O FILηOTE BRAvCO
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O FILηOTE BRAvCO
O filhote branco A no 10 DK I. Um delírio, um sonho Por decisão de Othan, ao completar dez anos, Kasdhan foi enviado para uma escola, a fim de receber instrução mais completa durante alguns anos. Sair de Gardo era sempre uma aventura, e Kasdhan encarou aquela nova fase de sua vida com entusiasmo. Sentiria saudades de seu lar e de sua família, mas naquele momento, nem pensou naquilo. O pai prometeu que iria visitá-lo periodicamente na escola, que, infelizmente, ficava num burgo distante demais para os tios também irem. O pequeno leãozinho negro se despediu alegremente de todos e partiu com o pai. Nem soube o quanto Hera ficou desolada. Mas ela tinha suas duas filhotas para cuidar e isso certamente a distrairia. Isauh também ficou desgostoso. Gostaria de educar ele mesmo o sobrinho, mas... aquele filhote não era seu. Os dias se passaram. As semanas se passaram. Ficou claro que Gardo era um lugar muito mais silencioso e triste sem o pequeno. Isauh ressentiu-se de ter de ir pescar e caçar sózinho. O filhote levado e espirituoso havia deixado um grande vazio. Certa tarde abafada, Isauh saiu para pescar, mas estava tão entediado que, recostado num rochedo, adormeceu. O noite caiu e a maré levou suas coisas. Ele nem se deu conta. No castelo, Hera aflita abordou a escrava na cozinha. A gatinha miúda tinha energia e a usava toda para arear um caldeirão imundo. Não questionava nada nem ninguém e, se tinha opinião sobre qualquer coisa, nin- guém estava interessado em saber. – Casbah, o seu senhor voltou? – Não o vi, ama. – responde a escrava sem parar de esfregar o caldeirão. – Escureceu e ele não voltou da pescaria. O tempo está virando... acho que vem uma tempestade... estou tão preocupada! – A ama quer que Casbah vá procurá-lo? Hera pensou um pouco. Não. Se mandasse a escrava atrás do marido, era quase certo que ele a recompensasse dando-lhe uma atenção que devia ser apenas sua. Isauh já a repreendera, dizendo que ter ciúmes de uma reles escrava era indecente. Mas para Hera, indecente era o que fazia com a escrava quando achava que estavam sózinhos. Então ordenou que Casbah ficasse onde estava e postou-se na janela mais alta do castelo, vigiando o terreno em volta. Somente quando a chuva já caía pesadamente, pode ver o vulto do esposo, voltando devagar por uma trilha lateral. Deixando seu posto, correu para ele, que entrou encharcado no salão, e sem trazer nenhum peixe. – O que houve? Porque demorou tanto? – Eu acho que adormeci... – e uma grande poça se formava no meio do salão. – Você está gelado! – abraçou-o –Tire as roupas e venha se aquecer, rápido! Logo, Isauh estava em frente à lareira, enrolado numa manta, a olhar apático para as chamas, com Hera a lhe esfregar as costas e Casbah, os pés. – Você não está nada bem! – Eu estou bem. Mas Isauh não estava bem. A água e o vento frio cobraram seu preço, e ele, que se julgava tão resistente, caiu adoentado. Ao amanhecer não conseguiu sequer sair da cama. Tossia sem parar e tinha de fazer enorme esforço para respirar. Foram dias e noites de agonia, pensamentos confusos e grande ansiedade, que fizeram-no dizer coisas que assustaram sua jovem esposa. Olhando para o teto, delirava febril, vociferando como um louco. – Kasdhan não vai voltar! Nunca mais! Othan o matou! – Pare com isso! Não diga tolices! – Hera sacudia o esposo, agoniada. Ao fim de seis dias, a febre baixou e ele finalmente conseguiu se levantar. – Estou melhor. – disse espreguiçando-se – Vou sair para caçar tuntas. – Não tão depressa. Você ainda não está plenamente recuperado! Me assustou, sabia? Isauh puxa Hera para seu colo, e diz, alisando os quadris redondos da esposa: – Você entrou no cio... vamos recuperar o tempo perdido... – Não sei se vai ser bom para você, agora! – ela ria, encabulada. – Vamos fazer mais um filhote! Hera podia ouvir o chamado de suas filhotas na cozinha, mas ignorou-as. Amava demais o leão branco e de bom grado atendia a todos os seus desejos carnais. Mas algo havia mudado. Um pouco de pressa, um pouco de descaso, ela não saberia precisar. Esmagada sob um Isauh distante, tentou não pensar demais. Quando ele, exausto, adormeceu, saiu da cama e finalmente foi ver as filhotas que já se esgoelavam. A febre de Isauh parecia ter deixado alguma sequela. Passou a procurar Hera dia e noite. No início fascinada, ela começou a se ressentir quando percebeu que não conseguia mais cuidar direito das filhotas, nem gerir o castelo como antes. Isauh também não conseguia fazer mais nada senão perseguir a esposa e logo a despensa ficou sem carne e sem peixe. Cansada, Hera passou a evitá-lo, escondendo-se para terminar algumas tarefas em paz. Só que ele sempre acabava por encontrá-la. Hera exasperou-se quando, certa tarde, ele interrompeu-a bruscamente, tirando de seu colo uma das filhotas que ela alimentava e tentou montá-la ali mesmo, na cozinha, diante do olhar estupidificado das filhotas. – Isauh, não! O que está acontecendo, afinal? – questionou, tentando afastá-lo. O filhote branco 1 – Hera... eu desejo muito outro filhote! – Se é isso, então pode sossegar... já estou grávida. Subitamente transformado, Isauh abraçou a esposa e suspirou aliviado. – Estou muito feliz! – Eu não queria agora, mas se isso o faz feliz... também estou feliz! – respondeu sorrindo e tornou a pegar a filhota do chão. II. Perda Parecia que, tendo alcançado seu objetivo, Isauh agora deixava a esposa de lado. Voltou a caçar, pescar e se entreter com suas leituras noturnas. Toda aquela paixão se fora tão subitamente quanto chegara. Percebendo Hera entrar na torre que usava como refúgio particular, ele a chamou para mostrar