com a exceção do grupo etário que compreende os jovens dos 15 aos 19 e, pelo contrário, com maior incidência nos jovens entre os 20 e os 24 anos (Observatório das Desigualdades, 2014). 3) E por fim, o prolongamento do período chamado transição para a vida adulta. O facto de estes processos ocorrerem num intervalo etário maior e mais adiado do que há algumas décadas atrás tem que ser levado em conta na identificação das condições de acesso dos indivíduos a determinadas políticas de juventude e na definição deste período do desenvolvimento humano propriamente dito, nomeadamente no alargamento dos limites máximos de idade para o acesso a determinadas políticas. 4.2.1 PROPOSTAS A natureza multissetorial e informada em conhecimento ou dados empíricos da política da juventude não deve: 1) Eliminar a necessidade de políticas especificamente direcionadas a um setor – como é o caso, argumentar-se-á de seguida, do mercado de trabalho, ainda que deva ajudar a contrariar as relações de poder que tendem a pautar as relações interministeriais, colocando o Ministério que tutela as questões da juventude com menos recursos objetivos e subjetivos para a ação). Este primeiro ponto está relacionado com a centralidade objetiva e subjetiva que o trabalho ocupa na vida dos jovens, ou com “o valor nuclear da autarcia financeira” (Chaves, 2010). De facto, nas dificuldades sentidas na chamada transição para a vida adulta, as financeiras e de autonomia económica são de primeira ordem, literal e simbolicamente. Sem a perspetiva plausível de sustentabilidade e autonomia financeira básica, todas as restantes transições para a vida adulta ou aquisição de novos papéis sociais ou uma mais intensa, total ou engajada, participação na sociedade, estão claramente comprometidas. É, neste sentido, que a autarcia financeira por via do trabalho deve ser vista como a mais importante mas, ainda assim, é apenas a ponta do iceberg da transição para a vida adulta. 2) Abolir a necessidade de adaptar essas mesmas políticas de juventude à heterogeneidade de condições sociais em que esse grupo etário se encontra. A relação entre ramos e tipos de qualificações e ritmos, padrões e interrupções no mercado de trabalho é muito forte, sendo necessário então tê-la em conta nas estratégias desenhadas para combater o desemprego, subemprego ou precariedade e, talvez até sobretudo, na diversidade das mesmas. Este segundo ponto está mais diretamente relacionado com a complexidade do processo de integração e inserção no mercado de trabalho, causada especialmente pela multiplicidade e heterogeneidade de canais pelos quais as mesmas podem ocorrer. Por exemplo, no relatório da OIT sobre tendências de emprego entre os jovens são identificadas várias medidas que pretendem abordar diferentes escalas e tipos de problemas e barreiras no acesso ao emprego, algumas mais no âmbito da prevenção, outras mais da resolução de nível estrutural ou alternativamente individual (o que por sua vez remete para escolhas inevitavelmente ideológicas e políticas): o combate às barreiras do crescimento do emprego; resolução de desencontros entre a oferta e a procura; promoção de jovens empreendedores e aumento da proteção social (OIT, 2012). Ora, em Portugal, nesta data, a única medida registada era apenas no âmbito da promoção do autoemprego, o que é uma medida claramente insuficiente, de nível mais individual do que estrutural, muito circunscrita a um determinado perfil de “jovem desempregado à procura do primeiro emprego” – qualificado formalmente, e integrado em determinados contextos económicos mais prósperos. O desemprego jovem tem várias causas e afeta jovens com diferentes perfis sociais e educacionais. As políticas para o emprego devem, portanto, ser plurais. Tal é ainda mais urgente se tivermos em conta o aumento da taxa de desemprego e o decréscimo da taxa de emprego sensivelmente na última década e meia, para as quais as respostas políticas têm sido desadequadas ou parciais. Figura 2. Evolução das taxas de emprego e desemprego jovem (15-24 anos), Portugal e UE27. Fonte: Carmo e Cantante (2014) O acesso ao emprego pelos jovens é variável não só ao longo do tempo (ao sofrer influências de longo termo como as macroeconómicas entre as quais a atual crise é um notável exemplo, e de mais curto impacto como as produzidas pela implementação de determinadas políticas públicas), como também segundo as qualificações formais detidas pelos jovens e, entre os que detêm qualificações superiores, segundo a área de estudos (Escária e Madruga, 2012). Esta complexidade e heterogeneidade deve ser tida em conta nas políticas dirigidas ao trabalho digno dos jovens, seja com caráter preventivo e de acesso ao mercado de trabalho, seja com caráter corretivo da precariedade no trabalho e no emprego (aspeto desenvolvido abaixo). A desadequação entre o perfil académico ou vocacional de um trabalhador e o trabalho ou tarefas que desempenha é sentido por muitos jovens como altamente desmotivante. O trabalho é visto como meramente instrumental, não sendo capaz de engajar o indivíduo para melhor desempenhar as suas funções ou contribuir para um bom ambiente de trabalho. É apenas um meio para atingir um fim, e não um fim (para o bem estar e a qualidade de vida) em si mesmo. É o caso de Jorge: O caso do Jorge: arquiteto que trabalha num banco (pelo crédito bonificado) Arquiteto de formação, Jorge descreve-se como um “oportunista” quando se refere ao trabalho que desempenha como empregado bancário e ao facto de aos 30 anos permanecer a viver com o agregado de origem. “Neste momento, é puro oportunismo. Quando conseguir ter um contrato sem termo, terei acesso a crédito bonificado, dado que sou empregado bancário. Por esse motivo, não sair de casa neste momento é puro oportunismo. Se tiver o contrato daqui a três meses, saio de casa daqui a três meses, se tiver daqui a oito, saio daqui a oito. .. Não faz de mim o melhor empregado bancário do mundo mas...”. É um trabalhador sem identidade, motivação ou bem estar profissional. Fonte: entrevistas realizadas no âmbito de Nico, 2011 Essa desadequação remonta muitas vezes ao próprio desacompanhamento e desorientação vocacional a que alguns jovens foram sujeitos. É claramente o caso de Telma que afirma: O caso da Telma: “nunca soube o que ia fazer” Telma, com origem social média baixa, admite que quando terminou a escolaridade obrigatória, não sabia que o iria fazer de seguida. Então foi para um curso técnico de administração, sem saber para que profissões esse curso a iria levar. “Eu nunca soube o que iria fazer. Só queria trabalhar. Há pessoas que sabem o que querem ser quando forem mais velhas. Eu nunca soube”. Fonte: entrevistas realizadas no âmbito de Nico, 2011 Neste sentido, e tendo como objetivo permitir uma transição vocacionada para uma inserção faseada mas plena no mercado de trabalho, destaca-se um conjunto de propostas a adotar: 1) Criação de uma «Bolsa Jovem» para jovens à procura de emprego9: A «Bolsa Jovem» consiste na atribuição de uma remuneração mensal aos jovens que estejam inscritos no centro de emprego e que estejam ativamente à procura de emprego. O objetivo desta medida visa facilitar a procura de trabalho proporcionando, simultaneamente, uma fonte de recursos alternativa à família, permitindo assim uma procura mais dinâmica e responsabilizadora para os jovens, ao mesmo tempo que promove a mobilidade e a criação de uma independência em relação ao núcleo familiar, tal como deve suceder, por norma, nas situações de transição. 2) Reformulação do funcionamento e organização dos centros de emprego Esta proposta assenta na necessidade de criar departamentos vocacionados para as necessidades dos jovens à procura de emprego e visa estabelecer uma relação de proximidade entre os centros de emprego e os jovens. O seu principal objetivo é permitir superar os períodos de espera e adequar as propostas de emprego ao perfil do jovem desempregado ou em situação ativa de procura de emprego. A medida indicada pressupõe, ainda, além dessa reformulação orgânica, uma formação específica dos funcionários desses departamentos de forma a suprir as carências atuais e orientar os jovens, de forma mais inovadora, dinâmica, célere e adequada às suas reais necessidades e perfil académico. 3) Centralização das várias plataformas online de procura e oferta de emprego, bem como de estágios ou voluntariado, num único site, através da criação de uma interface acessível, permitindo, deste modo, uma melhor e mais eficaz divulgação das ofertas e programas já existentes (tanto a nível internacional, como europeu e nacional). 4) Criação e desenvolvimento de regras precisas e concretas para a realização de estágios a) Propostas relativas a ambas as situações de estágio (curricular ou profissional): i) Criação de um estatuto do estagiário e reformulação da figura do Tutor/Orientador, com a delimitação clara e precisa das suas obrigações 9 Sistema similar ao existente em Inglaterra (Jobseeker’s Allowance – https://www.gov.uk/jobseekers-allowance/overview). (nomeadamente, além de responsável pela avaliação e pelo controlo da qualidade do estágio, deve, também, ser a figura de referência para o estagiário, competindo-lhe dar ordens e instruções, no âmbito do desempenho das funções relativas à categoria profissional desempenhada pelo estagiário). ii) Limite ao número de estagiários que cada empresa/entidade pode empregar proporcionalmente ao número de trabalhadores efetivos (de forma a impossibilitar que o recurso aos estágios se converta numa forma de suprir necessidades permanentes de determinada empresa e, ao mesmo tempo, incentivar a contratação sem termo). b) Propostas específicas para os estágios curriculares: i) Implementação da obrigatoriedade das instituições de ensino fornecerem estágios curriculares sempre que tal seja solicitado pelos estudantes (de modo a permitir um contacto com a realidade do mercado de trabalho ainda no âmbito da formação), devendo para o efeito estabelecer protocolos com entidades empresariais públicas e privadas e ainda com serviços públicos da administração local e central. ii) A duração dos estágios deve ser definida pela instituição de educação, não devendo ser inferior a 60 dias nem superior a 6 meses (exceto nas situações em que essa duração já se encontra prevista e expressamente regulada). iii) Remuneração facultativa (contudo, se o estudante for bolseiro, a bolsa deve continuar a ser atribuída durante a duração do estágio). iv) A competência para a atribuição dos estágios curriculares ficará a cargo da Instituição de Ensino responsável pela formação. A frequência do estágio deverá ocorrer em áreas relacionadas com o plano de estudos e fomentada através de parcerias e/ou acordos com entidades públicas e/ou privadas. Acrescerá a possibilidade do aluno/estagiário propor o seu local de estágio, sendo que a decisão relativa a esta faculdade competirá à instituição de ensino nos termos das áreas lecionadas no âmbito do plano de estudos. c) Propostas específicas para os estágios profissionais: i) Remuneração obrigatória. ii) Obrigatoriedade de o empregador, ao fim de um determinado número de estágios, celebrar contratos de trabalho proporcionalmente ao número de estágios efetuados neste âmbito e em que a dimensão da empresa poderá também servir como critério na determinação dessa obrigação. Caso o empregador celebre contratos sem termo, deverá ter acesso aos benefícios legalmente previstos para estas situações, nomeadamente a nível tributário e de segurança social, sem prejuízo de outras vantagens que contribuam para incentivar a contratação permanente. Caso o empregador opte por celebrar contratos de duração determinada deverá fazê-lo ao abrigo do denominado «contrato de jovem à procura de primeiro emprego» (ver infra), sendo que, no entanto, também neste caso, deverá, ao fim de um determinado número de contratos a termo ao abrigo desta justificação, proceder à contratação sem termo desses trabalhadores continuando a ter acesso aos benefícios legalmente previstos para esta situação. iii) A contratação, a termo ou sem termo, dos estagiários deve ter como critério o seu desempenho. De forma a aferir essa realidade de modo rigoroso e não arbitrário, deve ser implementado um sistema de avaliação dentro da organização vocacionado para a realidade dos estagiários, de forma uniforme e transparente. A avaliação final de cada estágio deverá ser sempre acompanhada pelo parecer do Tutor/Orientador e enviada para os serviços de emprego, permitindo, assim, a sua consulta pelos interessados de modo a facilitar o controlo desta medida pelos centros de emprego e pelos próprios interessados que terão acesso aos documentos relativos à avaliação final. 