o pergaminho que consultava. – Veja, Hera... quando nosso filhote nascer, será a melhor época para um grande patriarca vir ao mundo. – E se for uma fêmea? – ela replicou, apenas para contrariá-lo. – Hã... será bem vinda da mesma forma, mas eu ficarei feliz se for um leãozinho, que leve adiante o nome do clã da Pata. – Você se esquece de Kasdhan? – foi a vez dela ficar contrariada. – Não sabemos se ele realmente voltará a Gardo, tudo pode acontecer... – e voltou a enrolar o pergaminho, calmamente. – Não fale assim, é claro que nosso sobrinho voltará para casa! – Está bem, não fique aborrecida e cuide-se, para que o nosso leãozinho chegue em segurança. – Ora essa! Mas o que Isauh desejava não alteraria o destino. Um mês depois, quando ele rachava a lenha no pátio dos fundos, a escrava veio correndo em sua direção, com expressão apavorada. – Amo! Amo! A senhora... Venha depressa! Isauh largou tudo e correu atrás de Casbah. Encontrou Hera a chorar convulsivamente, encostada em uma coluna do pátio interno, com o vestido manchado e pisando numa poça de sangue. Ao seu lado, uma pesada cesta de roupas jazia emborcada. Hera abortara espontâneamente aquele filhote tão desejado. – Hera, o que você fez? – ele gritou sacudindo-a. – N-não fiz nada, juro...! Oh, Isauh! Levando a esposa para seus aposentos, com a ajuda da escrava, ele estancou a hemorragia. Experimentara uma sucessão de emoções fortes: ira, desespero, decepção e agora, uma imensa tristeza. Hera estava em estado de choque, mas o que mais lhe doía era ver o quanto decepcionara seu amado. – Porque me aconteceu isso? – ela gemeu, tão baixo que ele quase não ouviu. – Não sei... mas talvez você também não seja tão forte quanto pensa... Como que para negar isso, poucos dias depois, Hera saiu do leito e voltou a trabalhar, apesar das admoestações do esposo. Estava a banhar as filhotas quando Isauh entrou na sala de banhos vestido com suas pesadas roupas de viagem. – Hera, vou à cidade. Precisa de alguma coisa? – Hein? Não... mas... vai ficar quantos dias fora? – ela não conseguiu esconder seu desapontamento. – Não sei. Talvez três dias... só o suficiente para resolver um negócio. Você ficará bem? – Claro, já estou boa. – respondeu abraçando-o. Era impressão dela ou Isauh pareceu constrangido? Observou-o enquanto ele se virava e saía, sem dizer mais nada e sem olhá-la nos olhos. Partiu para o continente, trancando o castelo com as fêmeas, como sempre fazia. Hera odiava aquele hábito e aborrecia-se enormemente de não poder dar seus passeios pela ilha ao entardecer. Descarregava sua ira na escrava, castigando-a pelos menores delitos. Depois se arrependia e dava-lhe regalos. Casbah, que não primava pela inteligência, logo associou a dor de ser castigada a um prelúdio de coisas boas, como quando Othan lhe estapeava para depois beijá-la de cima a baixo. Pensando bem, sua pouca inteligência era uma dádiva naquela condição de serva de uma família de brutos. Ao fim do terceiro dia, Isauh retornou, aparentemente satisfeito, mas indisposto a falar sobre seus misteriosos negócios. Apesar de estar curiosa, Hera não o molestou com perguntas e tudo pareceu ter voltado ao normal. III. Surpresa Um mês depois, no meio de um dia ensolarado, uma pequena galera mercante atracou no píer da ilha. Da galera desceu um gato gordo, bem-humorado, finamente trajado e de modos corteses. Era Mestre Hulock, um mercador abastado de reputação impecável. Acompanhado por três outros felinos ele subiu a trilha para a castelo, cruzou o portão aberto do pátio frontal, e foi recebido por Isauh, que parecia estar esperando por aquela visita. O leão branco ordenou à esposa que esperasse no salão dos fundos, mas ela estava curiosa demais para obedecê-lo, e escondeu-se atrás de um portal para ver melhor o grupo que adentrava sua casa. Os felinos que acompanhavam o mercador eram dois escravos robustos e uma figura menor, coberta com uma elegante capa com capuz. – Você tem uma bela propriedade! – disse o gordo risonho. – Seja bem vindo, Mestre Hulock. – Aposto que não esperava me ver tão cedo! – De fato. Foi bem sucedido? – respondeu Isauh, esquadrinhando os três vultos atrás de Hulock. – Mais do que bem sucedido, o senhor vai ficar muito satisfeito! – disse o gato fazendo um sinal para que os outros se aproximassem. Num gesto gracioso, Hulock abaixa o capuz da figura do meio e mostra uma leoa branca, não muito bonita e um pouco rechonchuda, que olha castamente para o chão. – Veja, meu senhor, que belíssima leoa encontrei para si! Sem poder se conter, Hera saiu de seu esconderijo. O filhote branco 2 – O quê? O quê é isto, meu marido??? – Volte já para dentro! – ele respondeu, empurrando Hera para trás, mas sem tirar os olhos da leoa branca, que os olhou assustada. Quando Hera voltou correndo para dentro, a soluçar, Hulock se adiantou, pegando a leoa pelas mãos e aproximando-a do leão branco. – Veja bem... eu não lhe trouxe uma escrava, mas uma das filhas do clã do Lago, da Jorânia. Ela veio de muito longe, foi uma viagem e tanto até aqui. – Devem estar cansados, por favor, sentem-se. Perdoem os modos de Hera, ela ainda é muito... infantil. – respondeu Isauh apontando para um divã e duas banquetas. Com seus convidados instalados em frente ao fogo hospitaleiro da lareira, a negociação se iniciou. A leoa branca sentou-se numa banqueta, com os braços no colo, a olhar dissimuladamente para os lados, avaliando o lugar. Estava presa a um escravo grande e forte que segurava uma guia presa a um cinto enfeitado que a envolvia. O outro escravo carregava uma arca grande e pesada, provavelmente com o enxoval dela. – Se ela não é uma escrava, por que está presa? – perguntou Isauh apontando para a guia. – Isso foi uma recomendação do pai dela. Ele tem onze filhas... e um só método para lidar com todas! – responde Hulock rindo amarelo. – E quanto esse pai pede por essa filha? – Normalmente ele a cederia por vinte mil peças, mas... aceitará por Henora seis mil peças. – O quê? Nenhuma escrava vale mais do que duas mil peças! Nem mesmo uma leoa! – Mas Henora não é uma escrava, eu já disse. É filha de uma casa tradicional da Jorânia! – Não pedi isso, eu queria apenas uma leoa saudável e negra, se possível! – Leoas negras estão fora de cogitação! – Hulock sacudiu as mãos – Como o senhor é branco, pensei... – Sou um leão negro, de uma família de leões negros! Apenas nasci albino. – interrompeu Isauh – Não sou um leão branco como ela. Por isso pedi uma negra, que pudesse gerar um filhote negro! – Mas porque quer um filhote negro? Porque não começa sua própria linhagem de leões brancos? Pense em como seria bom ter filhotes idênticos a você! Seria esplêndido, não? Isauh cofiou a barba, inseguro. Hulock o havia pego desprevenido. – Mas seis mil peças... é o resgate de um lorde. – É o preço de uma fêmea magnífica, sob medida para o senhor! – responde o mercador, apontando com as duas mãos para a leoa branca, agora ruborizada. Convencido pelo esperto Hulock, Isauh cedeu e deu ao mercador a fabulosa quantia. Hulock apertou satisfeito a mão de Isauh, e com a outra deu a ponta da guia de Henora. – Só mais um detalhe... – Hulock diz, um pouco baixo demais, pois preferia não ter de dizer aquilo e muito gostaria que Isauh não lhe prestasse atenção – Ela não é... virgem. Mas no seu caso e é vantagem saber que ela é fértil, não é mesmo? – acrescentou rapidamente. Isauh largou a guia e cruzou os braços – Não sei, mas acho melhor você me contar logo tudo de uma vez, se quer realmente fechar a transação. – Bem... há alguns anos, quando Henora ainda era uma menina desmiolada, fugiu de casa com um bardo... mas foi encontrada e trazida de volta. Hulock pega a guia e volta a oferecê-la a Isauh – Ela... hã... teve um bastardo... que foi entregue ao progenitor. Foi uma aventura juvenil sem maiores consequências. É só por isso que seu pai a está cedendo ao senhor pelo preço tão oportuno... menos a minha comissão, é claro. – É claro... e o quê mais? – respondeu Isauh sem pegar a guia, ainda de braços cruzados. – Bem... tem isso aqui, que ele mandou junto com a certidão dela. – e tira da manga um rolo de pergaminho e um chicote pequeno. Isauh pega o chicote, que é diferente, enfeitado demais e muito leve – O que é isso? – É o que o pai das onze leoas usa para manter a disciplina em casa. Ele diz que dói, mas não marca a pele delas. – Não preciso disso! – diz Isauh jogando fora o objeto, fazendo com que Henora o olhasse com alguma simpatia. IV. Uma nova realidade Ao anoitecer, Hulock vai embora com seus escravos, muito satisfeito. Depois de ver o barco partir nas águas frias e escuras, Isauh volta ao salão do castelo, onde Henora ainda se encontrava sentada, a esperá-lo. Ele puxou outra banqueta e sentou em frente à leoa, que finalmente ergueu os grandes olhos azuis e o fitou, ansiosa. – Como se sente? – ele perguntou puxando uma de suas mãozinhas gorduchas e macias. – Muito delicado de sua parte me perguntar. Eu acho que estou bem. – ela respondeu colocando a outra mãozinha sobre o peito, num gesto elegante, que fez brilhar a linda e preciosa pulseira que a adornava. Se queria impressionar Isauh, não conseguiu, visto que ele não era sensível a tais ornamentos. Tanto, que nunca sentiu necessidade em dar algo parecido à sua esposa. – Você viu Hera. É a minha esposa e temos duas filhotas. Está magoada, mas é de natureza gentil e logo se conformará. – Se ela é sua primeira esposa... eu serei a segunda? Largando as mãos de Henora, Isauh se levanta e começa a circular pelo salão, ele não sabia como dizer algo sem magoar aquela fêmea. – Não, você não será minha esposa. Será minha concubina, quero que isso fique bem claro. Apenas Hera tem esse status e você não vai competir com ela. – Se meu pai soubesse disso, certamente não teria deixado Hulock me trazer! – Talvez sim, talvez não. Mas algo me diz que seu pai nem quis saber disso. De qualquer jeito, o que está feito, está feito. Entristecida com a verdade, a jovem olhou para o chão e se calou. Tomando o pesado baú, Isauh subiu para a parte alta do castelo, seguido pela leoa. Foram até um pequeno quarto contíguo ao aposento senhorial, de onde era possível ouvir Hera a soluçar desconsolada. – Fique à vontade. Vou chamar a escrava para aju- O filhote branco 3 dá-la a limpar este quarto. Depois pode descansar. Virei visitá-la esta noite. Esteja preparada. – Acho que antes você deveria consolar a sua esposa, ela parece muito abalada. – Hera pode ser um pouco manhosa, às vezes, mas é sensata. – E saiu, sem maiores delongas, não dando a Henora a oportunidade de responder. Entretanto, ao passar pela porta do seu próprio aposento, Isauh hesitou, pensou um pouco, e decidiu entrar. Ao ver Hera de costas na cama, agarrada às cobertas, aproximou-se e sentou ao seu lado. – Hera, pelos deuses, porquê tanto drama? – Fique longe de mim! Isauh puxou Hera para seu colo, mas ela resistiu. – Maldito! Você havia prometido que eu seria sua única esposa! – Você é! Acalme-se! Henora é apenas uma concubina! – Que diferença faz? – ela rosnou entredentes, furiosa. – Você é a senhora de Gardo... e eu não a trocaria por nada neste mundo! Henora apenas... – ele hesitou – ...terá mais filhotes meus. – Desde que nosso sobrinho se foi, você está obcecado com isso! Tudo tem o seu tempo, Isauh... eu posso ter o leãozinho que você quer... se você puder esperar! – Não quero esperar. E quero que você se tranquilize. Você