5) Autonomização e reformulação da figura do contrato a termo para jovens à procura de primeiro emprego, relativamente à legislação atual que prevê a contratação de trabalhadores à procura de primeiro emprego, independentemente da idade). Esta medida visa criar um novo instrumento contratual para as empresas ao mesmo tempo que representa, para os jovens, um meio potencialmente eficaz para a sua inserção no mercado. A criação desta modalidade contratual, a termo resolutivo, exige, no entanto, a fixação de critérios objetivos e definidos de forma a prevenir abusos. Deste modo, poderiam ser contratados ao abrigo desta nova figura, por um período mínimo de 6 meses e máximo de 18 meses: • Jovens com idade entre os 18 e os 30 anos. • Inscritos nos centros de emprego. • Que nunca tenham prestado serviço sob a autoridade e direção de outrem, seja através de contratos a termo ou sem termo. • Impossibilidade de proceder a esta contratação nas situações em que o jovem à procura de emprego já tenha prestado serviço, em concreto através dos denominados recibos verdes, para a empresa que o pretende contratar ao abrigo desta modalidade. • Aplicação das demais regras dos contratos a termo, com especial destaque para a proibição de sucessão entre estes tipos de contratos e os contratos de trabalho temporário ou de prestação de serviços. 6) Criação de um «Guia de Direitos e Deveres Laborais» vocacionado para os jovens, que deverá ser distribuído gratuitamente nos centros de emprego e disponibilizado numa plataforma digital. 7) Reforço da Inspeção Laboral nesta área, nomeadamente numa primeira fase através de fiscalizações preventivas e ações de sensibilização e, posteriormente, através de um controlo reforçado que vise combater as situações de manifesta ilegalidade, bem como de um aumento do montante das coimas por incumprimento da legislação vigente neste âmbito. Em suma, as políticas públicas que incidam sobre o trabalho digno dos jovens: • devem ser necessariamente interministeriais (cooperação ou coordenação entre o Ministério da tutela da Juventude, do Trabalho e outros); • e/ou devem ser concretamente direcionadas aos jovens, ao invés de estarem direcionadas ao mercado de trabalho e serem os jovens meros instrumentos de operacionalização de programadas reconversões ou reconfigurações do mercado; • e devem espelhar a heterogeneidade dos fluxos de entrada no mercado de trabalho (oferta, procura, e reconversão de competências). Evolução do mercado PARTE III de trabalho 5.1. DO MODELO CLÁSSICO AO MODELO DUALISTA A relação de trabalho de carácter estável, duradouro10 e previsível, tradicionalmente denominada como típica, teve o seu advento após a II Guerra Mundial, generalizando-se nas décadas seguintes. Nesse período, foi abandonada a regulação orientada da retribuição (downward adjustements) de cariz taylorista11 e, ao invés, processou-se a transição para uma relação salarial de tipo fordista baseada na “procura de uma permanente integração dos assalariados na economia capitalista” 12 que ocorre por via do denominado círculo virtuoso de crescimento13, assente no consumo de massas permitido pelo crescimento do salário nominal de forma equivalente ao aumento da produtividade. A relação típica de trabalho assumiu-se como corolário dessa economia de base industrial. Até à década de 70, do ponto de vista empresarial, a unidade de produção reunia em si todas as fases do processo produtivo, delimitando o próprio objeto da atividade prestada pelos trabalhadores e a sua hierarquização, ao mesmo tempo que 14 proporcionava, através do sistema de categorias e respetivas carreiras, a estabilidade_ desejada, fundamental para a atividade das organizações representativas dos trabalhadores15 que, verificando a consolidação deste modelo, concentraram as suas reivindicações na matéria retributiva e procuraram assegurar o aumento contínuo dos salários, visando a manutenção ou o crescimento do poder de compra, fundamental para perpetuar o referido círculo virtuoso. Na generalidade dos países ocidentais, na década de 1960, a prestação de trabalho desenvolvida no seio de uma unidade produtiva específica, para um único empregador, estável e segura, devido, nomeadamente, ao controlo administrativo ou judicial dos despedimentos, dentro de um horário determinado, assente em funções específicas e parcelares com conteúdo precisamente definido, encontrava-se generalizada. Também a proteção sindical, o reconhecimento generalizado da negociação coletiva e o direito de intervenção dos trabalhadores na vida da empresa, bem como o direito à reforma e a prestações sociais e familiares, assumiam-se como caraterísticas marcantes deste período. 10 BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, «A mobilidade funcional e a nova redação do art.º 22.º da LCT», RDES, ano XXXIX (XII da 2.ª série), n.ºs 1-2-3, Almedina, Coimbra, 1997, p. 53, caracteriza a relação de trabalho, por si e pelo seu próprio regime, como “duradoura. Satisfaz interesses dos contraentes que se destinam a perdurar no tempo (permanente mão de obra na empresa e, no que se refere ao trabalhador, necessidade de assegurar para si próprio e para os familiares o salário, que constitui a sua base essencial de sustento)”. JORGE LEITE, «Direito do Trabalho na crise (relatório geral)», Temas de Direito do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, p. 23, refere os “empregos estáveis, a tempo completo, com certas garantias de carreira profissional, tendo a empresa como seu lugar exclusivo ou privilegiado”. MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, «Insegurança ou diminuição do emprego? A rigidez do sistema jurídico português em matéria de cessação do contrato de trabalho e de trabalho atípico», X Jornadas Luso-Hispano-Brasileiras de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1999, p. 94, define a relação de trabalho típica como a “relação de trabalho empresarial e industrial, duradoura, com uma integração plena do trabalhador na empresa e à qual está associada um certo nível de tutela”. 11 Sobre as diversas perspetivas relativas à organização do trabalho: KEITH GRINT, Sociologia do Trabalho, Instituto Piaget, Lisboa, 1998. 12 BOAVENTURA S. SANTOS, J. REIS E MARIA L. MARQUES, «O Estado e as transformações recentes da relação salarial», Temas de Direito do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, p. 142. 13 ROBERT BOYER, The Search for Labour Market Flexibility – the europena economies in transition, Clarendon press, Oxford, 1988, p. 7 e ss. e BOAVENTURA S. SANTOS, J. REIS E MARIA L. MARQUES, «O Estado e as transformações...», p. 143. 14 BOAVENTURA S. SANTOS, J. REIS E MARIA L. MARQUES, «O Estado e as transformações...», p. 143, refere, a este propósito, a noção de mercado interno de trabalho. 15 BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, «A mobilidade funcional...», p. 57, refere que a “categorização profissional contribui para controlar o poder diretivo com genuíno acréscimo da capacidade sindical de intervenção”. prestações sociais e familiares, assumiam-se como caraterísticas marcantes deste período16. As crises energéticas dos anos 70 do século XX desencadearam uma crise económica e, a par da integração de inovações tecnológicas na atividade produtiva, alteraram de forma profunda o padrão de inserção ocupacional e contribuíram para a alteração do paradigma fordista de funcionamento e regulação do mercado de trabalho. Efetivamente, no início da década de 1970 os pressupostos económicos que sustentavam o modelo típico da relação laboral sofreram profundas alterações. Desde logo, cessou a tendência de crescimento económico, deu-se o primeiro choque petrolífero em 1973 e assistiu-se, paralelamente, ao eclodir de uma crise monetária e à intensificação da concorrência internacional. Por sua vez, o aumento da taxa de inflação revelou-se fatal para o círculo virtuoso: com a diminuição do poder de compra, o consumo retraiu-se, agravando a já precária situação de algumas empresas. O aumento do desemprego surgiu como uma consequência lógica dessa crise: as empresas tentaram reduzir os custos de produção, nomeadamente, os custos da mão-de-obra. Paralelamente, o modelo de produção assente numa estrutura organizativa piramidal começou a ser abandonado e, concomitantemente, surgiu o imperativo de um «novo» modelo, de «flexibilização», importado das Escolas de Gestão para o mundo do trabalho. Ao garantismo 17 , estabilidade e segurança das relações laborais, sucede o trabalho atípico, o trabalho precário e novas formas de gestão de recursos humanos, nomeadamente a mobilidade, tanto na dimensão funcional como geográfica: anuncia-se o advento de uma nova era no mercado de trabalho, consequência da desagregação do processo produtivo e singra a ideia de que “o garantismo não garante nada que a economia não produza” 18. Certo é que, nos últimos anos, a forma de prestar trabalho alterou-se drasticamente e a realidade nacional revelou-se particularmente permeável na adoção de um conjunto de medidas que modificaram de forma significativa o paradigma da relação de trabalho típica e que, pese embora a sua generalização, faz-se sentir de forma mais intensa e problemática nas categorias de trabalhadores mais jovens. De uma perspetiva interna à própria relação de trabalho, entre outras tendências, destaca-se a introdução e ampliação de normas que permitem maior mobilidade 16 AMÉRICO RAMOS DOS SANTOS, «Competitividade, Flexibilidade e Qualificação: vias para a coesão económica e social na Europa comunitária», RDES, ano XXXIV (VII da 2.ª série), Outubro-Dezembro, n.º 4, Almedina, Coimbra, 1992, caracteriza este período enfatizando a estabilidade de algumas componentes, destacando: “rápido crescimento do volume de emprego; especialização acompanhada de desqualificação e obsolescência progressiva das qualificações em segmentos fundamentais da população ativa; crescimento do salário real mas sem alteração profunda da repartição do rendimento; intervenção de parceiros sociais representativos e intervenientes em processos de negociação de condições de trabalho de âmbito nacional; regulamentação extensiva das condições de trabalho; intervenção forte do Estado, em particular na Europa e seguindo a tradição keynesiana, no funcionamento do mercado de trabalho; generalização de sistemas públicos de garantia de rendimentos mínimos e de proteção no desemprego.” 17 MÁRIO F.C. PINTO, «Garantia de emprego e crise económica; contributo ensaístico para um novo conceito», RDES, ano XXIX (II da 2.ª série), n.º 4, Outubro - Dezembro, Almedina, Coimbra, 1987, p. 436. p. 437. 18 MÁRIO F.C. PINTO, «Garantia de emprego...», p. 437. funcional 19 associada à dinâmica contratual – por oposição a uma visão estática do contrato de trabalho – e que possibilitou uma relativamente pacífica implementação de novos procedimentos, técnicas ou equipamentos através do desempenho alternativo – ou, por vezes, cumulativo – de diversas funções pelos trabalhadores que laboram em determinada organização produtiva. Do mesmo modo, a estrutura do trabalho passou a assentar na dinâmica de grupo, que pressupõe novos modelos de avaliação dependentes, maioritariamente, da contabilização do desempenho e da produtividade sem que, muitas das vezes, se revelem de forma clara os critérios dessas avaliações. De igual modo, os vetores dessas avaliações são, na maioria das situações, impostos pela própria empresa, sem diálogo com os trabalhadores ou com as suas estruturas coletivas de representação e sem que haja um mecanismo de supervisão e controlo desses mecanismos. A par da tendência de «revitalização» da relação de trabalho, procurando adaptá-la às novas realidades, flexibilizando-a20, surgiram – ou pelo menos, foram reabilitadas, reconhecidas ou distinguidas com tratamento normativo –, do ponto de vista da natureza do vínculo, novas formas de prestar trabalho que, além de constituírem um recuo da tendência protetora característica da era fordista, subverteram o modelo clássico da relação laboral. O surgimento, ou reinvenção, das «novas» formas de prestar serviço, sob a autoridade e direção de outrem, centra-se em pilares comuns como a «policefalia» de sujeitos, a variabilidade da duração da execução do trabalho, a determinação e delimitação temporal da prestação 21 em oposição a uma tendente perpetuidade do vínculo, ou o recrudescimento de formas de trabalho pretensamente autónomas como meio de contornar a subordinação jurídica. Assistiu-se, deste modo, à transição para um mercado de trabalho dualista, que o próprio Direito do Trabalho reconheceu e legitimou, não só por força da exteriorização do processo produtivo ou pelo recurso generalizado às formas de emprego atípicas mas também porque, dentro do conjunto dos trabalhadores que prestam serviço para a mesma empresa, verifica-se a existência de condições de trabalho distintas, seja no que respeita à remuneração, horários ou funções. Essa dimensão dual distingue, numa primeira linha, um núcleo central interno de trabalhadores, com uma relação de trabalho estável e duradoura, de cariz clássico, surgindo na sua periferia um conjunto de trabalhadores de «segunda linha», munidos de vínculos atípicos e/ou precários. Igualmente preocupante é que, no que respeita às condições de trabalho, também se verifiquem diferenças assinaláveis, fruto das sucessivas reformas legislativas que têm 19 A definição do leque de funções devidas pelo trabalhador constitui um elemento fundamental na gestão dos recursos humanos, encontrando-se a necessidade da sua delimitação a montante das demais vertentes relativas ao modelo de «flexibilização» e que dizem respeito à organização, no tempo e no espaço, da prestação de trabalho. Sobre esta temática, entre outros, MONTEIRO FERNANDES, «A categoria profissional e o objeto do contrato de trabalho», QL, ano V, n.º 12, Coimbra Editora, Coimbra 1998; BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER – «A mobilidade funcional...»; JORGE LEITE, «Flexibilidade Funcional», QL, ano IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1997; JOSÉ JOÃO ABRANTES «Flexibilidade e Polivalência, I Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1998 e CATARINA CARVALHO, «O exercício do ius variandi no âmbito das relações individuais de trabalho e a polivalência profissional», Juris et de Jure – Nos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, UCP, Porto, 1998. 20 AMÉRICO RAMOS DOS SANTOS «Competitividade…», p. 266, distingue “A flexibilidade da tecnologia” que pode ser “observada em três planos: tecno-produtivo (flexibilidade de inputs, volume, processo de produção, variedades, tipos e gamas de produtos); funcional (flexibilidade dos conteúdos e das funções exigidas pelos postos de trabalho) e organizacional (passagem de estruturas hierárquicas a estruturas orgânicas)” da “flexibilidade do trabalho”, que pode ser atingida através de diversos instrumentos: “flexibilidade do emprego (flexibilidade do nível de emprego, da duração e do ritmo de trabalho); flexibilidade salarial (flexibilidade dos salários diretos, salários relativos inter-qualificações) e mobilidade (geográfica, profissional)”. 21 Ou pré fixação do tempo de vida do contrato, nas palavras de JORGE LEITE, «O direito do trabalho na crise...», p. 30. pretendido fomentar uma batalha geracional: os trabalhadores com maior antiguidade no seio de determinada estrutura produtiva mantêm um conjunto de direitos a que os trabalhadores com menor antiguidade (ou em situação precária), na maioria das vezes não têm acesso, sempre a pretexto de que a economia não permite sustentar a mesma realidade para todos. O que é inegável é que, no limiar do séc. XXI, a flexibilidade das normas laborais não resolveu os problemas económicos 22 e tão pouco revitalizou os mercados mundiais. De resto, nada faria prever que tal acontecesse até porque, na sua generalidade, as reformas legislativas operaram num cenário de crise, de imediatismo e de resolução rápida. Ao invés de ter promovido o aumento do emprego e a inserção ocupacional de diversas franjas da população, fomentou-se a precariedade e as formas de trabalho atípicas, olvidando-se que as relações laborais têm uma “natureza concomitantemente social, económica, política e cultural”23 e que a subordinação da dimensão social do trabalho e respetivo conteúdo normativo à flutuante realidade económica teve consequências nefastas a diversos níveis, sendo evidente a falência do modelo da flexibilidade24. Urge, por isso, que a relação típica de emprego deixe de ser encarada como uma área jurídica de privilégio25, que convive pacificamente com demasiados ghettos laborais, alicerçados na parca proteção jurídica do prestador de trabalho, para se tornar na realidade dominante, promovendo-se deste modo, a dignidade da pessoa humana, princípio estruturante do Estado português. 22 É clara a exposição de NUNO TELES, num artigo publicado no Le Monde diplomatique, n.º 14, II série, Dezembro 2007, quando salienta a “existência de uma taxa de desemprego natural (NAIRU, Non-accelarating Inflation Rate of Unemployment), abaixo da qual a inflação dispararia. Tal taxa é calculada a partir do crescimento económico potencial, que corresponde ao pleno uso dos fatores produtivos disponíveis numa economia. Se o crescimento económico ultrapassasse o seu potencial, as empresas não conseguiriam responder ao aumento de procura com um aumento de produção, reagindo, em alternativa, com um aumento dos preços”.. 23 Parecer da CGTP-IN sobre o “Relatório do Progresso” da Comissão do Livro Branco das Relações Laborais, QL, ano XIV, Coimbra Editora, 2007, p. 44. 24 Conforme refere NUNO TELES, no referido artigo publicado no Le Monde diplomatique, n.º 14, II série, Dezembro 2007, “um recente estudo comparativo dos países da OCDE conclui, que enquadramentos institucionais da organização do trabalho radicalmente diferentes, no que diz respeito à proteção do trabalho, resultaram em taxas de desemprego que não permitem alcançar qualquer correlação”, concluindo que “não existe assim qualquer relação significativa entre a taxa de desemprego e a flexibilização laboral”. 25 A expressão é de RENATO SCONAMIGLIO, «Per una nuova filosofia del diritto del lavoro», Prospettive del Diritto del lavoro per gli anni 80 – Atti del VII Congresso Nazionale di Diritto del lavoro, Milano, 1983, p. 45. 5.2. PRECARIEDADE E CONDIÇÕES DE TRABALHO Conforme referido, a dualização do mercado de trabalho manifesta-se de duas formas distintas. Por um lado, a que respeita à natureza do vínculo, isto é, entre trabalhadores efetivos, pertencentes aos quadros da empresa, perfeitamente integrados na sua organização produtiva e entre aqueles que se podem considerar periféricos, que gravitam em torno dessa estrutura mas que, efetivamente, não a integram, ainda que prestem serviço durante um longo período de tempo. Por outro lado, – e tal pode suceder, inclusivamente no seio dos trabalhadores permanentes ou ser apenas um reflexo da precariedade – é possível verificar que nem todas as categorias de trabalhadores têm as mesmas condições de trabalho ou, pelo menos, a capacidade de usufruí-las em pé de igualdade, seja porque através de instrumento de regulamentação coletiva se prevê que um conjunto de direitos apenas são atribuídos a determinada categoria de trabalhadores ou porque, na prática, a efetivação desses direitos ou garantias é, algumas vezes, cerceada. As categorias de trabalhadores mais expostos a ambas as vertentes desta denominada dualização incluem os jovens, quer seja no que respeita à natureza do vínculo, quer no que concerne às condições de trabalho). A primeira dimensão desse dualismo será tratada, neste documento, a propósito da precariedade, enquanto num segundo momento se procederá à análise de um conjunto de matérias que refletem a dualização das condições de trabalho. Serão ainda referidas algumas temáticas, cujo exercício carece de uma efetiva aplicação da lei, e que, ainda que tenham uma vocação de aplicação universal, dizem particular respeito aos jovens. 5.2.1 PRECARIEDADE LABORAL A precariedade laboral é um tema muito discutido na sociedade portuguesa, próximo de outros processos característicos dos mercados de trabalho contemporâneos como a terciarização do trabalho, ou a flexibilidade laboral, que por sua vez se caracteriza, no que se refere ao trabalho, por mudanças rápidas na quantidade de trabalho necessário, mudanças assinaláveis nas qualificações para desenvolver o trabalho, reflexividade nas tarefas de trabalho que se executam; e no que se refere ao emprego, por acréscimos de externalização do emprego: emprego temporário, subcontratação, enfraquecimento dos contratos a termo incerto e práticas de gestão mediadas (Benner, 2002 in Cruz, 2010: 147). Do ponto de vista analítico, a precariedade no trabalho e a precariedade no emprego devem ser distinguidas. “A precariedade do trabalho reporta à realização de uma atividade que gera sentimentos de insatisfação, de inutilidade social e, no limite, de alienação. Já a precariedade do emprego refere-se à instabilidade e à insegurança provocadas pela fragilidade do vínculo contratual e consequentemente pela restrição dos direitos sociais decorrentes de uma relação contratual estável e duradoura típica das sociedades de pleno emprego desde o pós Segunda Guerra Mundial até inícios dos anos 1970.” (Cruz, 2010:151). Benner propõe quatro ideais-tipo de integração laboral, baseados na relação de dois eixos: a satisfação no trabalho e a estabilidade no emprego. Estabilidade no Emprego INTEGRAÇÃO DESQUALIFICANTE INTEGRAÇÃO ASSEGURADA Satisfação no trabalho INTEGRAÇÃO LABORIOSA INTEGRAÇÃO INCERTA Figura 3. Ideais-tipo de integração Fonte: adaptado de Cruz (2010:152) A precariedade laboral deve, contudo, ser entendida como “um fenómeno transversal do ponto de vista social” que “condiciona, atrasando ou mesmo comprometendo, os processos de transição para a vida adulta” (Nico, 2010). A precariedade deve também ser entendida como um “fenómeno que não só ultrapassa as fronteiras do mercado de trabalho, invadindo as restantes esferas da vida em transição, como é responsável pelos estados de standby em que estas vidas se encontram, seja ao nível habitacional, familiar, escolar ou mesmo identitário. A compreensão deste fenómeno não deve, portanto, esgotar-se esgotar-se na análise do mercado de trabalho” (Nico, 2010: 47). Este fenómeno afeta, particularmente, embora não exclusivamente, os jovens e foi identificado no relatório “Conhecer para Agir: Contributos das Ciências Sociais para o Livro Branco da Juventude” como um dos três fatores que mais contribuem para situações de desigualdade e exclusão social: “as condições laborais precárias, analisadas a partir das contratações a termo certo, do trabalho a recibo verde (que parece constituir uma especificidade portuguesa no contexto europeu), traduzidas em baixos salários, vividas sob a ameaça do desemprego e gerando situações muito problemáticas no contexto circunscrito das famílias desses jovens, na gestão das relações entre gerações ou na construção de expectativas de futuro” (Almeida et al., 2011). O caso da Leonor: na encruzilhada entre a estabilidade e a satisfação “Caiu de paraquedas. Por acaso, foi sorte”. É assim que Leonor avalia parte da sua vida: como algo que lhe acontece, por sorte ou azar. Esta incapacidade em avaliar o alcance das suas ações impede-a de ser capaz de tomar decisões, vendo como irresolúvel a organização das “próximas etapas da vida”. Leonor quer engravidar e ter um trabalho que a faça feliz. Por um lado, gostaria de conseguir decidir avançar para uma gravidez mesmo sabendo que o emprego onde é efetiva lhe proporciona elevados níveis de stress profissional, contexto que considera inadequado para levar a cabo uma gravidez. Por outro, não consegue abdicar da ‘estabilidade’ profissional que considera ser necessária para avançar para a parentalidade. A situação está, deste modo, bloqueada pela incapacidade de contrariar a sua ética de trabalho (que se baseia em fazer sacrifícios em termos de qualidade do trabalho para se ser independentemente do ponto de vista financeiro) para satisfazer o seu desejo de ser mãe.” Fonte: Nico, 2010 O caso da Andreia: no fio da navalha Encorajada pelos pais a ajudar no pequeno negócio de família, a ganhar o seu próprio dinheiro, a conquistar a sua independência gradualmente, a adaptar-se ao que o mercado de trabalho tivesse para oferecer (limpezas, biscates, balcão e mesa, etc.) e a investir o seu tempo e expetativas num curso superior, Andreia, que trabalha desde os 16 anos, atualmente com 26 anos, trabalha numa loja de sapatos, sem qualquer vínculo laboral. A independência habitacional que conquistou com a remuneração do seu trabalho constrange as suas possibilidades de se inserir num mercado de trabalho qualificado e de planear um futuro sequer a curto prazo. A gradual mas determinada entrada no mercado de trabalho, o sucesso escolar e a vontade e concretização de independência habitacional face aos pais vivem lado a lado com a precariedade da ausência de qualquer vínculo laboral, do trabalho desqualificado, de um salário quase mínimo e de uma vida vivida em torno das “contas para pagar” (e do pavor às dívidas que, a qualquer momento, podem ser inevitáveis). Aos olhos das estatísticas, esta jovem nem sequer trabalha. Fonte: Nico, 2010 Embora a precariedade seja um fenómeno relativamente global, cujas respostas em termos de movimentos sociais também se manifestam a esse nível, ela afeta, sempre afetou, não só particularmente os recém-chegados ao mercado de trabalho – os jovens em geral – mas também os jovens portugueses, por comparação aos seus pares de outros países europeus. Com base em dados do Eurostat é possível verificar que Portugal é um dos países onde o desemprego juvenil é mais elevado e onde o período durante o qual a fragilidade do vínculo com o mercado de trabalho é maior (Pappámikail, 2011). A precariedade não olha a qualificações. Ela faz-se sentir, em diferentes ocasiões, com diversos formatos e com intensidades distintas, entre os jovens com mais baixas qualificações e com qualificações superiores. Enquanto que no primeiro são mais frequentes os contratos de trabalho a termo, mas também mais recorrentes e longos os episódios de desemprego, entre os mais qualificados são mais frequentes as inserções não pagas no mercado de trabalho - os estágios não remunerados, por exemplo - , as formas mais atípicas de vínculo contratual - bolsas de investigação, por exemplo - , mas também os recibos verdes, os trabalhos por conta própria, combinados muito mais vezes em regimes de tempo parcial e de pluriatividade (Nico, 2011). Esta, juntamente com a falta de perspetivas de concretização de projetos de vida (Alves et al, 2011.), será uma das causas das mais recentes vagas de emigração. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o perfil típico do emigrante alterou-se nos últimos anos no sentido de uma população mais jovem, mais qualificada e mais equilibrada do ponto de vista do género (Pires et al., 2010 in Grazzi, 2012). Pode, com alguma segurança, afirmar-se que é a falta de dignidade e de qualidade no trabalho e no emprego a principal causa das “Fugas de Cérebros” ou dos "Tetos de Vidro" 26 que caraterizam atualmente o mercado de trabalho qualificado, nomeadamente científico, em Portugal (Delicado e Nunes, 2013). 26 Que se referem grosso modo às fortes mas pouco visíveis desigualdades de género no que se refere à progressão na carreira mas também ao salário, à conciliação trabalho família, etc. 5.2.1.1. O TRATAMENTO CONSTITUCIONAL E LEGAL O sistema de direitos fundamentais consagrados na nossa ordem constitucional assenta num princípio de unidade baseado no arquétipo da promoção da dignidade humana, valor essencial do ordenamento jurídico nacional. Mas a sua efetivação nem sempre se revela pacífica, antes demonstrando um conflito permanente e intrínseco, na medida em que a realização dos direitos de cada indivíduo ou de um conjunto de sujeitos acarreta, na maioria das vezes, uma constrição dos direitos de outras categorias de sujeitos ou de valores comunitários também reputados de essenciais. No domínio laboral essa tensão tem uma vitalidade própria e o conflito face a outras posições subjetivas é permanente, nomeadamente no que diz respeito a realidades de pendor económico. No caso das modalidades contratuais atípicas (v.g. trabalho a termo, trabalho temporário) releva, sobretudo, a sua compatibilização com o direito à segurança no emprego27, prescrevendo o artigo 53.º da Constituição que aos trabalhadores é garantida a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos. A sua consagração constitucional comporta o reconhecimento de que o direito ao trabalho comporta uma dimensão humana, de realização pessoal e como tal subtrai da arbitrária disponibilidade 28 do empregador a livre cessação do vínculo laboral. No seu âmbito de proteção a garantia constitucional abrange, ainda, “todas as situações que se traduzam em precariedade da relação de trabalho”29, o que significa que a relação de trabalho temporalmente indeterminada é a regra e a contratação precária a exceção. Mais do que isso, obriga a que esta modalidade contratual careça de uma razão de ser objetiva, exigindo, paralelamente, um sistema de normas teleologicamente orientado para a sua limitação30. Assim, é comummente referido que a excecionalidade da contratação a termo “constitui um desiderato da garantia constitucional da segurança no emprego” 31 . Tal consideração vale na sua plenitude e pela mesma ordem de razões para o trabalho temporário. Por outro lado, a liberdade de iniciativa económica privada assume duas vertentes essenciais: o direito de criação de empresa e o direito de escolha do objeto e modo de 27 Que, encontrando-se inserido no capítulo dedicado aos Direitos, Liberdades e Garantias dos trabalhadores, está sujeito ao regime de aplicabilidade direta do art.º 18.º da CRP. 28 Ou conforme é referido no Acórdão n.º 107/88 do Tribunal Constitucional: “A garantia de segurança do emprego (…) postula, desde logo, a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e de emprego e a sua não funcionalização aos interesses da entidade patronal”. Em sentido próximo, GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 287, referem que o direito à segurança no emprego revela uma “alteração qualitativa do estatuto do titular da empresa” que, assim, “não goza de liberdade de disposição sobre as relações de trabalho”. 29 GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 289. 30 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 512, evidenciam “que uma situação de contratação diária que se prolongue no tempo, por vários anos, além de não constituir uma forma de organização do trabalho em termos socialmente dignificantes, contende com o princípio da segurança no emprego, com o qual se pretende assegurar ao trabalhador estabilidade no emprego. Na verdade, uma contratação diária irrestrita e de duração global indefinida é (…) a negação de qualquer segurança no emprego, uma vez que terminado o período laboral nenhuma garantia existe de que o contrato continue a poder executar-se”. 31 Acórdão n.º 581/95 do TC, Diário da República, de 22.01.1996. Acrescentando-se que “a garantia constitucional da segurança no emprego pressupõe e implica a garantia da estabilidade na relação laboral, do que resulta ser o contrato de trabalho sem prazo (...) o tipo de contrato que melhor assegura aqueles interesses dos trabalhadores e os fins sociais que a atividade laboral visa realizar”. gestão da empresa32. Este direito de escolha do objeto e modo de gestão da empresa constitui um direito fundamental do empresário e, nesse sentido, é-lhe lícito adotar determinadas medidas que possam conflituar com o conteúdo do direito à segurança no emprego, desde que tal se revele adequado, necessário e proporcional. Os poderes do empregador, isto é, do sujeito contraparte no contrato de trabalho, são conaturais aos interesses dos trabalhadores e continuam limitados pela matriz estruturante do nosso ordenamento constitucional – a dignidade da pessoa humana – e pelo conjunto dos direitos fundamentais destes. Por isso, nesta relação entre empregador e trabalhador, não se verifica uma colisão de direitos, mas antes a constatação da existência de limites intrínsecos à própria liberdade negocial do empregador 33 , compreendendo-se, assim, o primado do direito laboral enquanto conjunto de normas protetoras. Nesse sentido, as modalidades de contratação temporalmente delimitadas (v.g. contratação a termo e trabalho temporário) apenas se furtam à incompatibilidade com o disposto na Constituição Portuguesa sobre a garantia da segurança no emprego porque é reconhecido ao empresário o direito de escolher o objeto e o modo de gestão da sua empresa. Contudo, verificando-se a colisão desses direitos, o direito do empresário de organizar o fator de produção «trabalho» em determinados moldes encontra-se limitado a situações apodíticas, justificadas por necessidades e motivos concretos, orientados para a unidade e coerência dos valores constitucionais em apreço. A concretização, ao nível legal, do princípio constitucional relativo à segurança no emprego obriga a que sejam cumpridos um conjunto de requisitos formais e substanciais de modo a garantir que as contratações a termo e temporária sejam válidas. Desde logo, destaca-se a limitação temporal a que estes contratos estão sujeitos bem como a existência de um conjunto de motivos que justificam a aposição de um termo num contrato de trabalho. 32 Nesse sentido, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, «Limites constitucionais à iniciativa económica privada», Temas de Direito do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, p. 425. 33 E como ensina JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p. 285, “a diferença é importante (...) já que, a entender-se que não há conflito, a solução do problema não tem que levar em conta o direito invocado, porque ele não existe naquela situação” 5.2.1.2 A SITUAÇÃO EM PORTUGAL Apesar da limitação constitucional decorrente do princípio da segurança no emprego e da sua concretização legal, a realidade dos números demonstra que uma percentagem particularmente significativa dos jovens entre os 15 e os 30 anos (40,3%, no primeiro trimestre de 201434) se encontra vinculada mediante a celebração de contratos a termo. Além disso, cerca de 5,8% dos jovens dessa faixa etária encontram-se vinculados mediante contratos de prestação de serviços: os denominados “recibos verdes”35. Estas estatísticas parecem indiciar um abuso no recurso a esta modalidade de contratação que, nos termos da lei, não tem como escopo a satisfação de necessidades permanentes das empresas. Ora, a precariedade, de um ponto de vista laboral, contribui para a “segmentação do mercado de trabalho” e para a “debilitação da posição dos trabalhadores”, o que, por sua vez, resulta numa “distribuição desigual dos salários” e num “sentimento de insegurança”36. De resto, os “trabalhadores contratados a termo auferem, em média, 73% do salário dos trabalhadores com um contrato sem termo”37, o que é ilustrativo dessa desigualdade. Tendo presente esta situação, urge adotar um conjunto de medidas que visem combater esta segmentação, bem como a desigualdade criada em virtude da celebração deste tipo de contratos. 34 35 36 37 Dados fornecidos pelo INE. Dados fornecidos pelo INE. Livro Branco das Relações Laborais, MTSS, 2007, p. 32. Livro Branco das Relações Laborais, MTSS, 2007, p. 39 5.2.1.3. PROPOSTAS Relativamente aos contratos de prestação de serviços (“recibos verdes”): 1) Acentuar a “dependência económica” do prestador de serviços face ao beneficiário da prestação de trabalho como caraterística determinante ou essencial para a qualificação da natureza laboral da relação. 2) Aproximar o regime legal de prestação de serviços (quando executada por pessoa singular) do regime legal relativo ao contrato de trabalho (nomeadamente: instituir os direitos a férias e ao descanso semanal para os prestadores de serviço a título individual; introduzir um limite de horas diários à prestação do serviço a título individual, à semelhança do que já sucede com os direitos de personalidade, igualdade e não discriminação e segurança e saúde no trabalho). 3) Proibir o recurso a esta modalidade contratual quando, na estrutura orgânica da empresa, as funções a desempenhar pelo prestador de serviços correspondam também ao núcleo funcional de outros trabalhadores da empresa. 4) Aumentar as contribuições para a segurança social devidas pelo beneficiário da prestação de serviços e instituir, paralelamente, um sistema de percentagem sobre o montante a descontar para a segurança social consoante o nível de dependência económica do prestador de serviços relativamente ao beneficiário da prestação. Relativamente aos contratos a termo: 5) Estabelecer um limite máximo do número de contratados a termo a prestar serviço numa determinada estrutura orgânica ou secção, calculado percentualmente atendendo ao número de trabalhadores efetivos que aí prestem serviço, podendo esse limite ser desenvolvido através da contratação coletiva, nomeadamente no que respeita a possíveis aumentos dessa percentagem em determinadas situações que se prendam com os ciclos de produção de determinada empresa ou setor, bem como a respetiva diminuição quando os ciclos de produção o justifiquem. 6) Aumentar as compensações devidas pela cessação do contrato de trabalho a termo por motivo não imputável ao trabalhador como forma de compensar a precariedade e insegurança bem como a discrepância retributiva entre os trabalhadores a termo e os efetivos. 7) Aumentar as contribuições para a segurança social devidas pelo empregador no caso dos trabalhadores contratados a termo, com exceção das situações relativas à contratação a termo para fomento de emprego. 8) Reforço da Inspeção Laboral nesta área, nomeadamente através de um controlo ativo por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho, implementado a obrigatoriedade de registo/envio destes contratos para este organismo público, bem como de um aumento do montante das coimas por incumprimento da legislação vigente neste âmbito. Relativamente aos trabalhadores contratados por empresas de trabalho temporário: 9) Maior responsabilização das empresas na contratação com empresas de trabalho temporário, bem como na própria execução dos serviços contratados, nomeadamente: integração dos trabalhadores contratados pelas empresas de trabalho temporário nos quadros da empresa utilizadora quando estas contratem com empresas de trabalho temporário não titulares de licença para o exercício da atividade; maior responsabilização das empresas utilizadoras em caso de incumprimento do regime previsto para a prestação de trabalho temporário. 10) Aumentar as compensações devidas pela cessação do contrato de trabalho temporário por motivo não imputável ao trabalhador como forma de compensar a precariedade e insegurança bem como a discrepância retributiva entre os trabalhadores temporários e os efetivos. 