sempre será minha única esposa, está bem? Enxugando as lágrimas, cabisbaixa, Hera suspirou – Está bem. Faça como quiser. – Ótimo. Quando estiver melhor, vá até Henora e lhe dê as boas-vindas. Ela parece ser uma boa felina. Deixando-a, Isauh sai para seus afazeres. Depois de algum tempo, Hera respirou fundo, lavou o rosto numa bacia, buscou suas filhotas, e foi conhecer a outra. Ao entrar no quartinho, com uma filhota em cada anca, encontrou a leoa branca a tirar seus vestidos do grande baú. A escrava já estava limpando a poeira do lugar. Casbah não ousava abrir a boca, mas estava fascinada com a riqueza dos pertences daquela nova senhora e, às vezes, se distraía paralisada a admirar os brocados, até ser notada e retomar diligente sua tarefa. Hera se aproximou, um pouco insegura, e tentou cumprimentar a concubina. – Hã... olá. Eu sou Hera. Estas são Helena e Helga. Henora olhou encantada para as duas filhotas – Oh, são as suas filhotas? Que lindas! Posso segurar uma? – Hã... claro. – Oh, que saudade do meu filhotinho! – disse a leoa branca enquanto embalava a pequena Helena. Hera ficou surpresa. Aquilo era inesperado. – Você teve um? – Sim, mas me foi tirado ainda muito pequeno... nem sei se ainda está vivo e que nome tem. Meu pai foi muito cruel comigo, nunca o perdoarei. Imediatamente Hera desarmou-se. Estava sinceramente tocada. – Sinto muito. Não sabia como consolar aquela pobre leoa. E falou sem pensar. – Não se aflija, você logo terá outro, que não será tirado de você. – e arrependeu-se imediatamente, sentindo-se meio idiota. – É, pode ser. – respondeu secamente Henora, devolvendo Helena. Hera já ia ia saindo, mas parou na porta, para cometer outra gafe. – É provável que Isauh persiga-a dia e noite até ter certeza de que ficou prenha. – Deuses... ele não me pareceu tão tosco! – Isauh não é um bárbaro como o irmão dele, mas pode ser assustador. – Comparado ao meu pai, Isauh é um primor de delicadeza. Você não sabe o que é viver sob o jugo de um verdadeiro tirano! – Bom... nesse caso, espero que seja mais feliz aqui. – Sei que não está sendo sincera, mas eu espero que no futuro possamos ser amigas! V. Mau começo Mais tarde, Henora foi chamada para sua primeira refeição em Gardo. Ela podia não ser tão jovem e bonita quanto Hera, mas era definitivamente mais distinta. Compareceu envergando um belíssimo vestido e tinha trejeitos tão elegantes que impressionaram. – Muito bonito o seu vestido, Henora. – Isauh achou que devia dizer. Ajeitando o cabelo, com falsa modéstia, a leoa branca sorriu - É apenas um velho vestido que herdei de minha irmã mais velha, mas obrigada! – Espero que tenha trazido outros mais simples, ou vai estragá-los, quando estiver trabalhando. – Hera não pôde evitar de dizer, pois sentiu uma pontinha de inveja. Nunca tivera roupas tão ricas. Mas Henora não se deu por vencida – Estou acostumada a trabalhar com eles. Posso bordar e costurar sem me sujar! – Bordar? Quero ver você limpar um peixe ou cavar na horta e continuar elegante assim! – Hera começou a se irritar. – Não sei fazer serviço sujo, minha mãe não... – Está bem, chega! – Aquela conversa não ia bem e Isauh achou melhor intervir. Mas não adiantou. – Ela praticamente está dizendo que não vai trabalhar, Isauh! – gritou Hera. – Dê um tempo a ela, sim? Ela acabou de chegar! – Ele se esforçou para não gritar também. Com estudada contenção, Henora defende-se. – Sim, me desculpem... acho que preciso mesmo de um tempo. Isauh, você também poderia me dar esse tempo. – O que quer dizer? – agora foi ele que ficou aborrecido. – Quero dizer... como você mesmo afirmou, que acabei de chegar... gostaria de me aclimatar, antes de consumar nosso ca... nossa união. – Quanto tempo você precisa? – Isauh esforçou-se para não perder o controle. – Uma semana, talvez duas. Levantando da mesa, Isauh explodiu de vez – Você tem uma semana para fazer um vestido mais simples, aprender a limpar um peixe, mexer na horta, e fazer tudo o que Hera faz. Mas esteja pronta para me receber hoje! Chocada, Henora deixou cair sua colher, que caiu no prato de sopa e respingou em seu belo vestido. Isauh se retirou fumegando, enquanto Henora limpava a mancha com o cenho franzido. – Eis o seu primor de delicadeza. – comentou Hera O filhote branco 4 com um sorriso mau nos lábios. Mais tarde, todos subiram para repousar. Hera esperou que as filhotas adormecessem no aposento infantil e só então foi para o aposento do casal, onde encontrou Isauh já se despindo. Imediatamente começou a ajudá-lo, como sempre fazia. Mas ao chegar na túnica de baixo, ele a afastou com um gesto. – Devo trazer Henora aqui? – ela perguntou, contrafeita. – De jeito nenhum, esse quarto é seu. Eu irei até ela. – A cama dela é muito frágil. – Não passarei a noite lá. – ele respondeu, já saindo. Isauh passou para o outro aposento. Encontrou Henora usando com um vestido ainda mais luxuoso e complicado que o anterior, sentada numa cadeira diante de uma mesinha com duas taças e uma ânfora. – Porque está vestida... assim? Henora mostra as taças – Pensei se não poderíamos conversar primeiro, beber algo... como felinos civilizados, antes. – Você não foi trazida para conversar comigo... e eu não vim aqui para tomar vinho! – Não sei porque as leoas falam tanto dos leões... qualquer gato tem mais tato com as fêmeas! – replicou zangada. – Está me comparando com o seu amante gato? – Khenot era um poeta e um amante dedicado. Você é um bruto. Aquilo era demais. Com os olhos vermelhos, Isauh retornou para seu aposento, irado. Hera, que já estava deitada, levou um susto ao vê-lo revirar as roupas que tirou ali. Ele encontrou seu cinto e voltou para o quarto de Henora sem dizer uma palavra, mas Hera sabia bem o que aquilo significava. Afundou nas cobertas e tapou os ouvidos. Mesmo assim ouviu os estalos e os rugidos. Eram rugidos de dor, e eram de Henora. Depois vieram outros rugidos, que ela conhecia bem e que eram de um leão quando copulava. Mas não duraram muito. Quando Isauh voltou para seu aposento, Hera fingiu já estar adormecida. Não queria ser envolvida no problema e nem ficar do lado de ninguém. De manhã bem cedo, ela levantou-se antes de todos e foi ao quarto da outra. Encontrou-a também desperta, sentada na cama, desgrenhada, semi-vestida com seu vestido agora em farrapos. tinha as costas e pernas cheia de vergões. Abraçava o próprio corpo, a gemer e balançar. – Oh, pela deusa! – Hera não pode deixar de ficar comovida. Levando-a até a sala de banhos, apoiada em seu braço, Hera cuidou da leoa branca e ofereceu-lhe consolo. Mas Henora não parava de se queixar. – Ele é louco... – gemia, lacrimosa. Pacientemente, lavou e penteou a concubina, como se fosse sua serva. Tentou distraí-la com frivolidades, mas Henora só fungava, olhando o vazio. – Pronto, acabei. Agora escolha outro de seus lindos vestidos para usar! – disse para animá-la. – Para quê ficar bela para um leão assim? Ele vai me rasgar, arrancar os meus cabelos e me morder! – Isauh não é sempre assim. A culpa foi sua. Se você não o provocar, isso não se repetirá. Vista-se e vamos descer. – Não quero vê-lo! Hera tinha mais o que fazer e já estava se cansando daquilo. Vestiu Henora à força e a puxou escadaria abaixo, para a copa, onde Isauh já comia, servido pela escrava. As filhotas brincavam felizes sob a mesa, ignorando o estranho clima. Hera e Isauh fizeram sua refeição calmamente, enquanto Henora, assustada como um coelho, só os olhava de soslaio, sem conseguir engolir nada. Depois daquela primeira noite, Henora se mostrou passiva e Isauh prático. Contentava-se em cobri-la rapidamente e voltar para o seu quarto. Mas as consequências da primeira noite perduraram. Só de saber que Isauh viria, Henora sentia seu coração disparar. Ao menor toque dele, uma onda de medo a envolvia, ao mesmo tempo que sentia um calor lhe abrasar o ventre. Estranhamente, Henora atingia o clímax antes mesmo de ser penetrada. Odiava aquilo, que não combinava nem um pouco com seu refinamento. Ela não entendia como, logo ela, podia ser refém de tão primitivos instintos. Às vezes, depois de visitar Henora, o leão ia acordar a esposa, com quem tinha outra relação. Uma noite, Henora não resistiu e invadiu sorrateiramente o aposento do casal. O que viu a deixou pasma: o casal, enlaçado, movia-se lentamente, amorosamente, numa versão mais plena e prolongada do que ela tinha. Hera, de olhos fechados, acariciava o leão branco, deliciada. Nem notou a presença da outra. Mas Isauh a viu e nada disse, só lhe lançou um olhar fuzilante, que a fez voltar correndo para seu quarto, emocionada. VI. Agora sim Logo Henora engravidou e com isso passou a receber melhor tratamento. Isauh parou de visitá-la, deu-lhe presentes e a dispensou de diversas tarefas. Foi a vez de Hera encher-se de despeito, vendo Henora acomodada na cadeira de Isauh, com Casbah lhe servindo refrescos, enquanto ela tinha de ir para o tanque lavar roupas dele, das filhotas e... da outra. Cogitou como poderia providenciar um pequeno estrago naquele pesado vestido azul que estava de molho, mas depois mudou de idéia. Passou a tarefa a Casbah e foi cozinhar no lugar da escrava. Faria peixe-adaga para o almoço, algo que Henora não apreciava. Certa tarde, quando Hera penteava suas filhotas, Henora ofereceu-se para ajudá-la. As leoazinhas estavam impossíveis e não paravam quietas. Henora já estava barriguda, vivia cansada, mas não se queixou quando a pequena Helga lhe puxou os cabelos. A certa altura arriscou um diálogo: – Hera, eu sinto muito... eu gostaria de poder desaparecer, para que você ficasse feliz com o seu marido, mas não posso. – A essa altura, nem sei se é possível voltar a ser feliz. – foi o que ouviu de Hera, num tom amargo. – Mas é claro que é... Isauh me dá coisas porque O filhote branco 5 não pode me dar amor. Ele ama somente você. Eu nunca conhecerei um amor assim. Subitamente arrependida, Hera suspirou. – Mas você já amou... o pai do seu filhote perdido... não? Henora desviou o olhar, para que Hera não visse a lágrima que despontava em um de seus olhos – Ele já deve ter se esquecido de mim. – Não, Henora, ninguém a esqueceria. – replicou, pondo a mão no ombro da outra. – Você é boa e inocente. Vi como você se entrega a Isauh, fiquei comovida. – Não é bem assim! Eu já aprontei... – Hera sorriu maliciosamente. – Não acredito! – Henora escondeu um sorriso com a mão. – Acredite. Até fui castigada, como você... e ele nem soube de tudo! – Eu só tive o meu bardo, mas ele sabia usar as mãos... ele me mostrou o céu, tocando meu corpo como fazia com seu alaúde. – respondeu a leoa branca com ar sonhador. – Então, ele fazia música em você? – riu Hera, enquanto se roçava na outra. Abraçando Hera como se fosse um alaúde, Henora também ria muito – Sim, ele me fazia cantar! – e sussurrou – Um dia desses eu lhe mostro melhor. Mais relaxada, Hera pegou suas filhotas e foi cuidar de suas tarefas. Mas não esqueceu a doçura do toque daquela que deveria ser sua inimiga. A leoa branca despertara sua lascívia e Hera passou o resto do dia a lançar olhares de desejo a Isauh, mas ele estava ocupado demais para notar. Quando a noite caiu, Hera foi ansiosa para a cama, mas encontrou o marido já adormecido. Foi frustrante, mas ela não desitiu. Cobriu-lhe o corpo de beijos suspirosos, mas o leão branco, sem acordar, virou-lhe as costas e continuou a ressonar. Irritada com aquela indiferença, Hera levantou-se e, jogando