11) Aplicação de uma taxa (agravamento fiscal) às empresas utilizadoras de trabalho temporário que tenham na sua estrutura um número de trabalhadores temporários que exceda uma percentagem calculada tendo por base o número de trabalhadores efetivos que nela prestem serviço. 12) Reforço da Inspeção Laboral nesta área, nomeadamente, através de um controlo ativo por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho, implementado a obrigatoriedade de registo/envio dos contratos de trabalho temporário e dos contratos de utilização para este organismo público, bem como de um aumento do montante das coimas por incumprimento da legislação vigente neste âmbito. 5.2.2. Condições de trabalho 5.2.2.1. COMBATER A DUALIZAÇÃO E FOMENTAR A PARTICIPAÇÃO As condições de trabalho são, frequentemente, o resultado de um processo negocial entre as estruturas de representação coletiva dos trabalhadores e dos empregadores e, desse modo, encontram-se previstas em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho. A precariedade – que atinge cerca de 40% dos jovens entre os 15 e os 30, conforme foi acima mencionado – inibe o exercício dos direitos, tanto na sua vertente individual como coletiva. Efetivamente, tratando-se a precariedade de “uma vivência subjetiva, traduz-se na impotência e no medo. E a incorporação do medo, por sua vez, dá lugar à aceitação ou resignação, isto é, à auto-negação da luta pelos direitos”38. Não raras vezes, esta franja de trabalhadores não exerce os direitos e garantias que decorrem do seu contrato individual de trabalho, dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho aplicáveis, ou até da própria lei, porque, por um lado, desconhecem-nos ou porque, mesmo tendo conhecimento, a atipicidade da relação de trabalho estabelecida, ou melhor, a duração determinada do seu vínculo, impede-os de os usufruírem de uma forma plena, por receio de represálias, mormente a cessação do contrato de trabalho. Vejam-se atrás alguns exemplos de vida reais que exemplificam o poder de standby forçado que a precariedade no trabalho exerce de forma holística sobre a vida dos jovens. A par desta realidade, a análise de alguns instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, e também de algumas práticas empresariais, denota a existência de regimes relativos às condições de trabalho que excluem do seu âmbito de aplicação – ainda que não o façam expressa ou diretamente – um conjunto de trabalhadores cuja antiguidade na empresa é menor, e que normalmente coincidem com os trabalhadores mais jovens. É o que sucede, por exemplo, com a possibilidade de ingresso em determinadas categorias e carreiras profissionais ou até do direito a diuturnidades. O mesmo se pode dizer relativamente a matérias relacionadas com planos de saúde ou no domínio dos complementos de reforma/pensões. Os diversos governos ao longo dos últimos anos têm, de resto, dado o mote ao serem percursores desta tendência nas sucessivas reformas legislativas como sucedeu, por exemplo, com: a generalização de regimes de trabalho privado e, como tal, menos garantidos, no seio da administração pública, aplicáveis por maioria de razão aos mais jovens; as sucessivas alterações ao modo de cálculo das reformas, que só vigoram de forma a afetar os mais jovens em determinado momento, formas de cálculo da compensação devida pela cessação do contrato de trabalho distintas consoante a 38 Elísio Estanque, Relaciones Laborales y Ación Syndicale, Buiza, Alfredo y Perez, Enrique (coords.), Granada: Instituto de Estudios Europeos da Universidad de Valladolid, pp.127-150. Não esquecer também a dimensão indicada por Ana Paula Marques, Revista Portuguesa de Educação, 2009, 22(2), pp. 85-115, Universidade do Minho, 2009: “a fragmentação das relações de trabalho, com incluídos e excluídos, estáveis e precários, empregados e desempregados, ativos e inativos, jovens e idosos… A quebra de solidariedade entre estes diferentes grupos, que pode exprimir, em simultâneo, vários daqueles processos de dualização, contribui para o acréscimo de desigualdades sociais e para a «crise» do Estado Social. As transformações estruturais na natureza do capital e na produção que caracterizam esta nova fase de desenvolvimento do capitalismo parecem inaugurar uma reconversão ideológica para legitimar o modelo atual de mundialização do mercado de capitais, de tecnologia e produtos e, por último, da força de trabalho”. antiguidade na empresa – o que atinge, na maioria das vezes, os trabalhadores mais jovens. Medidas que, por si só, acentuaram e agravaram a dualização das condições de trabalho no mercado de trabalho nacional. Esta é uma tendência que deve ser travada. Nada é mais excludente do que, no seio de uma mesma estrutura produtiva, ter trabalhadores que prestam o mesmo serviço mas que usufruem de condições de trabalho distintas em virtude da sua idade, ainda que não se proceda a essa discriminação de forma direta, mas antes assentando em critérios de antiguidade na empresa. E se há um conjunto de direitos cujo reconhecimento se encontra ligado à antiguidade de um determinado trabalhador (é o caso das diuturnidades) e que têm a sua razão de ser, não faz sentido, no entanto, pretender excluir os trabalhadores mais jovens de ter acesso a essas mesmas condições. O esbater dessa dualização das condições de trabalho não deve, contudo, ser feito à custa do sacrifício dos direitos das gerações mais velhas mas sim através de mecanismos que permitam aos trabalhadores mais jovens ter, igualmente, condições para aceder a esses direitos. Por outro lado, decorrência também do enfraquecimento da dimensão coletiva do trabalho, os contratos individuais de trabalho têm assumido maior preponderância enquanto instrumento privilegiado para estabelecer os termos da relação de trabalho. Não raras vezes, incluem cláusulas que definem o local de trabalho como sendo “todo o território nacional”, sem que haja uma justificação para esse efeito, ou o horário de trabalho como sendo unilateralmente fixado pelo empregador num período compreendido entre as 0h e as 24h. E se há determinadas categorias profissionais cuja não fixação imediata do horário se pode justificar por motivos de produção, em grande parte das situações tal não se verifica. Igualmente determinante para fixar o núcleo da atividade prestada pelo trabalhador é a fixação de uma categoria profissional, perfeitamente definida e delimitada. Estas são questões que, ainda que digam respeito à generalidade dos trabalhadores, afetam a maioria dos jovens que ingressam no mercado de trabalho. Ora, conforme é sabido, o trabalhador, quando assina um contrato individual de trabalho, não dispõe, na maioria das vezes, de qualquer margem negocial e, como tal, aceita o que lhe é proposto. No entanto, a falta de definição de um local de trabalho identificável e real, o estabelecimento de um horário de trabalho ou a descrição das tarefas que integram a atividade contratada acabam por gerar uma espécie de precariedade das próprias condições de trabalho – e que já não diz respeito à natureza do vínculo – porque, não se encontrando definidas, acabam sempre por depender de um ato unilateral do empregador, ainda que a questão possa ser discutida judicialmente a posteriori. 5.2.2.2. PROPOSTAS Nesse sentido, propõe-se um conjunto de medidas de modo a otimizar as condições de trabalho, evitando situações de dualização injustificada: 1) Ao nível das estruturas de representação coletiva: a) Dinamizar a sindicalização dos trabalhadores jovens, nomeadamente através de campanhas informativas. b) Atribuir benefícios, de índole fiscal ou económica, à semelhança do que sucede com as empresas que contratam trabalhadores jovens aos sindicatos que tenham uma taxa de associados jovens acima de um determinado patamar. c) Impulsionar o papel das secções de juventude das confederações sindicais, nomeadamente através da criação e gestão de uma espécie de “passaporte sindical” para os trabalhadores jovens que lhes permita, quando transitam de um determinado setor de atividade para outro, manter a sua filiação sindical sem necessidade de burocracias acrescidas. d) Apoiar a formação de quadros sindicais jovens, nomeadamente através da atribuição de bolsas para o efeito para a frequência de cursos relacionados com a atividade sindical. e) Aumentar o crédito de horas para atividade sindical quando a direção de uma estrutura sindical for composta, em determinada percentagem, por trabalhadores jovens. 2) Ao nível do conteúdo dos instrumentos de regulamentação coletiva: a) Controlar a existência de cláusulas que limitem, para o futuro e a partir de determinada data, o exercício de um conjunto de direitos e garantias em virtude da data de entrada na empresa. Por exemplo, quando se pretender terminar o ingresso numa determinada carreira ou deixar de atribuir diuturnidades para os trabalhadores contratados a partir de uma determinada data, a empresa deve, em primeiro lugar, formular alternativas ou, caso tal não seja possível, comunicar esse facto ao Ministério com competência na área laboral, justificando a medida – seja por razões estruturais, de mercado ou tecnológicas – de modo a que possa haver um controlo efetivo dessas cláusulas. b) Apoiar a inclusão de matérias que regulem, de forma mais favorável e tendo em consideração as possibilidades da empresa, condições de trabalho que normalmente afetam os trabalhadores jovens, nomeadamente a parentalidade e a formação, através de apoio técnico por parte do Ministério com competência na área laboral. . 3) Ao nível do conteúdo dos contratos individuais de trabalho: a) Limitar a existência de cláusulas relativas ao local de trabalho que não definam com precisão um local(ais), estabelecimento(s) ou área geográfica circunscrita, com o propósito de delimitar as situações de transferência. Essas cláusulas serão admitidas quando a impossibilidade de definição de um local seja impossível em virtude da atividade desempenhada. b) Limitar a existência de cláusulas relativas aos horários de trabalho que não definam com rigor o tempo de entrada e saída, bem como as respetivas pausas legalmente obrigatórias. Essas cláusulas serão admitidas quando se verifiquem situações de trabalho por turnos rotativos ou outras que, pela sua especificidade, não permitam que os horários possam ser definidos ab initio. c) Limitar a existência de cláusulas relativas às funções e categorias que não definam de forma detalhada e rigorosa o conteúdo funcional da atividade a exercer, seja por remissão para o conteúdo de uma categoria profissional existente em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou para a lista de categorias profissionais existente ou, na impossibilidade de ambas as situações, de forma expressa no texto do contrato. d) O tipo de cláusulas acima referidas poderão existir caso haja um instrumento de regulamentação coletiva que as regulamente. e) Atualização da lista de categorias profissionais de forma a incluir o máximo de atividades desempenhadas e descrição completa do seu conteúdo funcional. 4) Ao nível da Inspeção: a) Implementar mecanismos de controlo e inspeção no âmbito das propostas supra referidas a executar pela Autoridade para as Condições do Trabalho e, no caso das medidas relativas às estruturas de representação coletiva dos trabalhadores e dos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, pelo Ministério com competência na área laboral. b) Criação de uma Comissão especializada, à semelhança da CITE, de acompanhamento técnico, com competência para formular pareceres e sugestões no âmbito das relações de trabalho estabelecidas com jovens. c) Criação de uma provedoria com competência específica no âmbito das relações de trabalho dos jovens. 5.2.2.3. APROFUNDAR ALGUMAS SOLUÇÕES ESPECÍFICAS PARA MELHORAR AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS JOVENS Finalmente, cumpre referir que as matérias relativas aos tempos de trabalho, à parentalidade e à formação, ainda que afetem a generalidade dos trabalhadores, repercutem-se de forma particularmente significativa nas condições de trabalho dos trabalhadores jovens. Desde logo, trata-se de domínios que contendem com a conciliação entre a vida profissional e a vida familiar. Nesse sentido é, aliás, sugerido pelo relatório “Working conditions of young entrants to the labour market” 39 que “além de medidas especificamente destinadas a gerar oportunidades de emprego, é importante desenvolver medidas políticas que visem melhorar a qualidade desses empregos, por exemplo, em termos de contratos, níveis de salário, horários de trabalho, formação”. No que respeita à formação, em particular ao estatuto de trabalhador-estudante, mais do que enunciar um princípio geral de ajustamento do horário de trabalho à frequência de aulas e realização de provas, deve ser concretizado um conjunto de medidas objetivas que permitam o efetivo aproveitamento dessa condição, nomeadamente: 1) Proibição expressa de aplicação de regimes de adaptabilidade de horários a nível individual (como o banco de horas individual e a adaptabilidade individual), condicionando a aplicação destas modalidades, mesmo quando sejam de cariz grupal ou coletivo, ao acordo dos trabalhadores-estudantes. 2) Redefinição do sistema de faltas aplicáveis ao trabalhador-estudante de modo a incluir, além das provas de avaliação, a realização e apresentação de trabalhos que tenham reflexo na avaliação final. 3) Possibilidade de o trabalhador-estudante poder usufruir de uma licença sem vencimento, a seu pedido, sem que o empregador o possa recusar, com a duração máxima de doze meses – caso o curso tenha a duração de 3 anos e calculada proporcionalmente quando essa duração for inferior – podendo, no entanto, essa duração ser interpolada por períodos mínimos de 1 mês durante os anos letivos, e desde que comunicada com a antecedência mínima de 2 meses; 4) Possibilidade de o trabalhador-estudante poder prestar a sua atividade em regime de teletrabalho, a seu pedido, sem que o empregador o possa recusar, enquanto durar a formação, desde que este regime seja compatível com a atividade prestada pelo trabalhador. Caso o empregador recuse com base na incompatibilidade da prestação, deve justificá-lo por escrito e remeter essa recusa para o órgão com competência inspetiva na área laboral. Um dos elementos determinantes na compatibilização entre a vida profissional e a vida familiar é o regime legal da parentalidade. Também nesta matéria há um conjunto de soluções que devem ser melhoradas de modo a permitir a efetivação deste direito: 1) Apoiar e incentivar, através de mecanismos de cariz fiscal ou relativos às contribuições para a segurança social, as empresas que tenham infantários ou sistemas de baby-sitting. 39 Disponível em http://www.eurofound.europa.eu/ewco/studies/tn1306013s/index.htm. 2) Incentivar as empresas a estabelecer protocolos com infantários próximos dos seus estabelecimentos, com condições de pagamento favoráveis aos seus trabalhadores e prestadores de serviço. 3) Incentivar as empresas a proceder ao pagamento de um subsídio de infantário, aos trabalhadores e prestadores de serviço, quando nenhuma das alternativas anteriormente referidas seja possível. 4) Alargar o direito à dispensa de algumas formas de trabalho (adaptabilidade, banco de horas, ou horário concentrado) a trabalhadores com filhos menores de 12 anos, de forma a permitir a efetiva conciliação entre a vida profissional e a vida familiar. 5) Estabelecer um regime de compensação retributiva a cargo do empregador quando, por determinação deste, o trabalhador com filho menor de 6 anos, em virtude da prestação de trabalho suplementar, em regime de adaptabilidade ou de banco de horas, tiver de pagar um acréscimo à mensalidade do infantário em virtude de o menor ter ficado além da hora estipulada nesse estabelecimento. 6) Alargar o âmbito da proteção em caso de despedimento a trabalhadores que tenham usufruído de alguns dos direitos e garantias previstos no capítulo relativo à parentalidade do Código do Trabalho nos 12 meses anteriores a essa cessação, nomeadamente estabelecendo a presunção de despedimento sem justa causa. 7) Possibilidade de os trabalhadores com filhos menores de 12 anos poderem prestar a sua atividade em regime de teletrabalho, a seu pedido, sem que o empregador o possa recusar, desde que este regime seja compatível com a atividade prestada pelo trabalhador. Caso o empregador recuse com base na incompatibilidade da prestação, deve justificá-lo por escrito e remeter essa recusa para o órgão com competência inspetiva na área laboral. Os tempos de trabalho, isto é, o modo como a prestação da atividade é temporalmente organizada, são igualmente determinantes na caraterização de um mercado de trabalho que visa a promoção do emprego para os mais jovens, bem como a efetiva conciliação entre a sua vida profissional e familiar. Assim, por exemplo, o recurso ao trabalho suplementar de forma menos onerosa para o empregador, como sucedeu na reforma laboral de 2012, é tendencialmente contrário a uma política que vise incentivar a criação de novos empregos uma vez que o empregador, ao invés de proceder a novas contratações para suprir eventuais carências de mão-de-obra, pode alocar, de forma menos dispendiosa, recursos internos à satisfação dessas necessidades. Diferentemente, a diminuição do período normal de trabalho tem um efeito duplamente positivo: gera postos de trabalho e permite uma melhor conciliação entre a vida profissional e vida familiar. Nessa perspetiva, sugerem-se um conjunto de medidas que têm como escopo fomentar essa dupla dimensão: 1) Diminuir o período normal de trabalho para as 39 horas semanais. 2) Procedimentar o recurso ao trabalho suplementar, nomeadamente estipulando a obrigatoriedade de o empregador comunicar essa ordem por escrito, com uma justificação sumária do motivo que fundamenta essa ordem. 3) Aumentar os acréscimos retributivos devidos pela prestação de trabalho suplementar. 4) Garantir a obrigatoriedade de descanso compensatório quando o trabalho suplementar prestado atingir o período correspondente ao período normal de trabalho diário. 5) Quando num serviço/secção/departamento o cômputo do número de horas suplementares efetuadas pelos trabalhadores perfizer um total igual ao número de horas anuais de um trabalhador, e se a situação se mantiver durante dois anos consecutivos e não resulte de lançamento de nova atividade, o empregador procederá à contratação de um trabalhador com vínculo efetivo para a satisfação dessa necessidade permanente, dando preferência a eventuais trabalhadores contratados a termo a desempenhar funções nesse serviço. 6) Quando se verificar a prestação de trabalho suplementar e não exista transporte público coletivo, os empregadores deverão assegurar o transporte do trabalhador, mediante a utilização de veículo do serviço, quando exista, ou o pagamento da despesa efetuada e devidamente comprovada, nomeadamente a resultante da utilização de veículo próprio. 7) Procedimentar os regimes de adaptabilidade e banco de horas. 8) Quando o empregador pretender recorrer aos regimes de adaptabilidade ou banco de horas, o número de trabalhadores contratados a termo ou temporariamente não poderá exceder uma percentagem superior a 10% do número de trabalhadores efetivos a desempenhar a sua atividade nesse serviço, ou secção ou departamento. Tal só não se sucederá se 75% dos trabalhadores efetivos declararem, por escrito, pretender ser abrangidos pelo regime de adaptabilidade de horários. Os Jovens e os Regimes PARTE VI de Segurança Social: uma Relação Disfuncional 6.1. A SEGURANÇA SOCIAL EM PORTUGAL UMA CONQUISTA DE ABRIL A emergência de um Estado-providência em Portugal é considerada por muitos como um dos grandes legados da Revolução dos Cravos. Mesmo já existindo sistemas rudimentares de assistência social antes da queda da ditadura40, a grande expansão do sistema dá-se em sequência do golpe militar, com o alargamento dos beneficiários e contribuintes para o sistema de pensões de reforma a populações não anteriormente abrangidas (pessoal doméstico, população rural, etc.), com a expansão e universalização do sistema escolar, assim como com a criação de um sistema universal de saúde (Samouco, 1993; Pereirinha e Carolo, 2009; Royo 2012). Ao longo destes últimos anos, as funções sociais do Estado foram alargadas por sucessivos governos, independentemente da cor política, através da criação de apoios a segmentos populacionais especiais ou desfavorecidos (população com deficiência, desempregados, famílias numerosas, jovens, etc.) assim como a criação de um “rendimento mínimo garantido” em meados dos anos 90 (Barreto 2002). A expansão do Estado-providência em Portugal, nestes últimos 40 anos, foi essencial para a aproximação do nível de vida dos portugueses com a média dos seus homólogos europeus. O pesado legado do Estado Novo, tanto a nível social como económico, foi consistentemente eliminado através de políticas económicas e sociais que permitiram ao país recuperar, em algumas décadas, do seu grande atraso em relação à Europa. Um dos exemplos mais claros, sobre o impacto positivo da expansão da segurança social, é a redução da taxa de pobreza em Portugal. Como podemos ver a partir da figura 4, em 2012, a taxa de pobreza em Portugal, antes de quaisquer transferências sociais, atingia 44,9% da população total. Após a contabilização dos benefícios sociais, essa mesma taxa baixa para 18,7% da população total (INE 2014). Enquanto estes valores continuam a ser elevados em relação à média europeia, continuam a ser uma prova do impacto benéfico do regime de segurança social vigente na redução da pobreza e da desigualdade económica em Portugal. O impacto positivo da expansão do regime de segurança social não se fica pela redução das desigualdades económicas, pois também teve um impacto muito positivo na saúde (acesso à saúde, taxa de mortalidade infantil, qualidade dos tratamentos) e na educação, com um subida muito considerável do número de pessoas com o nível secundário e terciário (universidade e ensino vocacional) nestes últimos 40 anos. . 40 Nomeadamente o regime de Previdência Social, distribuído através do sistema corporativo (grémios, casas do povo, casas dos pescadores, etc.) que enquadrava o total das relações laborais durante o Estado Novo (Samouco, 1993; Pereirinha e Carolo, 2009). Taxa de risco de pobreza (%) considerando as transferências socais, Portugal, EU-SILC 2010-2013 Ano de referência dos dados 2009 2010 2011 2012 (Po) Após transferências sociais Após transferências relativas a pensões Antes de qualquer transferência social 17,9 26,4 43,4 18,0 25,4 42,5 17,9 25,3 45,4 18,7 25,6 46,9 EU-SILC 2010 2011 2012 2013 (Po) (Po) - Valor provisório EU-SILC: Inquérito às condições de Vida e Rendimento Figura 4. Impacto das pensões e de outras transferências sociais na taxa de pobreza em Portugal (a 60% do rendimento médio) Fonte: INE (2014) Relatório sobre Rendimento e Condições de Vida 2013. Contudo, a rápida expansão e universalização do Estado-providência nestes últimos quarenta anos foi acompanhada por vários problemas e desequilíbrios, muitos deles causados pela evolução demográfica do país e exercendo efeitos muitos fortes e específicos nas camadas mais jovens. Por exemplo, o número de pensionistas - de invalidez, de velhice e/ou pensão de sobrevivência - em Portugal aumentou consideravelmente, passando de 56.000 em 1960, para 800.000 pensionistas em 1975 e chegando a 3 milhões em 2013 (Barreto 2002; Royo, 2012; Segurança Social, 2014). Outras prestações, tais como o subsídio de desemprego, criado em 1975, ou o Rendimento Social de Inserção, criado em 2003 41 , também tiveram uma evolução semelhante, o que gerou enormes problemas para o Estado: por um lado, garantir um nível de qualidade e de quantidade de serviços; por outro, garantir um acesso satisfatório para a generalidade da população (Barreto 2002; Royo, 2012). Outro problema criado pela rápida expansão do sistema foi o acréscimo do peso do regime de segurança social no orçamento do Estado, passando de 9,9% do PIB em 1980 a 26,4% em 2013 (OCDE, 201442). Com a crise financeira e económica de 2007/2008 e os problemas orçamentais criados por essa crise ao Estado Português, começaram a surgir questões e dúvidas em torno da sustentabilidade do modelo atual a médio/longo prazo do modelo vigente de Segurança Social (Barreto 2002). Estas questões foram também alimentadas por uma crescente preocupação com o equilíbrio entre contribuintes e beneficiários de um sistema que, devido a uma taxa de natalidade e a um saldo migratório negativo, assim como a uma taxa de desemprego elevada, encontra-se numa situação precária: com cada vez menos pessoas a contribuir e mais pessoas a beneficiar do sistema. Independentemente da abordagem ideológica, a pirâmide etária invertida e a consequente pressão demográfica são consensualmente consideradas persistentes desafios na construção de estratégias para a resolução dos problemas sistémicos da segurança social. As camadas mais jovens (ou a respetiva expressão numérica relativa ao nível do país) situam-se, por isso, e paradoxalmente, entre as causas e também entre as consequências de muitos dos problemas circulares e de difícil resolução referentes à segurança social, idealizada, exequível e/ou efetivamente concretizada. 41 O Rendimento Social de Inserção veio substituir o sistema de Rendimento Mínimo Garantido que tinha sido criado em 1996. 