uma manta sobre o corpo, entrou no quarto de Henora. – Henora, está acordada? – Sim... – Pode me mostrar novamente... como o seu bardo fazia? – Deite aqui. Isauh não acordou com o ronronar das leoas. Somente quando as filhotas acordaram chorando, ele despertou, estranhando a ausência da esposa. Esperou um pouco, mas, como as gêmeas não se calavam, foi buscálas e depois, procurar a esposa. Olhou na cozinha e nos banhos. Só por último lhe ocorreu ir aos aposentos de Henora. Ao entrar no quartinho com as filhotas no colo e surpreender as duas fêmeas abraçadas, trocando carícias, seu sangue ferveu. – Pervertida! Afaste-se já de minha esposa! – gritou apertando contra si as duas filhotas, que imediatamente recomeçaram a chorar. Pulando para um canto da cama, Henora se defendeu – Foi ela que se enfiou em minha cama! Sem dizer nada, Hera saltou rapidamente, aos tropeções, para o chão. – Não têm vergonha? Uma largando as crias e outra prestes a parir, agindo como loucas! E, sem dizer mais nada, saiu, deixando-as pálidas de terror. Elas teriam boas respostas para dar, mas sabiam que não lucrariam grande coisa com elas. Henora enterrou-se nas cobertas e Hera voltou correndo para sua cama, onde Isauh já havia se deitado com as filhotas. Vendo a mãe, as duas pequenas a ela se agarraram, esquecendo-se do pai. Cismado, Isauh virou as costas e fingiu dormir. Não queria conversa. Queria pensar. Se ele achava ruim a esposa não aceitar a concubina, agora não sabia o que dizer daquele súbito entendimento. Tentou se convencer de aquilo não era nada. Afinal, eram apenas fêmeas. E eram suas. Era ridículo sentir ciúmes. Mas ele não facilitaria aquele comportamento. VII. Agora não No dia seguinte declarou que, devido à proximidade do parto, Henora seria isolada em seu quarto. Faria suas refeições e banhos lá mesmo. Nem a escrava poderia ficar mais do que alguns momentos sózinha com a leoa branca. Quase um mês depois, quando Henora entrou em trabalho de parto, Isauh trancou a porta de seu quarto, para que ela pudesse ter seu filhote sózinha, ao estilo primitivo das leoas da Pata. Hera indignou-se e protestou. – Henora está acostumada a ser assistida... Isauh, deixe-me ajudá-la! – Leoas não precisam de ajuda! Quer ser dilacerada? – Henora não vai me atacar, somos amigas! – Você mesma me atacou no seu parto, Hera... atacou Casbah, Kasdhan e até Othan... não aprendeu nada? – nesta altura ele parou para ouvir o pavoroso rugido da leoa branca – Ficar longe de uma leoa com seu recémnascido não é maldade, é sabedoria! E assim, Henora foi deixada sózinha por toda a noite, sem nenhuma assistência. Só muito tarde ela e Isauh puderam distinguir os sons de um recém-nascido, mas ficaram quietos. Ao amanhecer, não contendo mais sua curiosidade, o leão decidiu se arriscar a ir ver a cria. Percebendo suas intenções, Hera se colocou em seu caminho. – Deixe que eu vou! – Não, se ela atacar eu aguentarei melhor do que você! – e empurrando-a para o lado, destrancou a porta e entrou no quartinho. Mas nem conseguiu chegar perto do filhote. Com a força de dez leoas, Henora saltou de sua cama e o cobriu de patadas. Hera não pensou duas vezes, entrou também e se colocou entre os dois. – Henora, por favor, pare! Olhando aparvalhada para Hera, Henora se ergue ofegante, permitindo a Isauh se levantar. – Saia, Isauh! – ordena Hera, a quem ele obedece prontamente e visivelmente arrependido. Hera acaricia o rosto transtornado de Henora suavemente, e se dirige à porta – Vamos deixá-la em paz, amiga. – sussurra – Volte para a cama. Fechando a porta suavemente, Hera dá com o esposo do outro lado, humilde como ela nunca o vira antes, mas ansioso. – E então? É um macho? – Não sei, não vi. – Mas ela a aceitou e você não aproveitou? O filhote branco 6 – Eu tive sorte e não quis abusar! Sinto muito, terá de esperar até ela deixar. Sim, não havia jeito, senão esperar. Eles esperaram. No terceiro dia, os hormônios de Henora baixaram e ela chamou por... Hera. Atendendo prontamente ao chamado, Hera entrou, mas foi seguida pelo marido. Agachada num canto estava Henora, desgrenhada, nua, nada elegante, nem um pouco parecida com a refinada senhorinha que chegara a Gardo meses atrás. Com uma expressão ao mesmo tempo feroz e cansada, agarrava contra o peito uma pequena bolinha branca peluda. Com uma voz rouca, apenas disse: – Estou faminta. – Deixe-me pegá-lo, Henora! – responde Isauh, avançando. Mas apenas um arreganhar de dentes o faz recuar. Mais ponderada, Hera suplica: – Apenas mostre para nós, Henora, queremos ver se ele é perfeito. A contragosto, Henora vira o filhote e mostra seu pequeno rebento: um leãozinho branco, com um topete arrepiado e olhos grandes como os dela. – É mais que perfeito, é um macho! – exclama Isauh, feliz. – Que filhotinho lindo, amiga! – Hera também estava emocionada. Mais uma semana se passou e finalmente Henora superou seus instintos obsessivos pelo rebento. Deixou que todos o pegassem. Isauh estava encantado, mas Henora, pelo contrário, parecia deprimida. Hera não entendia como a felicidade de um podia ser a tristeza da outra. Observava o fascínio do leão que brincava o tempo todo com seu filhote branco. Ele nunca fora tão atencioso assim com as filhotas dela. Policiava-se para não sentir ciúmes. O pequeno era um inocente. E era mesmo muito engraçadinho, com seu enorme topete arrepiado. A cada dia que se passava, o interesse de Henora pelo filhote se reduzia. Agora Isauh podia ficar o tempo que quisesse com ele, até o dia todo, se lhe aprouvesse. – Está feliz, Isauh? – ela comentou, um dia. – Muito, você me deu o maior dos presentes! – ele disse, enquanto fazia cócegas no filhote. – Agora, marido, você deve dar um nome para