42 http://stats.oecd.org/Index.aspx?datasetcode=SOCX_AGG 6.2. O MODELO DE SEGURANÇA SOCIAL E A JUVENTUDE EM PORTUGAL UMA RELAÇÃO DISFUNCIONAL O relacionamento entre o modelo vigente de segurança social e a precarização das relações laborais e de vida dos jovens não é um tema recorrentemente abordado nos debates políticos sobre a reforma do Estado Social em Portugal. Para além da complexidade do tema em si, o debate tem-se focado sobretudo em temáticas que, à partida, não dizem diretamente respeito aos jovens mas sim à população mais idosa (sistema de pensões de reforma, sistema de saúde), com necessidades particulares (subsídios de sobrevivência, de apoio a pessoas com deficiência) ou que já esteja plenamente integrada no mercado de trabalho (sistema contributivo, etc.). É, por isso, compreensível que não exista uma forte mobilização política das camadas mais jovens contra as medidas de reforma da Segurança Social como é mais presente noutras camadas da sociedade portuguesa. Porém, o sistema de Segurança Social tem um impacto indireto considerável na qualidade de vida pessoal, assim como profissional, dos jovens em Portugal. Por outro lado, é incompreensível que as reformas da segurança social não sejam sistémicas e/ou que tenham em conta de forma desproporcional apenas um lado do problema, ou um dos extremos – o topo – da pirâmide etária. Tal como no mercado laboral, os jovens, bem como as crianças e os idosos, representam uma das camadas menos protegidas da nossa sociedade, com 31,8% dos jovens entre os 16 e os 24 anos em risco de pobreza em Portugal (Eurostat 201443). Muitos jovens, devido à sua integração no mercado laboral feita maioritariamente através de contratos temporários ou precários, ou sem a existência destes, e à falta de políticas sociais direcionadas aos jovens mas, também, devido à própria lógica de funcionamento do sistema de Segurança Social em Portugal, acabam por não beneficiar de certas proteções sociais que podiam contribuir para que pudessem evitar ou ultrapassar com mais eficácia situações de pobreza e de precaridade (Silva e Pereira 2012). Por exemplo, em 2013, somente 11,4% dos jovens desempregados entre os 15 e os 29 anos puderam beneficiar do subsídio de desemprego, o que indica que são raros aqueles que podem beneficiar deste subsídio mesmo após um período de atividade (PORDATA, 2014). Em muitos casos, tal deve-se ao facto de as regras de atribuição do subsídio de desemprego não serem muitas vezes compatíveis com a realidade laboral dos jovens. De acordo com a legislação vigente, para ter acesso a este subsídio é exigido ao trabalhador um prazo de garantia mínimo de “360 dias de trabalho por conta de outrem com registo de remunerações nos 24 meses anteriores à data do desemprego”. Contudo, dado que, em 2009, 26% dos jovens portugueses tinham um contrato até um ano de duração e muitos outros alternavam regularmente entre situações de emprego e de desemprego, poucos são aqueles que obtiveram um subsídio por não cumprirem este prazo mínimo (Silva e Pereira 2012; INE 2009). Tal como o referem Pedro Adão e Silva e Margarida Pereira, isto deve-se ao facto de o modelo atual ter sido “desenhado para um mercado de trabalho de natureza corporativa – muito segmentado e com uma enorme dualidade entre o homem ganha-pão — com emprego protegido e taxas de participação elevadas — e as mulheres e os jovens — com menor proteção no emprego, salários mais baixos e menores níveis de participação” (2012:140); não acompanhando assim a evolução do mercado laboral em Portugal no sentido de um modelo mais próximo do “modelo liberal” (tema já abordado na parte IV.1 43 http://appsso.eurostat.ec.europa.eu/nui/submitViewTableAction.do deste documento). Sendo o contrato de trabalho sem termo um dos eixos centrais do modelo corporativista, o declínio nas últimas décadas deste tipo de vínculo laboral em favor dos contratos ditos “atípicos” (recibos verdes, contratos a termo/a tempo parcial, etc.) acabou por criar um desfasamento crescente entre o modelo de mercado de trabalho e o modelo de proteção no desemprego vigente em Portugal (Silva e Pereira 2012). Isto reflete-se na tendência generalizada de declínio do rácio de proteção no desemprego em Portugal desde 2000, passando de 80% dos desempregados protegidos pelo sistema para apenas 44% em 2013 (ibid). Esta diminuição deve-se, também, em grande parte, às sucessivas alterações das regras de acesso aos subsídios de desemprego (em 2003, 2006, 2010 e 2012) assim como a um aumento considerável do número de desempregados em relação ao número de beneficiários nesse mesmo período (ibid). Contudo, três grupos principais destacam-se pela negativa: os jovens em início de carreira, os trabalhadores com vínculos precários e os desempregados de longa duração (ibid). Outra consequência deste desfasamento, entre o modelo de mercado de trabalho e o modelo de proteção no desemprego em Portugal, também se verifica na atribuição de outros apoios. No caso do Rendimento Social de Inserção (RSI), muitos jovens desempregados sem subsídio de desemprego não têm direito a este apoio devido ao facto de integrarem agregados familiares com rendimentos ou bens imobiliários acima do valor máximo previsto por lei (Carmo e Cantante, 2014). No mesmo registo, o sistema atual de contribuições para a segurança social para pessoas com contratos “atípicos” ou precários, como no caso dos trabalhadores independentes (20,4% em 2013), acaba em muitos casos por não ser favorável em termos fiscais (29,6% para os recibos verdes contra somente 11% para outros vínculos contratuais) devido aos baixos rendimentos, levando muitos jovens a não declarar os seus rendimentos, pondo assim em risco a sua carreira contributiva e a segurança na idade da reforma (Moreira, Marques e Gillot, 2014). Verifica-se, portanto, que a legislação em vigor é pouco adaptada à realidade laboral dos jovens em Portugal, privando-os do acesso a apoios que os poderiam ajudar durante a procura de um novo emprego. Para além destas falhas e insuficiências na atribuição do subsídio de desemprego, assim como outros apoios, aos jovens trabalhadores, o modelo atual de Segurança Social em Portugal contribui de outra maneira para a precarização laboral dos jovens, ao não promover uma rede de serviços sociais que lhes permita emanciparem-se com o mínimo de segurança do seu núcleo familiar. Comparativamente aos seus congéneres europeus, existem em Portugal poucas políticas sociais de apoio aos jovens na sua transição para uma vida autónoma, tais como apoios à habitação que permitam aos jovens adquirir ou arrendar casa própria a um preço acessível44, como nos países escandinavos; subsídios de procura de trabalho semelhante a Jobseekers Allowance45no Reino Unido, ou até uma rede pública de creches e de infantários públicos que permitam aos jovens casais garantir um equilíbrio trabalho-família que seja saudável, tal como em França ou na Alemanha (De Almeida et al, 2011). Como já foi previamente discutido neste documento, as políticas governamentais de apoio aos jovens focalizam-se sobretudo no perfil do “jovem à procura do primeiro emprego”- através do apoio à qualificação dos jovens, à promoção do autoemprego e pela criação de incentivos à contratação jovem pelas empresas – o que é claramente insuficiente face à diversidade de perfis sociais e educacionais dos jovens desempregados e às várias 44 A exceção a esta regra é o Programa Porta 65, criado em 2007 para apoiar o arrendamento jovem e, descontinuado em 2012, e que apresentava problemas graves desde a sua génese, por ser uma versão mais limitada e complicada do inicialmente denominado “Incentivo ao Arrendamento por Jovens” do então IGAPHE. 45 Uma bolsa semanal de 57.53 libras atribuída pelo Estado britânico a todos os cidadãos britânicos acima dos 18 anos que estejam atualmente à procura de trabalho, que não estejam a estudar a tempo inteiro e que não trabalhem mais de 16 horas por semana. (https://www.gov.uk/jobseekers-allowance/eligibility) formas como o desemprego pode afetá-los. A falta de coordenação entre os poucos apoios à disposição dos jovens portugueses, assim como a falta de uma Estratégia Nacional para a Juventude (tal como existe noutros países europeus), também não facilita a criação de um apoio eficaz e sistemático aos jovens nesse período de transição para uma vida autónoma. Um dos reflexos desta lógica de funcionamento do Estado Social em Portugal revela-se na distribuição do orçamento da Segurança Social entre as diferentes vertentes do sistema. Segundo a OCDE, o Estado português gastou em 2007 somente 0,6% do PIB neste género de serviços sociais, quase 4 vezes menos que a média da UE (2,1%). No mesmo período, o Estado português despendeu 21,4% do PIB nacional para financiar pensões de reforma, o sistema nacional de saúde, assim como subsídios de desemprego e outros complementos de vencimento, bastante acima da média da UE (17,8%) (Conselho da Europa, 2014). Uma consequência visível do impacto desta distribuição orçamental é a continuação da família como o principal suporte financeiro de recurso disponível para os jovens em Portugal, permanecendo o único acesso para muitos jovens a certos serviços sociais que lhes são usualmente providenciados pelo Estado noutros países europeus (Adão e Silva 2002; De Almeida et al 2011). Segundo estatísticas publicadas este ano pelo Eurofound, em 2012, 55% dos jovens entre 18 e os 30 anos de idade ainda residem em casa dos seus pais ou de familiares, o que contrasta fortemente com outras realidades europeias (Eurofound 2014). Entre os vários fatores apontados pelos especialistas para explicar este fenómeno, destacam-se a precariedade no emprego e os baixos salários mas, também, a falta de acesso ao crédito bancário (para compra de casa própria), assim como a falta de políticas sociais e habitacionais direcionadas aos jovens, sobretudo as de apoio aos dois primeiros anos de vida autónoma (Adão e Silva 2002; De Almeida et al 2011, Young 2006). Tal como já foi previamente discutido, esta situação leva a que muitos jovens em Portugal adiem os projetos de vida indefinidamente até que a sua situação financeira e profissional melhore, levando muitas vezes a sentimentos de frustração e de inferioridade – por não se sentirem verdadeiramente como adultos, com casa própria, a constituir família, etc. – ou mesmo até decidirem tentar a sua sorte no estrangeiro como já muitos fizeram desde 2010. Assim, podemos afirmar que o sistema de Segurança Social vigente em Portugal assenta num paradoxo: requer que os jovens cumpram o seu dever de contribuintes e financiadores de um sistema do qual somente beneficiam alguns deles, enquanto sobrecarrega as famílias portuguesas com o encargo de assegurar a segurança financeira dos seus descendentes. Numa conjuntura de cortes nos subsídios e pensões do Estado, de desemprego em massa e de redução dos meios financeiros à disposição das famílias portuguesas, este modelo de “sociedade-providência” (ou “welfare family” na sua versão inglesa) acaba também por não ser uma fonte de segurança financeira e estabilidade para a juventude portuguesa mas sim uma fonte adicional de precarização e também, não menos importante, de instabilidade pessoal e emocional. A falta de investimento do Estado Português em políticas sociais de apoio aos jovens contribui, ainda, para a continuação de desigualdades e de diferenciais de oportunidades entre jovens provenientes de famílias com mais meios financeiros e os que não dispõem desses meios, situação que é incompatível com uma sociedade justa e democrática46. 46 Os estágios não remunerados são um bom exemplo desta realidade. Enquanto o estágio é cada vez mais visto como sendo essencial para o currículo de um jovem, o facto de muitos deles não serem remunerados impede muitos jovens de os frequentar por falta de meios financeiros ou pelo menos sem um grande sacrifício pessoal e da sua família. Devido à enorme complexidade das questões relacionadas com os sistema da Segurança Social, no âmbito deste documento foi apenas aconselhável e possível abordar alguns aspetos do funcionamento do Estado Social em Portugal que afetam diretamente os jovens, tais como a falta de políticas de juventude ou a falta de acesso a certos direitos associados ao termo da relação laboral, como o subsídio de desemprego. Contudo, e mais uma vez devido à imensa complexidade deste tema e aos inúmeros relacionamentos entre os vários sistemas, subsistemas e áreas de ação abrangidas pelo sistema de segurança social português, não nos é prudente nem fácil propor medidas concretas de mudança do sistema atual, sem recorrer a um estudo mais aprofundado e concreto do tema, investigação que transcende por sua vez os objetivos deste documento. Deste modo, preferimos somente deixar algumas linhas muito gerais no sentido da resolução de problemas específicos da condição juvenil e da promoção da emancipação financeira e profissional dos jovens portugueses. 