ele e um presente para Henora, como manda a tradição. – interveio Hera, tentando ser agradável. – Ele vai se chamar Hoturantes, como meu pai. – E o presente? – Hera cobrou, bem humorada. – Henora pode pedir qualquer coisa. Henora pareceu despertar de seu torpor. Levantou-se, um pouco ansiosa demais. – Posso pedir qualquer coisa? Pode ser algo caro? Hera achou aquilo um pouco mesquinho, mas Isauh pareceu não se importar. – Se eu puder pagar, você terá. – Você pode pagar, mas creio que, ainda assim, achará caro. – Não vá nos arruinar, Henora, seja razoável! – admoestou a esposa. – Posso pedir mesmo? – hesitou a concubina. Isauh, jogando o filhote para o alto, respondeu, bem humorado – Claro, chega de suspense! – Quero que você não faça mais filhotes em mim. – Henora respondeu com uma voz muito baixa, mas foi como se tivesse gritado, pois todos congelaram. – Henora! – Hera cobriu a boca, em choque. Pegando o filhote um pouco tarde, mas o suficiente para que não se esborrachasse no chão, Isauh o aperta contra o peito e fecha os olhos – É um pedido estranho. Eu não sabia que me odiava tanto. Levantando-se de seu tamborete, Henora vai até a janela – Apenas não o amo. Pensei que esse filhote me faria amá-lo, mas só de pensar em ter outro, tenho vontade de me atirar da janela. Hera desata a chorar – Oh, deusa... Saindo da janela e dirigindo-se à outra, Henora a consola – Não chore, amiga. Só a sua doçura me deu forças para suportar meu destino. Isauh devolveu filhote ao cesto e se comentou, azedo – Uma fêmea que não quer procriar, não é uma fêmea. Você é incapaz de amar até sua cria. Não é uma boa companhia para minha esposa. – Então expulse-me. – Paguei uma fortuna por você. Não vou deixá-la ir assim. – Venda-me, então. – É uma idéia. Não suportando mais aquela conversa, Hera se ergueu e gritou. – Parem! Está louco, Isauh? Está louca, Henora? Quer ser afastada novamente de seu filhote? – Meu? Esse filhote é apenas de Isauh, não percebe? – e mais poderada, completou – Se Isauh tiver a decência de procurar Khenot e me oferecer a ele primeiro, poderei recuperar meu primogênito. – Khenot, o bardo? Acha que ele pode pagar? – Hera estava surpresa com a frieza da outra leoa. E Isauh não pareceu se opor à idéia. Estava tão gélido quanto a concubina. – Ela vale menos agora, Khenot poderá pagar. Mandarei um mensageiro para a Jorânia, para ver se o encontram. Hera não entendia Henora nem Isauh. Os leões brancos pareciam não se importar com mais nada, agora que cada um tinha o que queria. Isauh realmente mandou um mensageiro à Jorânia e se afastou de Henora, que só pegava no filhote a contragosto, quando Hera o levava para mamar. VIII. Decepções Certa tarde, Casbah, que estava colhendo frutos no pomar, viu antes de todos um barco aportar em Gardo. Deixando o cesto no chão, correu para o castelo, passou pelas leoas sem dizer nada e foi avisar Isauh, na torre. Hera não gostava daquela visível preferência de Casbah em agradar Isauh, apesar dela ser sua dona. Certamente a escrava esperava ganhar algo de seu marido. Podia ser um doce, podia ser um afago, podia ser um beijo. Casbah era uma jovem fêmea saudável e Isauh, quando Othan não estava, o único macho de Gardo. As coisas que ela tinha de tolerar! O filhote branco 7 Olhando pela janela, Hera e Henora percebem o motivo da agitação da escrava. Henora, que estava alimentando o filhote, fechou seu corpete rapidamente e entregou o filhote a Hera, disposta a correr para o cais, mas foi contida. Isauh desce antes e ordena que espere. E todos ficam no salão, esperando que o visitante alcance a entrada do castelo. Minutos depois o alguém já subia as escadarias da entrada e todos puderam ver que era... Mestre Hulock. Se Isauh estava surpreso, não demonstrou. Estendeu a mão para Hulock e o recebeu cortesmente. Mas ao ver a inesperada figura gorducha ao invés de seu amado bardo, Henora não se contém e grita, angustiada: – Mas... você chamou ele? Porquê? Porquê?– e, sem esperar resposta, arranca dos braços de Hera o filhote e sobe as escadarias, aos tropeções. Hera, também irada, aponta um dedo acusador ao marido. – Você é mau! Enganou nós duas! Um pouco espantado, mas também divertido, Hulock riu amarelo da situação. – Com mil demônios, por isso não sou casado! Mas Isauh não achou graça na situação. – Estão todos tirando conclusões precipitadas. Hera, se não pode se conter, retire-se. – respondeu o mais calmamente possível. – Então, o que este mercador está fazendo aqui? Hulock achou melhor intervir: – Desculpe-me ter vindo sem ser chamado. Estava atravessando os fiordes e quis saber se tudo corria bem. Eu sou um negociante sério e gosto de acompanhar cada caso. Ficarei feliz em dizer ao pai de Henora que ela já é uma mãe de família. – Muito atencioso da sua parte, peço que nos desculpe a balbúrdia. – respondeu Isauh olhando diretamente para a esposa. Hulock fez um gesto de pouco caso. – Estou habituado a isso. É assim toda vez que vou buscar uma esposa para um de meus clientes. Na casa paterna de Henora sempre há muita confusão. – Deve estar cansado, Mestre Hulock. Quer pernoitar em Gardo, antes de prosseguir em sua viagem? – ele oferece, apesar do olhar desaprovador da esposa. – Não, meu amigo, eu preciso ir. Há um barco cheio de mercadoria para ser entregue ainda hoje em Sildin. Do portão do castelo, Isauh e Hera assistiram ao embarque do mercador em sua pequena galera abarrotada. Parecia contente e, por Isauh, jamais saberia do fracasso daquele negócio casamenteiro. Abraçado a Hera, ele suspirou aliviado. Aquele tinha sido um dia cheio e estava ansioso por um pouco de paz. Voltaria para a torre e solicitaria Casbah. Começou a fechar o portão, sem perceber que um