6.3.1. PROPOSTAS 1) Necessidade de pôr os jovens no centro das preocupações em torno do sistema de segurança social. a) Necessidade dos jovens e organizações de juventude consciencializarem-se para a importância de se envolverem e serem consultados nos debates sobre as reformas do sistema de segurança social. b) Necessidade de um combate ao discurso do “conflito geracional” - jovens e mais velhos têm interesses comuns na defesa do sistema de segurança social em Portugal. c) Necessidade de elaborar uma Política Nacional para a Juventude que tenha por base fornecer uma estratégia de apoio consistente e eficaz aos jovens no período de transição para uma vida autónoma. d) Inclusão dos jovens no Conselho Económico e Social (CES) enquanto membros de pleno Direito. 2) Maior investimento em políticas sociais, sobretudo aquelas que promovam a emancipação dos jovens do seu núcleo familiar, principalmente nos dois primeiros anos de vida fora de casa dos pais. a) Criação de políticas de habitação jovem, seja pelo incentivo ao aluguer/compra de casa através de linhas de crédito específicas, pela subsidiarização de parte do aluguer por parte do Estado ou pelo incentivo à reabilitação de casas e/ou a habitação comunal como previsto no programa Porta 65. b) Promoção, por parte do Estado, de uma rede de creches e infantários que permita aos jovens casais garantir um equilíbrio trabalho-família sem dependerem de familiares. 3) Reformulação dos critérios de atribuição dos subsídios de desemprego aos trabalhadores com contratos ditos “atípicos”. 4) Reformulação do sistema contributivo para que seja mais benéfico para os jovens declararem os seus rendimentos à Segurança Social. a) Estabelecimento de descontos por grupos etários ou criação de um regime transitório de descontos a curto ou médio prazo para jovens trabalhadores. 5) Incentivos às empresas que criem fundos de pensões complementares à reforma; 6) Incentivos aos municípios na participação, elaboração e implementação de políticas de apoio aos jovens; a) Incentivar os municípios a criarem programas de apoio aos jovens da região, com vista a retê-los na região. b) Incentivar o desenvolvimento de políticas adaptadas ao contexto local em coordenação com as políticas a nível nacional. PARTE V Considerações finais A questão referente à emancipação jovem não pode ser apenas reconduzida às dificuldades que o mercado de trabalho apresenta aos jovens. Efetivamente, esta é somente uma das dimensões do problema que, tal como foi referido, deve ser encarado numa perspetiva holística, ou seja, integral. Nesse sentido, há que atender à interdependência e complementaridade de um conjunto de políticas, nomeadamente, no âmbito do ensino, habitação e família, relativamente ao mercado de trabalho. É a própria natureza do problema que obriga a uma visão de conjunto e à adoção de medidas que tenham em linha de conta todas as dimensões de modo a contribuir, de forma efetiva, para uma emancipação plena dos jovens. Tendo presente que as organizações internacionais têm, de resto, alertado – e recentemente, com especial acuidade – para o problema do emprego jovem e do trabalho digno, ao longo do presente documento procurou-se identificar e descrever um conjunto de situações relativas ao mercado de trabalho português que afetam, de forma particular, os jovens e, paralelamente, contribuir com um conjunto de medidas que possam ser tomadas em consideração pelos diversos atores no processo de decisão política. As orientações preconizadas no presente documento atendem, de forma particular, à realidade nacional, procurando suprir algumas deficiências e carências ao nível dos programas existentes e do próprio ordenamento jurídico. Contudo, o diagnóstico e as propostas aqui vertidas devem ser encaradas como um complemento das medidas sugeridas pela OIT47 no âmbito das políticas de emprego para a juventude. As formas de inserção no mercado de trabalho são plurais e algumas delas apresentam especificidades muito próprias. Por esse motivo, apenas, e de todo não por negação da importância da existência de planos de ação também nessas áreas, não foram abordadas as questões relativas nem ao empreendedorismo jovem nem ao trabalho de investigação, nomeadamente ao trabalho desenvolvido através de bolsas de investigação. Assim, considerou-se que o tema do empreendedorismo, ou a criação de condições efetivas para esse desenvolvimento, na maioria das vezes relacionado com questões de natureza empresarial, extravasa o âmbito das políticas atinentes ao mercado de trabalho e, por essa razão, justifica uma abordagem distinta, que fica inevitavelmente fora do âmbito deste documento. De igual modo, a temática do desenvolvimento da atividade profissional da investigação, nomeadamente a que é desenvolvida com bolsas de investigação, não foi igualmente abordada. A análise e eventual resolução dos problemas inerentes à carreira de investigação extravasa uma abordagem exclusivamente centrada em definições mais formais de mercado de trabalho. Por esse motivo, aliado à complexidade que esta realidade profissional acarreta, esta temática fica por agora também de fora. No entanto, tanto o empreendedorismo como a investigação merecem uma reflexão profunda assente numa lógica que também reflita o paradigma do “trabalho digno”. O presente documento, procurou, assim, tratar de forma sumária, mas sistemática, algumas das etapas cruciais para os jovens no que respeita à sua efetiva integração no mercado de trabalho. Nas medidas respeitantes à fase inicial desse ciclo, abordadas a propósito da transição, privilegiou-se o seu direcionamento num sentido que levasse em consideração a realidade específica dos jovens, ao invés de abordar os jovens como meros instrumentos de operacionalização de programadas reconversões ou reconfigurações do mercado. Por sua vez, as propostas tratadas a propósito da 47 A título exemplificativo, sobre as medidas indicadas pela OIT, ver «The Youth Employment Crisis: A call for action», Resolution and conclusions of the 101st session of the International Labour Conference, Geneva, 2012, ou o Relatório «Global Employment Trends for Youth», ILO, Geneva, 2012. precariedade têm o seu fundamento na particular necessidade de proteção dos jovens relativamente a este fenómeno, combinando medidas que são particularmente orientadas para as suas necessidades com outras que, ainda que aparentem um carácter mais genérico, atendendo ao nível de exposição dos trabalhadores mais jovens ao problema da atipicidade e da precariedade, acabam por ter como destinatários este conjunto de trabalhadores. O mesmo sucedeu no que se refere às condições de trabalho, ou seja: a um conjunto de medidas especificamente vocacionadas para os jovens que integram o mercado de trabalho somam-se outras, de carácter aparentemente mais generalista, mas que, na realidade, acabam por dizer respeito maioritariamente aos jovens trabalhadores. São, portanto, medidas que, além de constituírem manifestações do “trabalho digno” de forma genérica, contribuiriam para corrigir as desigualdades (em geral mas também e sobretudo geracionais) que decorrem das caraterísticas do mercado de trabalho contemporâneo e do contexto histórico nacional e europeu que vivemos. A necessidade de sensibilizar os parceiros sociais no sentido de debater esta problemática em sede de concertação social – fazendo refletir esse debate tanto ao nível nacional, setorial como empresarial – constituiu também uma preocupação que foi sendo aflorada ao longo do presente documento. A promoção do emprego digno terá necessariamente de passar pelo crivo da negociação coletiva, onde se deverá procurar incluir as diversas temáticas relativas às condições específicas dos jovens no mercado de trabalho, seja a nível nacional, em determinado setor ou na própria empresa. Por isso, e ainda que pareça uma premissa básica, não é desajustado lembrar que o trabalho não pode ser equiparado a uma mercadoria, a um serviço ou ao capital. Muitas vezes, esse ensinamento tão essencial parece perder-se nas conceções estritamente económicas. A relação de emprego, pela sua natureza humana, e muitas vezes pessoal, não pode ser reconduzida a um bem transacionável, sujeito, sem mais, às flutuações da oferta e da procura. É nesta especificidade que reside a necessidade de intervenção pública nas relações de trabalho, tanto na sua vertente individual como coletiva. E é também aí que essa ingerência se deve situar: na dimensão social do trabalho. Mesmo que permeável a modificações estruturais nos modos de produção e a flutuações do ciclo económico, é essencial que a intervenção pública nesta área traduza a sua própria razão de ser: “a integração do conflito estrutural do sistema de produção baseado na prestação generalizada de trabalho assalariado”48 e é, por isso, que os mecanismos e a concretização das políticas nesta área não se podem converter num mero instrumento de utilidade económica, alheado do seu fundamento social. As políticas públicas na área do emprego jovem devem assentar num paradigma que fomente essa vertente de cariz social. Importa, acima de tudo, contribuir para a dignificação das condições de trabalho: por um lado, promover a uniformização das relações laborais combatendo a dualização e, por outro, em situações específicas nas quais que se justifique um tratamento distinto, contribuir, através de medidas de discriminação positiva, para a plena integração dos jovens no mercado de trabalho. As políticas relativas ao emprego jovem não devem, por isso, ser implementadas sacrificando direitos e garantias que, comummente, são reconhecidas aos trabalhadores que se encontram no mercado de trabalho há mais tempo. Pelo contrário, essa «race-to-the bottom» deve ser evitada, promovendo-se, ao invés, o diálogo intergeracional numa perspetiva que garanta o acesso universal ao acervo dos direitos e garantias típicos de um Estado Social. 48 MANUEL CARLOS PALOMEQUE LOPEZ, Direito do Trabalho e Ideologia, Coimbra, 2001, p.33. Bibliografia ADÃO E SILVA P (2002), “O modelo de Welfare da Europa do Sul: Reflexões sobre a Utilidade do Conceito”, Sociologia, Problemas e Praticas, nº38, pp. 25-59. ALVES, NUNO DE ALMEIDA, FREDERICO CANTANTE, INÊS BAPTISTA E RENATO MIGUEL DO CARMO (2011), Jovens em Transições Precárias. Trabalho, Quotidiano e Futuro, Lisboa, Editora Mundos Sociais/CIES-IUL, 133 p. 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Transição para o Mercado de Trabalho • Criação da “bolsa jovem”; • Centralização de plataformas online de procura e oferta de emprego, estágios, voluntariado; • Criação de regras precisas para os estágios; • “Guia de Direitos e Deveres Laborais” vocacionada para os jovens; • Reformulação do funcionamento dos centros de emprego; • Reforço da inspeção laboral nesta área. 2. Precariedade e Relação com as Formas Atípicas de Trabalho e Mercado Dual • Criação de um sistema de fiscalização e penalização para os empregadores que não cumpram com as normas e leis; • Deverá existir uma maior discussão sobre o tema do Trabalho Digno e Emprego de Qualidade no seio da juventude; • Deverão ser implementadas medidas que fomentem a produção nacional, abrindo portas para a criação de emprego para os jovens; • O empreendedorismo não deve ser visto como uma medida de combate à precariedade; • Deverá existir uma maior valorização do trabalho, independentemente das qualificações; • Devem ser implementadas medidas que fomentem o aumento gradual do salário médio, tendo em conta o custo de vida; • Os estágios profissionais deverão obrigatoriamente ser remunerados. • Ao trabalho permanente, tem que corresponder um vínculo de trabalho efetivo. 3. Conciliação entre vida pessoal/familiar com a vida profissional • Valorizar a pluralidade das famílias; • Incentivar a partilha da licença de paternidade; • Mais formação de gestores/líderes de empresas/instituições; • Mais informação dos direitos laborais; • Mudança de cultura organizacional em prol da responsabilização dos trabalhadores e das trabalhadoras; flexibilidade e da • Considerar a redução progressiva da jornada de trabalho; • Reformular o texto da proposta sobre a questão dos direitos de pais trabalhadores com filhos até 3 anos; • Promover a aplicação da lei atualmente existente e a sua fiscalização. 4. Regime Segurança Social – Que modelos? • Valorizar e proteger o papel dos idosos também na promoção da emancipação dos jovens; • Proteger e promover a emancipação dos jovens; • Considerar o poder local como possível resposta à questão do trabalho digno; • Analisar o paradoxo do propósito original do sistema da Segurança Social e a sua atual perceção; • Analisar e rever a questão da sustentabilidade da Segurança Social e de outros sistemas contributivos; • Aumentar a fiscalização do Estado; • Criação de um sistema fiscal especial como garantia de inserção do jovem no mercado de trabalho; • Incluir o CNJ no processo de concertação social; • Valorização do salário para o sistema da Segurança Social; • Aumentar a contribuição no quadro do regime de recibos verdes, para os beneficiários da prestação de serviços; • Majoração das reformas enquanto meio de apoio indireto aos jovens.