barquinho menor atracava no píer enquanto a galera de Hulock se afastava. Isauh já estava colocando as barras nos portões do pátio, pois começara a escurecer, quando ouviu passos lá fora. Abriu uma fresta e viu um gato elegante, puxando um filhote pela mão, um mestiço de leão. O casal percebeu logo que o dia ainda não havia acabado e adivinharam quem eram os recém-chegados: O bardo Khenot e o filhote bastardo de Henora. – Normalmente Gardo é um lugar tranquilo, mas hoje isso aqui ferve... – comentou o leão branco, enquanto tornava a abrir as pesadas portas. Khenot parou no batente e faz uma reverência, sem largar a mão do leãozinho – Sou Khenot, trovador da Jorânia, bardos dos bardos! – Entre, trovador... – suspirou Isauh. – Vou chamar Henora! – Hera não podia conter seu entusiasmo e voltou apressada para dentro. Chegando ao andar superior já sem fôlego, Hera entrou sem bater no quarto da outra e o que viu a fez recuar chocada: Henora, com feições de louca, empurrava uma grande almofada contra a cama. Estava a sufocar próprio filhote. Com extraordinária força, Hera avançou e jogou a outra contra a parede, juntamente com a almofada. Mas era tarde, o pequeno estava inerte. Ela o abraçou, com uma ternura nada condizente à fúria do olhar que lançou à mãe. Mas Henora não se assustou, pelo contrário, em seus lábios havia sorriso malévolo. – Não posso matar Isauh, mas espero tê-lo ferido o bastante. – Que a maldição da deusa caia sobre você! Khenot está lá embaixo, mas eu não deixarei que ele a leve, agora! No salão, Isauh e Khenot foram interrompidos pelos terríveis rugidos das duas leoas a descerem brigando as escadas. Hera segurava o filhote morto com um braço e com ou outro tentava impedir Henora de passar à sua frente. Nos últimos degraus, Hera agarrou Henora pelos cabelos e a faz cair de joelhos diante dos três felinos boquiabertos. O leãozinho de Khenot se escondeu atrás do pai, assustadíssimo com a cena. – Essa megera... assassinou o seu filhote! Sem conseguir dizer nada, Isauh apenas acariciou o filhotinho morto, como se não pudesse acreditar naquilo. Henora levantou a cabeça e encontrou os olhares estarrecidos de Khenot, do filhote mestiço e finalmente de Isauh. E arrependeu-se. – Me perdoem... me perdoem... – e começou a soluçar. – Mas... mas... porquê? – Isauh não podia compreender. – Para atingí-lo, Isauh! – Hera apertava com tanta força o braço do marido, que ele quase protestou. Khenot deu um passo para trás e pegou no colo o seu filhote, como se quisesse protegê-lo daquela loucura. Viera a Gardo cheio de otimismo e esperanças, mas se deparara com medonha cena. Isauh sentiu-se subitamente muito cansado. Se Henora quis puni-lo, fizera-o exemplarmente. Sem dizer nada, pegou seu filhote, beijou-o e levou-o à cripta da família. Os outros, sem saber o que fazer, o seguiram, num improvisado cortejo. Depois de depositar o pequeno defunto numa reentrância lateral, Isauh fecha a cripta, cabisbaixo. Todos que o seguiram estavam calados. Khenot, que também fora, levava seu filhote, agora adormecido. Henora parecia a mais arrasada de todos, mas se mantinha a certa distância, sentindo-se portadora de uma peste maligna. O filhote branco 8 Hera foi a primeira a quebrar o silêncio. – E agora, Isauh? O que vai fazer dela? – Só sei que não a quero mais em Gardo. – Não a premie pelo seu crime! Não a deixe ir com ele! – Hera aponta para Khenot. – Duvido que ele a a queira agora. – diz Isauh dando de ombros. Hera se vira para Khenot e pergunta – Ainda quer levar Henora? Khenot estremece, parecendo acordar de um transe – Essa não é a Henora que conheci. Não posso deixar que alguém assim se aproxime de meu filho. Ele é tudo o que tenho. Henora se deixa cair prostrada contra uma mureta – Estou acabada! Porque não me prendem nessa cripta, de uma vez? – A cripta é só para os membros da família. Você não é da família, você não é nada. Desapareça, não a quero no castelo novamente. – foi a resposta de Isauh. – Se nenhum dos dois me quiser, terei de voltar à casa de meu pai... prefiro a morte a isso! Isauh nem a olha. Toma Hera pela mão e começa a voltar para o castelo – Então vá morrer sózinha, em outro lugar. Em Gardo você não deve ficar, nem mais um instante. Hera, puxada pelo esposo, olha para trás, agora menos raivosa. Khenot então se aproxima de Henora apenas o suficiente para dizer: – Posso levá-la para o continente e lhe dar o dinheiro que eu havia trazido. Você poderá começar uma vida nova em algum lugar desconhecido. – Eu... eu agradeço. – ela responde, sem levantar os olhos do chão. Apesar de profundamente ressentida, Hera superase. Deixando o esposo no castelo, corre até os aposentos de Henora, faz uma trouxa de roupas e corre até o píer. Lá, encontra Henora já sentada num extremo do barquinho. No outro extremo, estão Khenot e seu filhote adormecido. Entrega-lhe a trouxa, ao que Henora agradece. – Obrigada. Espero que um dia possa me perdoar... – Não sei... – Hera hesitava – ...mas tenho um presente de despedida... para vocês dois. Embora desanimados, os dois olharam com curiosidade para Hera. – Meus desejos não têm a menor importância agora. – ela esclareceu – Não sei se vocês vão realmente se separar ao chegar no continente. Meu presente é... esta incerteza. Aquilo foi um presente, imaterial, frágil, vago, mas importante. Esperança. Não se contendo mais, Henora levou as mãos ao rosto e voltou a chorar. Khenot também estava visivelmente emocionado, mas, sem dizer nada, abriu a pequena vela e deixou o vento estufá-la. – Você é bondosa. Que os deuses a protejam. Adeus. – respondeu enquanto o barco se movia lentamente para longe de Gardo, de Isauh, de Hera e daquele episódio infeliz. Fim O filhote branco 9